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VIROLOGIA VETERINÁRIA
Inês Dantas

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QUINN, P. J. Microbiologia Vet erinária e Doenças Infecciosas.


Gabriel Veloso

Propriedades gerais dos vírus


Lukais Iohan Carvalho
VIROLOGIA
VETERINÁRIA
Eduardo Furtado Flores
(ORG.)

VIROLOGIA
VETERINÁRIA

Santa Maria, 2007


Reitor Clovis Silva Lima
Vice-reitor Felipe Martins Müller
Diretor da Editora Honório Rosa Nascimento
Conselho Editorial Ademar Michels
Daniela Lopes dos Santos
Eduardo Furtado Flores
Eliane Maria Foleto
Maristela Bürger Rodrigues
Honório Rosa Nascimento
Jorge Luiz da Cunha
Marcos Martins Neto
Ronai Pires da Rocha
Silvia Carneiro Lobato Paraense

Revisão lingüística Maristela Bürger Rodrigues


Normalização referências bibliográficas Luzia de Lima Sant’anna
Capa Marcio Oliveira Soriano sobre fotografia
de microscopia eletrônica de células de cultivo
infectadas com herpesvírus bovino.
Projeto gráfico e diagramação Carolina Isabel Gehlen
Ilustrações Laíse Miolo Morais, Marcio Oliveira Soriano,
Eduardo Furtado Flores

V819 Virologia veterinária / Eduardo Furtado Flores


(organizador). – Santa Maria : Ed. da UFSM,
2007.
888 p. ; 30 cm.

1. Medicina veterinária 2. Virologia I. Flores,


Eduardo Furtado

CDU 619:578

Ficha catalográfica elaborada por Maristela Eckhardt CRB-10/737


Biclioteca Central da UFSM

Direitos reservados à:
Editora da Universidade Federal de Santa Maria
Prédio da Reitoria - Campus Universitário
Camobi - 97119-900 - Santa Maria - RS
Fone/Fax: (55) 3220.8610
e-mail: editora@ctlab.ufsm.br
www.ufsm.br/editora
COLABORADORES

Alice Alfieri, MV, MSc. Doutor Cláudio Wageck Canal, MV, MSc. Doutor

Departamento de Medicina Veterinária Preventiva Departamento de Patologia Clínica Veterinária

Universidade Estadual de Londrina (UEL) Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Londrina, PR, Brasil. 86051-970. Porto Alegre, RS, Brasil. 91540-000

alfieri@uel.br claudio.canal@ufrgs. br

Amauri A. Alfieri, MV, MSc.Doutor Diego Gustavo Diel, MV, MSc.

Departamento de Medicina Veterinária Preventiva Laboratório de Virologia

Universidade Estadual de Londrina (UEL) Departamento de Medicina Veterinária Preventiva

Londrina, PR, Brasil. 86051-970. Universidade Federal de Santa Maria

alfieri@uel.br Santa Maria, RS, Brasil. 97105-900

diegodiel@pop.com.br

Ana Cláudia Franco, MV, MSc.,PhD

Departamento de Microbiologia Elisabete Takiuchi, MV., MSc. Doutor

Instituto de Ciências Básicas da Saúde Departamento de Medicina Veterinária Preventiva

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Universidade Estadual de Londrina (UEL)

Porto Alegre, RS, Brasil. 90050-170 Londrina, PR, Brasil. 86051-970

anafranco@ufrgs.br elisabete.takiuchi.@gmail.br

Ana Paula Ravazzolo, MV, D.Sc. Elizabeth Rieder, PhD.

Faculdade de Veterinária Plum Island Animal Disease Center ARS, USDA

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) PO Box 848 Greenport

Porto Alegre, RS, Brasil. 91540-000 NY 11944 USA

ana.ravazzolo@ufrgs.br elizrieder@yahoo.com

Clarice Weis Arns, MV, DSc. Fernanda Silveira Flores Vogel, MV, MSc. Doutor

Departamento de Microbiologia e Imunologia Departamento de Medicina Veterinária Preventiva

Instituto de Biologia Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Santa Maria, RS, Brasil. 97105-900

Campinas, SP, Brasil. 13081-970 fervogel@smail.ufsm.br

arns@unicamp.br
Fernando A. Osorio, MV, MSc. PhD

Clarissa Silveira Luiz Vaz, MV, MSc., Embrapa Suínos Department of Veterinary and Biomedical Sciences

e Aves (CNPSA) University of Nebraska/Lincoln

Concórdia, SC, Brasil. 89.700-000, Lincoln, Nebraska, USA. 68583-0905

clarissa.vaz@ufrgs. br fosorio@unlnotes.unl.edu
Fernando Rosado Spilki, MV, MSc., Doutor Julia Ridpath. PhD

Departamento de Microbiologia e Imunologia National Animal Disease Center – ARS - USDA

Instituto de Biologia 2300 Dayton Avenue. P.O. Box 70

Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) Ames, IA, USA. 50010

Campinas, SP, Brasil. 13083-970 jridpath@nadc.ars.usda.gov

fernandospilki@yahoo.com.br

Letícia Frizzo da Silva, MV, MSc.

Gael Kurath, PhD Laboratório de Virologia

Microbiologist Western Fisheries Research Center Departamento de Medicina Veterinária Preventiva

6505 NE 65th St. Universidade Federal de Santa Maria

Seattle, Washington, 98115. USA Santa Maria, RS, Brasil. 97105-900

gael_kurath@usgs.gov diegodiel@pop.com.br

Gustavo Delhon, MV, MSc.PhD Luciane Teresinha Lovato, MV, MSc., PhD

Department of Pathobiology Departamento de Microbiologia e Parasitologia

College of Veterinary Medicine Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

University of Illinois at Urbana-Champaign Santa Maria, RS, Brasil. 97105-900

Urbana, Illinois, USA. llovato@smail.ufsm.br

gadelhon@uiuc.edu

Luiz Carlos Kreutz, MV, MSc., PhD

Helena Beatriz de Carvalho R. Batista, MV, MSc. Faculdade de Agronomia e Medicina Veterinária

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Universidade de Passo Fundo (UPF)

Porto Alegre, RS, Brasil. 91540-000 Passo Fundo, RS, Brasil. 99001-970

hruthner@yahoo.com.br lckreutz@upf.tche.br

Hernando Duque Jaramillo, MV, MSc. PhD Luis L. Rodriguez, MV. PhD

Plum Island Animal Disease Center Foreign Animal Disease Research Unit

USDA-APHIS-VS-NVSL-FADDL Plum Island Animal Disease Center ARS, USDA

Greenport, New York USA. PO Box 848 Greenport NY 11944. USA.

11944-0848 lrodriguez@piadc.ars.usda.gov

Janice Reis Ciacci-Zanella, MV, MSc.PhD Marcelo de Lima, MV, MSc.

Embrapa Suínos e Aves (CNPSA) Department of Veterinary and Biomedical Sciences

Concórdia, SC, Brasil. 89.700-000, University of Nebraska/Lincoln

janice@cnpsa.embrapa.br Lincoln, Nebraska, USA. 68683-0905

mdelima2@unlnotes.unl.edu

John D. Neill, DVM, PhD

National Animal Disease Center, USDA, ARS Maria Elisa Piccone, PhD

2300 Dayton Avenue. P.O. Box 70 Plum Island Animal Disease Center ARS, USDA

Ames, Iowa.USA. 50010 PO Box 848 Greenport, NY. 11944. USA

jneill@nadc.ars.usda.gov maria.piccone@ars.usda.gov
Mariana Sá e Silva, MV, MSc. Renata Servan de Almeida, MV, MSc.Doutor

Setor de Virologia CIRAD - Dèpartement Systèmes Biologiques

Departamento de Medicina Veterinária Preventiva UPR 15 – Controle dês Maladies Animales

Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Exotiques et Emergentes

Santa Maria, RS, Brasil. 97105-900 34398 Montpellier cedex 5 France

msaesilva@yahoo.com.br renservan@yahoo.com.br

Mário Celso Speroto Brum, MV, MSc. Rudi Weiblen, MV, MSc., PhD

Setor de Virologia Departamento de Medicina Veterinária Preventiva

Departamento de Medicina Veterinária Preventiva Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Santa Maria, RS, Brasil. 97105-900

Santa Maria, RS, Brasil. 97105-900 rudi@ccr.ufsm.br

mcsbrum@yahoo.com.br

Sheila Wosiacki, MV., MSc. Doutor

Mauro Pires Moraes, MV, MSc., Doutor Centro de Ciências Agrárias,

Departamento de Veterinária Universidade Estadual de Maringá (UEM)

Universidade Federal de Viçosa Campus Umuarama

Viçosa, MG, Brasil. 36570-000 Maringá, PR, Brasil. 87020-900

mpmoraes@ars.usda.gov wosiacki@yahoo.com.br

Paulo Michel Roehe, MV, MSc.PhD Ubirajara M. da Costa, MV, MSc.Doutor

Instituto de Pesquisas Veterinárias Desidério Finamor Departamento de Medicina Veterinária Preventiva e Tecnologia

FEPAGRO Saúde Animal Centro de Ciências Agroveterinárias

Eldorado do Sul, RS, Brasil. 92 990-000 & Universidade Estadual de Santa Catarina (UDESC)

Instituto de Ciências Básicas da Saúde Lages, SC, Brasil. 88520-000

Departamento de Microbiologia biravetvirus@yahoo.com.br

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)

Porto Alegre, RS, Brasil 90 050 -170 Zélia Inês Portela Lobato. MV, PhD.

proehe@gmail.com Escola de Veterinária – Departamento de Medicina

Veterinária Preventiva

Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)


Paulo Renato dos Santos Costa, MV, MSc., Doutor
Belo Horizonte, MG, Brasil. 34992-101
Departamento de Veterinária
ziplobat@vet.ufmg.br
Universidade Federal de Viçosa

Viçosa, MG, Brasil. 36570-000

prenato@ufv. br

Renata Dezengrini, MV, MSc.

Setor de Virologia

Departamento de Medicina Veterinária Preventiva

Universidade Federal de Santa Maria

Santa Maria, RS, Brasil. 97105-900

renatadezengrini@yahoo.com.br
INTRODUÇÃO

A presente obra foi concebida para preencher uma lacuna existente na bibliografia dedicada à
Virologia Veterinária na língua portuguesa. O crescimento notável do ensino e pesquisa em Virologia
Animal no Brasil, nas últimas décadas, infelizmente não foi acompanhado por um aumento equiva-
lente na literatura disponível. Neste período, o acúmulo fantástico de conhecimentos acerca da gené-
tica e biologia dos agentes virais, proporcionado pelo desenvolvimento e popularização das técnicas
moleculares, tem tornado algumas obras clássicas gradativamente desatualizadas e obsoletas. Exis-
tem bons livros de Virologia Animal e excelentes tratados de Virologia Geral e Molecular na língua
inglesa. No entanto, esses textos são temporariamente inacessíveis a uma parcela considerável dos
estudantes de graduação que se interessam e ingressam no mundo fascinante da Virologia. Esta obra,
pois, tem por objetivo fornecer aos iniciantes em Virologia, que, porventura, sejam também iniciantes
na língua inglesa, um conteúdo atualizado e abrangente da Virologia Animal, com ênfase aos animais
de interesse veterinário.
O presente texto é direcionado aos iniciantes em Virologia, sejam eles estudantes de graduação,
pós-graduação ou médicos veterinários; e tem como objetivo fornecer informações básicas sobre a
estrutura, biologia, patogenia, diagnóstico e controle dos principais vírus de interesse veterinário. Os
principais aspectos da biologia molecular e replicação viral são abordados de maneira simples e de
fácil compreensão, para embasar o entendimento da patogenia, resposta imunológica e diagnóstico
dessas infecções. A omissão de informações mais detalhadas sobre a biologia molecular dos vírus foi
intencional. Tal detalhamento está um pouco além da informação usualmente buscada por iniciantes
em livros-texto. Por outro lado, os estudantes em níveis mais avançados podem recorrer a excelentes
livros existentes na língua inglesa.
Um grande desafio enfrentado durante a elaboração deste texto foi acompanhar a dinâmica das
descobertas e constatações na área da Virologia Molecular. A dinâmica do conhecimento gerado nesta
área exigirá atividades de revisão e atualização constantes do conteúdo, sob a pena de deixá-lo obsole-
to em poucos anos. Os avanços nas áreas de vacinologia e terapêutica antiviral também se intensifica-
ram neste período, permitindo aos autores relatar as mais recentes conquistas científico-tecnológicas
nessas áreas.
A dinâmica das interações dos vírus com os seus hospedeiros no ambiente natural também re-
presenta um desafio para a elaboração de textos descritivos. No período de elaboração desta obra
– aproximadamente três anos – surgiram novos vírus e novas doenças; e vírus já conhecidos cruzaram
a barreira de espécies e infectaram hospedeiros inusitados. Ou seja, a evolução natural das infecções
víricas no ambiente natural é tão dinâmica que exige uma revisão contínua de conceitos.
Este livro encontra-se dividido em duas partes. A parte inicial aborda os aspectos gerais da Viro-
logia Animal, discorrendo sobre a estrutura, classificação e nomenclatura, genética e evolução, méto-
dos de detecção e identificação de vírus, aspectos gerais da replicação viral, replicação de vírus DNA
e RNA, patogenia das infecções, epidemiologia, imunidade a vírus, diagnóstico laboratorial e vacinas.
Embora o enfoque desta parte seja direcionado para a Virologia Animal, os conceitos e aspectos nela
tratados são também aplicáveis a vírus que infectam humanos. Assim, este texto pode útil também
para os demais estudantes das áreas biomédicas.
A segunda parte trata individualmente das famílias virais de importância em medicina veteriná-
ria. Os capítulos foram elaborados seguindo algumas orientações com relação à organização e conteú-
do. Dessa forma, cada capítulo específico é dividido em duas partes: a seção inicial aborda os aspectos
gerais da respectiva família, a estrutura dos vírions, a estrutura e organização genômica, expressão
gênica, replicação do genoma e o ciclo replicativo. Um dos maiores desafios enfrentados na elabo-
ração deste texto foi obter um equilíbrio entre o nível de aprofundamento nos aspectos biológicos e
moleculares com a ênfase necessária nos aspectos epidemiológicos, clínico-patológicos e diagnósticos.
Os aspectos moleculares da biologia dos vírus foram abordados de maneira simplificada para facilitar
o entendimento por iniciantes da área. Um maior detalhamento nos aspectos biológicos e moleculares
da estrutura e replicação dos vírus pode ser encontrado nos livros especializados.
A segunda parte de cada capítulo específico é dedicada às doenças de importância veteriná-
ria causadas por membros das respectivas famílias. Esta seção discorre acerca das características do
agente, epidemiologia, patogenia, sinais clínicos e patologia, diagnóstico, controle e profilaxia das
doenças por ele causadas. Algumas famílias possuem vários vírus associados com doenças animais
de importância sanitária e econômica; enquanto outras possuem poucos patógenos animais. Por isso,
a disparidade de conteúdo e extensão dos diferentes capítulos. O último capítulo apresenta algumas
famílias virais que possuem importância limitada em medicina veterinária. Algumas dessas famílias
abrigam patógenos exclusivamente humanos; outras abrigam vírus que infectam somente animais
sem interesse econômico ou afetivo; enquanto outras congregam vírus cujo interesse maior reside nos
seus aspectos biológicos e moleculares.

Os autores
AGRADECIMENTOS

Uma obra deste porte somente poderia ser elaborada com a colaboração de várias pessoas. E
nada mais justo do que agradecer a todos aqueles que tornaram possível concretizá-la. Aos colegas
colaboradores, pela disposição em dedicar uma parte importante do seu tempo na elaboração dos
capítulos. É desnecessário listá-los aqui, pois os seus nomes se encontram nos respectivos capítulos
ou seções.
Aos colegas e amigos de longa data, com quem a elaboração de um livro de Virologia Veterinária
foi tema de inumeráveis conversas e planos em congressos e reuniões científicas nestes últimos 15
anos. À Janice Ciacci-Zanella, Clarice Arns, Ana Paula Ravazollo, Amauri Alfieri, Luciane Lovato,
Mauro Moraes, Paulo Roehe, Luiz Carlos Kreutz e Rudi Weiblen, entre outros, o meu agradecimento
e a certeza de que este livro representa a concretização de um sonho de todos nós.
O agradecimento aos colegas estrangeiros, que entenderam a importância de um livro-texto
como este e dedicaram parte de seu tempo para auxiliar a elaborá-lo: Drs. Julie Ridpath, John Neill,
Luis Rodriguez, Gael Kurath, Fernando Osorio, Maria Elisa Piccone, Gustavo Delhon, Elisabeth Rie-
der e Hernando Duque.
Devo um agradecimento especial a três colegas que contribuíram muito além da elaboração dos
respectivos capítulos, participando de vários outros, enviando sugestões, traduzindo, revisando e re-
formulando os textos submetidos: Dr Luiz Carlos Kreutz, Dra. Fernanda Silveira Flores Vogel e Méd.
Vet. doutoranda Renata Dezengrini.
Gostaria de externar o meu reconhecimento e gratidão à equipe do Setor de Virologia da UFSM,
composta por mestrandos e doutorandos, que participaram ativamente de todo o processo de elabo-
ração, edição e revisão desta obra. Grande parte da qualidade e propriedade deste texto se deve às
intermináveis discussões e revisões de capítulos, patrocinadas por um grupo cheio de entusiasmo
e motivação. Ao Mário Celso S. Brum, Diego G. Diel, Evandro Winkelmann, Sabrina R. Almeida,
Sandra Arenhart, Andréia Henzel, Renata Dezengrini, Mariana Sá e Silva, Helton dos Santos, Letícia
Frizzo da Silva e Marcelo Weiss, com certeza de que vocês possuem parte importante nessa obra.
Agradeço também aos colegas professores Sílvia Hübner (UFPEL) e Valéria Lara Carregaro
(UFSM) pelas revisões e colaboração em capítulos específicos. Á profa. Maristela Bürger Rodrigues,
pela revisão gramatical; Carolina Gehlen, pela diagramação; Zélide Bayer Zucheto e prof. Honório
Rosa Nascimento, da Editora da UFSM, pelo apoio para que a edição deste livro fosse possível.
Além do apoio da Editora da UFSM, parte do trabalho gráfico (elaboração de figuras, diagrama-
ção, revisão gramatical) e pagamento de direitos autorais foram custeados com recursos da taxa de
bancada de Produtividade em Pesquisa do CNPq do Organizador. A arte final e capa somente foram
possíveis com o auxílio do Centro de Ciências Rurais, na pessoa do seu Diretor, prof. Dalvan José
Reinert, e da vice-reitoria, pelo Prof. Felipe Müller, a quem agradecemos.
Quero também manifestar o meu agradecimento e admiração pelo trabalho gráfico magnífico
realizado pelos acadêmicos do Curso de Desenho Industrial da UFSM, Laíse Miolo Moraes e Márcio
Oliveira Soriano. Eles foram os responsáveis diretos por grande parte das ilustrações desta obra; e
responsáveis indiretos pela parte restante, cuja confecção lhes foi subtraída pelo seu entusiasmado
aprendiz. Ao final do trabalho, tivemos como resultados: um conjunto formidável de ilustrações; dois
acadêmicos de Desenho Industrial com certo conhecimento de Virologia e um virologista aficcionado
pela arte de ilustrar graficamente a biologia dos vírus. E isso é só o início...

Eduardo Furtado Flores, MV. MSc. PhD


Professor Associado
Departamento de Medicina Veterinária Preventiva (DMVP)
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, RS, Brasil.
97105-900 – flores@ccr.ufsm.br

Eduardo Furtado Flores é natural de Santa Maria, RS (25/10/61); com graduação (1983) e mestrado
(1989) em Medicina Veterinária pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Possui PhD em
Virologia Molecular pela Universidade de Nebraska/Lincoln, Estados Unidos (1995). É professor do
Departamento de Medicina Veterinária Preventiva da UFSM desde 1991, responsável pelas discipli-
nas de Epidemiologia Geral Veterinária e Saúde Pública Veterinária na graduação; e pelas disciplinas
Epidemiologia Veterinária, Virologia Molecular e Introdução à Biologia Molecular na pós-graduação.
Faz parte do Conselho Editorial da Editora da UFSM; é pesquisador de produtividade em pesqui-
sa (1C) do CNPq desde 1997; e editor adjunto de Virologia da revista Pesquisa Veterinária Brasileira.
Divide as suas atividades didáticas e editoriais com a rotina de diagnóstico virológico no Setor de
Virologia (SV/UFSM) e com a orientação de bolsistas de iniciação científica, mestrado e doutorado.
Coordena pesquisas nas áreas de epidemiologia molecular e patogenia das infecções pelos vírus da
diarréia viral bovina e herpesvírus bovino tipos 1 e 5.
SUMÁRIO

Parte I - Virologia Geral

1 Estrutura e composição dos vírus 19


Eduardo Furtado Flores

2 Classificação e nomenclatura dos vírus 37


Luciane Teresinha Lovato

3 Detecção, identificação e quantificação de vírus 59


Mário Celso S. Brum & Rudi Weiblen

4 Genética e evolução viral 87


Mauro Pires Moraes & Hernando Duque Jaramillo

5 Replicação viral 107


Eduardo Furtado Flores & Luiz Carlos Kreutz

6 Replicação dos vírus DNA 137


Gustavo Delhon

7 Replicação dos vírus RNA 165


Maria Elisa Piccone & Eduardo Furtado Flores

8 Patogenia das infecções víricas 189


Eduardo Furtado Flores

9 Resposta imunológica contra vírus 237


Luiz Carlos Kreutz

10 Epidemiologia das infecções víricas 261


Eduardo Furtado Flores

11 Diagnóstico laboratorial de infecções víricas 295


Eduardo Furtado Flores

12 Vacinas víricas 327


Cláudio Wageck Canal & Clarissa Silveira Luiz Vaz
Parte II - Virologia Especial

13 Circoviridae 361
Janice R. Ciacci-Zanella

14 Parvoviridae 375
Mauro Pires Moraes e Paulo Renato da Costa

15 Papillomaviridae 397
Amauri Alfieri, Alice Alfieri & Sheila Wosiacki

16 Adenoviridae 413
Mauro Pires Moraes & Paulo Renato da Costa

17 Herpesviridae 333
Ana Cláudia Franco & Paulo Michel Roehe

18 Poxviridae 489
Cláudio Wageck Canal

19 Asfarviridae 513
Gustavo Delhon

20 Caliciviridae 525
John Neill

21 Picornaviridae 537
Elisabeth Rieder & Mário Celso S. Brum

22 Flaviviridae 563
Julia Ridpath & Eduardo Furtado Flores

23 Togaviridae 593
Eduardo Furtado Flores

24 Coronaviridae 613
Luciane Teresinha Lovato & Renata Dezengrini

25 Arteriviridae 639
Marcelo de Lima & Fernando A. Osorio

26 Paramyxoviridae 657
Clarice Weis Arns, Fernando R. Spilki & Renata Servan de Almeida

27 Rhabdoviridae 689
Luis Rodriguez, Helena R. Batista, Paulo Michel Roehe & Gael Kurath
28 Orthomyxoviridae 721
Eduardo Furtado Flores, Luciane T. Lovato, Mariana Sá e Silva, Renata Dezengrini & Diego G. Diel

29 Bunyaviridae 755
Fernanda Silveira Flores Vogel

30 Reoviridae 773
Amauri Alfieri, Alice Alfieri, Elisabete Takiuchi & Zélia I. P. Lobato

31 Retroviridae 809
Ana Paula Ravazzollo & Ubirajara da Costa

32 Outras famílias virais 839


Fernanda Silveira Flores Vogel & Eduardo Furtado Flores

Abreviaturas e siglas 861

Glossário 871
PARTE I
VIROLOGIA GERAL
ESTRUTURA E COMPOSIÇÃO DOS VÍRUS
Eduardo Furtado Flores 1
1 Introdução 21

2 Estrutura das partículas víricas 21

2.1 O genoma 23
2.2 O capsídeo 25
2.3 O envelope 28
2.4 A matriz 29

3 Proteínas virais 30

4 Outros componentes dos vírions 31

4.1 Enzimas 31
4.2 Outras proteínas virais 31
4.3 Lipídios 31
4.4 Carboidratos 31
4.5 Ácidos nucléicos celulares 31
4.6 Proteínas celulares 32

5 Partículas víricas anômalas 32

6 Propriedades físico-químicas 33

7 Bibliografia consultada 33
1 Introdução rica ou simplesmente vírion. A nomenclatura uti-
lizada para designar as diversas hierarquias da
Os vírus são os microorganismos menores e classificação taxonômica dos vírus (ordem, famí-
mais simples que existem. São muito menores do lia, subfamília, gênero, espécie) será apresentada
que células eucariotas e procariotas e, ao contrá- no Capítulo 2. No presente capítulo, a terminolo-
rio destas, possuem uma estrutura simples e está- gia vernacular será utilizada. Por exemplo: o ter-
tica. Esses agentes não possuem a maquinaria ne- mo picornavírus será utilizado para referir-se aos
cessária para a produção de energia metabólica e membros da família Picornaviridae; os membros
para a síntese de proteínas e, por isso, necessitam da família Orthomyxoviridae serão chamados de
das funções e do metabolismo celular para se ortomixovírus.
multiplicar. Fora de uma célula viva os vírus são
estruturas químicas. A sua atividade biológica só
2 Estrutura das partículas víricas
é adquirida no interior de células vivas, por isso
são parasitas intracelulares obrigatórios.
O genoma viral – ácido ribonucléico (RNA) A unidade fundamental – o indivíduo – dos
ou desoxirribonucléico (DNA) – codifica apenas vírus é denominada partícula vírica, partícula viral
as informações necessárias para assegurar a sua ou simplesmente vírion. As dimensões, morfolo-
multiplicação, empacotamento do genoma e para gia e complexidade das partículas víricas variam
subversão de funções celulares em benefício da amplamente entre os vírus das diferentes famí-
sua multiplicação. Ao contrário de células euca- lias. A grande maioria dos vírions possui dimen-
riotas e procariotas, os vírus não crescem ou se sões ultramicroscópicas, com diâmetro que varia
dividem; e sim são produzidos pela associação entre 15 e 22 nanômetros (nm) nos circovírus; e
dos seus componentes pré-formados no interior entre 200 e 450 nm nos poxvírus; e só pode ser
da célula infectada. visualizada sob microscopia eletrônica (ME). As
A palavra vírus é utilizada para designar o exceções são alguns poxvírus que são maiores
agente biológico, o microorganismo. A estrutura e podem ser visualizados sob microscopia ótica
física é denominada partícula viral, partícula ví- (Figura 1.1).

Poxvírus
Células Vírus e
animais Bactérias ribossomos Proteínas

-10
10-2 10
-3
10-4 10
-5
10-6 10-7 10
-8
10-9 10
(1cm) (1mm) (0,1mm) (10μm) (1μm) (0,1μm) (10nm) (1nm) (1A)

Microscopia ótica

Microscopia eletrônica

Fonte: adaptado de Flint et al.(2000).

Figura 1.1. Escala logarítmica métrica, ilustrando as dimensões dos vírus comparativamente com células animais,
bactérias e macromoléculas. O poder de resolução das microscopias ótica e eletrônica é indicado por barras.
22 Capítulo 1

De acordo com a estrutura básica das partí- condições ambientais que rapidamente inativa-
culas, dois grupos principais de vírus podem ser riam o ácido nucléico. Por isso, o capsídeo e o
reconhecidos: os vírus sem envelope e os vírus envelope são críticos para a manutenção da in-
com envelope (Figura 1.2). Os vírions mais sim- tegridade e viabilidade do genoma, que contém
ples são compostos pelo genoma recoberto por as informações essenciais para a multiplicação
uma camada simples de proteína, denominada do vírus. Outras funções importantes dos com-
capsídeo. Os vírus mais complexos possuem ge- ponentes superficiais das partículas víricas são
nomas longos associados com várias proteínas, o reconhecimento e interação com estruturas da
recobertos por capsídeos complexos, revestidos membrana da célula hospedeira. Essas interações
externamente por uma membrana lipoprotéica são essenciais para a penetração do agente na cé-
de origem celular, denominada envelope. As ca- lula e início da sua replicação.
madas protéicas que envolvem o genoma (capsí- A arquitetura e modo com que as partículas
deo, envelope) são freqüentemente denominadas víricas são construídas devem permitir o desem-
de envoltórios virais. Os conceitos principais re- penho de duas funções fundamentais: a) prote-
lacionados à estrutura e componentes dos vírions ção do genoma durante o transporte entre células
estão apresentados no Quadro 1.1. e entre hospedeiros, e b) liberação do genoma ín-
tegro e viável após a penetração na célula hospe-
deira. A evolução fez com que a arquitetura das
A partículas víricas tenha sido adequada para cum-
prir essas tarefas. Ou seja, os vírions são resisten-
tes o suficiente para proteger o genoma no exte-
rior das células e são facilmente desintegrados ao
Genoma penetrarem na célula hospedeira, para permitir a
pronta liberação do genoma no seu interior. Essas
duas propriedades, aparentemente opostas, que
Capsídeo
são particularmente bem evidentes em alguns ví-
rus sem envelope, caracterizam o que se conven-
cionou denominar de estrutura metaestável.
B

Envelope
VÍRUS - DEFINIÇÕES
E CONCEITOS
Genoma
- O genoma é constituído por RNA ou DNA.

- O capsídeo é a camada protéica que


Capsídeo recobre o genoma.

- Os protômeros são as unidades protéicas


que compõe o capsídeo.

- Os capsômeros são as unidades


morfológicas do capsídeo.
Figura 1.2. Estrutura fundamental das partículas víricas
- O nucleocapsídeo é a estrutura formada
e seus componentes. Representação esquemática de um pelo genoma + capsídeo.
vírion sem envelope (A) e com envelope (B).
- O envelope é a membrana lipoprotéica
que recobre o nucleocapsídeo
A função primordial dos envoltórios virais
- O vírion é a partícula vírica completa, infecciosa.
(capsídeo e envelope) é proteger o genoma de
danos físicos, químicos ou enzimáticos durante
a transmissão entre células e entre hospedeiros.
Nessa etapa, os vírions podem ser expostos a Quadro 1.1. Conceitos e definições fundamentais.
Estrutura e composição dos vírus 23

2.1 O genoma desde genomas de DNA de fita simples (ssDNA)


até RNA de fita dupla (dsRNA) (Tabelas 1.1 e 1.2,
O genoma dos vírus é constituído por mo-
em anexo).
léculas de ácido ribonucléico (RNA) ou desoxir-
A maioria dos vírus DNA possui o ácido
ribonucléico (DNA), nunca pelos dois. Por isso,
nucléico genômico como uma molécula de fita
esses agentes são comumente denominados de
dupla. As exceções são os parvovírus (cadeia
vírus RNA ou vírus DNA. Em geral, os vírus das
simples linear), os circovírus (cadeia simples cir-
diversas famílias contêm apenas uma cópia do
cular) e os hepadnavírus (cadeia parcialmente
genoma por vírion (são haplóides). Uma exce-
dupla). O termo circular refere-se à continuidade
ção são os retrovírus, que possuem duas cópias
da cadeia de DNA e não à forma geométrica ado-
idênticas do genoma (são diplóides). A extensão,
tada pela molécula. Ao contrário dos genomas
estrutura, organização genômica e o número de
lineares, que apresentam as extremidades livres,
genes contidos no genoma variam amplamen-
os genomas circulares apresentam a cadeia contí-
te entre os diferentes vírus. Os menores vírus
nua, sem extremidades.
animais (circovírus) possuem uma molécula de
Os poliomavírus e papilomavírus possuem
DNA com aproximadamente 1.700 nucleotídeos
uma molécula de DNA de cadeia dupla circular.
(1,7 quilobases, kb) como genoma; os vírus maio-
res possuem um genoma DNA com mais de 350 Essa molécula apresenta-se enrolada/tensionada
kb (poxvírus). O número de genes – e conse- sobre o seu eixo longitudinal (do inglês: supercoi-
qüentemente o número de proteínas codificadas led) e está associada com proteínas celulares de-
– também varia entre os diferentes vírus. Alguns nominadas histonas, tanto nas células infectadas
vírus de plantas codificam apenas uma proteína, como nos vírions. Os parvovírus possuem uma
enquanto o genoma dos poxvírus codifica mais molécula de DNA de cadeia simples, cujas extre-
de 100. midades possuem seqüências complementares
Em geral, o genoma dos vírus é muito com- invertidas (palindromes). Essa característica per-
pacto e codifica apenas as proteínas essenciais mite que as extremidades do genoma se dobrem
para assegurar a sua replicação e transmissão. sobre si mesmas, pareando com a sua região
Resumidamente, essas funções compreendem: a) complementar e formando estruturas semelhan-
assegurar a replicação do genoma (enzimas poli- tes a grampos de cabelo (hairpins). Os genomas
merases de RNA e DNA e proteínas acessórias); dos adenovírus e herpesvírus são moléculas de
b) subverter funções celulares em seu benefício DNA de cadeia dupla linear. Nos herpesvírus, o
(protease leader no vírus da febre aftosa [foot and genoma é linear apenas nos vírions, pois assume
mouth disease virus, FMDV]) e c) empacotar o ge- a topologia circular (devido ao pareamento com-
noma (proteínas do capsídeo e envelope). Essas plementar nas extremidades) logo após a entrada
funções são codificadas pelo genoma de, virtual- no núcleo da célula. O genoma dos hepadnavírus
mente, todos os vírus. Alguns vírus mais comple- é uma molécula de DNA de cadeia parcialmente
xos codificam funções adicionais que, de alguma dupla (aproximadamente 3/4), o restante pos-
forma, favorecem a sua multiplicação e dissemi- sui cadeia simples. As extremidades da cadeia
nação. completa fazem um pareamento de bases entre
O tipo e estrutura do genoma de muitos si, conferindo à molécula a topologia circular
vírus diferem do padrão clássico observado nos (a cadeia de DNA não é contínua). Os poxvírus
ácidos nucléicos de eucariotas e procariotas. Nes- possuem uma molécula de DNA de cadeia dupla
ses organismos, o genoma é constituído por mo- linear; porém as duas cadeias são contínuas, ou
léculas de DNA de cadeia dupla (ds, double-stran- seja, não há extremidades livres. Uma ilustração
ded); enquanto os RNAs possuem fita simples (ss, simplificada da morfologia das partículas e da
single-stranded). Os genomas dos vírus apresen- topologia do genoma dos vírus DNA está apre-
tam variações de tipo e estrutura, que incluem sentada na Figura 1.3.
24 Capítulo 1

possível porque a seqüência de nucleotídeos, que


codifica os aminoácidos constituintes da proteí-
na, está alinhada no mesmo sentido da seqüência
genômica. Esses mRNA (e os respectivos vírus)
são denominados RNA de sentido ou polarida-
Polyomaviridae
Circoviridae Parvoviridae Papillomaviridae de positiva; ou simplesmente RNA+. A primeira
etapa intracelular do ciclo replicativo desses vírus
é a tradução parcial ou total do RNA genômico,
resultando na produção de proteínas virais, entre
as quais a enzima polimerase de RNA (replicase),
que irá replicar o genoma.
Outros vírus RNA de cadeia simples pos-
Adenoviridae Herpesviridae Poxviridae suem genomas que não podem ser diretamente
traduzidos, pois possuem o sentido contrário (an-
tissense) ao mRNA. Esses genomas (e os respec-
tivos vírus) são denominados de RNAs de sen-
tido ou polaridade negativa (RNA-). Esses vírus
trazem a enzima polimerase de RNA nos vírions
para permitir o início da replicação do genoma.
Hepadnaviridae Asfarviridae
A etapa inicial da replicação é a síntese de uma
cópia de RNA de polaridade positiva (mRNA) a
Fonte: adaptado de Gelderson, H. R. www.gsbs.utmb.edu partir do RNA genômico. Ou seja, nesses vírus, a
Figura 1.3. Ilustração simplificada da morfologia dos síntese protéica ocorre pela tradução do mRNA,
vírions e da topologia do genoma dos vírus DNA. que possui sentido antigenômico.
Os genomas RNA dos buniavírus e arena-
O ácido nucléico genômico de todos os vírus vírus não são diretamente traduzidos pelos ri-
RNA é composto por moléculas lineares. Em al- bossomos, sendo considerados RNA de sentido
gumas famílias (Orthomyxoviridae e Bunyaviridae), negativo. Esses RNAs servem de molde para a
essas moléculas circularizam pelo pareamento de transcrição e produção de cópias de RNA de sen-
seqüências complementares, localizadas nas ex- tido positivo (RNA+ ou mRNA) de extensão par-
tremidades, formando estruturas que lembram cial ou total do genoma. No entanto, em alguns
cabos de panela (panhandles). A maioria dos vírus desses vírus, um dos segmentos de RNA codifica
RNA possui o seu ácido nucléico genômico como proteínas tanto no sentido do genoma como na
uma molécula de cadeia simples. As exceções molécula de sentido oposto (antigenômico). Essa
são os reovírus e os birnavírus, cujos genomas estratégia de expressão gênica é denominada am-
são formados por segmentos de RNA de cadeia bissense e é uma característica única dessas famí-
dupla (10 a 12 segmentos nos reovírus, dois nos lias.
birnavírus). Os genomas dos vírus RNA de ca- Nos reovírus e birnavírus (genomas RNA
deia simples podem ser constituídos por uma segmentados de fita dupla), a cadeia negativa
única molécula (não-segmentados) ou por mais serve de molde para a transcrição e produção de
de uma molécula (genomas segmentados: sete a mRNA (RNA- → RNA+). A cadeia complemen-
oito moléculas de RNA nos ortomixovírus, três tar de RNA genômico (sentido positivo) não é
nos buniavírus e duas nos arenavírus). traduzida. Essa molécula serve apenas de molde
O genoma de alguns vírus RNA de cadeia e para parear com a cadeia negativa. A Figura 1.4
simples possui o mesmo sentido do RNA men- apresenta uma ilustração simplificada da morfo-
sageiro (mRNA) e pode ser diretamente traduzi- logia dos vírions e topologia do genoma dos ví-
do pelos ribossomos da célula hospedeira. Isso é rus RNA.
Estrutura e composição dos vírus 25

Picornaviridae Astroviridae Caliciviridae Flaviviridae Arteriviridae Togaviridae

Coronaviridae Retroviridae Reoviridae Birnaviridae Bunyaviridae

Orthomyxoviridae Arenaviridae Filoviridae Rhabdoviridae Paramyxoviridae

Fonte: adaptado de Gelderson, H. R. www.gsbs.utmb.edu

Figura 1.4. Ilustração simplificada da morfologia dos vírions e da topologia do genoma dos vírus RNA.

2.2 O capsídeo externamente pela membrana lipoprotéica que


constitui o envelope (Figura 1.2).
A função do capsídeo é proteger o material
O capsídeo (também chamado de cápsula) é genético e proporcionar a transferência do ví-
a camada protéica que recobre externamente o rus entre células e entre hospedeiros. Nos vírus
genoma. Nos vírus que não possuem envelope, sem envelope, a superfície externa do capsídeo é
o capsídeo representa o único envoltório do áci- responsável pelas interações iniciais dos vírions
do nucléico viral. Além dessa cobertura protéica, com a célula hospedeira no processo de penetra-
o genoma de alguns vírus encontra-se associado ção do vírus. Nesses vírus, as proteínas localiza-
com uma ou mais proteínas de origem viral (p. das na superfície do capsídeo também interagem
ex.: adenovírus e reovírus) ou da célula hospedei- com componentes do sistema imunológico e são
ra (poliomavírus e papilomavírus). As proteínas alvos importantes para anticorpos com atividade
que estão associadas ao genoma geralmente pos- neutralizante.
suem caráter básico, sendo formadas predomi- Os capsídeos são formados pela associação
nantemente por aminoácidos com carga positiva. de subunidades protéicas denominadas protôme-
Essa estrutura, geralmente compacta (genoma + ros, que se constituem nas suas unidades estrutu-
proteínas associadas), é denominada core ou nú- rais. A associação dessas proteínas pode formar
cleo. O conjunto formado pelo core + capsídeo é estruturas tridimensionais bem definidas, geral-
comumente denominado nucleocapsídeo. Nos ví- mente na forma de pequenas saliências visíveis
rus envelopados, o nucleocapsídeo é recoberto na superfície dos vírions. Essas estruturas consti-
26 Capítulo 1

tuem-se nas unidades morfológicas do capsídeo, O icosaedro se constitui em uma estrutura


também denominadas capsômeros. Cada capsô- quase esférica com uma cavidade interna. Os
mero pode ser formado por uma única proteína, capsídeos icosaédricos (também denominados
pela associação de moléculas de uma mesma pro- cúbicos) são formados pela associação de 20 uni-
teína ou por diferentes proteínas (Figura 1.5). dades triangulares planas idênticas, unidas entre
si em 12 vértices e arranjadas ao redor de uma
esfera imaginária (Figura 1.6). Eixos imaginários
traçados através do icosaedro dão origem a três
possíveis planos de simetria: bilateral (two-fold),
trilateral (three-fold) e pentalateral (five-fold). O
número de unidades que compõem cada unida-
de triangular é variável e dá origem a variações
estruturais entre os capsídeos de diferentes vírus.
O icosaedro representa a otimização estrutural
para a construção de um envoltório resistente,
compacto e com máxima capacidade de armaze-
namento, podendo ser composto por múltiplas
cópias de uma mesma proteína.

Assim, o capsídeo pode ser formado por có-


pias de uma mesma proteína (vírus do mosaico,
rabdovírus) ou por diferentes tipos de proteínas
(mais de dez tipos diferentes nos reovírus), e to-
das se encontram em múltiplas cópias e são codi-
ficadas pelo genoma viral. Os capsídeos compos-
tos por cópias múltiplas de uma mesma proteína
representam um exemplo de eficiência estrutural
de armazenamento e economia de espaço no ge-
noma, pois um único gene codifica a proteína ne-
cessária para formar todo o envoltório viral. Inde-
pendente do número de proteínas que compõem
o capsídeo, a associação entre essas proteínas
pode resultar em capsídeos com duas simetrias
principais: icosaédrica e helicoidal (Figura 1.5).
Estrutura e composição dos vírus 27

Os capsídeos helicoidais são formados por A maioria dos vírus animais possui capsíde-
múltiplas cópias de uma mesma proteína. Essas os icosaédricos ou helicoidais, mas alguns (poxví-
proteínas se associam entre si e com o ácido nu- rus, iridovírus e bacteriófagos) possuem capsíde-
cléico, revestindo externamente o genoma. Essa os com arquitetura mais complexa, denominados
associação resulta em uma estrutura espiralada
genericamente capsídeos complexos.
alongada, flexível ou relativamente rígida (Figu-
Com base na arquitetura, simetria e comple-
ra 1.7). As dimensões dos nucleocapsídeos heli-
coidais variam muito, dependendo da extensão xidade de arquitetura, os vírions de diferentes
do genoma, podendo atingir até 1.800 nm nos famílias podem ser agrupados em cinco grupos
filovírus. estruturais (Figura 1.8):

A B 1. Capsídeo icosaédrico

1A 1B

2. Capsídeo helicoidal

2A 2B
Figura 1.7. Ilustração esquemática de nucleocapsídeos
helicoidais. A. Nucleocapsídeo helicoidal com
morfologia definida; B. Nucleocapsídeo helicoidal
flexível.

Os capsídeos helicoidais de alguns vírus de


plantas apresentam-se como cilindros flexíveis
ou rígidos, no interior do qual está localizado o
3
genoma. São todos vírus sem envelope. Os vírus
animais que possuem nucleocapsídeos helicoi-
dais possuem genoma RNA de sentido negativo
e são todos envelopados. O nucleocapsídeo heli-
coidal desses vírus é formado pela associação de
cópias múltiplas da proteína do capsídeo com o
genoma, que adota uma forma espiralada. Nos
rabdovírus, o nucleocapsídeo adota uma forma
bem definida, semelhante a um projétil de arma Fonte: adaptada de Carter et al. (2005).

de fogo, no interior do qual se aloja o genoma


Figura 1.8. Os cinco principais tipos estruturais dos
espiralado (Figura 1.7A). Na maioria dos vírus,
vírus. 1. Vírions com capsídeos icosaédricos: 1A. Sem
o nucleocapsídeo helicoidal é flexível e enovela- envelope; 1B. Com envelope. 2. Vírions com capsídeos
se sobre si mesmo e sobre o genoma sem adotar helicoidais: 2A. Sem envelope; 2B. Com envelope. 3.
uma forma definida (Figura 1.7 B). Vírion com simetria complexa.
28 Capítulo 1

– sem envelope, capsídeo icosaédrico: ex: Os vírions adquirem a membrana lipídica


adenovírus, picornavírus; que compõe o envelope pela inserção/protusão
– sem envelope, capsídeo helicoidal: ex: ví- do nucleocapsídeo através de membranas celu-
rus do mosaico do tabaco; lares, mecanismo denominado brotamento. Os
– com envelope, capsídeo isosaédrico: ex: to- lipídios que constituem o envelope são deriva-
gavírus, herpesvírus; dos das membranas da célula hospedeira, e as
– com envelope, capsídeo helicoidal: ex: pa- proteínas são codificadas pelo genoma viral. A
ramixovírus, rabdovírus; estrutura lipídica dupla dos envelopes é bem se-
– complexos: ex: bacteriófagos, poxvírus. melhante entre os diferentes vírus. No entanto, a
espessura e composição dessa camada variam de
2.3 O envelope acordo com a membrana celular que os originou.
O envelope, adquirido na membrana plasmática,
Os vírions de várias famílias possuem os nu- contém fosfolipídios e colesterol em determinada
cleocapsídeos recobertos externamente por uma proporção, enquanto o envelope originado das
membrana lipoprotéica denominada envelope. membranas celulares internas é mais delgado e
O envelope é formado por uma camada lipídica contém pouco ou nenhum colesterol. Os envelo-
dupla, derivada de membranas celulares. Nessas pes virais praticamente não contêm proteínas ce-
membranas estão inseridas um número variável lulares. As proteínas celulares da membrana são
de proteínas codificadas pelo genoma viral. Na excluídas da região do brotamento por interações
maioria dos vírus, o envelope está justaposto entre as proteínas virais que se inserem na cama-
externamente ao capsídeo. Nos herpesvírus, en- da lipídica.
tretanto, existe um espaço de espessura variável Os envelopes dos vírus podem conter um ou
entre o capsídeo e o envelope, que é preenchido mais tipos de proteínas codificadas pelo genoma
por uma substância protéica amorfa, denomina- viral (os herpesvírus possuem entre 10 e 12; os
da tegumento. A quantidade e a forma adotada poxvírus possuem um número ainda maior). A
pelo tegumento são variáveis e, conseqüente- maioria das proteínas do envelope contém oligos-
mente, determinam a variação da morfologia e sacarídeos (açúcares) associados, constituindo-se,
dimensões da partícula dos herpesvírus. Como o portanto, em glicoproteínas. Essas glicoproteínas
envelope é derivado de membranas celulares, e são produzidas e modificadas no retículo endo-
estas são fluidas e flexíveis, a superfície externa plasmático rugoso (RER) e no aparelho de Golgi,
e a morfologia dos vírus envelopados são mais ficando inseridas na própria membrana do RER
flexíveis e menos definidas do que nos vírus sem ou sendo enviadas para a membrana nuclear do
envelope. A estrutura de um vírion com envelo- Golgi ou para a membrana plasmática, locais do
pe está ilustrada na Figura 1.9. brotamento.
As glicoproteínas do envelope viral pos-
suem dimensões e estruturas variáveis e a maio-
ria é formada por proteínas integrais de membrana
(Figura 1.10A). Essas glicoproteínas podem estar
nucleocapsídeo
presentes na forma de monômeros, homo ou he-
genoma terodímeros, trímeros e até tetrâmeros. Em geral,
membrana as glicoproteínas do envelope apresentam três
lipídica
envelope regiões principais em comum: a) uma região ci-
glicoproteínas
toplasmática ou interna (cauda); b) uma região
transmembrana (tm) e c) uma região externa. A
Adaptado de Reschke, M.; www.biographix.de
cauda é geralmente pequena e interage com a su-
perfície externa do nucleocapsídeo no processo
Figura 1.9. Ilustração esquemática da estrutura de um de morfogênese e brotamento. A região tm está
vírion com envelope. As aberturas no envelope e no
capsídeo são meramente ilustrativas, com o fim de inserida na camada lipídica e serve de sustenta-
permitir a visualização das estruturas internas. ção e fixação da proteína. A extensão dessa re-
Estrutura e composição dos vírus 29

gião varia de acordo com a espessura e origem d) transmissão do vírus entre células. Nas etapas
da camada lipídica: entre 18 (vírus da febre ama- finais do ciclo replicativo, algumas glicoproteínas
rela, que brota no retículo endoplasmático) e 26 do envelope auxiliam no egresso das partículas
aminoácidos (vírus da influenza, que adquire o recém-formadas, permitindo a sua liberação a
envelope na membrana plasmática). A região tm partir da membrana celular (neuraminidase nos
é composta principalmente por aminoácidos hi- ortomixovírus). As glicoproteínas do envelope
drofóbicos. Algumas glicoproteínas do envelope também desempenham um importante papel na
possuem várias regiões tm e, assim, atravessam interação do vírus com o sistema imunológico e
a membrana duas ou três vezes. Outras não pos- se constituem em alvos importantes para anticor-
suem região tm e, portanto, não se encontram pos neutralizantes.
inseridas na membrana lipídica. Essas glicopro- Como as glicoproteínas do envelope me-
teínas encontram-se associadas ao envelope por diam as interações iniciais dos vírions com as
interações covalentes ou não-covalentes com ou- células, a sua integridade e conformação natu-
tras glicoproteínas integrais de membrana e, por ral são essenciais para a infectividade do vírus.
isso, são ditas proteínas periféricas de membrana Algumas substâncias químicas (formalina e de-
(Figura 1.10B). Exemplos desse tipo de proteína tergentes) ou agentes físicos (calor e radiações)
são as glicoproteínas E0 dos pestivírus e a SU dos alteram a conformação dessas proteínas e, con-
retrovírus. A região externa é geralmente maior; seqüentemente, reduzem ou eliminam a infecti-
é hidrofílica e contém um número variável de oli- vidade do vírus. Solventes lipídicos, como éter e
gossacarídeos associados. As glicoproteínas do clorofórmio, também afetam negativamente a in-
envelope de alguns vírus formam projeções na fectividade de vírus envelopados, pois destroem
superfície dos vírions, denominadas peplômeros, a integridade da camada lipídica que compõe o
que podem ser visualizadas sob ME. envelope.
Os vírions adquirem o envelope por meio de
um mecanismo denominado genericamente de
brotamento. Nesse processo, o nucleocapsídeo ini-
A B
cialmente interage com as caudas das glicopro-
teínas previamente inseridas na membrana. Essa
E interação inicial é seguida da protusão/inserção
do nucleocapsídeo através da membrana, resul-
TM tando na formação de vírions com uma camada
lipoprotéica que envolve externamente o nucle-
M ocapsídeo (Figura 1.11). O local do brotamento
varia entre os diferentes vírus e pode ocorrer na
membrana nuclear, do RER, do aparelho de Gol-
I
gi ou na membrana plasmática.

2.4 A matriz
Figura 1.10. Representação simplificada da estrutura das
glicoproteínas do envelope viral. A. Proteína integral de Alguns vírus envelopados possuem prote-
membrana com as regiões interna (I), transmembrana
(TM) e externa (E); M. membrana lipídica; B. Duas
ínas que recobrem externamente o nucleocapsí-
proteínas associadas: uma integral de membrana (cinza) deo, mediando a sua associação com a superfície
associada com uma proteína periférica (preto). interna do envelope. Essas proteínas, denomi-
nadas de matriz, são geralmente glicosiladas e
As glicoproteínas, principalmente por meio abundantes, podendo corresponder a até 30% da
de sua região extracelular, desempenham várias massa total dos vírions (como nos retrovírus).
funções na biologia do vírus, incluindo: a) liga- As proteínas da matriz são encontradas em vá-
ção aos receptores celulares; b) fusão do envelope rios vírus envelopados, principalmente nos vírus
com a membrana celular; c) penetração celular e RNA de polaridade negativa (exemplos: parami-
30 Capítulo 1

Meio extracelular

3 Membrana
plasmática

2
1

Citoplasma

Figura 1.11. Etapas do brotamento e aquisição do envelope por vírus envelopados. 1. Interação do nucleocapsídeo com
as caudas citoplasmáticas das glicoproteínas do envelope; 2-3. Inserção/protusão do nucleocapsídeo através da
membrana; 4. Egresso da partícula completa.

xovírus e ortomixovírus). As proteínas da matriz


desempenham importante função estrutural e na
morfogênese das partículas víricas, pois intera- PA+PB1+PB2

gem simultaneamente com a superfície externa


do nucleocapsídeo e com as caudas das glicopro- M
teínas, funcionando como adaptadores entre o
nucleocapsídeo e o envelope. NP
HA
3 Proteínas virais
NA
O genoma dos vírus codifica duas classes
principais de proteínas: estruturais e não-estrutu-
rais. As proteínas estruturais são aquelas que par- M2

ticipam da construção e arquitetura da partícula


vírica (Figura 1.12), ou seja, estão presentes como
componentes estruturais dos vírions. Enqua- Figura 1.12. Ilustração esquemática da estrutura de um
ortomixovírus (vírus da influenza), indicando a
dram-se nessa classe as proteínas do nucleocap- localização das proteínas na partícula vírica.
sídeo e do envelope. As proteínas do tegumento Glicoproteínas do envelope: HA: hemaglutinina; NA:
(herpesvírus) e as proteínas da matriz também se neuraminidase; M2: canal de íons; M: proteína da matriz.
Componentes do complexo ribonucleoproteína: RNA:
constituem em proteínas estruturais. recoberto pela NP; NP: nucleoproteína; PA: polimerase
As proteínas não-estruturais são aquelas co- ácida; PB1: polimerase básica 1; PB2: polimerase básica 2.
dificadas pelo genoma viral e produzidas no
interior da célula hospedeira durante o ciclo re- São exemplos de proteínas não-estruturais as en-
plicativo, mas que não participam da estrutura zimas polimerases de DNA (DNA polimerase) e
das partículas víricas. São geralmente proteínas RNA (RNA polimerase), enzimas envolvidas no
com atividades enzimáticas e/ou regulatórias metabolismo de nucleotídeos (timidina quinase,
que participam das diversas etapas do ciclo re- ribonucleotídeo redutase etc.), fatores de trans-
plicativo do vírus e de sua interação com as or- crição e regulação da expressão gênica (ICP0
ganelas e macromoléculas da célula hospedeira. nos herpesvírus, proteína E1A dos adenovírus,
Estrutura e composição dos vírus 31

antígeno T dos poliomavírus), entre outras. O 4.2 Outras proteínas


número de proteínas não-estruturais (e também
estruturais) codificadas pelo genoma varia com Proteínas sem atividade enzimática, mas
a complexidade dos vírus. Os vírus mais sim- que possuem participação no ciclo replicativo,
ples codificam uma ou poucas proteínas não- também estão presentes nos vírions de algumas
estruturais, enquanto os poxvírus e herpesvírus famílias. Os herpesvírus possuem, como parte do
codificam dezenas de proteínas com atividades tegumento, a VP-16 (ou α-TIF), que é um transa-
enzimáticas e regulatórias, que desempenham tivador dos genes iniciais, e a VHS, uma proteína
funções diversas no seu ciclo replicativo. Embora que degrada os mRNA da célula hospedeira.
estejam presentes nas partículas víricas de várias
famílias, proteínas com atividade enzimática são 4.3 Lipídios
consideradas proteínas não-estruturais.
Os lipídios presentes nos envelopes virais
4 Outros componentes dos vírions são tipicamente os mesmos das membranas celu-
lares, onde os vírions adquirem o seu envoltório
4.1 Enzimas externo. Os envelopes originados da membrana
plasmática contêm principalmente fosfolipídios
Proteínas com atividade enzimática estão (50-70%) e colesterol, enquanto os envelopes ad-
presentes nas partículas víricas de membros de quiridos em membranas celulares internas (nu-
várias famílias de vírus DNA e RNA. Essas en- clear, Golgi, RER) possuem pouco ou nenhum
zimas são necessárias para a síntese do ácido nu- colesterol. Os lipídios constituem entre 20 e 35%
cléico viral e/ou para a biossíntese de nucleotí- da massa dos vírus envelopados.
deos e, geralmente, catalisam reações únicas dos
vírus, que não encontram fatores com funções 4.4 Carboidratos
similares nas células hospedeiras. Os vírus RNA
de sentido negativo, por exemplo, trazem a enzi- Os carboidratos podem estar presentes em
ma RNA polimerase (polimerase de RNA depen- vírions como componentes de glicoproteínas, gli-
dente de RNA) nos vírions. Os retrovírus trazem, colipídios e mucopolissacarídeos. Esses carboi-
nos vírions, a enzima transcriptase reversa (poli- dratos estão presentes principalmente no envelo-
merase de DNA dependente de RNA; também pe, mas os vírus complexos (poxvírus) também
polimerase de DNA dependente de DNA). Os possuem carboidratos associados com proteínas
hepadnavírus também trazem a enzima polime- internas e/ou do capsídeo.
rase (polimerase de DNA dependente de DNA e
também de RNA) nos vírions. Os poxvírus tra-
zem, em seus vírions, enzimas RNA polimerases
4.5 Ácidos nucléicos celulares
(com atividade equivalente às do hospedeiro),
além de enzimas que modificam o mRNA. Essas Alguns vírus podem ocasionalmente encap-
enzimas são necessárias para a realização dessas sidar em seus vírions, fragmentos de DNA cro-
funções no citoplasma, onde ocorre a replicação mossômico da célula hospedeira (poliomavírus).
viral. Endonucleases (ortomixovírus), proteases Os vírions dos retrovírus contêm moléculas de
(vários vírus), quinases (hepadnavírus), integrase RNA transportador (tRNA) adquiridos da célu-
e ribonuclease (retrovírus) são exemplos de ativi- la infectada. Esse tRNA desempenha um papel
dades enzimáticas presentes em partículas virais. importante no início do ciclo replicativo do vírus,
Os retrovírus complexos (exemplo: vírus da imu- pois serve de iniciador (primer) para a síntese da
nodeficiência humana – HIV) possuem proteínas cadeia de DNA a partir do RNA genômico viral.
adicionais nos vírions, VPR e VIF, que são impor- Os vírions da família Arenaviridae contêm ribos-
tantes para a replicação eficiente em alguns tipos somos da célula hospedeira, o que lhes confere
de células. uma aparência granular quando examinados sob
32 Capítulo 1

ME (daí a denominação da família, arena = areia). – os picornavírus podem ocasionalmente


Os vírions dos ortomixovírus podem conter RNA apresentar capsídeos vazios em razão da degra-
ribossômico derivado das células hospedeiras. dação do genoma;
– células infectadas com os hepadnavírus
4.6 Proteínas celulares (vírus da hepatite B) produzem vírions comple-
tos (Dane particles) e também duas formas de
No núcleo da célula hospedeira, o genoma partículas incompletas (partículas esféricas de 20
DNA recém-replicado dos poliomavírus e papi- nm e partículas filamentosas) (Figura 1.13). As
lomavírus associa-se com proteínas celulares de- partículas incompletas são formadas por molécu-
nominadas histonas (H), formando estruturas se- las da glicoproteína de superfície (HbsAg), asso-
melhantes à cromatina celular. Essas estruturas, ciadas com segmentos de membranas celulares.
chamadas de minicromossomas, que contêm o Para cada vírion completo, são produzidas entre
DNA viral, conjugado com as histonas H2A, H2B, 10.000 e 1.000.000 partículas esféricas. A abun-
H3 e H4, são encapsidadas durante a morfogêne- dância dessas partículas no sangue de pessoas
se das partículas virais. Cabe ressaltar que cada infectadas cronicamente tem sido utilizada como
vírion dos papilomavírus e poliomavírus contém ferramenta para o diagnóstico e, durante muitos
uma cópia do genoma, ou seja, um minicromos- anos, foi utilizada para a produção de vacinas.
soma. Os vírions dessas famílias, portanto, con-
tém certa quantidade de proteínas celulares.
A
5 Partículas víricas anômalas

Além de partículas víricas completas e infec-


tivas, a replicação de alguns vírus pode resultar
na produção de uma quantidade variável de par-
tículas víricas anômalas, geralmente não-infec-
ciosas. A freqüência e abundância dessas partícu-
las em relação aos vírions completos e infecciosos
variam amplamente de acordo com o vírus. São
muitas as causas da ausência de infectividade
B
nessas partículas, incluindo:
– ausência do genoma viral. Células infecta-
das por poliomavírus podem produzir capsídeos
vazios, sem o DNA genômico; outros capsídeos
podem conter fragmentos de DNA celular. Essas
partículas são denominadas pseudovírions;
– células infectadas por vírus de genoma
RNA segmentado (ortomixovírus, por exemplo)
podem produzir vírions com o conjunto incom-
pleto dos segmentos genômicos; A. Fonte: adaptada de Flint et al. (2000).
– vários vírus podem encapsidar genomas B. Fonte: Dr. Linda Stannard, www.uct.ac.za.

com deleções em um ou mais genes. Os vírions Figura 1.13. Partículas produzidas por células infectadas
que contêm esses genomas defectivos são deno- pelo vírus da hepatite B (hepadnavírus). A. Ilustração
minados partículas defectivas. Esses vírions não esquemática e B. fotografia de microscopia eletrônica. As
partículas esféricas maiores com parede dupla são as
replicam autonomamente e somente são capazes
partículas infecciosas (dane particles); as esféricas
de replicar quando ocorre uma co-infecção com menores e as filamentosas são partículas defectivas,
um vírus homólogo infeccioso (denominado de compostas por proteínas de superfície e porções de
vírus helper); membranas celulares.
Estrutura e composição dos vírus 33

6 Propriedades físico-químicas vírus e muitos são utilizados como desinfetantes


de materiais, equipamentos e ambientes. Em ge-
ral, os vírus sem envelope são muito mais resis-
Vários agentes físicos e químicos podem
tentes a agentes químicos e condições ambientais
afetar a integridade funcional e infectividade dos
do que os vírus com envelope.
vírions, incluindo a temperatura e o pH. A ação
deletéria da temperatura sobre a viabilidade dos
7 Bibliografia consultada
vírus possui importância durante a manipulação
e remessa de material clínico para o diagnóstico,
como também para a preservação de estoques vi- BAKER, T.S.; JOHNSON, J.E. Principles of virus structure
determination. In: CHIU, W.; BURNETT, R.M.; GARCEA, R.L.
rais na rotina laboratorial. Além disso, pode ser
(ed). Structural biology of viruses. New York, NY: Oxford
um fator limitante para a sua disseminação entre University Press, 1997. p.38-79.
hospedeiros. Temperaturas de 55 a 60°C desna-
turam as proteínas de superfície, sobretudo as do CANN, A.J. Principles of molecular virology. 2. ed. San Diego,
CA: Academic Press, 1997. 310p.
envelope, em poucos minutos, tornando os ví-
rions incapazes de interagir produtivamente com CASPAR, D.L.D.; KLUG, A. Physical principles in the
receptores celulares e iniciar a infecção. Tempe- construction of regular viruses. Cold spring harbor symposium
on quantitative biology, v.27, p.1-24, 1962.
raturas ambientais altas também afetam negati-
vamente a infectividade dos vírus. CHAPMAN, M.S.; GIRANDA, V.L.; ROSSMANN, M.G. The
Os vírus envelopados são geralmente muito structures of human rhinovirus and mengo virus: relevance to
function and drug design. Seminars in virology, v.1, p.413-427,
mais sensíveis à ação deletéria de altas tempera-
1990.
turas sobre a infectividade. Alguns vírus, como
os paramixovírus, são particularmente suscep- DULBECCO, R.; GINSBERG, H.S. Microbiologia de Davis:
tíveis a temperaturas ambientais e também per- virologia. 2. ed. São Paulo: Harbra, 1980. v.4, 1763p.

dem a infectividade quando submetidos a con- FLINT, S.J. et al. Principles of virology: molecular biology,
gelamento e descongelamento. A conservação de pathogenesis and control. Washington, DC: ASM Press, 2000.
vírus em suspensão líquida por longos períodos 804p.

deve ser realizada a temperaturas de -70°C ou em GARCEA, R.L.; LIDDINGTON, R.C. Structural biology of
nitrogênio líquido (-196°C). Outra forma segura e polyomaviruses. In: CHIU, W.; BURNETT, R.M.; GARCEA, R.L.
eficiente de armazenar vírus por longos períodos (eds). Structural biology of viruses. New York, NY: Oxford
sem perder infectividade é por meio de liofiliza- University Press, 1997. p.157-187.

ção (dessecação a temperaturas de congelamen- HARRISON, S.C. Principles of virus structure. In: KNIPE, D.M.;
to) e conservação do material liofilizado (pó) a HOWLEY, P.M. (Eds.). Fields virology. 4. ed. Philadelphia, PA:
4°C ou -20°C. Lippincott Williams & Wilkins, 2001. Cap.3, p.53-85.

Para vírus em suspensão, temperaturas de 4 HUNTER, E. Virus assembly. In: KNIPE, D.M.; HOWLEY,
a 6°C são compatíveis com a preservação da in- P.M. (Eds). Fields virology. 4.ed. Philadelphia, PA: Lippincott
fectividade apenas por horas ou poucos dias; tem- Williams & Wilkins, 2001. Cap.8, p.171-197.

peraturas de 4° ou -20°C não são indicadas para MURPHY, F.A. et al. Veterinary virology. 3. ed. San Diego, CA:
conservação por longos períodos. A resistência Academic Press, 1999. 629p.
a diferentes condições de pH varia amplamente;
MURRAY, P.R. et al. Medical microbiology. 2. ed. St. Louis:
alguns vírus sem envelope (rotavírus, alguns pi- Mosby Year Book, 1994, p.573.
cornavírus) mantêm a infectividade mesmo em
condições de pH ácido e são chamados de ácido- QUINN, P.J. et al. Clinical microbiology. London: Wolfe, 1994.
648p.
resistentes; outros, sobretudo os envelopados, são
inativados já em pH um pouco abaixo do neutro RIXON, F.J. Structure and assembly of herpesviruses. Seminars
(5 a 6) e são chamados de ácido-lábeis. Agentes in virology, v.4, p.135-144, 1993.

químicos que possuem ação desnaturante sobre ROSSMANN, M.G. et al. Structure of a human cold virus and
proteínas e/ou solventes e detergentes lipídicos structural relationship to other picornaviruses. Nature, v.317,
possuem ação deletéria sobre a infectividade dos p.145-153, 1985.
34 Capítulo 1

RYAN, K.J. Sherris medical microbiology: an introduction to WIMMER, E. Cellular receptors for animal viruses. New York,
infectious diseases. 3. ed. Norwalk, CT: Appleton & Lange, 1994. NY: Cold Spring Harbor Laboratory Press, 1994. 526p.
890 p.
WISE, D.J.; CARTER, G.R.; FLORES, E.F. General characteristics,
STEWART, P.L.; BURNETT, R.M. The structure of adenovirus. structure and taxonomy of viruses. In: CARTER, G.R., WISE, D.
Seminars in virology, v.1, p.477-487, 1990. J.; FLORES; E.F. (Eds.). A concise review of veterinary virology.
Ithaca, NY: International Veterinary Information Service.
WHITE, D.O.; FENNER, F. Medical virology. 4. ed. San Diego, Disponível em: <http://www.ivis.org>. Acesso em: 20 set.
CA: Academic Press, 1994. 603 p. 2006.

WILSON, J.A.T.; SKEHEL, T.S.; WILEY, D.C. Structure of the


hemagglutinin membrane glycoprotein of influenza virus at 3A
resolution. Nature, v.289, p.366-373, 1981.

Anexos

Tabela 1.1. Características morfológico-estruturais dos vírions e do genoma dos vírus DNA

Dimensões e morfologia Características do


Família Capsídeo Envelope
do vírions genoma

15-22 nm, DNA de cadeia simples,


Circoviridae Icosaédrico Não
FITA SIMPLES

esférico-icosaédricos circular, 1.7-2,2kb

DNA de cadeia simples, linear,


seqüências complementares
Parvoviridae Icosaédrico Não 25nm, icosaédricos nas extremidades, flexionadas
sobre si (hairpins), ± 5 kb

DNA de cadeia dupla,


Polyomaviridae Icosaédrico Não 45nm, esférico-icosaédricos circular, superenrolada,
± 5 kb

DNA de cadeia dupla,


Papillomaviridae Icosaédrico Não 55nm, esférico-icosaédricos circular, superenrolada,
± 8 kb

DNA de cadeia dupla, linear,


Adenoviridae Icosaédrico Não 80-110nm, icosaédricos com uma proteína nas
extremidades, 30-44 kb
FITA DUPLA

120-200 nm, pleomórficos DNA de cadeia dupla,


Herpesviridae Icosaédrico Sim ou aproximadamente linear, 120-235 kb
esféricos

DNA de cadeia dupla,


Complexo Sim 170- 200 x 300-450nm,
Poxviridae linear e contínua,
ovóides/retangulares
130-375 kb

175-215nm, quase esféricos DNA de cadeia dupla,


Iridoviridae/ Complexo ou com aspecto de prismas
Sim linear e contínua,
Asfaviridae hexagonais 170-190kb

DNA de cadeia parcialmente


40-48nm, esféricos,
dupla (3/4), com as
Hepadnaviridae Icosaédrico Sim ocasionalmente pleomórficos,
extremidades pareando entre
partículas subvirais em excesso
si (pseudo-circular), 3.2 kb
Estrutura e composição dos vírus 35

Tabela 1.2. Características morfológico-estruturais dos vírions e do genoma dos vírus RNA

Dimensões e morfologia Características do


Família Capsídeo Envelope
do vírions genoma

duas cópias idênticas de RNA,


Retroviridae Icosaédrico Sim 80-100nm, esféricos
cadeia simples (+), linear, 7-11kb

RNA de cadeia simples (+),


28-30nm,
Picornaviridae Icosaédrico Não linear, 5'IRES, 3'polyA, 7.2 -
esférico-icosaédricos
8.5kb
RNA de cadeia simples (+),
30-38nm, linear, proteína na ext. 5’,
Caliciviridae Icosaédrico Não
esférico-icosaédricos 3'polyA, 7.4 -7.7kb
POLARIDADE POSITIVA

RNA de cadeia simples (+),


Astroviridae Icosaédrico Não 28-30nm, esféricos
linear, 3'polyA, 7.2-7.9kb

80-220nm, pleomórficos ou RNA de cadeia simples (+), linear,


Coronaviridae Helicoidal Sim 5'cap, 3'polyA, 20-32kb
aproximadamente esféricos

50-70nm, aproximadamente RNA de cadeia simples (+),


Arteriviridae Icosaédrico Sim linear ,5'cap, 3' polyA, 15kb
esféricos

RNA de cadeia simples (+),


Togaviridae Icosaédrico Sim 70nm, esféricos linear, 5'cap, 3'polyA, 9.7-
11.8kb

RNA de cadeia simples (+),


Flaviviridae Icosaédrico Sim 45-60nm, esférico linear, 5'cap/IRES,
3'polyA/poliC, 9.5-12.5kb

150-300nm, pleomórficos,
RNA de cadeia simples (-),
FITA SIMPLES

Paramyxoviridae Helicoidal Sim aproximadamente esféricos,


linear, 15-16kb
filamentosos

70-85 x 130-380 nm, forma RNA de cadeia simples (-),


Rhabdoviridae Helicoidal Sim de projétil linear, 13-16kb

80 x 780-970nm (até 14.000),


pleomórficos (filamentosos, RNA de cadeia simples (-),
Filoviridae Helicoidal Sim linear, 19.1kb
POLARIDADE NEGATIVA

forma de “U” ou “6”

RNA de cadeia simples (-),


? Bornaviridae ? Sim 90nm, esféricos (?)
linear, 8.9kb

80-120nm, ovóides, 6 a 8 segmentos de RNA de cadeia


filamentosos, simples, (-), lineares, extremidades
Orthomyxoviridae Helicoidal Sim aproximadamente complementares permitem
esféricos, pleomórficos circularização, 10-13.6kb

3 segmentos de RNA de cadeia


80-120nm, pleomórficos simples (-), lineares, extremidades
Bunyaviridae Helicoidal Sim complementares permitem
ou esféricos.
circularização, 11-21kb

50 x 300nm , esféricos ou 2 segmentos de RNA de cadeia


Arenaviridae Helicoidal Sim pleomórficos simples (-), lineares, 10-14kb

2 segmentos de RNA de cadeia


Birnaviridae Icosaédrica Não 60nm, icosaédricos
FITA DUPLA

dupla, lineares, 5.7-5.9kb

60-80nm, aproximadamente 10, 11 ou 12 segmentos de RNA de


Reoviridae Icosaédrica Não cadeia dupla, lineares, 16-27kb
esféricos
CLASSIFICAÇÃO E NOMENCLATURA DOS VÍRUS
Luciane Teresinha Lovato 2
1 Introdução 39

2 Taxonomia dos vírus 39

3 Nomenclatura dos vírus 41

4 Critérios utilizados para a classificação dos vírus 41

5 Famílias de vírus 42

5.1 Vírus com genoma DNA 42


5.1.1 Poxviridae 42
5.1.2 Asfarviridae 43
5.1.3 Herpesviridae 44
5.1.4 Adenoviridae 44
5.1.5 Papillomaviridae 45
5.1.6 Polyomaviridae 46
5.1.7 Parvoviridae 46
5.1.8 Circoviridae 47
5.1.9 Hepadnaviridae 47

5.2 Vírus com genoma RNA de sentido positivo 48


5.2.1 Picornaviridae 48
5.2.2 Caliciviridae 49
5.2.3 Astroviridae 49
5.2.4 Togaviridae 50
5.2.5 Flaviviridae 50
5.2.6 Coronaviridae 51
5.2.7 Arteriviridae 51

5.3 Vírus com genoma RNA de sentido negativo não-segmentado 52


5.3.1 Paramyxoviridae 52
5.3.2 Rhabdoviridae 52
5.3.3 Filoviridae 53
5.3.4 Bornaviridae 54
5.4 Vírus com genoma RNA de sentido negativo segmentado 54
5.4.1 Orthomyxoviridae 54
5.4.2 Bunyaviridae 54
5.4.3 Arenaviridae 55

5.5 Vírus com genoma RNA de fita dupla 56


5.5.1 Reoviridae 56
5.5.2 Birnaviridae 56

5.6 Vírus com genoma RNA que realizam transcrição reversa 57


5.6.1 Retroviridae 57

6 Bibliografia consultada 57
1 Introdução 2 Taxonomia dos vírus

De acordo com os vários critérios adotados,


Existe um número muito grande de vírus
os vírus são classificados hierarquicamente em
circulando nas diferentes espécies de seres vivos,
ordens, famílias, subfamílias, gêneros e espécies.
desde vírus que infectam bactérias até aqueles
O sufixo virales é utilizado para designar a ordem.
que infectam organismos superiores, como os
Para a denominação de família, utiliza-se o sufixo
mamíferos e plantas. Dentre estes, existem vírus
viridae; para subfamília, utiliza-se virinae; e para
altamente patogênicos e outros que não causam
gênero, o sufixo virus. Por exemplo, o vírus da
doença nos seus hospedeiros, passando desper-
cinomose canina está classificado na ordem Mo-
cebidos. Atualmente, são reconhecidas mais de
nonegavirales, família Paramyxoviridae, subfamília
1.500 espécies de vírus, que abrangem mais de
Paramyxovirinae, gênero Morbillivirus e, finalmen-
30.000 cepas, isoladas ou variantes.
te, espécie, como vírus da cinomose canina (cani-
A classificação e nomenclatura dos vírus não
ne distemper virus, CDV). As famílias são os agru-
seguem as regras determinadas para os demais
pamentos fundamentais dos vírus, agrupando
microorganismos. À medida que foram sendo
agentes que possuem características estruturais,
identificados, os vírus foram sendo agrupados de morfológicas, genéticas e biológicas em comum.
forma aleatória, de acordo com os aspectos con- Algumas famílias – a minoria – são agrupadas
siderados mais importantes pelos grupos que os em níveis hierárquicos superiores: as ordens. Da
identificavam. Nas décadas de 1950 e 1960, hou- mesma forma, nem todas as famílias são dividi-
ve um grande avanço na Virologia, resultando das em subfamílias; algumas delas apresentam
na identificação de um grande número de novos o gênero como nível hierárquico imediatamente
vírus. Com o intuito de determinar regras básicas inferior, ou seja, nem todos os vírus são classifi-
para classificar esses vírus, vários comitês foram cados em todos os níveis hierárquicos possíveis,
formados, o que acabou gerando uma grande possuindo complexidades de classificação dife-
confusão taxonômica. rentes entre si.
Durante o Congresso Internacional de Mi- Os vírus que apresentam algumas caracte-
crobiologia, realizado em Moscou, em 1966, foi rísticas biológicas, estruturais e moleculares em
criado o Comitê Internacional para Nomenclatura comum são agrupados em uma mesma família.
de Vírus (ICTV). Esse comitê teve a incumbência Por exemplo, todos os membros da família Her-
de desenvolver um sistema único de classificação pesviridae possuem vírions grandes, com enve-
e nomenclatura para todos os vírus. Até hoje, o lope contendo várias glicoproteínas, capsídeo
ICTV é o órgão que determina as regras a serem icosaédrico, uma camada protéica – denominada
seguidas para a classificação dos vírus até o nível tegumento – entre o capsídeo e o envelope. O
de espécie. Esse comitê se reúne periodicamente, genoma é composto por uma molécula de DNA
com o fim de revisar e atualizar os critérios de de fita dupla linear. Esses vírus são capazes de
classificação, de modo que as novas descobertas estabelecer infecções latentes em seus hospedei-
biológicas e moleculares possam ser incorporadas ros. Os vírus que apresentam essas características
aos critérios taxonômicos já existentes. Com isso, (e que por isso compõem a família Herpesviridae)
a classificação dos vírus nas diversas hierarquias podem ser subdivididos em subfamílias, de acor-
tornou-se dinâmica e pode ser alterada à medida do com algumas características que possuem em
que novas informações biológicas ou moleculares comum e que são diferentes dos outros vírus da
assim o justifiquem. A classificação apresentada família. Os membros da subfamília Alphaherpes-
neste texto está de acordo com a última revisão virinae possuem um amplo espectro de hospedei-
do ICTV, datada de 07 de julho de 2007. ros, apresentam um ciclo rápido e lítico em célu-
40 Capítulo 2

las de cultivo e estabelecem infecções latentes em por exemplo: o SV-299/04 é um BoHV-5 isolado
neurônios sensoriais e autonômicos. Essas carac- do cérebro de um bovino que desenvolveu me-
terísticas diferem dos membros das outras subfa- ningoencefalite no estado do Rio Grande do Sul.
mílias: Betaherpesvirinae e Gammaherpesvirinae. A denominação SV-299/04 foi dada pelo labora-
Os vírus de uma família ou de uma subfa- tório que realizou o isolamento do vírus e refere-
mília podem ser divididos em gêneros, de acordo se ao número do protocolo. Qualquer vírus que
com propriedades biológicas, e, principalmente, tenha sido isolado de material clínico e sobre o
moleculares, como a estrutura e organização ge- qual se conheça pouco, além de sua identidade,
nômica: a subfamília Alphaherpesvirinae possui constitui-se em um isolado ou amostra.
dois gêneros, o Simplexvirus e o Varicellovirus. O termo cepa é utilizado para designar amos-
Dentro de cada gênero se encontram as espécies, tras de vírus que já foram bem caracterizadas e
que são grupos de vírus muito semelhantes entre sobre as quais já se possui certo conhecimento.
si (a exemplo de espécies de animais), mas que A denominação cepa também pode ser utilizada
apresentam algumas diferenças que justificam a para se referir a isolados de um vírus que podem
sua classificação como vírus diferentes (e tam- apresentar pequenas variações sem deixar de
bém diferentes dos vírus do outro gênero). Por pertencer às mesmas categorias taxonômicas. Por
exemplo, no gênero Varicellovirus, encontram-se exemplo, o vírus da doença de Newcastle (NDV)
classificados os herpesvírus bovinos tipos 1 e 5 pode apresentar diferentes níveis de virulência,
(BoHV-1 e BoHV-5), o herpesvírus suíno (SuHV- dependendo da cepa do vírus que está causan-
1) ou vírus da doença de Aujeszky (PRV), entre do a doença. Existem três cepas desse vírus em
outros. ordem crescente de virulência: as lentogênicas,
A classificação dos vírus em espécies não é as mesogênicas e as velogênicas. Assim, aqueles
consensual entre os virologistas. A definição de isolados do vírus que apresentam alta virulência
espécie aceita pelo ICTV foi estabelecida em 1991 pertencem à cepa velogênica, os que apresentam
e diz o seguinte: “espécie de vírus é uma classe virulência moderada são mesogênicos, e os de
‘polythetic’1∗ de vírus que constitui uma linha- baixa virulência são os lentogênicos.
gem replicativa e ocupa um nicho ecológico par- Cepas de referência são cepas amplamente ca-
ticular”. Uma classe polythetic é definida em ter-
racterizadas e reconhecidas nacional ou interna-
mos de um amplo grupo de critérios sendo que
cionalmente, que são utilizadas como referência
nenhum dos critérios isoladamente é necessário
para determinado vírus em testes de diagnóstico,
ou suficiente. Dessa forma, cada membro da clas-
pesquisa e para a produção de vacinas. Por exem-
se deve possuir um número mínimo de caracte-
plo, a cepa Cooper do BoHV-1 serve de referência
rísticas, mas nenhum dos aspectos necessita ser
para comparações de isolados desse vírus e é am-
encontrado em todos os membros de uma classe.
plamente utilizada em diagnóstico e na produção
Assim, diferentes características podem ser usa-
de vacinas.
das em diferentes grupos de vírus.
A terminologia wild-type refere-se à cepa ori-
A classificação em subespécies, cepas, va-
ginal do vírus que circula na natureza. No caso
riantes e isolados não existe de forma oficial, em-
da existência de mutantes, o wild-type é a cepa
bora seja reconhecida a sua importância para o
que deu origem aos mutantes. Em português,
diagnóstico, para estudos biológicos e molecula-
utilizam-se os termos cepa de campo (ou vírus de
res e também para a produção de vacinas. A se-
campo), no caso dos vírus circulantes na popu-
guir são apresentadas algumas definições desses
lação; e cepa original ou parental no caso da pro-
termos.
dução e/ou comparação com mutantes. Variantes
O termo isolado (ou amostra) refere-se a um
ou mutantes são vírus que diferem do wild-type
vírus que foi obtido por isolamento de uma de-
em alguma característica fenotípica, como, por
terminada fonte de infecção (animal infectado),
exemplo, o vírus da vacina contra a doença de
1
A tradução para o termo “polythetic” não consta em di-
Aujeszky é um mutante de deleção que foi pro-
cionários oficiais; por esta razão o termo foi escrito na sua
forma original e a definição colocada logo em seguida no
duzido a partir da cepa Bartha do herpesvírus
texto. suíno tipo 1 (SuHV-1).
Classificação e nomenclatura dos vírus 41

3 Nomenclatura dos vírus de acordo com a sua denominação original e com


a nomenclatura oficial preconizada pelo ICTV.
As recomendações do ICTV são de que a sua
No uso formal, as palavras que designam
nomenclatura substitua as anteriores, embora
as famílias, subfamílias e gêneros devem iniciar
alguns deles continuem a ser denominados pela
com letra maiúscula e devem ser escritas em itá-
nomenclatura tradicional. Citam-se como exem-
lico ou sublinhadas. O nome da espécie do vírus
plos o SuHV-1, que também é conhecido como
não deve iniciar com letra maiúscula (a não ser
vírus da doença de Aujeszky (ADV) ou vírus da
que este nome corresponda a um nome próprio
pseudoraiva (PRV), e o BoHV-1, que é também
de região, cidade etc.) e deve ser escrito com fon-
conhecido como vírus da rinotraqueíte infecciosa
te normal, sem itálico. No uso formal, a hierar-
bovina (IBRV).
quia (táxon) deve preceder a unidade taxonômi-
Exemplos de nomenclatura de vírus:
ca. Exemplo: “a família Parvoviridae”; “o gênero
a) Formal: família: Picornaviridae; gênero:
Parvovirus”.
Aphtovirus; espécie: vírus da febre aftosa (foot and
No uso informal (ou vernacular) os termos
mouth disease vírus, FMDV);
referentes à família, subfamília, gênero e espécie
Vernacular: “Os aftovírus são sensíveis ao
devem ser escritos com letras minúsculas, sem
pH baixo [...]”.
itálico ou sublinhado. Neste caso, o sufixo formal
b) Formal: família: Herpesviridae, subfamília:
não é incluído e o nome do táxon segue o termo
Alphaherpesvirinae, gênero: Alphaherpesvirus, es-
usado para definir a unidade taxonômica. Escre-
pécie: herpesvírus suíno tipo 1 (vírus da doença
ve-se então: “a família dos poxvírus”, “o gênero
de Aujezsky);
parapoxvirus”. O uso informal em português
Vernacular: “O vírus da doença de Aujeszky
deve suprimir letras que não existam no alfabeto
é um alfaherpesvírus [...]”.
da língua portuguesa. Exemplo: para se referir de
c) Formal: ordem: Mononegavirales; família:
forma vernacular aos membros da subfamília Al-
Paramyxoviridae; subfamília: Pneumovirinae; gêne-
phaherpesvirinae, deve-se escrever: “os alfaherpes-
ro: Pneumovirus, espécie: vírus sincicial respirató-
virus”. Os membros da família Orthomyxoviridae
rio bovino (BRSV);
devem ser tratados como “os ortomixovírus”.
Vernacular: “Os pneumovírus causam do-
No uso informal, o nome do táxon é, muitas
ença respiratória [...]”.
vezes, suprimido, o que pode resultar em con-
d) Formal: família: Flaviviridae; gênero: Fla-
fusões. Isto se deve à raiz comum das palavras
vivirus; espécie: vírus da febre amarela (YFV);
utilizadas para definir as unidades taxonômicas
Vernacular: “O vírus da febre amarela é um
nos diferentes níveis. Dessa forma, dependendo
flavivírus transmitido por mosquitos”.
do contexto, a palavra flavivírus pode estar sen-
do usada para referir-se tanto à família Flavivi-
ridae como ao gênero Flavivirus. Para evitar essa 4 Critérios utilizados para a
ambigüidade, aconselha-se o uso do táxon prece- classificação dos vírus
dendo o termo usado. Exemplo: vírus do gênero
Flavivirus. A evolução nos métodos de detecção e ca-
A nomenclatura oficial dos vírus utiliza racterização dos vírus determinou uma evolução
abreviaturas, que são constituídas pelas iniciais nos critérios utilizados para a sua classificação.
do nome da espécie viral. No presente texto, serão A diferenciação entre vírus e os demais micro-
utilizadas as abreviaturas derivadas da nomen- organismos foi o primeiro passo na classificação
clatura na língua inglesa, por exemplo, herpesví- dos agentes virais e essa diferença foi determi-
rus bovino tipo 1 (do inglês bovine herpesvirus type nada, inicialmente, pela filtrabilidade dos vírus.
1, BoHV-1). Enquanto as bactérias eram retidas no filtro, os
No uso informal, muitos vírus podem ser vírus passavam por ele, surgindo a denominação
denominados de duas ou três formas diferentes, de agentes filtráveis.
42 Capítulo 2

No início, as características ecológicas e de b) entéricos: vírus que penetram pela via


transmissão, sinais clínicos da doença e tropis- oral e replicam no trato intestinal. Ex: coronaví-
mo por determinado órgão ou tecido foram os rus, rotavírus;
critérios utilizados na classificação dos vírus. O c) arbovírus: vírus que replicam e são trans-
desenvolvimento da microscopia eletrônica pos- mitidos por vetores artrópodos. Ex: vírus da en-
sibilitou a classificação de acordo com a morfo- cefalites eqüinas leste e oeste;
logia das partículas virais. Ao longo dessa evo- d) vírus oncogênicos: vírus com potencial
lução, outras características foram sendo mais para induzir transformação celular e tumores nos
conhecidas e consideradas para descrever os hospedeiros. Ex: retrovírus, papilomavírus.
vírus. Aspectos como a composição química, o
tipo de genoma, distribuição geográfica, vetores, 5 Famílias de vírus
estabilidade e antigenicidade dos vírus foram
adquirindo importância. Atualmente as técnicas A seguir serão apresentadas as famílias de
de biologia molecular têm sido utilizadas para vírus que contêm patógenos de animais (Figuras
refinar e detalhar a classificação dos vírus, espe- 2.1 a 2.25). Em cada gênero, serão mencionados
cialmente o seqüenciamento e comparação entre os principais vírus que causam doenças em ani-
seqüências do genoma. Estratégias de expressão mais de interesse para a medicina veterinária, ou
gênica, homologia de nucleotídeos entre seqüên- seja, animais de produção e animais de compa-
cias correspondentes, estrutura e funções de pro- nhia. Também serão citados os principais patóge-
teínas virais também foram incorporadas aos cri- nos humanos. Cabe ressaltar, por essa razão, que
térios de classificação dos vírus. esta lista não se constitui na relação completa dos
De acordo com o ICTV, as seguintes carac- vírus de cada família.
terísticas são atualmente levadas em considera-
ção para classificar os vírus em ordem, famílias, 5.1 Vírus com genoma DNA
subfamílias e gêneros: tipo de ácido nucléico e
organização do genoma, estratégia de replicação 5.1.1 Família: Poxviridae
e estrutura do vírion.
A classificação em espécies, embora não re- Subfamília: Chordopoxvirinae (infectam ver-
gulamentada pelo ICTV, segue os seguintes cri- tebrados)
térios: Gêneros:
a) homologia da seqüência do genoma; – Orthopoxvirus: vírus da vaccinia (VACV),
b) hospedeiros naturais; poxvírus bovino (varíola bovina), vírus da ectro-
c) tropismo de tecido e células; melia (camundongos);
d) patogenicidade e citopatologia; – Parapoxvirus: vírus do ectima contagioso
e) forma de transmissão; dos ovinos (ORFV), vírus da estomatite papular
f) propriedades físico-químicas; bovina (BPSV);
g) propriedades antigênicas. – Avipoxvirus: vírus da bouba aviária
(FWPV), poxvírus do canário (CNPV);
Uma outra classificação prática, não oficial, – Capripoxvirus: poxvírus dos caprinos
é regularmente usada entre os virologistas. Nes- (GTPV), poxvírus dos ovinos (SPPV), vírus da
se caso, são levados em consideração os critérios doença Lumpy Skin (LSDV);
epidemiológicos e/ou clínico-patológicos para – Leporipoxvirus: vírus do mixoma de coelhos
agrupar os vírus. De acordo com esse critério, os (MYXV), vírus do fibroma de coelhos (RFV);
vírus são classificados em: – Suipoxvirus: poxvírus suíno (SWPV);
a) respiratórios: vírus que penetram no – Molluscipoxvirus: vírus do molusco conta-
hospedeiro por inalação e produzem infecção e gioso (MOCV);
doença primariamente no trato respiratório. Ex: – Yatapoxvirus: vírus Tanapox (TANV) e Ya-
rinovírus, calicivírus; tapox dos macacos (YMTV).
Classificação e nomenclatura dos vírus 43

Subfamília: Entomopoxvirinae (infectam inse- 5.1.2 Família: Asfarviridae


tos)
Gêneros: Gênero: Asfivirus
– Alphaentomopoxvirus; Espécie: vírus da peste suína africana
– Betaentomopoxvirus; (AFSV).
– Gammaentomopoxvirus.

Os poxvírus são os maiores vírus de ani-


mais. Os vírions possuem uma forma retangular
ou ovóide, com simetria complexa e, geralmente,
possuem envelope lipídico (algumas partículas
podem não possuir). As dimensões das partícu-
las virais podem variar de 220 a 450 nm de ex-
tensão x 140 a 260 nm de largura x 140 a 260 nm
de espessura. O genoma consiste de uma única
molécula de DNA, linear, cadeia dupla, com 130
a 375 kbp. Esses vírus trazem, nos vírions, um
número considerável de enzimas e fatores auxi-
liares; e realizam o ciclo replicativo inteiramente
no citoplasma das células hospedeiras. A maio-
ria das doenças produzidas por esses vírus ca- Fonte: Dra Sharon Brookes, Pirbright, UK (ICTVdB).

racteriza-se pela formação de lesões vesiculares Figura 2.2. Fotografia de microscopia eletrônica de um
e crostosas na pele e/ou mucosas dos animais. vírion da família Asfarviridae(ASFV).
O vírus da varíola humana (smallpox) é o mais
importante vírus dessa família. Dentre os pató-
O ASFV é o único vírus classificado nessa
genos de animais domésticos, o mais comum em
família. Os vírions do ASFV possuem envelope
nosso meio é o ORFV, uma doença caracterizada
lipoprotéico e um capsídeo icosaédrico formado
por lesões vesiculares e pustulares na região dos
por 1.892 a 2.172 unidades estruturais. O diâme-
lábios, narinas e cascos.
tro das partículas virais varia entre 175 e 215 nm.
O genoma consiste de uma molécula de DNA
de cadeia dupla linear, com 170 a 190 kb. O ví-
rus replica no citoplasma da célula hospedeira.
O ASFV é transmitido por carrapatos do gênero
Ornithodoros, constituindo-se no único arbovírus
entre os vírus DNA. Esse vírus é mantido na na-
tureza em suídeos selvagens e, ocasionalmente, é
transmitido aos suínos domésticos. O vírus é en-
contrado na África, mas já foi esporadicamente
introduzido na Europa, onde causou doença em
suínos de alguns países. A peste suína africana
é caracterizada pela produção de hemorragias,
principalmente nos órgãos linfóides. O único re-
Fonte: Dr Stewart McNulty (web.qub.ac.uk).
lato da doença no Brasil ocorreu em 1978, no Rio
Figura 2.1. Fotografia de microscopia eletrônica de de Janeiro. Atualmente o ASFV é considerado
vírions da família Poxviridae. exótico no País.
44 Capítulo 2

5.1.3 Família: Herpesviridae tam diferenças biológicas e moleculares. Os vírus


da subfamília Alphaherpesvirinae apresentam um
ciclo replicativo rápido e lítico em cultivo celu-
Subfamília: Alphaherpesvirinae lar, estabelecem infecções latentes em neurônios
Gêneros: e produzem lesões vesiculares em membranas
– Simplexvirus: herpesvírus bovino tipo 2 mucosas. Vários vírus animais são classificados
(BoHV-2) ou vírus da mamilite herpética (BMH), nessa subfamília, cujo protótipo é o HSV-1. Os
herpesvírus B (macacos), vírus do herpes simplex vírus da subfamília Betaherpesvirinae apresentam
humano (HSV-1, HSV-2); uma replicação lenta em cultivo celular e estabe-
– Varicellovirus: BoHV-1 ou vírus da rinotra- lecem infecções latentes em glândulas secretórias
queíte (IBRV), BoHV-5, SHV-1 ou PRV, herpesví- e no tecido linforeticular. O herpesvírus huma-
rus eqüino tipos 1, 3 e 4 (EHV-1, EHV-3, EHV-4), no tipo 5 (HHV-5) ou citomegalovírus humano
herpesvírus canino 1 (CaHV-1), herpesvírus feli- (CMV) é o protótipo dessa subfamília. Os vírus
no tipo 1 (vírus da rinotraqueíte felina, FeHV-1), da subfamília Gammaherpesvirinae infectam lin-
herpesvírus caprino tipo 1 (CpHV-1); fócitos de forma lítica ou latente e alguns deles
– Mardivirus: vírus da doença de Marek; possuem potencial oncogênico. Nesta subfamília,
– Iltovirus: vírus da laringotraqueíte infec- está classificado apenas um patógeno de animais,
ciosa das galinhas (ILTV); o MCFV, uma doença sistêmica de bovinos. O
Subfamília: Betaherpesvirinae EBV, agente de mononucleose e tumores em hu-
Gêneros: manos, é o protótipo dessa subfamília.
– Cytomegalovirus: citomegalovírus suíno;
– Muromegalovirus: citomegalovírus do ca-
mundongo 1;
– Roseolovirus: herpesvírus humano 6 (HHV-
6).
Vários betaherpesvírus animais ainda não
foram classificados em gêneros.
Subfamília: Gammaherpesvirinae
Gêneros:
– Linphocriptovirus: vírus Epstein-Barr (EBV)
humano;
– Rhadinovirus: vírus da febre catarral malig-
na (MCFV);
– Ictalurivirus: herpesvírus do catfish de ca- Fonte: Dra Linda Stannard (web.uct.ac.za).

nal. Figura 2.3. Fotografia de microscopia eletrônica de um


A família Herpesviridae abriga um grupo vírion da família Herpesviridae (HSV-1).
grande e diverso de vírus encontrados em vir-
tualmente todas as espécies de vertebrados. Os 5.1.4 Família: Adenoviridae
vírions contêm envelope, capsídeo icosaédrico e
o diâmetro pode variar entre 120 e 300 nm. Entre Gêneros:
o capsídeo e o envelope, existe uma camada pro- – Mastadenovirus: vírus da hepatite infeccio-
téica denominada tegumento. O genoma consiste sa canina (CAdV-1), vírus da traqueobronquite
de uma molécula de DNA de cadeia dupla linear, infecciosa canina (CAdV-2), adenovírus suínos
com 120 a 250 kb. Os vírus dessa família possuem (SAV-1-9), adenovírus bovinos (BAV-1-9), ade-
uma importante propriedade biológica em co- novírus eqüino (EAV-1 e 2);
mum, que é a capacidade de estabelecer infecções – Aviadenovirus: vírus da síndrome da queda
latentes nos seus hospedeiros. Embora todos os de postura;
herpesvírus apresentem algumas características – Atadenovirus: adenovírus ovino D;
em comum, os vírus das três subfamílias apresen- – Siadenovirus: adenovírus dos perus B.
Classificação e nomenclatura dos vírus 45

– Deltapapillomavirus: papilomavírus do alce


europeu (EEPV), papilomavírus de cervídeos
(DPV), papilomavírus bovino (BPV-1 e BPV-2) e
papilomavírus ovino (OvPV-1 e OvPV-2);
– Epsilonpapillomavirus: papilomavírus bovi-
no tipo 5 (BPV-5);
– Zetapapillomavirus: papilomavírus eqüino
1 (EcPV-1);
– Etapapillomavirus: papilomavírus de aves
(FcPV);
– Thetapapillomavirus: papilomavírus dos
psitacídeos (PePV);
Fonte: Dra Cornelia Büchen-Osmond (ICTVdB). – Iotapapillomavirus: papilomavírus dos Mas-
tomys natalensis (MNPV);
Figura 2.4. Fotografia de microscopia eletrônica de vírions
da família Adenoviridae. – Kappapapillomavirus: papilomavírus dos
coelhos (CRPV e ROPV);
Os adenovírus possuem vírions icosaédricos – Lambdapapillomavirus: papilomavírus oral
grandes (diâmetro de 80 a 100 nm), sem envelope canino (COPV), papilomavírus felino (FDPV);
e apresentam fibras de 9 a 35 nm nos vértices. O – Mupapillomavirus: papilomavírus humano
capsídeo envolve uma única molécula de DNA (HPV-1 e HPV-63);
de cadeia dupla linear, com 36 a 44 kb. Os adeno- – Nupapillomavirus: papilomavírus humano
vírus replicam no núcleo das células hospedeiras 41 (HPV-41);
e, como alguns outros vírus DNA, a transcrição – Pipapillomavirus: papilomavírus oral do
dos genes é realizada pela maquinaria célula e hamster (HaOPV);
ocorre de forma ordenada. Alguns produtos dos – Xipapillomavirus: papilomavírus bovinos
genes virais interferem com o controle do ciclo ce- (BPV-3, BPV-4 e BPV-6);
lular, e alguns adenovírus possuem potencial on- – Omikronpapillomavirus: papilomavirus dos
cogênico. O vírus também codifica produtos que cetáceos (PsPV).
antagonizam os mecanismos inatos da resposta
imunológica. Os adenovírus são encontrados em
humanos, diversas espécies de mamíferos e aves
e, em geral, são pouco patogênicos. Quando as-
sociados com manifestações clínicas, geralmente
estão envolvidos em sinais respiratórios leves em
animais e humanos. A doença de maior reper-
cussão causada por esses vírus em animais pro-
vavelmente seja a hepatite infecciosa canina. Os
adenovírus têm sido intensivamente estudados
como vetores para terapia genética e vacinas.

5.1.5 Família: Papillomaviridae


Fonte: www.oralcancerfoundation.org
Gêneros:
Figura 2.5. Fotografia de microscopia eletrônica de um
– Alphapapillomavirus: vários papilomavírus vírion da família Papillomaviridae (Papilomavírus
humanos (protótipo: HPV-32); humano).
– Betapapillomavirus: vários papilomavírus
humanos (protótipo: HPV-5); Os papilomavírus são vírus pequenos, sem
– Gammapapillomavirus: vários papilomaví- envelope, com 52 a 55 nm de diâmetro e simetria
rus humanos (protótipo: HPV-4); icosaédrica. O capsídeo é formado por 72 cap-
46 Capítulo 2

sômeros, envolvendo o DNA circular de cadeia vírus protótipos: Pa (papilomavírus de coelhos);


dupla de aproximadamente 8 kbp. Os vírus re- po (poliomavírus de camundongos) e va (agente
plicam no núcleo de células epiteliais do tecido vacuolizante, SV-40). Atualmente, os poliomaví-
descamativo, e as sucessivas etapas da replica- rus e o protótipo SV-40 são classificados separa-
ção ocorrem em células com estágios diferentes damente, na família Polyomaviridae. O interesse
de diferenciação. As etapas finais da replicação maior nesses vírus iniciou-se com a descoberta
ocorrem apenas nas células maduras das cama- de que o SV-40 e outros poliomavírus eram ca-
das granulosa e córnea da pele. Os papilomaví- pazes de produzir tumores em hamsters (por
rus são agentes etiológicos dos papilomas, tam- isso foram denominados pequenos vírus DNA
bém denominados verrugas, que consistem em tumorais). Embora estudos extensivos realizados
lesões nodulares na pele e mucosas de animais durante décadas não tenham sido capazes de de-
e humanos. Alguns desses vírus podem induzir monstrar associação entre o SV-40 e tumores hu-
a produção de tumores malignos. Esse problema manos, estudos recentes demonstraram a presen-
é particularmente importante no caso das verru- ça de seqüências de DNA e antígenos do SV-40
gas genitais humanas, também conhecidas como em certos tumores raros em humanos, renovando
condilomas. Existem mais de 60 sorotipos dife- o interesse por esse vírus. Os poliomavírus foram
rentes de papilomavírus causando doenças em muito estudados como modelos para Virologia
humanos, e alguns deles são considerados de alto e biologia molecular. O protótipo da família é o
risco para a produção de tumores, como é o caso SV-40, um vírus encontrado como contaminante
dos HPV 16 e HPV 18, que estão envolvidos no de vacinas contra a poliomielite nos anos 1950.
desenvolvimento de câncer de colo de útero em
mulheres. As espécies bovina, eqüina e canina
são as mais freqüentemente afetadas por papilo-
mas, no entanto, o desenvolvimento de tumores
malignos nessas espécies não é comum. A parti-
cipação de papilomavírus na indução de tumores
em animais parece ser limitada ao carcinoma de
esôfago, induzido pela ingestão de samambaia
em bovinos.

5.1.6 Família: Polyomaviridae

Gênero:
– Polyomavirus: vírus símio 40 (SV-40), polio-
Fonte: PHIL Library, CDC.
mavírus de camundongos (PoV), vírus BK (hu-
Figura 2.6. Fotografia de microscopia eletrônica de
manos), vírus JC (humanos), vários poliomavírus vírions da família Polyomaviridae.
de mamíferos e aves.
Os poliomavírus estão entre os menores
vírus DNA. Possuem vírions icosaédrico-esfé- 5.1.7 Família: Parvoviridae
ricos com 45 nm, sem envelope, e uma molécu-
la de DNA de fita dupla circular como genoma Subfamília: Parvovirinae
(5 kb). Os vírions são compostos por 72 capsô- Gêneros:
meros, formados por três proteínas: VP1, VP2 e – Parvovirus;
VP3. O genoma está associado com histonas ce- – Patógenos animais: parvovírus canino ti-
lulares, formando uma estrutura semelhante à pos 1 e 2 (CPV-1; CPV-2), parvovírus felino (vírus
cromatina celular. A família Polyomaviridae era da panleucopenia felina, FPLV), parvovírus suí-
classificada anteriormente como uma subfamília no (PPV), parvovírus bovino (BPV);
da Papovaviridae, cuja denominação derivava dos – Erythrovirus: vírus B19 humano;
Classificação e nomenclatura dos vírus 47

– Dependovirus: vírus adeno-associado 2 tivas na suinocultura. O parvovírus humano B-16


(AAV); tem sido associado com abortos em mulheres.
– Amdovirus: Aleutian mink disease virus;
– Bocavirus: parvovírus bovino, vírus minu- 5.1.8 Família: Circoviridae
to dos cães.
Gêneros:
– Circovirus: circovírus suíno tipos 1 e 2
(PCV-1; PCV-2), vírus da doença das penas e bi-
cos dos psitacídeos (BFDV), circovírus dos pom-
bos (PiCV), circovírus dos gansos (GoCV), circo-
vírus do canário (CaCV);
– Gyrovirus: vírus da anemia das galinhas
(CAV).
Os vírus dessa família são os menores vírus
conhecidos que infectam animais. O diâmetro
dos vírions, que não possuem envelope, pode va-
riar entre 17 e 22 nm. Esses vírions apresentam
uma aparência esférica à microscopia eletrônica.
Fonte: Dra Cornelia Büchen-Osmond (ICTVdB). O núcleo do vírion é formado por uma molécula
Figura 2.7. Fotografia de microscopia eletrônica de vírions de DNA circular de cadeia simples. A replicação
da família Parvoviridae.
viral ocorre no núcleo da célula hospedeira, na
fase S do ciclo celular. Essa família possui um
Subfamília: Densovirinae
número pequeno de patógenos animais, entre os
Gêneros:
quais o agente da CAV e o vírus da doença debi-
– Densovirus: densovírus da Junonia coenia;
litante dos leitões (PCV-2). Circovírus também já
– Iteravirus: densovírus da Bombyx mori;
foram identificados em humanos.
– Brevidensovirus: densovírus do mosquito
Aedes aegypti;
– Pefudensovirus: densovírus da Periplaneta
fuliginosa.
Os parvovírus são vírus muito pequenos e,
até há pouco tempo, eram considerados os meno-
res vírus de animais e/ou humanos. Os vírions
possuem um diâmetro de 25 nm, não possuem
envelope e apresentam uma aparência esférica
à microscopia eletrônica. Os vírus dessa família
apresentam um DNA de cadeia simples linear
de, aproximadamente, 5.2 kb. Alguns membros
dessa família necessitam de uma co-infecção vi-
ral para realizar a sua replicação (Dependovirus),
Fonte: Dr Stewart McNulty (web.qub.ac.uk).
o que não é o caso do gênero Parvovirus, no qual
estão classificados importantes patógenos de ani- Figura 2.8. Fotografia de microscopia eletrônica de vírions
da família Circoviridae.
mais e humanos. A replicação ocorre no núcleo
de células que estão em processo de mitose, mais
especificamente na fase S do ciclo celular. Os 5.1.9 Família: Hepadnaviridae
principais agentes de doença dessa família são os
parvovírus que causam doenças gastroentéricas Gêneros:
em caninos e felinos. O parvovírus suíno é um – Orthohepadnavirus: vírus da hepatite B hu-
importante agente etiológico de perdas reprodu- mana (HBV), vírus do esquilo do solo (GSHV),
48 Capítulo 2

vírus das marmotas (WHV) e outros recentemen- 5.2 Vírus com genoma RNA
te identificados em várias espécies; de sentido positivo
– Avihepadnavirus: vírus da hepatite B dos
marrecos (DHBV). 5.2.1 Família: Picornaviridae

Gêneros:
– Enterovirus: enterovírus bovinos 1 e 2
(BEV-1, BEV-2), enterovírus suíno 1-13 (PEV-1-
13), poliovírus (PV);
– Rhinovirus: rinovírus bovino 1-3, rhinoví-
rus humanos (HRV-2-100);
– Hepatovirus: vírus da hepatite A humano
(HAV);
– Cardiovirus: vírus da encefalomiocardite
murina Theiler (EMCV);
– Aphtovirus: vírus da febre aftosa (FMDV);
– Parechovirus: parechovírus humano;
Fonte: Dra Linda Stannard (web.uct.ac.za).
– Erbovirus: vírus da rinite eqüina B (ERBV);
Figura 2.9. Fotografia de microscopia eletrônica de
vírions da família Hepadnaviridae (vírus da hepatite B).
– Kobuvirus: Aichi vírus (AiV);
– Teschovirus: teschovirus suíno 1 (PTV).

Os vírus da família Hepadnaviridae causam


hepatite em humanos e em algumas espécies de
animais. Esses vírus freqüentemente estabele-
cem infecção persistente, e a persistência viral no
hospedeiro está associada com cirrose hepática
e hepatocarcinoma. As células infectadas pelos
hepadnavírus produzem três tipos de partículas
víricas: os vírions completos possuem um diâme-
tro de 42-47 nm e são compostos por um nucle-
ocapsídeo icosaédrico envolto por um envelope
lipoprotéico. Partículas esféricas e filamentosas,
compostas apenas pelas proteínas do envelope e
porções da membrana plasmática, também são Fonte: www.vetsciences.free.fr
produzidas pelas células infectadas. O genoma
Figura 2.10. Fotografia de microscopia eletrônica de
viral é composto por uma molécula de DNA cir- vírions da família Picornaviridae (poliovírus).
cular de cadeia parcialmente dupla. O ciclo repli-
cativo dos hepadnavírus ocorre parte no núcleo e Os picornavírus possuem vírions esféricos
parte no citoplasma da célula hospedeira e envol- pequenos, não-envelopados, com 28 a 30 nm de
ve uma etapa de transcrição reversa. Os hepad- diâmetro. O capsídeo icosaédrico é formado por
navírus possuem tropismo marcante por células 60 cópias de cada uma das quatro proteínas VP1,
hepáticas e, freqüentemente, produzem infecções VP2, VP3 e VP4. Além das proteínas do capsídeo,
hepáticas persistentes/crônicas. O HBV é o úni- cada vírion possui também uma proteína deno-
co patógeno humano classificado nessa família. minada VPg, associada ao ácido nucléico na ex-
O vírus animal mais conhecido dessa família é tremidade 5’. O genoma é composto de uma ca-
o DHBV, que causa uma doença muito similar à deia simples de RNA, de sentido positivo de 7.2 a
hepatite B humana. 8.4 kb. A replicação do vírus ocorre inteiramente
Classificação e nomenclatura dos vírus 49

no citoplasma, e o RNA é traduzido diretamente ta uma proteína (VPg) covalentemente ligada na


pelos ribossomas. A infecção geralmente é aguda extremidade 5’. Em células infectadas, é também
e citolítica, ocorrendo a liberação dos vírions pela detectado um RNA subgenômico de 2.2 a 2.4 kb.
lise celular. Essa família contém vários patóge- A replicação do vírus ocorre no citoplasma, e os
nos muito importantes para humanos e animais, vírus são liberados por lise celular. O patógeno
como o vírus da poliomielite, o vírus da hepatite animal mais conhecido dessa família é o caliciví-
A, os rinovírus, os enterovírus, o FMDV, entre rus felino, associado com doença respiratória em
outros. gatos. Um calicivírus (norovírus) tem sido consi-
derado um dos principais agentes de diarréia em
5.2.2 Família: Caliciviridae pessoas de todas as idades.

Gêneros: 5.2.3 Família: Astroviridae


– Vesivirus: calicivírus felino (FCV), vírus do
exantema vesicular dos suínos (SVEV), vírus dos Gêneros:
leões marinhos de San Miguel (SMSV); – Mamastrovirus: astrovírus humanos e de
– Lagovirus: vírus da doença hemorrágica várias espécies de animais domésticos;
dos coelhos (RHDV), vírus da doença hemorrá- – Avastrovirus: astrovírus dos perus.
gica das lebres pardas (EBHSV); Os astrovírus são pequenos, com 28 a30 nm
– Norovirus: vírus de Norwalk (humano); de diâmetro, sem envelope e com capsídeo ico-
– Sapovirus: vírus de Sapporo (humano). saédrico. A superfície de algumas partículas ví-
ricas apresenta estruturas que lembram estrelas
de cinco ou seis pontas, o que originou o nome
da família. A replicação ocorre no citoplasma, e
os vírus são liberados por lise celular. Os astro-
vírus têm sido isolados de casos de gastrenterite
de bovinos, suínos, cães, gatos, perus, patos e hu-
manos. Na grande maioria das espécies, a doença
se manifesta como uma diarréia passageira e ra-
ramente há complicações. Entretanto, em patos,
uma hepatite com altos índices de mortalidade
tem sido descrita.

Fonte: www.fli.bund.de

Figura 2.11. Fotografia de microscopia eletrônica de


vírions da família Caliciviridae.

Os calicivírus são vírus pequenos (diâmetro


entre 30 a 40 nm) sem envelope. O capsídeo é for-
mado por 60 cópias de uma única e grande pro-
teína. À microscopia eletrônica, o vírus apresenta
depressões características na superfície, que lem-
bram copos ou cálices, o que originou a denomi-
nação da família. O genoma consiste de um ácido
nucléico RNA linear de cadeia simples e sentido Fonte: Dra Cornelia Büchen-Osmond (ICTVdB).

positivo, com extensão de 7.4 a 7.7 kb. Semelhante Figura 2.12. Fotografia de microscopia eletrônica de
aos picornavírus, o RNA dos calicivírus apresen- vírions da família Astroviridae.
50 Capítulo 2

5.2.4 Família: Togaviridae 5.2.5 Família: Flaviviridae

Gêneros: Gêneros:
– Alfavirus: vírus das encefalites eqüinas – Flavivirus: vírus da febre amarela (YFV, hu-
do leste (EEEV), oeste (WEEV) e venezuelana mano e de primatas), vírus da dengue (humano),
(VEEV), além de outros arbovírus zoonóticos (Se- vírus da encefalite japonesa (JEV), vírus Murray
mliki Forest virus, SFV; Ross River virus, RRV; Valley (MVEV), vírus do Nilo Ocidental (WNV),
Sindbis, SIN); vírus Wesselsbron (WBV), vírus do Louping Ill.
– Rubivirus: vírus da rubéola (humano). Com possível exceção do vírus da dengue, os de-
Os togavírus possuem vírions esféricos, com mais vírus são zoonóticos;
diâmetro aproximado de 70 nm. O capsídeo é – Pestivirus: vírus da diarréia viral bovina
envolto por um envelope lipídico que apresenta tipos 1 e 2 (BVDV-1; BVDV-2), vírus da peste su-
peplômeros formados por duas glicoproteínas. ína clássica (CSFV), vírus da doença da fronteira
O genoma consiste de uma molécula de RNA li- (BDV);
near, de sentido positivo, com extensão de 9,7 a – Hepacivirus: vírus da hepatite C (humano).
11.8 kb. As proteínas não-estruturais são sinteti-
zadas a partir de uma poliproteína traduzida di-
retamente do RNA genômico. As proteínas não-
estruturais são produzidas pela tradução de um
mRNA subgenômico, sintetizado a partir de uma
cópia de RNA de sentido anti-genômico. A repli-
cação ocorre inteiramente no citoplasma e a libe-
ração da progênie viral ocorre por brotamento na
membrana plasmática. Os Alfavirus são transmi-
tidos por insetos e a maioria deles é zoonótica.
Os EEEV, WEEV e VEEV de maior importância
para a Veterinária estão classificados no gênero
Alfavirus. O vírus da rubéola, também classifica-
do nessa família, é um agente que infecta exclusi- Fonte: PHIL Library, CDC.
vamente humanos.
Figura 2.14. Fotografia de microscopia eletrônica de
vírions da família Flaviviridae (vírus do Nilo Ocidental).

Os membros da família Flaviviridae possuem


vírions envelopados, com capsídeo possivel-
mente icosaédrico e com 45-60 nm de diâmetro.
Apresentam um genoma RNA linear de sentido
positivo (9.5 a 12.5 kb), que é traduzido em uma
poliproteína, posteriormente clivada nas proteí-
nas individuais por enzimas virais e celulares. O
genoma é organizado de forma semelhante em
todos os membros da família, com as proteínas
estruturais codificadas no primeiro terço (extre-
midade 5’) e as não-estruturais nos terços finais
(extremidade 3’). No gênero Flavivírus, estão
Fonte: Dra Tuli Mukhopadnyay (ICTVdB).
classificados vários agentes de doenças hemor-
Figura 2.13. Fotografia de microscopia eletrônica de rágicas e encefalites transmitidas por mosquitos,
vírions da família Togaviridae. entre elas o YFV, o vírus da dengue e o WNV. Im-
Classificação e nomenclatura dos vírus 51

portantes patógenos para a medicina veterinária capsídeo helicoidal, que possui uma molécula de
são classificados no gênero Pestivírus, entre eles o RNA linear de cadeia simples e sentido positivo.
BVDV e o CSFV. O vírus da hepatite C de huma- Dentre os vírus RNA, os coronavírus possuem o
nos é o único membro do gênero Hepacivirus. maior genoma, podendo variar de 27 a 32 kb. A
síntese de um grupo de RNAs subgenômicos du-
5.2.6 Família: Coronaviridae rante a replicação viral na célula infectada é um
aspecto comum aos vírus dessa família, assim
como aos demais vírus da ordem Nidovirales. A
replicação ocorre inteiramente no citoplasma. Es-
ses vírus causam importantes doenças entéricas
em animais, incluindo a gastrenterite transmis-
sível dos suínos (TGE) e a peritonite infecciosa
dos felinos (FIP). Os coronavírus humanos estão
associados principalmente com os resfriados co-
muns. O vírus da SARS, agente de doença respi-
ratória severa na Ásia entre 2003 e 2004, também
é classificado nessa família.

5.2.7 Família: Arteriviridae


Fonte: Dra Cornelia Büchen-Osmond (ICTVdB).
Ordem: Nidovirales
Figura 2.15. Fotografia de microscopia eletrônica de Gênero:
vírions da família Coronaviridae (SARS CoV). – Arterivirus: vírus da arterite eqüina (EVAV),
vírus elevador da lactato desidrogenase (LDEV),
Ordem Nidovirales vírus da síndrome respiratória e reprodutiva dos
Gênero: suínos (PRRSV).
– Coronavirus: vírus da bronquite infecciosa
das aves (IBV), coronavírus dos perus (TCoV),
vírus da gastrenterite transmissível dos suínos
(TGEV), coronavírus felino (FeCoV), vírus da pe-
ritonite infecciosa felina (FIPV), coronavírus ca-
nino (CCoV), coronavírus bovino (BCoV), coro-
navírus humano (HuCoV), vírus da pneumonia
asiática (SarsCoV – humano);
– Torovirus: torovírus eqüino (EToV), toroví-
rus bovino (BToV), torovírus suíno (SToV), toro-
vírus humano (HToV), vírus Berne (BeV), vírus
Breda (BrV).
A morfologia dos vírions, quando obser-
vada ao microscópio eletrônico, deu origem ao Fonte: Dr D. Robinson, South Dakota State University.

nome da família. Os vírions do gênero Corona- Figura 2.16. Fotografia de microscopia eletrônica de
vírus possuem diâmetro de 80 a 220 nm e forma vírions da família Arteriviridae (PRRSV).
esférica; os do gênero Torovírus, de 120 a 140 nm
e aparência bacilar ou na forma de rim. Vírus de O nome dessa família originou-se da patolo-
ambos os gêneros apresentam envelope lipídico gia induzida por esses vírus em eqüinos, a arteri-
com peplômeros que se projetam externamente te. Os arterivírus apresentam diâmetro de 50 a 70
por até 20 nm, e que dão ao vírion o aspecto de nm e possuem envelope. O genoma consiste de
coroa. Os coronavírus apresentam um nucleo- uma molécula de RNA linear de sentido positivo,
52 Capítulo 2

com extensão entre 13 e 15 kb. De forma similar apresentam também uma atividade de neura-
ao que ocorre com os coronavírus, RNAs sub- minidase. A hemaglutinina é a proteína viral
genômicos são produzidos durante a replicação responsável pela ligação ao receptor celular, e a
desses vírus no citoplasma das células infectadas. proteína F realiza a fusão do envelope viral com
A liberação dos vírus se dá por exocitose após a membrana da célula. A replicação e reunião dos
brotamento dentro de vesículas no citoplasma. componentes virais ocorrem no citoplasma, e a
Além do vírus da arterite eqüina, está também liberação é feita por brotamento da membrana
classificado nessa família o PRRSV. Ambas as do- plasmática. Na partícula viral, também são en-
enças são consideradas oficialmente exóticas no contradas algumas cópias da enzima polimerase,
Brasil. Entretanto, estudos sorológicos demons- que é necessária para iniciar a replicação do ví-
traram a presença de anticorpos contra o EVAV rus. Esses vírus estão associados principalmente
em eqüinos de alguns estados brasileiros. com doenças respiratórias e foram identificados
apenas em mamíferos e aves. Alguns morbiliví-
5.3 Vírus com genoma RNA de sentido rus podem causar infecção persistente. Entre os
negativo não-segmentado vírus classificados nessa família e que causam
doença em animais incluem-se o CDV e o NDV
5.3.1 Família: Paramyxoviridae em aves, entre outros. O hRSV, o vírus do saram-
po e da caxumba são patógenos importantes de
Ordem: Mononegavirales humanos.
Subfamília: Paramyxovirinae
Gêneros:
– Respirovirus: vírus da parainfluenza bovi-
na tipo 3 (bPI-3V), vírus Sendai (camundongos);
– Morbillivirus: vírus da cinomose canina
(CDV), vírus da peste bovina (Rinderpest), vírus
da peste dos pequenos ruminantes, morbilivírus
dos golfinhos, morbilivírus de focas (PhDV), ví-
rus do sarampo (humanos);
– Rubulavirus: vírus da parainfluenza canina
tipo 2 (cPIV-2), vírus da caxumba (humanos);
– Henipavirus: vírus Hendra (HeV), vírus Ni-
pah (NiV);
– Avulavirus: vírus da doença de Newcastle Fonte: Dr Samuel Baron (ICTVdB).
(NDV), paramixovírus das aves 2 a 9 (APMV-2-
Figura 2.17. Fotografia de microscopia eletrônica de
9). vírions da família Paramyxoviridae (vírus Sendai).
Subfamília: Pneumovirinae
Gêneros:
– Pneumovirus: vírus sincicial respiratório 5.3.2 Família: Rhabdoviridae
bovino (BRSV) e humano (hRSV);
– Metapneumovirus: metapneumovírus das Ordem: Monegavirales
aves – AMPV (vírus da rinotraqueíte dos perus). Gêneros:
Os vírus dessa família são grandes, pleo- – Vesiculovirus: vírus da estomatite vesicular
mórficos, envelopados, com diâmetro variando (VSV), vários outros vírus isolados de insetos, al-
de 150 a 350 nm. Possuem um genoma RNA li- guns que infectam mamíferos;
near de sentido negativo, cadeia simples, com – Lyssavirus: vírus da raiva (RV), lissavírus
16 a 20 kb. No envelope, são encontradas as gli- de morcegos Lagos;
coproteínas hemaglutinina (HN) e de fusão (F). – Efemerovirus: vírus da febre efêmera dos
Em alguns vírus, as glicoproteínas de superfície bovinos (BEFV);
Classificação e nomenclatura dos vírus 53

– Novirhabdovirus: vírus da necrose hemato- 5.3.3 Família: Filoviridae


poiética infecciosa (HNV);
– Cytorhabdovirus: vírus da necrose amarela
da alface (LNYV); Ordem: Mononegavirales
– Nucleorhabdovirus: vírus do tomate peque- Gêneros:
no amarelo (PYDV). – Marburgvirus: vírus de Marburg;
– Ebolavirus: vírus ebola.
Os vírus dessa família apresentam formas
filamentosas, pleomórficas, com diâmetro de 80
nm e extensão que pode atingir até 14.000 nm.
Podem ser vistas formas de U, de 6 ou, ainda, for-
mas circulares. O genoma consiste de uma úni-
ca molécula de RNA linear, de cadeia simples e
sentido negativo, compondo um nucleocapsídeo
helicoidal. A replicação ocorre no citoplasma e o
vírus é liberado por brotamento na membrana
plasmática. Os vírus dessa família causam doen-
ças hemorrágicas em humanos. Infecção natural
com vírus de Marburg e a cepa Reston do vírus
Fonte: Dr. F. Murphy (ICTVdB). ebola também causa doença hemorrágica em ma-
Figura 2.18. Fotografia de microscopia eletrônica de cacos. Doença experimental pode ser induzida
vírions da família Rhabdoviridae. através de inoculação em macacos, cobaias, ha-
msters e camundongos. A manipulação desses
Os vírions dessa família possuem uma mor- vírus só é permitida em laboratórios de nível 4 de
fologia característica, lembrando um projétil de biosegurança. O vírus ebola é um dos vírus mais
arma de fogo, com uma das extremidades arre- letais já identificados para humanos. A história
dondadas e a outra romba. O diâmetro dos ví- natural desses vírus ainda não é bem conhecida.
rions varia de 70 a 85 nm, e o comprimento pode
variar de 130 a 380 nm. O vírus é envelopado e
apresenta peplômeros de 8 a 10 nm na superfície;
o nucleocapsídeo é helicoidal. O genoma consiste
de uma cadeia simples de RNA linear de sentido
negativo e extensão de 10 a 13 kb. A replicação
ocorre no citoplasma. O RNA genômico de sen-
tido negativo é inicialmente transcrito em RNAs
subgenômicos, que são traduzidos nas proteínas
necessárias à formação de novas partículas virais.
A replicação do genoma ocorre a partir de um in-
termediário positivo. O RV, que é um dos vírus
zoonóticos mais importantes, é o principal vírus
dessa família. O VSV é outro importante patóge-
no animal, capaz de infectar várias espécies. Vá- Fonte: Dr F. Murphy (ICTVdB).

rios rabdovírus de peixes e de plantas também Figura 2.19. Fotografia de microscopia eletrônica de um
são agrupados nessa família. vírion da família Filoviridae (vírus Ebola).
54 Capítulo 2

5.3.4 Família: Bornaviridae genoma ocorre no núcleo das células hospedei-


ras. Posteriormente, o vírus é liberado da célula
Ordem: Mononegavirales por brotamento na membrana plasmática. Os ví-
Gênero: rus do gênero influenza são os agentes etiológi-
– Bornavirus: vírus da doença de Borna cos da gripe. O vírus influenza A causa gripe em
(BDV). humanos, aves, suínos, cavalos, martas, focas e
Os bornavírus são esféricos e envelopados, baleias. O vírus influenza B é patógeno somente
com diâmetro de 90 nm. Possuem um genoma de humanos, e os de influenza C, de humanos e
RNA de cadeia simples, sentido negativo e 8.9 suínos. A natureza segmentada do genoma des-
kb. Apesar do genoma RNA, os vírus replicam no ses vírus facilita a troca dos segmentos genômi-
núcleo, onde produzem corpúsculos de inclusão. cos entre vírus das diferentes espécies quando in-
Esses vírus são agentes etiológicos reconhecidos fectam a mesma célula. Esse mecanismo permite,
de doença neurológica em ovinos e eqüinos, mas eventualmente, o surgimento de vírus bastante
já foram isolados também de gatos e bovinos. virulentos.
Além disso, dados sorológicos e moleculares re-
centes têm associado os bornavírus com doenças
neuropsiquiátricas humanas.

5.4 Vírus com genoma RNA de sentido


negativo segmentado

5.4.1 Família: Orthomyxoviridae

Gêneros:
– Influenzavirus A (FluAV): vírus da influen-
za A (humanos, aves, eqüinos, suínos, recente-
mente cães e felídeos);
– Influenzavirus B (FluBV): vírus da influen-
Fonte: Dra Linda Stannard (web.uct.ac.za).
za B (humanos);
Figura 2.20. Fotografia de microscopia eletrônica de
– Influenzavirus C (FluCV): vírus da influen-
vírions da família Orthomyxoviridae (influenza A).
za C (humanos, suínos);
– Thogotovirus: vírus Thogoto de carrapatos
(THOV), vírus Dhori (DHOV). Tem sido detecta-
da sorologia positiva em bovinos e camelos; 5.4.2 Família: Bunyaviridae
– Isavirus: vírus da anemia infecciosa do sal-
mão (ISAV). Gêneros:
Os ortomixovírus possuem vírions envelo- – Orthobunyavirus: vírus Bunyamwera
pados pleomórficos, com 80 a 120 nm de diâme- (BOTV), vírus La Crosse (LACV), vírus Akabane
tro. No envelope, estão inseridas as glicoproteí- (AKAV);
nas hemaglutinina (HA) e neuraminidase (NE) – Hantavirus: vírus Hantaan (hantavírus
que se extendem externamente por 10 a 14 nm. – HTNV) de roedores e humanos;
O genoma consiste de oito (vírus influenza A), – Nairovirus: vírus de Dugbe (DUGV), vírus
sete (vírus influenza B) ou seis (vírus influenza da febre hemorrágica Crimean Congo (CCHFV),
C) segmentos de RNA linear, sentido negativo de vírus da doença das ovelhas de Nairobi (NSDV);
cadeia simples, com extensão total de 10 a 13.6 – Phlebovirus: vírus da febre do vale Rift
kb. Cada segmento genômico é empacotado em (RVFV);
um nucleocapsídeo helicoidal. A replicação do – Tospovirus: vários vírus de plantas.
Classificação e nomenclatura dos vírus 55

rus de roedores e humanos (LASV), vírus Junin


(JUNV),vírus Machupo (MACV), vírus sabiá
(SABV), vários outros vírus identificados em roe-
dores e/ou causando doença em humanos.
São vírus envelopados e pleomórficos, cujo
diâmetro varia de 100 a 300 nm. Possuem um ge-
noma RNA de cadeia simples, sentido negativo e
ambissense, com dois segmentos de extensão de 14
a 16 kb. Os vírus replicam no citoplasma e saem
da célula por brotação da membrana plasmática.
Os arenavírus infectam diferentes espécies de ro-
edores nas Américas, África e Europa de forma
Fonte: Dra Linda Stannard (web.uct.ac.za).
crônica e, na maioria das vezes, assintomática.
Alguns desses vírus causam doenças severas em
Figura 2.21. Fotografia de microscopia eletrônica de
vírions da família Bunyaviridae. humanos, algumas delas com aspectos hemorrá-
gicos. Por isso estão entre os agentes mais impor-
Os buniavírus possuem vírions esféricos ou tantes das febres hemorrágicas. A transmissão
pleomórficos, envelopados, com diâmetro entre ocorre geralmente através de aerossóis prove-
80 e 120 nm. O genoma consiste de três segmentos nientes da urina contaminada desses animais.
de RNA de cadeia simples e sentido negativo, or- Entre os arenavírus causadores de doença em
ganizados em nucleocapsídeos helicoidais. Esses humanos está o vírus Lassa, agente etiológico de
vírus replicam no citoplasma. O ressortimento é febre hemorrágica em algumas regiões da Áfri-
possível entre vírus do mesmo gênero devido à ca. No continente americano, já foram descritos
segmentação do genoma. Existe um grande nú- o MACV na Bolívia, JUNV na Argentina, Guana-
mero de vírus classificados nessa família, muitos rito na Venezuela e SABV no Brasil. Todos esses
deles não infectam animais domésticos ou seres vírus são agentes de doenças hemorrágicas.
humanos, apenas insetos. Os vírus patogênicos
dessa família são agentes de doenças respira-
tórias severas, hepatite, nefrite e encefalite em
animais e humanos. Esses vírus são geralmente
citopáticos quando inoculados em células de ver-
tebrados, mas são não-citopáticos em células dos
vetores invertebrados. A grande maioria dos ví-
rus dessa família é composta de arbovírus isola-
dos ou transmitidos por mosquitos, carrapatos e
outros artrópodos. Os vírus do gênero hantavírus
são exceções, uma vez que são mantidos e trans-
mitidos por roedores. Alguns desses vírus (como
o RVFV e o CCMFV) só podem ser manipulados
em laboratório de segurança nível 4.

5.4.3 Família: Arenaviridae

Gênero: Fonte: Scientific American (ICTVdB).

– Arenavirus: vírus da coriomeningite lin- Figura 2.22. Fotografia de microscopia eletrônica de um


focítica dos camundongos (LCMV), Lassaví- vírion da família Arenaviridae.
56 Capítulo 2

5.5 Vírus com genoma RNA de cadeia vírus, e 12 segmentos e 27 kb para o Coltivírus. A
dupla replicação e montagem dos vírions ocorrem no
citoplasma, de onde os vírions são liberados. O
ressortimento de segmentos de RNA pode ocor-
5.5.1 Família: Reoviridae
rer quando mais de um vírus do mesmo gênero
infectam a mesma célula. O BTV e os rotavírus
de várias espécies de mamíferos são exemplos
de patógenos importantes em veterinária. Os ro-
tavírus são importantes causadores de diarréia,
sobretudo em crianças, em países subdesenvol-
vidos.

5.5.2 Família: Birnaviridae

Gêneros:
– Aquabirnavírus: vírus da necrose pancreáti-
ca infecciosa (IPNV);
– Avibirnavírus: vírus da doença de Gumbo-
Fonte: Dra. Büchen-Osmond (ICTVdB) ro (IBDV);
Figura 2.23. Fotografia de microscopia eletrônica de – Entomobirnavírus: vírus X da drosófila.
vírions da família Reoviridae (rotavírus).

Gêneros:
– Orthoreovirus: orthoreovírus de mamíferos
(MRV), orthoreovírus de aves (ARV), orthoreoví-
rus de babuínos (BRV);
– Orbivirus: vírus da língua azul (BTV-1 a
24), vírus da encefalose eqüina (EEV-1 a 7), vírus
da peste eqüina (AHSV-1 a 9);
– Rotavirus: rotavírus de todas as espécies (A
a G);
– Coltivirus: vírus da febre do carrapato do
Colorado (CTFV);
– Aquareovirus: aquareovírus A (ARV-A a
Fonte: Dr. Stewart McNulty, (www.qub.ac.uk).
F);
– Seadornavirus: virus kadipiro (KDV). Figura 2.24. Fotografia de microscopia eletrônica de
vírions da família Birnaviridae.
Existem ainda os gêneros de vírus que in-
fectam plantas e insetos: Cypovirus, Idnoreovirus,
Fijivirus, Oryzavirus e Phytoreovirus. Esses vírus possuem um genoma RNA line-
Os reovírus possuem vírions complexos, ar de cadeia dupla com dois segmentos, denomi-
sem envelope, compostos por duas ou três cama- nados A e B. A extensão total do genoma varia
das de proteínas arranjadas de forma concêntri- entre 5.7 e 7 kb. Os vírions são formados por um
ca. O diâmetro desses capsídeos pode variar de capsídeo icosaédrico, sem envelope, e diâmetro
60 a 85 nm e possui simetria icosaédrica. O ge- de 60 nm. Os RNAs mensageiros são sintetizados
noma consiste de moléculas de RNA de cadeia a partir dos dois segmentos do genoma RNA e
dupla. O número e a extensão desses segmentos uma poliproteína é produzida e, posteriormente,
variam entre os gêneros; sendo de 10 segmentos clivada. Maiores detalhes da replicação não são
e 23 kb para o Reovírus, 10 segmentos e 18 kb para conhecidos. O patógeno mais conhecido dessa fa-
o Orbivírus, 11 segmentos e 16-21 kb para o Rota- mília é o IBDV, que afeta galinhas.
Classificação e nomenclatura dos vírus 57

5.6 Vírus com genoma RNA que ral complexa, incluindo uma etapa de transcrição
realizam transcrição reversa reversa. Os retrovírus são envelopados e pos-
suem um capsídeo icosaédrico. O diâmetro dos
5.6.1 Família: Retroviridae vírions pode variar entre 80 e 100 nm. O genoma
é diplóide, consistindo de duas cópias de RNA
Subfamília: Orthoretrovirinae cadeia simples e sentido positivo. A replicação
Gêneros: dos retrovírus ocorre em parte no citoplasma e
– Alpharetrovirus: vírus da leucose aviária em parte no núcleo. A replicação viral envolve
(ALV), vírus do sarcoma Rous (RSV); a síntese de uma cópia DNA do RNA genômico
– Betaretrovirus: vírus do tumor mamário do (provírus), que é integrada no cromossomo celu-
camundongo (MMTV), retrovírus Jaagsiekte dos lar. A síntese de mRNAs, para a síntese protéica
ovinos (JSRV); e do RNA genômico, ocorre pela transcrição do
– Gammaretrovirus: vírus da leucemia felina provírus pela maquinaria celular de transcrição.
(FeLV), vírus da leucemia murina (MuLV); Pelo fato de integrar o seu provírus ao DNA da
– Deltaretrovirus: vírus da leucose bovina célula, os retrovírus infectam o hospedeiro para
(VLB), vírus da leucemia de células T humano o resto da vida. Os vírus dessa família estão as-
(HTLV-1 e 2); sociados principalmente a doenças tumorais e
– Epsilonretrovirus: vírus do sarcoma dermal imunossupressivas. O ALV e o EIAV estão entre
de Walleye (WDSV); os vírus de importância veterinária classificados
– Lentivirus: vírus da anemia infecciosa eqüi- nessa família. O vírus da AIDS (HIV) é o retroví-
na (EIAV), vírus da imunodeficiência felina (FIV), rus de maior repercussão em saúde humana.
vírus da artrite-encefalite caprina (CAEV), vírus
Maedi-Visna (MMV), vírus da imunodeficiência 6 Bibliografia consultada
dos símios (SIV), vírus da imunodeficiência hu-
mana (HIV-1 e 2); CONDIT, R.C. Principles of Virology. In: KNIPE, D.M.;
Subfamília: Spumaretrovirinae HOWLEY, P.M. (eds). Fields virology. 4.ed. Philadelphia, PA:
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Nessa família, estão classificados vários PRINGLE, C.R. Virus nomenclature. Archives of Virology,
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em diversas espécies. Esses vírus apresentam, PRINGLE, C.R. Virus taxonomy--1999. The universal system of
como principal característica, uma replicação vi- virus taxonomy, updated to include the new proposals ratified
58 Capítulo 2

by the International Committee on Taxonomy of Viruses during


1998. Archives of Virology, v.144, p.421-429, 1999.

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2004.
DETECÇÃO, IDENTIFICAÇÃO E QUANTIFICAÇÃO
DE VÍRUS
Mário Celso S. Brum & Rudi Weiblen
3
1 Introdução 61

2 Métodos de detecção e identificação de vírus 61

2.1 Detecção direta por microscopia eletrônica 61

2.2 Detecção de propriedades biológicas dos vírus 63


2.2.1 Hemaglutinação 63
2.2.2 Hemadsorção 65

2.3 Detecção de antígenos 65


2.3.1 Imunofluorescência 65
2.3.2 Imunoperoxidase 66
2.3.3 Ensaio imunoenzimático 67
2.3.4 Radioimunoensaio 67
2.3.5 Imunocromatografia 68
2.3.6 Aglutinação em látex 68
2.3.7 Imunodifusão em ágar 68
2.3.8 Imunoblots 68

2.4 Detecção/identificação de ácidos nucléicos 69


2.4.1 Técnicas de hibridização (Southern, Northern blot) 69
2.4.2 Hibridização in situ 70
2.4.3 Reação de polimerase em cadeia 70
2.4.4 Análise de restrição 73
2.4.5 Eletroforese em gel de poliacrilamida 73

3 Multiplicação de vírus 73

3.1 Inoculação em animais susceptíveis 74


3.2 Inoculação em ovos embrionados 74
3.3 Inoculação em cultivo celular 75
4 Quantificação de vírus 81

4.1 Diluição limitante 81


4.2 Ensaio de placa 81
4.3 Outros métodos de quantificação 83

5 Identificação e caracterização de um isolado 84

5.1 Sensibilidade a solventes orgânicos 84


5.2 Concentração e purificação por ultracentrifugação 84

6 Biossegurança laboratorial 85

7 Bibliografia consultada 86
1 Introdução realização de duas ou mais técnicas para a confir-
mação definitiva da presença do agente. A esco-
Os grandes avanços no entendimento dos lha de uma determinada técnica de detecção está
mecanismos de replicação, transmissão e patoge- diretamente relacionada com a forma de infecção
nia de vários agentes virais somente foram possí- e com o tropismo do vírus por determinados te-
veis após o desenvolvimento de métodos de pro- cidos e órgãos. Por outro lado, a disponibilidade
pagação e detecção de vírus in vitro. No princípio de equipamentos, qualidade dos reagentes e de
da Virologia, antes mesmo da classificação dos pessoal capacitado para a execução das técnicas
vírus como agentes filtráveis, as alterações pro- também podem determinar a escolha da técnica a
duzidas nos animais durante as infecções virais ser empregada. A simples detecção do agente vi-
já eram observadas e descritas. No entanto, a fal- ral em uma amostra clínica deve ser considerada
ta de conhecimentos sobre o agente e de equipa- com cautela, pois a sua presença pode não ser um
mentos adequados fez com que a diferenciação indicativo seguro da etiologia da doença.
entre as infecções fosse realizada apenas entre Os métodos de detecção dos agentes virais
as enfermidades com sinais clínicos característi- podem ser divididos em métodos diretos e in-
cos. Inicialmente, o único método de propagação diretos. Os métodos diretos compreendem as
viral era a inoculação em animais susceptíveis. técnicas em que o agente viral é diretamente de-
Embora essa forma de amplificação viral tenha tectado, ou seja, a partícula viral é observada e
sido muito útil nos primórdios da Virologia, esse identificada de maneira precisa. A única técnica
método de amplificação restringiu o estudo dos que se enquadra nesse princípio é a microscopia
vírus devido à dificuldade de manutenção de eletrônica. Os métodos de detecção indireta iden-
animais e também pela baixa reprodutibilidade tificam as propriedades biológicas ou produtos
da maioria das enfermidades víricas. resultantes da replicação viral, como proteínas
A maior revolução na Virologia ocorreu ou ácidos nucléicos. Neste capítulo, serão apre-
após o advento dos antibióticos, o que possibili- sentadas e discutidas as técnicas utilizadas para
tou o estabelecimento de cultivos celulares livres a detecção de partículas víricas, proteínas ou ma-
de contaminantes bacterianos. O uso dos cultivos terial genético viral. A aplicação dessas técnicas,
celulares contribuiu de maneira decisiva para a com finalidades diagnósticas, será abordada no
detecção e multiplicação dos vírus com diversas Capítulo 11. Além disso, serão abordadas as ma-
finalidades, viabilizando o diagnóstico, estudos neiras de multiplicação, quantificação e caracteri-
bioquímicos e moleculares e produção de vaci- zação viral, bem como alguns aspectos de segu-
nas. Nesse sentido, a citopatologia, produzida rança laboratorial.
por alguns vírus em células de cultivo durante a
sua replicação, é uma característica amplamente
2 Métodos de detecção e
identificação de vírus
utilizada para demonstrar a presença do agente
em material clínico, permitindo a realização do
diagnóstico. 2.1 Detecção direta por microscopia
As técnicas de detecção viral foram desenvol- eletrônica
vidas inicialmente com fins diagnóstico, ou seja,
para pesquisar vírus em amostras clínicas; porém A maioria dos agentes virais possui partí-
passaram a ser utilizadas para uma ampla gama culas víricas com características morfológicas e
de finalidades em laboratórios de virologia. estruturais peculiares às famílias as quais perten-
A confirmação da presença do vírus em te- cem. Com base nesse aspecto, o método mais sim-
cidos, secreções ou excreções pode ser realizada ples de detecção e identificação de vírus é a visu-
pelo uso de técnicas que demonstrem o agente, o alização direta das partículas na amostra (Figura
efeito da replicação em cultivo celular, produtos 3.1). Exemplos clássicos do uso da microscopia
intermediários do processo replicativo (proteínas, eletrônica (ME) com fins diagnósticos incluem a
corpúsculos de inclusão) ou o material genético detecção de partículas víricas em crostas de le-
(DNA ou RNA viral). Muitas vezes recorre-se à sões causadas pelo ectima contagioso dos ovinos
62 Capítulo 3

e pseudo-varíola bovina (parapoxvírus) ou, ain- rotavírus ou coronavírus em fezes de bezerros


da, a detecção do parvovírus em fezes caninas e com diarréia.

A B

C D

E F

Figura 3.1. Microscopia eletrônica. (A) Partículas de parapoxvírus em material coletado de lesões de ovinos suspeitos
de ectima contagioso (50.000x); (B) Partículas típicas de rotavírus em fezes bovinas diarréicas (260.000x); (C) Partículas
características de calicivírus em células de cultivo, inoculadas com secreção nasal de um felino com doença
respiratória (40.000x); (D) Partículas típicas de herpesvírus no núcleo de células de cultivo, inoculadas com material
coletado de um touro com balanopostite (48.000x); (E) Partículas do vírus da parainfluenza bovina 3 (bPI-3),
observadas em sobrenadante de cultivo celular (260.000x); (F) Arranjo cristalino de partículas típicas de picornavírus
no citoplasma de células de cultivo, inoculadas com material coletado de um bovino com doença gastrentérica e
respiratória (315.000x).
Detecção, identificação e quantificação de vírus 63

A ME possuiu grande aplicabilidade na pes- mentar a sensibilidade do teste. Após o processo


quisa e identificação de vírus que não replicam de clarificação e concentração, a amostra é cora-
com eficiência em cultivo celular. Essa técnica da negativamente, geralmente com tungstênio, e
permitiu a identificação de vários agentes entéri- examinada sob ME.
cos de difícil cultivo, tais como: poxvírus, rotaví- Além do seu uso em diagnóstico, a ME tem
rus, calicivírus, astrovírus, entre outros. Quando sido utilizada para o estudo da morfologia e ul-
as partículas víricas estão presentes em grande tra-estrutura de partículas víricas e também em
quantidade, são facilmente observadas nas fezes estudos de patogenia. As características obser-
de animais com diarréia ou em líquidos vesicula- vadas para a identificação e caracterização do
res de infecções cutâneas. agente são: o diâmetro dos vírions, morfologia
A maior restrição da ME é a sua baixa sensi- do nucleocapsídeo, presença ou não de envelope,
bilidade. Amostras clínicas que contenham quan- presença de projeções na superfície das partícu-
tidade inferior a 106-107 partículas víricas por mi- las, organização dos agregados de partículas e a
lilitro não são detectadas como positivas por essa localização celular dos vírions.
técnica, gerando resultados falso-negativos. Essa
quantidade de vírus é geralmente encontrada em 2.2 Detecção de propriedades biológicas
fluidos vesiculares e fezes, o que não ocorre com dos vírus
tanta freqüência em secreções respiratórias. A
sensibilidade, no entanto, não é o único limitante 2.2.1 Hemaglutinação
dessa técnica. O custo elevado do equipamento
e a exigência de técnicos altamente capacitados Vários vírus possuem proteínas de superfí-
para a operação e interpretação dos resultados cie que se ligam a eritrócitos, provocando a sua
também representam limitações. O período ne- agregação e aglutinação, fenômeno denominado
cessário para a obtenção dos resultados varia en- hemaglutinação (HA) (Tabela 3.1). A propriedade
tre 15 minutos, nos casos em que o material é ob- de aglutinar eritrócitos é restrita a algumas famí-
servado diretamente no microscópio, até alguns lias de vírus (exemplos: ortomixovírus e para-
dias quando há necessidade do processamento mixovírus) e, para cada um desses vírus, a HA
prévio da amostra para aumentar a possibilidade ocorre apenas com eritrócitos de determinadas
de detecção. Pode-se também realizar a ME em espécies animais. Nos vírus da influenza, por
células de cultivo previamente inoculadas com o exemplo, a ligação entre a proteína do envelope
material suspeito. viral (hemaglutinina ou HA) com o ácido N-ace-
A sensibilidade da ME pode ser aumentada tilneuramínico da membrana dos eritrócitos de
pelo uso de técnicas que permitam a concentração galinha é a responsável pela aglutinação. Basean-
e facilitem a visualização das partículas víricas. A do-se nesse princípio, a técnica de HA pode ser
clarificação de amostras por centrifugação de bai- utilizada para a detecção dos vírus que possuem
xa rotação é empregada para remover partículas essa propriedade biológica. O teste é realizado
e substâncias que possam interferir na técnica. pela incubação de uma suspensão de eritrócitos
A ultracentrifugação é utilizada com o objetivo com o material suspeito (puro ou em diluições)
de concentrar as partículas virais. A aglutinação em microplacas com fundo em “V” ou “U”. Após
com soro hiperimune é rotineiramente utilizada o período de incubação, a presença do agente
e denomina-se imunoeletromicroscopia. Nesta hemaglutinante será indicada pela formação de
metodologia, utiliza-se um soro hiperimune es- uma rede difusa de eritrócitos no poço. Em amos-
pecífico contra o agente suspeito, cujos anticor- tras negativas (ausência do agente hemaglutinan-
pos irão se ligar e promover a concentração das te), as hemácias não serão aglutinadas, irão rolar
partículas, facilitando a visualização. Anticorpos e se acumular no fundo da cavidade, formando
marcados com micropartículas de ouro (técnica um botão bem definido (Figura 3.2). Esse teste é
de imunogold) também são utilizados para au- de fácil execução, porém falha em detectar quan-
64 Capítulo 3

Tabela 3.1. Vírus com atividade hemaglutinante sobre eritrócitos animais

Vírus Fonte de vírus Eritrócitos (espécie)

Adenovírus bovino (BAdV) Sobrenadante de cultivo celular Rato, bovino ou macacos rhesus
BOVINOS

Amostras fecais e sobrenadante


Coronavírus bovino (BoCV) Camundongo, hamster e rato
de cultivo celular

Parainfluenza 3 bovino (bPI-3) Sobrenadante de cultivo celular Bovino e cobaia

Encefalomielite eqüina Macerado de cérebro de Ganso ou pinto de 1 dia


(EEEV, WEEV) camundongo
EQÜINOS

Sobrenadante de cultivo celular


Influenza eqüina Galinha e cobaia
ou líquido amniótico

Adenovírus eqüino (EAdV) Sobrenadante de cultivo celular Rato ou macaco rhesus


Suspensão de cérebro de
Encefalite japonesa (JEV) Ganso ou pinto de 1 dia
camundongo
Peste suína africana (ASFV) Sobrenadante de cultivo celular Suíno

Encefalomielite Sobrenadante de cultivo celular Galinha, rato, camundongo e


SUÍNOS

hemaglutinante dos suínos hamster


Influenza suína (SIV) Fluido alantóide Galinha

Extratos de tecidos fetais ou Humano, macaco, camundongo,


Parvovírus suíno (PPV)
sobrenadante de cultivo celular cobaia, gato, galinha e rato

Adenovírus canino (CAdV) Sobrenadante de cultivo celular Rato, macaco rhesus, humano e aves
CANINOS e
FELINOS

Amostras fecais ou
Parvovírus canino (CPV) Suíno ou macaco rhesus
sobrenadante de cultivo

Panleucopenia felina (FPLV) Amostras fecais ou Suíno ou macaco rhesus


sobrenadante de cultivo

Influenza aviária (AIV) Fluido alantóide Mamíferos e aves

Doença de Newcastle (NDV)


AVES

Fluido alantóide Galinha

Bronquite infecciosa
Fluído corioalantóide Galinha
aviária (IBV)
LEPORINO

Doença hemorrágica dos Suspensão de tecidos e


Humano do tipo O
coelhos (RHDV) sobrenadante de cultivo

tidades pequenas de vírus. Outra restrição é que pos antivirais no soro de animais foi desenvolvi-
a atividade hemaglutinante é uma propriedade do e denomina-se inibição da hemaglutinação (HI).
restrita a algumas famílias de vírus, ou seja, a téc- A técnica de HI pode ser utilizada tanto para
nica não possui aplicação universal. a detecção de anticorpos antivirais como para a
A atividade hemaglutinante pode ser inibida identificação de vírus hemaglutinantes. Após a
pela presença de anticorpos anti-hemaglutininas detecção da atividade HA, a técnica de HI é rea-
específicos. Os anticorpos específicos irão ligar-se lizada, utilizando-se um anti-soro específico con-
à proteína hemaglutinante do vírus, impedindo a tra o vírus suspeito para confirmar o diagnóstico.
ligação desta com os eritrócitos. Dessa maneira, A aplicação desse método em diagnóstico será
um método para se detectar e quantificar anticor- abordada com detalhes no Capítulo 11.
Detecção, identificação e quantificação de vírus 65

para a detecção de ortomixovírus, paramixovírus


e asfarvírus.

+ 2.3 Detecção de antígenos virais

Amostra Eritrócitos
suspeita
2.3.1 Imunofluorescência

Incubação A imunofluorescência (IFA) é uma técnica


1 hora
de detecção de antígenos e baseia-se na reação de
anticorpos específicos com o antígeno presente
no material suspeito. Os anticorpos são conjuga-
dos com uma substância que emite luminosidade
fluorescente (fluoresceína) quando exposta à luz
ultravioleta (UV). A presença do antígeno no ma-
terial é revelada pela emissão de luminosidade
fluorescente. Essa metodologia pode ser aplicada
em monocamada de células, em esfregaços celu-
lares, em tecidos frescos, congelados ou incluídos
em parafina. Geralmente, o material deve ser
previamente fixado em etanol, metanol ou ace-
tona. Após a fixação, incuba-se o material com o
anticorpo específico marcado com o fluorocromo
(FITC – isotiocianato de fluoresceína ou Texas
Red). Posteriormente, sucessivas lavagens são re-
alizadas para a remoção do anticorpo não-ligado.
A Amostra B Amostra O material é, então, examinado ao microscópio
positiva negativa
de luz UV. A coloração verde-maçã ou vermelha
(para anticorpos marcados com FITC e Texas Red,
Figura 3.2. Teste de hemaglutinação (HA) para a respectivamente), visualizada contra um fundo
pesquisa de vírus. A amostra suspeita de conter o vírus é escuro, indica a presença de antígenos virais na
misturada com uma suspensão de eritrócitos e incubada amostra. A emissão de fluorescência resulta da
a 37 °C por 1 hora. (A). A presença do vírus é indicada
pela aglutinação dos eritrócitos e formação de uma rede excitação do fluorocromo conjugado ao anticor-
fina difusa no fundo da cavidade; (B). Na ausência do po quando exposto à luz UV. O resultado final é
vírus, os eritrócitos rolam para o fundo da cavidade, a observação de uma região ou de toda a célula
formando um botão de contorno bem definido.
corada, pois as proteínas virais estão dispersas no
2.2.2 Hemadsorção seu interior (Figura 3.3).
Existem basicamente duas variantes da téc-
Durante o ciclo replicativo de alguns vírus nica: a imunofluorescência direta (IFD) e a indi-
em cultivo celular, determinadas proteínas virais reta (IFI). Na IFD, o anticorpo primário (mono-
são expostas na superfície das células infectadas. clonal ou policlonal) específico para o agente é
Algumas dessas proteínas possuem a capacidade marcado com o fluorocromo e adicionado direta-
de se ligar a eritrócitos quando esses são adiciona- mente sobre a amostra. No caso da IFI, a técnica
dos ao meio de cultivo. Esse processo é denomi- é realizada em duas etapas. A primeira incuba-
nado hemadsorção (HAD), e é restrito à interação ção é realizada com o anticorpo primário espe-
de alguns vírus com eritrócitos de certas espécies cífico para os antígenos virais e, após a remoção
de mamíferos e aves. A HAD é um indicativo da dos anticorpos que não se ligaram aos antígenos,
presença desses vírus no material suspeito. Essa por sucessivas lavagens, adiciona-se o anticorpo
técnica é de simples execução, sendo empregada secundário, marcado com o fluorocromo. O anti-
66 Capítulo 3

corpo secundário (específico para a espécie ani- ou peroxidase) ou a fosfatase alcalina (AP). O
mal na qual foi produzido o anticorpo primário) termo IPX tem sido utilizado quase como sinô-
reconhece e se liga ao anticorpo primário. nimo, embora deva ser ressaltado que essa não é
A IFA é uma técnica simples e se constitui a única enzima utilizada na técnica. Essa técnica
em uma das técnicas mais utilizadas em Viro- pode ser aplicada em monocamadas celulares,
logia, possuindo diversas aplicações, incluindo esfregaços ou diretamente em tecidos, sendo de-
o diagnóstico de infecções víricas. A aplicação nominada de imunocitoquímica (ICQ) ou imu-
dessa técnica em diagnóstico será abordada no noistoquímica (IHC), respectivamente. A meto-
Capítulo 11. Como desvantagens, incluem-se a dologia é semelhante à IFA, existindo também a
necessidade de um microscópio de luz UV e a IPX direta e indireta. Na IPX direta, o material
possibilidade de alguns tecidos ou células emiti- fixado é incubado com o anticorpo antiviral mar-
rem fluorescência natural, o que pode dificultar a cado com a enzima, seguido da lavagem e adição
interpretação do resultado. do substrato. A presença do antígeno no material
é revelada pela ação da enzima no substrato. Uti-
lizam-se substratos cromogênicos (aminoetilcar-
A B
bazol – AEC; diaminobenzidina – DAB; ou 4-clo-
Imunofluorescência Imunofluorescência
direta indireta ronaftol) que produzem uma coloração marrom
ou marrom-carmim pela ação da enzima e for-
mam um precipitado na célula positiva (Figura
3.4). A IPX indireta utiliza o anticorpo primário
específico para o antígeno, e o anticorpo secun-
Célula infectada Anticorpo antivírus
dário é marcado com a enzima. Essa variação da
Antígenos virais Anticorpo
Anticorpo anti-IgG-FITC A B
antivírus-FITC
Imunoperoxidase Imunoperoxidase
direta indireta

Célula infectada Anticorpo antivírus


Antígenos virais Anticorpo
anti-IgG-HRPO
Anticorpo
antivírus – HRPO Substrato

Figura 3.3. Ilustração demonstrativa da técnica de


imunofluorescência para a detecção de antígenos virais
em células. (A) Imunofluorescência direta (IFD); (B)
Imunofluorescência indireta (IFI).

2.3.2 Imunoperoxidase

A técnica de imunoperoxidase (IPX) baseia-


se no mesmo princípio da IFA, com a diferença Figura 3.4. Ilustração demonstrativa da técnica de
imunoperoxidase (IPX) para a detecção de antígenos
que os anticorpos são marcados com uma enzi- virais em células. (A). Imunoperoxidase direta; (B)
ma, que pode ser a horseradish peroxidase (HRPO Imunoperoxidase indireta.
Detecção, identificação e quantificação de vírus 67

técnica apresenta maior sensibilidade devido à para o vírus, conjugado com a enzima (HRPO ou
amplificação do sinal. A técnica de IPX possui AP). Novamente os anticorpos que não se liga-
as mesmas aplicações da IFA, porém apresenta ram são removidos por lavagens. A confirmação
a vantagem de não necessitar do microscópio de da presença do antígeno viral é evidenciada pela
luz UV, já que as reações podem ser visualizadas adição de substrato e desenvolvimento da colo-
sob microscopia ótica comum. ração específica nas amostras negativas. A leitura
é realizada pela inspeção visual ou pelo uso de
fotocolorímetro.
2.3.3 Ensaio imunoenzimático
A B
O teste imunoenzimático (ELISA) pode ser
utilizado para a detecção de antígenos virais e Anticorpos
antivirais
também de anticorpos. É uma técnica que apre-
senta vantagens, tais como: a boa sensibilidade,
Incubação da Lavagem
especificidade, baixo custo, repetibilidade e ver- amostra suspeita
satilidade. Em alguns casos, o uso da técnica per-
mite a detecção de até 1 ng (nanograma) de antí- Antígenos na
geno por grama de tecido coletado diretamente amostra
suspeita
do animal. Os testes podem ser executados em
amostras individuais, como recurso diagnóstico Anticorpo Lavagem
antivírus
em clínicas ou consultórios; ou em grande esca-
la, como realizado em laboratórios totalmente
Anticorpos
automatizados. A técnica permite uma variação marcados
de formas e aplicações, dependendo do objetivo e
da disponibilidade de reagentes. Basicamente, os Adição do
substrato
testes de ELISA podem ser classificados em dire-
tos, indiretos ou de competição. Mudança
A técnica baseia-se na imobilização da re- de cor

ação antígeno-anticorpo em um suporte sólido Positivo Negativo


(placas de poliestireno), seguida de uma reação
colorimétrica. Por se tratar de uma técnica que
Figura 3.5. Ilustração demonstrativa do ensaio
apresenta inúmeras variações, neste capítulo será
imunoenzimático (ELISA) para a detecção de antígenos.
apresentado apenas o fundamento geral da técni- (A) Amostra positiva; (B) Amostra negativa.
ca. Para um detalhamento maior, recomenda-se a
literatura específica. 2.3.4 Radioimunoensaio
Um exemplo simplificado para facilitar o
entendimento da técnica será brevemente descri- O método de radioimunoensaio (RIA) de
to. No ELISA de captura direto (Figura 3.5) para detecção de antígenos foi muito utilizado antes
detecção de antígenos virais, placas de 96 cavi- do surgimento dos testes de ELISA. A diferença
dades são recobertas com anticorpos específicos básica entre os dois métodos reside no tipo de
para um determinado agente. A amostra suspei- marcação utilizada. Na RIA, utiliza-se um isó-
ta da presença viral (sangue, secreções ou leite) é topo radioativo em vez de enzima. O método é
adicionada e incubada por um determinado tem- muito sensível e pode ser automatizado, porém
po. Nesse período, ocorre a captura do antígeno os equipamentos requeridos são caros. A prin-
(amostras positivas) pelo anticorpo fixado na pla- cipal restrição do teste refere-se ao uso de subs-
ca. Após essa etapa, são realizadas lavagens para tâncias radioativas e ao descarte dos reagentes.
a remoção de substâncias inespecíficas. A seguir Dessa forma, a técnica encontra-se em desuso
adiciona-se um segundo anticorpo, específico progressivo.
68 Capítulo 3

2.3.5 Imunocromatografia matriz de ágar. As amostras difundem-se radial-


mente pelo gel e, ao se encontrarem, proporcio-
A imunocromatografia é uma técnica de nam a reação antígeno-anticorpo, seguida da in-
visualização simples, geralmente realizada em solubilização e precipitação. A precipitação deste
dispositivos plásticos, podendo ser executada em complexo forma linhas opacas no gel (linhas de
clínicas e ambulatórios. A prova é baseada na rea- precipitação), que podem ser visualizadas a olho
ção antígeno-anticorpo, em que a amostra suspei- nu, com o auxílio de uma fonte de luz (ver Figura
ta (vírus ou antígenos virais) é passada através de 11.9, no Capítulo 11). A IDGA é uma técnica bas-
um filtro e, então, impregnada em uma membra- tante difundida para a detecção de anticorpos,
na, onde reagirá com o anticorpo específico pre- porém sem muita aplicabilidade para a detecção
viamente imobilizado. A presença do antígeno é de antígenos ou partículas víricas.
revelada pelo aparecimento de focos ou bandas
coloridas, pois os reagentes são conjugados com 2.3.8 Imunoblots
substâncias cromógenas. O resultado depende
essencialmente da qualidade dos reagentes. Um O princípio dos imunoblots é semelhante ao
dos problemas do teste é o seu custo elevado. Vá- da IPX. Os antígenos virais são detectados pelo
rios testes diagnósticos são baseados nesse prin- uso de anticorpos marcados com enzimas, que
cípio (Capítulo 11). agem no substrato, provocando mudança de cor.
A diferença fundamental entre a IPX e os imuno-
2.3.6 Aglutinação em látex blots é que o material suspeito deve ser previa-
mente solubilizado e imobilizado em um suporte
O ensaio de aglutinação em látex provavel- sólido, geralmente membranas de nitrocelulose
mente seja o método mais simples de detecção de ou nylon. A membrana é, então, incubada com
antígenos virais. O princípio da técnica baseia-se o anticorpo antiviral não-marcado (anticorpo pri-
na mistura do material suspeito com anticorpos mário), seguido de lavagem e incubação com um
previamente adsorvidos a partículas de látex. A anticorpo antiespécie do anticorpo primário (an-
presença do antígeno resultará na sua ligação ticorpo secundário) conjugado a uma enzima. A
aos anticorpos e na aglutinação das partículas. presença do antígeno pesquisado é revelada pela
A leitura da reação é visual e pode ser realizada adição do substrato, que muda de coloração pela
imediatamente após a sua execução. Esta técnica ação da enzima. Substratos que emitem lumino-
tem aceitação por pequenos laboratórios e entre sidade capturável em filmes de raios X também
técnicos de campo. As suas principais restrições têm sido utilizados e aumentam a sensibilidade
referem-se à baixa sensibilidade e especificidade. da técnica (Figura 3.6).
Por isso, resultados falso-negativos são freqüen- Existem duas variações principais dos imu-
tes, a não ser que grandes quantidades de antí- noblots: os dot/slot blots e o Western blot (WB). No
genos estejam presentes no material suspeito. A dot/slot blot, o homogenado de proteínas é dire-
resolução dos problemas de sensibilidade e espe- tamente imobilizado na membrana, em pontos
cificidade pode aumentar a sua aplicabilidade. (dots) ou fendas (slots), seguida pela detecção com
os anticorpos. Essa variação da técnica é mais
2.3.7 Imunodifusão em ágar simples e rápida, porém não fornece informa-
ções acerca da massa da proteína detectada. No
O teste de IDGA foi desenvolvido para a WB, as proteínas solubilizadas são separadas por
detecção de antígenos, porém tem sido mais uti- eletroforese em um gel de poliacrilamida (SDS-
lizado para a detecção de anticorpos. A prova é PAGE), transferidas para a membrana e, então,
baseada na precipitação de complexos antígeno- submetidas à detecção com os anticorpos marca-
anticorpos em gel de ágar. O ensaio é realizado dos. Essa técnica permite a detecção da proteína e
pela adição da amostra suspeita e do soro con- também a determinação de sua massa molecular,
trole em orifícios em posições opostas em uma pelo padrão de migração no gel.
Detecção, identificação e quantificação de vírus 69

nósticos, deve ser realizada com cautela. O resul-


Amostra positiva tado positivo pode não significar necessariamente
a associação do agente suspeito com a doença em
Substrato questão. O material genético de agentes que pro-
Anticorpo anti-IgG-HRPO duzem infecções latentes, como os herpesvírus,
Anticorpo antivírus (IgG) pode ser detectado sem que os agentes estejam,
Antígeno viral necessariamente, associados com a enfermidade
Membrana em questão.
A detecção de ácidos nucléicos possui apli-
Amostra negativa
cação especial para os vírus de difícil adapta-
ção ao cultivo celular; casos em que o material
suspeito contenha pequenas quantidades do
Removidos
pelas lavagens agente, que esteja com viabilidade comprometi-
da por problemas de conservação e em estudos
retrospectivos. Essas técnicas também possuem
Membrana
- + - aplicações importantes na detecção de infecções
latentes, quando o único indicador da infecção é
a presença do genoma do agente.
Figura 3.6. Western blot para a detecção de proteínas
virais. Os antígenos são separados por eletroforese em
gel de poliacrilamida, transferidos e imobilizados em 2.4.1 Técnicas de hibridização
uma membrana de nitrocelulose. A membrana é (Southern/Northern blot)
incubada com o anticorpo primário (anti-antígeno) e
subseqüentemente com o anticorpo secundário
conjugado com a enzima peroxidase. A presença do A detecção de ácidos nucléicos virais pelo
antígeno é revelada pela ação da enzima no substrato
que resulta na marcação do filme de raios X no local
uso de sondas marcadas com isótopos radioati-
correspondente à migração da proteína-alvo. vos ou com enzimas tem sido muito utilizada em
Virologia, tanto em diagnóstico como em pesqui-
2.4 Detecção/identificação de ácidos sa. A técnica baseia-se na complementaridade
nucléicos das moléculas de DNA ou RNA. Inicialmente,
escolhe-se a região-alvo do genoma a ser detecta-
As seqüências únicas de nucleotídeos do ge- do, que deve ser um segmento conservado entre
noma dos vírus, associadas com técnicas de am- isolados de campo. A sonda deve ser sintetizada
plificação e hibridização de ácidos nucléicos, pro- com base na seqüência de nucleotídeos da re-
porcionaram o desenvolvimento de metodologias gião-alvo e deve ser exatamente complementar
para a detecção e identificação de agentes virais a esta. Essa sonda pode ser um oligonucleotídeo
em uma variedade de amostras. As técnicas de sintético, um segmento de DNA inserido em um
hibridização e a reação em cadeia da polimerase plasmídeo ou um produto de PCR. A sonda é,
(PCR) tornaram-se muito úteis para a detecção e então, conjugada com um isótopo radioativo ou
identificação de agentes virais e impulsionaram com uma enzima, para possibilitar a sua detec-
os estudos da biologia molecular desses agentes. ção. O material suspeito é imobilizado em uma
A disponibilidade das seqüências genômicas dos membrana, seguido pela incubação com a sonda
vírus em bancos de dados possibilitou a iden- marcada e de lavagens para remover as sondas
tificação de regiões conservadas, viabilizando não-ligadas. Na presença do ácido nucléico do
a síntese de primers e de sondas, utilizadas nas vírus suspeito, a sonda irá hibridizar com a se-
técnicas de PCR e hibridização, respectivamente. qüência-alvo. A presença da sonda revela-se pela
A interpretação dos resultados dessas técnicas, exposição da membrana a um filme de raios X ou
principalmente quando utilizadas com fins diag- pela adição de substrato (Figura 3.7).
70 Capítulo 3

Filme de raios X
Amostra positiva Amostra negativa

Radioatividade Removidas

C
CA

A
pelas lavagens

C
A
TG
Sonda marcada

G
C CAT GACA

T
A
' 'G' T' A' C' 'T'G' T' T A T T

A
CA
DNA/RNA viral

C
AT C G

C
Membrana Membrana

Figura 3.7. Técnica de hibridização de ácidos nucléicos (dot blot). O material genético do vírus é extraído de tecidos e
imobilizado em áreas de uma membrana. Posteriormente a membrana é incubada com uma sonda com seqüência de
nucleotídeos complementar ao DNA do vírus, marcada com uma substância radioativa. A presença do DNA viral é
revelada pela marcação do filme de raios X pela emissão radioativa da sonda.

A técnica de hibridização possuiu variações Essa metodologia tem sido amplamente utilizada
de acordo com o ácido nucléico a ser detectado para a localização espacial e temporal da presen-
e com a forma como o material é imobilizado ça e expressão de determinados genes. Também é
na membrana. Quando o ácido nucléico (DNA, utilizada na identificação de agentes causadores
RNA) é imobilizado diretamente na membrana, a de tumores. O princípio da técnica é o mesmo da
técnica é denominada dot ou slot blot. A presença anterior, porém o ácido nucléico é detectado di-
do ácido nucléico será demonstrada pelo apareci- retamente nos cortes de tecido. A reação é revela-
mento de uma marca ou borrão no local onde foi da pelo uso de sondas marcadas com substâncias
aplicado o material. Porém, se o material for pre- radioativas ou com proteínas que são, posterior-
viamente submetido à eletroforese, para a sepa- mente, detectadas com o auxílio de anticorpos.
ração das moléculas de ácido nucléico de acordo As reações positivas podem ser visualizadas pela
com o tamanho, e então transferido para a mem- exposição a filmes radiográficos líquidos ou com
brana, a técnica denomina-se Southern blot (para uso de substâncias cromógenas, permitindo a lo-
DNA) ou Northern blot (para RNA). A reação po- calização e identificação das células infectadas.
sitiva aparece na forma de bandas marcadas na Devido ao fato de ser trabalhosa e demorada, a
membrana, correspondentes à migração do ácido ISH não é utilizada na rotina laboratorial, sendo
nucléico durante a eletroforese. Em razão da ne- empregada em casos específicos, principalmente
cessidade da eletroforese e transferência para a em estudos de patogenia.
membrana, as técnicas de Southern e Northern blot
são mais trabalhosas e demoradas, porém os re- 2.4.3 Reação da polimerase em cadeia
sultados são mais informativos.
As técnicas de hibridização possuem boa A reação da polimerase em cadeia (PCR) é
sensibilidade e especificidade, e, quando imple- uma técnica altamente específica e sensível, que
mentadas na rotina do laboratório, permitem a consiste na síntese in vitro de uma grande quan-
obtenção dos resultados em poucos dias. Outra tidade de cópias de um segmento de DNA exis-
vantagem é que podem ser aplicadas a qualquer tente na amostra. Ou seja, consiste em amplificar
agente infeccioso, necessitando-se apenas de uma o número de moléculas a partir de uma molécu-
sonda específica. As restrições dessas técnicas re- la-alvo original, denominada template ou molde.
ferem-se à necessidade de pessoal especializado Essa amplificação pode ser realizada a partir de
e à disponibilidade de reagentes. uma quantidade mínima do ácido nucléico-alvo;
uma PCR bem padronizada, teoricamente, é ca-
2.4.2 Hibridização in situ paz de detectar e amplificar até uma única cópia
do molde existente na amostra.
A hibridização in situ (ISH) detecta a presen- A região-alvo a ser amplificada é delimitada
ça do material genético do agente (DNA ou RNA) por primers, que são oligonucleotídeos sintéticos
diretamente em cortes histológicos de tecidos. de aproximadamente 20 nucleotídeos. Esses pri-
Detecção, identificação e quantificação de vírus 71

mers hibridizam com suas regiões complemen- léculas correspondentes à seqüência-alvo duplica
tares, que se localizam nas cadeias opostas do e, no final da reação, acumulam-se milhões de có-
DNA, nas regiões flanqueadoras da seqüência- pias idênticas correspondentes à seqüência-alvo
alvo. Os primers são sintetizados de acordo com a inicial. Essas moléculas, denominadas generica-
seqüência a ser amplificada, e a sua especificidade mente de produtos de PCR (ou amplicons), po-
depende do seu grau de conservação e comple- dem, então, ser detectadas visualmente em géis
mentaridade com a seqüência-alvo. A reação de de agarose, corados com brometo de etídio, sob
PCR envolve a realização de vários ciclos (entre luz UV (Figura 3.8). Os produtos de PCR podem
30 e 40) de desnaturação (separação da fita du- também ter a sua identidade confirmada por hi-
pla), hibridização dos primers e polimerização da bridização com sondas específicas. Essa técnica
cadeia de DNA a partir dos primers, pela enzima tem tido inúmeros usos nos diversos campos da
DNA polimerase. A cada ciclo o número de mo- Biologia e Medicina.

Seqüência-alvo
Molécula de DNA 270pb
''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''
Denaturação (95°C)

'''''''''
''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''
Primer 2
Primer 1 '''''''''
Reduz a '''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''' Eleva a
temperatura temperatura

1 ciclo 50-60°C 72°C


Eleva a
'''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''' temperatura
''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''
Anelamento
Polimerização
dos primers

''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''

''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''

''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''

'''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''' O número de cópias


30 ciclos duplica a cada ciclo
''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''

''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''

''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''

Gel de agarose

250pb

M 1 2 3 4 5

Figura 3.8. Ilustração demonstrativa da técnica de reação em cadeia da polimerase (PCR). A partir da molécula molde
original (genoma viral), um segmento específico é amplificado por sucessivas etapas de síntese de DNA. O produto
da amplificação pode ser visualizado sob luz UV em um gel de agarose corado com brometo de etídio, após migração
por eletroforese. O tamanho dos produtos pode ser comparado com um marcador molecular de massa conhecida. (M)
marcador molecular, (1) controle negativo, (2) controle positivo, (3, 4 e 5) amostras teste.
72 Capítulo 3

A grande difusão da PCR somente foi possí- Em relação à PCR tradicional, a nested-PCR
vel após a identificação de uma enzima polimera- possui as vantagens de maior sensibilidade (duas
se de DNA resistente ao calor (Taq – Thermophilis etapas de amplificação) e especificidade. Uma va-
aquatics), o que levou à simplificação da técnica riação dessa técnica é o semi-nested PCR, em que,
associado com o desenvolvimento de equipa- na segunda reação, utiliza-se um primer interno
mentos cada vez mais acessíveis. Essas novas tec- e em conjunto com um dos primers da primeira
nologias proporcionaram um domínio maior da reação.
técnica e o desenvolvimento de variações, como
O método da multiplex-PCR baseia-se na uti-
a nested-PCR, multiplex-PCR, RT-PCR e real-time
lização de dois ou mais pares de primers na mes-
PCR.
ma reação. Cada conjunto de primer é específico
A nested-PCR é realizada em duas etapas. Na
para uma região do agente ou de diferentes agen-
primeira etapa, um determinado segmento é am-
plificado pelo método tradicional. Uma segunda tes. Devido a sua versatilidade, essa técnica é uti-
etapa é, então, realizada, utilizando-se o produto lizada para a busca de variantes do mesmo vírus
da primeira reação como molde e um outro con- ou no diagnóstico de enfermidades que podem
junto de primers, complementares às seqüências ser causadas por diferentes agentes. Um exemplo
localizadas internamente no produto da primeira é o diagnóstico de aborto em bovinos, quando é
reação. Com isso, uma seqüência interna do pri- realizada uma reação com diferentes pares de pri-
meiro produto é reamplificada (Figura 3.9). mers, cada conjunto sendo específico para um dos
agentes suspeitos.
Seqüência-alvo 1 A técnica de RT-PCR (reverse transcriptase
DNA molde PCR) consiste na amplificação de segmentos de
''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''
Primer 2 RNA. Através da transcrição reversa, realizada
Primer 1
'''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''' pela ação da enzima transcriptase reversa, uma
Primeira cópia de DNA complementar (cDNA) é sinteti-
30 ciclos
reação zada a partir da RNA viral (genoma ou produto
intermediário do processo de replicação). Essa
''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''
Produtos da
'''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''' primeira
nova molécula sintetizada será usada como tem-
'''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''' reação plate (molde) para a reação de PCR convencional.
O desenvolvimento desta técnica proporcionou
um grande avanço no estudo e diagnóstico dos
Seqüência-alvo 2 vírus RNA.
DNA molde O PCR em tempo real (real time PCR) é uma
'''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''' variação do PCR, com a capacidade de se detec-
Primer 3 Primer 4
''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''
tar e quantificar a amplificação do produto à me-
Segunda
30 ciclos
dida que vai sendo sintetizado. Essa técnica uti-
reação
liza, além dos primers, uma sonda marcada com
'''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''' Produtos da um fluorocromo. A sonda é complementar a uma
'''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''''' segunda região interna do produto e é marcada com uma
' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' ' reação
substância fluorogênica. A cada ciclo de síntese,
o fluorocromo é liberado da sonda e essa libera-
ção é captada e medida na forma de intensidade
Figura 3.9. A reação de PCR-nested é realizada em duas
etapas. Na primeira etapa, é utilizado um par de primers luminosa. Esta técnica tem grande aplicabilidade
externos (1 e 2), que permitem a amplificação de um quando a quantificação do ácido nucléico pre-
segmento do genoma viral (seqüência-alvo 1). A segunda
sente na amostra é necessária. Também possui
etapa utiliza o produto da primeira reação como molde.
Esta utiliza um par de primers internos (3 e 4), que aplicabilidade em diagnóstico de viroses de im-
permitem a amplificação de um segmento interno à portância sanitária estratégica (exemplos: febre
seqüência inicial (seqüência-alvo 2). O PCR- nested é
utilizado para aumentar a sensibilidade e especificidade aftosa e peste suína clássica), pois permite a ob-
da amplificação. tenção dos resultados em poucas horas.
Detecção, identificação e quantificação de vírus 73

2.4.5 Análise de restrição tera o sítio e resulta em falha de clivagem. Assim,


o genoma de um determinado vírus DNA é cli-
Diferentes isolados de vírus podem ser vado com um conjunto de enzimas, produzindo
identificados e distinguidos entre si pela análise um conjunto de fragmentos de determinados ta-
dos fragmentos gerados pela clivagem de seus manhos. Outros isolados do vírus que possuam
genomas por enzimas de restrição (endonucle- diferenças em quaisquer dos sítios de clivagem
ases, Figura 3.10). Essas enzimas clivam o DNA irão gerar padrões de clivagem distintos, poden-
em seqüências específicas, compostas por quatro do-se, assim, fazer a diferenciação entre isola-
a oito bases; a alteração em uma dessas bases al- dos. A análise por restrição enzimática (REA) foi
muito utilizada na classificação e caracterização
Genoma BoHV - 1 135.301bp Genoma BoHV - 5 138.390bp de isolados de campo. Atualmente, o advento e
difusão do seqüenciamento de DNA substituiu,
com algumas vantagens, essa técnica, que se en-
Sítios de clivagem da enzima BamHI contra restrita a alguns vírus ou em desuso.

2.4.4 Eletroforese em gel de


poliacrilamida
9 locais de clivagem 16 locais de clivagem
A técnica de eletroforese em gel de poliacri-
DNA viral genômico lamida (SDS-PAGE), além de ser usada para se-
paração de proteínas nos passos iniciais do WB,
Enzima de restrição BamHI = também é utilizada para a detecção do genoma
Digestão do genoma em fragmentos e em estudos epidemiológicos de rotavírus, cujo
genoma é composto por vários segmentos de
RNA. Uma característica dos rotavírus é a pre-
Eletroforese em agarose sença de sorogrupos (ver Capítulo 30), que são
correlacionados com diferenças na extensão des-
ses segmentos. Essas diferenças irão produzir um
BoHV - 1

BoHV - 5

padrão de migração na eletroforese, e isso será


utilizado para a identificação do agente e classi-
ficação em sorogrupos. A metodologia consiste
na extração do RNA a partir de fezes, separa-
ção dos fragmentos por SDS-PAGE e coloração
do gel com nitrato de prata. Após a realização
desse procedimento, as bandas correspondentes
aos segmentos genômicos são analisadas, e os
padrões de migração dos segmentos são com-
parados. O SDS-PAGE possui boa sensibilidade
e especificidade quando comparado com outras
técnicas de detecção dos rotavírus.

Figura 3.10. Ilustração demonstrativa da análise de


restrição do genoma do herpesvírus bovino. A enzima
3 Multiplicação de vírus
BamHI reconhece e cliva o genoma do herpesvírus
bovino tipo 1 (BoHV-1) em nove sítios (A) e o genoma A obtenção de vírus em grandes quantida-
do BoHV-5 em 16 locais (B). Os produtos da digestão são
separados por eletroforese em agarose e visualizados
des é essencial para diversos procedimentos viro-
sob luz UV. Os diferentes padrões de clivagem resultam lógicos. Após o seu isolamento, o vírus deve ser
em fragmentos de tamanho diferentes, cuja análise identificado e caracterizado. Para isso, deve ser
comparativa permite a identificação dos respectivos
amplificado a partir da amostra original. Quan-
genomas. No exemplo acima, os locais de clivagem e o
tamanho dos fragmentos são meramente ilustrativos. tidades consideráveis de vírus são necessárias
74 Capítulo 3

para a realização de testes sorológicos (soro-neu- dongos lactentes é ocasionalmente utilizada para
tralização – SN, HI), produção de antígenos para o diagnóstico do FMDV. Para alguns vírus que
a imunização de animais (obtenção de anti-soros não replicam eficientemente em cultivo celular,
ou anticorpos monoclonais) ou para uso como como o vírus da peste suína africana (ASFV), a
imunógenos em vacinas. A reprodução da mani- inoculação de animais, para se obter altos títulos
festação clínica de uma enfermidade, sob condi- do vírus, é empregada.
ções experimentais, também requer altos títulos
do vírus. Em resumo, a rotina de um laborató- 3.2 Inoculação em ovos embrionados
rio de virologia envolve necessariamente etapas
repetidas e contínuas de multiplicação de vírus Vários vírus de aves e alguns de mamíferos
com finalidades diversas. Como os vírus neces- replicam com eficiência em tecidos de embrião de
sitam células vivas para se multiplicar, sistemas galinha. A habilidade desses vírus em se multi-
biológicos são utilizados com esse propósito. plicar nesse sistema biológico tem sido utilizada
Três sistemas biológicos têm sido classicamente para a multiplicação de vírus em laboratório, seja
utilizados para a multiplicação de vírus: animais para a detecção de vírus em material clínico, seja
susceptíveis, ovos embrionados de galinha (OE) para a amplificação de vírus. Essa metodologia
e cultivos celulares. teve grande difusão antes do desenvolvimento
e estabelecimento dos cultivos celulares, porém,
nos dias atuais, está limitada a poucos vírus,
3.1 Inoculação em animais susceptíveis
principalmente àqueles que não replicam em cul-
tivos.
Durante muitos anos, a reprodução da do- O material pode ser inoculado por várias
ença em animais se constituiu na forma mais ob- vias, dependendo do agente suspeito (Figura
jetiva de detecção de vírus em material suspeito. 3.11). A presença do agente pode ser evidencia-
A inoculação de animais também serviu para a da pelo desenvolvimento de lesões macro e mi-
amplificação do agente para diversos fins, entre croscópicas características no embrião e/ou nas
eles a produção de vacinas. Os fatores limitantes membranas vitelínicas (Tabela 3.2). Também se
para esse procedimento incluem o custo elevado pode observar retardo no desenvolvimento e
de manutenção, a imunidade prévia dos animais morte do embrião. A presença do agente – e a sua
ao agente e a baixa reprodutibilidade da enfermi- quantificação – também pode ser detectada pela
dade. Nos últimos anos, questões éticas referen- pesquisa da atividade biológica do agente (HA),
tes ao uso experimental de animais somaram-se a de antígenos (IFI) ou de ácidos nucléicos virais
essas restrições. (hibridização, PCR).
No princípio do século, os bovinos eram
inoculados com o vírus da febre aftosa (FMDV)
Cavidade
no epitélio lingual. Após o desenvolvimento de Embrião amniótica
Casca
vesículas, o fluido era coletado, inativado e uti- ||
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lizado para a produção de vacinas. A utilização | ||


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Albumina
de extratos de cérebro de camundongos infecta-
dos com o vírus da raiva (RabV), para a produção Cavidade
||
|| alantóide
de vacinas, é outro exemplo da inoculação em
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animais. Com o desenvolvimento dos cultivos


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Saco da gema Membrana


celulares, essa metodologia deixou de ser utili-
cório-alantóide
zada. Atualmente, a multiplicação de vírus pela
inoculação de animais possui uso muito restrito,
dentre os quais se destacam a prova biológica
para o diagnóstico da raiva em camundongos Figura 3.11. Vias de inoculação de vírus em ovos
lactentes (Capítulo 11). A inoculação de camun- embrionados.
Detecção, identificação e quantificação de vírus 75

Tabela 3.2. Vírus animais que replicam em embriões de pinto e efeitos da replicação

Vírus Idade do embrião Via de inoculação Lesão/conseqüência

Focos esbranquiçados (pocks)


Varíola bovina 10-11 dias Membrana corioalantóide
na membrana, morte do embrião
BOVINO

Vírus da estomatite Membrana corioalantóide ou


7 dias Morte do embrião
vesicular (VSV) cavidade alantóide

Lumpy skin vírus (LSDV) 7 dias Membrana corioalantóide Pocks na membrana cório -alantóide.

Influenza eqüina 10-11 dias Cavidade alantóide -


EQÜINO

Encefalomielite eqüina 10-11 dias Qualquer via Morte do embrião


(EEE, WEE e VEE)
OVINOS

Vírus da língua azul


9-11 dias Intravenosa Morte do embrião
(BTV)

Lesões na membrana
SUÍNO

Vírus da doença de corioalantóide, invasão do sistema


Aujeszky (PRV) 10 dias Membrana corioalantóide nervoso central, e protusão cerebral
do embrião, morte do embrião.
CANINOS e
FELINOS

Retardo do crescimento, distrofia


Raiva (RabV) 7 dias Gema muscular, encefalomalácia

Membrana corioalantóide ou
Newcastle (NDV) 9-11 dias Morte do embrião
AVES

cavidade alantóide

Influenza aviária (AIV) 9-11 dias Cavidade alantóide Morte do embrião

3.3 Inoculação em cultivo celular O isolamento em cultivo celular é considera-


do a prova ouro (golden standard) em diagnóstico
A detecção e identificação de vírus em amos- virológico, sendo utilizada como padrão de com-
tras clínicas, após a sua multiplicação em cultivo paração com qualquer outro método. Esse méto-
celular, constituíram-se em uma das primeiras do também é capaz de detectar amostras ocasio-
formas de detecção viral. O advento dos antibió- nais de vírus em material clínico. Vários agentes
ticos contribuiu de forma decisiva para o desen- virais conhecidos resultaram de achados aciden-
volvimento da Virologia, pois somente a partir tais em cultivo de células, entre estes o circoví-
daí foi possível estabelecer cultivos celulares em rus suíno (PCV-1) e o vírus símio 40 (SV-40). Os
grande escala. A propagação do agente em cul- cultivos celulares ainda se constituem na forma
tivo celular permite que quantidades mínimas mais simples e econômica de obtenção de gran-
de partículas víricas viáveis sejam detectadas, des quantidades de vírus viável para a pesquisa
amplificadas e, posteriormente, caracterizadas. e produção de vacinas.
Para os vírus que replicam bem em células de Devido ao fato de nenhuma linhagem celu-
cultivo, esse sistema biológico possui aplicações lar ser susceptível a todos os vírus, muitos labo-
virtualmente ilimitadas, incluindo: a) isolamento ratórios mantêm cultivos celulares susceptíveis
e identificação com fins diagnósticos; b) obtenção a diferentes agentes. A escolha de um tipo celu-
de estoques virais para caracterização biológica lar para o isolamento ou multiplicação do vírus
e molecular; c) uso em testes sorológicos; d) pro- está, muitas vezes, associada com a espécie de
dução de estoques virais para estudos de patoge- origem do material e com o histórico clínico da
nia; e) produção de antígeno para a imunização enfermidade. Geralmente, são utilizadas células
de animais (produção de anti-soro ou anticorpos originárias da espécie animal de origem do vírus.
monoclonais); f) produção de vacinas, entre ou- No entanto, isso não é regra, pois existem vários
tros. vírus que replicam em células de cultivos de ou-
76 Capítulo 3

tras espécies. Por exemplo, o FMDV é cultivado suem capacidade de multiplicação quase indefi-
em células de rim de hamster (BHK-21); o vírus nida. Por estarem bem adaptadas às condições do
da síndrome reprodutiva e respiratória dos su- cultivo, são de fácil manipulação e propagação.
ínos (PRRSV) é cultivado em células de rim de A maioria dos laboratórios dá preferência a esse
macacos (MA-104); e o herpesvírus eqüino (EHV) tipo de cultivo celular devido à sua uniformidade,
é cultivado em células de rim de coelhos (RK-13) estabilidade e facilidade de manuseio. Por causa
ou em células de rim de macaco-verde africano dessa alta taxa de propagação em laboratório, as
(Vero). linhas celulares podem sofrer alterações morfoló-
Basicamente existem dois tipos principais gicas e fisiológicas que alteram a sensibilidade à
de cultivos celulares: cultivos primários e as li- infecção viral. No entanto, a sensibilidade à infec-
nhagens contínuas. Cada um desses tipos apre- ção com alguns vírus pode ser inferior nas linha-
senta vantagens e restrições. Os cultivos primários gens celulares em comparação com os cultivos
originam-se da remoção de um órgão fresco de primários, mas as vantagens citadas acima com-
um embrião ou feto recém-sacrificado. O órgão pensam este aspecto. Linhagens celulares podem
removido é submetido a um processo mecânico e ser obtidas pela transferência entre laboratórios
enzimático para fracionamento do tecido e indi- ou pela aquisição junto a bancos depositários.
vidualização das células. As células individuali- Diversas linhagens celulares são utilizadas
zadas são cultivadas em frascos ou garrafas, onde rotineiramente em laboratórios de virologia em
irão aderir e formar uma monocamada. O cultivo atividades de diagnóstico e pesquisa. O nome
é realizado com meio nutritivo e promotores de dessas linhagens geralmente está relacionado
crescimento, a temperatura de incubação é de com o órgão de origem e freqüentemente contém
37ºC. Nesse processo, a divisão celular é bastan- as letras iniciais do nome do descobridor ou ou-
te restrita, com uma propagação lenta e limitada, tra característica marcante. Alguns exemplos de
podendo-se dizer que ocorre uma divisão celular linhagens celulares comumente utilizadas em Vi-
a cada 24 horas. Assim, é necessária a realização rologia Veterinária são: MDBK (Madin-Darby bo-
de subcultivos periódicos, e isso é realizado atra- vine kidney), MDCK (Madin-Darby canine kidney),
vés da individualização da monocamada pela CRFK (Crandell feline kidney), CRIB (cell resistant
ação enzimática, ressuspensão e semeadura em to infection with bovine viral diarrhea vírus), RK13
novos frascos de cultivo. Nesses novos cultivos, (rabbit kidney), PK15 (porcine kidney 15), SK6 (swi-
o número celular irá duplicar ou quadruplicar ne kidney), BHK-21 (baby hamster kidney clone 21),
em poucos dias. Após um número variável de IBRS2 (Instituto Biológico rim de suíno clone 2), cé-
subcultivos (10 a 30 passagens, dependendo do lulas Vero, entre outras.
tipo celular), as células começam a apresentar ta- Existem ainda cultivos de células que se
xas reduzidas de multiplicação e, eventualmen- multiplicam em suspensão, ou seja, não necessi-
te, cessam a multiplicação. Os cultivos primários tam de uma superfície de contato para adesão e
são os preferidos para a realização da multiplica- multiplicação. Uma grande vantagem desse tipo
ção viral, pois possuem características morfoló- de cultivo é a concentração do número de células,
gicas e fisiológicas bastante semelhante às célu- reduzindo a relação do número de células, tama-
las dos órgãos originais. Sendo assim, possuem nho do frasco e volume de meio utilizado. Essa é
uma maior sensibilidade para a infecção viral. A uma característica desejável e amplamente utili-
restrição que esse tipo de cultivo apresenta é o zada para a produção de vacinas. Células BHK-21
número limitado de subcultivos, gerando neces- que se multiplicam em suspensão são utilizadas
sidade de preparação contínua nos laboratórios para a multiplicação e produção de estoques do
com alta demanda celular. RabV e o FMDV para uso em vacinas.
As linhagens celulares ou linhagens contínuas Alguns vírus não replicam eficientemente
são derivadas de células tumorais ou de tecidos em células de cultivo, assim, a sua amplificação
normais que sofreram transformação in vitro. Es- requer o uso de outro sistema biológico, como
ses tipos de cultivos celulares são cultivados de animais susceptíveis (animais de laboratório ou
maneira semelhante aos cultivos primários e pos- os hospedeiros naturais) ou ovos embrionados.
Detecção, identificação e quantificação de vírus 77

Outros vírus não replicam em quaisquer dos sis- lo é desprezado, e a monocamada é lavada para
temas biológicos utilizados atualmente, como os remover ou reduzir a presença de substâncias
papilomavírus, vírus da hepatite C de humanos tóxicas e/ou contaminação bacteriana e fúngica.
e os vírus causador da hepatite B (família Hepad- Após, o meio de cultivo é reposto, e as células são
naviridae). incubadas a 37ºC, com uma atmosfera de 5% de
O processamento de amostras que poten- CO2. As monocamadas devem ser observadas
cialmente contenham vírus deve ser realizado diariamente para a presença de alterações mor-
rapidamente e seguir algumas regras para au- fológicas celulares associadas com a replicação
mentar a probabilidade de detecção e multipli- viral (Figura 3.12). Essas alterações, conseqüên-
cação do agente. Para o diagnóstico, as amostras cias do processo replicativo dos vírus, são deno-
devem ser inoculadas em cultivos celulares o minadas genericamente de efeito citopático (ECP
mais brevemente possível. A inoculação consiste – cytopathic effect). Uma grande parcela dos vírus
na deposição do material suspeito sobre as mo- produz alterações morfológicas nos cultivos celu-
nocamadas, seguido de incubação por 1 a 2 horas lares, que, muitas vezes, são características de um
(período de adsorção). Posteriormente, o inócu- determinado agente ou grupo de vírus. As altera-

A B

C D

E F

Figura 3.12. Efeito citopático produzido pela replicação viral em células de cultivo. Células de linhagem de rim
bovino não-infectadas (A) ou inoculadas com o BoHV-1 (B); BVDV (C); BoHV-2 (D); enterovírus bovino (E); e PI-3v
(F). Pode-se observar diferentes tipos de efeito citopático. Para descrição detalhada ver tabela 3.3.
78 Capítulo 3

ções freqüentemente produzidas pelos vírus são descritos os efeitos citopáticos produzidos pelos
vacuolização citoplasmática, formação de células principais vírus de interesse veterinário.
gigantes multinucleadas (sincícios) e arredonda- A visualização dessas alterações ao micros-
mento celular entre outros. Na Tabela 3.3, estão cópio óptico é apenas um indicativo da presença

Tabela 3.3. Principais vírus animais, células susceptíveis para replicação in vitro e efeito citopático

Vírus Tipo celular Efeito citopático

Adenovírus bovino Células de origem renal ou Arredondamento e desprendimento celular, formação


(BAdV) primárias de testículos de bovinos. de focos infecciosos como “cachos de uva”.
Corpúsculos intranucleares.

Vírus da diarréia viral MDBK, SK-6, PK15, BT, cultivos Vacuolização citoplasmática, degeneração celular,
bovina (BVDV) primários de pulmão, corneto nasal, enrugamento do tapete, desprendimento e lise celular
rim e testículo de bovino. (somente as amostras citopatogênicas).

Herpevírus bovino tipos MDBK, CRIB, HeLA, BT, EBTr e Desorganização nuclear, arredondamento e
1 e 5 (BoHV 1 e 5) cultivos primários de pulmão, corneto desprendimento celular; formação de focos
nasal, rim e testículo de bovino. infecciosos com o aspecto de “cachos de uva”, lise.
Corpúsculos intranucleares.
Parainfluenza bovina MDBK, BT, HELA e cultivos primários Arredondamento, citomegalia e refringência celular, formação
tipo 3 (bPI-3) de corneto nasal e de rim de de grandes sincícios, desprendimento das células.
bovino. Corpúsculos intracitoplasmáticos.

Vírus respiratório MDBK, BT, cultivos primários de Arredondamento e refringência celular, formação de
sincicial bovino (BRSV) células do trato respiratório de pequenos sincícios e desprendimento das células.
bovinos. Corpúsculos acidofílicos intracitoplasmáticos.

Rotavírus bovino CV-1, VERO, MA-104, BSC-1, Vacuolização citoplasmática, degeneração e


(BRV) Aubek, MDBK desprendimento celular. Corpúsculos
intracitoplasmáticos.

Coronavírus bovino VERO, HRT-18, cultivos primários de Formação de sincícios.


(BCoV) rim de bovino.

Parvovírus bovino MDBK, EBTr, BT e cultivos primários Citomegalia e refringência celular, arredondamento e
(BPV) de rim de feto bovino. desprendimento.
Bovinos

Virus da mamilite MDBK, CRIB e cultivos primários de Arredondamento celular, sincícios multinucleares.
herpética (BoHV-2) origem bovina. Corpúsculos eosinofílicos intranucleares.

Vírus da leucose Cultivo primário de baço e pulmão Formação de sincícios.


bovina (BLV) bovino e células embrionárias
diplóides de humanos.

Vírus da febre aftosa BHK-21, IB-RS-2 cultivos primários de Condensação nuclear, arredondamento,
(FMDV) tireóide bovina, cultivos primários de desprendimento e lise celular.
rim de suíno, bovino ou cordeiro.

Vírus da estomatite VERO, BHK-21 ou IB-RS2. Arredondamento, retração e desprendimento celular,


vesicular (VSV) lise.

Vírus da estomatite BT, cultivo de rim de fetos bovinos. Arredondamento, agregação, lise celular.
papular (BPSV) Corspúsculos intracitoplasmáticos.

Vírus da varíola e Cultivos primários de células de Formação de sincícios. Corpúsculos intracitoplasmáticos.


pseudovaríola bovina testículo bovino.

Rinderpest (RPV) VERO ou cultivos primários de Arredondamento e refringência celular, seguido


rim de terneiros. de retração com alongamentos citoplasmáticos
“pontes” e formação de síncicios. Corpúsculos
intracitoplasmáticos.

Vírus da doença Lumpy Skin LT ou cultivos primários de origem Arredondamento e retração da membrana celular
(LSDV) bovina, caprina ou ovina e marginalização da cromatina nuclear.
(preferencialmente de raças Corpúsculos intracitoplasmáticos.
laníferas).

Vírus da febre do vale VERO, BHK-21, CER e cultivos Arredondamento e rápida lise celular.
Rift (RVFV) primários de rim de terneiro e cordeiro.

Vírus da febre catarral Cultivos primários de células de Sincícios grandes,


maligna (MCFV) rim, baço, tireóide, pulmão, contração, arredondamento e desprendimento
testículo e plexo coróide de fetos celular da monocamada. Corpúsculos
ovinos ou bovinos. intranucleares.
Detecção, identificação e quantificação de vírus 79

Tabela 3.3. Continuação.

Vírus Tipo celular Efeito citopático

Língua azul (BTV) BHK-21, VERO Arredondamento celular, fusão.

Ectima contagioso HeLa, VERO, cultivos primários Arredondamento celular, aglomeração e desprendimento
(ORFV) de rim e testículo ovino e bovino; celular. Corpúsculos de inclusão intracitoplasmáticos
fibroblastos de galinhas e patos. eosinofílicos.
Ovinos e caprinos

Artrite e encefalite Células da membrana sinovial de Formação de sincícios.


caprina (CAEV) fetos caprinos e cultivos primários
de testículos de caprinos.

Pneumonia progressiva Cultivos de pulmão fetal, de células Formação de sincícios e degeneração celular.
dos ovinos – Maedi-Visna do plexo coróide de ovino ou de
(OPPV) leucócitos sangüíneos periféricos.

Poxvírus ovino e Cultivos primários de testículo Vacuolização nuclear. Corpúsculos


caprino de cordeiro. intracitoplasmáticos eosinofílicos.

Peste dos VERO e cultivo primário de rim Arredondamento, agregação celular e formação de
pequenos de cordeiro síncicio com o núcleo na forma circular. Vacuolização
ruminantes (PPRV) de algumas células. Corpúsculo de inclusão
intracitoplasmáticos e intranucleares.

Herpesvírus eqüino VERO, ED, RK-13, MDBK, BHK-21 Desorganização nuclear, arredondamento e
(EHV 1, 2, 3 e 4) e cultivos primários de rim eqüino e desprendimento celular; formação de focos
fibroblastos da derme eqüina. com o aspecto de “cachos de uva”.
Corpúsculos intranucleares.

Anemia infecciosa ED, PBMC eqüino, fibroblastos Formação de sincícios somente em leucócitos.
Eqüinos

eqüina (EIAV) de derme eqüina.

Encefalomielite eqüina VERO, RK-13, BHK-21 e cultivos de Lise celular


(EEE, WEE e VEE) fibroblastos de embrião de
galinhas e patos.

Arterite viral eqüina RK-13, VERO, LLC-MK2 e cultivos Desprendimento celular do tapete, lise
(EAV) primários de células de macaco,
coelho e eqüino.

Influenza eqüina (EIV) MDCK Arredondamento, desprendimento celular

Doença de Aujeszky PK-15, SK6, MDBK, cultivos Desorganização nuclear, arredondamento e


(PRV ou SuHV-1) primários de origem suína. desprendimento celular e formação de focos
com o aspecto de “cachos de uva”.
Corpúsculos intranucleares.

Adenovírus suíno Cultivos primários de rim suíno, Citomegalia e arredondamento celular,


PK-15 e SK6. desprendimento das células da monocamada.
Copúsculos intranucleares.
Suínos

Peste suína clássica SK6, PK-15. .A maioria dos isolados não causa citopatologia
(CSFV)

Síndrome respiratória MARC-145, MA-104 e células de Aumento de tamanho, arredondamento e


e reprodutiva suína origem de símios. agregação celular, lise.
(PRRSV)

Enterovírus suíno PK-15, IB-RS-2, SST e cultivos Lise e desprendimento celular,


(PEV) de células de rim e testículos destruição da monocamada.
de suínos.

Parvovírus suíno Cultivos primários de rim suíno, Arredondamento celular e picnose.


(PPV) ST, PK-15 e SK6. Corpúsculos intranucleares.
80 Capítulo 3

Tabela 3.3. Continuação.

Vírus Tipo celular Efeito citopático

Parvovírus CRFK, MDCK, A-72 e Aumento do núcleo, enrugamento da membrana


canino (CPV) cultivos primários de células de rim celular, arredondamento das células, lise.
e pulmão de canino e felino.

Coronavírus CRFK, A-72 e cultivos de rim, timo Formação de sincícios.


canino (CCoV) e sinóvia de canino.

Rotavírus MA-104, A-72, CRFK e cultivos Vacuolização citoplasmática, degeneração e


canino primários de rim de canino. desprendimento celular. Corpúsculos
intracitoplasmáticos.

Herpesvírus MDCK e cultivos primários Desorganização nuclear, arredondamento e


canino (CaHV) de rim de canino. desprendimento celular e formação de focos
com o aspecto de “cachos de uva”.
Corpúsculos intranucleares.
Caninos e Felinos

Vírus da cinomose VERO, MDCK e PBMC de Formação de sincícios, desprendimento celular


(CDV) caninos e furão. do tapete, inclusões intracitoplasmáticas.

Adenovírus canino MDCK, cultivos primários de Arredondamento e desprendimento celular,


(CAdV) testículo ou rim de canino e felino. lise e destruição do tapete. Corpúsculos intranucleares.

Vírus da raiva (RabV) CV-1, BHK-21, VERO, HeLa e cultivos Arredondamento e desprendimento celular.
de fibroblastos de embrião de galinhas. Corpúsculos intracitoplasmáticos.

Calicivírus felino CRFK, FCWF-4, Fe3TG, VERO Arredondamento e desprendimento celular,


(FCV) e fibroblastos felinos. lise e destruição do tapete.

Vírus da rinotraqueíte CRFK e cultivos primários de pulmão, Desorganização nuclear, arredondamento,


felina (FeHV) rim e testículo de felino. desprendimento celular e formação de focos
com o aspecto de “cachos de uva”.
Corpúsculos intranucleares.

Vírus da peritonite CRFK, A-72, FeWF e cultivos primários Arredondamento e desprendimento celular.
infecciosa felina de tecidos fetais de felinos.
(FeCoV)

Vírus da panleucopnia CRFK e Fe3TG. Arredondamento e aumento da refringência


felina (FPLV) das células.

Vírus da imuno- PBMC felino. Formação de sincícios.


deficiência felina
(FIV)

Doença Cultivos primários de rim de embrião Formação de sincícios, morte celular.


Galinhas e Outras Aves

de Newcastle (NDV) de galinhas, cultivos primários de


fibroblastos de galinhas e BHK-21.

Doença de Cultivos primários de células da .Efeito pouco discernível


Gumboro (IBDV) bursa, rim e fibroblastos de
embrião de galinha.

Vírus da laringo- CEK e cultivos de rim, fígado e Citomegalia, formação de sincícios.


traqueíte aviária pulmão de galinhas.
(ILTV)
Vírus da anemia MDCC-MSB1. Citomegalia, lise celular.
aviária (CAV)

Vírus da doença CK e fibroblastos de embrião Desorganização nuclear, arredondamento e


de Marek (MDV) de galinhas ou patos. desprendimento celular. Corpúsculos intranucleares.

Poxvírus aviário QT-35, cultivos primários de rim ou Arrendondamento, refringência celular e


derme de embrião de galinha. desprendimento.

de um agente viral na amostra suspeita. Alguns dem ser observadas. No entanto, a ausência de
vírus possuem a capacidade de infectar cultivos alterações não indica necessariamente a ausência
celulares de diversas origens, como o vírus da de vírus. Alguns vírus infectam as células sem
língua azul (BTV), que infecta células de mamí- causar ECP e são denominados de não-citopáti-
feros e insetos e variações do efeito citopático po- cos, como é o caso do circovírus suíno (PCV-2).
Detecção, identificação e quantificação de vírus 81

Outro exemplo é o vírus da diarréia viral bovina mero determinado de cultivos celulares. Quanto
(BVDV), que possui amostras citopatogênicas e maior o número de réplicas, mais preciso será o
não-citopatogênicas (Capítulo 22). A confirma- resultado. Essa técnica geralmente é realizada em
ção e identificação do agente são, geralmente, placas de microtitulação de 96 cavidades, e cada
realizadas por métodos que detectam alguma ati- diluição do material é inoculada em oito répli-
vidade biológica (HA ou HAD), antígenos (IFA cas. Após um determinado período de incubação
ou IPX) ou ácidos nucléicos virais (PCR, hibridi- (varia entre 48 h e vários dias, dependendo do
zação). A neutralização com anti-soro específico vírus), os cultivos são monitorados em relação ao
também pode ser usada para a identificação do aparecimento do ECP (ou submetidos à IFA ou
agente causador do ECP nos cultivos. Coloração IPX para detecção de antígenos virais), que são
direta, como Giemsa ou hematoxilina e eosina os indicadores da presença de infectividade na
(para corpúsculos de inclusão), também podem respectiva diluição.
ser utilizadas para a confirmação da presença de O título viral geralmente é expresso como a
alguns agentes. recíproca da maior diluição capaz de provocar re-
ação específica (ECP ou antígenos virais) em 50%
4 Quantificação de vírus dos cultivos e a unidade será TCID50 (tissue cultu-
re infection dose). Quando a titulação é realizada
A realização de várias técnicas virológicas em animais ou em OE, e o indicador é a morte,
requer o conhecimento da quantidade aproxi- a unidade usada é dose letal 50% (LD50). Quando
mada de partículas víricas presente no material. o resultado da infectividade é medido de outra
O procedimento de quantificação é denominado forma que não a morte (ex.: paralisia, presença
titulação, e o valor obtido é dito título viral. Exis- de lesões de pele, prurido), a unidade emprega-
tem técnicas diretas e indiretas para a quantifi- da é dose infectiva 50% (ID50). Para os vírus com
cação das partículas víricas. As técnicas diretas capacidade hemaglutinante, aplica-se o teste de
baseiam-se na contagem das partículas presentes HA, então a unidade de expressão será unidade
em uma amostra e observadas ao microscópio hemaglutinante (UH).
eletrônico. Esse método é capaz de informar o Os valores obtidos nos ensaios de titulação
número preciso de partículas, porém não dife-
são submetidos à análise matemática, que conver-
rencia partículas infecciosas de não-infecciosas.
te os dados de infectividade em valores numéri-
Devido a essas particularidades, o método direto
cos com uma acurácia aceitável. Alguns métodos
de quantificação viral não é utilizado na rotina
de cálculo são utilizados, no entanto, o método
laboratorial. As técnicas indiretas possuem como
de Reed e Muench é o mais difundido para o
base a infectividade do vírus, que é medida por
cálculo de título viral (Quadro 3.1). Os métodos
meio de um indicador biológico. A quantificação
de Spearman e Kärber; e Seligman e Mickey são
da infectividade de uma determinada suspensão
viral requer necessariamente o uso de sistemas menos populares. Esses métodos, apesar de di-
biológicos para a replicação do agente (cultivos ferirem na metodologia aplicada, baseiam-se na
celulares, OE ou animais). Como já mencionado, observação da infectividade, portanto, somente
os cultivos celulares são muito utilizados com consideram as partículas infecciosas.
esse propósito. Para os vírus que não replicam
em cultivo, pode-se recorrer aos OE ou animais. 4.2 Ensaio de placa

4.1 Diluição limitante Outro método muito utilizado para a quan-


tificação de vírus é o ensaio de placa, descrito ini-
Os testes que utilizam a diluição limitante cialmente por Dulbecco, em 1952. Diluições seria-
foram os primeiros desenvolvidos e são mui- das da suspensão viral são inoculadas em tapetes
to utilizados pela sua simplicidade. O material celulares pré-formados, geralmente em placas
é inicialmente submetido à diluição seriada, e poliestireno de seis cavidades. Após a adsorção
cada diluição serve como inóculo para um nú- e a remoção do inóculo, os tapetes são recobertos
82 Capítulo 3

Testes de infectividade são rotineiramente utilizados para o partícula viral viável capaz de infectar e replicar em uma célula
cálculo do “título” viral (número de unidades infecciosas por susceptível.
unidade de volume), que é comumente expresso por TCID50/mL 1.TCID50 É definida como a diluição de um determinado vírus
ou PFU/mL. Uma unidade infecciosa é definida como a menor necessária para infectar 50% dos cultivos celulares inoculados.
quantidade do vírus capaz de produzir um efeito biológico Esse tipo de teste consiste na produção e detecção de ECP nas
detectável (efeito citopático, ECP) em células de cultivo in vitro, células infectadas. O cálculo da TCID50 em uma suspensão
ou doença clínica, ou morte em animais. No caso de cultivos inicial de vírus pode ser feito pelos métodos de Reed & Muench
celulares, uma unidade infecciosa equivaleria a uma ou Spearman-Kärber.

Cultivos celulares Índices acumulados


Diluição Porcentagem (%) =
Não-
infectados [Infectados/(infectados
Não- +
Não-infectados Infectados infectados infectados
+ não-infectados)] X
Infectados
-1
10 0 8 0 41 41 41/41 =100%

-2
10 0 8 0 33 33 33/33 =100%

10-3 0 8 0 25 25 25/25 =100%

-4
10 0 8 0 17 17 17/17 =100%

10-5 2 6 2 9 11 9/11 =81%

-6
10 5 3 7 3 11 3/11 =27%

10-7 8 0 15 0 15 0/15 =0%

-8
10 8 0 23 0 23 0/23 =0%

Para o cálculo dos índices acumulados dos cultivos não- Este índice ou distância proporcional é utilizado para o cálculo
infectados (isto é, onde não se observou ECP), soma-se os do título viral pelo uso da equação: (fator da diluição onde se
valores dos cultivos não-infectados, iniciando-se a partir da observou ECP em mais de 50% das culturas de células) + (índice
-8
menor diluição (10 ). Já o cálculo do índice dos cultivos ou distância proporcional multiplicado pelo logaritmo do fator de
infectados, é realizado pelo somatório das culturas infectadas diluição). Assim, tem-se (-5) + (0,57 x 1) = -5,57. Desse modo, a
(onde o ECP foi visualizado) a partir da maior diluição (10 ).
-1
diluição limitante da suspensão inicial do vírus capaz de infectar
-5,57
Assim, a diluição apresentada no Quadro 3.1 necessária para a 50% dos cultivos celulares será de 10 . A recíproca deste
infecção de 50% dos cultivos celulares, obviamente estará entre número será o título viral por unidade de volume empregado para
TCID50 em 50μL.
-6 -5 -5,57
as diluições 10 (27% infectados) e (10 ) (81% infectados). A a realização da prova, ou seja, 10
distância proporcional entre essas duas diluições é calculada Rotineiramente, o título viral é expresso em mililitros (mL). Para
da seguinte forma: isso, basta multiplicar o valor obtido por 20 (1 mL contém 20 vezes
(% positivo acima de 50%) - 50 o volume de 50μL utilizado para a realização da prova).
------------------------------------------------------------------------ = -5,57 6,57 6,87
(% positivo acima de 50%) - (% positivo abaixo de 50%) Finalmente, tem-se 10 que é equivalente a 2 x 10 ou 10
TCID50/mL.
Assim, tem-se: 81-50 = 0,57
81-27

Quadro 3.1. Quantificação de vírus por diluição limitante

com uma camada de meio semi-sólido à base de distância. A transmissão do vírus a partir das cé-
ágar ou carboximetilcelulose, e incubados por 24 lulas inicialmente infectadas ocorre apenas para
a 72 horas, variando conforme o agente. As partí- as células vizinhas, pela transmissão direta entre
culas virais que penetraram nas células durante a células. Após alguns dias, são observados focos
adsorção irão replicar e produzir progênie viral. de destruição celular nos tapetes, denominados
A cobertura semi-sólida, no entanto, impede que placas. Cada placa representa um determinado
as partículas víricas produzidas se disseminem à número de células infectadas e destruídas a par-
Detecção, identificação e quantificação de vírus 83

tir de uma célula originalmente infectada. O nú- atividade antiviral de compostos químicos; e) es-
mero de placas produzidas no tapete, portanto, tudos de cinética e replicação viral, entre outras.
corresponde ao número aproximado de unidades
infecciosas presentes na diluição inoculada. Para
uma melhor visualização e contagem das placas,
os tapetes são corados com cristal violeta (Figura
3.13).
Nessa técnica, a quantificação é expressa
como unidade formadora de placas por mililitro
(PFU/mL). Para o cálculo final do título, leva-se
em consideração o número de placas produzidas
em cada diluição e o volume utilizado para ino-
culação. Um exemplo de titulação, usando essa
técnica, está descrito no Quadro 3.2. Os ensaios
em placa são utilizados principalmente para a
quantificação de vários vírus citopatogênicos (ou
Figura 3.13. Ensaio de placa. Tapetes de células BHK-21
citopáticos), mas podem também ser utilizados foram infectados com diferentes diluições do vírus da
para vírus que não induzem citopatologia. Nes- estomatite vesicular (VSV) e, 48 horas após, foram
ses casos, os focos (e não placas) de replicação corados com cristal violeta. Linha superior: a ausência de
placas é indicativa da ausência de vírus; Linha inferior:
viral podem ser detectados e contados após a re- observa-se inúmeros focos infecciosos, indicando a
alização da técnica de IPX. replicação viral e lise celular.
Além de quantificação viral, os ensaios de
placa são também utilizados com outras finalida- 4.3 Outros métodos de quantificação
des, incluindo: a) clonagem biológica e purifica-
ção de vírus; b) análise de fenótipo de variantes Métodos mais modernos que utilizam a
virais; c) ensaios de neutralização viral por anti- biologia molecular têm sido empregados para a
corpos monoclonais ou policlonais; d) testes de quantificação de vírus, principalmente em medi-

O título de uma suspensão viral do VSV foi calculado utilizados 200μL/cavidade. Após o período de adsorção,
pelo método de ensaio de placa. Para isso, três placas o inóculo foi removido e meio de cultivo contendo
de seis cavidades, contendo uma monocamada pré- carboximetilcelulose foi adicionado. Após 24 horas de
formada de células BHK-21 foram inoculadas. A partir da incubação, os tapetes celulares foram corados por
suspensão original, realizou-se oito diluições seriadas cristal violeta. Os números da contagem das placas
na base 10, que serviram como inóculo. Cada diluição foi estão apresentados abaixo.
inoculada em duplicada e, para isso, foram

Número de placas

Diluição 10-1 10-2 10


-3
10-4 10-5 10-6 10-7 10-8 Controle

incontáveis incontáveis 168 96 35 0 0 0 0


Réplicas
incontáveis incontáveis 150 89 27 0 0 0 0

Média - - 159 92,5 31 0 0 0 0

Para a obtenção do título, utiliza-se o número médio de Normalmente o título é expresso em mililitro (mL), nesse
placas presentes na maior diluição em que foi possível caso, o volume inoculado foi de 200μL e, para realizar a
observar a replicação do vírus. Dessa maneira, tem-se: 31 transformação, deve-se multiplicar por 5. Tem-se, então,
x 105 PFU/200μL, que é o equivalente a 3,1x106 15,5 x 106 PFU/mL ou 1,55 x 107 PFU/ml.
PFU/200μL.

Quadro 3.2. Quantificação de vírus por ensaio de placa


84 Capítulo 3

cina humana. Essas técnicas mensuram a carga A caracterização de uma amostra viral é
viral (ou quantidade de vírus) pela análise quanti- uma etapa posterior à sua detecção e identifica-
tativa do material genético viral presente em uma ção. Essa etapa geralmente envolve a caracteriza-
amostra clínica. A quantidade de vírus presente ção antigênica ou sorológica, que pode ser defi-
nas secreções e excreções de animais infectados nida como o perfil dos antígenos de um vírus. A
com o FMDV pode ser estimada através da téc- obtenção deste perfil é realizada pelo uso de tes-
nica de real time PCR. Essa mesma metodologia tes que detectam e identificam os determinantes
também pode ser aplicada para os vírus da peste antigênicos presentes nas proteínas virais. Várias
suína clássica (CSFV) e AFSV, entre outros. Imu- técnicas são utilizadas com essa finalidade, in-
noensaios quantitativos e outros procedimentos cluindo a IFA com anticorpos monoclonais, soro-
imunológicos que fornecem a titulação e que neutralização, fixação do complemento, ELISA,
avaliam a presença do vírus em cada diluição são além de outras técnicas sorológicas. A forma de
amplamente usados. Esses métodos apresentam caracterização a ser utilizada depende das parti-
a vantagem de permitir realizar diluições, adição cularidades de cada família de vírus e da dispo-
de reagentes e leituras colorimétricas automatiza- nibilidade de técnicas e reagentes do laboratório.
das. Os dados da leitura crua são posteriormente A identificação de seqüências específicas pode
analisados por métodos matemáticos que permi- ser realizada pelo uso de técnicas como o PCR,
tem a identificação correta e precisam das unida- análise de restrição ou seqüenciamento do geno-
des infectantes presentes no material testado. No ma viral.
entanto, esses métodos possuem aplicabilidade
restrita em medicina veterinária e dificilmente 5.1 Sensibilidade a solventes lipídicos
serão substituídos pelos métodos tradicionais.
Existe uma correlação entre presença do en-
5 Identificação e caracterização de velope e susceptibilidade dos vírus aos solven-
um isolado tes lipídicos. Durante muito tempo, uma forma
de identificação e caracterização da presença de
Os termos isolado ou amostra de vírus refe- vírus envelopados foi o tratamento com solven-
rem-se a um vírus que foi detectado e identifi- tes lipídicos previamente à inoculação em cultivo
cado, mas que ainda não foi completamente ca- celular ou ovo embrionado. No envelope viral,
racterizado. O termo cepa designa um vírus cujas encontram-se inseridas glicoproteínas, que são
principais características genotípicas e fenotípi- responsáveis pelas interações iniciais vírus-célu-
cas já foram estudadas e são conhecidas. As ce- la. A remoção do envelope dos vírus resulta em
pas são geralmente utilizadas como referência perda de infectividade e inativação da partícula.
em testes de diagnóstico, em pesquisas e para a A maioria dos vírus envelopados é sensível ao
produção de reagentes. éter e/ou clorofórmio, que são os solventes nor-
A primeira etapa após a detecção de um malmente utilizados (paramixovírus, herpesví-
agente viral a partir de amostras clínicas é a sua rus, mixovírus entre outros); no entanto, alguns
identificação. Isso pode ser realizado prelimi- vírus, como os poxvírus, apresentam variações
narmente pelas características do ECP produzi- de sensibilidade ao éter.
do nos cultivos ou pelas alterações produzidas
no embrião de galinha. A ME pode ser utilizada 5.2 Concentração e purificação por
para a identificação inicial do agente, de acordo ultracentrifugação
com as suas características morfológico-estrutu-
rais. A confirmação da identidade do agente, no Estudos estruturais e ultra-estruturais, pro-
entanto, depende do uso de anticorpos específi- dução de antígenos para imunizações ou métodos
cos (IFA, IPX), de anti-soro específico (SN ou HI) de detecção, entre outros, requerem soluções con-
ou de métodos de detecção e identificação de áci- tendo altas concentrações de vírus e com elevado
dos nucléicos (hibridização, PCR). grau de pureza. A obtenção de soluções com es-
Detecção, identificação e quantificação de vírus 85

sas características pode ser feita de várias manei- de infecções inadvertidas ou disseminação de en-
ras, das quais se destacam a ultracentrifugação. fermidades entre humanos e animais. Isso pode
A ultracentrifugação é um método relativamente ser observado em várias descrições do passado.
fácil, rápido e prático, em que o material de alta O FMDV, devido a sua alta infecciosidade, talvez
qualidade é obtido. Seu princípio baseia-se na tenha produzido os exemplos mais conhecidos.
taxa de sedimentação do vírus, que, por sua vez, A infecção de pesquisadores pelo vírus Marburg,
é dependente do tamanho, densidade, morfolo- em um laboratório da Alemanha na década de
gia da partícula, bem como da natureza do meio 1970, é outro exemplo. No princípio, uma alterna-
e da força de centrifugação. A maior restrição é o tiva para evitar acidentes, como a disseminação
custo do equipamento, que difere das centrífugas do vírus febre aftosa ou introdução de agentes
por atingir velocidades que variam entre 20.000 e exóticos no rebanho de um país, foi a construção
100.000 rotações por minuto (RPM). de laboratórios em ilhas, o caso mais conhecido é
de Plum Island Animal Disease Center, nos Estados
6 Biossegurança laboratorial Unidos. Posteriormente outros laboratórios de
segurança elevada e acesso restrito, para mani-
A manipulação em laboratórios de agentes pulação de agentes virais e animais infectados,
infecciosos, como os vírus, pode representar risco foram estabelecidos, tais como: o Australian Ani-

Tabela 3.4. Níveis de biossegurança para manipulação de agentes virais

Nível BSL-1 BSL-2 BSL-3 BSL-4

Agentes altamente perigosos


Associados com Agentes exóticos ou ou exóticos, com risco de
infecções em humanos, selvagens, com potencial de
Vírus

Vírus não-zoonóticos. vida para humanos,


risco de auto-inoculação, transmissão por aerossol e de transmitidos por aerossóis,
ingestão ou exposição produzir doença severa ou ou agentes de periculosidade
da pele e mucosas. letal. desconhecida.
Procedimentos

Normas do BSL-3, com


Normas do BSL-2, com
BSL-1, com acesso limitado, mudanças de roupas ao
acesso restrito e controlado,
identificação das áreas de ingressar na área
Normas básicas de prática coleta de soro do
manipulação, primeiros contaminada. Requerimento
laboratorial. trabalhadores,
socorros e descontaminação de banho para saída,
descontaminação de todo o
do lixo e resíduos. descontaminação de todo o
lixo e resíduos e esterilização
material antes da remoção
das roupas antes da lavagem.
do laboratório.

BSL-3, utilização de cabine


Equipamentos

Aventais, luvas, óculos, Requerimentos do BSL-1 e de fluxo laminar tipo III ou


de proteção

conforme a necessidade. toda manipulação em cabines tipo I e II em


Manipulação de material cabine de fluxo laminar do ambiente com pressão
Nenhum requerido. tipo I ou II. Uso de luvas,
que produz aerossol em positiva, macacões de
cabine de fluxo laminar do aventais, respiradores, corpos inteiro com
tipo I ou II. conforme a necessidade. respiradores para todos os
procedimentos.

BSL-2 acrescido de
de segurança
Equipamento

separação física para BSL-3, área ou prédio


corredores e áreas de isolado com suprimento de
Bancada laboratorial. BSL-1 com autoclave. circulação, porta duplas, ar e exaustão, vácuo e
pressão negativa nos sistema de
laboratórios, sistema de descontaminação.
filtração do ar.

Herpesvírus dos símios


Exemplos

Adenovírus humano, (vírus B), vírus da encefalite


BoHV, BVDV, BLV, BTV, Vírus Ebola, Marburg, sabiá,
citomegalovírus, influenza A, japonesa, hantavírus, febre
PRV, CDV, outros. febre do vale Rift, entre
B e C, rubéola, poliovírus, amarela, encefalite eqüina
outros.
parainfluenza, vírus da raiva. venezuelana, vírus do Nilo
Ocidental.

Adaptada de Murphy et al., 1999.


86 Capítulo 3

mal Health Laboratory na Austrália, o Onderstepoort RICHMOND, J.Y.; McKINNEY, R.W. (Eds). Biosafety in
microbiological and biomedical laboratory. 4.ed. Washington,
Veterinary Institute na África do Sul, o Institute for
DC: U.S. Government Printing Office, 1999. 265p.
Animal Health na Inglaterra, o Center for Disease
Control (CDC) em Atlanta e, mais recentemente, ROVOZZO, G.C.; BURKE, C.N. A manual of basic virological
o Canadian Science Center for Human and Animal techniques. Englewood Cliffs, NJ: Prentice-Hall, 1973. 287p.

Health, em Winnipeg, no Cánada. STORCH, G.A. Diagnostic Virology. In: KNIPE, D.M.; HOWLEY,
A manipulação de amostras infectadas para P.M. (eds). Fields virology. 4.ed. Philadelphia, PA: Lippincott
pesquisa ou diagnóstico deve seguir as normas Williams & Wilkins, 2001. Cap.18, p.493-531.

da boa prática laboratorial. Dessa maneira, con- STRAW, B.E. et al. (eds). Diseases of swine. 8.ed. Ames, IA:
taminações inadvertidas de amostras ou dissemi- Iowa State University Press, 2002. 1209p.
nações da infecção entre humanos ou animais são
SWAYNE, D.E. et al. A Laboratory manual for the isolation and
evitadas. Conforme a infra-estrutura do laborató- identification of avian pathogens. 4.ed. Tallahasse, FL: Rose
rio e o risco dos agentes manipulados, os labora- Printing, 1998. 311p.
tórios de virologia são classificados em Níveis de
TIMONEY, J.F. et al. Hagan and Bruner’s microbiology and
Segurança (BSL) 1, 2, 3 ou 4 (Tabela 3.4). O uso de
infectious diseases of domestic animals. 8.ed. Ithaca, NY:
técnicas assépticas, roupas adequadas (avental, Comstock Publishing Associates, 1988. 951p.
máscaras, luvas e óculos) e desinfetantes apro-
VERSTEEG, J. A colour atlas of virology. Weert, Netherlands:
priados são cuidados básicos e necessários em
Wolfe Medical Publications, 1985. 240p.
todo trabalho laboratorial, independente do nível
de segurança. O uso de equipamentos, tais como:
cabines de fluxo laminar, sistema de filtração do
ar, tratamento e esterilização de dejetos, descarte
e incineração dos dejetos são requisitos necessá-
rios para laboratórios que manipulem agentes
com risco médio a elevado, conforme o caso.

7 Bibliografia consultada

BARTLETT, J.M.S; STIRLING, D. Methods in Molecular Biology:


PCR protocols. 2.ed. Totowa, NJ: Humana Press, 2003. 545p.

CASTRO, A.E.; HEUSCHELE, W.P. Veterinary diagnostic


virology: a practitioner’s guide. St. Louis, MO: Mosby, 1992.
285p.

FRESHNEY, R.J. Culture of animal cells. 2.ed. New York, NY:


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HIRSCH, D.C.; ZEE, Y.C. Veterinary microbiology. Malden,


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KAHRS, R.F. Viral diseases of cattle. 2.ed. Ames, IA: Iowa State
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MAHY, B.W.J.; KANGRO, H.O. Virology methods manual. San


Diego, CA: Academic Press, 1996. 374p.

MURPHY, F.A. et al. Veterinary virology. 3.ed. San Diego, CA:


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OIE. Manual of standards for diagnostic tests and vaccines.


3.ed. Paris, France: OIE, 1997. 723p.
GENÉTICA E EVOLUÇÃO VIRAL
Mauro Pires Moraes & Hernando Duque Jaramillo1 4
1 Genética viral 89

1.1 Conceitos e definições 90


1.2 Mutação 92
1.3 Classificação genotípica 93
1.4 Classificação fenotípica 93
1.5 Taxa de mutação 94

1.6 Interações genéticas entre vírus 95


1.6.1 Recombinação 95
1.6.2 Ressortimento 97

1.7 Outras interações virais 97


1.7.1 Complementação 97
1.7.2 Mistura fenotípica 98
1.7.3 Poliploidia 98

2 Evolução viral 99

2.1 Origem dos vírus 99


2.2 Quando se originaram os vírus 100
2.3 Como os vírus ampliaram o seu repertório protéico 100
2.4 Capacidade de mutação viral 100
2.5 Estudos laboratoriais de evolução 102

2.6 Exemplos de evolução viral 102


2.6.1 Vírus da estomatite vesicular: tempo versus fatores ambientais 102
2.6.2 Mixomatose na Austrália 103
2.6.3 Vírus da influenza 104
2.6.4 Parvovírus canino 105

2.7 Conclusões 105

3 Bibliografia consultada 106

1
Responsável pela seção de Evolução Viral.
1 Genética viral pode produzir uma progênie de mais de 100.000
novos vírions em pouco mais de 10 horas. Isso
As populações virais, principalmente aque- corresponde a uma cópia do genoma produzida
las de vírus RNA, são excelentes modelos para a cada meio segundo. Considerando-se infec-
estudos de evolução genética. Devido ao ciclo ções de hospedeiros multicelulares – ou mesmo
replicativo dos vírus ser extremamente rápido, cultivos celulares – as gerações se sucedem em
tanto em infecções naturais como em cultivo ce- magnitude (número de indivíduos produzidos)
lular, os processos de seleção e evolução podem e velocidade inimagináveis. Um ingrediente adi-
ser observados em um curto espaço de tempo. cional nesta complexidade é a potencial variação
Assim, a genética de populações virais pode ser genética da progênie. Nos vírus RNA, geralmen-
considerada uma visão minimalista e simplista te ocorre uma mutação para cada 10.000 nucleo-
da evolução das espécies. tídeos incorporados aos novos genomas, ou seja,
Ao longo de sua história natural – que pode cada novo genoma potencialmente contém, pelo
remeter há milhões de anos – os vírus vêm reali- menos, uma mutação e, em alguns casos, a gran-
zando um número incontável de ciclos replicati- de maioria da progênie pode ser distinta do vírus
vos em seus hospedeiros, sendo constantemente parental. Esses eventos, em conjunto, proporcio-
transmitidos entre hospedeiros. Alguns necessi- nam uma grande capacidade de adaptação des-
tam utilizar diferentes espécies de hospedeiros sas populações, resultando em novas gerações de
– mesmo invertebrados – para assegurar a sua vírus com propriedades distintas das parentais,
manutenção na natureza. As infecções naturais de acordo com o ambiente em que replicam.
resultam em pressão de seleção constante, que A genética dos vírus possui implicações
acaba moldando o perfil genético e fenotípico dos em todos os aspectos de sua biologia, incluindo
vírus, pois favorece e permite a sobrevivência das a evolução e seleção de variantes adaptados ao
variantes que melhor se adaptam ao hospedeiro e meio, distribuição espacial e temporal, espectro
que são mais eficientemente transmitidas. Dentre de hospedeiros, patogenicidade e virulência, in-
as propriedades que favorecem a sobrevivência terações com o sistema imunológico do hospe-
e evolução dos vírus destacam-se: a) capacidade deiro, entre outros. O estudo da genética viral
de replicar e ser excretado em altos títulos; b) ca- tem como objetivos conhecer a composição gené-
pacidade de se adaptar a novos tecidos, órgãos tica do genoma e como as informações genéticas
e/ou hospedeiros; c) capacidade de ser excretado nele contidas se refletem no fenótipo do vírus.
por longo tempo; d) capacidade de se reproduzir Assim, o conhecimento da genética viral pode ter
e ser excretado sem produzir doença severa na um amplo espectro de aplicações, que vão desde
maioria de seus hospedeiros; e) capacidade de a sua utilização para otimizar o manejo sanitário
escapar dos mecanismos imunológicos do hospe- de um rebanho até a produção de recombinantes
deiro; f) capacidade de resistir no meio ambien- atenuados para uso em vacinas.
te, tanto fora de células vivas como em animais A genética viral clássica era baseada no iso-
vertebrados ou invertebrados, assegurando a sua lamento e análise fenotípica de um grande nú-
sobrevivência até alcançar um novo hospedeiro; mero de mutantes naturais, estudos de comple-
g) habilidade de ser transmitido verticalmente mentação, recombinação natural, determinação
entre hospedeiros. da ordem e posição dos genes no genoma e, final-
Dentre as características que apresentam mente, na análise fenotípica dos mutantes para
relevância na genética das populações virais e determinar a função dos genes. Notáveis avanços
facilitam a compreensão da sua evolução, des- foram obtidos com o desenvolvimento dos culti-
tacam-se a grande quantidade de progênie viral vos celulares na década de 1950 e com o advento
produzida a partir da infecção de uma única cé- das técnicas moleculares a partir do final dos anos
lula e o curto período de tempo de geração. Para 1970. Essas técnicas permitiram a análise detalha-
se ter uma idéia desta dinâmica, a infecção de da da seqüência, estrutura e função de ácidos e
uma célula, com uma única partícula infecciosa, proteínas virais e inauguraram uma nova etapa
90 Capítulo 4

no estudo da genética dos seres vivos. Embora apenas algumas aplicações da tecnologia de DNA
alguns procedimentos genéticos clássicos conti- recombinante e técnicas moleculares em geral no
nuem em uso, grande parte foi substituída por estudo da genética e biologia dos vírus. Consi-
métodos modernos que permitem uma análise dera-se que os limites da manipulação genética
mais detalhada e aproximada das relações entre dos vírus serão impostos apenas pelas restrições
genótipo e fenótipo. biológicas, ou seja, será possível modificar tudo e
A seqüência completa do genoma de vir- apenas o que a biologia permitir.
tualmente todos os vírus de interesse humano e Este capítulo abordará os principais meca-
animal já foi determinada e, atualmente, encon- nismos genéticos e de evolução das populações
tra-se disponível em bancos de dados de acesso virais. Dentre esses, serão discutidos os meca-
público. As funções de grande parte das proteí- nismos relacionados diretamente com as carac-
nas virais também já foram estabelecidas, tanto terísticas de replicação do genoma, como as mu-
por métodos diretos como por inferência a par- tações; aqueles resultantes de interações entre
tir de seqüências de aminoácidos e estrutura de diferentes vírus, como a recombinação, rearranjo,
outras proteínas semelhantes. De especial rele- complementação; algumas interações entre vírus
vância para a Virologia é o conjunto de procedi- e hospedeiros, como a integração; e as interações
mentos denominados genericamente de “genéti- não-genéticas entre vírus. A seção de evolução
ca reversa”, que realizam a análise fenotípica a abordará alguns aspectos e hipóteses sobre a ori-
partir da composição genética, ao contrário da gem e evolução dos vírus, e de como esses micro-
genética clássica. Assim, o conhecimento da ge- organismos conseguem se perpetuar e evoluir,
nética e a disponibilidade das técnicas molecula- apesar das constantes restrições impostas pelo
res têm permitido a manipulação do genoma dos meio e pelas defesas dos hospedeiros. Ao final,
vírus, a produção de recombinantes com muta- serão apresentados alguns exemplos de evolução
ções em genes específicos e o estudo do impacto de vírus humanos e animais e as conseqüências
dessas mutações no fenótipo viral. Essas técnicas biológicas nas interações desses agentes com os
e conhecimentos adquiridos têm proporcionado seus hospedeiros.
um progresso notável na Virologia, permitindo
a identificação e manipulação de genes envolvi- 1.1 Conceitos e definições
dos em virulência e nas interações com o sistema
imune, como, por exemplo, para a produção de Os princípios básicos, conceitos e termino-
vacinas mais eficientes e seguras. logia utilizados em genética de vírus são basi-
A seqüência completa de nucleotídeos do camente os mesmos empregados no estudo da
genoma dos vírus pode ser determinada por téc- genética de outros organismos. Assim, eventos
nicas de seqüenciamento de DNA. Em se tratando como mutação, recombinação e seleção possuem
de vírus RNA, a análise e manipulação dos geno- significado semelhante quando aplicados aos ví-
mas são facilitadas pela sua conversão em molé- rus. A genética viral, no entanto, possui algumas
culas de DNA complementar (cDNA) por meio particularidades que são derivadas das peculiari-
de transcrição reversa. Genomas recombinantes, dades da biologia desses agentes. A replicação e
contendo deleções de genes, inserções de genes a conseqüente expansão viral, por exemplo, é um
heterólogos ou mutações pontuais em nucleotí- processo muito mais rápido do que em outros or-
deos ou seqüências específicas podem ser obtidos ganismos uni- ou multicelulares. Para se ter uma
pelo uso de técnicas moleculares de manipulação idéia dessa dinâmica, a infecção de uma célula
enzimática e clonagem de DNA. Vírus conten- por uma única partícula vírica pode resultar na
do genes de outros vírus de interesse podem ser produção de uma progênie de mais de 100.000
produzidos in vitro para estudos de patogenia, vírions em poucas horas. Considerando-se as in-
usos em terapia genética e em vacinas. Proteínas fecções naturais em hospededeiros multicelula-
virais, para uso terapêutico ou vacinal, podem res – vertebrados, por exemplo – ou mesmo em
ser expressas em sistemas heterólogos. Essas são cultivos celulares, a população derivada de um
Genética e evolução viral 91

único progenitor se expande exponencialmente desses vírus, que apresentam diferentes taxas de
em uma velocidade impressionante. Como resul- erro ao replicarem os genomas.
tado, as gerações de vírus se sucedem a uma ve- Em razão da heterogeneidade genética e fe-
locidade incomparável com aquela observada em notípica que pode existir em uma população de
organismos multicelulares. Essa característica faz vírus de uma mesma espécie – sobretudo em ví-
com que os vírus sejam muito utilizados como rus RNA – os estudos genéticos geralmente são
modelo para estudos genéticos e evolutivos. realizados com vírus purificados. Através de clo-
Assim, quando se estuda os diversos aspec- nagem biológica e posterior expansão dos clones
tos da biologia e genética dos vírus, na verdade obtidos, é possível se obter populações homogê-
está se estudando uma população numerosa de neas de vírus derivados de um único ancestral.
indivíduos (vírions), e não um indivíduo isolado Os vírus purificados (ou clonados) a partir de
ou um grupo pequeno (como em estudos gené- populações mistas são geralmente aqueles mais
ticos em bovinos, por exemplo). Então, quando abundantes e predominantes na população, sen-
se refere a uma cepa ou um mutante viral, a refe- do, por isso, os seus verdadeiros representantes.
rência é feita ao conjunto de unidades víricas que À medida que esses clones são expandidos, no
compõe aquela população de vírus. entanto, a tendência é que a progênie viral se
Quando se refere a um determinado vírus torne gradualmente divergente geneticamente
– vírus da cinomose (CDV), por exemplo – está se devido à geração contínua de indivíduos com
referindo a uma espécie viral. Uma espécie viral mutações. Por isso, quando se deseja trabalhar
é definida como uma população de vírus geneti- continuamente com populações homogêneas de
ca e biologicamente muito semelhantes entre si, vírus, essas populações devem ser periodicamen-
derivada de ancestrais comuns. Assim como os te clonadas.
demais organismos uni- ou multicelulares, as di- Além dos conceitos acima, algumas defini-
ferentes espécies virais – ou os diferentes vírus – ções são também necessárias para o entendimen-
são compostos por inumeráveis indivíduos, que to dos princípios de genética viral, embora a sua
podem ser mais ou menos semelhantes entre si. aceitação e terminologia nem sempre sejam uni-
Ou seja, a similaridade genética e fenotípica entre versais. Cabe ressaltar que as definições a seguir
os vírus que compõem uma espécie variam entre – como já definido –, referem-se aos vírus como
as espécies. Os componentes de uma população populações, colhidas diretamente dos hospedei-
de vírus RNA (vírus da influenza, por exemplo) ros ou de cultivos celulares onde são multiplica-
são mais variáveis entre si do que os vírus DNA. dos:
Em outras palavras, as populações de vírus va- – Vírus de campo (wild-type): é o vírus original
riam em sua homogeneidade/heterogeneidade, ou parental, a partir do qual se realiza estudos
sendo que os vírus RNA são mais variáveis. Cabe biológicos, genéticos ou moleculares. Esta po-
recordar que uma célula infectada com um úni- pulação de vírus serve de base para as compa-
co vírion pode produzir centenas de milhares rações genotípicas e fenotípicas feitas com popu-
de novas partículas, não necessariamente idênti- lações derivadas dela ou com outras populações
cas em suas seqüências de nucleotídeos. Assim, da mesma espécie viral, porém de outra origem.
uma amostra do vírus da diarréia viral bovina Embora a denominação remeta ao vírus original
(BVDV), isolada no Brasil, é provavelmente di- que foi obtido de animais infectados, os vírus de
ferente genética e antigenicamente de amostras campo, utilizados em estudos biológicos e genéti-
isoladas em outras partes do mundo. Por outro cos, nem sempre são exatamente iguais àqueles
lado, os vírus DNA tendem a ser mais estáveis originalmente isolados. Isto porque a obtenção de
geneticamente e pouca variação é encontrada en- títulos virais compatíveis com vários estudos re-
tre os vírus de uma mesma espécie. As diferenças quer a sua multiplicação, às vezes, por passagens
nos níveis de homogeneidade/heterogeneidade sucessivas em cultivos celulares ou em ovos em-
entre os vírus DNA e RNA devem-se principal- brionados. Esses ciclos sucessivos de replicação
mente às propriedades das enzimas replicativas podem resultar em alterações genéticas e fenotí-
92 Capítulo 4

picas no vírus. De forma ideal, os vírus de campo a partir da sua caracterização laboratorial. Em
utilizados em quaisquer experimentos devem ter outras palavras, as cepas são alguns isolados ou
sido cultivados o menor número de vezes possí- amostras de um determinado vírus que sofreram
vel. O termo selvagem também tem sido utilizado caracterização após o seu isolamento. No entan-
para designar os vírus de campo; to, essas definições não possuem utilização uni-
– Mutante: é o vírus que difere do vírus pa- versal, e o termo cepa é, muitas vezes, utilizado
rental na seqüência de nucleotídeos de seu geno- para designar isolados não-caracterizados e vírus
ma, ou seja, apresenta alterações de bases e/ou de campo.
de segmentos genômicos em comparação com O termo cepa de referência é utilizado para de-
o vírus de campo. Algumas mutações não se re- signar cepas virais conhecidas que são utilizadas
fletem em alterações fenotípicas e, por isso, são por diferentes laboratórios com fins diagnósticos
chamadas de mutações silenciosas (silent muta- e/ou produção de reagentes, vacinas e mesmo
tions). Nesses casos, o fenótipo do vírus mutante para estudos de patogenia.
é indistinguível do parental e a sua identificação
depende de análise da seqüência do genoma. Por 1.2 Mutação
outro lado, as mutações que resultam em altera-
ções fenotípicas podem ser detectadas pela ob- O termo mutação é utilizado para designar
servação e análise das características fenotípicas alterações na seqüência de nucleotídeos no ácido
alteradas. Vírus temperatura-sensíveis (TS), por nucléico genômico de um determinado organis-
exemplo, são mutantes que não replicam bem à mo comparando-o com o seu parental. As mu-
temperatura corporal (37-38°C), ao contrário do tações surgem naturalmente como resultado da
vírus parental. Os vírus TS geralmente necessi- infidelidade das polimerases – principalmente as
tam uma temperatura mais baixa (30-34°C) para polimerases de RNA – que incorporam nucleo-
replicarem com eficiência. Mutantes de placa tídeos incorretos durante a replicação do geno-
pequena (small plaque mutants) são vírus que se ma. Mutações também podem ser induzidas por
disseminam deficientemente em cultivo celular, métodos químicos (hipoxantina, bromodeoxiu-
produzindo focos menores de destruição celular ridina) ou físicos (raios X, ultravioleta e gama).
do que os produzidos pelo vírus parental. Esse Acredita-se que muitas mutações que ocorrem
fenótipo está geralmente associado com uma ca- naturalmente resultam na produção de vírus in-
pacidade reduzida de transmissão direta entre viáveis, ou seja, constituem-se em mutações le-
células. Mutantes de gama de hospedeiros (host tais. Esses tipos de mutações não são percebidas
range mutants) são vírus que diferem dos vírus e não possuem impacto na adaptação e evolução
parentais em relação ao espectro de hospedei- viral, pois os genomas mutantes são incapazes de
ros que infectam in vivo, ou em relação aos tipos replicar. Logo, quando se faz referência a mutan-
celulares que podem infectar in vitro. O termo tes, cepas, tipos ou variantes virais, sempre são
variante é usado para designar um determinado consideradas as mutações não-letais, que permi-
vírus (uma população de vírus) que apresenta al- tem diferenciar o indivíduo e a sua progênie do
guma diferença fenotípica em relação ao vírus de vírus parental.
campo, ou seja, é uma definição essencialmente Como foi mencionado, as mutações podem
fenotípica. As diferenças fenotípicas entre os ví- ser espontâneas (resultados de erros durante a
rus parentais e os seus variantes certamente são replicação) ou induzidas (resultados de danos
reflexos de mutações no genoma; ao ácido nucléico por agentes químicos ou físi-
– Cepa (ou estirpe): é um vírus cujas carac- cos). As mutações naturais são mais freqüentes
terísticas biológicas e/ou moleculares são razo- nos vírus RNA (um nucleotídeo incorreto entre
avelmente conhecidas. Em contraste, uma amos- 103 a 104 nucleotídeos inseridos) do que nos vírus
tra (ou isolado) é um vírus isolado de animais DNA (um erro a cada 108 a 1011 nucleotídeos in-
sobre o qual não se tem um maior conhecimento. corporados). A maior taxa de mutação observa-
Amostras (ou isolados) podem se tornar cepas da nos vírus RNA deve-se à menor fidelidade da
Genética e evolução viral 93

polimerase de RNA, que incorpora nucleotídeos aminoácido incorporado à proteína e da possível


incorretos com maior freqüência, além da inca- alteração da conformação e/ou função protéi-
pacidade de corrigir os erros cometidos. As po- ca. Mutações missense podem ser absolutamente
limerases de DNA, por sua vez, cometem menos inócuas (se o aminoácido incorporado não alte-
erros e, ainda assim, são capazes de corrigi-los, rar a função da proteína) ou mesmo letais (se o
substituindo os nucleotídeos incorretos incorpo- novo aminoácido alterar drasticamente a função
rados às cadeias nascentes. da proteína codificada). Mutações sem sentido
Os mutantes gerados durante a replicação (nonsense) resultam na produção de um códon de
viral, quando apresentam uma vantagem seletiva terminação da tradução (stop codon) em uma se-
em comparação com os parentais, serão amplifi- qüência aberta de leitura (ORF). Com isso, ocorre
cados com maior eficiência e rapidamente tor- a produção de uma proteína truncada, cuja fun-
nam-se predominantes na população viral. Por cionalidade pode variar amplamente, dependen-
outro lado, mutantes que não apresentam van- do do local onde a mutação é introduzida. Essas
tagem seletiva tendem a permanecer em propor- mutações são classificadas como âmbar (amber =
ção pequena e ocasionalmente desaparecem da UAG), ocre (ochre = UAA) ou opala (opal = UGA).
população, caso repliquem com menor eficiência As conseqüências de mutações nonsense também
do que os demais indivíduos. Ou seja, a evolução variam amplamente, e muitas delas são prova-
de uma determinada população viral depende da velmente letais ou, pelo menos, deletérias para a
taxa de mutação e da seleção a qual os vírus gera- viabilidade do vírus.
dos são submetidos. Embora as mutações e suas conseqüências
sejam mais estudadas em seqüências codificantes
1.3 Classificação genotípica de proteínas, certamente também são importantes
em regiões regulatórias de transcrição e replica-
Um dos critérios usados para a classificação ção (promotores, enhancers, origens de replicação
de mutantes baseia-se nas características genotí- etc.), e em seqüências nucleotídicas envolvidas
picas da mutação. Mutações causadas por simples na encapsidação dos genomas recém-formados.
substituições de nucleotídeos são chamadas de
mutações pontuais. As mutações pontuais podem 1.4 Classificação fenotípica
ser do tipo transição, quando há substituição de
uma purina por outra purina (A ou G) ou pirimi- Os mutantes virais também podem ser clas-
dina por outra pirimidina (C ou T); ou transversão, sificados quanto às conseqüências fenotípicas de
quando ocorre a substituição de uma pirimidina suas mutações. Várias características fenotípicas
por uma purina ou vice-versa. Outras mutações podem ser consideradas nesta classificação, e os
envolvem deleções ou inserções de segmentos de mutantes podem ser selecionados pela sua ha-
tamanhos variáveis de ácido nucléico. bilidade em produzir placas de lise celular; por
Outra forma de classificação das mutações exemplo. Alguns mutantes de adenovírus podem
pontuais considera as suas conseqüências na egressar precocemente da célula infectada, em
codificação de aminoácidos, quando a mutação comparação com os seus parentais, e, conseqüen-
ocorre em seqüências codificantes do genoma. temente, produzem maiores placas de destruição
Assim, as mutações podem ser silenciosas (silent celular in vitro. Essa característica pode estar rela-
mutations) quando a troca do nucleotídeo não cionada com alterações da virulência do vírus, ou
resulta na codificação de outro aminoácido. A seja, mutantes virais que produzem placas maio-
proteína sintetizada permanece a mesma e não res in vitro podem possuir maior virulência em
ocorre mudança no fenótipo do vírus. Mutações hospedeiros susceptíveis in vivo. Este fenômeno
de sentido trocado (missense) são aquelas em que já foi observado em diversos vírus, incluindo o
a troca de nucleotídeos resulta na codificação vírus da peste suína clássica (CSFV). Em outros
de outro aminoácido. As conseqüências dessas casos, pode não existir uma correlação entre ta-
mutações são variáveis, dependendo do novo manho de placa in vitro e virulência in vivo. Nes-
94 Capítulo 4

ses casos, o fenótipo serve apenas como um parâ- tornam predominantes na população. Esses vírus
metro para a seleção de mutantes com diferentes são chamados de mutantes de escape antigênico. A
habilidades replicativas in vitro. geração natural de mutantes de escape é uma es-
Outro fenótipo observado para a seleção tratégia utilizada por vírus que produzem infec-
de mutantes é a capacidade de replicação a di- ções persistentes, sobretudo os retrovírus, pois
ferentes temperaturas. Como já mencionado, os podem seguir replicando no hospedeiro mesmo
mutantes TS replicam bem a temperaturas de na presença de anticorpos.
30-34°C (denominada temperatura permissiva) e Mutantes deficientes em atividade enzimá-
não replicam com eficiência a 37°C (temperatu- tica são aqueles que apresentam mutações nos
ra não-permissiva). Mutantes adaptados ao frio genes que codificam determinadas enzimas,
(cold adapted) replicam melhor sob temperaturas como a timidina quinase dos herpesvírus. Esses
baixas, mas retêm alguma capacidade de repli- mutantes apresentam capacidade de replicação
car a 37°C. Freqüentemente, essa característica é semelhante a dos vírus parentais in vitro, mas a
atribuída a alterações conformacionais de deter- sua virulência é atenuada quando são inoculados
minadas proteínas, especialmente as polimera- em animais susceptíveis. A exemplo dos mutan-
ses virais, dependendo da temperatura. Ou seja, tes TS, esses vírus também podem ser utilizados
pela mudança na sua seqüência de aminoácidos para a produção de vacinas. Os mutantes que
em determinada temperatura, essa proteína não apresentam atenuação da virulência, sem que ne-
manteria sua conformação secundária ou terciá- cessariamente se conheça a causa, são conhecidos
ria e perderia a sua função. Esses mutantes po- como mutantes atenuados.
dem ser utilizados em vacinas atenuadas, pois
replicam apenas em áreas superficiais do corpo, 1.5 Taxa de mutação
sem se disseminar sistemicamente no organis-
As taxas de mutação natural dependem ba-
mo.
sicamente da ‘fidelidade’ da enzima polimerase
A alteração da gama de hospedeiros é outra
e da sua capacidade de corrigir eventuais erros
característica fenotípica utilizada na classificação
cometidos durante a polimerização das novas ca-
de mutantes. Alguns mutantes podem não repli-
deias de ácido nucléico. As polimerases de DNA,
car com a mesma eficiência nos mesmos hospe-
que utilizam moléculas de DNA como molde
deiros que os vírus de campo, reduzindo, assim,
para a síntese de novas moléculas, geralmente
a sua abrangência. Um exemplo típico é um mu-
apresentam um sistema de correção (proofreading)
tante do vírus da febre aftosa (FMDV) que surgiu,
para aqueles nucleotídeos incorporados erro-
em 1997, na Tailândia. Esse mutante natural não
neamente. Esse processo envolve seqüências
possuía a habilidade de infectar bovinos – prin-
funcionais específicas (motivos) com atividade
cipal espécie hospedeira do vírus – infectando
exonuclease, que são capazes de remover os nu-
apenas suínos.
cleotídeos incorretos e substituí-los pelos corre-
Uma forma importante de seleção de mu-
tos. Em contraste, as enzimas que polimerizam
tantes é a resistência a determinadas drogas. A
RNA a partir de RNA não possuem a capacidade
pressão de seleção exercida pelas drogas antivi-
de proofreading. Como conseqüência, as polime-
rais permite o seu uso para a seleção e pesqui- rases de DNA apresentam uma taxa de um erro
sa desses mutantes. Anticorpos neutralizantes para cada 1010 a 1011 nucleotídeos incorporados,
também podem ser utilizados para a seleção de enquanto as polimerases de RNA apresentam um
vírus resistentes à neutralização. Para isso, os erro a cada 103 a 104 nucleotídeos. Isso significa
vírus são cultivados in vitro na presença de an- que a taxa de erros cometida durante a replicação
ticorpos neutralizantes. Os mutantes originados dos vírus RNA pode ser até um milhão de vezes
que eventualmente não forem reconhecidos pe- maior do que aquela resultante da replicação dos
los anticorpos – por alterações nas proteínas de vírus DNA. A diferença nas taxas de mutação se
superfície – são rapidamente amplificados e se constitui na principal causa da grande variabi-
Genética e evolução viral 95

lidade genética e antigênica dos vírus RNA em enzimas e fatores auxiliares do hospedeiro. Em
comparação com os vírus DNA. tese, a recombinação homóloga pode ocorrer en-
Os erros de incorporação são essencialmen- tre o genoma do vírus e da célula e entre dois ge-
te randômicos, mas a sua detecção em mutantes nomas virais. As conseqüências da recombinação
naturais indica que podem existir regiões onde entre dois genomas virais variam de acordo com a
há uma maior concentração de erros, conhecidos similaridade das seqüências recombinadas e com
como pontos quentes (hot spots). Essas diferenças o seu impacto no fenótipo viral. Cabe ressaltar
estão relacionadas com a habilidade dos mutan- que a recombinação entre dois vírus geralmente
tes sobreviverem com essas mudanças. Regiões ocorre entre vírus da mesma espécie e depende
mais conservadas são aquelas em que as muta- de uma infecção concomitante por esses vírus.
ções eventualmente introduzidas não se perpetu-
am na população por provocarem efeitos deleté-
rios aos novos genótipos. Genoma A

1.6 Interações genéticas entre vírus


Pareamento e troca
de um segmento
1.6.1 Recombinação

Classicamente, o termo recombinação é uti-


lizado para designar um intercâmbio de seqüên- Genoma B
cias genéticas entre dois genomas. Esse processo
é muito estudado em moléculas de DNA e ocor-
re, com grande freqüência, na maioria das célu-
las eucariotas e procariotas. Alguns mecanismos
Genomas recombinantes A/B
de reparo do DNA, por exemplo, baseiam-se em
eventos de recombinação genética entre os cro-
mossomos homólogos. Mecanismos semelhantes
são observados em vírus DNA e parecem fazer
parte do seu processo evolutivo. Esse processo
Figura 4.1. Ilustração simplificada da recombinação
envolve o alinhamento de duas moléculas com homóloga entre duas moléculas de DNA.
seqüências semelhantes, a clivagem da cadeia
contínua do DNA, o intercâmbio de uma região
do genoma e a religação da cadeia de DNA, ori- Nos vírus RNA clássicos, esse evento é mais
ginando moléculas híbridas ou recombinantes raro e, provavelmente, não utiliza enzimas celu-
(Figura 4.1). Por causa da necessidade do alinha- lares. Os picornavírus – e provavelmente outros
mento de seqüências entre moléculas semelhan- vírus RNA de genoma não-segmentado –apre-
tes, este processo é denominado recombinação sentam uma forma de recombinação pouco efi-
homóloga. Na biologia dos vírus, recombinações ciente e diferente da recombinação homóloga. A
podem ocorrer entre dois vírus de uma mesma recombinação genômica desses vírus envolve o
espécie viral ou, ocasionalmente, entre o genoma mecanismo de escolha do molde (copy-choice). Nes-
viral e o DNA da célula hospedeira. ses casos, a polimerase de RNA inicia a síntese
A recombinação homóloga parece ser co- da cadeia filha utilizando uma molécula de RNA
mum entre os vírus DNA e aqueles que apresen- como molde, mas troca de molde durante a poli-
tam moléculas de DNA intermediárias de sua merização, resultando em moléculas híbridas de
replicação, como os retrovírus. Em células infec- RNA, com seqüências mistas derivadas de mais
tadas, esse processo é realizado com o auxílio de de uma molécula molde (Figura 4.2).
96 Capítulo 4

é a recombinação entre RNA viral e seqüências


Genoma A celulares (provavelmente de RNAs mensagei-
ros), além de recombinações intramoleculares,
A polimerase que ocorrem durante infecções persistentes com
troca de molde
o vírus da diarréia viral bovina (BVDV). Nesses
casos, o vírus que produz a infecção persistente
Genoma B é não-citopático e replica continuamente no ani-
mal, muitas vezes sem conseqüências clínico-pa-
tológicas. No entanto, eventos de recombinação
e/ou rearranjos genômicos, envolvendo o geno-
Genoma recombinante A/B
ma viral e seqüências celulares, ocasionalmente
resultam na geração de mutantes citopáticos. A
geração desses mutantes no animal persistente-
Figura 4.2. Ilustração simplificada do modelo de
recombinação de RNA pelo mecanismo de copy choice. mente infectado é seguida do desenvolvimento
de doença fatal, denominada doença das muco-
Alguns exemplos de recombinação de vírus sas. Os mutantes citopáticos podem conter uma
RNA na natureza servem para ilustrar as suas variedade de mutações, inserções e rearranjos
possíveis conseqüências. Um exemplo clássico genômicos (Figura 4.3.). Casos de recombinação

A
pro Rns
5’ N C E E1 E2 NS2-3 NS4-A NS4-B NS5A NS5B 3’

Inserção
B
pro Rns
5’ N C E E1 E2 Ns2 Ns3 NS4-A NS4-B NS5A NS5B 3’

Inserção Duplicação
C
pro Rns
5’ N C E E1 E2 NS2-3 Ns3 NS4-A NS4-B NS5A NS5B 3’

Duplicações
D
pro Rns pro
5’ N C E E1 E2 NS2-3 N Ns3 NS4-A NS4-B NS5A NS5B 3’

E
pro
5’ N Ns3 NS4-A NS4-B NS5A NS5B 3’

Rns
C E E1 E2 Ns2

Deleção

Figura 4.3. Ilustração de genomas do vírus da diarréia viral bovina (BVDV) contendo alterações genéticas. A) Genoma
do vírus de campo não-citopático; B-E) Genomas de mutantes citopáticos gerados por recombinação genética; B)
Genoma contendo uma inserção de seqüência celular; C) Genoma contendo uma inserção de gene celular e
pro
duplicação do gene na proteína NS3; D) Genoma contendo duplicações dos genes N e NS3; E) Genoma defectivo
contendo uma deleção que abrange os genes das proteínas estruturais e a NS2.
Genética e evolução viral 97

de amostras de campo e cepas vacinais do BVDV,


com conseqüências diversas, também já foram re- Vírus parental A Vírus parental B
latadas.
Eventos de recombinação também têm sido
descritos nos togavírus e coronavírus, com con-
seqüências que incluem o surgimento de novos
vírus, apresentando espectro de hospedeiros e
virulência alterados. No entanto, esses processos
ainda não estão totalmente elucidados. Provavel-
mente, há uma correlação direta com a estraté-
gia de replicação utilizada por esses vírus. Até o
momento, não há evidência desse tipo de recom-
binação em vírus com genoma RNA de sentido
negativo.
O mecanismo natural de recombinação tem
sido explorado em laboratório, para a produção
de vírus recombinantes, com características de- Progênie A Progênie A/B Progênie B
terminadas para usos diversos, incluindo estudos
genéticos de virulência e produção de vacinas.
Figura 4.4. Ilustração do mecanismo de ressortimento
entre dois vírus da influenza resultante de uma co-
1.6.2 Ressortimento infecção em suínos.

Esse mecanismo é exclusivo dos vírus que 1.7 Outras interações virais
possuem o genoma RNA segmentado (ortomi-
xovírus, buniavírus, arenavírus, reovírus e bir- 1.7.1 Complementação
navírus) e pode ocorrer quando há uma infecção
concomitante por duas cepas do mesmo vírus. Esta interação é puramente fenotípica e
Nesses casos, os segmentos genômicos recém- funcional e não resulta de modificação do ge-
replicados são redistribuídos de maneira irre- noma viral. Por exemplo, se dois mutantes TS,
gular na progênie viral, resultando em vírions determinados por mutações em genes distintos,
que contêm uma mistura de segmentos dos dois infectarem concomitantemente uma célula, a ca-
vírus parentais. Esse mecanismo tem sido bem racterística fenotípica pode ser revertida e ambos
documentado nos vírus da influenza e tem sido os vírus podem replicar a 37°C, porém as carac-
responsabilizado pelo surgimento de cepas alta- terísticas genotípicas permanecem as mesmas.
mente patogênicas resultantes do ressortimento Esse tipo de complementação é do tipo intergêni-
entre vírus aviários e de mamíferos (Figura 4.4). ca ou não-alélica (nonallelic). Quando as mutações
Esses eventos ocorrem com maior freqüência em determinantes dos TS ocorrem no mesmo gene,
suínos, que podem ser infectados tanto por vírus mesmo que com modificações diferentes, é pouco
aviários como por vírus de mamíferos. De fato, provável que ocorra complementação.
várias cepas do vírus da influenza que causaram Com menor freqüência, a complementação
surtos em humanos e suínos podem ter resultado pode ser intragênica ou alélica (allelic). Essa com-
de ressortimento entre vírus previamente exis- plementação pode ocorrer quando o produto do
tentes. Do ponto de vista evolutivo, o ressorti- gene mutante origina uma proteína com múlti-
mento representa um importante evento para o plas subunidades, e as subunidades que são fun-
vírus, pois resulta em uma alteração genética e cionais podem complementar a deficiência do
fenotípica muito rápida. complexo final.
98 Capítulo 4

O processo de complementação também


ocorre em determinadas populações de vírus que Vírus parental A Vírus parental B
são submetidas a várias passagens in vitro. Du-
rante esse processo, são gerados genomas defec-
tivos contendo deleções em um ou mais genes.
Esses genomas defectivos não são capazes de
replicar autonomamente, pois não contêm genes
que codificam proteínas essenciais para a repli-
cação. A presença concomitante de um genoma Co-infecção de
um hospedeiro
íntegro nas células infectadas, no entanto, permi-
te a complementação das funções ausentes nos
genomas defectivos e, assim, esses genomas são
continuamente replicados. Embora esse evento
seja bem caracterizado na biologia de vários ví-
Progênie
rus in vitro, a sua ocorrência e significado biológi-
co in vivo permanecem incertos.

– Fenótipo misto
1.7.2 Mistura fenotípica – Sem alterações no genoma

Possível: – Host range alterado


Essa alteração é caracterizada pela interação – Resistentes à neutralização
entre dois vírus com a produção de progênie dis-
tinta dos vírus parentais. Os vírus resultantes são
caracterizados pela presença de diferentes deter- Figura 4.5. Ilustração da mistura fenotípica resultante da
minantes antigênicos e as partículas virais pos- co-infecção de uma célula por dois vírus diferentes. A
progênie viral pode conter vírus com fenótipos mistos,
suem componentes de ambos os vírus parentais
porém com o genoma de um dos dois vírus parentais.
(Figura 4.5). Como a complementação, a mistura
fenotípica não envolve mudanças genéticas na
progênie. Ou seja, os vírions resultantes possuem
componentes estruturais oriundos dos dois vírus 1.7.3 Poliploidia
parentais, porém os seus genomas são idênticos
aos dos vírus parentais. A mistura fenotípica A grande maioria dos vírus animais é ha-
pode ocorrer entre vírus da mesma família ou de plóide, ou seja, possui apenas uma cópia do ge-
famílias diferentes. noma nos vírions. Os retrovírus se constituem
Um exemplo de mistura fenotípica entre em exceções, pois os vírions contêm duas cópias
famílias distintas ocorre entre membros da Rhab- idênticas do genoma (são diplóides). Porém, os
doviridae e Paramyxoviridae. Os vírus dessas duas paramixovírus podem, ocasionalmente, apresen-
famílias possuem proteínas distintas no envelo- tar múltiplas cópias de seu genoma – encapsi-
pe, porém com funções semelhantes e, quando dados em múltiplos nucleocapsídeos – em uma
co-infectam uma determinada célula, podem re- única partícula vírica, fenômeno denominado
alizar a mistura fenotípica. Há também a possibi- poliploidia.
lidade de produção de pseudovírions, quando o Existem descrições de isolados do vírus do
nucleocapsídeo pertence a um vírus e o envelope sarampo que, eficientemente, produzem vírions
a outro (exemplo: nucleocapsídeo de retrovírus com, pelo menos, duas cópias do genoma. Essas
e envelope de um rabdovírus). Nesse caso, o tro- duas moléculas de RNA são complementares e
pismo dos vírus resultantes será o mesmo dos ra- possuem mutações diferentes, existindo a neces-
bdovírus, enquanto a progênie formada será de sidade da presença das duas fitas para ocorrer a
retrovírus. replicação.
Genética e evolução viral 99

2 Evolução viral 2.1 Origem dos vírus

Quando se fala em evolução, geralmente O estudo da origem e evolução dos vírus é


se relaciona esse termo com um processo longo, realizado principalmente por alinhamento e com-
que ocorre durante milhões de anos. No entanto, paração de seqüências de ácidos nucléicos e pro-
mesmo para os vírus muito antigos (alguns com teínas, análises filogenéticas e por estudos das es-
indícios de existência por mais de 220 milhões de truturas tridimensionais das enzimas e proteínas
anos), o processo de evolução ocorre rapidamen- estruturais. Ainda que não exista uma evidência
te e é permanente, em razão do grande número inequívoca que permita determinar quando se
de gerações produzidas em um curto espaço de originaram e com que rapidez evoluíram, pode-
tempo. As mudanças evolutivas dos vírus se pro- se afirmar que os diferentes vírus não possuem
duzem em questões de dias, e é possível avaliar uma origem comum e que vários grupos deles
as suas conseqüências no fenótipo viral em nível surgiram independentemente. Através dos anos,
laboratorial. Essa capacidade de mudança possui têm-se proposto várias teorias sobre a origem
implicações importantes na emergência de novos desses agentes. A teoria regressiva propõe que os
patógenos, como tem sido testemunhado duran- vírus evoluíram por simplificação ou regressão
te as últimas décadas, com a emergência de vírus de parasitos intracelulares que perderam os ge-
como o da imunodeficiência humana (HIV), o nes requeridos para a replicação independente.
parvovírus canino (CPV) e as mudanças periódi- A teoria de origem celular defende que os vírus sur-
cas que capacitam os vírus da influenza a iniciar giram de componentes celulares que adquiriram
novas pandemias. a habilidade de replicar de forma autônoma den-
A evolução viral tem sido tema de estudos tro da célula hospedeira. A teoria da co-evolução
intensos nos últimos anos e, conseqüentemente, com as células – muito favorecida na atualidade,
tem permitido a compreensão dos seus mecanis- mas de difícil comprovação – propõe que tanto
mos e efeitos. Esta seção não pretende ser um tra- os vírus RNA como os vírus DNA se originaram
tado exaustivo de um tema tão complexo, apenas de plasmídeos (cromossomos acessórios que re-
se trata de um resumo geral, que inclui algumas plicam independentemente do DNA celular).
das teorias recentes sobre a origem dos vírus, sua Estes plasmídeos poderiam ter adquirido, prova-
rápida capacidade de mudança, a maneira como velmente por recombinação com o genoma das
se estuda a evolução em laboratório e no campo, células hospedeiras, genes que permitiam a sua
as implicações da evolução viral na patogênese e transformação em elementos genéticos com as
aparecimento ou emergência de novas enfermi- três características básicas dos vírus. Essas carac-
dades. O conhecimento acerca dos mecanismos terísticas são: a) codificar mecanismos que per-
utilizados pelos vírus para alterar as suas pro- mitam a replicação intracelular; b) capacidade de
priedades genéticas e fenotípicas pode permitir a empacotar o ácido nucléico em partículas víricas,
utilização de manejos mais adequados dos surtos que são biologicamente inativas e relativamente
e o planejamento mais efetivo de programas sani- resistentes no meio extracelular; e c) capacidade
tários para o controle de infecções virais. de ser transmitido entre células. Pode-se dedu-
Todos os seres vivos evoluem com o decorrer zir, portanto, que antes de se converter em vírus,
do tempo, mas a rapidez de evolução dos vírus esses plasmídeos já continham as funções neces-
RNA situa-se várias ordens de magnitude acima sárias para a sua replicação independente e que
da velocidade de evolução dos organismos cujo alguns deles começaram a desenvolver parte da
genoma é formado por DNA. Essa característica maquinaria protéica (polimerases) que permite
pode ser explicada pela infidelidade e incapaci- a replicação do seu material genético. Posterior-
dade de correção das polimerases de RNA, o que mente, teriam adquirido os genes que codificam
resulta em um número maior de erros durante a as proteínas necessárias para empacotar o seu
replicação do genoma. genoma e transportá-lo entre células. Teriam ad-
100 Capítulo 4

quirido também um variado repertório de prote- genoma viral com o ácido nucléico de outros ví-
ínas, para uma melhor manipulação das funções rus ou das células hospedeiras. A recombinação
celulares, do sistema imunológico do hospedeiro do genoma pode ocorrer entre vírus diferentes,
e para a produção de uma progênie mais abun- inclusive entre vírus que pertençam a famílias
dante. distintas. Os vírus são muito ativos na obtenção
de seqüências genômicas por recombinação com
2.2 Quando se originaram os vírus outros vírus durante a sua evolução, e essa ca-
racterística tem dificultado a construção de árvo-
A dependência de uma célula hospedeira res filogenéticas únicas, que facilitem uma clas-
para a ocorrência da replicação poderia impli- sificação lógica e única. Como resultado dessas
car que os vírus se originaram depois das célu- recombinações, vírus de grupos muito distintos
las eucariotas. No entanto, alguns elementos que podem possuir genes relacionados e seqüências
compõem os vírus podem ter se originado antes homólogas.
da evolução celular. O genoma dos vírus RNA, A recombinação pode ocorrer entre regiões
por exemplo, pode ter surgido nos primórdios do próprio genoma viral (recombinação intra-
da vida, em um mundo constituído por RNA e molecular), resultando em duplicação de genes,
que consistiria de moléculas de RNA catalíticas e deleções e inserções, com a transformação em
auto-replicativas. novos genes. Assim, uma determinada seqüência
Aparentemente, todos os vírus RNA se origi- de nucleotídeos pode duplicar-se várias vezes e,
naram de um único ancestral ou desenvolveram dessa maneira, originar famílias de genes, como
soluções comuns para problemas similares. A ocorre nos poxvírus e no vírus da peste suína
análise comparativa das seqüências de aminoáci- africana (ASFV).
dos das polimerases dos vírus RNA (enzimas que Os vírus também podem obter novos genes
sintetizam cópias do genoma RNA) favorece a hi- mediante a síntese de uma nova seqüência de
pótese de que o seu gene seja codificado por vírus nucleotídeos ou pelo uso de seqüências abertas
de procariotas e de eucariotas. Essa observação de leitura (ORFs; open reading frame) alternativas.
indica que a molécula ancestral das polimerases Combinações desses mecanismos já foram descri-
de RNA provavelmente se originou antes da di- tas, como a duplicação de um gene acompanhada
vergência evolutiva em procariotas e eucariotas. de mudança de ORF.
Outras superfamílias de enzimas comuns a todos Esses processos de recombinação seguem
os vírus RNA e que, como as polimerases, apre- ocorrendo e podem ter conseqüências diversas
sentam um alto grau de similaridade, também na biologia dos vírus, incluindo alterações na
reforçam a hipótese de uma origem muito antiga especificidade de hospedeiro, tropismo tecidual,
e monofilogenética dos vírus RNA. Essas super- patogenicidade e virulência, como também po-
famílias são as helicases e algumas proteases se- dem resultar na emergência de novos vírus.
melhantes a quimiotripsinas.
2.4 Capacidade de mutação viral
2.3 Como os vírus ampliaram o seu
repertório protéico O estudo das enzimas que catalisam a repli-
cação dos ácidos nucléicos – as polimerases – tem
Após a aquisição dos genes básicos que per- demonstrado que as polimerases de DNA celula-
mitiam a replicação e construção do capsídeo res possuem uma alta fidelidade. Isto se deve, em
viral contendo o genoma, os vírus continuaram parte, à capacidade dessas enzimas de remover
evoluindo e ampliando o número de genes do nucleotídeos inseridos equivocadamente. A taxa
seu genoma, para codificar novas proteínas, e, de erro dessas polimerases tem sido calculada em
conseqüentemente, adquirir novas funções e pro- 10-8 a 10-11 nucleotídeos por replicação. Isso sig-
priedades evolutivas. nifica que, em uma molécula de DNA de um bi-
Um dos mecanismos utilizados para a aqui- lhão de nucleotídeos polimerizados, apenas um
sição de novas seqüências é a recombinação do nucleotídeo errado será incorporado. A taxa de
Genética e evolução viral 101

erro das polimerases virais de DNA é 20 a 100 A característica das polimerases de intro-
vezes maior. duzir mutações é muito favorável para os vírus,
Em contraste, as polimerases dependentes permitindo a produção de mutantes que, even-
de RNA não possuem mecanismos de correção, tualmente, possam se adaptar ao hospedeiro ou
e, por isso, a sua taxa de erro é muito alta: entre a diferentes condições do meio. Em alguns casos
10-3 a 10-4 nucleotídeos/replicação. Portanto, cada específicos, os vírus que possuem polimerases
novo genoma RNA viral com 10.000 nt contém com maior fidelidade apresentam deficiências
uma média de três mutações pontuais (três nu- em sua aptidão biológica. Isso sugere que a evo-
cleotídeos diferentes do genoma parental). Algu- lução tende a conservar esta capacidade de erro
mas dessas mutações podem ser prejudiciais aos das polimerases, mas mantendo-as abaixo de um
vírus, enquanto outras são neutras e não possuem limite denominado nível de erro limite (threshold
nenhum efeito. É provável também que algumas error). Acima desse nível não seria possível a so-
mutações introduzidas durante a replicação re- brevivência dos vírus como espécie.
sultem em benefícios para a replicação viral, con- Os vírus constituem a combinação da gran-
ferindo vantagens evolutivas aos vírus mutantes. de diversidade de indivíduos, com seqüências
Uma mesma mutação pode ter efeitos diferentes diferentes e que possuem a propriedade de pro-
para um vírus, dependendo do meio em que se duzir progênie abundante. Como exemplo, o
encontre. Por exemplo, uma determinada muta- vírus da poliomielite (um picornavírus) produz
ção pode conferir vantagens para a replicação do uma descendência de 10.000 indivíduos em uma
vírus em suínos, porém pode ser adversa para a única célula infectada. A população viral sofrerá,
sua replicação em bovinos. Essas mutações, que então, um processo de seleção natural cada vez
ocorrem ao acaso, são mantidas ou descartadas que as condições do meio se alterem. Assim, os
por meio dos processos de seleção natural por indivíduos com maior aptidão para sobreviver
conferir maior aptidão biológica. O conhecimento a essas novas condições se tornarão também os
das conseqüências dessas mutações pode ser útil mais abundantes.
para a manipulação viral, pois possibilita o de- A alta taxa de alterações produzidas no ge-
senvolvimento de vacinas baseadas em variantes noma dos vírus RNA é o motor que permite a ex-
virais atenuadas ou adaptadas a outras espécies. ploração rápida de novos espaços evolutivos. Em
Como cada novo genoma de RNA viral outras palavras, as mutações no genoma podem
sintetizado possui pelo menos três mutações, refletir em mudanças de aminoácidos e essas no-
as seqüências genômicas e os vírus individuais vas combinações de aminoácidos podem gerar
produzidos continuamente são diferentes entre novas estruturas protéicas com propriedades e
si. Essa distribuição de indivíduos não idênti- funções inéditas. Essas propriedades e funções
cos, porém muito semelhantes, foi denominada podem ser importantes para a adaptação do ví-
por Manfred Eigen como quasispecies. Portan- rus a novos hospedeiros ou para escapar da vigi-
to, os indivíduos que compõem uma quasispecie lância do sistema imune, por exemplo.
apresentam pequenas variações nas seqüências É importante também observar que a sele-
genômicas, porém aqueles indivíduos que apre- ção natural faz parte do processo evolutivo. O
sentam uma maior aptidão biológica e eficiência processo de seleção faz com que os indivíduos
de replicação tornam-se predominantes sobre os que contenham mutações que favoreçam a sua
demais e são produzidos em maior abundância. replicação em determinado meio produzam
Apesar do polimorfismo existir em virtualmen- maior descendência e predominem na popula-
te todos os seres vivos, o termo quasispecie viral ção. Por exemplo, uma mutação nas proteínas do
é utilizado para enfatizar a grande variação que capsídeo pode fazer com que um vírus escape da
os vírus componentes de uma mesma população neutralização por anticorpos. Esses vírus que es-
exibem. Esse termo é utilizado para os vírus RNA capam da neutralização sofrem um processo de
pela sua grande variabilidade genética. Assim seleção quando infectam animais vacinados e,
mesmo, os diferentes vírus RNA apresentam ní- com o tempo, passam a predominar e substituir a
veis variáveis de variabilidade genética. população viral original.
102 Capítulo 4

2.5 Estudos laboratoriais de evolução mais benignos, alguns animais não adoecem e
podem desenvolver imunidade natural por con-
O estudo da dinâmica de evolução dos vírus tato com o vírus de baixa aptidão biológica.
RNA in vitro tem sido realizado principalmente
em bacteriófagos e no vírus da estomatite vesi- 2.6 Exemplos de evolução viral
cular (VSV). A freqüência de recombinação do
VSV é muito baixa e não é detectável. Esse fenô- Mesmo que a capacidade teórica de muta-
meno permite que se utilizem duas populações ção e exploração do espaço evolutivo por parte
virais competindo em células, sem que haja in- dos vírus pareça ilimitada, a estrutura e funções
tercâmbio genético entre elas. Caso se consiga das diferentes proteínas e ácidos nucléicos desses
uma característica ou marcador que identifique agentes, assim como as interações com os hospe-
e diferencie essas populações, é possível saber as deiros, já sofreram um processo intenso e pro-
proporções de cada população ao longo de pas- longado de otimização da aptidão biológica. Por-
sagens seriadas em cultivos de células e avaliar a tanto, provavelmente há restrições que limitem
aptidão biológica relativa de cada população. Uma a capacidade real de mudança. Por essa razão, é
característica fenotípica utilizada nesses estudos possível que vírus isolados de uma mesma região
é a resistência (ou escape) à neutralização por com um grande intervalo de tempo sejam virtu-
anticorpos, presente em uma das populações, almente idênticos. Ou seja, já teriam atingido um
devido a mutações introduzidas pela polimerase. genótipo/fenótipo equilibrado e suficientemente
Dessa maneira, foram isolados mutantes cujas se- evoluído ou, por outro lado, já teriam esgotado a
qüências consenso diferiam da seqüência da cepa sua capacidade de evolução.
progenitora somente em um aminoácido, sendo Quando se analisa a evolução viral, pode-
resistentes à neutralização por um anticorpo mo- se observar como os diferentes vírus utilizam
noclonal específico. Quando a cepa progenitora e distintas estratégias evolutivas. Em seguida, são
a cepa resistente à neutralização são misturadas, apresentados alguns exemplos que ilustram essas
é possível determinar a proporção de placas pro- mudanças evolutivas que conduzem à aquisição
duzidas por cada uma das cepas cultivadas na de uma maior aptidão biológica, isto é, à produ-
presença ou ausência do anticorpo monoclonal. ção de progênie viral mais bem adaptada e mais
No cultivo com a presença do anticorpo, somente numerosa.
são amplificados os vírus da cepa resistente à neu- Existem vírus cujas mutações facilitam a
tralização, enquanto no cultivo sem anticorpos sua adaptação ao meio e outros cujas alterações
são produzidas placas produzidas por vírus das genéticas alteram a sua virulência. Existem tam-
duas cepas. Dessa forma, é possível quantificar a bém aqueles que alteram as suas propriedades
proporção de placas formadas por componentes antigênicas para garantir seus ciclos contínuos de
de cada cepa e determinar qual cepa apresentou transmissão e alguns que usam estratégias que
maior aptidão biológica. ampliam seu tropismo para outras espécies e/ou
Esses experimentos podem ser relacionados tecidos. Todas essas alterações ocorrem com o
com muitas observações epidemiológicas realiza- objetivo único de garantir a sobrevivência e ma-
das em populações animais. As altas densidades nutenção desses agentes na natureza.
animais nas criações intensivas requerem progra-
mas sanitários especiais, pois, após a introdução 2.6.1 Vírus da estomatite vesicular: tem-
de um patógeno, a aglomeração de animais fa- po versus fatores ambientais
vorece os ciclos de infecção iniciados com gran-
des populações de vírus, e a evolução viral con- O vírus da estomatite vesicular (VSV) é um
tribuiria para uma maior aptidão biológica. Em vesiculovírus pertencente à família Rhabdoviridae.
contraposição, as baixas densidades de animais O VSV infecta uma grande variedade de rumi-
na população produzem indiretamente um “gar- nantes e suídeos domésticos e silvestres, causan-
galo genético” e, como conseqüência, os vírus são do uma doença clinicamente semelhante à febre
Genética e evolução viral 103

aftosa, caracterizada por febre e lesões vesicula- A cepa viral utilizada era oriunda do Brasil,
res na boca, focinho, patas e em regiões do corpo isolada pelo Instituto Oswaldo Cruz em 1911. Ini-
com abrasões ou lesões mecânicas. cialmente, a disseminação do vírus não foi ampla
As análises filogenéticas de isolados do VSV e permaneceu restrita aos habitats onde era in-
de várias regiões da América Central e do Norte troduzido, sem disseminação para ecossistemas
têm demonstrado que as seqüências de cepas de vizinhos. Porém, observaram-se, posteriormente,
uma mesma região geográfica apresentam um centenas de coelhos doentes em locais muito dis-
alto grau de conservação, mesmo quando isola- tantes dos locais originais de introdução do vírus.
das a grandes intervalos de tempo (até 30 anos). A doença se distribuiu principalmente pelas mar-
Essa característica não é observada para os vírus gens dos grandes rios, onde os mosquitos eram
isolados na mesma época em diferentes regiões. mais abundantes. O verão seguinte foi úmido, e a
A distribuição filogenética mostra um melhor enfermidade se disseminou rapidamente, resul-
agrupamento dos vírus por regiões geográficas. A tando em mortalidade de até 99%. No entanto,
evolução desse vírus depende de pressões de se- no ano seguinte, observou-se que uma variante
leção relacionadas com fatores ecológicos, como menos virulenta do vírus estava gradativamente
os vetores que transmitem o vírus e os animais substituindo a cepa original de alta virulência.
reservatórios que o mantêm. Para esse vírus, não A virulência da cepa original e das cepas de
foi detectada a evolução por pressão imunológi- campo isoladas na Austrália foi determinada em
ca seletiva, que é muito evidente para o vírus da coelhos de laboratório e a cada isolado se atri-
influenza, por exemplo. buiu um grau de virulência entre I e V. A cepa
original foi 100% letal em 11 a 13 dias após a ino-
2.6.2 Mixomatose na Austrália culação (virulência grau I). Algumas das cepas de
campo produziram uma letalidade entre 70-95%,
Muitos estudos clássicos demonstram a evo- com média de sobrevivência de 17 a 20 dias (vi-
lução dos vírus nas populações humanas e ani- rulência grau III). Outras cepas matavam menos
mais. Em um deles, observou-se como o vírus da de 50% dos coelhos infectados e produziam uma
mixomatose dos coelhos evoluiu após a sua intro- doença mais benigna (virulência grau IV). Após
dução na Austrália. A mixomatose é uma doença dois anos, todos os vírus de campo recuperados
produzida por um poxvírus, cujos hospedeiros na Austrália possuíam grau III.
naturais são os coelhos americanos do gênero A seleção de cepas menos letais ocorreu em
Sylvilagus. Essa enfermidade é conhecida desde conseqüência da transmissão do vírus para os
1896, e a transmissão ocorre mecanicamente por mosquitos, que foi prolongada para os vírus com
insetos. Nos hospedeiros naturais, a infecção pro- virulência de grau III pela maior sobrevivência
duz fibromas localizados e benignos. Porém, ao dos coelhos. Como conseqüência, os animais in-
contrário da enfermidade branda produzida nos fectados produziam vírus por mais tempo, dan-
coelhos americanos, o vírus do mixoma produz do maior oportunidade aos mosquitos de se con-
uma infecção letal nos coelhos europeus do gêne- taminar e transmitir a doença. Por outro lado, os
ro Oryctolagus. coelhos infectados com a cepa original de grau I
Nas primeiras décadas do século passado, morriam rapidamente, e o ciclo de transmissão
coelhos europeus foram introduzidos da Aus- era interrompido.
trália propositalmente e, como não existiam pre- A população de coelhos na Austrália tam-
dadores naturais, esses animais se reproduziram bém sofreu uma seleção para a resistência à mi-
rapidamente, tornando-se uma praga para a agri- xomatose. A nova geração de coelhos descendeu
cultura e pecuária. Assim, em 1950, um progra- dos 10% da população original que sobreviveu à
ma de controle biológico dos coelhos com o vírus doença. Durante sete anos, antes de começarem
da mixomatose foi aplicado naquele país com o os surtos de mixomatose na primavera, coelhos
objetivo de solucionar o problema da superpopu- jovens eram capturados nas áreas endêmicas
lação. e mantidos em cativeiro até atingirem a idade
104 Capítulo 4

adulta e os níveis de anticorpos maternos desa- a composição da superfície viral por estas proteí-
parecerem. Esses coelhos foram desafiados com nas (H3N2, H5N1, H3N8).
uma cepa de virulência grau III. A mortalidade A hemaglutinina (HA) é a proteína que se
foi superior a 90% no primeiro ano e somente liga a moléculas da superfície celular que pos-
30% no sétimo ano. suem ácido siálico, que servem como recepto-
Embora a mixomatose tenha sido introduzi- res para o vírus. A HA é também a proteína que
da deliberadamente na Austrália, pode-se consi- induz a produção de anticorpos neutralizantes
derar que esse foi um caso de enfermidade emer- e protetores pelo hospedeiro. A neuraminidase
gente. Humanos infectaram coelhos europeus (NA) atua durante o egresso do vírus, clivando
com o vírus da mixomatose, uma espécie na qual o ácido siálico dos glicoconjugados e permitindo,
o vírus produz uma doença muito mais severa. A dessa maneira, que a progênie viral seja liberada
emergência de uma enfermidade pode estar rela- da célula.
cionada com uma mudança evolutiva no agente Os vírus da influenza são mestres nas mu-
causal, porém a enfermidade pode emergir mes- danças genéticas e antigênicas. Ao se estudar os
mo na ausência de mutações virais. diferentes isolados, são observadas variações an-
No caso da mixomatose na Austrália, o vírus tigênicas pontuais e progressivas na HA. Essas
evoluiu, reduzindo a sua virulência. No entanto, pequenas variações denominam-se drift antigê-
não há um consenso de que todos os vírus evo- nico (pode ser traduzido como substituição ge-
luem no sentido da atenuação. É muito comum nética, principalmente por mutações em ponto)
se considerar que os vírus evoluem para uma e permitem ao vírus reinfectar uma população
forma inofensiva para o seu hospedeiro, o que, parcialmente imune, que ainda possui anticorpos
provavelmente, poderia ser melhor para o futuro produzidos por uma infecção recente, mantendo
da população viral. Aos parasitas interessa não o vírus circulante na população. Contrastando
produzir muitos danos na população hospedeira, com essas variações pequenas, as alterações ra-
para que esses sobrevivam e permitam a sua am- dicais na HA e NA denominam-se shift (troca),
plificação e transmissão. Contudo, o êxito evolu- e ocorrem pelo intercâmbio dos respectivos ge-
tivo de uma espécie depende essencialmente da nes entre dois vírus da influenza quando estes
geração de uma descendência numerosa, e isso co-infectam um mesmo hospedeiro. Esses shifts
não está necessariamente associado com atenua- antigênicos foram responsáveis pelas pandemias
ção da doença nos hospedeiros. de 1957 e 1968, e acredita-se que são produzidos
periodicamente pela criação conjunta de aves e
suínos. Ao contrário, os segmentos genéticos do
2.6.3 Vírus da influenza vírus que causou a pandemia de 1918 se origi-
naram completamente de um ancestral aviário.
Os vírus da influenza têm utilizado uma Além do drift e shift, são detectadas inserções de
série de estratégias e alterações evolutivas que seqüências e outros mecanismos que permitem o
permitem a sua contínua circulação mesmo em processamento proteolítico da HA, alterando o
populações com certo grau de imunidade. Exis- tropismo tecidual e a patogenicidade.
tem razões evidentes pelas quais se estuda muito Assim, os vírus da influenza evoluem por
esses vírus: ocorreram quatro pandemias de in- meio de dois mecanismos principais: mutações
fluenza em um século e, na pandemia de 1918, em ponto, que conferem pequenas alterações an-
morreram entre 20 e 50 milhões de pessoas. tigênicas; e ressortimento, que proporciona gran-
O vírus da influenza é um ortomixovírus, des alterações antigênicas e/ou de virulência. A
possui envelope e seu genoma é composto por espécie animal que geralmente abriga os eventos
oito segmentos de RNA de sentido negativo, a de ressortimento é a suína, que pode ser infecta-
maioria dos quais codifica somente uma proteí- da tanto por vírus aviários como por vírus huma-
na. O envelope viral possui duas glicoproteínas: nos ou suínos.
a hemaglutinina (16 tipos) e a neuraminidase Em 2005, foi publicado um artigo que des-
(nove tipos), e as cepas são designadas conforme creve como o vírus que ocasionou a pandemia de
Genética e evolução viral 105

1918 foi recriado em laboratório. O mais marcan- Estudos das mutações responsáveis pelo
te deste fato é que esta pandemia ocorreu muito cruzamento da barreira entre espécies indicam
antes da identificação do vírus da influenza, que que mudanças em apenas dois códons (posições
somente foi isolado no princípio dos anos 1930. 93 e 323) da VP2 do FPLV possibilitaram ao ví-
Os segmentos genômicos de RNA do vírus foram rus infectar cães e linhagens celulares de origem
recuperados de amostras de pulmão fixadas em canina. Posteriormente foi demonstrado que as
formalina, que estavam guardadas, e também de mesmas substituições desses códons no CPV pe-
tecidos de uma vítima da pandemia de 1918 que los correspondentes do FLPV eliminam a predi-
havia sido enterrada na permafrost (terra perma- leção do vírus pela espécie canina.
nentemente congelada, no Alasca). Por meio de Como a população canina não possuía an-
metodologia de genética reversa, foi possível re- ticorpos contra o novo agente, os primeiros seis
criar o vírus em laboratório e estudar algumas de meses após o surgimento do CPV foram seguidos
suas características. As seqüências dos genes do de uma pandemia mundial, que produziu gas-
vírus de 1918 são relacionadas com o vírus H1N1 trenterite hemorrágica grave com altos índices de
aviário, mais do que com qualquer outro isolado mortalidade em cães. Esse agente foi denomina-
H1N1 de mamífero. Esses achados aumentaram do CPV-2 e, nos anos seguintes, sofreu algumas
a preocupação atual com os casos de influenza alterações que permitiram uma adaptação maior
de origem aviária pelo vírus H5N1, que pode aos hospedeiros caninos, originando os biótipos
infectar humanos. Até o momento, não há evi- CPV-2a e CPV-2b. Um terceiro biótipo, o CPV-2c,
dências de que este vírus possua a habilidade de tem sido descrito na população canina nos últi-
ser transmitido entre humanos, pois a replicação mos anos. Acredita-se que o CPV não perdeu a
viral é confinada ao trato respiratório inferior e sua capacidade inicial de infectar felinos, pois a
provoca a morte de pessoas em poucos dias. Po- infecção natural tem sido demonstrada em gatos
rém, à medida que o número de pessoas infecta- domésticos. Os CPVs que existem atualmente cir-
das aumente, a probabilidade de mutações que culando na população canina são menos virulen-
permitam a transmissão entre humanos também tos do que os originais, provavelmente refletindo
aumentará. uma evolução do vírus no sentido de se adaptar
Os três tipos de alterações evolutivas descri- aos novos hospedeiros.
tas, drift e shift antigênico e inserções na hemaglu-
tinina conferem ao vírus da influenza uma maior
aptidão biológica, uma vez que podem reinfectar
2.7 Conclusões
uma população parcialmente imune ou ampliar
o tropismo tecidual, produzindo uma progênie Os vírus são os mestres das mudanças e
mais abundante. evolução genética. É importante conhecer as es-
tratégias que esses agentes utilizam para melhor
2.6.4 Parvovírus canino reconhecer enfermidades produzidas por vírus
emergentes e por vírus conhecidos que produ-
O parvovírus canino (CPV) surgiu subita- zam doenças atípicas. À medida que se intensifica
mente como causa de enfermidade de cães na a exploração pecuária e se aumenta a densidade
década de 1970 e, em 1978, foi diagnosticado si- dos animais, torna-se necessária a implementação
multaneamente em vários países, causando enfer- de programas sanitários especiais que reduzam a
midade grave na população canina. Este vírus se possibilidade de introdução de novos patógenos
originou a partir de um parvovírus já conhecido nas criações. É importante considerar também
anteriormente, o vírus da panleucopenia felina que todos os vírus são importantes, mesmo os
(FPLV), por mutações em ponto na proteína VP2 que aparentemente não produzem enfermida-
do capsídeo, sítio de ligação do vírion aos recep- des no homem ou em animais, pois esses agen-
tores celulares. Assim, o novo vírus foi capaz de tes podem alterar a sua gama de hospedeiros e
infectar e, posteriormente, se adaptar a uma nova produzir enfermidades devastadoras. Exemplos
espécie hospedeira. recentes incluem a infecção de humanos, cães e
106 Capítulo 4

felinos com novos subtipos do vírus da influen- PARRISH, C.R. Emergence, natural history and variation of
canine, mink, and feline parvoviruses. Advances in Virus
za, o surgimento do SARS-CoV, que matou cen-
Research, v.38, p.403-450.
tenas de pessoas na Ásia e a inusitada infecção
de mamíferos marinhos com variantes do CDV, PARRISH, C.R. et al. Global spread and replacement of canine
causando alta mortalidade no mar Mediterrâneo. parvovirus strains. The General Journal of Virology, v.69,
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Assim, tendo em vista a sua plasticidade e capa-
cidade de adaptação e evolução, nenhum vírus PARRISH, C.R. et al. Natural variation of canine parvovirus.
pode ser considerado sem importância. Science, v.230, p.1046-1048.

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REPLICAÇÃO VIRAL
Eduardo Furtado Flores & Luiz Carlos Kreutz
5
1 Introdução 109

2 Conceitos básicos: infecção, susceptibilidade, permissividade 109

3 Etapas da replicação 110

3.1 Adsorção 111

3.2 Penetração 114


3.2.1 Penetração por fusão na superfície celular 114
3.2.2 Penetração após endocitose 114
3.2.3 Outros mecanismos de penetração 117

3.3 Etapas após a penetração 118


3.3.1 Desnudamento 118
3.3.2 Movimentação intracelular 118
3.3.3 Penetração nuclear 119

3.4 Expressão gênica 119

3.5 Replicação do genoma 121


3.5.1 Replicação dos vírus DNA 122
3.5.2 Replicação dos vírus RNA 126

3.6 Morfogênese, maturação e egresso 131


3.6.1 Maturação intracelular (citoplasmática ou nuclear) 131
3.6.2 Maturação por brotamento em membranas celulares 132

4 Bibliografia consultada 134


1 Introdução embora a penetração (ou infecção, no significado
estrito da palavra) seja uma etapa indispensável
A produção de progênie genética e fenotipi- à replicação viral, por permitir a introdução do
camente semelhante ao vírus parental se constitui material genético na célula, o termo infecção pos-
no evento central da existência e perpetuação dos sui um significado mais amplo em Virologia. A
vírus na natureza. Por isso, por uma visão evolu- penetração do vírus na célula, por si só, não as-
tiva simplista, a multiplicação dos vírus possui segura a produção de progênie viral, pois outras
uma finalidade única e objetiva: produzir progê- etapas intracelulares são necessárias. Por isso, o
nie viável. As alterações da fisiologia celular, as- termo infecção tem sido utilizado para definir o
sociadas com as infecções virais – que podem re- processo replicativo do agente como um todo, in-
sultar em doença e até em morte do hospedeiro –, cluindo a penetração e as etapas subseqüentes da
são meras conseqüências das interações do vírus replicação. A série de etapas que inicia com a pe-
com as células; interações que são absolutamente netração e culmina com a liberação de progênie
necessárias para o agente atingir esse objetivo. viral é também denominada ciclo replicativo.
Os vírus são os organismos mais simples Se todas as etapas da infecção forem com-
que existem: os mais simples são compostos por pletadas e resultarem na produção de progênie
uma molécula de ácido nucléico envolta por uma viral viável, a infecção é dita produtiva. Se, após
camada protéica. Quando estão fora de células a penetração, o ciclo replicativo for interrompido
vivas, os vírus são estruturas químicas, despro- em alguma etapa, a infecção é dita abortiva. Sus-
vidas de qualquer atividade biológica. Não pos- ceptibilidade e permissividade são propriedades
suem metabolismo próprio, não são capazes de complementares que definem a capacidade das
produzir autonomamente nem os componentes células de suportar as etapas da replicação viral.
mínimos para a sua multiplicação. Por isso, ne- Susceptibilidade refere-se à capacidade das células
cessitam utilizar as organelas e o metabolismo de serem infectadas naturalmente pelo vírus, en-
celular para replicar o seu genoma e produzir as quanto permissividade refere-se às condições intra-
proteínas necessárias para a construção de novas celulares para a ocorrência da multiplicação viral.
partículas víricas. Esses agentes só adquirem ati- Assim, as células que suportam o ciclo replicativo
vidade biológica dentro de células vivas. Mesmo completo, após a infecção natural, são simulta-
os vírus mais complexos e evoluídos são depen- neamente susceptíveis (permitem a penetração) e
dentes de processos biológicos celulares para a permissivas (permitem a ocorrência das etapas in-
sua multiplicação. Por isso, os vírus são, tradicio- tracelulares). Essas duas propriedades, no entan-
nalmente, classificados como parasitas intracelu- to, nem sempre ocorrem concomitantemente em
lares obrigatórios. uma célula. Em algumas situações, células per-
O termo replicação – que em sua origem sig- missivas podem ser não susceptíveis à infecção,
nifica a síntese de moléculas de ácidos nucléicos devido à falta de receptores para a adsorção e pe-
a partir de um molde – tem sido universalmente netração do vírus. Essas células somente poderão
utilizado para designar o processo de multiplica- ser alvo de uma replicação produtiva se o mate-
ção dos vírus como um todo e assim será utiliza- rial genético viral for introduzido artificialmen-
do neste texto. Este capítulo abordará os aspectos te (i.e., por transfecção). Por outro lado, células
gerais da replicação dos vírus; os aspectos pecu- susceptíveis à infecção natural podem apresentar
liares de cada família serão abordados nos capí- um bloqueio intracelular em alguma etapa da
tulos específicos. replicação, sendo denominadas não-permissivas.
Se esse bloqueio ocorrer após algumas etapas do
2 Conceitos básicos: infecção, ciclo, essas células são ditas semipermissivas. Para
susceptibilidade e permissividade simplificar, neste texto, o termo susceptibilidade
será utilizado para definir a capacidade das célu-
A palavra infecção deriva do latim infere, que las de suportar todas as etapas da replicação viral
significa inserir, penetrar, introduzir. No entanto, após a infecção natural.
110 Capítulo 5

A susceptibilidade é determinada pela inte- las e iniciam a infecção. A coleta e quantificação


ração de múltiplos fatores virais e celulares. Em do vírus presente no sobrenadante dos cultivos a
razão da complexidade dessas interações, as es- diferentes intervalos, após a inoculação, permite
pécies animais (e também as células de cultivo) a identificação de três fases: eclipse, maturação e
apresentam uma ampla variação de susceptibili- inativação (Figura 5.2).
dade a diferentes vírus. O termo espectro de hos-
pedeiros (host range) é utilizado para definir o con-
9
junto de espécies animais (host range in vivo) ou de
1
diferentes células (host range in vitro) que podem
ser infectados naturalmente por um determinado
vírus. O termo tropismo refere-se à predileção do 2 8

vírus por determinadas células, tecidos ou órgãos


do hospedeiro para se multiplicar. O principal
3 5
fator celular – mas não o único – determinante
da susceptibilidade e do tropismo é a presença Citoplasma
7
de moléculas específicas na superfície celular,
4
denominadas genericamente de receptores virais. 6

Os receptores virais são moléculas da membrana


plasmática que desempenham funções diversas Núcleo

na biologia das células, das quais os vírus se utili-


zam para se ligar e iniciar a infecção.

3 Etapas da replicação Figura 5.1. Representação esquemática do ciclo


replicativo de um vírus DNA. 1) Adsorção; 2) Penetração;
A multiplicação dos diferentes vírus apre- 3) Desnudamento; 4) Transcrição dos genes virais; 5)
Tradução dos RNA mensageiros (mRNA) e produção
senta várias etapas em comum, apesar da di- das proteínas virais; 6) Replicação do genoma; 7)
versidade estrutural, do tipo e da organização Morfogênese; 8-9) Egresso.
genômica e das diferentes estratégias de replica-
ção. Essas etapas ocorrem de forma ordenada e Após a remoção do material que foi inocu-
seqüencial e envolvem interações complexas en- lado e durante um período variável, apenas uma
tre as proteínas e o genoma viral com organelas e pequena quantidade de infectividade pode ser
macromoléculas celulares. O ciclo replicativo de detectada no sobrenadante. Esse período em que
todos os vírus inclui necessariamente as etapas o vírus virtualmente desaparece é denominado
de adsorção, penetração, desnudamento, expres- eclipse e coincide com as fases iniciais da infecção.
são gênica (transcrição e tradução), replicação do A duração da fase de eclipse depende do ciclo re-
genoma, morfogênese/maturação e egresso. Es- plicativo de cada vírus, que varia entre quatro a
sas etapas estão ilustradas esquematicamente na seis horas nos picornavírus e mais de 40 horas em
Figura 5.1. alguns herpesvírus. A fase de eclipse é seguida
A maior parte dos conhecimentos sobre os por um período em que a progênie viral vai sen-
mecanismos biológicos e moleculares da mul- do produzida e gradativamente liberada pelas
tiplicação dos vírus somente foi obtida a partir células, acumulando-se no sobrenadante (Figura
do estabelecimento dos cultivos celulares. Após 5.2). Essa fase é denominada maturação. Nos vírus
a inoculação do vírus em células cultivadas in que produzem lise celular, a quantidade de vírus
vitro, os cultivos são deixados em repouso para no sobrenadante aumenta até atingir um platô,
que as partículas víricas iniciem gradativamen- que coincide com a perda da integridade funcio-
te a entrar em contato com a superfície celular. nal e estrutural das células. A partir daí, o título
Essa etapa é denominada adsorção. Imediatamen- viral no sobrenadante tende a decrescer gradati-
te após a adsorção, os vírions penetram nas célu- vamente – dependendo do vírus – devido à ina-
Replicação viral 111

tivação da infectividade das partículas víricas e à rus, vírus da febre aftosa [FMDV]) enquanto ou-
perda da viabilidade das células. Essa fase é de- tros podem utilizar receptores alternativos para
nominada inativação. Em infecções por vírus não- iniciar a infecção (exemplo: herpesvírus, alguns
líticos, as células podem produzir progênie viral togavírus). A capacidade de utilizar mais de um
indefinidamente, mas o balanço entre a produção receptor para iniciar a infecção pode representar
e a inativação não permite que o título viral no uma vantagem evolutiva, pois oferece a esses ví-
sobrenadante aumente indefinidamente. rus a possibilidade de infectar diferentes tipos de
células e/ou hospedeiros.
Os receptores celulares para vírus são molé-
Eclipse Maturação Inativação
culas de membrana que desempenham funções
diversas na biologia celular e que, ocasionalmen-
te, servem para os vírus se ligarem e iniciarem
Título viral no sobrenadante

a infecção. Os receptores celulares para vários


vírus animais já foram identificados (Tabela 5.1).
Na maioria dos casos, a presença dos receptores
determina o espectro de hospedeiros e o tropismo
do vírus. Conseqüentemente, a presença e distri-
buição dos receptores também são determinantes
fundamentais da patogenia da infecção. O núme-
ro de receptores na superfície de uma célula pa-
rece ser extremamente variável. Essas moléculas
Inoculação Horas
podem ser raras e específicas de algumas células
ou abundantes e amplamente distribuídas em vá-
Figura 5.2. Fases da infecção por vírus líticos em cultivo
rias células.
celular: eclipse, maturação e inativação. Em alguns casos, as interações entre as VAPs
e os receptores não são suficientes para permitir
o início da infecção. Nesses casos, a interação dos
3.1 Adsorção
vírions com proteínas adicionais da membrana
celular, denominadas co-receptores, é necessária
A primeira etapa da replicação é a ligação
para que ocorra a penetração. Por exemplo, a in-
específica das partículas víricas na superfície das
teração inicial dos adenovírus com a célula hos-
células hospedeiras – evento denominado adsor-
pedeira envolve a ligação da proteína fiber com
ção –. Essa ligação é mediada por proteínas da
um receptor celular. Essa interação não é sufi-
superfície dos vírions (viral attachment proteins,
ciente para assegurar a penetração, mas é neces-
VAPs) que interagem com os receptores na su-
perfície das células. Nos vírus sem envelope, a sária para que a proteína viral penton interaja com
função de ligação é exercida pelas proteínas do uma segunda molécula da membrana celular – a
capsídeo; nos vírus envelopados, pelas glicopro- vitronectina – e resulte em penetração. O vírus
teínas do envelope. Os receptores celulares para da imunodeficiência humana (HIV-1) liga-se ao
os vírus são geralmente proteínas (glicoproteínas) receptor CD4 e utiliza como co-receptor um re-
ou carboidratos (presentes em glicoproteínas ou ceptor de citocina. A interação inicial do vírus do
em glicolipídios da membrana). Em comparação herpes simplex humano (HSV-1) com as células é
com os receptores protéicos, os carboidratos são mediada pela interação da glicoproteína gC (ou
menos específicos, pois podem estar presentes em gB) com o sulfato de heparina na superfície celu-
uma variedade de moléculas de membrana. Al- lar. A fusão e penetração, no entanto, dependem
guns vírus são estritamente dependentes de um de interações secundárias entre a gD (e também a
receptor específico (exemplos: rinovírus, polioví- gH) com outras moléculas da membrana.
112 Capítulo 5

Tabela 5.1. Receptores celulares e mecanismos de penetração dos principais vírus animais
.
Família Vírus Receptor Viral Forma/local de Penetração

Sulfato de heparina/receptor homólogo


Fusão na membrana plasmática
Herpesviridae Herpes simplex ao fator de necrose tumoral (TNF) e
fator de crescimentonNeuronal (NGF)

Sulfato de heparan (HS), Fusão na membrana


Pseudoraiva
proteoglicanos (HSPG) e coreceptores plasmática

Receptor para adenovírus e Endocitose dependente


Adenoviridae Adenovírus 2
vírus Coxsackie B (CAR) de clatrina

Membrana plasmática e/ou


Vírus DNA

Poxviridae Vaccinia Fator de crescimento epidermal (EGF)


macropinossomo

Moléculas do complexo maior de


Endocitose caveolar e/ou
Polyomaviridae SV-40 histocompatibilidade (MHC)
retículo endoplasmático
classe I

Papilomavírus Integrina a-6 e moléculas Endocitose dependente


Papillomaviridae bovino semelhantes ao heparan de clatrina

Parvovírus
Parvoviridae Receptor da transferrina Endossomos
canino

Peste suína b
Asfarviridae nd Endossomos
africana

Moléculas do complexo maior de


Vírus elevador da Endossomos
Arteriviridae histocompatibilidade (MHC) classe II
desidrogenase láctica

Vírus da Hepatite dos Glicoproteína biliar dos murinos/ Endossomos


Coronaviridae
Murinos antígeno carcinoembriogênico

Coronavírus
CD13 (Aminopeptidase) Membrana plasmática
humano 229E

Orthomyxoviridae Vírus da influenza Ácido siálico Endocitose dependente de clatrina

Paramyxoviridae Vírus do sarampo CD46 Membrana plasmática

Togaviridae Semliki Forest Moléculas do MHC classe II Endocitose dependente de clatrina


Vírus RNA

Vírus da diarréia viral


Flaviviridae CD46 bovino Endossomos
bovina

Rhabdoviridae Vírus da raiva Receptor da neurotropina (p75NTR) Endocitose dependente de clatrina

Filoviridae Vírus Ebola e Marburg Receptor folato a(FR-a) Caveola

Retroviridae HIV-1 CD4 e receptor de citocinas Membrana plasmática

Bunyaviridae Vírus Hantaan Integrinas (b3) Endocitose dependente de clatrina

Picornaviridae Vírus da febre aftosa Integrinas (av) Endocitose

Caliciviridae nd nd Endossomos

Ácido siálico e molécula 1 de adesão


Reoviridae Reovírus Endossomos
jjuncional (JAM 1)

Integrinas aVb3 e proteínas cognatas


Rotavírus Membrana citoplasmática (lipid rafts)
do choque térmico (hscp70)

a
* Adaptado de Klasse et al. (1998); de Pelkmans e Helenius (2003) e referências selecionadas. CAR: receptor de virus
b
coxsackie B e adenovirus. não determinado.
Replicação viral 113

Em cultivo celular – e provavelmente tam- truturais nas proteínas de superfície dos vírions.
bém in vivo – o contato de um vírion com uma Para alguns vírus (p. ex.: poliovírus), essas alte-
célula é um evento que ocorre ao acaso. Ou seja, rações são absolutamente necessárias para a pe-
a célula hospedeira não atrai a partícula vírica a netração, desnudamento e continuação do ciclo.
distância. Uma vez em contato com a superfície Por isso, além de servir para a ligação inicial, os
da célula, componentes externos dos vírions in- receptores, para alguns vírus, podem ser necessá-
teragem quimicamente (interações eletrostáticas, rios para a desestabilização das partículas víricas
pontes de hidrogênio etc.) com moléculas da e conseqüente liberação do genoma no interior
membrana plasmática, podendo resultar ou não da célula. Nos vírus envelopados, a ligação ao re-
em penetração e início da infecção. ceptor pode induzir alterações conformacionais
O processo de adsorção é independente de nas VAPs, que promovem a fusão do envelope
energia e do metabolismo celular e ocorre com com a membrana celular. No caso do HIV-1, a
a mesma eficiência à temperatura corporal ou a ligação do vírion ao receptor CD4 é necessária
4°C. Embora seja de alta especificidade, a intera- para estimular a capacidade fusogênica da glico-
ção de uma molécula de VAP com o receptor é de proteína TM.
fraca intensidade e, isoladamente, não seria sufi- Em alguns casos, a ligação dos vírions aos
ciente para proporcionar a ocorrência das etapas receptores também pode induzir sinais químicos
seguintes da penetração. Para isso, é necessária intracelulares, que podem estar envolvidos na
a ocorrência simultânea de dezenas ou centenas facilitação da endocitose, no transporte intrace-
dessas interações. Ou seja, a adsorção viral na lular dos nucleocapsídeos e até mesmo na sobre-
superfície celular é um processo cooperativo, re- vivência da célula. Por outro lado, a penetração
sultante de múltiplas interações entre proteínas e a posterior replicação viral ativam mecanismos
da superfície dos vírions com os seus respectivos imunológicos de defesa, como a produção de in-
receptores. terferon do tipo I (IFN-I).
Embora a adsorção dos vírions à superfície A distribuição dos receptores na superfície
celular seja a etapa inicial e indispensável para o apical das células parece ser aproximadamente
início da replicação, esse evento nem sempre re- uniforme. A penetração dos vírions, no entanto,
sulta em infecção produtiva. É provável que um parece ocorrer preferencialmente em alguns lo-
número muito grande de interações entre vírions cais. Isso ocorre porque a ligação das partículas
e células não resulte em penetração, seja pela au- víricas aos receptores é acompanhada de movi-
sência de receptores específicos para o vírus, seja mentos laterais dessas moléculas, resultando na
pela debilidade dessas interações. Partículas ví- aglomeração dos receptores em determinados lo-
ricas podem se ligar à superfície da célula e não cais. Esses locais são facilmente observáveis sob
serem internalizadas. Outro cenário possível é a microscopia eletrônica (ME) e aparecem como
ligação, porém com internalização e liberação do espessamentos da membrana plasmática. Esses
nucleocapsídeo em compartimentos inadequados espessamentos são decorrentes do acúmulo de
para a replicação (p. ex.: lisossomos). É possível uma proteína denominada clatrina, envolvida em
também que vírions sejam internalizados em cé- sistemas de transporte intracelular por vesículas.
lulas que não possuam os componentes necessá- A aglomeração dos vírus que penetram por en-
rios à continuação do ciclo. Resumindo, a ligação docitose mediada por receptores, em determina-
dos vírions a moléculas da membrana celular é dos locais, precede e promove a invaginação da
uma etapa absolutamente necessária, porém nem membrana, com a conseqüente formação da vesí-
sempre suficiente para garantir a continuidade cula endocítica contendo os vírions em seu inte-
do ciclo replicativo. rior. A endocitose mediada por receptores é um
Além de proporcionar o contato inicial com processo fisiológico utilizado pelas células para
a célula, as interações dos vírions com os recep- internalizar diversas moléculas, das quais os ví-
tores também podem desencadear alterações es- rus tiram proveito para iniciar a infecção.
114 Capítulo 5

3.2 Penetração 3.2.1 Penetração por fusão na superfície


celular
A penetração é a etapa subseqüente à ad-
Alguns vírus com envelope (p. ex.: retroví-
sorção e envolve a transposição da membrana
rus, paramixovírus e herpesvírus) penetram na
plasmática, permitindo a introdução do nucleo-
célula após fusão do envelope com a membrana
capsídeo (genoma viral + proteínas) no interior
plasmática, evento que ocorre na superfície celu-
da célula, local onde ocorrerão a expressão gêni-
lar (Figura 5.3A). A fusão resulta em um canal
ca e a replicação do genoma. A transposição da
entre o interior da partícula e o compartimento
membrana pode ocorrer na superfície celular ou
citoplasmático, através do qual o nucleocapsídeo
já no interior do citoplasma, a partir de vesículas
penetra no citoplasma. A fusão entre as membra-
produzidas por endocitose, fagocitose ou macro-
nas do envelope e a plasmática requer a ação de
pinocitose. Dependendo da biologia do vírus, a
proteínas de fusão presentes no envelope dos ví-
penetração pode ocorrer sem prévia internalização
(se ocorrer na superfície celular) ou após inter- rions (p. ex.: glicoproteína TM nos retrovírus e F
nalização (se ocorrer a partir de vesículas intra- nos paramixovírus). Nesses vírus, o mecanismo
citoplasmáticas). No entanto, a internalização de de fusão ocorre sob pH neutro, ou seja, indepen-
vírions em vesículas endocíticas não assegura a de de acidificação, e, por isso, esses vírus são de-
ocorrência de penetração. A internalização em nominados pH-independentes.
vesículas ou a penetração direta são processos A membrana plasmática não é a única bar-
que ocorrem imediatamente após a ligação dos reira que o nucleocapsídeo viral deve ultrapassar
vírions aos receptores da membrana plasmática. para ter acesso aos locais intracelulares apropria-
Ao contrário da adsorção, a internalização e dos para a replicação. Algumas células possuem
penetração são processos dependentes de energia um citoesqueleto cortical espesso logo abaixo da
e não ocorrem eficientemente a 4ºC. Uma forma membrana plasmática, o que impede o acesso de
de sincronizar o início da infecção viral in vitro é ribossomos e outras organelas à área imediata-
realizar adsorção a 4ºC durante uma hora (ocorre mente adjacente à membrana. Essas estruturas
adsorção sem penetração) e, a seguir, transferir o também dificultam a progressão dos nucleocap-
cultivo para 37ºC, quando ocorrerá a penetração sídeos até as regiões mais internas da célula. Não
simultânea das partículas víricas adsorvidas. obstante, os vírus que penetram por fusão na su-
As etapas iniciais da infecção viral têm sido perfície celular desenvolveram estratégias para
estudadas com o recurso da ME e com a utiliza- superar esses obstáculos e conseguir liberar os
ção de químicos que inibam a internalização e/ seus nucleocapsídeos nos locais adequados.
ou a acidificação de vesículas intracelulares (i.e.,
endossomos). Dessa forma, quando a infecção 3.2.2 Penetração após endocitose
por um vírus é prevenida por substâncias inibi-
doras da endocitose, deduz-se que a sua pene- Esse mecanismo é característico da penetra-
tração dependa de prévia internalização; quando ção de vários vírus envelopados (p. ex.: flavivírus
a infecção é inibida por agentes que previnam a e ortomixovírus) e de alguns vírus sem envelope
acidificação dos endossomos, conclui-se que o (p. ex.: adenovírus, picornavírus e reovírus). A via
pH ácido dessas organelas seja necessário para a endocítica parece ser o caminho mais adequado
penetração. para a internalização dos vírus, pelos seguintes
Em geral, os vírus penetram nas células uti- aspectos: a) a endocitose é um processo fisiológi-
lizando um (ou alternativamente mais de um) co comum à maioria das células; b) somente ocor-
dos seguintes mecanismos: a) penetração por re em células com transporte de membrana ativo,
fusão na superfície celular; b) penetração após evitando a penetração em eritrócitos e plaquetas,
endocitose (mediada por clatrina, caveolina ou onde a infecção seria improdutiva; c) os vírions
agrupamentos de lipídios); c) fagocitose. Esses podem se ligar em qualquer local da superfície
mecanismos estão ilustrados na Figura 5.3. celular para serem internalizados; d) a endocito-
Replicação viral 115

se assegura a internalização e o transporte dos ví- 3.2.2.1 Endocitose mediada por clatrina
rions aos locais de expressão gênica e replicação;
e) a penetração a partir dos endossomos reduz os Os endossomos recobertos por clatrina são
riscos de detecção pelo sistema imunológico, pois vesículas de aproximadamente 100 nm de diâme-
não deixa proteínas virais expostas na superfície tro e se formam pela invaginação de pequenas re-
celular; e f) o ambiente endossomal se acidifica giões da membrana plasmática revestidas inter-
gradativamente, o que auxilia na ativação dos namente por moléculas de clatrina (clatrin-coated
mecanismos de fusão e penetração. pits). Quando examinadas sob ME, essas regiões

Microtúbulos

plasmático
H+
H+
H+

H+
H+
Retículo endo
B H+

Núcleo

D ?

?
E

Meio extracelular Citoplasma

Figura 5.3. Principais mecanismos de penetração dos vírus nas células hospedeiras. A) Penetração na superfície
celular, por fusão com a membrana plasmática; B) Penetração por fusão após endocitose mediada por clatrina; C)
Penetração por fusão após endocitose mediada por caveolina; D-E) Penetração após endocitose mediada por
agrupamentos de lipídios.
116 Capítulo 5

aparecem como espessamentos da membrana, membrana endossomal (picornavírus) ou por


adjacentes aos locais de ligação dos vírions. Após lise/perturbação da integridade dessa membra-
a invaginação, o revestimento de clatrina é remo- na (adenovírus e reovírus). A acidificação pro-
vido e as vesículas trafegam em direção ao inte- gressiva dos endossomos e as interações com a
rior da célula. Nesse trajeto, o ambiente endos- membrana provocam alterações estruturais e
somal é gradativamente acidificado por meio de desorganização do capsídeo, podendo ocorrer a
ATPases associadas à membrana, que bombeiam dissociação de algumas proteínas. Nos picorna-
prótons H+ para o seu interior. Nos endossomos vírus, o rearranjamento das proteínas do capsí-
tardios e lisossomos, o pH pode atingir 5,0 a 5,5. deo induzido pelo pH baixo, leva à formação de
Dessa forma, os vírions internalizados por essa aberturas através das quais o genoma é transloca-
via são submetidos à redução gradativa do pH. do para o interior do citoplasma. As partículas ví-
Essa forma de penetração é a mais estudada e, ricas do reovírus, internalizados por endocitose,
provavelmente, a mais importante entre os vírus sofrem alterações estruturais e algumas proteínas
animais, sendo tratada com mais detalhes a se- do capsídeo são ativadas, tornando-se capazes
guir (Figura 5.3B). de lisar ou permeabilizar a membrana do endos-
Ao contrário da fusão e penetração dos ví- somo. Dessa forma, permitem a penetração dos
rus pH independentes, a fusão do envelope de capsídeos semidesintegrados. Nos adenovírus, o
muitos vírus com a membrana celular só ocorre capsídeo sofre alterações estruturais pela expo-
sob pH baixo (5,5-6,5). Esses vírus são denomi- sição ao pH progressivamente baixo, resultando
nados pH-dependentes e não conseguem fusionar na desorganização da partícula e na ativação das
e penetrar na superfície celular sob pH neutro. A proteínas fibra e penton. Essas proteínas partici-
acidificação progressiva dos endossomos propor- pam da lise ou da permeabilização da membrana
ciona condições para a fusão do envelope com a endossomal, permitindo a penetração do com-
membrana endossomal, resultando na liberação plexo nucleoproteína no compartimento intrace-
do nucleocapsídeo no citoplasma. Embora vá- lular.
rios vírus penetrem dessa forma, esse é um me-
canismo particularmente bem caracterizado nos 3.2.2.2 Endocitose mediada por caveo-
vírus da influenza. A proteína de fusão desses lina
vírus (hemaglutinina, HA) é também a proteína
responsável pela ligação aos receptores (ácido si- As caveolas são pequenas invaginações em
álico). Após a ligação nos receptores, os vírions forma de cantil, que são formadas na membrana
são internalizados por endocitose. A acidificação plasmática de diversos tipos de células. As caveo-
dos endossomos induz alterações conformacio- las podem ser internalizadas com auxílio da actina
nais na HA que resultam na fusão do envelope e, até o presente momento, não há evidências de
com a membrana do endossomo. O pH baixo nos que o seu conteúdo seja entregue à via endocítica,
endossomos também facilita a dissociação dos ou seja, constituem um mecanismo independente
nucleocapsídeos do restante do envelope, resul- de internalização. As caveolas internalizadas são
tando na sua liberação no citoplasma. Nos vírus transportadas até a região perinuclear, próxima-
pH-dependentes, a penetração deve ocorrer no ao retículo endoplasmático (RE). Recentemente,
momento apropriado, pois a acidificação excessi- evidenciou-se que o vírus símio 40 (SV-40) utiliza
va que ocorre após a fusão dos endossomos com essa via para a internalização e penetração (Figu-
os lisossomos pode inativar o vírus. Drogas que ra 5.3C). Após a ligação aos receptores, os vírions
inibem a endocitose (óxido de fenilarsina) ou im- se deslocam lateralmente na superfície celular
pedem a acidificação dos endossomos (monensi- até serem capturados por caveolas. As caveolas
na, cloroquina e cloreto de amônia) previnem a são, então, circundadas parcialmente por fibras
penetração de vírus pH-dependentes. de actina, conferindo à vesícula uma aparência
Os vírus sem envelope transpõem a mem- de cantil. Posteriormente, a vesícula caveolar,
brana pela formação de canais proteináceos na contendo os vírions, é entregue aos caveossomos,
Replicação viral 117

que são organelas de pH neutro preexistentes no acidificados, potencializando a capacidade de fu-


citoplasma, ricas em caveolina e colesterol. Após são e penetração dos vírions pH-dependentes.
algumas horas da infecção, os caveossomos libe-
ram túbulos membranosos repletos de vírions, 3.3.3.2 Macropinocitose
que trafegam ao longo dos microtúbulos até o RE.
Posteriormente, as partículas virais deixam essa A macropinocitose é um processo celular
organela, entram no citosol e penetram no núcleo não específico (pode ocorrer na ausência de ligan-
através dos poros nucleares. Essa via de penetra- tes aos receptores) de internalização de volumes
ção parece não ser exclusiva do SV-40. Estudos grandes de fluidos e de regiões de membrana.
recentes com o vírus ebola (filovírus), poliomaví- Substâncias internalizadas por essa via também
rus e echovírus (picornavírus) têm sugerido um são direcionadas aos endossomos e lisossomos.
mecanismo semelhante de penetração. O vírus da vaccinia (poxvírus) pode penetrar por
essa via, uma vez que os seus vírions são muito
3.2.2.3 Endocitose mediada por grandes para serem internalizados por endocito-
agrupamento de lipídeos se mediada por clatrina. O vírus HIV também pa-
rece utilizar essa via para infectar macrófagos.
Esfingolipídeos e/ou glicoesfingolipídeos e
moléculas de colesterol podem se associar late- 3.2.3.3 Translocação através da mem-
ralmente e formar microdomínios na membrana brana plasmática
celular, denominados de lipid rafts (o termo raft
denota as toras de madeira utilizadas na constru- Esse é um mecanismo pouco conhecido, pro-
ção de jangadas). Esses microdomínios contêm vavelmente raro entre os vírus animais e parece
proteínas específicas e participam de funções ocorrer somente com os vírus sem envelope.
celulares, como o transporte de membrana, mor-
fogênese e sinalização celular. A internalização 3.2.3.4 Transferência direta entre
dessas estruturas é independente do revestimen- células
to por clatrina e caveolina. Os vírions internali-
zados por essa via são direcionados aos endos-
Além dos mecanismos específicos de pe-
somos, a partir dos quais ocorre penetração no
netração, alguns vírus podem ser transmitidos
compartimento citoplasmático. Essa via de pene-
diretamente entre células, sem a necessidade de
tração tem sido sugerida para o SV-40, em células
egresso e infecção de uma nova célula. Essa trans-
que não contêm caveolina, e também para alguns
missão é possível pela inserção de proteínas vi-
picornavírus, papilomavírus e retrovírus (Figu-
rais na membrana lateral da célula. As proteínas
ras 5.3D e 5.3E).
virais produzem fusão entre as células vizinhas e
transferência do material genético do vírus para
3.2.3. Outros mecanismos de
penetração a nova célula. Esse mecanismo de transferência
direta (observada nos paramixovírus e poxvírus,
3.3.3.1 Fagocitose entre outros) permite ao vírus infectar novas cé-
lulas sem se expor ao sistema imunológico.
O papel da fagocitose na penetração dos Como já mencionado, a simples internaliza-
vírus nas células hospedeiras ainda não está es- ção da partícula vírica não assegura que a repli-
clarecido. No entanto, partículas do vírus da in- cação irá ocorrer. O desnudamento e a entrega do
fluenza já foram observadas em vesículas fagocí- material genético aos locais apropriados são ne-
ticas, e os poxvírus possivelmente utilizam essa cessários para o prosseguimento do ciclo. Além
via para a internalização e posterior penetração disso, a célula deve apresentar as condições in-
celular. Após a sua formação, os fagossomos se tracelulares necessárias para a expressão gênica
fusionam com os endossomos e lisossomos e são e replicação do genoma. Sob ME, é freqüente a
118 Capítulo 5

visualização de vírions internalizados em células, Nos vírus que penetram por fusão com a
porém localizados em sítios inapropriados para membrana plasmática, a remoção do envelope,
o prosseguimento da replicação. Alguns desses que ocorre pela fusão faz parte do desnuda-
vírions podem ser eventualmente reciclados e mento. Em alguns vírus RNA de cadeia positiva
liberados na superfície celular, podendo infectar (togavírus), a remoção das proteínas do nucleo-
produtivamente outras células. A maioria, po- capsídeo ocorre logo após a penetração, pela sua
rém, parece estar destinada à inativação por pro- interação com o RNA dos ribossomos. Nos vírus
cessos catabólicos celulares. pH dependentes, a acidificação dos endossomos
desencadeia a fusão e também pode facilitar a
3.3 Etapas após a penetração dissociação das proteínas do genoma. Isso resul-
ta na liberação do nucleocapsídeo ou do genoma
3.3.1 Desnudamento desprovido de proteínas diretamente no citoplas-
ma. Nos herpesvírus, adenovírus e papovavírus,
O termo desnudamento (do inglês uncoating) o capsídeo permanece parcialmente íntegro após
refere-se à serie de eventos que ocorrem imedia- a penetração, sendo transportado até as proxi-
tamente após a penetração, em que os componen- midades do núcleo associado aos túbulos do ci-
tes do nucleocapsídeo são parcial ou totalmente toesqueleto. O desnudamento e a penetração do
removidos, resultando na exposição parcial ou nucleocapsídeo no núcleo ocorre próximo aos
completa do genoma viral. A remoção das proteí- poros nucleares. Nos picornavírus, a acidificação
nas do nucleocapsídeo é necessária para a exposi- dos endossomos provoca alterações conforma-
ção do genoma às enzimas e fatores responsáveis cionais no capsídeo que proporcionam interações
pela transcrição (vírus DNA e RNA de cadeia de suas proteínas com a membrana, resultando
negativa) ou tradução (vírus RNA de cadeia po- na formação de aberturas através das quais o ge-
sitiva). No ciclo replicativo de alguns vírus, a re- noma é liberado no citoplasma.
plicação do genoma ocorre após o desnudamen- O desnudamento torna o genoma acessível
to completo do genoma (poliovírus e flavivírus). às enzimas e a outros fatores celulares respon-
Em outros vírus, a remoção parcial das proteínas sáveis pelas etapas subseqüentes da replicação.
do nucleocapsídeo já é suficiente para a ocorrên- Dependendo do tipo de genoma, as etapas que
cia das etapas seguintes do ciclo (paramixovírus, se seguem ao desnudamento diferem entre os ví-
rabdovírus, ortomixovírus e reovírus). Portanto, rus.
o desnudamento parece ter uma definição mais
funcional do que estrutural. A estrutura e com- 3.3.2 Movimentação intracelular
plexidade de cada nucleocapsídeo é que determi-
na os passos subseqüentes na replicação. Após a penetração, o genoma viral precisa
O produto do desnudamento depende da ser transportado até o local onde ocorrerão a ex-
estrutura do nucleocapsídeo. Nos picornavírus, pressão gênica e a replicação. A movimentação
o resultado é a liberação do RNA genômico to- dos vírions no citoplasma ocorre inicialmente
talmente desnudo, com uma proteína de 23 ami- de forma passiva, no interior de vesículas endo-
noácidos (VPg) ligada covalentemente à sua ex- cíticas. Após a penetração, os nucleocapsídeos
tremidade 5’. Em alguns vírus (paramixovírus, podem interagir com os componentes do cito-
rabdovírus, arenavírus e ortomixovírus), o geno- esqueleto ou com proteínas transportadoras. Os
ma nunca é totalmente desnudo. Os processos de paramixovírus (que penetram na célula por fu-
transcrição e replicação ocorrem com o genoma são direta do envelope com a membrana celular)
recoberto por proteínas (ribonucleoproteína). e os picornavírus (que penetram através de poros
Nos reovírus e poxvírus, a transcrição e a replica- na membrana endossomal) não necessitam de
ção do genoma ocorrem no interior de capsídeos transporte intracelular antes de iniciar a síntese
parcialmente desintegrados. de proteínas, pois os ribossomos podem estar
Replicação viral 119

próximos ao local de penetração. Outros vírus DNA viral através do poro nuclear. O adenoví-
penetram na célula em vesículas endocíticas, que rus tipo 2 é transportado ao longo dos microtú-
se movimentam entre a densa cadeia de microfi- bulos até as proximidades do núcleo e liga-se a
lamentos e entregam a sua carga aos locais apro- filamentos dos poros nucleares. Após, com o au-
priados. Os herpesvírus e retrovírus penetram na xílio das importinas, e pela ligação com histonas,
célula por fusão do envelope com a membrana ocorre a desmontagem do vírion e o DNA viral é
plasmática, e o genoma viral deve ser transpor- translocado para o interior do núcleo.
tado até o núcleo para a replicação. Para iniciar
a transcrição reversa de seu material genético, os 3.4 Expressão gênica
retrovírus interagem com filamentos de actina,
necessitam funções relacionadas à miosina e dos A síntese de proteínas virais pela maqui-
microtúbulos. O HSV ultrapassa o córtex celular naria celular é o evento central da multiplicação
(composto basicamente de actina) por mecanis- dos vírus. O genoma viral codifica diferentes
mos ainda desconhecidos, e os nucleocapsídeos proteínas que devem desempenhar pelo menos
são transportados até o núcleo associados com os três funções básicas: a) assegurar a replicação
microtúbulos. Os adenovírus e parvovírus tam- do genoma; b) subverter funções celulares em
bém são transportados por microtúbulos até o seu benefício e c) empacotar os genomas recém-
núcleo da célula hospedeira. replicados em novas partículas víricas. Os vírus
não possuem metabolismo próprio e são inteira-
mente dependentes da maquinaria celular para a
3.3.3 Penetração nuclear produção de suas proteínas. Ou seja, as informa-
ções genéticas contidas no genoma dos vírus são
O núcleo é o local de replicação da maioria decodificadas em proteínas virais pelo aparato
dos vírus DNA e também dos ortomixovírus. No de síntese protéica da célula hospedeira. Para uti-
entanto, a presença da membrana nuclear repre- lizar esse aparato para a produção de suas pro-
senta uma barreira adicional à progressão dos ví- teínas, os vírus tiveram que evoluir de forma a
rions ou dos nucleocapsídeos, pois os poros nucle- satisfazer algumas restrições impostas pelas célu-
ares permitem a passagem somente de partículas las hospedeiras. O ponto-chave desse processo é
com até 39 nm de diâmetro. Conseqüentemente, a síntese (ou apresentação) de mRNAs que sejam
o transporte dos nucleocapsídeos ou do genoma adequadamente reconhecidos e traduzidos pelos
até o interior do núcleo depende de interações ribossomos. Dependendo da estrutura e organi-
específicas com componentes celulares. Vírions zação genômica, os vírus de diferentes famílias
pequenos, como os parvovírus (18-24 nm) e os convergem para a produção de mRNA por dife-
capsídeos do vírus da hepatite B (36 nm), podem rentes vias (Figura 5.4).
ser transportados intactos (ou semi-íntegros), por O aparato celular de transcrição (RNA poli-
meio de mecanismos citoplasmáticos especializa- merase II e fatores de transcrição) e de processa-
dos (microtúbulos, microfilamentos e proteínas mento dos transcritos se localiza no núcleo das
motoras), e, posteriormente, translocados através células hospedeiras. A maioria dos vírus DNA
dos poros nucleares por proteínas especializadas. replica no núcleo e, assim, pode utilizar esses
Os vírions ou capsídeos maiores necessitam ser mecanismos. Os genes desses vírus contêm re-
previamente desintegrados ou deformados para giões regulatórias (promotores, enhancers) que
permitirem a introdução do genoma viral pelos são reconhecidas pela RNA polimerase II (RNA-
poros nucleares. O nucleocapsídeo do HSV, por polII) e pelos fatores de transcrição celulares. Os
exemplo, é transportado do córtex celular até o transcritos (mRNA) produzidos contêm a estru-
núcleo ao longo dos microtúbulos e liga-se, na tura cap, são poliadenilados e alguns são subme-
face citoplasmática da membrana nuclear, por tidos a splicing antes de serem exportados para
meio de uma molécula denominada de importi- o citoplasma. Embora sejam vírus DNA, os po-
na. Posteriormente ocorre uma abertura parcial xvírus e asfarvírus replicam no citoplasma e são
de um dos vértices do capsídeo e a liberação do independentes da maquinaria nuclear de síntese
120 Capítulo 5

Vírus DNA Vírus RNA

Poxviridae Circoviridae Vírus que realizam Reoviridae Paramyxoviridae Picornaviridae


Adenoviridae Parvoviridae transcrição reversa Birnaviridae Orthomyxoviridae Flaviviridae
Herpesviridae (Classe II) (Classe III) Arenaviridae Caliciviridae
Polyomaviridae Rabdoviridae Astroviridae
Papillomaviridae Hepadnaviridae Retroviridae Bunyaviridae Coronaviridae
(Classe I) (Classe VII) (Classe VI) Filoviridae Arteriviridae
(Classe V) Togaviridae
(Classe IV)

dsDNA ssDNA pdsDNA ssRNA dsRNA ssRNA ssRNA


(+) (+ / -) (-) (+)

ssDNA

1 .dsDNA .dsDNA 4 5 6 7

dsDNA

2 3

mRNA

Tradução

Proteína

Fonte: adaptado de Baltimore (1971).

Figura 5.4. Estratégias de produção de RNA mensageiros (mRNA) e expressão gênica das diferentes classes de vírus.
Nos vírus da classe I, os promotores virais são reconhecidos por fatores celulares, e os genes são transcritos pela
RNApolII celular, resultando em mRNAs traduzíveis pelos ribossomos (1). Nos vírus da classe II, o genoma DNA de
fita simples linear (parvovírus) ou circular (circovírus) é, inicialmente, convertido em fita dupla e transcrito pela
RNApolII (2). Apenas as cadeias negativas dos vírus da classe III (genoma RNA de fita dupla) são transcritas pela
polimerase viral, originando os mRNA (5). O genoma dos vírus da classe IV (RNA fita simples de polaridade
positiva) pode ser diretamente traduzido, em toda a sua extensão (flavivírus, picornavírus) ou parcialmente (outros)
(7). Nestes, o restante dos mRNA são produzidos pela transcrição do RNA intermediário pela polimerase viral. Nos
vírus da classe V, o genoma RNA de polaridade negativa é transcrito pela polimerase presente nos vírions (6). Nos
hepadnavírus (classe VII), os mRNA são produzidos pela transcrição do DNA viral pela RNApolII e fatores celulares
(3). Nos retrovírus (classe VI), os mRNA são produzidos pela transcrição do provírus DNA (uma cópia do RNA
genômico) pela RNApolII e fatores celulares, após a integração do provírus ao genoma celular (4).

e processamento de DNA e RNA. Isso só é pos- ção e convergem para a produção de mRNA por
sível porque esses vírus trazem, nos vírions, as vias diferentes. Os retrovírus utilizam a maqui-
enzimas e fatores auxiliares para a transcrição e naria celular para a transcrição dos seus genes,
processamento dos seus mRNA. após a integração de uma cópia DNA do genoma
Os vírus RNA, com exceção dos retrovírus, (provírus) nos cromossomos celulares. A transcri-
não dependem da maquinaria celular de transcri- ção resulta na produção de mRNA para a síntese
Replicação viral 121

protéica e também de cópias de RNA genômico mRNA exige o reconhecimento de seqüências


que serão encapsidadas. específicas localizadas próximas ao códon de
Os vírus RNA convergem para a apresenta- iniciação, mecanismo ainda não identificado em
ção de mRNA traduzíveis de duas formas: a) o eucariotas. Por isso, os vírus desenvolveram di-
próprio genoma dos vírus RNA de sentido posi- ferentes estratégias de codificação de suas pro-
tivo serve de mRNA e é parcial ou integralmente teínas: produção de mRNA monocistrônicos
traduzido pelos ribossomos. Nos vírus cujo geno- (contendo uma ORF = um gene) ou produção
ma é parcialmente traduzido, os mRNAs, para a de mRNA policistrônicos. Os mRNAs policistrô-
síntese das proteínas estruturais, são produzidos nicos contêm uma única e longa ORF que codi-
pela transcrição do RNA de sentido antigenômi- fica uma longa poliproteína. À medida que vai
co, que é produzido pela replicação do genoma; sendo traduzida, essa poliproteína é clivada por
b) os vírus RNA de sentido negativo trazem a proteases celulares e/ou virais, dando origem às
sua própria RNA polimerase nos vírions. Assim, proteínas virais individuais. Do ponto de vista da
no início da infecção, essa enzima se encarrega tradução, os mRNA que contêm uma única ORF,
de transcrever o genoma viral, produzindo os que é traduzida em poliproteína, comportam-se
mRNA para a síntese protéica. Nos vírus RNA como mRNAs monocistrônicos, pois a tradução
de cadeia dupla, a RNA polimerase trazida nos se inicia no primeiro códon de iniciação e termina
vírions transcreve as cadeias genômicas negati- no códon de terminação. As proteínas individu-
vas em mRNA. ais são geradas após este processo, pela clivagem
A maquinaria de síntese protéica das célu- enzimática.
las eucariotas (ribossomos e fatores auxiliares) se Além de superar essas restrições, os vírus
localiza no citoplasma; somente traduz mRNA tiveram que desenvolver estratégias que os per-
monocistrônicos e que possuam a estrutura cap mitam utilizar a maquinaria celular de tradução
na extremidade 5’. Os mRNA dos vírus DNA que em seu benefício. Isso porque os mRNA celula-
replicam no núcleo são produzidos, processados res estão presentes em muito maior quantidade e
e exportados para o citoplasma pela maquinaria competem com grande vantagem em relação aos
da célula e, como tal, assemelham-se aos mRNA mRNA virais. Dentre as estratégias virais utiliza-
celulares. Os mRNA do vírus DNA que replicam das pelos vírus para competir pelo aparato celular
no citoplasma (poxvírus, asfarvírus) são produzi- de tradução destacam-se: a) inibição da transcri-
dos e modificados no próprio citoplasma por en- ção celular (vírus da estomatite vesicular, VSV);
zimas virais, também à semelhança dos mRNA b) inibição do processamento e/ou maturação e
celulares. Para serem traduzidos diretamente, exportação de mRNA celulares do núcleo (ade-
os genomas dos vírus RNA de sentido positivo novírus, HIV); c) degradação de mRNA celulares
possuem cap 5’ (alguns flavivírus, coronavírus, no núcleo (ortomixovírus, HSV) ou no citoplasma
arterivírus e togavírus) ou uma estrutura secun- (buniavírus); d) inibição seletiva da tradução de
dária que permite o reconhecimento pelos ribos- mRNA celulares (poliovírus, FMDV); e) facilita-
somos e o início da tradução. Essa estrutura é ção do processamento, transporte e tradução de
denominada IRES (internal ribosomal entry site) e mRNA virais (HIV); g) alteração da especificida-
está presente próxima à extremidade 5’ do geno- de de reconhecimento de mRNA para a tradução:
ma dos picornavírus e de alguns membros da fa- a tradução de mRNA que possuem cap é inibida
mília Flaviviridae (pestivírus). Nos vírus RNA de e as células infectadas passam a traduzir mRNA
sentido negativo e RNA de cadeia dupla, a RNA virais, que são reconhecidos pelos ribossomos
polimerase viral produz mRNAs com cap e cauda através da estrutura IRES (picornavírus).
poliA.
A maquinaria de tradução das células eu- 3.5 Replicação do genoma
cariotas não é capaz de traduzir mRNAs policis-
trônicos, ou seja, mRNAs que contenham mais Dependendo do tipo e organização genômi-
de uma ORF. A tradução de ORFs internas no ca, os vírus podem utilizar diferentes estratégias
122 Capítulo 5

para cumprir as etapas de expressão gênica e re- rus. A contribuição dos fatores virais na replica-
plicação do seu genoma. Baltimore (1971) propôs ção desses vírus, no entanto, varia muito entre as
a classificação dos vírus em seis grupos, de acor- diferentes famílias. Em geral, os vírus DNA mais
do com o tipo de genoma, local e estratégia de simples (circovírus, parvovírus e poliomavírus)
replicação. Essa classificação foi posteriormente utilizam extensivamente a maquinaria celular,
ampliada para contemplar novos vírus e estra- pois os seus genomas codificam poucos produ-
tégias identificadas, resultando em sete grupos tos associados com funções replicativas. Por ou-
ou classes (Tabela 5.2). A seguir serão abordados tro lado, os vírus DNA complexos (herpesvírus
os principais aspectos da replicação de cada um e poxvírus) codificam muitas enzimas e fatores
desses grupos. Os detalhes da replicação dos ví- envolvidos na replicação. Esses últimos seriam,
rus de cada família serão abordados nos capítu- teoricamente, menos dependentes da maquina-
los específicos. ria celular para a replicação de seus genomas e a
conseqüente produção da progênie viral.
3.5.1 Replicação dos vírus DNA A replicação da maioria dos vírus DNA
ocorre no núcleo da célula hospedeira. O genoma
A replicação dos vírus DNA é realizada pela desses vírus contém regiões regulatórias que são
ação orquestrada da maquinaria da célula hospe- reconhecidas pela maquinaria celular de trans-
deira associada com fatores codificados pelo ví- crição e, assim, podem utilizá-la para a produção
Tabela 5.2 Classificação dos vírus de acordo com o tipo de genoma, local de replicação e estratégia utilizada para
produzir os mRNAs.

Classe Genoma Local de replicação Famílias

Polyomaviridae
Papillomaviridae
Ia. Núcleo Adenoviridae
I DNA de cadeia dupla Herpesviridae

Ib. Citoplasma Poxviridae


Asfarviridae

Parvoviridae
II DNA cadeia simples Núcleo Circoviridae

III RNA de cadeia dupla Citoplasma Reoviridae


Birnaviridae

IVa.Tradução integral Flaviviridae


do genoma Picornaviridae
RNA de cadeia simples,
IV Citoplasma
sentido positivo
Astroviridae
IVb.Tradução parcial Caliciviridae
do genoma; mRNAs Togaviridae
subgenômicos Coronaviridae
Arteriviridae

Va. Núcleo Orthomyxoviridae


Bornaviridae
RNA de cadeia simples,
V sentido negativo Bunyaviridae
Arenaviridae
Vb. Citoplasma Rabdoviridae
Paramyxoviridae
Filoviridae
RNA de cadeia simples e
VI Citoplasma/núcleo Retroviridae
intermediário DNA

DNA de cadeia parcialmente


VII Núcleo/citoplasma Hepadnaviridae
dupla e intermediário RNA

Fonte: adaptado de Baltimore (1971).


Replicação viral 123

dos mRNA necessários à síntese de suas prote- nante de fatores celulares e se inicia com a síntese
ínas. Em diferentes graus, esses vírus também da fita complementar. Nos parvovírus, a própria
utilizam enzimas e fatores celulares para o meta- extremidade 3’ do genoma serve de primer para
bolismo de nucleotídeos, para a síntese de DNA o início da replicação. A replicação do genoma
e replicação do genoma. linear de fita dupla dos adenovírus se inicia com
Os poxvírus e asfarvírus se constituem em um primer de proteína, ocorre de forma contínua
exceções, pois trazem, nos vírions, as enzimas e e em duas etapas. Apenas uma das cadeias é re-
fatores necessários para a transcrição e modifica- plicada em cada etapa. A replicação do genoma
ção dos mRNA e codificam as enzimas e fatores dos herpesvírus e poxvírus é mais complexa e
envolve a participação de vários fatores codifica-
requeridos para a replicação do genoma. Mesmo
dos pelo genoma viral. Os herpesvírus parecem
assim, são dependentes da maquinaria celular de
replicar o seu genoma por um mecanismo de cír-
síntese protéica. A replicação desses vírus ocorre
culo rolante, no qual a replicação inicia-se após a
inteiramente no citoplasma.
circularização do genoma e resulta na produção
O mecanismo de replicação do genoma
de multímeros, que são posteriormente clivados
também apresenta diferenças entre as famílias,
em unidades genômicas. A replicação do genoma
devido a peculiaridades de estrutura, topologia dos hepadnavírus inclui uma etapa de transcri-
e organização genômica. A replicação do geno- ção reversa, na qual um RNA produzido a partir
ma circular de fita dupla dos poliomavírus, por do DNA genômico é convertido em DNA de fita
exemplo, é realizada quase que exclusivamente simples e, posteriormente, em DNA de fita du-
por enzimas e fatores celulares. A síntese das no- pla.
vas cadeias utiliza um primer de RNA e ocorre de As etapas do ciclo replicativo dos diferentes
forma bidirecional e semidescontínua, a exemplo grupos de vírus DNA estão ilustradas esquema-
da replicação do DNA celular. A replicação dos ticamente nas Figuras 5.5 a 5.8 (a forma de apre-
genomas DNA de fita simples (circovírus e parvo- sentação das etapas de replicação foi adaptada de
vírus) também envolve a participação predomi- ROIZMAN e PALESE, 1996).

3
Genoma dsDNA DNA Progênie
Replicação

6 Morfogênese
Transcrição Transcrição
1 genes iniciais 4 genes tardios

mRNA mRNA Vírions Egresso

2 Tradução 5 Tradução
6 Morfogênese

Proteínas Proteínas tardias


iniciais (NS) (estruturais)

Figura 5.5. Ciclo replicativo dos vírus da classe Ia (Adenoviridae, Herpesviridae, Polyomaviridae e Papillomaviridae).
Os genes iniciais são transcritos antes da replicação do genoma (1) e geralmente codificam proteínas não-estruturais
(NS) envolvidas nas etapas seguintes da replicação (2). Essas proteínas, isoladamente ou em conjunto com fatores
celulares, atuam na replicação do genoma (3). Os genes tardios são transcritos após a replicação do genoma (4) e
codificam proteínas estruturais em sua maioria (5). As proteínas estruturais são importadas para o núcleo, onde
ocorre a morfogênese (6).
124 Capítulo 5

3.5.1.1 Vírus da classe Ia de infecção, também são produzidas nessa etapa


e incorporadas na progênie viral (Figura 5.5).
Os genes desses vírus são transcritos pela
maquinaria celular de transcrição, pois possuem 3.5.1.2 Vírus da classe Ib
as regiões regulatórias (promotores, enhancers),
que são reconhecidas pela RNApolII e pelos fato- Os poxvírus e asfarvírus realizam o seu ciclo
res de transcrição da célula hospedeira. Os genes replicativo inteiramente no citoplasma. Para isso,
são classificados em duas ou mais classes e são trazem, nos vírions, as enzimas e fatores necessá-
transcritos seqüencialmente sob regulação tem- rios para a transcrição dos seus genes e proces-
poral restrita. Os genes iniciais (immediate-early e samento dos transcritos. O genoma desses vírus
early nos herpesvírus; early nas demais famílias) codifica vários produtos que atuam no metabo-
são transcritos logo após a penetração na célula e, lismo de nucleotídeos e na replicação do genoma
geralmente, codificam proteínas não-estruturais (DNA polimerase, helicase, proteína de ligação
que possuem funções regulatórias sobre outros no DNA e quinase de timidina), que, portanto,
genes e também enzimas e fatores envolvidos na é realizada predominantemente por enzimas e
replicação do genoma. A replicação do genoma fatores virais. A expressão gênica ocorre em três
dos poliomavírus e papilomavírus é realizada etapas principais: inicial, intermediária e tardia.
quase que exclusivamente por fatores e enzimas Os genes iniciais são os primeiros a ser expres-
celulares; já os herpesvírus e adenovírus codifi- sos, e os seus produtos possuem funções diver-
cam várias proteínas com funções replicativas sas, incluindo a conclusão do desnudamento, a
(DNA polimerase, proteína de ligação no DNA, replicação do genoma e ativação da transcrição
helicase e quinases de nucleotídeos). Os genes dos genes intermediários. As proteínas inter-
tardios são transcritos após a replicação do geno- mediárias atuam principalmente na ativação da
ma e codificam principalmente proteínas estrutu- transcrição dos genes tardios, cujos produtos são
rais e/ou proteínas envolvidas na morfogênese. predominantemente proteínas estruturais e/ou
Algumas proteínas não-estruturais (NS), que são que participam da morfogênese da progênie viral
necessárias nos estágios iniciais do próximo ciclo (Figura 5.6). Esses vírus codificam vários produ-

3 DNA 4
Genoma DNA DNA progênie
(encapsidado) livre Replicação

5 Transcrição 7 Transcrição 9 Morfogênese


1 Transcrição
inicial

mRNA iniciais mRNA mRNA


intermediários tardios Vírions Egresso

2 Tradução
6 Tradução 8 Tradução
9 Morfogênese

Proteínas Proteínas Proteínas


iniciais (NS) intermediárias tardias

Figura 5.6. Ciclo replicativo dos vírus da classe Ib (Poxviridae e Asfarviridae). Os genes iniciais são transcritos pela
RNA polimerase viral ainda com o DNA parcialmente encapsidado, resultando nos mRNAs (1) que são traduzidos
nas proteínas iniciais (2). Essas proteínas participam do desnudamento completo do genoma (3), na sua replicação (4)
e na transcrição (5) dos genes que codificam as proteínas intermediárias (6). Estas proteínas estão envolvidas na
transcrição dos genes tardios (7), que codificam principalmente proteínas estruturais (8). Estas proteínas participam
da morfogênese dos vírions, juntamente com o DNA recém-replicado (9).
Replicação viral 125

tos que interferem com a resposta do hospedei- Os parvovírus encapsidam predominantemente


ro à infecção, dificultando o reconhecimento das cópias de DNA de sentido negativo (aquelas que
células infectadas pelo sistema imunológico do serão transcritas), mas algumas espécies podem
hospedeiro. encapsidar também cópias positivas e, ocasional-
mente, uma mistura das duas (Figura 5.7).
3.5.1.3 Vírus da classe II
3.5.1.4 Vírus da classe VII
A replicação do genoma dos parvovírus e
circovírus é realizada predominantemente por A replicação do genoma dos hepadnaví-
enzimas e fatores da célula hospedeira. A primei- rus envolve uma etapa de transcrição reversa e
ra etapa da replicação é a síntese da cadeia com- ocorre parte no núcleo e parte no citoplasma. No
plementar de DNA. O DNA de fita dupla (linear núcleo, o genoma de cadeia dupla parcial é con-
nos parvovírus, circular nos circovírus) é, então, vertido em um círculo covalentemente fechado
transcrito pela RNA polII celular, originando os (ccc) por fatores celulares e virais e, subseqüen-
mRNAs para a síntese de proteínas virais. A re- temente, transcrito pela RNApolII celular. Além
plicação dos parvovírus está intimamente asso- dos mRNA para a produção das proteínas virais,
ciada com a fase S do ciclo celular, demonstran- a transcrição produz RNAs com a extensão do
do a dependência de fatores celulares presentes genoma (pgRNA). Esses pgRNAs servirão de
nesta fase. O genoma dos parvovírus é replicado molde para a transcrição reversa, que é realizada
de forma contínua, a partir de uma 3’-OH loca- pela polimerase viral, e ocorre no interior de cap-
lizada na extremidade do hairpin, formado pelo sídeos pré-formados no citoplasma. A síntese da
pareamento das regiões complementares termi- cadeia complementar de DNA inicia em seguida,
nais. A síntese da nova cadeia é seguida pelo des- mas é interrompida por ocasião do egresso dos
locamento da cadeia original, originando conca- vírions. Com isso, as partículas víricas contêm
têmeros, que serão posteriormente clivados para uma molécula de DNA de fita parcialmente du-
originar os monômeros de extensão genômica. pla (Figura 5.8).

1
Genoma DNA DNA fita dupla DNA ss (-)
(cadeia simples)

2 Transcrição 4 Morfogênese 5

mRNA DNA ss (+) Vírions Egresso

3 Tradução
Morfogênese 5

Proteínas estruturais
e
Não-estruturais (NS)

Figura 5.7. Ciclo replicativo dos vírus da classe II (Parvoviridae e Circoviridae). O genoma DNA de cadeia simples é,
inicialmente, convertido em DNA de cadeia dupla por polimerases e fatores auxiliares da célula hospedeira (1).
Apenas uma das cadeias (DNA de sentido negativo) é transcrita pela RNA polimerase II celular, originando os
mRNAs (2), que são processados e exportados para o citoplasma, onde são traduzidos (3). A replicação do genoma
depende da interação entre fatores celulares e virais e resulta na síntese de cópias de DNA de cadeia simples de
sentido positivo (4) e negativo (5). As moléculas de DNA recém-replicadas são então incluídas nos vírions, através de
interações específicas com as proteínas do capsídeo (6).
126 Capítulo 5

Genoma DNA
(Parcialmente ds)

1 A cadeia dupla Egresso


é completada
7

2 3 Proteínas estruturais 8
DNAccc mRNA e polimerase Vírions
Transcrição Tradução DNApds
parcial

6 Síntese da
cadeia complementar

4 5
PgRNA CDNA
Transcrição Transcrição
completa reversa

Figura 5.8. Ciclo replicativo dos vírus da classe VII (Hepadnaviridae). O DNA genômico é, inicialmente, convertido
em uma molécula circular de cadeia dupla completa ccc (1). Essa molécula é transcrita pela RNA pol II celular,
originando inicialmente mRNAs (2), que são processados e exportados para o citoplasma, onde serão traduzidos em
proteínas estruturais e não-estruturais (3). RNAs com a extensão integral do genoma (pgRNA) são, então, produzidos
(4) e exportados para o citoplasma. A polimerase viral recém-produzida realiza a transcrição reversa do pgRNAs,
resultando em cDNA (5), que é convertido em DNA de cadeia dupla (6). Capsídeos contendo o DNA de cadeia
parcialmente dupla podem voltar ao núcleo e reiniciar o ciclo (7) ou participar da morfogênese das partículas víricas
(8).

3.5.2 Replicação dos vírus RNA genoma logo no início da infecção. Uma vez pro-
duzida, essa enzima se encarrega de replicar o
genoma, produzindo cópias de RNA de sentido
A replicação dos vírus RNA enfrenta algu- antigenômico, que servem de molde para a sínte-
mas dificuldades adicionais, impostas por pecu- se de mais cópias de sentido genômico. Por isso,
liaridades dos processos biossintéticos das célu- o genoma desses vírus é dito infeccioso, ou seja, a
las hospedeiras. A replicação do genoma desses sua introdução por métodos artificiais em células
vírus envolve a síntese de moléculas de RNA de permissivas (transfecção) resulta na ocorrência
sentido antigenômico, que servem de molde para de todas as etapas do ciclo replicativo e na pro-
a subseqüente síntese de RNAs de sentido genô- dução de progênie viral.
mico. Essas reações são realizadas por polimera- Por outro lado, o genoma dos vírus RNA de
ses específicas, que produzem moléculas de RNA polaridade negativa não pode ser traduzido, pois
a partir de moldes RNA (polimerases de RNA de- possui o sentido complementar ao mRNA. Esses
pendentes de RNA). No entanto, as células euca- vírus solucionaram esse problema de forma di-
riotas não possuem tais enzimas e, por isso, não ferente: trazem associado ao material genético
são capazes de replicar o genoma desses vírus. algumas moléculas da polimerase de RNA (repli-
Assim, para replicar o genoma, os vírus RNA de- case). Uma vez no interior da célula, a replicase
vem codificar as suas próprias enzimas replicati- sintetiza cópias de RNA de sentido antigenômico
vas. As polimerases de RNA virais, cuja função que servem de mRNA para a síntese das proteí-
é produzir cópias do genoma, são denominadas nas virais. Esses RNAs também servem de molde
genericamente transcriptases ou replicases. para a síntese de mais cópias de RNA de sentido
Os vírus RNA de polaridade positiva solu- genômico. O genoma dos vírus RNA de pola-
cionaram esse problema pela própria natureza ridade negativa não é infeccioso, ou seja, a sua
do genoma: a enzima replicase é codificada pelo introdução (desprovido de proteínas) em células
genoma e é produzida pela tradução direta do permissivas não resulta na ocorrência das etapas
Replicação viral 127

seguintes da replicação. Em resumo, a necessida- entre outras, já foram identificadas entre as pro-
de da polimerase de RNA para replicar o geno- teínas NS dos vírus RNA.
ma foi suprida, de formas diferentes, tanto pelos Como os vírus RNA independem da ma-
vírus RNA de sentido positivo como pelos vírus quinaria nuclear para a síntese e modificação
RNA de sentido negativo. de ácidos nucléicos, o seu ciclo replicativo pode
A replicação do genoma dos vírus RNA ocorrer inteiramente no citoplasma. Os ortomixo-
ocorre em duas etapas. A primeira etapa envolve vírus constituem as exceções, pois dependem de
a síntese de um RNA de sentido antigenômico, segmentos dos mRNA celulares para a produção
também denominado replicativo intermediário e funcionalidade de seus mRNAs e, por isso, re-
(RI). Nos vírus RNA de polaridade positiva, o plicam no núcleo da célula hospedeira.
RI possui polaridade negativa; nos vírus RNA Os retrovírus apresentam um mecanismo de
de polaridade negativa, o RI possui polaridade replicação que difere dos demais vírus RNA. Em-
positiva. A segunda etapa envolve a síntese de
bora possua polaridade positiva, o RNA genômi-
RNA de sentido genômico, utilizando o RI como
co não é traduzido pelos ribossomos, e sim con-
molde. Em alguns vírus RNA de sentido positivo
vertido em uma molécula de DNA de fita dupla
(Classe IVb), o RI também serve de molde para a
pela enzima transcriptase reversa (RT) presente
síntese de mRNAs. Embora essas duas etapas fa-
nos vírions. Essa molécula de DNA, denominada
çam parte do processo replicativo, às vezes, rece-
bem denominações diferentes: a síntese de RNAs provírus, é integrada ao genoma da célula hospe-
de polaridade positiva é denominada transcrição; deira e, posteriormente, transcrita pela RNApo-
a síntese da cópia negativa de RNA é denomi- lII. A transcrição resulta em mRNAs para a sínte-
nada replicação. Essas duas etapas são realizadas se de proteínas estruturais e da enzima RT, e em
pelas replicases virais, pois as células eucariotas cópias do RNA genômico, que é então incluído
não possuem enzimas e funções para replicar o nas novas partículas víricas.
RNA. Além das replicases, esses vírus codificam As etapas do ciclo replicativo dos diferentes
outras proteínas não-estruturais (NS) com fun- grupos de vírus RNA estão ilustradas esquema-
ções diversas e que auxiliam, de algum modo, ticamente nas Figuras 5.9 a 5.13 (a forma de apre-
na replicação do genoma. Atividades de helicase, sentação das etapas de replicação foi adaptada de
protease, ligação no RNA, ATPase, ribonuclease, ROIZMAN E PALESE, 1996).

4
RNA
Replicação Genoma RNA (+)
anti-genômico
(-) 3

7 Morfogênese
1,6 Tradução

Poliproteína Vírions Egresso

2 Clivagem

7 Morfogênese

Proteínas não-estruturais

Proteínas estruturais

Figura 5.9. Ciclo replicativo dos vírus da classe IVa (Picornaviridae e Flaviviridae). A ORF única do genoma é
traduzida em toda a sua extensão logo após o desnudamento, resultando da produção de uma longa poliproteína (1).
À medida que vai sendo produzida, essa poliproteína vai sendo clivada por proteases celulares e/ou virais dando
origem às proteínas individuais, entre as quais a RNA polimerase viral (2). A RNA polimerase é responsável pela
replicação do genoma, que ocorre via produção de um intermediário RNA de sentido negativo (3, 4). As novas cópias
de RNA de sentido positivo são, então, utilizadas em novos ciclos de tradução (6), replicação (3,4) e/ou participam da
morfogênese da progênie viral (7).
128 Capítulo 5

3.5.2.1 Vírus da classe IVa mas a organização genômica e a estratégia de


expressão gênica diferem do grupo anterior. Os
O genoma desses vírus contém uma ORF genes que codificam as proteínas NS ocupam os
única e longa, flanqueada por duas regiões não dois terços iniciais do genoma; o terço restante
traduzidas (5’UTR; 3’UTR). Os genes das prote- contém os genes das proteínas estruturais. No
ínas estruturais ocupam o terço 5’ do genoma; o início da infecção, o RNA genômico é traduzido
restante da ORF contém os genes das proteínas parcialmente, resultando na produção de uma
não-estruturais (NS). Essa ORF é traduzida em poliproteína que abrange a região das proteínas
toda a sua extensão logo após o desnudamento, NS. A clivagem dessa poliproteína resulta nas
originando uma poliproteína longa, que é cliva- proteínas NS, incluindo a replicase viral. Utili-
da em proteínas individuais à medida que vai zando o RNA genômico como molde, a replicase
sendo produzida (Figura 5.9). As proteínas NS sintetiza uma cópia de RNA de sentido antigenô-
recém-produzidas – incluindo a replicase viral mico (polaridade negativa) com a extensão com-
– realizam a replicação do genoma, que envolve a pleta do genoma. Esse RNA antigenômico serve
síntese de um RNA de sentido antigenômico (de
de molde para a síntese de vários mRNAs de
polaridade negativa); que serve, então, de mol-
extensões variáveis (denominados mRNAs sub-
de para a síntese de cópias de RNA de sentido
genômicos), que serão traduzidos nas proteínas
genômico. As regiões 5’UTR e 3’UTR do genoma
estruturais. O RNA antigenômico também serve
contêm seqüências importantes para a transcri-
de molde para a transcrição completa e produção
ção e replicação. O genoma dos vírus do gênero
de RNAs de sentido e extensão genômica. Resu-
Flavivirus possui a estrutura cap na extremidade
mindo, embora o genoma desses vírus possua
3’; os demais membros da família Flaviviridae e os
picornavírus possuem estruturas secundárias (in- polaridade positiva, apenas a região da ORF, que
ternal ribosomal entry site, IRES) na região 5’UTR, corresponde às proteínas NS, é traduzida pelos
que são reconhecidas pelos ribossomos para o ribossomos. As proteínas estruturais são produ-
início da tradução. zidas pela tradução de mRNAs subgenômicos,
que, por sua vez, são produzidos pela transcrição
3.5.2.2 Vírus da classe IVb do RNA antigenômico. Uma característica mar-
cante dessas famílias – e que difere do grupo an-
O genoma desses vírus é constituído por terior – é a produção de mRNAs subgenômicos
uma molécula de RNA de polaridade positiva, (Figura 5.10).

6
RNA
6
Genoma RNA (+) Replicação anti-genômico Genoma RNA (+)
(-) Replicação
3

Tradução 4 Transcrição 7 Morfogênese


parcial 1

Poliproteína mRNA
subgenômicos Vírions Egresso
região 5’

Clivagem 2 5 Tradução

7 Morfogênese

Proteínas Proteínas
não-estruturais estruturais

Figura 5.10. Ciclo replicativo dos vírus da classe IVb (Coronaviridae, Togaviridae, Arteriviridae, Caliciviridae e
Astroviridae). O RNA genômico de sentido positivo é traduzido parcialmente, resultando em uma poliproteína (1) que é
clivada em proteínas não-estruturais, incluindo a replicase (2). A replicase recém-produzida replica o genoma em toda a
sua extensão, produzindo uma molécula de RNA de sentido antigenômico (3). O RNA anti-genômico serve de molde
para a transcrição e produção de vários RNAm subgenômicos de extensões variáveis (4), cuja tradução resulta nas
proteínas estruturais (5). Posteriormente também são produzidas cópias inteiras do genoma RNA de sentido positivo (6),
que servirão de molde para ciclos adicionais de replicação (3) e serão oportunamente encapsidadas (7).
Replicação viral 129

3.5.2.3 Vírus da classe V Nos vírus com o genoma segmentado, a transcri-


ção dos segmentos genômicos de RNA também
Esses vírus possuem um genoma RNA de resulta em dois tipos de RNAs, com funções dife-
sentido negativo, não-segmentado (paramixoví- rentes (mRNAs para a tradução; RI RNAs para a
rus, rabdovírus e filovírus) ou segmentado (or- replicação). Os mRNAs e RIs, derivados de cada
tomixovírus, buniavírus e arenavírus) e trazem a segmento, no entanto, possuem tamanhos apro-
replicase viral nos vírions. Nos vírus com o ge- ximados. Os mRNAs possuem alguns nucleotí-
noma não-segmentado, os genes são transcritos deos a mais e a estrutura cap na extremidade 5’
individualmente, originando mRNAs que são e uma cauda poliA na extremidade 3’. Os RNAs
traduzidos nas proteínas estruturais e NS (Figura RI, sem cap ou poliA são produzidos tardiamente
5.11). Nos vírus com o genoma segmentado, cada na infecção e servem exclusivamente de molde
segmento contém um (ou dois) gene(s), que tam- para a replicação e produção de segmentos de
bém são transcritos individualmente. Nas etapas RNA genômicos. Todas as etapas de transcrição
iniciais da infecção, a transcrição é direcionada e replicação desses vírus ocorrem com o genoma
para a síntese de mRNAs para a produção de pro- intimamente associado com proteínas, principal-
teínas virais. Em fases tardias do ciclo, o modo de mente a nucleoproteína (NP), formando o com-
transcrição deve ser alterado, de modo a produ- plexo ribonucleoproteína (RNP).
zir os RNAs intermediários de replicação (RI) de Os arenavírus e os vírus do gênero Phlebovi-
sentido antigenômico. Nos vírus com o genoma rus (Bunyaviridae) apresentam uma estratégia pe-
não-segmentado, esses RI possuem a extensão in- culiar de expressão de alguns de seus genes. Os
teira do genoma e servem de molde para a síntese RNA genômicos possuem polaridade negativa
de moléculas de RNA de sentido genômico. Dois e a maioria dos genes é expressa pela estratégia
tipos de RNAs de sentido positivo são, então, descrita acima. No entanto, um dos segmentos
produzidos: os mRNA com a extensão dos genes genômicos contém seqüências codificantes de
individuais (para a tradução); e o RNA RI, com a proteína tanto no sentido do genoma (sentido ne-
extensão inteira do genoma (para a replicação). gativo) como no sentido antigenômico. Essa es-

4
RNA Replicação Genoma RNA (-)
antigenômico
(-) 3

Transcrição 6 Morfogênese
1, 5

mRNA Vírions Egresso

2 Tradução

6 Morfogênese

Proteínas estruturais

Não-estruturais + NP

Figura 5.11. Ciclo replicativo dos vírus da classe V (Paramyxoviridae, Rhabdoviridae, Filoviridade, Orthomyxoviridae
e Bunyaviridade). Os genes individuais são transcritos pela RNA polimerase presente nos vírions, produzindo
mRNAs correspondentes a cada gene (1). A tradução desses mRNA resulta em proteínas estruturais e NS (2). As
proteínas NS, incluindo a replicase, participam da replicação do genoma. A replicação ocorre via síntese de RNAs de
sentido antigenômico (3), que servem de molde para a síntese de RNAs de sentido genômico (4). As moléculas de
RNA de sentido genômico servem de molde para novos ciclos de transcrição (5), replicação (3, 4) e serão
posteriormente encapsidadas (6).
130 Capítulo 5

tratégia é denominada ambissense e é única dessas deo com os complexos pré-formados entre o ge-
famílias. noma e outras proteínas estruturais. A liberação
dos vírions maduros ocorre de forma ineficiente
3.5.2.4 Vírus da classe III após a lise celular. As moléculas de RNA genô-
mico possuem funções distintas: as moléculas de
O genoma desses vírus é composto por 10 RNA de polaridade negativa servem apenas de
a 12 segmentos (reovírus) ou dois segmentos molde para a transcrição. A função aparente das
(birnavírus de animais) de RNA de fita dupla. moléculas genômicas de RNA positivo é apenas
Nos reovírus, a maioria dos segmentos codifica parear com as cadeias negativas. Já as moléculas
apenas uma proteína; poucos segmentos contêm de RNAs de sentido positivo, produzidas duran-
dois genes. Logo após a penetração e ainda em te a infecção, possuem duas funções: podem ser
capsídeos semi-íntegros, a polimerase viral pre- traduzidas em proteínas (mRNAs) e/ou servem
sente nos vírions realiza a transcrição primária de de molde para a síntese das cadeias negativas (Fi-
cada segmento. Os mRNA resultantes possuem gura 5.12).
duas funções: são traduzidos em proteínas e, já
associados com as proteínas estruturais recém- 3.5.2.5 Vírus da classe VI
produzidas, servem de molde para a replicação
(síntese de RNAs de sentido negativo). Dentro de A replicação do genoma dos retrovírus in-
capsídeos pré-formados, os segmentos de RNA clui etapas que ocorrem no citoplasma (logo após
de polaridade negativa recém-produzidos são a penetração do nucleocapsídeo na célula hospe-
transcritos (transcrição secundária). Os transcritos deira) e no núcleo (após a integração do material
resultantes são utilizados predominantemente genético viral no genoma da célula). O genoma
para a produção de proteínas nas fases tardias do desses vírus é composto por duas moléculas idên-
ciclo. Os eventos que ocorrem nas fases finais do ticas de RNA de sentido positivo que, no entanto,
ciclo não estão esclarecidos, mas parecem envol- não são traduzidas pelos ribossomos. No inicío
ver a associação das proteínas externas do capsí- da infecção, a molécula de RNA genômico é con-

Pré-capsídeos Replicação
+ mRNA Genoma RNA
4 (cadeia dupla)

Transcrição 6 Morfogênese
1,6 primária e
secundária

3
mRNA Vírions Egresso

Morfogênese 2 Tradução
3
inicial 6 Morfogênese

Proteína não-estruturais

Proteínas estruturais

Figura 5.12. Ciclo replicativo dos vírus da classe III (Reoviridae e Birnaviridae). A replicase viral trazida nos vírions
realiza a transcrição primária, produzindo mRNAs (1), que são traduzidos em proteínas estruturais e não-estruturais
(2). Esses mRNAs formam complexos com as proteínas estruturais recém-produzidas (3) e, no interior desses
complexos, servem de molde para a síntese de RNAs de sentido negativo, com a participação das proteínas NS (4). As
moléculas de RNA de cadeia dupla, resultantes da replicação (4), servem de molde para a transcrição secundária (5) e
para etapas adicionais de replicação (4). Essas moléculas, já conjugadas com algumas proteínas estruturais,
eventualmente participam da morfogênese pela associação com as demais proteínas do capsídeo (6).
Replicação viral 131

vertida em uma molécula de cDNA pela enzima fator viral, o genoma dos retrovírus é o único ge-
viral transcriptase reversa (RT, DNA polimerase noma viral a ser sintetizado exclusivamente por
dependente de RNA), que, em seguida, é con- enzimas e fatores celulares (Figura 5.13).
vertida em uma molécula de DNA de fita dupla.
Essa molécula, denominada provírus, ingressa no 3.6 Morfogênese, maturação e egresso
núcleo e é integrada no genoma da célula hospe-
deira, pela atividade integrase da polimerase vi- Os vírus das diversas famílias apresentam
ral. A integração do provírus no genoma celular uma ampla diversidade estrutural, que vai des-
assegura a perpetuação das informações genéti- de partículas formadas pelo genoma e uma ca-
cas do vírus no hospedeiro, e é absolutamente ne- mada simples de proteínas até vírions altamen-
cessária para a continuação do ciclo replicativo. te complexos. No entanto, independente da sua
A próxima etapa é a transcrição dos genes virais complexidade estrutural, uma série de interações
pela RNApolII e fatores de transcrição celulares. entre os seus constituintes são necessárias para a
A transcrição parcial do genoma produz mRNAs montagem das partículas víricas e a conclusão do
que serão processados por splicing e serão tradu- processo de replicação. Essas interações incluem:
zidos nas glicoproteínas do envelope. A transcri- a) formação das unidades estruturais do capsí-
ção completa do genoma origina mRNAs com deo pela interação entre as respectivas proteínas;
duas finalidades: servirem de molde para a tra- b) incorporação do genoma ao capsídeo pré-for-
dução em proteínas (RT, proteína da matriz, do mado ou em formação; e c) liberação da progênie
capsídeo) ou constituírem o RNA genômico para viral da célula infectada. No caso dos vírus enve-
a morfogênese da progênie viral. Considerando- lopados, a formação no nucleocapsídeo é seguida
se que a transcrição do provírus que produz o pela aquisição do envelope a partir de membra-
RNA genômico é realizada pela maquinaria celu- nas celulares, nas quais as proteínas virais foram
lar de transcrição, sem a participação de nenhum previamente inseridas.

Transcrição
reversa
ssDNA Genoma RNA (+)
1

Síntese da 8 Morfogênese
2 cópia complementar
7

Tradução Pol+In 8
dsDNA
(provírus) Proteínas do Vírions Egresso
5 capsídeo

3 Integração
8 Morfogênese

Provírus DNA Transcrição RNAs de extensão Splicing +Tradução


Glicoproteínas
Integrado genômica do envelope
4 6

Figura 5.13. Ciclo replicativo dos vírus da classe V (Retroviridae). Logo após o desnudamento, a enzima viral
transcriptase reversa (RT) sintetiza uma molécula de DNA complementar ao RNA genômico (1) que, em seguida, é
convertida em DNA de cadeia dupla (dsDNA), também pela ação da RT (2). Esta molécula de dsDNA, denominada
provírus, penetra no núcleo e é integrada no genoma da célula hospedeira pela atividade viral integrase (3). Os genes
presentes no provírus são, então, transcritos pela RNA polII celular, originando mRNAs de extensão subgenômica (4)
para a tradução nas proteínas do envelope (5). A transcrição do provírus em toda a sua extensão resulta em mRNAs de
extensão genômica (6), que podem ser traduzidos nas outras proteínas estruturais e polimerase viral (7) ou participam
da morfogênese das partículas virais (8).
132 Capítulo 5

Diferentemente de células eucariotas e pro- fogênese das partículas (e a conseqüente matura-


cariotas, que se multiplicam por fissão binária, ção) integralmente no citoplasma (vírus RNA) ou
os vírions são formados pela associação de com- no núcleo (vírus DNA). Dessa forma, a progênie
ponentes pré-formados (genoma + proteínas). viral infecciosa pode ser encontrada nesses com-
O processo de montagem das partículas víricas, partimentos, mesmo com a célula ainda íntegra,
que ocorre ao final do ciclo replicativo, é deno- ou seja, a maturação ocorre previamente ao egres-
minado genericamente de morfogênese ou reunião. so. Esses vírus geralmente são liberados quando
A aquisição da capacidade infectiva pelas partí- ocorre a destruição das células infectadas (Figu-
culas víricas recém-formadas – que ocorre prévia ra 5.14). Os vírus não-envelopados das famílias
ou concomitantemente com o seu egresso da cé- Polyomaviridae, Papillomaviridae, Adenoviridae e Pi-
lula – denomina-se maturação. Como, para muitos cornaviridae e também os membros da Poxviridae e
vírus, esses processos ocorrem simultaneamente, Asfarviridae (com envelope), enquadram-se nessa
serão aqui abordados conjuntamente. categoria.
As diferentes etapas da formação da partí-
cula vírica não ocorrem ao acaso. As associações 3.6.2 Maturação por brotamento em
entre os componentes são direcionadas e favore- membranas celulares
cidas por interações químicas específicas entre as
unidades protéicas estruturais e entre estas e o No ciclo replicativo dos vírus envelopados,
ácido nucléico. Dependendo da estrutura e com- as glicoproteínas do envelope recém-sintetizadas
plexidade da partícula vírica, da estratégia e local são inseridas em membranas celulares, isto é, na
de replicação, os vírus desenvolvem diferentes membrana do retículo endoplasmático rugoso
estratégias de morfogênese e maturação/egresso (RER), no aparelho de Golgi ou na membrana
de sua progênie. plasmática. Os nucleocapsídeos recém-formados
interagem com a proteína da matriz e/ou com
3.6.1 Maturação intracelular extremidades citoplasmáticas dessas glicopro-
(citoplasmática ou nuclear) teínas e inserem-se (ou projetam-se) através da
membrana, incorporando o envoltório. Esse en-
Alguns vírus (principalmente os desprovi- voltório (envelope) é composto pela membrana
dos de envelope) completam o processo de mor- lipídica dupla, contendo as glicoproteínas virais

Meio extracelular

Membrana plasmática 3

2
1 Citoplasma

Figura 5.14. Maturação intracelular e egresso dos vírus sem envelope. Os componentes do capsídeo interagem entre si
e com o genoma (1), resultando na formação de partículas víricas infecciosas (2), que são liberadas por lise celular (3).
Replicação viral 133

inseridas. O processo de aquisição do envelope envelope e completar a sua morfogênese/matu-


é denominado brotamento, pois o nucleocapsídeo ração, podem ser liberados por exocitose sem in-
literalmente brota para o interior do RER (Figura duzir necessariamente à lise da célula.
5.15), do Golgi ou para o exterior da célula (Fi- Os vírus RNA de sentido negativo, alguns
gura 5.16). Os vírus que realizam brotamento em vírus RNA de sentido positivo (togavírus) e os re-
membranas celulares, como forma de adquirir o trovírus completam a morfogênese e a maturação

Meio extracelular

Membrana plasmática

1
Citoplasma

Figura 5.15. Maturação intracitoplasmática de vírus envelopados por brotamento em membranas celulares internas.
Interação dos nucleocapsídeos com as caudas das glicoproteínas do envelope (1), brotamento e transporte no interior
de vesículas (2), liberação por exocitose (3).

Meio extracelular

3
Membrana plasmática

2
1

Citoplasma

Figura 5.16. Brotamento e maturação de vírus envelopados na membrana plasmática. Interação do nucleocapsídeo
com a proteína matriz e/ou caudas citoplasmáticas das glicoproteínas do envelope (1), brotamento através da
membrana plasmática e aquisição do envelope (2, 3), egresso de partículas infecciosas (4).
134 Capítulo 5

somente no momento da liberação dos vírions na BROWN, P. O. 1997. Integration. In: COFFIN, J. M.; HUGHES,
S. H.; VARMUS, H. E. (eds). Retroviruses. Plainview, NY: Cold
superfície da célula. Nesses casos, não é possível
Spring Harbor Laboratory Press, 1997, p.161-204.
detectar progênie viral infecciosa no interior das
células. Os vírions de outras famílias (Flaviviri- CANN, A.J. Principles of Molecular Virology. 2.ed. San Diego,
CA: Academic Press, 1997. 310p.
dae, Coronaviridae, Arteriviridae, Bunyaviridae, Po-
xviridae) realizam o brotamento no RER e/ou no CARRASCO, L. Entry of animal viruses and macromolecules
aparelho de Golgi. Vírions infecciosos podem ser into cells. FEBS Letters, v.350, p.151-154, 1994.

encontrados em vesículas citoplasmáticas deriva- FLINT, S.J. et al. Principles of Virology: molecular biology,
das desses compartimentos, nas quais são trans- pathogenesis and control. Washington, DC: ASM Press, 2000.
portados até a membrana plasmática, onde são 804p.

liberados por exocitose. HAY, R.T. et al. Molecular interactions during adenovirus DNA
Os herpesvírus apresentam uma estratégia replication. Current Topics in Microbiology and Immunology,
particular de morfogênese, maturação e egres- v.199, p.31-48, 1995.

so. A replicação do genoma e a montagem dos HISCOX, J.A. et al. The coronavirus infections bronchitis virus
nucleocapsídeos ocorrem no núcleo, para onde nucleoprotein localizes to the nucleolus. Journal of Virology,
as proteínas estruturais são importadas após a v.75, p.506-512, 2001.

sua síntese no citoplasma. Os nucleocapsídeos HISCOX, J.A. The interaction of animal cytoplasmic RNA viruses
podem adquirir o envelope pelo brotamento na with the nucleus to facilitate replication. Virus Research, v.95,
membrana nuclear interna – vírions completos p.13-22, 2003.

envelopados podem ser observados no espaço HUNTER, E. Virus assembly. In: KNIPE, D.M.; HOWLEY,
entre as membranas nucleares –. Esses nucleo- P.M. (eds). Fields virology. 4.ed. Philadelphia, PA: Lippincott
capsídeos podem perder o envelope ao sair desse Williams & Wilkins, 2001. Cap.8, p.171-197.
compartimento e readquir o envelope pelo bro- JOKLIK, W.K. The viral multiplication cycle. In: JOKLIK, W.K.;
tamento na membrana do RER. Nesses casos, WILLETT, H.P.; AMOS, D.B. (Eds). Zinsser’s microbiology.
são transportados em vesículas e liberados ao 20.ed. Norwalk, CT: Appleton & Lange, 1992. p.789-835.
exterior por exocitose. Outros nucleocapsídeos
KLASSE, P.J.; BRON, R.; MARSH, M. Mechanisms of enveloped
podem ser transportados através do citoplasma virus entry into animal cells. Advanced Drug Delivery Reviews,
até a membrana plasmática, onde adquirem o en- v.34, p.65-91, 1998.
velope por brotamento. Ao contrário de alguns
KLUMPP, K.; RUIGROK, R.W.; BAUDIN, F. Roles of the
vírus envelopados, que não são líticos, a replica- influenza virus polymerase and nucleoprotein in forming a
ção dos herpesvírus inevitavelmente leva à lise e functional RNP structure. The EMBO Journal, v.16, p.1248-1257,
à destruição celular. 1997.
Os efeitos da replicação viral na célula hos-
MARSH, M.; BOLZAU, E.; HELENIUS, A. Penetration of semliki
pedeira são muito variáveis e vão desde infec- forest virus from acidic prelysosomal vacuoles. Cell, v.32, p.931-
ções que não provocam alterações detectáveis até 940, 1983.
a morte e lise celular. As conseqüências da repli-
MARSH, M.; HELENIUS, A. Virus entry into animal cells.
cação viral em nível celular possuem importância
Advances in Virus Research, v.36, p.107-151, 1989.
na patogenia das doenças víricas. Esses temas se-
rão abordados no Capítulo 8. MURPHY, F.A. et al. Veterinary virology. 3.ed. San Diego, CA:
Academic Press, 1999. 629p.

4 Bibliografia consultada PELKMANS, L.; HELENIUS. A. Insider information: what


viruses tell us about endocytosis? Current Opinion in Cell
BEAUD, G. Vaccinia virus DNA replication: a short review. Biology, v.15, p.414-422, 2003.
Biochimie, v.77, p.774-779, 1995.
PENNINGTON, T.H. The replication of viruses. In: MAHY,
BOEHMER, P. E.; LEHMAN, I.R. Herpes simplex virus DNA B.W.J.; COLLIER, L.H. (Eds.). Topley and Wilson’s microbiology
replication. Annual Review of Biochemistry, v.66, p.347-384, and microbial infections. 9.ed. London: Edward Arnold, 1998.
1997. v.1. p.23-32.
Replicação viral 135

PEREZ, L.; CARRASCO, L. Entry of poliovirus into cells does not SODEIK, B. Mechanisms of viral transport in the cytoplasm.
require a low-pH step. Journal of Virology, v.67, p.4543-4548, Trends in Microbiology, v.8, p.465-472, 2000.
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TAVIS, J.E. The replication strategy of the hepadnaviruses. Viral
PLOUBIDOU, A.; WAY, M. Viral transport and the cytoskeleton. Hepatitis Review, v.2, p.205-218, 1996.
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SMITH, A.E.; HELENIUS, A. How viruses enter animal cells.


Science, v.304, p.237-242, 2004.
REPLICAÇÃO DOS VÍRUS DNA
Gustavo Delhon1 6
1 Introdução 139

2 Poliomavírus 140

2.1 O ciclo replicativo 140


2.2 O genoma dos PoVs 142
2.3 Expressão dos genes iniciais 142
2.4 Replicação do DNA 144
2.5 Expressão dos genes tardios 145
2.6 Morfogênese e egresso 146
2.7 Conclusões 146

3 Papilomavírus 147

3.1 O ciclo replicativo 147


3.2 O genoma dos PpVs 147
3.3 Expressão dos genes iniciais 148
3.4 Replicação do DNA e interferência com o ciclo celular 148
3.5 Expressão dos genes tardios 150
3.6 Conclusões 151

4 Adenovírus 151

4.1 O ciclo replicativo 151


4.2 O genoma dos AdVs 151
4.3.Expressão dos genes iniciais 153
4.4 Replicação do DNA viral 154
4.5 Expressão dos genes tardios 154
4.6 Conclusões 156

5 Herpesvírus 156

5.1 O ciclo replicativo 156


5.2 O genoma dos HVs 156
5.3 Os genes virais 157
5.4 Expressão gênica 158
5.5 Replicação do DNA viral 159
5.6 Expressão gênica durante a infecção latente 160

1
Traduzido por Fernanda S.F.Vogel.
5.7 Conclusões 160

6 Poxvírus 160

6.1 O ciclo replicativo 160


6.2 O genoma dos PoxVs 160
6.3 Expressão gênica 161
6.4 Replicação do DNA 162
6.5 Conclusões 163

7 Bibliografia consultada 163


1 Introdução Os mecanismos de replicação do genoma
também variam entre os vírus DNA, de acordo
A replicação dos vírus DNA é realizada pela com a estrutura e topologia do genoma e também
ação orquestrada da maquinaria da célula hos- com a participação relativa de fatores celulares
pedeira, associada com fatores codificados pelo e/ou virais (Figura 6.1). O genoma circular de
vírus. A contribuição relativa dos fatores virais cadeia dupla dos poliomavírus (e provavelmente
na replicação desses vírus, no entanto, varia mui- dos papilomavírus), por exemplo, é replicado de
to entre as diferentes famílias. Em geral, os ví- forma bidirecional e semidescontínua, a partir de
rus DNA pequenos (parvovírus e poliomavírus) uma origem única. O complexo replicativo utili-
utilizam extensivamente a maquinaria celular, za um primer de RNA para iniciar a síntese, e o
ou seja, os seus genomas codificam poucos pro- mecanismo de replicação é semelhante ao utiliza-
dutos associados com funções replicativas. Por do pelas células eucariotas para replicar o DNA
outro lado, os vírus DNA grandes (herpesvírus cromossômico. O genoma linear de fita dupla dos
e poxvírus) codificam muitas enzimas e fatores adenovírus possui uma origem em cada extremi-
envolvidos na replicação. Esses últimos seriam, dade. A replicação ocorre em duas etapas, e cada
teoricamente, menos dependentes da maquina- cadeia parental é replicada em uma dessas etapas.
ria celular para a replicação de seus genomas e a O complexo replicativo utiliza uma oxidrila (OH)
conseqüente produção da progênie viral. Dessa ligada a uma proteína viral (pTP), que está ligada
forma, qual seria a estratégia mais eficiente para em cada extremidade do genoma como iniciador
a manutenção desses vírus na natureza? Na ver- da síntese de DNA (protein priming). A replicação
dade, ambas, pois tanto os vírus DNA pequenos dos genomas dos herpesvírus e poxvírus é mais
como os grandes têm conseguido se perpetuar, complexa. O genoma dos herpesvírus possui três
sugerindo que uma perfeita adaptação a um ni- origens e parece ser replicado por um mecanis-
cho tecidual é mais importante do que a comple- mo de círculo rolante, no qual multímeros line-
xidade do genoma e a estratégia de replicação. ares são produzidos e, posteriormente, clivados

A B C D E

Ou

Poliomavírus
Papilomavírus Adenovírus Parvovírus Herpesvírus Poxvírus

Fonte: adaptada de Dulbecco e Ginsberg (1980).

Figura 6.1. Ilustração da replicação do genoma dos principais vírus DNA. Os estágios intermediários foram propostos
a partir de estudos físico-químicos e, microscopia eletrônica, realizados a diferentes intervalos após a infecção.
140 Capítulo 6

em unidades genômicas. A replicação do genoma sido amplamente estudada. De fato, a replicação


DNA linear de fita dupla dos poxvírus parece se dos vírus DNA grandes pode ser considerada
iniciar com a clivagem de uma das cadeias próxi- como uma evolução progressiva de complexida-
ma a alça terminal do genoma, seguida de elon- de quando comparada com os esquemas relativa-
gação a partir da extremidade 3’, gerada pela cli- mente simples de replicação dos poliomavírus. A
vagem. A replicação do genoma DNA linear de seguir, serão apresentados os principais aspectos
fita simples dos parvovírus – não abordada neste da expressão gênica, replicação do genoma e in-
capítulo – inicia-se com a elongação da extremi- teração com funções celulares dos papilomaví-
dade 3’ livre, que se encontra flexionada, e pros- rus, adenovírus, herpesvírus e poxvírus, respec-
segue continuamente. Uma ilustração esquemá- tivamente.
tica da replicação do genoma de diferentes vírus
DNA está apresentada na Figura 6.1. 2 Poliomavírus
O objetivo fundamental da replicação viral é
produzir progênie viral viável e abundante, que A família Polyomaviridae contém um único
assegure a propagação do vírus e a conseqüente gênero, Polyomavirus, que inclui o protótipo da
transmissão a novos hospedeiros. A produção de família, o vírus símio 40 (SV-40), e os vírus JC e
progênie depende da síntese de milhares de có- BK, que têm sido, esporadicamente, associados
pias do genoma viral e das proteínas componen- com tumores em humanos. Os poliomavírus
tes do vírion, associado com a montagem correta (PoVs) são vírus DNA pequenos, sem envelope,
e liberação eficiente das partículas víricas. Esse de simetria icosaédrica, que infectam um amplo
processo envolve uma série de etapas reguladas espectro de hospedeiros – desde pássaros até hu-
temporal e espacialmente, que incluem a expres- manos –. As infecções pelos PoVs são geralmente
são de genes virais e a indução e/ou repressão subclínicas. No entanto, a infecção de células que
de alguns genes do hospedeiro. Muitas vezes, a não suportam uma replicação produtiva freqüen-
replicação viral está associada com alteração da temente resulta em transformação neoplásica.
fisiologia celular, o que pode determinar dife- Por isso, os PoVs são também conhecidos como
rentes graus de patologia e até a morte da célula os pequenos vírus DNA tumorais.
hospedeira. Apesar de sua pequena importância clínica,
Embora a grande maioria dos vírus DNA os PoVs foram alvo de intensivos estudos bioló-
replique no núcleo, alguns deles desenvolveram gicos e moleculares, principalmente devido às
estratégias especiais que permitem a sua replica- suas propriedades tumorigênicas. As pesquisas
ção no citoplasma da célula hospedeira. No de- com os PoVs elucidaram importantes aspectos
correr deste capítulo, serão abordados os aspec- da biologia celular. Dentre as maiores descober-
tos replicativos das principais famílias de vírus tas resultantes do estudo dos poliomavírus des-
DNA e a estratégia de replicação dos protótipos tacam-se: a) estrutura do DNA superenrolado,
de cada família, enfatizando-se os aspectos mole- b) estrutura e função da origem da replicação do
culares e biológicos da expressão gênica, a inter- DNA, c) estrutura e função dos promotores, d) des-
ferência com funções celulares, para assegurar a coberta dos enhancers e o seu papel na expressão
replicação (entre elas a indução do ciclo celular), gênica, e) descoberta do mecanismo de splicing
e a replicação do genoma propriamente dita. A alternativo dos transcritos (RNA mensageiros,
replicação dos circovírus e parvovírus será abor- mRNA) e f) replicação do DNA cromossômico.
dada nos Capítulos 13 e 14, respectivamente. A
replicação dos hepadnavírus será tratada, resu- 2.1 O ciclo replicativo
midamente, no capítulo destinado às famílias de
interesse limitado em medicina veterinária. O mecanismo de penetração dos PoVs nas
Inicialmente, será descrita a replicação dos células hospedeiras ainda não está completamen-
vírus da família Polyomaviridae, vírus relativa- te esclarecido. Embora estudos recentes tenham
mente simples, cuja estratégia de replicação tem demonstrado o envolvimento de moléculas do
Replicação dos vírus DNA 141

complexo maior de histocompatibilidade do tipo cado. Os mRNA virais produzidos são processa-
I (MHC-I) como receptores para o SV-40, ainda dos por splicing e exportados para o citoplasma,
não há evidências conclusivas nesse sentido. Após onde são traduzidos. As proteínas virais recém-
a ligação aos receptores, os vírions são internali- produzidas são transportadas de volta ao núcleo,
zados por endocitose caveolar e transportados ao onde participam da replicação do genoma e, pos-
longo dos microtúbulos até o retículo endoplas- teriormente, da montagem das partículas víricas.
mático. O mecanismo de transporte para o cito- Durante esse processo, os mRNA e as proteínas
plasma e daí para o núcleo não está esclarecido, virais necessitam interagir com componentes da
porém, sabe-se que o desnudamento do genoma maquinaria celular responsável pela exportação
ocorre no interior do núcleo. Após a sua liberação e importação nuclear de macromoléculas. A mor-
no nucleoplasma, o genoma é transcrito pela RNA fogênese das partículas virais ocorre no núcleo.
polimerase II celular e, subseqüentemente, repli- As partículas recém-formadas são transportadas

A B

1 1

4 7 4

3
2 6 3 2
5
x
x

5a
8

Transformação
Núcleo celular

Citoplasma
9

Célula permissiva Célula não-permissiva

Fonte: adaptado de Cole e Conzen (2001).

Figura 6.2. Ciclo replicativo dos poliomavírus em células permissivas (A) e não-permissivas (B). A) Após a penetração
do vírion (1), o genoma é desnudo no interior do núcleo (2), onde os genes iniciais são transcritos pela maquinaria
celular de transcrição (3). Os mRNAs são traduzidos nas proteínas iniciais, ou seja, os antígenos T (4). Os antígenos T
ingressam no núcleo e interagem com o DNA viral e com fatores da célula hospedeira, resultando na replicação do
genoma (5). Após a replicação, os genes tardios são transcritos (6) e a tradução dos mRNAs origina as proteínas
estruturais (7) que ingressam no núcleo e interagem com o genoma para formar as novas partículas víricas (8). Os
vírions se acumulam no núcleo, são exportados em vesículas para o citoplasma e liberados por lise celular ou por
exocitose (9). Em células não-permissivas (B), as etapas 1 a 4 ocorrem normalmente. No entanto, o antígeno T falha em
interagir com os fatores celulares, não ocorrendo a replicação do DNA viral, nem a transcrição e expressão dos genes
tardios. O DNA viral persiste no núcleo da célula (5a) e os genes dos antígenos T continuam sendo expressos (3, 4),
podendo levar à imortalização e transformação celular. Não há replicação do genoma e nem produção de progênie
viral.
142 Capítulo 6

até a superfície celular, no interior de vesículas, e dos vírions, pois interage com a VP1. Os PoVs de
liberadas por exocitose ou por lise celular, depen- roedores codificam uma terceira proteína T, o an-
dendo do tipo de célula. tígeno T médio (mT), e não codificam a proteína
A infecção de células permissivas resulta na agno.
ocorrência de todas essas etapas e na conseqüen- Em vez de possuírem regiões codificantes
te produção de progênie viral infecciosa. Por ou- com seqüências regulatórias individuais, os PoVs
tro lado, a infecção de células semipermissivas solucionaram o problema do genoma pequeno
(geralmente de espécies heterólogas) resulta em realizando splicing alternativo em alguns trans-
replicação abortiva, na qual ocorre apenas a ex- critos, resultando, assim, na tradução em prote-
pressão dos genes iniciais, sem a replicação do ínas diferentes parcialmente homólogas. Além
genoma ou produção das proteínas tardias (pro- disso, o genoma apresenta uma concentração das
teínas estruturais). A persistência do genoma seqüências regulatórias para a transcrição e re-
viral nessas células, associada com a expressão plicação do DNA em uma pequena região, o que
contínua dos antígenos T, pode levar à imortali- contribui para a compactação genética (Figura
zação e transformação celular. As etapas do ciclo 6.3).
replicativo dos PoVs em células permissivas e
não-permissivas estão representadas esquemati- 2.3 Expressão dos genes iniciais
camente na Figura 6.2.
Após o desnudamento do genoma no in-
2.2 O genoma dos PoVs terior do núcleo, o minicromossoma do SV-40 é
transcrito pelos complexos de transcrição da cé-
O genoma dos PoVs é constituído por uma lula hospedeira (RNA pol II e fatores de trans-
molécula de DNA de fita dupla circular, com crição). O primeiro gene a ser transcrito é o do
aproximadamente 5.000 pares de bases (bp), que, antígeno T, e a sua transcrição contínua resulta
na maioria dos PoVs, está associado com proteí- em um acúmulo gradual do mRNA específico
nas. O genoma desses vírus encontra-se associa- durante as primeiras 10 a 12 horas de infecção.
do com histonas celulares, formando estruturas Como os mRNA do antígeno T são os primeiros
semelhantes aos nucleossomas e assumindo uma a serem transcritos e detectados, são denomina-
configuração helicoidal semelhante à cromatina dos transcritos iniciais (E = early). Os transcritos
celular. Por essas razões, os seus genomas são ge- primários do gene do antígeno T sofrem splicing
ralmente denominados minicromossomos virais. A alternativo para originar mRNAs, que serão tra-
replicação do genoma do SV-40 é realizada basi- duzidos em duas proteínas: o antígeno T grande
camente por fatores e enzimas da célula hospe- (lT) e pequeno (sT). Com isso, as proteínas lT e sT
deira, com a participação de apenas uma proteína possuem parte de sua seqüência de aminoácidos
viral, o antígeno T. Por isso, a replicação do DNA em comum; sendo que o lT possui uma região
do SV-40 tem sido utilizada como modelo para se adicional não presente no sT.
estudar a replicação bidirecional semidescontí- A transcrição dos genes iniciais é controlada
nua do DNA cromossômico celular. por uma região regulatória de 250 pb, localiza-
A organização do genoma do SV-40 está re- da imediatamente na direção 5’ do sítio inicial
presentada na Figura 6.3. Cerca de 90% da exten- de transcrição do gene do antígeno T (Figura
são do genoma é codificante, e os 10% restantes 6.3). Essa região regulatória apresenta pequenas
representam regiões não-traduzidas que possuem seqüências de nucleotídeos, dispostas em fila, ou
funções regulatórias. O genoma do SV-40 codifi- motivos (motifs) que, juntos, constituem o promo-
ca seis proteínas, sendo três delas componentes tor inicial do SV-40. Esses motivos atuam como
da estrutura do capsídeo (VP1, VP2 e VP3) e três sítios de ancoragem e ligação de componentes do
proteínas não-estruturais, denominadas antígeno aparato de transcrição celular, incluindo a RNA
T pequeno (sT) e grande (lT), e a proteína agno. A pol II e os fatores de transcrição. Logo acima do
proteína agno parece participar na morfogênese promotor (na direção 5’), existem duas cópias re-
Replicação dos vírus DNA 143

m RNA iniciais
m RNA tardios

Enhancer 72 72 21 21 22 TATA Promoter inicial

III II I

ORI Aux-2 Core Aux-1

Origem da replicação bidirecional

320 240 160 80 0/5243 5163 bp

PL Ori PE

VP2

Organização genômica
do SV-40 ST

VP3

LT
17kT
VP1

Fonte: adaptado de Cole e Conzen (2001).

Figura 6.3. Estrutura e organização do genoma do SV-40 (inferior) e organização das regiões regulatórias da
transcrição e replicação (superior). ORI: origem de replicação; PE: promotor dos genes iniciais; PL: promotor dos
genes tardios; lT: mRNA do gene do antígeno T grande; sT: mRNA do gene do antígeno T pequeno; VP1, VP2 e VP3:
mRNA das proteínas estruturais. >>: sítios de ligação do antígeno; I: sítio de regulação negativa da transcrição dos
mRNA iniciais; II: sítios de ligação e separação do DNA para o início da replicação; III: sítios de regulação positiva da
transcrição dos genes tardios.

petidas de 72 pb que atuam como enhancers do hospedeiras. Esse aspecto molecular é crucial
promotor. Essas seqüências de 72 pb são respon- para o parasitismo do vírus. Possuindo regiões
sáveis pela ligação específica de fatores de trans- regulatórias semelhantes às da célula hospedeira,
crição, ou transativadores, cuja função é se ligar o vírus pode seqüestrar os componentes da ma-
ao DNA e aumentar a eficiência da transcrição a quinaria celular de transcrição para sintetizar os
partir do complexo basal de transcrição. seus mRNA.
Alguns motivos presentes nos promotores Além disso, a região regulatória do SV-40
e enhancers virais são encontrados também nas contém várias seqüências repetidas que servem
regiões regulatórias de certos genes das células de sítios de ligação para o antígeno lT, o que in-
144 Capítulo 6

dica que esta proteína regula a sua própria ex- Dependendo do estágio fisiológico da célula, a
pressão. Quando a quantidade de antígeno lT, na p53 pode retardar o progresso do ciclo celular
célula infectada, atinge níveis altos, a ocupação ou induzir apoptose. Pelo seu papel na transição
desses sítios pelo próprio antígeno lT regula ne- G-S1, tanto a pRb como a p53 podem ser consi-
gativamente a transcrição do seu gene. deradas guardiãs que evitam a divisão celular
A próxima etapa do ciclo replicativo é a re- extemporânea e a transformação maligna das
plicação do genoma viral. Como o genoma dos células. Por isso, são conhecidas como proteínas
PoVs não codifica os produtos necessários à sua antioncogênicas.
própria replicação, esses vírus dependem inte- Apesar desses mecanismos de controle do
gralmente de enzimas e fatores celulares para re- ciclo celular, os PoVs conseguem induzir o início
plicar o seu DNA. No entanto, apenas um peque- da fase S em células quiescentes porque o antí-
no número de células no organismo encontra-se geno lT dos PoVs exerce um importante papel,
na fase S do ciclo celular, fase em que a célula ex- alterando o controle do ciclo celular por intera-
pressa os fatores necessários para a replicação do gir diretamente com a proteína Rb e, em alguns
DNA nuclear. A maioria das células do organis- PoVs, também com a p53. Um pequeno domínio
mo já são diferenciadas ou são células que neces- próximo a região N-terminal do antígeno lT se
sitam estímulos externos (fatores de crescimen- liga especificamente às proteínas da família Rb,
to, hormônios ou outros estímulos mitogênicos) enquanto seqüências próximas à região C-termi-
para iniciar o ciclo celular. Os PoVs, assim como nal são requeridas para a associação com a p53
outros vírus DNA, solucionaram esse problema (Figura 6.4). As conseqüências dessas interações
ao desenvolverem mecanismos para estimular as são a inibição da função da pRb e p53 e a conse-
células a entrarem em fase S e, assim, produzi- qüente expressão dos produtos necessários à re-
rem os fatores necessários à replicação do seu ge- plicação do DNA viral e também celular.
noma. Dessa maneira, o SV-40 é capaz de infectar Além do efeito da ligação nas pRbs, o an-
de forma persistente células renais diferenciadas tígeno lT é capaz de estimular diretamente os
– e que não estão em divisão – de seu hospedeiro promotores dos genes envolvidos no controle do
natural. ciclo celular, incluindo os genes que codificam as
A replicação do DNA cromossômico das cé- ciclinas. Dessa forma, o antígeno lT utiliza dois
lulas ocorre durante a fase S do ciclo celular, mas mecanismos para assegurar que a célula infecta-
a síntese e o acúmulo dos fatores necessários à da entre em fase S e, assim, propicie um ambiente
replicação do DNA iniciam na fase anterior (G1). favorável à replicação viral.
A transição entre as fases G1 e S é controlada par- A função exata do antígeno T pequeno (sT)
cialmente pela proteína do retinoblastoma (pRb) durante a infecção produtiva ainda não está com-
e pelas proteínas relacionadas p107 e p130. Em pletamente esclarecida, porém sabe-se que esta
células que não estão em divisão, as proteínas da proteína é capaz de interagir com a fosfatase 2,
família Rb impedem o início da fase S pelo se- uma enzima reguladora do ciclo celular. Assim, o
qüestro de fatores de transcrição que ativam os sT poderia colaborar com o lT na indução da fase
genes das enzimas relacionadas com a replicação S em células infectadas.
do DNA, incluindo a DNA polimerase α. Após o
estímulo mitogênico, a ciclina D liga-se nas cdk 2.4 Replicação do DNA
4 e cdk 6, ativando-as, o que leva à hiperfosfori-
lação da proteínas Rb e resulta na liberação dos A replicação do DNA circular dos PoVs en-
fatores de transcrição (E2F) e início da fase S. volve o relaxamento e a separação das cadeias do
Outros fatores também estão envolvidos no DNA, a síntese da cadeias filhas de DNA e a reso-
controle da transição entre as fases G1 e S. O fator lução e a separação das moléculas replicadas. O
de transcrição p53 pode prevenir a síntese não- multifuncional antígeno lT exerce um papel fun-
programada de DNA e bloquear o início da fase damental no início da replicação do DNA viral
S quando são detectadas lesões no DNA celular. ao se ligar em seqüências regulatórias, localiza-
Replicação dos vírus DNA 145

Antígeno T

L
X N ATPase
Domínio J C L Liga na ORI Zn HR
X S Liga na p53 Liga na p53
E

Hsc70 pRB p53

p107 p300

p130

Fonte: adaptado de Cole e Conzen (2001).

Figura 6.4. Estrutura funcional do antígeno T do SV-40. Nessa representação, estão indicados os motivos funcionais
do lT. Domínio J: sítio de ligação da proteína Hsc70; LXCXE: sítio de ligação das proteínas da família pRb; NLS: sinal
para localização nuclear; sítio de ligação na ORI; sítio de ligação de Zn+; sítio com atividade ATPase; sítios de ligação
nas proteínas p53; HR: sítio envolvido na determinação do host range.

das nas proximidades do promotor/enhancer do (contínua) e lagging (descontínua). A exonuclease e


genoma do SV-40. Essa região, conhecida por ori- ligase I da célula hospedeira são necessárias para
gem da replicação (ori), consiste de uma seqüên- a remoção dos primers e ligação dos fragmentos de
cia central de 64 nucleotídeos, flanqueada por Okazaki, produzidos pela replicação descontínua
seqüências auxiliares (Figura 6.3). Como outras de uma das cadeias. Como as cadeias parental e
proteínas que se ligam ao DNA, o antígeno lT oli- recém-replicada de DNA, são circulares e perma-
gomeriza ao interagir com os sítios específicos na necem entrelaçadas. A próxima etapa envolve a
ori. Hexâmeros do lT formam um anel duplo ao separação dessas moléculas pela ação da enzima
redor da ori e promovem a separação das cadeias celular topoisomerase II (Figura 6.1). As histonas
do DNA viral nesse local. Esse processo é depen- acumuladas no núcleo celular durante a fase S se
dente de energia, que é fornecida pela hidrólise associam com os genomas virais recém-replica-
de ATP catalisada por uma atividade ATPase do dos, formando, assim, uma progênie de minicro-
próprio antígeno T (Figura 6.4). mossomos. As células infectadas contêm mais de
As regiões de fita simples do DNA associam- 200.000 cópias de DNA viral e, aproximadamen-
se, então, com a proteína replicativa A (RPA), que te, 50% destes são encapsidados para formar a
é uma proteína celular que se liga e mantém as progênie viral. Em resumo, a replicação do DNA
regiões de fita simples separadas. Isso permite a do SV-40 compartilha várias etapas e componen-
separação bidirecional das cadeias mediada pelo tes essenciais envolvidos na replicação do DNA
antígeno lT, expondo regiões de cadeia simples da célula hospedeira.
para a processividade da replicação. O recruta-
mento da DNA polimerase α (primase) e da topoi- 2.5 Expressão dos genes tardios
somerase I resulta na formação do complexo de
iniciação. A etapa de elongação envolve a síntese A replicação do DNA viral provoca uma
bidirecional do DNA, que é precedida pela ati- alteração no padrão de expressão gênica, fa-
vidade helicase do antígeno lT, que se move à vorecendo a transcrição e expressão dos genes
frente do complexo replicativo (Figura 6.1A). Os tardios (L = late), que codificam as proteínas do
fatores do hospedeiro (PCNA e a DNA polime- capsídeo. O mecanismo de transição, passando
rase δ) participam da síntese das cadeias leading da expressão dos genes iniciais para a expressão
146 Capítulo 6

dos tardios não é bem conhecido. A redistribui- dois mecanismos atuam para reduzir a expressão
ção dos nucleossomos nas regiões regulatórias do antígeno lT em fases tardias da infecção: a re-
do genoma possivelmente desempenhe alguma pressão da transcrição pelo próprio antígeno lT
função nesse processo, pois resulta na exposição e a interferência pelos miRNAs. Surpreendente-
dos sítios regulatórios dos genes tardios para o mente, células infectadas com isolados de campo
reconhecimento pelo aparato celular de transcri- do SV-40 são menos susceptíveis à lise por linfó-
ção. O promotor que direciona a expressão dos citos T citotóxicos do que células infectadas com
mRNA tardios possui alguns motivos presentes cepas mutantes que não induzem a síntese de
também nos sítios regulatórios dos genes iniciais, miRNAs. Provavelmente, a capacidade de sínte-
incluindo as seqüências para a ligação do antíge- se de miRNA se constitua em um mecanismo de
no lT. evolução viral, permitindo a esses vírus escapa-
Dois mRNA tardios principais são trans- rem da vigilância do sistema imunológico.
critos na direção oposta aos mRNA iniciais e
sofrem splicing alternativo. Os mRNA pequenos 2.6 Morfogênese e egresso
são traduzidos na proteína VP1 do capsídeo, e os
transcritos grandes originam a VP2 e VP3. Como Após a síntese no citoplasma, as proteínas
a seqüência que codifica a VP3 está contida na virais VP1, VP2 e VP3 são transportadas para o
seqüência da VP2, a VP3 poderia ser produzida interior do núcleo para a montagem dos vírions.
pela clivagem da proteína VP2. No entanto, tem Esse transporte é mediado por sinais de locali-
sido demonstrado que a tradução e síntese da zação nuclear (NLS, seqüências específicas de
VP3 e VP2 são independentes. aminoácidos) presentes nessas proteínas. Essas
A quantidade de mRNA tardios nas células seqüências são responsáveis pela interação das
infectadas é muito superior a dos mRNA iniciais. proteínas virais com o aparato de importação nu-
Isso se explica pelo fato de que uma única partí- clear.
cula vírica contém 360 moléculas de VP1. Portan- O mecanismo de montagem das partículas
to, para uma progênie viral de 105 vírions por cé- virais (morfogênese) dos poliomavírus não é co-
lula, são necessárias 3.6 x 107-8 moléculas de VP1. nhecido. Capsídeos vazios podem ser inicialmen-
Assumindo que cada molécula de mRNA pode te pré-formados, seguidos da incorporação dos
originar de 5.000 a 10.000 moléculas de VP1, mais genomas (como minicromossomos). Alternativa-
de 30.000 moléculas de mRNA da VP1 seriam ne- mente, os capsômeros individuais formados pe-
cessárias para a produção de proteína suficiente los pentâmeros da VP1, associados com a VP2 e
para encapsidar a progênie viral. O acúmulo da com a VP3, podem interagir como o minicromos-
progênie de minicromossomos durante a replica- somo para a montagem dos capsídeos. A proteí-
ção do DNA viral, com a conseqüente amplifica- na agno, uma proteína altamente básica, codifica-
ção dos moldes DNA e a ativação da transcrição da pela região líder dos mRNA tardios de alguns
pelo antígeno lT, são os responsáveis pelos níveis PoVs, facilita a morfogênese por interagir com a
altos de mRNA tardios nas células infectadas. VP1. Nos PoVs de humanos, a agnoproteína atua
Recentemente, foi relatado que microRNAs também na transcrição e replicação do DNA.
(miRNAs) são transcritos do genoma do SV-40
em fases tardias da infecção. Os miRNAs são 2.7 Conclusões
pequenos (aproximadamente 20 nt) e desempe-
nham funções regulatórias na expressão gênica A importância crítica de uma única prote-
de eucariotas. A hibridização desses miRNAs ína – o antígeno lT – em várias etapas do ciclo
com determinados mRNA-alvos resulta no silen- replicativo, como a transcrição, indução da fase S
ciamento dos genes correspondentes. Esse silen- e replicação do DNA, constitui-se em um aspecto
ciamento pode ocorrer por interferência com a único da família Polyomaviridae. O antígeno lT é o
tradução ou pela degradação dos mRNA. Assim, protagonista principal e possui várias atividades
Replicação dos vírus DNA 147

biológicas. Atua como regulador da transcrição dos queratinócitos (ou das células equivalentes
viral, como proteína ligante de DNA, possui ati- em superfícies não-cutâneas). Na epiderme, os
vidade helicase e ATPase e de chaperone, além de queratinócitos representam cerca de 90% das cé-
interagir com várias proteínas da célula hospe- lulas e encontram-se em diferentes fases de dife-
deira. A atividade do antígeno lT é regulada por renciação. As células menos diferenciadas estão
várias modificações pós-tradução, como fosfori- localizadas no compartimento basal (estrato ger-
lação, glicosilação, acetilação e adenilação. minativo), e as mais diferenciadas localizam-se
Os PoVs são também conhecidos como pe- no compartimento apical (estrato córneo). As cé-
quenos vírus DNA tumorais, por causa de sua lulas em estágios intermediários de diferenciação
capacidade de induzir a formação de tumores. A estão localizadas nos estratos granuloso e espi-
infecção de células não-permissivas pode resul- nhoso. As células-tronco do compartimento basal
tar em replicação abortiva. No entanto, a integra- se multiplicam de forma assimétrica, originando
ção freqüente do genoma viral nos cromossomos outras células-tronco e também células de transi-
da célula hospedeira pode resultar em expressão ção para a posterior diferenciação. Essas últimas
contínua das proteínas iniciais. O antígeno T pos- deixam o estrato basal e penetram no estrato es-
sui um papel decisivo nos processos de imortali- pinhoso, onde iniciam o processo de diferencia-
zação, transformação celular e oncogênese, pro- ção celular. O ritmo de multiplicação das células
vavelmente por suas interações com múltiplos basais assegura uma substituição contínua das
fatores celulares e pela interferência com a regu- células escamosas da superfície apical que vão
lação do ciclo celular. sendo desfoliadas.
A infecção de animais e pessoas pelos PpVs
3 Papilomavírus provavelmente ocorre por meio de microlesões,
que expõem o compartimento basal, permitindo
A família Papillomaviridae possui apenas o a penetração e início da replicação viral. A liga-
gênero Papillomavirus, que inclui vários vírus de ção dos vírus às células é mediada pelo sulfato de
mamíferos e de aves. Esses vírus estão freqüen- heparina. No entanto, não se conhecem os recep-
temente associados com lesões proliferativas na tores específicos que mediam a ligação e penetra-
epiderme e nas mucosas (papilomas ou verrugas). ção do vírus nas células e tampouco o mecanismo
Além de células epiteliais, alguns papilomavírus de desnudamento.
(PpVs) também infectam células do tecido con- A infecção das células basais não é produ-
juntivo, causando fibropapilomas (p. ex.: papi- tiva, ou seja, não resulta na produção de progê-
lomavírus bovino-1, BPV-1). As lesões causadas nie viral. O ciclo replicativo inicia nessas células
pelos PpVs são geralmente benignas, mas alguns com a expressão limitada de genes virais (genes
desses vírus estão associados com a produção de iniciais) e replicação do DNA. No entanto, a re-
neoplasias malignas. plicação só é completada nas células diferencia-
Os vírions dos PpVs são icosaédricos, sem das, onde ocorre a amplificação do DNA viral,
envelope e possuem aproximadamente 55 nm de a expressão dos genes tardios, a morfogênese e
diâmetro. O genoma consiste de uma molécula egresso da progênie viral. Embora as células ba-
de DNA de fita dupla circular, com 6.800 a 8.400 sais representem a fonte de fatores de replicação,
pb que, a exemplo dos poliomavírus, está asso- a infecção viral necessita de fatores que somente
ciada com histonas da célula hospedeira, forman- estão presentes em células que estão na fase S,
do um complexo semelhante à cromatina celular para assegurar a expressão temporal dos genes e
(minicromossomo). a replicação do genoma.

3.1 O ciclo replicativo 3.2 O genoma dos PpVs

O ciclo replicativo dos PpVs está estreita- A Figura 6.5 apresenta a organização do ge-
mente associado com o processo de diferenciação noma do papilomavírus bovino tipo 1 (BPV-1).
148 Capítulo 6

Os genes do PpVs são classificados em iniciais ção diferencial de mRNAs em diferentes células.
(E) ou tardios (T) e, ao contrário dos PoVs, são Os mRNA dos PpVs são policistrônicos, ou seja,
codificados em apenas uma das fitas do DNA contêm mais de uma seqüência codificante (open
genômico. Assim, a transcrição do DNA viral é reading frame, ORF). No entanto, apenas uma des-
realizada em apenas uma direção. Uma região sas ORFs é traduzida de cada mRNA. Nos PpVs
não-traduzida, conhecida como região longa de de humanos e de bovinos, os primeiros genes a
controle (LCR), contém as seqüências regulató- serem expressos são o E1 e E2, pela RNA pol II,
rias, incluindo a origem da replicação do DNA com o auxílio de fatores de transcrição específi-
e enhancers para a transcrição. Seis diferentes cos de queratinócitos.
promotores foram identificados no genoma do A proteína E2 desempenha um papel funda-
BPV-1. Entre os diferentes PpVs, existe uma va- mental na transcrição e na replicação do DNA.
riabilidade muito grande dos promotores, prova- Essa proteína contém uma região para a ligação
velmente refletindo os aspectos peculiares de re- no DNA e outra com função de ativação da trans-
gulação em diferentes espécies ou em diferentes crição. A E2 se liga especificamente em determi-
sítios de replicação. nados promotores no LCR e controla positiva e
negativamente a expressão dos genes iniciais,
dependendo da sua concentração e das intera-
E6
ções de suas regiões regulatórias com o DNA.
LCR E7 Essa regulação é ainda mais complexa devido à
P7940 presença de diferentes isoformas da E2, que, pro-
P89
P7185
PL E8 vavelmente, possuam diferentes propriedades
AL
P890
CE 7946/1 regulatórias. Por outro lado, a única e importante
L1 7000 1000
função da E2 na replicação do genoma é estimu-
E1
lar a ligação da E1 ao DNA, principalmente no
início da infecção, quando a concentração da E1
6000 BPV-1 2000
ainda é baixa.
A E1 é a maior e mais conservada proteína
P2443
dos PpV. É a única proteína viral diretamente en-
5000 3000
L2 P3080 volvida na replicação do DNA viral. Essa proteí-
4000
na apresenta atividade ATPase/helicase e forma
AE
E3 hexâmeros simples e duplos ao redor do DNA vi-
E2
E5 E4 ral. Além disso, a E1 forma complexos com pro-
teínas do hospedeiro que estão envolvidas com
a replicação do DNA, incluindo as subunidades
da DNA polimerase α, a RPA e chaperone Hsp40.
Fonte: adaptado de Fowley e Lowy (2001).
Portanto, a E1 dos PpV é semelhante ao antígeno
lT dos poliomavírus com relação à atividade en-
Figura 6.5. Estrutura e organização do genoma do zimática, capacidade de recrutar fatores celulares
papilomavírus bovino tipo 1 (BPV-1). LCR: região longa
de controle (contém a origem de replicação); CE:
e no papel fundamental na iniciação da replica-
enhancer constitutivo; P: promoters (os números ção do genoma viral.
indicam a posição no genoma); AE: sítio de
poliadenilação dos transcritos iniciais; AL: sítio de
poliadenilação dos transcritos tardios; E1 a E8: mRNAs 3.4 Replicação do DNA e interferência
dos genes iniciais; L1 e L2: mRNAs dos genes tardios.
com o ciclo celular
3.3 Expressão dos genes iniciais
O resultado da atividade conjunta da E1 e
A expressão dos genes dos PpVs é comple- E2 é a formação do complexo de iniciação que se
xa, em razão da presença de múltiplos promoto- liga na origem de replicação do DNA. Esse even-
res, de sítios de splicing alternativo e pela produ- to precede e permite a elongação da cadeia, resul-
Replicação dos vírus DNA 149

tando na produção das cópias de DNA a serem nada replicação vegetativa do DNA, representa
encapsidadas na progênie viral. É importante sa- um desafio para o vírus, pois essas células encon-
lientar que todas as fases da replicação do DNA tram-se na fase G0 do ciclo celular. Acredita-se
viral ocorrem em sincronia com a replicação dos que duas pequenas proteínas virais, a E6 e a E7,
cromossomos da célula hospedeira. sejam responsáveis pela criação de um ambiente
A replicação do DNA viral no compartimen- favorável para a replicação vegetativa. Essas pro-
to basal produz entre 20 e 100 cópias do genoma, teínas também desempenham um papel central
que são mantidos como DNAs extracromossômi- na transformação celular e na indução de neopla-
cos no núcleo da célula hospedeira. Os genomas sias, especialmente nos PpVs humanos de alto
virais são fielmente distribuídos entre as células- risco. De fato, sabe-se muito mais sobre o papel
filhas, e o processo de replicação só é reiniciado dessas proteínas na transformação celular do que
nos queratinócitos em estágios avançados de di- em infecções produtivas. Por isso, deve-se anali-
ferenciação (Figura 6.6). sar com cautela as informações a respeito do pro-
A amplificação dos genomas virais que vável papel da E6 e da E7 na infecção produtiva
ocorre em queratinócitos diferenciados, denomi- no contexto da replicação vegetativa do DNA.

Vírus introduzido
por microlesões
Diferenciação dos Replicação dos
queratinócitos papilomavírus

Estrato córneo Liberação de vírions maduros


Camadas
granulares Vírions maduros

Morfogênese dos vírions


Camadas
Produção das proteínas tardias
espinhosas
Amplificação vegetativa do DNA
superiores
Níveis altos de proteínas iniciais (E4)

Camadas Proteínas dependentes


espinhosas da diferenciação E6 e E7
inferiores Proteínas iniciais E1, E2, E3 e E4

Células amplificadores Possível sítio alternativo


em trânsito (mitóticas) de infecção
Proteínas iniciais E1 e E2
Células basais
e de reserva Infecção primária
(substituem as Estabelecimento da replicação
amplificadoras) Proteínas iniciais E1 e E2
Membrana basal
Derme
(tecido conjuntivo,
fibroblastos, endotélio
vascular)

Fonte: daptado de Chow e Broker (1997).

Figura 6.6. Diferenciação do epitélio cutâneo e etapas da replicação dos papilomavírus em infecções benignas (não-
tumorais). As fases de diferenciação celular estão apresentadas à esquerda da figura; e as etapas do ciclo replicativo
estão apresentadas à direita.
150 Capítulo 6

De forma semelhante ao antígeno lT dos Em resumo, a E6 e a E7 atuam sobre regula-


PoVs, as E6 e E7 dos PpVs interagem com as dores importantes do ciclo celular e da sobrevi-
proteínas celulares pRb e p53, que são proteínas vência das células infectadas, com o objetivo de
antioncogênicas envolvidas no controle do ciclo proporcionar tempo suficiente para assegurar a
celular. Quando a E6 é expressa em camundon- replicação e produção de progênie viral em célu-
gos transgênicos, ocorre a hiperproliferação do las diferenciadas. A progressão do ciclo e a dife-
epitélio e o desenvolvimento de tumores epite- renciação celular são eventos mutuamente exclu-
liais. Esses efeitos dependem parcialmente da dentes. De fato, a progressão não-programada do
habilidade da E6 de se ligar à p53 e recrutar uma ciclo celular em células diferenciadas geralmente
ligase celular, que adiciona uma ubiquitina, a leva à morte celular. Assim, a E6 e a E7, ao in-
p53, direcionando-a a degradação. A E6, então, fluenciarem simultaneamente o ciclo celular e o
ao remover a p53, que é envolvida no controle do mecanismo de sobrevivência, são capazes de re-
ciclo celular, estimularia a célula a entrar em fase solver o impasse que levaria à morte celular.
S e retardaria a apoptose. Além do papel da E6 e E7, experimentos in
Estudos recentes sugerem que, além dos efei- vitro têm demonstrado que a E5 do BPV-1 ativa
tos mediados pela interação com a p53, a E6 pode o receptor para o fator de crescimento derivado
interferir com o ciclo e na sobrevivência celular das plaquetas (PDGF), uma proteína que se liga
por outros mecanismos. A E6 induz a hiperfos- ao PDGF e proporciona o sinal mitogênico. As-
forilação e inativação da pRb, o que é importante sim, por mimetizar o PDGF, a E5 é capaz de criar
para entrada da célula na fase S. Também induz a sinais adicionais para criar um ambiente de fase
expressão da telomerase, uma enzima que repli- S propício à replicação viral.
ca as extremidades do DNA e impede o encurta-
mento dos cromossomos após a divisão celular. 3.5 Expressão dos genes tardios
A inativação da pRb e a expressão da telomerase
são importantes no processo de imortalização de A transcrição dos genes tardios é controlada
células pelos PpVs. Além disso, a E6 pode intera- por um promotor, que é estimulado por fatores
gir com a BAK, que é uma proteína pró-apoptose, de transcrição presentes somente em queratinó-
que é expressa em altos níveis na camada apical citos em fase final de diferenciação. Isso pode ex-
do epitélio estratificado. Assim como a p53, a in- plicar porque a síntese das proteínas estruturais e
teração da E6 com a BAK resulta na ubiquitina- a morfogênese das partículas virais ocorrem ape-
ção e posterior degradação da BAK. Por induzir a nas em células diferenciadas. No entanto, evidên-
degradação da p53 e BAK, a E6 impede ou reduz cias indicam que a expressão dos genes tardios
a probabilidade da célula infectada sofrer apop- em queratinócitos menos diferenciados é repri-
tose em resposta à infecção, aumentando o tempo mida por fatores do hospedeiro. Isso indica que
para o vírus completar o seu ciclo replicativo. a regulação dos genes tardios e a conseqüente
A E7 interage com várias proteínas celula- continuação do ciclo podem estar sujeitas tanto a
res envolvidas no controle do ciclo e na diferen- regulação positiva como negativa, ambas depen-
ciação celular, incluindo os membros da família dentes de condições e fatores associados com o
das proteínas pRb, as deacetilases de histonas, estágio de diferenciação celular.
as ciclinas, cdk’s e fatores de transcrição da fa- O mesmo promotor tardio direciona a sínte-
mília dos AP-1. Embora o significado de várias se de mRNAs que codificam a E4, uma das pro-
dessas interações permaneça incerto, sabe-se que teínas menos conservadas dos PpV. Dessa forma,
a ligação da E7 com a pRb resulta na degradação embora o gene da E4 esteja localizado na região
da pRb e na conseqüente liberação do fator de dos genes iniciais, é expresso em fases tardias. O
transcrição E2F. A interação da E7 com fatores de gene da E4 é completamente sobreposto ao gene
transcrição AP-1 está associada com a modulação da E2. No entanto, a sua seqüência de aminoáci-
da transcrição de genes envolvidos com resposta dos é codificada por uma ORF diferente, fazendo
inicial a sinais mitogênicos. com que as seqüências de aminoácidos da E2 e
Replicação dos vírus DNA 151

da E4 sejam completamente diferentes. A E4 se de mediar a importação do genoma viral para o


associa com a queratina e, quando é expressa em núcleo da célula hospedeira.
altos níveis, pode induzir o colapso da cadeia de A expressão gênica do AdVs divide-se em
queratina. Com base nessas observações, é pro- fases inicial e tardia. As proteínas iniciais são
vável que a E4 participe da replicação, facilitando necessárias para a transcrição dos genes virais
o egresso das partículas víricas. e para a replicação do DNA. Também estão en-
volvidas com a interferência com os mecanismos
3.6 Conclusões inflamatórios e de apoptose desencadeados pelo
hospedeiro. Após a replicação do DNA, ocorre a
Os PpVs dependem da diferenciação do epi- expressão dos genes tardios, cujos produtos são,
télio para completar o seu ciclo de replicação, e em sua maioria, componentes estruturais das
a expressão dos seus genes é regulada à medida partículas víricas. O ciclo replicativo se completa
que as células basais migram em direção à super- em 20 a 24 horas e resulta na produção de apro-
fície do epitélio. Os produtos virais não apenas ximadamente 104 partículas víricas por célula in-
controlam a expressão gênica dos genes virais e fectada.
a replicação do DNA viral como também modu- Embora a divisão da expressão gênica em
lam o ciclo celular e os programas de apoptose fases inicial e tardia seja conveniente do ponto de
para assegurar a produção de progênie viral. Em vista didático, o limite exato entre essas fases não
algumas circunstâncias, infecções abortivas, sem é claro. Por exemplo, alguns genes iniciais conti-
a realização completa do ciclo replicativo viral, nuam a ser expressos em fases tardias da infec-
podem ocorrer. A exemplo de outros vírus DNA ção; e baixos níveis de expressão de genes tardios
pequenos, essas infecções abortivas podem resul- podem ser detectados já no início da infecção.
tar em transformações neoplásicas. Essa sobreposição da expressão gênica inicial/
tardia é também observada durante a replicação
4 Adenovírus de outros vírus DNA.

A Adenoviridae é uma família de vírus DNA 4.2 O genoma dos AdVs


grandes, não-envelopados, que infectam verte-
brados e produzem enfermidade leve no trato Os genomas dos AdVs de mamíferos são
respiratório, gastrintestinal e genitourinário. Os constituídos por moléculas lineares de DNA de
adenovírus (AdVs) possuem a capacidade de in- fita dupla, com aproximadamente 35 kb. Seqüên-
fectar uma grande variedade de células que não cias repetidas invertidas (ITRs) com 36 a 200 pb
estão em divisão. Por isso, têm sido muito utiliza- são encontradas nas regiões terminais do geno-
dos como vetores para a transferência de genes e ma. O genoma encontra-se associado com quatro
também para vacinas vetoriais. Por essas razões, proteínas virais (V, VII, X and TP) para formar o
a biologia molecular dos AdVs é conhecida com núcleo (ou core) da partícula viral. A proteína V
detalhes. provavelmente medeia as interações entre o nú-
cleo e o capsídeo. Maiores detalhes da estrutura
4.1 O ciclo replicativo das partículas víricas dos adenovírus estão apre-
sentados no Capítulo 16.
Aproximadamente após 40 minutos da pe- Embora a organização genômica seja conser-
netração na célula, os vírions podem ser observa- vada dentro dos gêneros, diferenças importantes
dos próximos ao núcleo. A internalização parece podem ser observadas entre vírus de gêneros di-
ativar a protease viral L3, que inicia o desmonte ferentes. A maioria dos genes gênero-específicos
da partícula vírica. A proteína terminal (TP), que se localiza próxima às extremidades do genoma,
é uma proteína que está associada de forma co- enquanto os genes conservados na família ten-
valente na extremidade 5’ do genoma, contém si- dem a se concentrar na região central. Essa ca-
nais de localização nuclear, que são encarregados racterística também é observada em outros vírus
152 Capítulo 6

DNA de fita dupla lineares, como os poxvírus infecção. Duas pequenas unidades (IX e Iva2) são
e herpesvírus. Nessas famílias, vários genes gê- expressas em fases intermediárias. O genoma do
nero-específicos estão envolvidos nas interações AdV humano pode ser descrito como um bloco
do vírus com o hospedeiro, provavelmente para central de genes com orientação para a direita,
favorecer a sua sobrevivência em determinados interrompidos por genes iniciais da região E3 na
nichos biológicos. Alguns desses genes parecem mesma cadeia, e por genes E2 na cadeia oposta.
ter sido capturados do hospedeiro em um passa-
A região terminal à direita é ocupada pelos genes
do remoto.
E4, e, à esquerda, pelos genes E1A and E1B e dois
O genoma dos AdVs codifica aproxima-
genes intermediários (Figura 6.7).
damente 45 proteínas, das quais apenas 12 são
encontradas nos vírions. Os genes virais são or- Vários mRNA são produzidos a partir de
ganizados em unidades de transcrição, cuja ex- cada unidade transcripcional. Com poucas exce-
pressão é regulada temporalmente. Cinco unida- ções, os transcritos primários das várias unidades
des – E1A, E1B, E2, E3 e E4 – são expressas em são processados por splicing. De fato, uma das
fases iniciais e uma (L) é expressa tardiamente na mais importantes contribuições dos AdVs para a

Leader: 1 2 i 3

x y z

L5

L4

ML

L3

L2

L1 E3 (tardio)
IX
E1B
VA
E3
E1A
L1 (iniciais)

10 20 30 40 50 60 70 80 90 100

E2A

E2B
IV a2 E4

Fonte: adaptado de Shenk (2001).

Figura 6.7 Estrutura do genoma e mapa de transcrição dos adenovírus. A linha dupla representa o genoma. Os
números abaixo representam as unidades genômicas. Os transcritos iniciais (E: early) são representados por setas
finas; os transcritos tardios (L: late) são representados por setas espessas. A extensão das setas corresponde à região
codificante dos mRNAs. A maioria dos transcritos tardios inicia na região próxima à unidade 16 do mapa e contém
uma região líder composta por três seqüências (1, 2 e 3). As regiões entre as seqüências líder e as respectivas setas são
removidas por splicing (representam os íntrons).
Replicação dos vírus DNA 153

Biologia foi a descoberta do splicing de RNA rea- As proteínas E1A inibem a p300/CBP, uma
lizada durante estudos de expressão gênica. proteína que modifica a estrutura da cromatina
A maioria das unidades de transcrição co- para facilitar a atividade de fatores de transcrição,
difica uma série de polipeptídeos com funções como a p53. Ao se ligar na p300/CBP, as proteí-
relacionadas. Por exemplo, a unidade E1A co- nas E1A antagonizam a ação da p53, liberando o
difica duas proteínas que ativam a transcrição e bloqueio para a progressão do ciclo celular. Além
induzem a célula hospedeira a entrar na fase S, disso, a E1B de certos AdVs pode se ligar direta-
enquanto a E2 codifica três proteínas que atuam mente e bloquear a p53. A razão por que os AdVs
na replicação do DNA viral. (e também os polioma e papilomavírus) utilizam
dois mecanismos para estimular o ciclo celular é
4.3 Expressão dos genes iniciais desconhecida. Uma possibilidade é que, in vivo,
podem existir células nas quais um dos mecanis-
A região da E1A, a primeira unidade trans- mos é mais eficiente do que o outro. Uma análise
cripcional a ser expressa, resulta em um transcri- mutacional demonstrou que, embora a ligação da
to primário único, que é processado por splicing E1A nas proteínas pRb ou p300/CBP possa indu-
diferencial em dois mRNAs. Os seus produtos, zir a síntese de DNA em células quiescentes, am-
as proteínas 12S e 13S (em razão de diferenças bas as regiões são necessárias para induzir a fase
no coeficiente de sedimentação dos mRNA), são M, sugerindo que eventos tardios do ciclo celular
idênticas, com exceção de 46 aminoácidos adicio- são, provavelmente, requeridos para assegurar
nais presentes na E1A 13S. uma replicação viral eficiente. Funções virais que
Uma função importante das proteínas E1A induzem a progressão do ciclo celular estão en-
é estimular a transcrição generalizada de genes volvidas na transformação de células de cultivo
virais. Essa função depende da habilidade das por alguns sorotipos dos AdVs. No entanto, ne-
proteínas E1A de se ligarem em uma variedade nhum AdV tem sido associado com tumores em
de fatores regulatórios da transcrição celular, seu hospedeiro natural.
como as proteínas CREB, AP1 e fatores basais Os AdVs induzem apoptose na célula hospe-
de transcrição como a proteína ligante do TATA deira em fases iniciais da infecção, principalmen-
(TBP). A ligação da E1A nesses fatores é media- te através de efeitos indiretos da E1A. Por outro
da pelos domínios conservados CR1 e CR2 (12S e lado, várias proteínas virais, incluindo as E1B/55
13S) e CR3 (somente na 13S). Uma interação críti- kDa, E1B/19 kDa e E4orf6, atuam bloqueando a
ca ocorre entre o CR3 e a subunidade mediadora apoptose por vários mecanismos. A E1B e E4orf6
MED23, que estimula a montagem do complexo bloqueiam o mecanismo pró-apoptótico depen-
de pré-iniciação nos promotores dos genes ini- dente da p53, ligando-se e inativando essa proteí-
ciais e, provavelmente, também aumente a taxa na. A E1B/19 kDa é semelhante à proteína celular
de início da transcrição desses genes. antiapoptótica Bcl-2, que se localiza na membra-
As proteínas E1A também desempenham na mitocondrial e impede a ativação da caspase-
um papel importante de indução do ciclo celular. 9, uma efetora da apoptose. Mutantes do AdVs
A exemplo dos poliomavírus, as proteínas iniciais defectivos na E1B/19 kDa induzem morte celular
dos AdVs focalizam a sua ação nos reguladores rápida, resultando em produção de progênie vi-
principais do ciclo celular, a pRb e p53. A intera- ral em quantidade reduzida quando comparada
ção entre as E1A e a pRb resulta na dissociação com o vírus de campo.
dos complexos E2F-pRb e ativação da transcrição A sobrevivência das células infectadas tam-
de genes cujos produtos promovem a entrada na bém depende da interferência com sinais de mor-
fase S. Interessantemente, a E2F também se liga te celular induzidos pela resposta imune. A E3
e ativa os promotores da E1 e E2. Isso provavel- 19 kDa é uma glicoproteína transmembrana que
mente represente um mecanismo para coordenar fica retida no retículo endoplasmático (RE) e cujo
a progressão do ciclo celular com a expressão gê- domínio luminal se liga em moléculas do MHC-
nica e replicação do DNA viral. I, provocando a sua retenção no RE. A E3 19 kDa
154 Capítulo 6

também se liga no complexo TAP e o impede de 51 bp, localizadas nas regiões terminais repeti-
transferir peptídeos ao MHC-I. O efeito dessas das, servem de origem de replicação (ori). Duas
atividades é a proteção das células infectadas do proteínas virais codificadas pela região E2, a pro-
reconhecimento e lise mediada por linfócitos T teína pré-terminal (pTP) e a polimerase de DNA,
citotóxicos (CTLs). Os CTLs também podem in- se ligam nas primeiras 20 bases da ori. Uma ter-
duzir lise celular, desencadeando sinais através ceira proteína da E2, a proteína ligante do DNA
do receptor de Fas expresso nas células-alvo. O (DBP), juntamente com fatores celulares, ligam-
complexo viral E3 14.4-kDa/E3 10.4-kDa interfe- se um pouco abaixo (na direção 3’) e interagem
re com a apoptose mediada pelo Fas, induzindo com o complexo pTP/polimerase. A principal
a degradação do seu receptor. Além disso, esse função da pTP é servir de primer para a inicia-
complexo também inibe a lise celular pelo fator ção da replicação do DNA viral. Essa proteína é,
de necrose tumoral alfa (TNFα), uma citoquina posteriormente, clivada para originar a TP, que
antiviral potente. Provavelmente, as atividades permanece ligada às extremidades 5’ do genoma.
imunomodulatórias das proteínas E3 dos AdVs A DBP forma multímeros em uma das cadeias
desempenhem importantes funções durante e re- do DNA, provocando a separação das cadeias,
plicação viral in vivo. evento que é necessário para a elongação das ca-
Uma das respostas mais precoces contra deias-filhas. A síntese de DNA se inicia na extre-
infecções víricas é aquela mediada pelos interfe- midade de uma das cadeias e se prolonga até a
rons (IFNs) α e , que agem de forma autócrina outra extremidade, resultando em uma molécula
e parácrina, induzindo um estado de resistência de cadeia dupla recém-replicada e uma molécula
antiviral nas células. Os IFNs atuam por meio de parental de cadeia simples. No segundo estágio,
seu receptor, provocando a ativação da transcri- a cadeia simples deslocada na reação inicial serve
ção de genes cujos produtos possuem ações anti- de molde para a síntese da cadeia complementar.
virais. Elementos-chave nesse mecanismo são as Em células de cultivo, a replicação do DNA viral
quinases citoplasmáticas denominadas STATs, se inicia 5 a 10 horas após a infecção e continua
que, uma vez ativadas, são translocadas para o até a morte celular. Uma ilustração simplificada
núcleo, onde se ligam e ativam os promotores da replicação do genoma dos AdVs está apresen-
responsivos ao IFN. As proteínas E1A dos AdVs tada na Figura 6.8. Maiores detalhes sobre este
atuam diretamente nos mecanismos mediados mecanismo estão apresentados no Capítulo 16.
pelos IFNs, ligando-se e inativando a STAT1 e,
assim, bloqueando a ativação dos genes respon-
sivos aos IFNs. 4.5 Expressão dos genes tardios
Em resumo, as proteínas iniciais dos AdVs
atuam para assegurar uma expressão gênica ade-
quada, progressão do ciclo celular e modulação O promotor principal tardio exibe um nível
das respostas do hospedeiro, até que o ciclo repli- baixo de atividade durante as fases iniciais da
cativo seja concluído. Indiretamente, essas ativi- infecção e direciona a expressão da proteína L1
dades contribuem para a disseminação do vírus 52/55-kDa. Esta proteína se associa com o geno-
no organismo do hospedeiro. Estudos de infec- ma e o empacota em etapas avançadas do ciclo.
ções pelos AdVs in vivo têm demonstrado que
À medida que a replicação do DNA progride, a
esses vírus não são inerentemente inflamatórios,
atividade do promotor tardio aumenta e se torna
indicando que conseguem moderar a resposta in-
centenas de vezes mais ativo em fases tardias da
flamatória do hospedeiro.
infecção. Esse promotor é fortemente ativado pe-
4.4 Replicação do DNA viral las proteínas E1A, mas as razões de sua ativação
tardia são desconhecidas.
A maioria das funções necessárias para a re- A transcrição da região tardia do genoma re-
plicação do DNA dos AdVs são codificadas pela sulta em um transcrito primário longo, que é pro-
região E2 do genoma. Seqüências específicas de cessado por poliadenilação em diferentes sítios,
Replicação dos vírus DNA 155

Primeira Segunda
etapa etapa

Tp
3’ 5’
5’ 3’ .pTp
Tp OH

3’
.pTp OH

-OH 5’

-OH

Lineariza

5’ 3’
5’

3’ 5’
5’ 3’

+
5’ 3’

Circulariza

5’ 3’
3’ 5’
3’
5’

Fonte: adaptada de Flint et al. (2000).

Figura 6.8. Ilustração esquemática da replicação do genoma dos adenovírus. Na primeira etapa, apenas uma das
cadeias é replicada de maneira contínua, a partir de uma das extremidades. A cadeia não-replicada circulariza então
para a formação de uma nova origem de replicação. A replicação desta cadeia inicia na extremidade e prossegue ao
longo da cadeia, que, em seguida, assume a topologia linear. Ao final das duas etapas, as duas cadeias de DNA estão
replicadas.

e por splicing para gerar vários mRNA tardios. O virais. Um desses mecanismos é a inativação do
acúmulo citoplasmático dos mRNA tardios é fa- fator de iniciação da tradução eIF-4F, que, nor-
vorecido por duas proteínas virais, a E1B 55 kDa malmente, se liga aos mRNA para facilitar a
e E4 34 kDa, que facilitam o movimento desses tradução. As extremidades 5’ dos mRNA virais
transcritos do núcleo para o citoplasma. Conco- tardios contêm uma região não-codificante de
mitantemente, o transporte de mRNA celulares 200 nt, que permite a esses mRNA serem tradu-
para o citoplasma é inibido. A natureza dessa
zidos na ausência de eIF-4F ativo. Em contraste,
discriminação (mRNA virais versus mRNA celu-
os mRNA celulares não são mais traduzidos na
lares) não é completamente conhecida, mas pode
ausência do eIF-4F.
envolver a relocalização de fatores celulares re-
A maioria das proteínas tardias dos AdVs
queridos para o transporte de mRNA nos centros
de transcrição virais. são componentes estruturais dos vírions e fatores
Além disso, os mRNA virais são preferen- envolvidos na morfogênese que, juntamente com
cialmente traduzidos em etapas tardias da infec- a replicação do DNA, produzem o cenário para a
ção, por causa de vários mecanismos regulatórios morfogênese e egresso da progênie viral.
156 Capítulo 6

4.6 Conclusões gênie viral infecciosa. A infecção produtiva com


produção de progênie é incompatível com a so-
Os adenovírus codificam uma série de pro- brevivência das células e resulta inevitavelmente
dutos envolvidos na interferência com os meca- em lise. Esse ciclo lítico pode ser facilmente re-
nismos de regulação do ciclo celular. As proteínas produzido in vitro pela inoculação de HVs em
E1A são ativadores promíscuos de vários genes células de cultivo.
virais e também induzem a célula a entrar em Após a replicação lítica inicial, os HVs po-
fase S. Por outro lado, os efeitos indiretos dessa dem permanecer em determinadas células do
ativação podem levar a célula infectada à apopto- hospedeiro em um estado não-replicativo duran-
se. Por isso, os AdV codificam também produtos te um longo período, provavelmente por toda a
com atividade antiapoptótica. Com isso, o vírus vida do indivíduo, sem que este apresente sinais
tem tempo suficiente para completar o seu ciclo da infecção. Essa forma não-produtiva de infec-
replicativo. No hospedeiro, os AdVs interferem ção, que ocorre sem a expressão de genes virais
com o reconhecimento de células infectadas pelo ou produção de progênie viral, é denominada in-
sistema imunológico, também com o objetivo de fecção latente. No entanto, estímulos específicos
preservar a integridade das células infectadas – muitos deles relacionados ao estresse – podem
pelo tempo necessário para a conclusão do ci- induzir o vírus em latência a retomar a replicação
clo. Os AdVs têm sido intensivamente estudados ativa e, assim, iniciar um novo ciclo de infecção
como potenciais vetores para terapia genética e produtiva que culmina com a produção da pro-
vacinas contra vírus. gênie viral. Essa retomada da replicação ativa é
denominada reativação. Grande parte dos conhe-
5 Herpesvírus cimentos sobre a replicação produtiva dos HVs
foram obtidos a partir de estudos da replicação
Os herpesvírus (HVs) são vírus grandes in vitro pelo herpesvírus humano tipo 1 (vírus do
(120-200 nm de diâmetro), com envelope, que herpes simplex, HSV-1), que é o protótipo da fa-
possuem uma molécula de DNA de cadeia du- mília Herpesviridae. Em contraste, muito menos se
pla linear como genoma. A família Herpesviridae conhece sobre a infecção latente pelos HVs pela
é dividida em três subfamílias, de acordo com dificuldade de sua reprodução in vitro.
aspectos biológicos e moleculares em comum:
Alphaherpesvirinae, Betaherpesvirinae e Gammaher- 5.2 O genoma dos HVs
pesvirinae. Todos os herpesvírus possuem a capa-
cidade de estabelecer infecções latentes em seus O genoma dos herpesvírus consiste de uma
hospedeiros. Os herpesvírus são encontrados em fita dupla linear de DNA com 125 a 240 kb. Os ge-
praticamente todas as espécies de vertebrados. nomas dos HVs são classificados em seis classes
(A-F), com base na organização do genoma – pre-
5.1 O ciclo replicativo sença, número e localização de regiões repetidas e
terminais (Figura 6.9). Por exemplo, nos genomas
Os HVs replicam o seu genoma no núcleo da classe E (p. ex.: HSV-1), as seqüências termi-
da célula hospedeira e utilizam fatores virais e nais são repetidas em uma orientação invertida
celulares no processo de replicação. Dependendo e justapostas internamente, dividindo o genoma
da expressão de determinados genes e das inte- em uma região curta (S) e outra longa (L), onde
rações com a célula hospedeira, os HVs podem cada região é flanqueada por regiões repetidas
apresentar dois tipos distintos de ciclo replica- e invertidas. O genoma do herpesvírus bovino
tivo. O primeiro ocorre nas células epiteliais ou tipo 1 (BoHV-1) é um genoma do tipo D, no qual
do tegumento durante a infecção aguda inicial, apenas a região curta (US) é flanqueada pelas re-
logo após a penetração no hospedeiro. A infecção giões repetidas invertidas (Figura 6.9). Em ambos
dessas células resulta na expressão do conjunto os casos, os componentes únicos podem estar na
completo de genes virais e na produção de pro- mesma orientação ou invertidos em relação ao
Replicação dos vírus DNA 157

outro. O DNA extraído dos vírions consiste em Epstein-Barr (EBV), são sintetizados microRNAs
populações equimolares que diferem apenas na que apresentam potencial para silenciar a expres-
orientação relativa dos dois componentes. Os ge- são de genes celulares e/ou virais.
nes presentes nas regiões repetidas obviamente
se encontram em mais de uma cópia no genoma. 5.3 Os genes virais

Aproximadamente 30 genes dos HV (deno-


A minados centrais ou core genes) são conservados
entre os membros da família Herpesviridae, ou
B seja, estão presentes nos genomas de todos os
R4 R3 R2 R1
C HV examinados até o momento. Os produtos
UL
Us desses genes são responsáveis pelo metabolismo
D dos nucleotídeos, pela replicação do DNA e pela
UL Us
E morfogênese e estrutura dos vírions. Outros ge-
nes são conservados apenas entre membros de
F uma determinada subfamília. Por exemplo, os
alfaherpesvírus codificam transcritos associados
Fonte: adaptado de Roizman e Pellet (2001). à latência, uma proteína do tegumento que ativa
a transcrição dos genes iniciais e um regulador
Figura 6.9. Estrutura e organização dos genomas dos
herpesvírus. As linhas representam seqüências únicas; da transcrição relacionado ao ICP4 dos HSV-1.
os blocos representam seqüências repetidas. Além desses, vários outros genes são peculiares
Representantes de cada grupo: A) Herpesvírus do catfish
a algumas espécies de vírus.
de canal; B) Herpesvírus Saimiri; C) Vírus Epstein-Barr;
D) Vírus da varicella-zoster; E) Vírus do herpes simplex; Os HVs da subfamília Gammaherpervirinae,
F) Herpesvírus Tupaia. Note que somente os genomas principalmente, codificam genes de origem do
do tipo F não apresentam seqüências repetidas. Os
alfaherpesvírus de maior importância veterinária
hospedeiro, provavelmente adquiridos por re-
(herpesvírus bovino tipo 1 [BoHV-1] e vírus da doença trotransposição de cDNAs. Em alguns casos, os
de Aujeszky [PRV]) possuem genomas do tipo D. genes virais codificam funções similares as dos
correspondentes celulares. Em outros casos, es-
O genoma dos HVs contém entre 70 e 200 ses genes foram alterados para modificar a sua
genes, e a maioria destes são monocistrônicos, função. Por exemplo, o homólogo da ciclina tipo
portanto, codificam apenas uma proteína. Os ge- D (no herpesvírus humano tipo 8 [HHV-8]) não
nes estão presentes e são transcritos a partir de responde a sinais que atuariam sobre a versão ce-
ambas as cadeias de DNA. A expressão gênica lular do gene, fazendo com que a ciclina tipo D
é controlada por promotores com TATA box e a viral permaneça constantemente ativada e capaz
transcrição é realizada pela RNA polimerase II de promover transformação celular. Na seção 5.4,
celular. Quando os genes são sobrepostos, as suas será visto que a aquisição de genes do hospedeiro
regiões regulatórias estão localizadas na região é uma característica marcante dos poxvírus.
codificante do gene adjacente. Uma característica Cerca de 50% dos genes do HSV-1 não são
comum dos genomas dos HV é a existência de necessários para a replicação viral em cultivo ce-
grupos de transcritos co-terminais da extremida- lulares, por isso são ditos não-essenciais (NE). No
de 3’, cada um expressando uma ORF diferente. entanto, esses genes são importantes para a repli-
Ao contrário dos adenovírus, a grande maioria cação e patogenia durante a infecção natural. Vá-
dos transcritos dos HVs não sofrem splicing. rios genes NE atuam antagonizando os mecanis-
Alguns transcritos de genes dos HV parecem mos de defesa antiviral do hospedeiro e, assim,
não conter ORFs traduzíveis. Um exemplo clássi- favorecendo a replicação do vírus.
co é o transcrito associado com a latência (LAT) Os HVs são capazes de alterar o ambiente
do HSV-1, que é o único RNA viral transcrito celular para favorecer a sua replicação, provocan-
durante a latência desse vírus. No caso do vírus do a inibição ou indução da síntese de macromo-
158 Capítulo 6

léculas, indução ou inibição da síntese de DNA tras classes de genes virais. Além do sítio para
celular e, ainda, podem induzir a imortalização a ligação do complexo VP16/HCF/Oct-1, esses
da célula hospedeira. Os HVs podem bloquear a promotores contêm sítios específicos para a liga-
indução de apoptose, ativar os mecanismos me- ção de uma variedade de fatores de transcrição
diados pelo interferon e a apresentação de antí- do hospedeiro (Figura 6.10).
genos e mimetizar determinadas funções imu-
nomodulatórias. Uma conseqüência geral dessas
atividades é o retardamento na erradicação da
infecção das células hospedeiras, por um período Classe Promotor
suficiente para permitir a replicação viral com- do gene
TATAA
TIF SP1 SP1 SP1 ICP4 SP1 TIF SP1 ICP4
pleta ou o estabelecimento da infecção latente.
IE (ICP4)
- 300
5.4 Expressão gênica +1

E (TK)
A cinética da expressão dos genes dos HVss CCATT, SP1 SP1 TATA
+1
durante a infecção aguda produtiva tem sido es-
TATAA Inr DAS
tudada detalhadamente em cultivo celular, mas L (UL38) -30
acredita-se que variações possam ocorrer in vivo +20

e também entre tipos celulares diferentes. Como +1

na maioria dos vírus DNA, os genes dos HV são


expressos sob regulação temporal estrita. Os ge- Fonte: adaptado de Roizman e Knipe (2001).
nes alfa ou de transcrição imediata (IE) são os pri-
Figura 6.10. Organização dos promoters dos genes de
meiros a serem expressos, seguidos pelos genes
transcrição imediata (IE), iniciais (early) e tardios (late)
beta ou iniciais (E), gama 1 (parcialmente tardios) do vírus do herpes simplex (HSV-1). Cada classe é
e pelos genes gama 2 ou tardios (L). Embora os representada pelo promotor de um determinado gene.
Os retângulos indicam os sítios de ligação dos fatores de
genes virais sejam transcritos pela RNA polII ce- transcrição/ transativadores. As setas indicam o início e
lular com o auxílio de fatores celulares de trans- direção da transcrição. IE: sítios para a ligação do
crição, proteínas virais são necessárias e auxiliam complexo VP16/HCF/oct-1 (TIF), do fator de transcrição
celular SP1 e do produto do gene ICP4; TATAA (TATA
em cada etapa de transcrição. box). Inr: iniciador; DAS.
Após a penetração do vírus, o nucleocapsí-
deo envolto pelo tegumento é transportado para
as proximidades dos poros nucleares, de onde o
DNA viral é translocado para o interior do núcleo As proteínas IE ICP4, ICP27 e ICP22 regu-
e rapidamente circularizado. No HSV-1, a prote- lam a expressão dos outros genes virais e, por-
ína VP16 do tegumento liga-se a duas proteínas tanto, são indispensáveis para a continuação do
celulares, HGF e oct-1, formando um complexo ciclo replicativo. A deleção experimental do gene
que se liga especificamente aos promotores dos do ICP4, o mais importante transativador viral,
genes IE, ativando a sua transcrição. A ativação resulta em um vírus incapaz de replicar. Outras
da transcrição é dependente da região C-termi- funções dos genes IE incluem a inibição de spli-
nal da VP16, que atua facilitando a reunião dos cing de mRNA (ICP27), a modulação do sistema
fatores de transcrição celulares responsáveis pela de degradação das proteínas celulares (ICP0) e a
maquinaria de transcrição basal. A dependência redução da expressão das ciclinas indutoras da
da VP16 parece ser maior em células quiescentes fase S (ICP22/Us1.5). A expressão das proteínas
e diferenciadas encontradas in vivo. IE alcança o pico máximo em 2 a 4 horas após
Seis produtos IE são codificados pelo HSV- a infecção. Como o ICP4 é capaz de reprimir a
1: os polipeptídeos ICP0, ICP4, ICP22, ICP27 e 47 sua própria expressão, acredita-se que contribua
e a proteína Us1.5. Os promotores desses genes para a supressão dos genes IE, que é observada
geralmente são mais complexos do que os de ou- nas fases tardias da infecção.
Replicação dos vírus DNA 159

As proteínas codificadas pelos genes E (beta) nas virais envolvidas na replicação do DNA viral.
atingem o pico máximo de síntese cerca de 5 a 7 A ICP27 movimenta-se entre o núcleo e o cito-
horas após a infecção, embora alguns produtos plasma das células infectadas, com funções nos
(p. ex.: a subunidade maior da ribonucleotídeo dois compartimentos. Evidências indicam que a
redutase, RR) sejam sintetizados com cinética se- ICP27 participa no recrutamento da enzima RNA
melhante aos genes IE. As proteínas E apresen- polimerase II celular para a transcrição dos ge-
tam diferentes funções, relacionadas com o me- nes tardios; auxilia na exportação dos transcritos
tabolismo de nucleotídeos e com a replicação do tardios para o citoplasma e estimula a tradução
DNA viral. O seu acúmulo nas células infectadas desses mRNA nos poliribossomos.
prenuncia o início da replicação do DNA. Os pro-
dutos dos genes E envolvidos no metabolismo de 5.5 Replicação do DNA viral
nucleotídeos (timidina quinase TK, dUTPase, RR)
e aqueles envolvidos na modificação e reparo do No início da expressão dos genes iniciais, as
DNA (uracil-N-glicosilase e nuclease alcalina) proteínas UL9 (proteína viral que se liga na ori-
não são essenciais para a replicação viral em cé- gem de replicação), UL29 (proteína que se liga em
lulas de cultivo. Isto se deve ao fato de as células DNA de fita simples) e UL5, UL8 e UL52 (com-
em multiplicação expressarem enzimas próprias plexo helicase-primase) se dirigem ao núcleo e
com atividades semelhantes. No entanto, as pro- se associam ao DNA viral, formando estruturas
teínas E são importantes in vivo e mutações nos focais chamadas de sítios pré-replicativos. Após
seus genes resultam em vírus que apresentam o recrutamento do complexo viral de replicação
replicação deficiente. Isso faz sentido principal- de DNA (UL30/UL42), uma fração dos sítios pré-
mente nos alfaherpervírus HSV-1 e BoHV-1, que replicativos maturam para formar os comparti-
são capazes de infectar diferentes tipos celulares, mentos virais de replicação.
inclusive neurônios. Os neurônios são células di- As funções mais importantes da proteína
ferenciadas que não se dividem e não expressam UL9 são a de ligação específica na origem de re-
proteínas envolvidas no ciclo celular, incluindo plicação (ori) e a separação das cadeias de DNA
várias proteínas envolvidas no metabolismo de neste sítio. Acredita-se que isso favoreça a mon-
nucleotídeos e na replicação do DNA. Por isso, tagem do complexo de iniciação, incluindo a as-
essas e outras proteínas virais podem ser cruciais sociação da DNA polimerase viral. A síntese da
para possibilitar a infecção de determinados ti- cadeia contínua envolve a separação das cadeias
pos celulares. do DNA e a síntese de um primer pelo complexo
A expressão dos genes gama 1 inicia em ní- helicase-primase, a partir do qual a cadeia nas-
veis baixos após o início da replicação do DNA, cente pode ser sintetizada de forma contínua pela
mas o seu nível de expressão aumenta com o DNA polimerase. A síntese da cadeia descontínua
avanço do processo replicativo. Os genes gama é mais complexa e envolve múltiplos ciclos de
2 (L) começam a ser expressos após a síntese e síntese do primer, extensão, remoção dos primers
replicação do DNA viral. A transcrição dos genes e ligação dos fragmentos de Okazaki adjacentes.
tardios ocorre a partir de genomas recém-replica- A síntese de DNA viral ocorre pelo mecanismo
dos, localizados em compartimentos de replica- de círculo rolante (rolling circle), que resulta em
ção nuclear, nos quais a ICP4 e a RNA polimerase moléculas longas, contendo várias unidades do
II se localizam. genoma unidas linearmente entre si. Essas mo-
Os promotores dos genes tardios consistem léculas contêm as quatro possíveis formas iso-
de seqüências regulatórias localizadas a certa dis- méricas do genoma (no caso do HSV-1), que são,
tância dos genes, como também de seqüências lo- então, clivadas em unidades genômicas, que são
calizadas na região 5’não-traduzida (Figura 6.10). encapsidadas nos nucleocapsídeos (Figura 6.1).
Além da ICP4, a transcrição dos genes tardios Os fatores celulares induzidos na fase inicial
exige a presença da ICP27, uma proteína multi- da infecção, incluindo vários componentes da
funcional que estimula a transcrição das proteí- maquinaria de reparo do DNA, acumulam-se nos
160 Capítulo 6

centros de replicação viral. Esses fatores parecem permitir a permanência do vírus no hospedeiro.
ser importantes para os centros de replicação do A reativação ocasional dessas infecções permite
HSV-1 se tornarem funcionais, sugerindo que um ao vírus ser transmitido e infectar novos hospe-
estresse celular pode ser necessário para a repli- deiros, perpetuando-se, assim, na natureza.
cação eficiente dos HVs.
6 Poxvírus
5.6 Expressão gênica durante a infecção
latente 6.1 O ciclo replicativo
A expressão de genes virais durante a in-
Os poxvírus (PoxV) são vírus DNA que re-
fecção latente é muito restrita e apenas um ou
alizam o seu ciclo replicativo – incluindo a repli-
poucos genes virais são transcritos. Por exem-
cação do genoma – integralmente no citoplasma,
plo, durante a latência em neurônios de gânglios
uma propriedade que é comum também ao vírus
sensoriais, o HSV-1 e o BoHV-1 sintetizam uma
da peste suína africana (ASFV), único membro da
série de transcritos a partir de uma região bem
família Asfarviridae. Como as enzimas celulares
determinada do genoma (região associada à la-
que participam da síntese de RNA e DNA estão
tência, LRT; transcrito associado à latência, LAT).
localizadas no núcleo, os PoxV devem trazer nos
As demais regiões do genoma permanecem ina-
vírions as suas próprias enzimas e fatores auxilia-
tivas em relação à transcrição. A razão dessa res-
res. Esse cenário ilustra o nível de independência
trição da transcrição é desconhecida, mas o am-
relativa que esses vírus conseguiram atingir em
biente neuronal e sinais derivados de células do
relação à célula hospedeira. No entanto, embora
sistema imunológico têm sido implicados. Vírus
codifiquem grande parte das enzimas e fatores
recombinantes que possuem mutações na região
de transcrição, os PoxV ainda são dependentes
do LAT/LRT são capazes de estabelecerem infec-
de vários fatores auxiliares da célula hospedeira.
ções latentes, mas são defectivos na reativação,
O ciclo replicativo dos PoxV foi estudado in vitro,
o que sugere um papel para esses transcritos na
utilizando-se o vírus da vaccinia (VV) como mo-
reativação da infecção.
delo. Apesar da sua complexidade, o ciclo repli-
cativo do VV é relativamente rápido, e a progênie
5.7 Conclusões
viral pode ser detectada já oito horas pós-infec-
ção (pi).
Os herpesvírus possuem um genoma mais
complexo e codificam várias proteínas envolvi- 6.2 O genoma dos PoxVs
das nos processos replicativos. Com isso, esses
vírus são capazes de replicar em uma variedade Mais de 50 seqüências genômicas completas,
de células, independente do seu estado de divi- representando vários gêneros, espécies e isolados
são ou diferenciação. Ao contrário do que ocorre de campo dos PoxV já foram obtidas, permitindo
com os vírus DNA pequenos (polioma, papiloma uma descrição detalhada da estrutura, organiza-
e adeno), os HV não necessitam induzir as células ção genômica e dos genes individuais.
a entrarem na fase S, pois codificam e/ou trazem O genoma dos PoxV consiste de uma mo-
nos vírions grande parte dos fatores necessários lécula de DNA linear de fita dupla com 130-390
à replicação de seu genoma. No entanto, depen- kbp, contendo seqüências repetidas invertidas do
dem da maquinaria celular de transcrição e pro- tipo hairpin (ITRs) de 0.1 a 12.4 kb nas extremi-
cessamento dos mRNAs. A replicação dos HVs dades (Figura 6.11). Nos Chordopoxvirus (ChPVs),
geralmente induz uma supressão da síntese de o número de genes é de aproximadamente 150,
macromoléculas das células, geralmente levando embora mais de 300 genes já tenham sido deduzi-
a alterações metabólicas incompatíveis com a vida dos no genoma do PoxV do canário (canaripox).
celular. O estabelecimento de infecção latente se A densidade gênica é alta, com uma média de um
constitui em uma estratégia muito eficiente para gene por kb.
Replicação dos vírus DNA 161

Repetição invertida Seqüências únicas Repetição invertida


10 kbp 160 kbp 10 kbp

Seqüências repetidas Seqüências repetidas

0,9 kbp 1,3 kbp 1,3 kbp 0,9 kbp

Fonte: adaptado de Murphy et al. (1999).

Figura 6.11. Estrutura do genoma dos poxvírus. O genoma consiste de uma molécula contínua de DNA de fita dupla,
sem extremidades livres. Nas duas extremidades, situam-se regiões repetidas invertidas de aproximadamente 10 kb
cada. As seqüências únicas abrangem o restante do genoma.

Aproximadamente 90 dos 150 genes são ção dos genes do VV pode ser dividida em três
conservados no genoma de todos os ChPVs se- etapas: inicial, intermediária e tardia. A transcri-
qüenciados até o presente, e codificam produ- ção de vários genes, no entanto, parece não obe-
tos que participam da replicação do DNA, da decer a essa regulação estrita, ocorrendo continu-
transcrição, da morfogênese e da estrutura das amente ao longo do ciclo replicativo.
partículas virais. Nesses genes, tanto as regiões Os fatores de transcrição e enzimas neces-
codificantes quanto os promotores são altamente sárias para a transcrição dos genes iniciais estão
conservados. Em geral, grande parte dos genes presentes nas partículas víricas infectantes. As-
conservados estão localizados na região central sim, a transcrição desses genes inicia poucos mi-
do genoma. nutos após a penetração viral, ainda no interior
Os genes localizados entre a região central de partículas parcialmente íntegras e, portanto,
e as extremidades do genoma tendem a ser es- antes do desnudamento ser completado. A trans-
pécie-específicos e codificam proteínas cujas fun- crição inicial resulta na produção de aproxima-
ções antagonizam a resposta imune do hospedei- damente 100 mRNA diferentes, que são expor-
ro. Esses genes são chamados coletivamente de tados do interior dos vírions para o citoplasma
genes de virulência. Estão incluídos nesse grupo para serem traduzidos. Entre as proteínas dos
os genes que codificam produtos homólogos às genes iniciais estão aquelas envolvidas nos me-
citocinas e quimioquinas do hospedeiro, e genes canismos de evasão do sistema imunológico, no
de receptores de citocinas e quimioquinas que desnudamento completo do genoma, na síntese
foram adquiridos do hospedeiro e modificados de DNA viral e na regulação da expressão dos
durante a evolução. Ao contrário dos genes cen- genes intermediários.
trais conservados, vários genes de virulência são Os produtos dos genes intermediários são
dispensáveis para a replicação viral em cultivo principalmente fatores de transcrição utilizados
celular. para a expressão dos genes tardios. As proteínas
tardias, por sua vez, estão envolvidas na morfo-
6.3 Expressão gênica gênese, fazem parte da estrutura das partículas
víricas e também incluem as enzimas e fatores de
Como os outros vírus DNA, os PoxVs co- transcrição que serão incluídos na progênie viral
ordenam os processos de replicação genômica e para o próximo ciclo de replicação.
morfogênese por meio de uma regulação tempo- Os genes dos PoxVs são transcritos pela
ral da expressão de grupos de genes. A transcri- RNA polimerase viral, que é composta por nove
162 Capítulo 6

subunidades. As duas subunidades maiores RNA polimerase, fatores ITF-A (helicase), ITF-B
apresentam um alto grau de similaridade nos (enzima que coloca o cap), VITF-2 (fator derivado
aminoácidos, com as subunidades maiores das do hospedeiro) e B1R (proteína quinase viral).
RNA polimerases de eucariotas e procariotas, Os promotores dos genes tardios também
mas as duas subunidades menores não apresen- são bipartidos e contêm um elemento iniciador
tam similaridade significativa com as suas cor- e uma região rica em A-T logo acima. Além da
respondentes. RNA polimerase, três produtos de genes inter-
Aproximadamente a metade dos genes do mediários e um produto inicial são necessários
VV pertence ao grupo dos genes iniciais. Os pro- para a transcrição dos genes tardios, embora as
motores desses genes possuem um resíduo de funções desses produtos sejam desconhecidas.
guanina (G) extremamente conservado na posi- Um fator de transcrição do hospedeiro também
ção –21, flanqueado por uma região variável rica parece estar envolvido na transcrição dos genes
em A-T. A transcrição dos genes iniciais requer a tardios. A terminação da transcrição dos genes
RNA polimerase viral, o fator de transcrição ini- tardios é diferente daquela dos genes iniciais,
cial (ou ETF, a única proteína de ligação ao DNA mas também requer a participação de produtos
codificada pelos PoxV) e ATP. No modelo atual, virais.
o ETF se liga nos promotores iniciais e recruta
o complexo da RNA polimerase. A hidrólise de 6.4 Replicação do DNA
ATP pelo ETF e a sua subseqüente liberação do
complexo permite a RNA polimerase iniciar a A replicação citoplasmática do genoma se
transcrição. constitui em um aspecto único do ciclo replica-
Estudos recentes sugerem que vários fatores tivo dos PoxV e ASFV. A replicação do DNA do
de transcrição dos genes iniciais formam comple- VV ocorre em “fábricas virais”, que são áreas cito-
xos que se ligam aos promotores durante a mor- plasmáticas totalmente envolvidas por membra-
fogênese das partículas virais. Com isso, parte nas derivadas do retículo endoplasmático rugoso
dos fatores necessários para a transcrição inicial (RER). O envolvimento dessas áreas pelas mem-
já estaria posicionada nos promotores, permitin- branas do RER é um processo que se completa
do o rápido início da transcrição, logo após a pe- em, aproximadamente, 45 minutos a partir do
netração na célula hospedeira. As enzimas virais início da infecção e parece ser influenciado por
guanilyl-transferase (capping enzyme), polimerase proteínas virais de membrana. Em etapas tardias
poly-A e um fator de terminação da transcrição da infecção, quando se inicia a morfogênese, es-
também são importantes para a transcrição ini- ses “envelopes” membranosos do RER não são
cial. A transcrição desses genes termina logo após mais visíveis na estrutura celular.
o final das ORFs, em resposta a uma seqüência Alguns PoxVs codificam enzimas envolvi-
TTTTTNT (onde N é qualquer nucleotídeo), lo- das na síntese de deoxiribonucleotídeos (dNTPs),
calizada na cadeia de DNA oposta (codificante). para favorecer a síntese e replicação do DNA em
Até o presente, nenhuma função da célula hos- células que na estão em divisão. No caso do VV, a
pedeira foi identificada como necessária para a replicação do DNA ocorre entre 3 e 12 horas pós-
iniciação e terminação da transcrição inicial. infecção e resulta na produção de aproximada-
Após o desnudamento completo do geno- mente 10.000 cópias por célula, metade das quais
ma, seguem-se as etapas de transcrição dos genes serão incluídas nos vírions.
intermediários, a replicação do DNA e a transcri- Acredita-se que a replicação do DNA dos
ção dos genes tardios. Os promotores dos genes PoxV se inicie com uma clivagem em uma das ca-
intermediários são bipartidos, possuindo um ele- deias nas proximidades dos hairpins, seguida de
mento iniciador no sítio de iniciação da transcri- polimerização seqüencial a partir da extremidade
ção e uma seqüência rica em A-T, localizada pró- 3’, deslocamento da cadeia complementar e reso-
xima (na direção 5’). A transcrição desses genes lução por concatêmeros (Figura 6.1). A região ter-
requer fatores virais recém-sintetizados, como a minal de 200 pb do genoma provavelmente serve
Replicação dos vírus DNA 163

de origem de replicação. A resolução/separação CAMPO, M.S. Cell transformation by animal papillomaviruses.


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REPLICAÇÃO DOS VÍRUS RNA
Maria Elisa Piccone1 & Eduardo Furtado Flores
7
1 Introdução 167

1.1 Diversidade de estrutura, organização e funcionalidade dos genomas 167


1.2 Sítios de replicação 169
1.3 Infidelidade das replicases e diversidade genética 169
1.4 Outras proteínas virais envolvidas na replicação 169

2 Vírus com genoma RNA de sentido positivo 169

2.1 Genomas com uma única ORF, sem produção de mRNA subgenômicos 171
2.1.1 Estrutura e organização do genoma 171
2.1.2 Tradução e replicação do genoma 172

2.2 Genomas com mais de uma ORF e produção de mRNAs subgenômicos 174
2.2.1 Estrutura e organização genômica 174
2.2.2 Expressão gênica e replicação do genoma 174

3 Vírus com genoma RNA de sentido negativo 176

3.1 Vírus com o genoma não-segmentado 176


3.1.1 Estrutura e organização do genoma 177
3.1.2 Transcrição 178
3.1.3 Replicação do genoma 179

3.2 Vírus com o genoma segmentado 180


3.3 Vírus com o genoma ambissense 181

4 Vírus com RNA de fita dupla 182

4.1 Estrutura e organização do genoma 182


4.2 Transcrição 183
4.3 Replicação do genoma 184

5 Retrovírus 184

6 Bibliografia consultada 185

1
Responsável pela seção de vírus RNA de sentido positivo.
1 Introdução produção de uma molécula de DNA complemen-
tar (provírus) que é integrada aos cromossomos
Os vírus RNA compõem um grupo amplo celulares. A transcrição desse provírus pela RNA
e diverso de vírus que infectam desde insetos e polimerase II celular (RNApol II) resulta na pro-
plantas até vertebrados superiores. São os únicos dução do RNA para ser incluído como genoma
organismos que possuem RNA como genoma, e, nas partículas víricas.
por isso, precisaram se adaptar a certas condições A natureza do seu genoma resultou em al-
impostas pelas células hospedeiras para poder se gumas conseqüências biológicas e evolutivas
multiplicar. As células eucariotas não possuem para os vírus RNA: a) a maioria deles realiza o
enzimas e reações para a síntese de RNA a par- seu ciclo replicativo inteiramente no citoplasma
tir de moldes RNA, etapa necessária para a re- das células hospedeiras, b) poucos deles utilizam
plicação do genoma desses vírus. No entanto, a o processamento de RNA (splicing) para a geração
evolução viral solucionou este impasse, pois o de diversidade de proteínas; c) a alta taxa de erro
genoma de um vírus RNA codifica a sua própria das replicases virais, associada com a ausência de
enzima replicativa (RNA polimerase dependente autocorreção, resulta em uma alta freqüência de
de RNA ou replicase). Em alguns vírus RNA, a mutações, o que contribui para a grande variabi-
replicase e os fatores auxiliares para a replicação lidade genética e antigênica desses vírus.
do genoma são produzidos pela tradução dire-
ta do genoma, logo no início do ciclo replicativo. 1.1 Diversidade de estrutura, organiza-
Em outros vírus RNA, o genoma não é traduzido ção e funcionalidade dos genomas
diretamente e os vírions carreiam a enzima repli-
case e os fatores necessários para a replicação do Os genomas dos vírus RNA de animais são
genoma. todos compostos por moléculas lineares, porém,
A replicação do genoma dos vírus RNA apresentam diferenças quanto à funcionalidade,
(com exceção dos retrovírus) ocorre em duas eta- estrutura e organização (Tabela 7.1). A distinção
pas e envolve a síntese de moléculas intermedi- inicial se refere à funcionalidade do genoma, ou
árias (RNA complementar ou antigenômico). O seja, existem vírus com genoma RNA de senti-
RNA antigenômico serve, então, de molde para do (ou polaridade) positivo e negativo. Os vírus
a síntese de RNA de sentido genômico. A sínte- RNA de sentido positivo possuem as seqüências
se de RNA com sentido de mensageiro (mRNA codificantes de proteínas (open reading frames,
ou sentido positivo) denomina-se transcrição, e ORFs) no mesmo sentido do genoma, ou seja, o
a síntese de RNA genômico denomina-se repli- seu genoma pode ser diretamente traduzido em
cação. Na verdade, transcrição e replicação são proteínas pelos ribossomos. Dentre estes, duas
termos equivalentes utilizados para designar a propriedades principais são reconhecidas: al-
síntese de moléculas de RNA a partir de moldes. guns vírus possuem uma única ORF no genoma
A mesma enzima replicase, possivelmente assis- e outros genomas possuem mais de uma ORF e
tida por uma combinação diferente de fatores au- produzem RNAs mensageiros subgenômicos
xiliares ou submetida a modificações químicas, (mRNAsg).
é responsável tanto pela transcrição como pela Os RNAs genômicos dos vírus RNA de sen-
replicação. O complexo enzimático envolvido na tido negativo não apresentam as ORFs na mes-
transcrição é geralmente chamado de transcrip- ma orientação do genoma, assim, não podem ser
tase; e o complexo responsável pela replicação é diretamente traduzidos em proteínas. As ORFs
denominado replicase. estão presentes no RNA complementar, de senti-
Os retrovírus apresentam uma estratégia do antigenômico. Então, a produção de suas pro-
de replicação única, que difere dos demais vírus teínas depende inicialmente da síntese de mR-
RNA. Esses vírus possuem um genoma RNA NAs pela polimerase viral trazida nos vírions.
com sentido positivo, mas que não é traduzido Dentre esses vírus, existem alguns cujo genoma
diretamente. A replicação do genoma ocorre pela é composto por uma molécula contínua de RNA
168 Capítulo 7

e outros cujo genoma é dividido em dois ou mais Os retrovírus representam uma exceção en-
segmentos. Dentre os vírus com o genoma seg- tre os vírus RNA. O seu genoma possui polarida-
mentado, existem alguns que possuem o genoma de positiva, porém não é traduzido diretamente
pelos ribossomos. A replicação dos retrovírus
ambissense, ou seja, codificam as suas proteínas
envolve a transcrição reversa (síntese de DNA a
por ORFs existentes tanto no RNA de sentido ge-
partir de RNA), integração do DNA proviral nos
nômico quanto no RNA complementar. cromossomos da célula hospedeira e transcrição
Todos os genomas dos vírus RNA (sentido do provírus pelo aparato celular de transcrição.
positivo e negativo, segmentados ou não) são Apesar dessa diversidade, praticamente to-
compostos por moléculas de RNA de fita sim- dos esses vírus convergem para um evento cen-
ples (ssRNA). Um terceiro grupo é formado por tral comum: a produção de mRNA reconhecíveis
e traduzíveis pela maquinaria celular de tradu-
vírus que possuem fita de RNA de cadeia dupla
ção. A única exceção é composta pelos genes que
(dsRNA) segmentada como genoma. Estes vírus codificam proteínas não-estruturais (e estruturais
também trazem a enzima polimerase nos vírions, em alguns casos) entre os vírus RNA de sentido
que é necessária para a transcrição e replicação positivo, que podem ser traduzidos diretamente
dos segmentos genômicos. do genoma.

Tabela 7.1. Classificação dos vírus RNA de acordo com a estrutura, organização e polaridade do genoma e local
intracelular de replicação

RNA genômico Replicação


Família ss/ds Polaridade Topologia Segmentos Local intracelular

Picornaviridae ss Positiva Linear 1 Citoplasma

Flaviviridae ss Positiva Linear 1 Citoplasma

Caliciviridae ss Positiva Linear 1 Citoplasma

Astroviridae ss Positiva Linear 1 Citoplasma

Togaviridae ss Positiva Linear 1 Citoplasma

Coronaviridae ss Positiva Linear 1 Citoplasma

Arteriviridae ss Positiva Linear 1 Citoplasma

Retroviridae ss Positiva Linear 2 (idênticos) Núcleo/citoplasma

Birnaviridae ds Ambas Linear 2 Citoplasma

Reoviridae ds Ambas Linear 10-12 Citoplasma

Rhabdoviridae ss Negativa Linear 1 Citoplasma

Filoviridae ss Negativa Linear 1 Citoplasma

Bornaviridae ss Negativa Linear 1 Núcleo

Paramyxoviridae ss Negativa Linear 1 Citoplasma

Orthomyxoviridae ss Negativa Linear 7-8 Núcleo

Negativa ou
Bunyaviridae ss ambissense Linear 3 Citoplasma

Arenaviridae ss Ambissense Linear 2 Citoplasma


Replicação dos vírus RNA 169

1.2 Sítios de replicação rus possui implicações importantes na epidemio-


logia, patogenia, diagnóstico e para a produção
Com exceção dos vírus das famílias Or- de vacinas.
thomyxoviridae e Bornaviridae, cuja replicação do
genoma ocorre no núcleo; e dos retrovírus, em 1.4 Outras proteínas virais envolvidas
que o ciclo replicativo ocorre parte no citoplasma na replicação
e parte no núcleo, os demais vírus RNA realizam
o seu ciclo replicativo inteiramente no citoplasma Além das replicases, outras proteínas que
da célula hospedeira. Esses vírus são, portanto, participam da síntese de RNA são codificadas
independentes da maquinaria nuclear de sínte- por esses vírus. As funções exercidas por essas
se e processamento de RNAs. Os ortomixovírus proteínas são diversas e incluem: a) direciona-
replicam o genoma no núcleo e são dependentes mento da polimerase e/ou do genoma aos locais
de oligonucleotídeos com cap, que são subtraídos da célula onde ocorre a replicação; b) facilitação
dos mRNA celulares. Estes vírus, além dos retro- do reconhecimento do sítio de iniciação da sínte-
vírus, dependem ainda da maquinaria de pro- se de RNA pela polimerase; c) encapsidação do
cessamento de mRNAs celulares (splicing) para genoma RNA para a transcrição e replicação; d)
o processamento de alguns de seus transcritos. aumento da afinidade da polimerase pelo RNA;
Alguns vírus RNA que replicam no citoplasma e) aumento da atividade da polimerase; f) sepa-
(paramixovírus) utilizam mecanismos alternati- ração das cadeias de RNA para a polimerização
(atividade de helicase); g) alteração da especifi-
vos para modificar os seus transcritos e produzir
cidade da polimerase pelo molde RNA (troca de
diferentes proteínas a partir de um mesmo gene.
transcrição para replicação). Ou seja, esses vírus
codificam uma série de proteínas, algumas com
1.3 Infidelidade das replicases e
atividades enzimáticas, que atuam como co-fato-
diversidade genética res no processo de síntese de RNA e replicação
do genoma.
As replicases dos vírus RNA (RNAs poli-
Além de proteínas, a síntese de RNAs virais
merases dependentes de RNA) apresentam uma
envolve a participação de componentes celulares,
taxa de erro aproximadamente 1.000 a 10.000 ve-
denominados genericamente fatores do hospe-
zes superior às polimerases de DNA. Além disso,
deiro. A especificidade, as etapas de participação
essas enzimas não possuem a atividade de proo-
e a dependência relativa de fatores do hospedei-
freading (correção de nucleotídeos incorretos adi-
ro para a síntese de RNA viral variam entre os
cionados durante a síntese). O resultado disso é
vírus.
que pelo menos uma mutação em ponto pode ser
introduzida a cada replicação do genoma, o que
tem uma grande implicação para a diversidade e 2 Vírus com genoma RNA de sentido
evolução desses vírus. Como conseqüência, uma positivo
população de vírus RNA não é constituída por
uma progênie clonal homogênea, e sim por uma Por definição, esses vírus codificam as suas
mistura de variantes agrupados em torno de uma proteínas no sentido do RNA genômico, ou seja,
seqüência predominante e mais abundante. Essa as seqüências abertas de leitura (ORFs) que co-
população heterogênea de vírus que compõe dificam as proteínas virais estão presentes na
uma espécie viral é denominada quasi-species. A mesma orientação do genoma. Por isso, o RNA
geração contínua dessa população heterogênea genômico pode ser usado como mRNA e ser di-
se constitui em uma grande vantagem evolutiva retamente traduzido pelos ribossomos. Os vírus
para os vírus RNA, pois permite que variantes desse grupo possuem algumas características em
geradas ao acaso possam apresentar vantagem comum: a) replicam no citoplasma da célula hos-
evolutiva e rapidamente se sobressair na popu- pedeira; b) o RNA genômico serve de mRNA e
lação quando submetidos à determinada pressão pode ser traduzido; c) o RNA genômico desprovi-
de seleção. A rápida taxa de evolução desses ví- do de proteínas é infeccioso quando introduzido
170 Capítulo 7

nas células; d) as proteínas virais são sintetizadas o genoma não-segmentado: 1) Picornaviridae, 2)


como poliproteínas precursoras. Essas polipro- Flaviviridae, 3) Caliciviridae, 4) Astroviridae, 5) To-
teínas são imediatamente clivadas em proteínas gaviridae, 6) Arteriviridae e 7) Coronaviridae.
individuais por proteases virais e/ou celulares; A replicação do genoma desses vírus envol-
ve a ação conjunta de vários componentes, que
e) os vírions não contêm enzimas.
incluem proteínas virais, seqüências específicas
As infecções por vírus RNA de sentido po-
no RNA viral e, provavelmente, vários compo-
sitivo não são exclusivas dos animais, e um gran-
nentes celulares, como proteínas e membranas.
de número desses agentes pode infectar também Uma diferença fundamental entre grupos
bactérias ou plantas, constituindo gêneros que de vírus RNA de sentido positivo se refere à exis-
são classificados dentro dessas famílias de vírus. tência de uma ou mais ORFs no genoma e a pro-
Sete famílias de vírus animais possuem ge- dução ou não de mRNAs subgenômicos (Figura
noma RNA de sentido positivo, e todos possuem 7.1; Tabela 7.2).

Picornaviridae (FMDV) 7 - 8.5kb


ORF única
5'
VPg L VP4 VP2 VP3 VP1 2A 2B 2C 3A 3B 3C 3D polyA 3'

Flaviviridae (gênero Pestivirus, BVDV) 12,3kb


ORF única

5' N
pro
C E
ms
E1 E2 NS2-3 NS4-A NS4-B NS5A NS5B poliC3'

Caliciviridae 7.3 - 8.3kb


ORF1 ORF2 ORF3
5'
VPg p32 NTPase P30 VpG P76 (Pro - pol) capsídeo poliA3’

mRNA subgenômico

Astroviridae 6.8kb
ORF1a ORF1b ORF2
5'
VPg Pro Pol Capsídeo poliA3'

mRNA subgenômico

Togaviridae 9.7 - 11.8kb


ORF1 ORF2
5'
Cap NsP1 NsP2 NsP3 NsP4 C E3 E2 E1 poliA3'

mRNA subgenômico

Arteriviridae 13 - 15kb ORFs2-7


ORF 1a ORF 1b
5’ 3 5 3’
7
Cap LLL a 2b 4 6 poliA

mRNA subgenômicos

Coronaviridae 27 - 32kb
ORF1a Pol ORF1b 5-7 ORFs
5' 3’
Cap L 2 HE S 4 E M N poliA

mRNA subgenômicos

Figura 7.1. Estrutura e organização do genoma dos vírus RNA de sentido positivo. As linhas contínuas representam o RNA
genômico; os retângulos representam os genes. A localização das ORFs e dos mRNA subgenômicos também está indicada.
Replicação dos vírus RNA 171

Tabela 7.2. Principais características do genoma dos vírus RNA de polaridade positiva

Genoma (kb) RNA


Família subgenômicos
Extensão (kb) 5' Extremidades 3'

Picornaviridae 7,2 - 8,5 VPG*, IRES poliA não

Flaviviridae 9,6 - 12,3 cap**,IRES*** poliC**** não

Astroviridae 6,8 VPG poliA sim (1)

Caliciviridae 7,3 - 8,3 VPG poliA sim (1)

Arteriviridae 13 - 15 cap poliA sim (6)

Togaviridae 9,7 - 11,8 cap poliA sim (1)

Coronaviridae 27 - 32 cap poliA sim (5-7)


* Proteína terminal associada à extremidade 5' do genoma.
** Apenas os vírus do gênero Flavivirus.
*** Pestivírus, hepacivírus.
**** Pestivírus (BVDV).

Nos vírus que possuem uma única ORF no do genoma e outra parte pela tradução de mR-
genoma, todas as proteínas são produzidas pela NAs subgenômicos (Figura 7.1).
tradução direta do RNA genômico, originando Nesta seção, serão apresentados alguns as-
uma longa poliproteína. Esta poliproteína é cliva- pectos das principais estratégias utilizadas pelos
da por proteases celulares e/ou virais, originan- vírus RNA de sentido positivo para expressar os
do as proteínas individuais. A clivagem ocorre à seus genes e replicar o seu genoma, utilizando
medida que a tradução vai se desenvolvendo, de exemplos de diferentes famílias.
modo que a poliproteína inteira nunca é detecta-
da nas células infectadas. Nesses vírus, os genes 2.1 Genomas com uma única ORF, sem
que codificam as proteínas estruturais estão loca- produção de mRNA subgenômicos
lizados no terço 5’ do genoma; enquanto as pro-
teínas não-estruturais – inclusive a polimerase Importantes vírus animais e de humanos
viral – são codificadas pelo restante do genoma estão incluídos neste grupo, que é composto por
(Figura 7.1). membros das famílias Picornaviridae e Flaviviri-
Entre os vírus em que o genoma possui mais dae. Dentre os patógenos humanos, estão o po-
de uma ORF, as proteínas não-estruturais (e a liovírus, os rinovírus, os vírus da dengue e febre
polimerase) são codificadas na região próxima à amarela, e o vírus da hepatite C. Os principais
extremidade 5’ do genoma (dois terços do geno- vírus animais deste grupo são: o vírus da febre
ma). Apenas a ORF localizada na região próxi- aftosa (FMDV, um picornavírus), que possui um
ma à extremidade 5’ é traduzida diretamente do impacto sanitário e econômico notável na bovi-
RNA genômico, resultando na síntese das prote- nocultura e na economia de vários países; e os
ínas não-estruturais, inclusive a polimerase viral. pestivírus (família Flaviviridae) vírus da diarréia
A(s) outra(s) ORF(s) – embora estejam presentes viral bovina (BVDV) e vírus da peste suína clás-
no sentido do RNA genômico – são expressas a sica (CSFV).
partir de RNAs subgenômicos (mRNAsg), que
são produzidos a partir da transcrição das mo- 2.1.1 Estrutura e organização do genoma
léculas de RNA complementar (antigenômicos),
ou seja, esses vírus produzem uma parte de suas O genoma desses vírus contém uma ORF
proteínas (não-estruturais) pela tradução direta única e longa, que abrange quase toda a extensão
172 Capítulo 7

do genoma (Figura 7.1). Essa ORF é flanqueada (Figura 7.2). Essa poliproteína é clivada seqüen-
por duas regiões não-traduzidas (5’UTR, 3’UTR), cialmente, à medida que é produzida, originan-
que possuem extensões variáveis, de acordo com do os precursores intermediários e, finalmente,
o vírus (podem atingir até 1.100 nt em alguns pi- as proteínas virais maduras. Nos picornavírus,
cornavírus). A extremidade 5’ do genoma possui as clivagens são realizadas essencialmente por
estruturas especializadas que são importantes proteases virais; nos membros da família Flavivi-
para o direcionamento do genoma para o local da ridae, essas clivagens são realizadas por proteases
replicação (5’VPg), para o início da tradução (cap virais e celulares.
ou IRES) e replicação. A extremidade 3’ é polia- Uma das proteínas maduras produzidas
denilada ou possui uma seqüência de citosinas, pela tradução do genoma é a replicase viral (poli-
como no caso dos pestivírus (Figura 7.1; Tabela merase de RNA dependente de RNA), que se en-
7.2). A região 3’ UTR é geralmente menor e pos- carrega de replicar o genoma. A replicação ocorre
sui seqüências importantes para a replicação do em duas etapas: a) síntese de uma molécula de
genoma. RNA complementar (com a extensão do genoma)
e b) síntese de cópias de RNA de sentido genô-
2.1.2 Tradução e replicação do genoma mico a partir do RNA complementar. As molé-
culas de RNA de sentido genômico possuem três
A primeira etapa na replicação desses vírus funções: a) servem de mRNA para a produção da
é a tradução do genoma em uma única poliproteí- poliproteína; b) servem de molde para a síntese
na, que é a precursora de todas as proteínas virais de RNA complementar; e c) são encapsidadas

ORF única
5' 3'
VPg L VP4 VP2 VP3 VP1 2A 2B 2C 3A 3B 3C 3D

IRES

5'- -3'

Poliproteína

Clivagem

L P1 P2 P3

Clivagem
Proteínas estruturais Proteínas não-estruturais

L VP4 VP2 VP3 VP1 2A 2B 2C 3A 3B 3C 3D

Figura 7.2. Organização do genoma e expressão gênica de um picornavírus (vírus da febre aftosa, FMDV). A estrutura
IRES, reconhecida pelos ribossomos, está demonstrada na região 5' não-traduzida. A ORF única e longa é traduzida
pelos ribossomos em uma longa poliproteína, que vai sendo clivada por proteases celulares à medida que é
produzida. As clivagens seqüenciais originam precursores intermediários e, finalmente, as proteínas virais maduras.
Replicação dos vírus RNA 173

como genoma nas novas partículas virais (Figura portantes desta região, destaca-se uma estrutura
7.3). Após a morfogênese dos vírions, ocorre lise secundária altamente complexa denominada In-
celular e a progênie viral é liberada. ternal Ribosomal Entry Site (IRES). Esta estrutura
A cinética de replicação dos picornavírus direciona os ribossomos ao códon de iniciação
é rápida e o ciclo é completado em cinco a dez da tradução, sobrepondo-se ao mecanismo usual
horas. O RNA viral (vRNA) é traduzido direta- de iniciação da tradução dos mRNAs celulares.
mente pelos polirribossomos, mas, aproximada- Estruturas IRES já foram identificadas nos geno-
mente 30 minutos após a infecção, a síntese de mas dos poliovírus, vírus da encefalomiocardite
proteínas celulares é reduzida drasticamente. (EMCV), FMDV, vírus da hepatite A e em alguns
Essa supressão da síntese protéica é a causa pri- membros da família Flaviviridae (vírus da hepati-
mária das alterações morfológicas celulares que te C [HCV] e BVDV).
acompanham a infecção, genericamente denomi- O mecanismo pelo qual o aparato de tradu-
nadas como efeito citopático (ECP). A supressão ção celular reconhece o IRES permanece desco-
parece ocorrer pela clivagem de fatores de tra- nhecido, mas a participação de vários fatores de
dução celulares envolvidos no reconhecimento e iniciação, além de outros fatores celulares, tem
ligação às estruturas cap dos mRNAs celulares, sido proposta. Ao contrário dos poliovírus e dos
evento necessário para o início da tradução. Essa pestivírus, o genoma dos vírus do gênero Flavivi-
clivagem é atribuída à protease 2A dos rinovírus rus possui uma estrutura cap na extremidade 5’,
e enterovírus, e à protease L do FMDV. Alguns mas parece ser traduzido por um novo mecanis-
vírus deste grupo (a maioria dos isolados dos mo que não depende do cap.
pestivírus) são exceções e não são citolíticos. A região 5’ UTR do genoma dos vírus RNA
Embora o genoma desses vírus se comporte de sentido positivo também contém sinais para a
como mRNA e possa ser traduzido em proteínas, replicação do genoma. O balanço entre tradução e
a sua estrutura é diferente dos mRNA celulares. replicação parece ser mediado pela interação des-
Além de codificar as proteínas virais, esta molé- sa região com proteínas virais e celulares. Outra
cula possui importantes seqüências conservadas estrutura essencial para a replicação, conhecida
e estruturas secundárias na região 5’ não-traduzi- como sinal cis-acting de replicação (cre), tem sido
da (UTR). Entre as estruturas funcionais mais im- identificado no genoma de vários vírus. Essas

RNA genômico (+)

5'- -3'

Tradução (1) Encapsidamento (4)


2

Replicação

3
Proteínas

3'- -5'
RNA antigenômico (-)

Figura 7.3. Ilustração simplificada das etapas de replicação dos vírus das famílias Picornaviridae e Flaviviridae. O
genoma RNA é, inicialmente, traduzido em proteínas (1). A RNA polimerase produzida nesta etapa sintetiza o RNA
complementar (2) e, a seguir, cópias de sentido genômico (3). Além de ser traduzido em proteínas, o RNA de sentido
genômico serve de molde para a síntese do RNA complementar e, posteriormente, é encapsidado nas novas partículas
víricas (4).
174 Capítulo 7

estruturas, embora aparentemente responsáveis poliadenilada. Os genes que codificam as pro-


pela mesma função, estão localizadas em regiões teínas não-estruturais estão localizadas nos dois
diferentes dos genomas. terços próximos à extremidade 5’, e os genes das
A região 3’ UTR do genoma contém estrutu- proteínas estruturais ocupam o terço restante do
ras secundárias e terciárias que são importantes genoma. Uma característica comum a todos es-
durante a replicação do genoma. Acredita-se que ses vírus é a produção de mRNA subgenômicos
ocorre uma interação direta entre as duas UTRs (mRNAsg), em número e extensão variáveis, que
(5’ e 3’) durante a tradução e replicação, mediada são traduzidos nas proteínas estruturais.
por complexos do RNA com proteínas. Existem
ainda evidências de circularização do genoma do 2.2.2 Expressão gênica e replicação do
vírus da dengue (um flavivírus) através de inte- genoma
ração física entre as UTRs 5’ e 3’.
Durante a sua replicação, os picornavírus in- A expressão gênica e a replicação do geno-
duzem a proliferação de estruturas membranosas ma desses vírus apresentam algumas semelhan-
envolvidas na replicação viral. Essas membranas ças com o grupo anterior: a) o genoma serve de
podem fornecer fatores celulares necessários para mRNA e é traduzido diretamente pelos ribosso-
a replicação do RNA. Várias proteínas celulares mos; b) a tradução resulta na produção de poli-
que interagem com o RNA genômico têm sido proteínas, que são posteriormente clivadas nas
identificadas e, em alguns casos, têm sido asso- proteínas individuais; e c) a replicação do geno-
ciadas funcionalmente com a replicação. ma ocorre via produção de um RNA de sentido
antigenômico. As principais diferenças se refe-
2.2 Genomas com mais de uma ORF e rem à organização do genoma (posição dos genes
produção de mRNAs subgenômicos das proteínas estruturais versus não-estruturais),
número de ORFs e produção de mRNAsg.
Vários patógenos animais e humanos utili- Dentre esses vírus, os mais estudados são os
zam esta estratégia de expressão gênica e replica- coronavírus e os togavírus. A seguir, será descrita
ção do genoma. Incluem-se entre eles os togaví- a expressão gênica e replicação do vírus Sindbis,
rus Sindbis e vírus das encefalites eqüinas (EEEV, um togavírus responsável por encefalomielite
VEEV e WEEV), os calicivírus (calicivírus felino, aguda em camundongos e extensivamente es-
FCV), os coronavírus (vários patógenos animais tudado como modelo para diversos aspectos da
e humanos), os arterivírus (PRRSV, vírus da arte- Virologia.
rite eqüina) e os astrovírus. Pela sua organização O genoma desse vírus contém duas ORFs,
genômica e estratégia de expressão similares, os cada uma codificando quatro proteínas (Figura
membros das famílias Coronaviridae e Arteriviri- 7.4). Inicialmente, a ORF situada próxima à ex-
dae são agrupados na ordem Nidovirales. Os vírus tremidade 5’ do genoma é traduzida, resultando
deste grupo de famílias apresentam várias simi- na produção de uma poliproteína. Esta poliprote-
laridades de estrutura, organização genômica e ína é clivada à medida que vai sendo produzida,
expressão gênica com o grupo anterior, porém originando as proteínas não-estruturais, incluin-
também apresentam importantes diferenças. do a replicase viral. Esta polimerase sintetiza,
então, uma cópia de RNA de sentido negativo
2.2.1 Estrutura e organização genômica (complementar ou antigenômica) com a extensão
completa do genoma. A molécula de RNA com-
Os vírus deste grupo possuem moléculas plementar serve para dois propósitos: a) molde
de RNA de polaridade positiva como genoma, para a síntese de RNAs de sentido e extensão ge-
com extensão entre 6.8 kb (astrovírus) a 32 kb nômicos que são encapsidados na progênie viral
(coronavírus). Dependendo da família, a extre- e b) molde para a síntese de mRNAs subgenômi-
midade 5’ possui uma proteína ligada (VPg) ou cos. Esses mRNAsg são traduzidos em uma poli-
uma estrutura cap, enquanto a extremidade 3’ é proteína que origina, por clivagem, as proteínas
Replicação dos vírus RNA 175

5' 3'
Cap NsP1 NsP2 NsP3 NsP4 C E3 E2 E1 A(n)

Tradução

Poliproteína

Clivagem Replicação
NSP1 NSP2 NSP3 NSP4

Proteínas não-
estruturais Transcrição
3’ 5’
RNA antigenômico (negativo)
Transcrição

Cap m RNA subgenômico A (n)

Tradução

Poliproteína

Clivagem

C E3 E2 E1

Proteínas estruturais

Figura 7.4. Ilustração esquemática da expressão gênica e replicação dos togavírus (vírus Sindbis).

do capsídeo e envelope. Os nucleocapsídeos se ência em cultivo celular. No entanto, os vírus de


formam no citosol, pela associação de múltiplas ambas as famílias também produzem mRNAsg
cópias da proteína do capsídeo com o genoma durante a sua replicação.
RNA. As glicoproteínas do envelope são inseri- Os coronavírus e arterivírus replicam fazen-
das em membranas de organelas celulares, e os do uso de um mecanismo similar. Nos coronaví-
vírions maturam por brotamento na membrana rus, uma série de 5 a 7 mRNAsg sobrepostos são
plasmática. produzidos pela transcrição do RNA antigenô-
A transcrição dos mRNAs (uma única espé- mico (Figura 7.1). Cada mRNAsg inicia com uma
cie, no caso dos togavírus) ocorre por iniciação região líder 5’ idêntica (com cap), o que indica um
em um sítio ou promotor interno. Uma vez sin- mecanismo mais complexo de iniciação do que o
tetizados, esses mRNAsg não são reconhecidos simples reconhecimento de um promotor inter-
como molde pela polimerase viral e apenas ser- no. Todos os mRNAsg possuem a mesma extre-
vem para a tradução nas proteínas estruturais. midade 3’ e são traduzidos em várias proteínas
Essa estratégia permite a separação temporal da estruturais.
síntese de proteínas regulatórias (iniciais) e estru- A exemplo dos outros vírus RNA de sentido
turais (tardias). A replicação desses vírus é um positivo, a replicação desse grupo de vírus ocorre
pouco mais complexa do que a dos picornavírus, em complexos replicativos associados com mem-
e a célula deve manter a sua integridade para branas intracelulares. As estruturas formadas e a
permitir o brotamento contínuo das novas par- origem das membranas envolvidas, no entanto,
tículas víricas. De fato, a redução da síntese pro- variam entre os vírus. Por exemplo, os complexos
téica celular é muito menos dramática até mesmo replicativos de vários picornavírus e flavivírus
em fases tardias da infecção. são associados com o retículo endoplasmático,
A replicação dos calicivírus e astrovírus não enquanto os togavírus utilizam também as mem-
tem sido tão caracterizada como os togavírus, branas dos endossomos e lisossomos como sítios
pois alguns desses vírus não replicam com efici- de replicação.
176 Capítulo 7

3 Vírus com genoma RNA de sentido por meio da produção de uma molécula de RNA
negativo complementar (antigenômico), que serve de mol-
de para a síntese de RNA genômico.
Os vírus com genoma RNA de sentido nega- Nos vírus com o genoma não-segmentado,
tivo apresentam uma maior diversidade do que são produzidos vários mRNAs de extensão cur-
o grupo anterior. Esses vírus possuem o genoma ta, cada um correspondendo a um único gene. À
geralmente mais extenso e codificam um número medida que os mRNAs são transcritos, ocorre a
maior de proteínas. Essa complexidade pode de- atenuação da transcrição, sendo produzida uma
ver-se às dificuldades adicionais da sua expressão quantidade maior de mensageiros dos genes loca-
gênica e replicação, o que faz com que necessitem lizados na extremidade 3’ do genoma. Esses mR-
codificar mais proteínas e com funções diversas. NAs serão traduzidos em proteínas. A produção
Os genomas dos vírus RNA de sentido ne- do RNA complementar (intermediário na repli-
gativo não são traduzidos diretamente em pro- cação do genoma) envolve a transcrição completa
teínas, pois não possuem as ORFs no sentido ge- do genoma. Para isso, a replicase ignora os sinais
nômico. Ao contrário, as ORFs estão presentes na de terminação de cada gene e prossegue transcre-
fita de RNA complementar (RNA antigenômico). vendo até a extremidade 5’ da molécula molde.
A síntese das proteínas virais, portanto, requer a Nos vírus com o genoma segmentado, cada
prévia produção de mRNAs. Estes mRNAs são segmento genômico codifica um ou ocasional-
transcritos pela transcriptase/replicase viral, mente dois produtos. Cada mRNA corresponde
usando o RNA genômico como molde. Como o aproximadamente à extensão completa do res-
RNA genômico não é traduzido diretamente – e pectivo segmento genômico. Esses mRNAs pos-
assim a polimerase não é produzida no início do suem 5’ cap e são poliadenilados na extremida-
ciclo, como no grupo anterior – esses vírus neces- de 3’. Os RNAs antigenômicos – que servirão de
sitam trazer, nos vírions, as enzimas necessárias molde para a síntese de cópias de RNA genômico
para a síntese de RNA antigenômico e mRNA. – possuem uma extensão semelhante, mas não
Os vírus RNA de sentido negativo compar- possuem cap na extremidade 5’ e nem poliA na
tilham algumas características, tais como: a) os extremidade 3’.
vírions contêm cópias da enzima replicase; b)
o RNA genômico desprovido de proteínas não 3.1 Vírus com o genoma não-segmentado
é infeccioso; c) são produzidos mRNAs indivi-
duais para cada gene, ou seja, são RNAs mono-
Os membros de quatro famílias de vírus
cistrônicos; d) os mRNAs possuem 5’cap e são
possuem genoma RNA negativo não-segmenta-
poliadenilados (existem exceções); e) o genoma
do (Tabela 7.1). As famílias Paramyxoviridae, Fi-
permanece associado com proteínas durante a
loviridae, Bornaviridae e Rhabdoviridae compõem
transcrição e replicação; f) o RNA genômico de
a ordem Mononegavirales, pelas semelhanças na
vários desses vírus forma estruturas semelhantes
estrutura e organização genômica, estratégia de
a cabos de panela (panhandles), pela associação de
expressão gênica e replicação do genoma e por
seqüências complementares presentes nas extre-
midades. semelhanças estruturais e funcionais das prote-
Neste grupo são encontrados vírus com dois ínas. Uma característica marcante da replicação
tipos de organização genômica: os vírus com o desses vírus é a grande estabilidade do complexo
genoma não-segmentado, ou seja, uma molécula ribonucleoproteína (genoma + nucleoproteína,
única de RNA; e os vírus com o genoma dividido RNP). Esse complexo nunca é desfeito durante
em vários segmentos. as diferentes etapas do ciclo replicativo, ou seja,
A estratégia de expressão gênica e replica- a transcrição e a replicação ocorrem utilizando,
ção do genoma dos vírus RNA de sentido negati- como substrato (ou molde), um RNA fortemente
vo é muito similar. Cada gene origina um mRNA recoberto por múltiplas cópias da nucleoproteína
que codifica uma proteína, ou seja, são mRNAs (N ou NP). Esses vírus apresentam também um
monocistrônicos. A replicação do genoma ocorre mecanismo interessante de regulação na trans-
Replicação dos vírus RNA 177

crição dos diferentes genes, chamado de atenu- dos na Figura 7.5. Variações na extensão do geno-
ação da transcrição, o que resulta na produção ma, no número de genes e na extensão das regiões
de quantidades de proteínas de acordo com a intergênicas (IR) são encontradas nos vírus das
necessidade do vírus. Os bornavírus apresentam diferentes famílias. Porém, todos eles possuem
alguns aspectos únicos, como a transcrição e re- um grupo principal de genes em comum e a or-
plicação nuclear, splicing alternativo dos transcri- ganização genômica é muito semelhante.
tos primários policistrônicos, uso diferencial de O genoma do VSV é formado por uma mo-
sinais de início e término de transcrição. Esses lécula de RNA linear de fita simples, com apro-
aspectos os distinguem dos paramixovírus, filo- ximadamente 11 kb. Os rabdovírus, em geral,
vírus e rabdovírus. codificam um mínimo de cinco genes, na ordem
As seguir, serão abordados os principais 3’ N – P – M – G – L 5’, e o VSV codifica outras
aspectos da expressão gênica e replicação do ví- duas pequenas proteínas (C e C’) em outra fase
rus da estomatite vesicular (VSV), um membro de leitura do gene P. Nos paramixovírus, várias
da família Rhabdoviridae. Grande parte das infor- proteínas são produzidas a partir do gene P, pela
mações se aplica também aos outros membros da utilização de diferentes códons de iniciação, tra-
ordem Mononegavirales. dução de diferentes ORFs e por um mecanismo
de edição. Neste mecanismo, são adicionadas
3.1.1 Estrutura e organização uma, duas ou três guaninas (G) em um determi-
do genoma nado ponto do mRNA, resultando em mudança
de fase de leitura a partir deste local. Próximo à
A estrutura e organização do genoma de extremidade 3’, existe uma região não-codifican-
vírus representativos das três famílias que com- te, que é transcrita em um polinucleotídeo deno-
põem a ordem Mononegavirales estão apresenta- minado líder. A seqüência líder possui 47 nt (no

A
Rhabdoviridae (VSV)
(11-15kb)

N P M G L
3’ 5’

B
Paramyxoviridae
(15-16kb)
N P/C/V M F H L
3’ 5'

C
Filoviridae
(19kb)
NP VP35 VP40 GP VP30 VP24 L
3’ 5’

Figura 7.5. Estrutura e organização do genoma de três vírus representativos das famílias que compõem a ordem
Mononegavirales. A) Rhabdoviridae (vírus da estomatite vesicular, VSV); B) Paramyxoviridae (vírus da cinomose,
CDV); C) Filoviridae (vírus Ebola). O genoma consiste de uma molécula linear de RNA de polaridade negativa,
representada pelo traço contínuo. Os blocos representam os genes, com regiões intergênicas (IRs) entre eles. N ou NP):
nucleoproteína; P: fosfoproteína (C e V, produtos secundários do gene P); M (VP40): proteína da matriz; G:
glicoproteína do envelope; F: proteína de fusão; H: proteína de ligação aos receptores, hemaglutinina; L: polimerase
viral. VP35: cofator para a transcrição e replicação; VP35: cofator para a transcrição e replicação; VP30: nucleoproteína
menor; VP24: proteína do envelope. O número de genes pode variar entre os vírus de cada família.
178 Capítulo 7

VSV), não possui cap, não é poliadenilado e não é para a transcrição, que é realizada pela replicase
traduzido em proteína. Logo após, existe um sinal viral. O complexo replicase é formado pelas pro-
para o início da transcrição do primeiro gene, que teínas L e P. A transcrição se inicia na extremi-
é seguida da adição de 5’ cap no mRNA resultan- dade 3’, a partir de onde a transcriptase sinteti-
te. Entre os genes, existem as regiões intergênicas za a seqüência líder de 47 nt. Segue-se, então, a
(IR), sendo que cada uma possui um sinal para a transcrição individual e seqüencial de cada gene,
terminação da transcrição do gene anterior, uma resultando em mRNAs individuais que possuem
pequena região interveniente e um sinal para a a estrutura cap na extremidade 5’ e são poliadeni-
iniciação da transcrição do gene subseqüente (Fi- lados na extremidade 3’. A cada região intergêni-
gura 7.6). Próximo à extremidade 5’, existe uma ca, a transcriptase faz uma pausa de aproximada-
região não-traduzida, denominada trailer. Em to- mente 1 a 2 minutos e prossegue transcrevendo o
das as etapas da replicação, o genoma permanece gene seguinte. No entanto, apenas 70 a 80% das
fortemente associado com múltiplas cópias da replicases prosseguem transcrevendo o próximo
nucleoproteína N, formando o complexo ribonu- gene. As demais se dissociam do genoma e ces-
cleoproteína (RNP). sam a transcrição. Esse mecanismo de transcrição
seqüencial, acompanhado de redução do núme-
3.1.2 Transcrição ro de transcriptases que prosseguem a síntese de
RNA após cada IR, gera um gradiente de transcri-
Após a penetração e perda do envelope, o ção que é importante para a regulação da quanti-
nucleocapsídeo (RNA + proteína) serve de molde dade de mRNA produzido de cada gene. Assim,

Região intergênica – IR
Terminação Iniciação
AUACUUUUUUUGAUUGUC

UAUGA AACAG
A G
AA m7
A

Líder = 47nt IR IR IR IR
N = 1333 P = 821 M = 838 G = 1672 L = 6380
3’ 5’

AA AA AA AA AA
AA AA AA AA AA
A A A
L
A A

AA
AA
AA
AA
AA
AA
AA
AA mRNA
A A A
G A

AA
AA
AA
AA
AA
AA
mRNA
A A
M A

AA
AA
AA
A
mRNA
A
P AA
AA
AA
mRNA
N
A

mRNA

Figura 7.6. Organização do genoma e estratégia de transcrição do vírus da estomatite vesicular (VSV) da família
Rhabdoviridae. O genoma é representado pela linha contínua (as extremidades 3' e 5' e a seqüência líder estão
indicados). Os blocos representam os genes, com o número respectivo de nucleotídeos. Acima do genoma está
apresentada a seqüência comum das regiões intergênicas (IR), com os sinais para a terminação e início da transcrição
dos genes subseqüentes. Abaixo do genoma, estão representados os mRNAs produzidos pela transcrição seqüencial
dos genes. O número relativo de mRNAs decresce à medida que a transcrição se distancia do seu início. N)
nucleoproteína; P) fosfoproteína; M) proteína da matriz; G) glicoproteína do envelope; L) polimerase.
Replicação dos vírus RNA 179

cada gene localizado na direção 5’ do genoma é etapas iniciais do ciclo. Múltiplas cópias da prote-
transcrito por um número progressivamente me- ína N se conjugariam fortemente com o transcri-
nor de transcriptases, resultando em quantidades to líder, provocando um sinal de antiterminação,
decrescentes de mRNAs. Esse mecanismo é de- que interferiria com a capacidade da replicase de
nominado atenuação da transcrição (transcription reconhecer os sinais de terminação presentes no
attenuation). (Figura 7.6). final de cada gene, resultando na síntese de uma
molécula de RNA complementar com a extensão
do genoma (Figura 7.7). Outro modelo para a
3.1.3 Replicação do genoma troca do modo de transcrição descontínua para
a replicação sugere que dois complexos enzimá-
A replicação do genoma inicia em um de- ticos diferentes seriam responsáveis por cada um
terminado momento do ciclo, após a síntese de desses mecanismos. A fosforilação da proteína P,
quantidade suficiente de proteínas virais, prin- que faz parte do complexo, converteria o com-
cipalmente de nucleoproteína. A replicação do plexo transcriptase (que realiza a transcrição des-
genoma desses vírus ocorre em duas etapas e contínua) em complexo replicase (que realiza a
envolve a síntese de uma molécula de RNA com- transcrição contínua).
plementar com a extensão total do genoma. A O RNA antigenômico serve de molde para a
replicase não interrompe a transcrição a cada IR, síntese das cópias genômicas. Esse processo é fa-
ignorando os sinais de terminação da transcrição cilitado pela inexistência de sinais de terminação
até a extremidade 5’. Os mecanismos responsá- da transcrição neste sentido do RNA. Tanto a sín-
veis pela transição entre transcrição descontínua tese de RNA antigenômico como a de RNA ge-
(síntese de mRNAs) e transcrição contínua (sínte- nômico são seguidas pela imediata encapsidação
se de RNA complementar) não são completamen- dos RNAs recém-produzidos pela proteína N. As
te conhecidos, mas parecem ser dependentes do etapas de transcrição e replicação do genoma do
acúmulo da proteína N (e provavelmente a P) nas VSV estão ilustradas na Figura 7.7.

N P M G L
mRNA mRNA mRNA mRNA mRNA
AA AA AA AA
AA AA
AA AA AA AA
A A A A
A

RNA pol
Transcrição (1)
RNA genômico (-)
3’ 5’

Replicação (2) RNA pol


5’
RNA antigenômico (+)
5’ 3’

Replicação (3) 5’

RNA genômico (-)


3’ 5’

Figura 7.7. Etapas da transcrição e replicação do genoma do vírus da estomatite vesicular (VSV). A linha contínua
representa a molécula de RNA genômico, recoberta por múltiplas cópias da nucleoproteína. No início do ciclo
replicativo, a transcrição descontínua resulta em mRNAs individuais de cada gene (1). Em uma determinada etapa,
com o acúmulo da nucleoproteína (N), o complexo replicase realiza a síntese da molécula de RNA complementar (2),
que serve de molde para a síntese de moléculas de RNA genômico (3). Note que tanto o RNA genômico (-) quanto o
RNA antigenômico ou complementar (+) permanecem recobertos por moléculas da proteína N (ou NP) durante os
processos de transcrição e replicação. As etapas ilustradas acima são comuns aos vírus da ordem Mononegavirales.
180 Capítulo 7

3.2 Vírus com o genoma segmentado RNA, juntamente com os bornavírus. A descrição
a seguir abordará o vírus da influenza A.
O genoma do vírus da influenza A consti-
Vírus de três famílias possuem este tipo tui-se por oito segmentos de RNA de polaridade
de genoma: Orthomyxoviridae (7 ou 8 segmen- negativa, numerados de 1 a 8. Os segmentos 1 a 6
tos); Bunyaviridae (três segmentos) e Arenaviridae codificam uma proteína cada; os segmentos 7 e 8
(dois segmentos). Os ortomixovírus e a maioria codificam duas proteínas cada. Todos os segmen-
dos buniavírus possuem o genoma inteiramente tos genômicos apresentam a mesma organização
de sentido negativo, ou seja, as ORFs estão pre- geral: possuem um gene (ou mais) na região cen-
sentes no RNA complementar. O genoma dos tral, flanqueada por seqüências altamente con-
arenavírus e de alguns buniavírus possui senti- servadas nas extremidades 3’ (12 nt) e 5’ (13 nt)
do ambissense, ou seja, contém algumas ORFs no (Figura 7.8). As regiões terminais possuem sinais
sentido do RNA genômico e outras no sentido do para o início da transcrição e replicação. Cada seg-
RNA complementar. O genoma não é traduzido mento genômico encontra-se recoberto (encapsi-
diretamente, e esses vírus necessitam trazer a sua dado) por múltiplas cópias da proteína NP e está
replicase nos vírions. Por isso são classificados associado com algumas proteínas que formam o
como vírus RNA de sentido negativo. complexo polimerase-replicase. Esse complexo é
Os ortomixovírus possuem o genoma seg- formado por três proteínas principais: PB1 (poli-
mentado (influenza A e B = oito segmentos; in- merase básica 1); PB2 (polimerase básica 2) e PA
fluenza C = 7 segmentos) e replicam o genoma (polimerase ácida). O complexo RNA + proteí-
no núcleo da célula hospedeira. A replicação no nas associadas se denomina ribonucleoproteína
núcleo faz desses vírus exceções entre os vírus (RNP) e permanece estável durante a replicação.

Tradução
B. mRNA

Cap-5’---------GAGCGAAAGCAGG AAA(n)-3’
8-13nt
15-22nt

Transcrição (1)

8-13nt
Cap-5’---------GA
3’-UCGCUUUCGUCC GGAACAAAGAUGA-5’

A. RNA genômico (-)


2 Replicação 3

5’-AGCGAAAGCAGG CCUUGUUUCUACU-3’

C. RNA antigenômico (+)

Figura 7.8. Estrutura dos RNAs produzidos durante a replicação do vírus da influenza. A) RNA genômico (vRNA); B)
mRNA; C) RNA antigenômico. A transcrição para a síntese de mRNA utiliza nucleotídeos com cap subtraídos dos
mRNA celulares (1). Os mRNA apresentam uma extensão de 8-13 nt (com cap) em relação ao vRNA e os 15-22
nucleotídeos terminais são substituídos por uma cauda poliA. A primeira etapa da replicação do genoma envolve a
síntese do RNA de sentido antigenômico que é exatamente complementar ao vRNA (2). A segunda etapa da
replicação envolve a síntese do vRNA ou genômico a partir do RNA antigenômico (3). Note que os mRNAs diferem
dos RNA antigenômicos, pela presença de 8-13 nt adicionais com cap e cauda poliA.
Replicação dos vírus RNA 181

Cada segmento genômico é transcrito indi- genômico (sentido positivo) e outras estão pre-
vidualmente pelo complexo transcriptase. O pro- sentes no RNA complementar (sentido negativo).
cesso se inicia pela subtração de seqüências de 8 As ORFs que estão no sentido do genoma ocu-
a 13 nt, com cap na extremidade 5’, de mRNAs pam a metade 3’ do genoma e não são traduzidas
celulares. Essa atividade é atribuída à PB1, ou diretamente. Como o genoma não é traduzido
seja, essa enzima literalmente furta os segmentos diretamente pelos ribossomos, esses vírus neces-
iniciais de mRNAs celulares. Esses nucleotídeos sitam trazer, nos vírions, a sua enzima transcrip-
servem de primer para o início da transcrição, tase/replicase e, por isso, são classificados junta-
além de possuírem a estrutura cap, que é neces- mente com os vírus RNA de sentido negativo.
sária para a tradução dos mRNA virais. A trans- Os arenavírus possuem dois segmentos de
crição termina 15 a 22 nt antes da extremidade RNA como genoma: um segmento grande (large
5’ de cada segmento, e é seguida pela adição de = L) e outro segmento pequeno (small = S). Cada
uma cauda de poliA. Os mRNAs virais não são, um desses segmentos contém dois genes (Figura
portanto, exatamente complementares aos RNAs 7.9A). No segmento grande, o gene L possui pola-
genômicos: possuem uma extensão de 8 a 13 nt ridade negativa, ou seja, a sua ORF está presente
em sua região 5’ e não possuem os 15-22 nt termi- no RNA complementar. Para que a proteína seja
nais, sendo substituídos por uma cauda poliA. expressa, esse gene é transcrito pela polimerase
A replicação dos RNA genômicos (vRNA) viral, originando um mRNA, que é, então, tradu-
ocorre em duas etapas: síntese do RNA antige- zido (Figura 7.9B). Por outro lado, o gene Z possui
nômico (complementar) e síntese de RNA genô- polaridade positiva (a ORF está presente no RNA
mico (vRNA), utilizando o RNA antigenômico genômico do segmento L). No entanto, este gene
como molde. A síntese do RNA antigenômico não é expresso pela tradução direta do genoma.
não envolve a subtração de nucleotídeos com A sua expressão somente ocorre após a síntese do
cap de mRNA celulares; inicia-se exatamente na RNA complementar, a partir do qual o mRNA é,
extremidade 3’ do genoma e termina exatamen- então, produzido (Figura 7.9B). A expressão deste
te na extremidade 5’. Dessa forma, o RNA anti- gene segue o mesmo padrão dos genes expressos
genômico é exatamente complementar ao RNA através de mRNA subgenômicos, característicos
genômico. A transição entre a transcrição inicia- de algumas famílias de vírus RNA. No segmento
da por primer + cap para a transcrição indepen- S, o gene NP possui polaridade negativa e a sua
dente de primer + cap parece envolver complexos expressão depende da síntese de mRNA. O gene
transcriptase/replicase diferentes. O acúmulo da GP possui polaridade positiva e a sua expressão
proteína NP e alterações específicas na composi- segue o mesmo padrão do gene Z do segmento L:
ção do complexo polimerase seriam responsáveis síntese do RNA complementar e transcrição do
pela transição entre transcrição e replicação. A Fi- seu mRNA. A estratégia ambissense de codifica-
gura 7.8 apresenta a estrutura dos vRNA, mRNA ção de proteínas é encontrada ainda em vírus de
e RNAs antigenômicos produzidos durante a re- alguns gêneros da família Bunyaviridae (Tospoví-
plicação dos vírus da influenza A. rus e Phlebovírus).
A replicação do genoma segue o padrão dos
3.3 Vírus com o genoma ambissense outros vírus RNA e ocorre por intermédio de um
RNA complementar de sentido antigenômico. A
Os arenavírus e alguns buniavírus possuem diferença é que o RNA complementar serve de
genoma ambissense, ou seja, alguns genes são co- molde para a síntese do RNA genômico e tam-
dificados no sentido do RNA complementar, en- bém para a síntese do mRNA de um dos genes.
quanto outros são codificados no sentido do ge- Em resumo, os genomas ambissense possuem
noma, após a síntese de mRNA, a partir da cópia genes que são expressos de maneira semelhante
complementar de RNA. Em outras palavras, as aos genomas RNA de sentido negativo (as ORFs
ORFs de alguns genes estão presentes no RNA estão presentes no RNA complementar); e genes
182 Capítulo 7

que são expressos como nos vírus RNA de senti- 4 Vírus com RNA de fita dupla
do positivo (as ORFs estão presentes no sentido
genômico, embora não sejam traduzidas direta-
mente). São conhecidas atualmente seis famílias de
vírus que possuem RNA de fita dupla (ds RNA)
como genoma, e apenas duas abrigam vírus que
A infectam vertebrados (Reoviridae e Birnaviridae);
L Z destas, apenas a primeira possui patógenos de
3' - - 5' mamíferos. A família Reoviridae é a maior e mais
Segmento grande (L)
diversa dessas famílias, contendo importantes
patógenos animais. O genoma desses vírus é
NP GP composto por 10, 11 ou 12 segmentos de dsRNA,
3' - - 5'
dependendo do gênero. A maioria dos segmentos
Segmento pequeno (S) codifica apenas uma proteína, mas alguns podem
codificar duas. Nos segmentos duplos de RNA,
B Proteína Z apenas uma das fitas contém as ORFs codifican-
tes de proteínas. O complexo replicase é trazido
Tradução nos vírions, associado aos segmentos, e a síntese
mRNA dos mRNA virais ocorre no interior dos capsíde-
3'- -5' os semi-íntegros.

Transcrição (3)
L
4.1 Estrutura e organização do genoma
5' - - 3'
RNA complementar Z Os vírus do gênero Orthoreovirus possuem
Replicação (2) os protótipos da família Reoviridae, os reovírus
não-fusogênicos de mamíferos. O genoma desses
L Z
3' - - 5' vírus é composto por dez segmentos de dsRNA.
RNA genômico Os segmentos genômicos são denominados de
Transcrição (1) acordo com a sua migração em géis de poliacri-
mRNA lamida (SDS-PAGE): L = grandes (L1, L2, L3);
5' - - 3' M = médios (M1, M2 e M3) e S = pequenos (S1,
Tradução S2, S3 e S4). Somente os segmentos S1 e M3 ori-
Proteína L
ginam duas proteínas, o restante codifica apenas
uma. Os dez segmentos dos orthoreovírus são
lineares e possuem as extremidades livres. Em-
bora se constituam em segmentos separados,
Figura 7.9. Estrutura e expressão do genoma ambissense algumas evidências indicam que os segmentos
dos arenavírus. A) Organização dos segmentos genômicos encontram-se associados através de
genômicos L (grande) e S (pequeno) com os respectivos
genes; B) Estratégia de expressão gênica do segmento suas extremidades nas partículas víricas. Cada
grande. O gene L possui sentido negativo e a sua segmento de polaridade positiva possui uma es-
expressão depende inicialmente da transcrição e síntese trutura cap (7-M-guanina) na extremidade 5’, que
de mRNA (1). O gene Z possui sentido positivo, mas não
é expresso pela tradução direta do genoma. A sua provavelmente é adicionado por enzimas virais
expressão ocorre somente após a síntese do RNA no interior dos capsídeos. As extremidades 5’ dos
complementar (2). Este serve de molde para a transcrição segmentos de polaridade negativa possuem um
e produção do mRNA correspondente (3). Os genes NP e
GP do segmento S seguem os mesmos padrões de nucleotídeo difosfato. A cadeia codificante (e os
expressão dos genes L e Z, respectivamente. mRNAs) possuem uma região não-traduzida de
Replicação dos vírus RNA 183

Gene (nt) Proteína (aa)


Cadeia (+) L1=3854
5' 3' λ3 (1267)
3' 5' pp
Cadeia (-)
L2=3916
λ2 (1269)

L3=3901
λ1 (1275)

M1=2304
μ2 (736)

M2=2203
μ1 (708)

M3=2241
μNS (721) + μNSC (681)

S1=1416
δ1 (455) + δ1s (120)

S2=1331
δ2 (418)

S3=1198
δNS (366)

S4=1196
δ3 (365)

Figura 7.10. Organização do genoma dos vírus do gênero Orthoreovirus da família Reoviridae. O genoma é composto
por 10 segmentos de RNA de fita dupla, sendo que apenas uma das cadeias é codificante (sentido positivo). No
segmento L1, são mostradas as duas cadeias, os demais mostram apenas a cadeia codificante. Os diferentes segmentos
apresentam uma organização semelhante, possuindo uma ORF central flanqueada por pequenas regiões não-
traduzidas nas extremidades 5' e 3'. A nomenclatura e número de aminoácidos de cada proteína estão apresentados à
direita. Note que oito segmentos codificam apenas uma proteína cada; os segmentos M3 e S1 codificam dois produtos
cada.

12 a 32 nt próxima à extremidade 5’ e outra re- dividuais são exatamente complementares aos


gião não-traduzida de 35 a 73 nt na extremidade RNA moldes: possuem 5’ cap e não são poliade-
3’, intercaladas por ORFs que possuem entre 365 nilados. Por isso servem tanto para a tradução
e 1.289 nt (Figura 7.10). Essas regiões não-codifi- como de molde para a síntese do RNA comple-
cantes possuem sítios regulatórios da transcrição mentar (Figura 7.11). Os mRNAs tardios, produ-
e tradução. zidos após a replicação do genoma, constituem
uma exceção por não receberem cap na extremi-
4.2 Transcrição dade 5’. Os mRNAs são rapidamente exportados
dos capsídeos e ganham acesso ao citoplasma
A transcrição inicial ocorre ainda no interior para serem traduzidos. Em fases adiantadas do
dos capsídeos, logo após a penetração dos vírions ciclo, já no interior de capsídeos recém-formados,
no citoplasma da célula hospedeira, e apenas as ocorre um novo ciclo de transcrição com a produ-
cadeias negativas são transcritas. Os mRNAs in- ção de mais mRNA.
184 Capítulo 7

4.3 Replicação do genoma diretamente. A replicação também não ocorre


por meio de um intermediário RNA, como nos
outros vírus RNA. Ao contrário, a replicação do
A segunda etapa da replicação, a síntese das
genoma ocorre por meio de um intermediário
cadeias negativas, ocorre já em capsídeos pré-for-
DNA. Parte das etapas de replicação do genoma
mados no citoplasma da célula hospedeira, em
ocorre no citoplasma e parte ocorre no núcleo da
um local chamado de viroplasma, que constitui
célula hospedeira. Resumindo, as principais pe-
uma fábrica de vírus dentro da célula hospedei-
culiaridades do genoma e da replicação desses
ra. Para que isso ocorra, as proteínas que formam
vírus são: a) o seu genoma é diplóide, ou seja, é
os capsídeos já são produzidas em etapas iniciais composto por duas moléculas idênticas de RNA;
do ciclo replicativo. Cada segmento de RNA (+) b) o RNA genômico possui polaridade positiva,
serve de molde para a síntese da cadeia comple- porém não é traduzido em proteínas; c) a repli-
mentar (-), que permanece pareada com o mol- cação do genoma ocorre por meio da síntese de
de, restabelecendo, assim, a molécula genômica um intermediário DNA (provírus), que é incor-
dsRNA. A síntese da cadeia negativa se inicia na
extremidade 3’ da molécula molde e prossegue
até a extremidade 5’. Por isso, as cadeias positi-
Genoma
vas e negativas são exatamente complementares
.gag pol env
(Figura 7.11). Cap R U5 U3 R AAAA RNA

Transcrição reversa (1)


Genoma (ds) Provírus
RNA (+)
.gag pol env
5' 3' U3 R U5 U3 R U5 DNA
3' 5'
RNA (-)
Transcrição (1) Integração (2)
Provírus Integrado
mRNA (+) DNA
5' 3' DNA .gag pol env DNA
celular U3 R U5 U3 R U5 celular

Tradução (2) Replicação (3)


Transcrição (3)
RNA (+) Genoma
5' 3'
3' 5' .gag pol env
Proteína RNA (-) Cap R U5 U3 R AAAA RNA
Genoma (ds)

Figura 7.12. Ilustração da estrutura e etapas da replicação


Figura 7.11. Etapas da expressão gênica e replicação dos do genoma dos retrovírus. O genoma é constituído por
vírus RNA de fita dupla. A fita negativa do genoma é
uma molécula de RNA de fita simples de 7 a 10 kb com
transcrita, originando RNAs de sentido positivo
exatamente complementares (1). Estes RNAs podem ser 5'cap e poliA. Próximo às extremidades, o genoma
traduzidos em proteínas (2) e também servem de molde possui duas regiões repetidas R (5' e 3') e duas regiões
para a síntese da molécula de sentido negativo (3), únicas (U5 e U3). Entre essas regiões, localizam-se as
restabelecendo a molécula genômica de dsRNA. seqüências codificantes: genes gag, pol e env. A primeira
etapa da replicação é síntese do provírus DNA
(molécula de DNA de fita dupla correspondente ao
5 Retrovírus genoma) pela enzima viral transcriptase reversa (1). O
provírus contém as regiões U3 e U5 duplicadas nas
Os retrovírus apresentam uma estratégia extremidades opostas e é integrado aos cromossomos
peculiar de replicação do genoma que difere dos celulares pela ação da enzima viral integrase (2). Após a
demais vírus RNA (Figura 7.12). Embora esses integração, o provírus é transcrito pela RNA polimerase
II celular (3) originando mRNAs idênticos ao genoma.
vírus codifiquem as suas proteínas no sentido do
Estes mRNAs servem para a tradução em proteínas e
genoma (por isso são considerados vírus RNA também constituem o RNA genômico para serem
de sentido positivo), o genoma não é traduzido encapsidados na progênie viral.
Replicação dos vírus RNA 185

porado aos cromossomos celulares; d) o provírus CAI, Z. et al. Robust production of infectious hepatitis C virus
(HCV) from stably HCV cDNA-transfected human hepatoma
integrado é transcrito, originando mRNAs para a
cells. Journal of Virology, v.79, p.13963-13973, 2005.
síntese protéica e para serem incorporados como
genoma na progênie viral; e) as etapas iniciais da CHANDRAN, K. et al. Complete in vitro assembly of the reovirus
replicação do genoma ocorrem no citoplasma e outer capsid produces highly infectious particles suitable for
genetic studies of the receptor-binding protein. Journal of
são mediadas por enzimas virais (transcritase re-
Virology, v.75, p.5335-5342, 2001.
versa); f) as etapas seguintes ocorrem no núcleo
e são mediadas por enzimas virais (integração = CHANOCK, R.M.; MURPHY, B.R.; COLLINS, P.L. Parainfluenza
viruses. In: KNIPE, D.M.; HOWLEY, P.M. (eds). Fields virology.
integrase, IN) e celulares (transcrição = RNA pol
4.ed. Philadelphia, PA: Lippincott Williams & Wilkins, 2001.
II celular); g) o genoma dos retrovírus é o único Cap.42, p.1341-1379.
genoma viral sintetizado exclusivamente por en-
zimas e fatores celulares. Por isso, a sua estrutu- CLYDE, K.; HARRIS, E. RNA secondary structure in the
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3’. As principais etapas da replicação do genoma
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PATOGENIA DAS INFECÇÕES VÍRICAS
Eduardo Furtado Flores1 8
1 Introdução 191

1.1 Conceitos básicos 191

2 Patologia em nível celular 193

2.1 Interações dos vírus com as células 193


2.2 Efeitos da replicação viral nas células hospedeiras 196
2.3 Apoptose por vírus 196

3 Patogenia em nível de hospedeiro 197

3.1 Penetração e replicação primária 197


3.1.1 Pele e mucosas superficiais 197
3.1.2 Trato respiratório 199
3.1.3 Orofaringe e trato digestivo 200
3.1.4 Mucosa urogenital 201

3.2 Infecções localizadas versus infecções disseminadas (ou sistêmicas) 202


3.2.1 Disseminação local 202
3.2.2 Disseminação hematógena 202
3.2.3.Disseminação nervosa 207

3.3 Localização das infecções 209


3.3.1 Infecções em órgãos e sistemas específicos 209
3.3.2 Infecções da pele e tegumento 211
3.3.3 Infecções do trato respiratório 212
3.3.4 Infecções do trato digestivo 213
3.3.5 Infecções do sistema nervoso central 215
3.3.6 Infecções do sistema linforreticular e hematopoiético 217
3.3.7 Infecção fetal 218

4 Padrões principais de infecção 220

4.1 Infecções agudas 221

1
Colaboraram em seções específicas: Janice Ciacci Zanella (Apoptose por vírus); Luiz Carlos Kreutz
(Padrões principais de infecção) e Mariana Sá e Silva (Imunopatologia em infecções víricas).
4.2 Infecções persistentes (ou crônicas) 212
4.2.1 Infecções latentes 222
4.2.2 Infecções persistentes ou crônicas 222
4.2.3 Infecções persistentes temporárias 223

4.3 Mecanismos envolvidos na manutenção das infecções persistentes 225


4.3.1 Restrição do efeito citopatogênico 225
4.3.2 Infecção de células semipermissivas 225
4.3.3 Infecção de um pequeno número de células 226
4.3.4 Manutenção do genoma viral nas células hospedeiras 226
4.3.5 Evasão da resposta imune do hospedeiro 226

5 Oncogênese por vírus 226

5.1 Oncogênese por retrovírus 226


5.2 Pequenos vírus DNA tumorigênicos 227

6 Imunopatologia em infecções víricas 228

6.1 Imunopatologia mediada por imunocomplexos 229


6.2 Imunopatologia mediada por linfócitos T citotóxicos 230
6.3 Imunopatologia por indução de auto-imunidade 230

7 Imunossupressão por vírus 230

7.1 Replicação viral em células envolvidas na resposta imunológica 231


7.2 Imunossupressão associada com a ativação do sistema imune 232
7.3 Produtos de monócitos e linfócitos ativados 232
7.4 Proteínas virais 232

8 Bibliografia consultada 234


1 Introdução ção e até morte celular. Outras vezes, produtos da
replicação viral podem ser tóxicos para a célula
O termo patogenia – ou patogênese –, apli- hospedeira. Essas alterações estão freqüentemen-
cado às infecções víricas, refere-se ao conjunto te envolvidas na origem de processos patológicos
de mecanismos pelos quais os vírus produzem observados no organismo. Uma infecção pode re-
doença em seus hospedeiros (pato = doença, gê- sultar em absoluta ausência de efeitos deletérios
nese = origem, produção). A definição de doen- sobre as células e, conseqüentemente, na ausên-
ça como sendo qualquer manifestação resultante cia de manifestações clínicas; ou pode resultar em
de alterações da fisiologia do organismo abrange efeitos celulares graves, acompanhados de sinais
um leque muito amplo de condições. Manifesta- clínicos severos e morte do hospedeiro.
ções patológicas incluem desde aumentos leves No hospedeiro, a complexidade de intera-
da temperatura corporal, alterações de ânimo e ções que pode – ou não – resultar em doença é
apetite, até condições severas que, eventualmen- muito maior, e é ainda acrescida da participação
te, resultam na morte do hospedeiro. Na maioria dos componentes celulares e humorais da res-
das doenças, a patogenia é multifatorial, resul- posta imunológica e de outros sistemas encar-
tante da alteração de fatores endógenos ou exó- regados de manter a homeostasia e integridade
genos, raramente determinadas por um fator úni- do organismo. Ao contrário do que se imagina, a
co. Com as infecções víricas não é diferente, pois ocorrência de doença clínica em infecções víricas
as conseqüências dependem das interações entre é um evento pouco freqüente, considerando-se a
inúmeros fatores do agente e do hospedeiro. totalidade das infecções. Ou seja, a maioria das
Grande parte dos sinais clínicos observados infecções por vírus não resulta em alterações or-
nas doenças víricas é conseqüência da resposta gânicas que se manifestem com sinais perceptí-
do hospedeiro à injúria celular e tecidual. Por sua veis clinicamente. A ocorrência ou não de doença
vez, essa injúria pode resultar de efeitos diretos em uma determinada infecção vírica depende da
ou indiretos da replicação viral ou pode, ainda, interação entre inúmeros fatores do agente e do
ser conseqüência da resposta imune do hospe- hospedeiro, na qual os mecanismos imunológi-
deiro contra as células infectadas. De fato, a pa- cos, destinados a manter a integridade e funcio-
togenia de várias doenças víricas está mais inti- nalidade do organismo, desempenham um papel
mamente ligada aos mecanismos imunológicos fundamental. A Figura 8.1 ilustra esquematica-
do hospedeiro do que às conseqüências diretas mente a relação entre infecção e doença em nível
da replicação viral nos tecidos. Em resumo, a pa- celular e de hospedeiro, com as conseqüências
togenia das infecções víricas é determinada pela derivadas da replicação nos diferentes níveis.
combinação entre os efeitos diretos e indiretos da
replicação viral e as respostas do hospedeiro à in- 1.1 Conceitos básicos
fecção.
Os mecanismos pelos quais os vírus pro- O termo patogenicidade se refere à capaci-
duzem doenças em seus hospedeiros podem ser dade de um determinado agente produzir do-
examinados em diferentes níveis. As células são ença no hospedeiro. Vírus altamente patogêni-
as unidades fundamentais do organismo, nas cos são aqueles capazes de produzir doença em
quais os vírus se multiplicam. Por isso, as células uma grande parcela dos hospedeiros infectados.
se constituem nos locais de origem dos eventos Como a patogenia das infecções depende tam-
ligados à infecção vírica que podem resultar em bém das reações do organismo, a patogenicidade
doença. A replicação dos vírus, muitas vezes, in- de um vírus é modulada por suas interações com
terfere com mecanismos fisiológicos essenciais o hospedeiro. O termo virulência, muitas vezes
da célula hospedeira, alterando as suas funções utilizado como sinônimo de patogenicidade, se
em benefício da replicação viral. A alteração de refere ao nível de severidade da doença causa-
processos celulares envolvidos na biossíntese de da por um agente. Os vírus altamente virulentos
macromoléculas e na manutenção da homeostase causam doença grave; enquanto vírus avirulen-
celular, por exemplo, podem resultar em disfun- tos ou pouco virulentos (atenuados) não causam
192 Capítulo 8

PERCEPTÍVEIS VISUALMENTE

Efeito em nível celular Efeito no hospedeiro

DOENÇA CLÍNICA
Lise celular Morte do hospedeiro

Doença clássica e severa


Disfunção celular,
efeito citopático ou
transformação celular
Doença leve ou moderada

INFECÇÃO SUBCLÍNICA
Infecção sem sinais
IMPERCEPTÍVEIS

Replicação viral sem


VISUALMENTE

alterações celulares visíveis, clínicos (assintomática)


ou danos teciduais restritos

Exposição sem Exposição sem infecção


infecção

Conceito iceberg das infecções

Figura 8.1. O conceito iceberg das infecções víricas. Note que a maioria das infecções víricas não resulta em efeitos
perceptíveis em nível de hospedeiro. As manifestações clínicas, quando ocorrem, constituem-se em reflexos da
disfunção e patologia em nível celular e tecidual.

doença, ou causam doença leve, respectivamen- e/ou hospedeiro. Muitos genes virais podem se
te. A virulência de um vírus pode ser medida de enquadrar em mais de uma classe, afetando a vi-
várias formas, incluindo o percentual de animais rulência de mais de uma forma.
que adoece ou morre após inoculação experimen- A identificação dos genes envolvidos na de-
tal, grau de severidade dos sinais clínicos, nível e terminação da virulência dos vírus de importân-
intensidade de alterações histológicas, entre ou- cia em saúde humana e animal é um dos maiores
tras. desafios da Virologia, pois pode permitir a mani-
A virulência dos vírus é determinada gene- pulação genética desses agentes com fins vacinais
ticamente e pode variar entre isolados de uma e/ou terapêuticos. No entanto, essa nem sempre
mesma espécie viral. No entanto, fatores do hos- é uma tarefa fácil, pela complexidade das intera-
pedeiro podem interferir com e modular a viru- ções vírus-célula, falta de sistemas apropriados
lência desses agentes. Embora em alguns vírus a ou modelos animais adequados e pela dificulda-
virulência possa ser mapeada em um ou poucos de de se estudar virulência em cultivos celulares.
genes, para a maioria dos vírus essa é uma carac- O termo susceptibilidade se refere às condi-
terística multifatorial. Em geral, os genes virais ções oferecidas pelo hospedeiro para a ocorrência
envolvidos na virulência podem ser divididos em da infecção e doença. Por outro lado, resistência é
quatro classes: a) genes cujos produtos afetam a a oposição oferecida pelo hospedeiro à instalação
capacidade replicativa do vírus; b) produtos gê- da infecção. A susceptibilidade e resistência de
nicos que influenciam a capacidade do vírus se um hospedeiro a um vírus são determinadas ge-
disseminar no hospedeiro; c) produtos virais que neticamente e podem variar entre indivíduos de
se contrapõem à resposta imunológica do hospe- uma mesma espécie, de acordo com fatores como:
deiro e d) produtos virais tóxicos para a célula raça, idade, sexo, condição corporal, estado fisio-
Patogenia das infecções víricas 193

lógico etc. A resistência à infecção pode ser de- nes virais na célula hospedeira ou por alterações
vida a mecanismos naturais (resistência natural nas funções de genes celulares encarregados do
ou inata) ou adquiridos (resistência adquirida). O controle do ciclo celular.
termo imunidade é muito utilizado para designar
a resistência, principalmente a resistência adqui- 2.1 Interações dos vírus com as células
rida. O termo refratariedade se refere a um grau de
resistência absoluta a um determinado agente, e A maioria das alterações da fisiologia celu-
é uma característica da espécie animal, e não do lar resultantes da replicação viral se deve a efei-
indivíduo. tos secundários das interações entre os produtos
O tropismo é a predileção de um vírus por virais e componentes celulares; interações estas
determinadas células ou tecidos e pode ser de- que são necessárias para a multiplicação dos ví-
terminado por uma variedade de fatores celula- rus. Os efeitos tóxicos específicos de alguns pro-
res que são necessários para a replicação viral. O dutos virais e o acúmulo excessivo de proteínas
principal fator determinante do tropismo e que e ácidos nucléicos virais também podem levar à
possui influência direta no padrão de distribui- injúria celular.
ção e localização das infecções é a presença de As interações que resultam em alteração na
receptores específicos para o vírus. Maiores de- fisiologia celular podem ocorrer em qualquer eta-
talhes sobre os mecanismos envolvidos com o pa do ciclo replicativo. A penetração dos adeno-
tropismo celular dos vírus serão abordados ao vírus em células de cultivo é acompanhada por
longo do texto. despreendimento das células da superfície de
contato. Esse evento deve-se à ligação da proteí-
2 Patologia em nível celular na penton dos vírions às moléculas de integrinas
da membrana das células. Essa ligação altera as
A compreensão da patogenia das doenças interações das integrinas com outras proteínas da
víricas depende do conhecimento dos mecanis- membrana celular, necessárias para a aderência
mos envolvidos em diferentes níveis. Os vírus das células à superfície do frasco. A proteína M2
necessitam das macromoléculas e de processos dos vírus da influenza produz canais iônicos na
biossintéticos da célula hospedeira para se mul- membrana dos endossomos durante o processo
tiplicar. As interações entre o vírus e os compo- de internalização do vírus, através dos quais pró-
nentes celulares são complexas e, muitas vezes, tons H+ penetram para o interior das vesículas
resultam em alterações da fisiologia celular, po- endossômicas, acidificando o pH e facilitando o
dendo levar à injúria e até mesmo à morte da processo de fusão/penetração e desnudamento
célula. As patologias celulares associadas com a do nucleocapsídeo. No entanto, as possíveis con-
replicação viral se constituem em um dos princi- seqüências desse evento, para a fisiologia celular,
pais mecanismos de produção das doenças. Em são desconhecidas.
nível celular, as infecções víricas podem resul- Alguns vírus interferem com os mecanis-
tar em uma variedade de condições, a saber: a) mos de transcrição, processamento (splicing) e
infecção não-produtiva, com bloqueio em uma transporte de RNA mensageiros (mRNA) celula-
das etapas intracelulares da replicação, seguida res, estratégias que visam a favorecer a tradução
ou não de injúria e morte celular; b) estabeleci- dos mRNA virais. Os adenovírus e herpesvírus
mento de infecção latente, com limitada expres- inibem a maturação e a exportação de mRNA ce-
são gênica viral e persistência do genoma viral lulares para o citoplasma; os vírus da influenza
na célula hospedeira; c) infecção produtiva, com provocam a clivagem de mRNA celulares para
produção de progênie viral infecciosa, acompa- utilizar a extremidade 5’ com cap para os seus
nhada de patologia ou morte celular; d) infecção mRNA. Produtos dos vírus da influenza, her-
produtiva persistente, em que a célula sobrevive pesvírus e poxvírus promovem a degradação de
e segue produzindo vírus em níveis baixos por mRNA celulares (Tabela 8.1).
longos períodos e, até mesmo, indefinidamente; Outros vírus alteram a especificidade ou
f) oncogênese, seja pela incorporação de oncoge- subvertem a maquinaria celular de tradução
194 Capítulo 8

Tabela 8.1. Proteínas virais responsáveis por efeitos específicos sobre mecanismos e estruturas das células
hospedeiras

Vírus Proteína(s) Efeito Alvo


pro
2A Inibição da tradução cap-dependente elF-4G

2A, 3A Inibição do tráfego protéico RER-Golgi Desconhecido

Poliovírus Proliferação de vesículas


2B, 2C Desconhecido
membranosas

Desconhecida Alteração do mecanismo da MAP4 MAP4

3C Inibição da transcrição Tbp, Complexo Tfflc

Aumento da permeabilidade da membrana


Vírus Sindbis Desconhecida Na, K-ATPase?
plasmática

Paramixovírus F Fusão entre células – formação de sincícios Membrana plasmática

Bloqueio na acumulação de mRNAs Proteína celular envolvida


E1B-55K, E4-34K
celulares no citoplasma no transporte de mRNA
Adenovírus

Desconhecida Inibição da tradução cap-dependente elF-4E

Produto do gene
Herpesvírus Desmontagem dos polissomas mRNA celular
vhs (ribonuclease)

Vírus do herpes Inibição do transporte e


simplex ICP 27 Desconhecido
processamento de mRNA celular

Vários vírus Desconhecida Despolimerização do citoesqueleto Filamentos de actina.

Fonte: adaptada de Flint et al. (2000).

para a produção de suas proteínas, em detrimen- Por outro lado, alguns vírus (poliomavírus,
to das proteínas celulares. A inibição da tradu- papilomavírus e adenovírus) estimulam as célu-
ção de mRNA celulares, e não de mRNA virais, las a entrar em fase S, com ativação da síntese de
é uma forma de subversão utilizada pelos vírus DNA e subseqüente divisão celular. Essa estra-
para favorecer a síntese de suas proteínas. Esses tégia tem por fim estimular a célula a fornecer
mecanismos são utilizados por vários vírus, in- condições e componentes (nucleotídeos, enzimas
cluindo o vírus da estomatite vesicular (VSV), replicativas e fatores de replicação) necessários à
o poliovírus, o vírus da febre aftosa (FMDV), os replicação do genoma viral. Como conseqüência,
a célula hospedeira passa a oferecer as condições
adenovírus, entre outros. Essa interferência pode
necessárias à replicação viral. Essa interferência
ter efeitos deletérios para a célula hospedeira,
com a regulação do ciclo celular, algumas vezes,
que tem a sua síntese protéica reduzida ou mes-
pode levar à transformação tumoral dessas célu-
mo suprimida.
las.
A inibição da síntese de DNA celular é ou-
A apoptose – ou morte celular programada
tro mecanismo utilizado por vírus RNA e DNA – é um mecanismo de morte celular em resposta a
durante a sua replicação. Essa inibição pode pro- vários estímulos, inclusive infecções víricas. Tem
porcionar uma disponibilidade maior de precur- sido demonstrado que vários vírus são capazes
sores (nucleotídeos), proteínas e estruturas celu- de desencadear a cascata de reações que leva à
lares para a síntese dos ácidos nucléicos virais e apoptose da célula hospedeira. Por outro lado,
replicação do genoma. É possível também que a vários vírus possuem produtos que inibem ou
inibição da síntese de DNA celular, em alguns ca- retardam a apoptose, prolongando, assim, a vida
sos, seja uma mera conseqüência da inibição da da célula e permitindo a conclusão do seu ciclo
síntese protéica da célula hospedeira pelo vírus. replicativo.
Patogenia das infecções víricas 195

Proteínas virais podem também interferir A replicação de alguns vírus resulta na for-
com mecanismos celulares de modificação, locali- mação de estruturas com morfologia mais ou me-
zação e maturação de proteínas, podendo resultar nos definidas no citoplasma ou no núcleo da cé-
em citopatologia. As glicoproteínas do envelope, lula infectada. Essas estruturas são denominadas
em especial, são alvos de extensivas modificações genericamente “corpúsculos de inclusão” e são
pós-tradução, maturação e transporte por meca- formadas pelo acúmulo de complexos de trans-
nismos celulares, e a sua abundância pode inter- crição e replicação, produtos intermediários da
ferir com os processos celulares de processamen- replicação, proteínas estruturais e não-estrutu-
to de proteínas endógenas. rais, capsídeos, nucleocapsídeos e vírions em de-
A alteração da estrutura de membranas ce- terminados locais da célula. A localização dos cor-
lulares, resultando em fusão e/ou alteração da púsculos de inclusão reflete o local de replicação
permeabilidade, também são efeitos da replica- do respectivo vírus. Os corpúsculos de Negri são
ção de vários vírus. Diversos vírus com envelope formados no citoplasma de neurônios infectados
possuem glicoproteínas que são necessárias para pelo vírus da raiva; os corpúsculos citoplasmáti-
promover a fusão do envelope com a membra- cos de Lenz são característicos da infecção pelo
na celular, permitindo a sua penetração na célu- CDV. A replicação dos reovírus é acompanhada
la hospedeira. A expressão dessas proteínas em da formação de grandes estruturas citoplasmáti-
células infectadas pode resultar em fusão entre cas denominadas virossomos, que podem ocupar
células vizinhas, resultando na formação de mas- grande parte do citoplasma. Os virossomos são
sas citoplasmáticas multinucleadas denominadas os locais de acúmulo de ácidos nucléicos e pro-
sincícios. A fusão entre células vizinhas também teínas virais e onde ocorrem os mecanismos de
é possível pela ação direta das glicoproteínas vi- replicação do genoma e montagem das partículas
rais no processo de penetração. A fusão celular é víricas. A replicação dos herpesvírus neuropa-
uma forma de citopatologia produzida por vírus, togênicos (herpesvírus bovino tipo 5 [BoHV-5],
mas também pode ser considerada uma forma de vírus da doença de Aujeszky [PRV]) resulta na
disseminação do vírus entre células. formação de corpúsculos nucleares em neurônios
Os produtos de alguns vírus produzem um do sistema nervoso central (SNC). A presença de
aumento na permeabilidade da membrana plas- corpúsculos de inclusão tem sido utilizada no
mática da célula infectada. Em decorrência disso, diagnóstico histopatológico de algumas viroses,
o aumento da concentração de íons sódio na cé- pela facilidade de observação e pelas suas carac-
lula pode favorecer a tradução de mRNA virais. terísticas tintoriais (podem ser basofílicos ou aci-
Então, para alguns vírus, o aumento da permea- dofílicos).
bilidade da membrana pode favorecer a síntese Pelo exposto, fica evidente que as interações
preferencial de proteínas virais. entre os produtos virais e os componentes celu-
A infecção por diversos vírus pode provo- lares, durante o ciclo replicativo dos vírus, são
car a desorganização ou mesmo a ruptura do ci- extremamente complexas e podem resultar em
toesqueleto da célula hospedeira. Uma redução uma variedade de alterações da fisiologia celular.
na quantidade de filamentos de actina tem sido Grande parte dessas alterações foi investigada e
observada na infecção por vários vírus, incluindo caracterizada em células de cultivo. Conseqüen-
o vírus do herpes simplex humano (HSV), vírus temente as informações provenientes desses estu-
da cinomose (CDV) e VSV, entre outros. As con- dos devem ser analisadas com cautela. Não obs-
seqüências da desorganização do citoesqueleto tante, é possível que grande parte das alterações
não são bem claras, mas provavelmente possuem observadas in vitro ocorra também in vivo. É pro-
relação com algumas alterações morfológicas ob- vável também que as interações entre os vírus e
servadas em células infectadas. É provável que as as células hospedeiras sejam ainda mais comple-
alterações na estrutura e função do citoesqueleto xas no animal, pela participação de componentes
sejam efeitos secundários da replicação viral e da orgânicos ausentes nos frascos de cultivo. Nesse
interferência do vírus com outras funções celu- sentido, os componentes celulares e humorais do
lares. sistema imunológico (citocinas e anticorpos) de
196 Capítulo 8

outros sistemas de defesa – e também do sistema das possuem vida curta e eventualmente sofrem
endócrino do hospedeiro – certamente possuem lise. A formação de vacúolos é outro tipo de ECP
participação importante nas interações dos hos- produzido por vírus que replicam no citoplasma.
pedeiros com esses agentes invasores. Exemplos Corpúsculos de inclusão citoplasmáticos ou nuclea-
de proteínas virais que interferem com mecanis- res também são formados como resultado da re-
mos específicos das células hospedeiras estão plicação de alguns vírus e podem ser observados
apresentados na Tabela 8.1. sob microscopia ótica.
Embora a lise celular seja o mecanismo mais
2.2 Efeitos da replicação viral nas atraente e fácil para explicar as patologias induzi-
células hospedeiras das pelos vírus nos seus hospedeiros, certamente
não se constitui no único mecanismo responsável
A replicação dos vírus nas células hospedei- pela produção das doenças. Vírus não citolíticos
ras freqüentemente resulta em alterações na fisio- também podem causar patologias severas e até
logia celular, tanto pela interferência com proces- a morte do hospedeiro. Nesse sentido, é prová-
sos metabólicos e estruturas celulares quanto pela vel que outras formas de citopatologia – que não
ação tóxica de produtos da replicação viral. Em necessariamente a lise celular – também possam
particular, a interferência com a síntese de macro- ser responsáveis por patologias observadas em
moléculas pode afetar negativamente a fisiologia animais doentes. Acredita-se que grande parte
celular e, freqüentemente, resulta em patologia. das patologias observadas em doenças causadas
Essas alterações podem ser detectadas visual ou por vírus não-citopáticos sejam conseqüências da
bioquimicamente e tem sido mais caracterizadas resposta imune do hospedeiro.
em células de cultivo. As alterações morfológicas,
associadas com a replicação de vírus em células 2.3 Apoptose por vírus
de cultivo, são denominadas coletivamente de
efeito citopático ou citopatogênico (ECP). Apoptose ou morte celular programada é
Como cada grupo de vírus pode afetar fun- um processo bioquímico que funciona como uma
ções e mecanismos celulares diferentes, o tipo de cascata que leva a morte ou “suicídio celular”.
ECP produzido também é característico de cada Esse mecanismo ocorre naturalmente durante o
espécie ou grupo de vírus. A patologia mais ex- desenvolvimento embrionário e fetal, manuten-
trema é a lise ou destruição celular, e os vírus que ção da imunidade e da homeostase em organis-
a induzem são denominados citolíticos. A lise mos multinucleados. Muitos vírus interferem
celular é caracterizada pela morte e desintegra- no processo de apoptose da célula hospedeira,
ção celular, freqüentemente devida à absorção alterando reações e componentes-chave desse
excessiva de líquido extracelular. Alguns vírus processo. Produtos de diferentes vírus promo-
produzem alterações morfológicas, como cito- vem ou inibem a apoptose através de diversos
megalia ou arredondamento celular. A citomegalia mecanismos de ação. É óbvio que os vírus se be-
pode ser devida à absorção de líquido, enquanto neficiam ao evitar a apoptose, pois isso permite a
o arredondamento é geralmente conseqüência sobrevivência da célula até que o ciclo replicativo
de alterações na estrutura e função das fibras do seja concluído. Porém, em alguns casos, a ocor-
citoesqueleto. Alterações no citoesqueleto tam- rência de apoptose é vantajosa para o vírus. Em
bém resultam em desprendimento das células do tais casos, a formação de corpos apoptóticos, con-
substrato, efeito que pode ocorrer em estágios tendo vírus, resulta em fagocitose dessas estrutu-
avançados de patologia celular, por mecanismos ras e liberação do vírus no fluido extracelular, o
diversos. Os vírus que possuem glicoproteínas que favorece a sua disseminação.
fusogênicas no envelope promovem fusão celu- Os adenovírus, vírus da peste suína africana
lar, com a formação de células gigantes multinu- (ASFV), vírus da anemia infecciosa das galinhas
leadas, denominadas sincícios. Células fusiona- (CAV) e os vírus da peste suína clássica (CSFV)
Patogenia das infecções víricas 197

são exemplos de vírus que produzem proteínas 3.1 Penetração e replicação primária
indutoras da apoptose. Proteínas que inibem a
apoptose também são produzidas pelos adenoví- O estabelecimento da infecção no hospedei-
rus e ASFV e pelos vírus da vaccinia, herpesví- ro depende da penetração e replicação do vírus
rus bovino tipo-4 (BoHV-4), herpesvírus eqüino em células próximas aos locais de entrada. Essa
(EHV), vírus da doença de Marek, dentre outros. replicação – denominada primária – é necessária
para a amplificação do agente, de modo a supe-
rar as barreiras impostas pela resposta inata do
3 Patogenia em nível de hospedeiro hospedeiro. A replicação primária geralmente
ocorre no próprio local de penetração, em tecidos
O resultado de uma infecção vírica de hos- próximos ou nos linfonodos regionais. Em geral,
pedeiro depende de vários fatores, a saber: a) ca- os vírus podem utilizar mais de uma via para pe-
pacidade de o vírus penetrar em um hospedeiro netrar nos seus hospedeiros. As principais vias de
susceptível pela via adequada; b) realizar uma penetração de vírus nos animais serão apresenta-
replicação primária em tecidos próximos ao local das a seguir e estão ilustradas na Figura 8.2.
de entrada; c) escapar dos mecanismos naturais
de defesa do organismo; d) disseminar-se para os
3.1.1 Pele e mucosas superficiais
tecidos e órgãos-alvo; e) replicar eficientemente
nesses tecidos e f) produzir ou não injúria tecidu-
al (provocar patologia). Embora os vírus apresen- A pele se constitui em uma importante bar-
tem uma diversidade muito grande e participem reira para a penetração de vírus, pois a sua ca-
de interações de especificidade e complexidade mada externa é formada por células mortas e
diferentes com os seus hospedeiros, algumas eta- não suporta a replicação viral. Além disso, a sua
pas da patogenia parecem ser comuns à maioria superfície é seca, levemente ácida e possui uma
das infecções víricas. A seguir, serão abordadas flora bacteriana permanente/residente que atua
essas etapas. como uma barreira natural. No entanto, solu-

Mucosa
conjuntival
Pele
Mucosa
respiratória

Mucosa
Mucosa orofaríngea
urogenital

Mucosa
intestinal

Fonte: www.bakerinstitute.vet.cornell.edu.

Figura 8.2. Vias de penetração de vírus em seus hospedeiros.


198 Capítulo 8

ções de continuidade – mesmo imperceptíveis vírus, buniavírus, alguns rabdovírus e orbivírus)


– provocadas por abrasões, pequenas incisões ou ou por procedimentos iatrogênicos (retrovírus e
puncturas podem permitir a penetração e insta- hepadnavírus) podem alcançar as camadas mais
lação de vários vírus. Dentre os vírus que podem internas e encontrar condições propícias para a
penetrar através da pele semi-íntegra incluem-se sua replicação primária. A abundância de vasos
os papilomavírus, alguns poxvírus e herpesvírus sangüíneos e linfáticos na derme e em camadas
(Tabela 8.2). Esses vírus são geralmente transmi-
mais internas oferece condições para a dissemi-
tidos por contato direto ou indireto, ou também
nação desses agentes a partir do sítio primário de
mecanicamente através de insetos. Se a penetra-
replicação. Após a replicação primária no tecido
ção for superficial, a replicação é geralmente li-
dérmico ou subdérmico, os vírions podem se dis-
mitada ao sítio de penetração, pois a epiderme é
seminar para os linfonodos regionais no interior
desprovida de vasos sangüíneos e linfáticos que
poderiam servir para disseminar a infecção. No de células fagocíticas ou livres na linfa e/ou san-
entanto, a infecção de camadas mais profundas gue. Os herpesvírus invadem terminações nervo-
da derme pode levar à disseminação sangüínea, sas localizadas nesses locais e são transportados
pois essa camada é altamente vascularizada (Fi- ao longo dos axônios ou dentritos até o corpo dos
gura 8.3A). Em especial, os vírus que são trans- neurônios. O transporte dos herpesvírus por fi-
mitidos por insetos hematófagos (alfavírus, flavi- bras nervosas será abordado na seção 3.2.3.

Tabela 8.2. Vírus animais que penetram no hospedeiro através da pele ou de superfícies mucosas

Via de penetração Vírus

– Papilomavírus de várias espécies;


– Herpesvírus de várias espécies;
Pequenas lesões (puncturas, – Poxvírus de bovinos, suínos e ovinos; vírus da
abrasões) estomatite papular bovina; poxvírus aviários;
– Vírus da doença vesicular de suínos;
– Vírus da estomatite vesicular (VSV).

– Vários poxvírus (mixomavírus, poxvírus suíno, poxvírus


aviários);
Picada de insetos (transmissão
– Alguns retrovírus (vírus da anemia infecciosa eqüina [EIAV],
mecânica)
vírus da leucose bovina [BLV]);
– VSV.

– Vírus da peste suína africana (ASFV);


– Vírus da língua azul (BTV);
Picada de insetos (transmissão – VSV, outros rabdovírus;
biológica) – Vírus da febre do vale Rift (RVFV), outros buniavírus;
– Todos os alfavírus;
– Vírus do gênero flavivírus.

– Vírus da imunodeficiência felina (FIV);


– Vírus da raiva (RabV);
Mordeduras de vertebrados
– Arenavírus (entre roedores);
– Herpesvírus símio B.

– Papilomavírus de várias espécies animais;


– Retrovírus (BLV, EIAV);
Transmissão iatrogênica
– Vírus da diarréia viral bovina (BVDV), vírus da peste suína
clássica (CSFV).

Contato com a conjuntiva – Herpesvírus bovino tipo 1 (BoHV-1), herpesvírus eqüino 1(EHV-1);
– Adenovírus canino tipos 1 e 2 (CAdV-1, CAdV-2).

Fonte: adaptada de Murphy et al. (1999).


Patogenia das infecções víricas 199

Aparentemente, as membranas mucosas su- Alguns vírus penetram no organismo pela


perficiais poderiam se constituir em uma barreira mucosa conjuntival e podem estar associados
menos eficiente para impedir a penetração viral. com conjuntivite ou com infecções sistêmicas. Os
Ainda assim, são recobertas por uma camada de adenovírus caninos tipos 1 e 2 (CAdV-1; CAdV-
muco que, pela sua natureza viscosa e pela pre- 2) podem penetrar por essa via; o herpesvírus
sença de IgA, pode dificultar a penetração dos bovino tipo 1 (BoHV-1) pode causar conjuntivite
vírus. Os herpesvírus parecem ser capazes de pela infecção direta da conjuntiva ou por conta-
penetrar em mucosas intactas para iniciar a in- minação a partir da cavidade nasal.
fecção, embora a ocorrência de lesões certamente Os principais vírus de animais que penetram
favoreça a instalação da infecção. nos seus hospedeiros através da pele e mucosas
Determinados vírus são introduzidos atra- superficiais estão apresentados na Tabela 8.2.
vés da pele diretamente no tecido subcutâneo
ou mesmo no tecido muscular. O vírus da raiva 3.1.2 Trato respiratório
é inoculado profundamente pela mordedura de
animais infectados; os arenavírus também são A mucosa do trato respiratório provavel-
transmitidos entre os roedores silvestres através mente se constitui na principal via de penetração
de mordidas; o herpesvírus símio B e o vírus da de vírus, por causa de sua grande superfície e
imunodeficiência felina (FIV) também podem ser grande quantidade de patógenos potencialmente
transmitidos por mordeduras. Essa inoculação presentes no ar inspirado. Não obstante, o siste-
profunda facilita ainda mais a replicação primá- ma respiratório apresenta barreiras que limitam
ria e o estabelecimento da infecção. ou reduzem as chances dos vírus que penetram

Tabela 8.3. Principais vírus que penetram pelo trato respiratório para iniciar a infecção do hospedeiro

Família Vírus

Herpesviridae Herpesvírus de várias espécies.


Produzem doença respiratória

Adenoviridae Adenovírus de várias espécies.

Vírus da parainfluenza (PIVs) e vírus


Paramyxoviridae
respiratórios sinciciais (RSVs).
ou localizada

Orthomyxoviridae Vírus da influenza suína e eqüina.

Vírus da bronquite infecciosa das


Coronaviridae
galinhas (IBDV).

Vírus da febre aftosa (FMDV);


Picornaviridae
rinovírus de várias espécies.

Caliciviridae Calicivírus felino (FCV).


Produzem doença sistêmica

Vírus da doença de Aujeszky (PRV), vírus da


Herpesviridae doença de Marek, vírus da febre catarral
maligna (MCFV).

Vírus da cinomose (CDV), vírus da peste


Paramyxoviridae
bovina (rinderpest).

Orthomyxoviridae Vírus da influenza aviária (AIV).

Vírus da diarréia viral bovina (BVDV)*; vírus


Flaviviridae
da peste suína clássica (CSFV).

* O BVDV pode também causar doença respiratória.


Fonte: adaptada de Murphy et al. (1999).
200 Capítulo 8

pelo ar inspirado conseguirem atingir e penetrar ou se disseminar para outros tecidos e órgãos. Ou
nas células epiteliais. As vias aéreas superiores e seja, os vírus que penetram pelo trato respirató-
inferiores contêm um epitélio ciliado recoberto rio podem produzir infecções localizadas ou dis-
com muco, cuja função é reter e, eventualmente, seminadas (Tabela 8.3). Os tecidos subjacentes ao
expulsar as partículas inaladas. Além de reter as epitélio respiratório possuem vasos linfáticos e
partículas víricas, o muco pode conter IgA especí- sangüíneos que facilitam a disseminação dos ví-
fica, que pode neutralizar a infectividade dos ví- rus até os órgãos linfóides secundários e daí para
rus. Os alvéolos são desprovidos dessas defesas, o sangue (Figura 8.3B).
porém possuem macrófagos residentes encarre-
gados de fagocitar e digerir partículas exógenas. 3.1.3 Orofaringe e trato digestivo
Além disso, a temperatura nas vias aéreas supe-
riores é aproximadamente 3 a 5°C inferior à tem- A mucosa do trato digestivo, desde a orofa-
peratura corporal, o que pode restringir a replica- ringe até os segmentos finais do intestino, pode
ção de alguns vírus. Por isso, os vírus incapazes se constituir em local de penetração para vários
de replicar à temperatura corporal (rinovírus), vírus, que produzem tanto infecções localizadas
replicam somente no trato respiratório superior. como sistêmicas. Os vírus adquiridos pela inges-
Já os vírus capazes de replicar sob temperatura tão de alimentos ou água contaminada, ou pelo
corporal, podem causar infecção no trato respira- contato oral com fômites, podem ser deglutidos
tório inferior. e alcançar o estômago e intestinos; ou podem
Os vírus geralmente penetram no trato res- infectar as células superficiais da orofaringe. Os
piratório através de aerossóis produzidos por ex- vírus que replicam na orofaringe podem ser, pos-
pectorações (tosse e espirro) ou pelo contato nasal teriormente, deglutidos ou podem se disseminar
com fômites contaminados. O hábito investigati- sistemicamente pela via hematógena. Os rotaví-
vo olfatório de várias espécies animais se constitui rus, coronavírus, calicivírus e muitos enteroví-
em um fator de risco que favorece as infecções da rus produzem infecções localizadas no intestino
mucosa nasal e do focinho. A maioria dos vírus delgado; o parvovírus canino penetra na muco-
que penetra por essa via realiza a replicação pri- sa da orofaringe e, por via hematógena, atinge o
mária em células epiteliais das vias respiratórias; epitélio intestinal, onde replica e provoca distúr-
alguns podem replicar em macrófagos livres no bios celulares que resultam em doença; o vírus
lúmen respiratório ou em espaços subepiteliais. da diarréia viral bovina (BVDV) pode penetrar
A replicação dos vírus que penetram pelas vias na mucosa da orofaringe e se disseminar sistemi-
aéreas pode ficar restrita ao epitélio respiratório camente. Alguns vírus podem penetrar através
Patogenia das infecções víricas 201

da mucosa intestinal e causar doença sistêmica, los para células mononucleares adjacentes, onde
como alguns adenovírus de aves e de mamíferos ocorrerá a replicação primária (Figura 8.3C).
e alguns enterovírus. Dentre os vírus animais que penetram pelo
O trato digestivo apresenta várias barrei- trato digestivo e estão associados com diarréia
ras que restringem ou dificultam a infecção por estão os parvovírus (canino e felino), os rotaví-
determinados vírus. O pH ácido do estômago, rus de várias espécies, os coronavírus entéricos,
a alcalinidade do intestino delgado, as enzimas os astrovírus e calicivírus. Outros vírus penetram
digestivas presentes na saliva e no suco pancre- pelo trato digestivo e estão associados com doen-
ático, e as enzimas lipolíticas presentes na bile ça disseminada, geralmente sem diarréia, como
restringem o número de vírus que é capaz de in- os adenovírus de várias espécies, os enterovírus,
fectar o hospedeiro por essa via. o vírus do exantema vesicular de suínos, entre
Como regra, os vírus não-envelopados são outros. Estes vírus utilizam o epitélio intestinal
mais resistentes ao pH ácido do estômago. Ex- para a replicação primária e amplificação, de
ceções incluem os rinovírus e o FMDV (picorna- onde ganham acesso ao sistema linfático e sangüí-
vírus), que são lábeis à pH ácido e não resistem neo (Figura 8.3C).
ao pH do estômago. Para estabelecer a infecção,
portanto, esses vírus devem penetrar na muco-
sa orofaríngea ou nasal. Embora sejam sensíveis 3.1.4 Mucosa urogenital
ao pH baixo e à ação da bile, os coronavírus de
várias espécies animais resistem às condições do
A mucosa do trato genital da fêmea pode
estômago e intestino e podem estabelecer infec-
servir de local de penetração tanto para vírus
ções intestinais. Em geral, os vírus que causam
sistêmicos, que são excretados no sêmen, como
infecções intestinais, como os rotavírus, caliciví-
para vírus que produzem infecções localizadas
rus e enterovírus, são resistentes ao pH baixo e à
no trato genital masculino. No primeiro caso, a
ação da bile e, por isso, podem penetrar a partir
transmissão pode ser pela monta natural ou pela
do lúmen intestinal.
inseminação artificial, já que os vírus encontram
As enzimas proteolíticas presentes no lú-
condições ideais de sobrevivência em sêmen in-
men intestinal podem também favorecer a infec-
dustrializado. Os herpesvírus de várias espécies
ção por alguns vírus, pela clivagem e ativação de
proteínas da superfície dos vírions que são envol- animais podem ser transmitidos pelo sêmen e/ou
vidas na penetração do vírus na célula hospedei- pela cópula; o vírus da síndrome respiratória e
ra. Como exemplos, citam-se: a tripsina, pancrea- reprodutiva dos suínos (PRRSV) foi amplamente
tina e elastina que aumentam a infectividade dos disseminado pela inseminação artificial; a monta
rotavírus; e outras enzimas que ativam os proces- natural é uma importante forma de transmissão
sos de penetração dos reovírus e de alguns coro- do vírus da arterite viral eqüina (EAV). Os pa-
navírus. Enzimas presentes em secreções respira- pilomavírus que causam lesões genitais também
tórias também têm sido envolvidas na ativação podem ser transmitidos pela cópula, por causa
de proteínas de fusão dos paramixovírus. do contato entre as mucosas. Embora o BoHV-1
Os vírus associados com gastrenterite po- possa ser excretado pelo sêmen durante a infec-
dem infectar uma variedade de células do trato ção aguda respiratória, a transmissão venérea
gastrintestinal. Os adenovírus, rotavírus, caliciví- desse vírus está mais freqüentemente associada
rus e coronavírus infectam predominantemente com a infecção genital (balanopostite).
enterócitos maduros quiescentes. Outros vírus Os tecidos submucosos são altamente ir-
possuem tropismo por células das criptas que rigados e fornecem condições propícias para a
estão em divisão (parvovírus) ou por células epi- disseminação dos vírus pela linfa ou pelo sangue
teliais especializadas, como as células M (polio- para os linfonodos regionais ou para tecidos mais
vírus e reovírus). As células M podem também distantes. As terminações nervosas, localizadas
capturar vírions no lúmen intestinal e transportá- na submucosa, constituem-se em alvos para a pe-
202 Capítulo 8

netração pelos herpesvírus, que são, então, trans- entanto, não permite uma disseminação a longas
portados até gânglios nervosos regionais. distâncias e essas infecções são geralmente con-
Embora com menor freqüência, fêmeas que troladas pela resposta imune do hospedeiro. Os
desenvolvem infecções genitais também podem vírus que penetram na mucosa respiratória ou di-
transmitir o vírus para o macho durante a cópu- gestiva e que são liberados pela superfície apical
la, o que favorece a disseminação do agente, pois de células epiteliais podem ser transportados por
o macho infectado pode transmitir o agente para fluidos ou pelo muco e se disseminar rapidamen-
outras fêmeas. te pelo lúmen do órgão. A replicação de muitos
desses vírus fica restrita ao epitélio, com nenhu-
3.2 Infecções localizadas versus ma ou pouca invasão dos tecidos subjacentes. Pa-
infecções disseminadas (ou sistêmicas) ralelamente, os vírions podem ser transportados
até os linfonodos regionais, livres na linfa ou no
Os padrões de distribuição e envolvimento interior de células fagocíticas. Esta é geralmente
de diferentes órgãos e tecidos variam amplamen- a primeira etapa na disseminação das infecções
te com os vírus e estão intimamente associados sistêmicas. Em geral, os vírus que são liberados
com a biologia do agente, sendo dependentes de apenas na superfície apical das células epiteliais
suas interações com o hospedeiro. Alguns vírus tendem a ficar restritos localmente, enquanto
produzem infecções localizadas, geralmente li- aqueles que são liberados também pela superfí-
mitadas às proximidades dos sítios de penetração cie basolateral são mais prováveis de produzirem
e replicação primária. Esse padrão de infecção é infecções sistêmicas.
característico dos vírus respiratórios (rinovírus,
vírus da influenza e parainfluenza), gastrintesti- 3.2.2 Disseminação hematógena
nais (coronavírus e rotavírus) e de alguns vírus
que infectam a derme e epiderme (papilomaví- O transporte pelo sangue oferece aos vírus
rus, alguns poxvírus, vírus da mamilite herpética a oportunidade de atingir virtualmente todos os
[BoHV-2]). Essas infecções estão geralmente limi- órgãos e tecidos em poucos minutos a partir dos
tadas ao epitélio, mas a penetração e envolvimen- sítios de replicação primária. Os vírions podem
to de tecidos subjacentes e disseminação sistêmi- penetrar no sangue diretamente através da pare-
ca podem ocasionalmente ocorrer. As infecções de capilar, após a infecção de células endoteliais
que se restringem aos sítios de replicação primá- ou pela inoculação direta por insetos ou por ins-
ria e suas proximidades são ditas localizadas. trumentos contaminados. A disseminação hema-
Outros vírus são capazes de se disseminar tógena se inicia quando os vírions produzidos
a longas distâncias pelo sangue ou pela linfa e nos sítios primários de replicação são liberados
produzir infecções em órgãos específicos ou in- no líquido extracelular e drenados pelo sistema
fecções generalizadas. Exemplos incluem o CDV, linfático, cujos capilares são mais permeáveis do
os parvovírus canino (CPV) e felino (FPLV), o que os capilares sangüíneos. Os vírions veicula-
BVDV, os retrovírus, entre outros. As infecções dos pela linfa eventualmente ganham acesso à
que se estendem além dos sítios de replicação corrente sangüínea, seja como partículas livres
primária são chamadas de disseminadas; e as que no plasma, seja no interior de linfócitos ou mo-
atingem vários órgãos ou sistemas são denomi- nócitos/macrófagos infectados durante a sua
nadas sistêmicas ou generalizadas. passagem pelos linfonodos regionais. De fato,
a patogenia de várias infecções víricas está inti-
3.2.1 Disseminação local mamente associada com a infecção de células do
sistema imunológico, que ocorre devido ao seu
Após a replicação primária, muitos vírus se contato com os vírions nos órgãos linfóides pe-
disseminam localmente pela transmissão entre riféricos. Uma vez no sangue, os vírions se dis-
células vizinhas. Essa forma de transmissão, no seminam rapidamente pelo organismo. O trajeto
Patogenia das infecções víricas 203

Superfície corporal

Seios linfáticos
revestidos por
macrófagos
Capilar
linfático Tecido
linfóide Veia

Capilar Vaso
sangüíneo Histiócito
linfático
Tecido aferente Vaso Ducto
conjuntivo linfático torácico
eferente
Linfonodo

Fonte: adaptada de Mims e White (1984).

Figura 8.4. Trajeto dos vírus que penetram pela pele ou mucosas superficiais para atingir o sangue e se distribuir
sistemicamente.

utilizado pelos vírus que penetram no organismo em células endoteliais e são liberados diretamen-
através de superfícies cutâneas ou mucosas para te na circulação; d) vários vírus replicam em cé-
atingir a corrente sangüínea está ilustrado na Fi- lulas mononucleares do sistema linforreticular
gura 8.4. (monócitos/macrófagos; linfócitos) e podem ser
A presença de vírus no sangue é denomi- liberados no sangue.
nada viremia e, dependendo da origem do vírus, Em várias infecções víricas, duas etapas de
pode ser classificada em passiva ou ativa. A vire- viremia ativa podem ser detectadas. A viremia pri-
mia passiva resulta da introdução do vírus dire- mária resulta da replicação viral nos sítios iniciais,
tamente no sangue, sem a prévia replicação em geralmente atinge baixa magnitude, mas permite
tecidos. Esta introdução pode resultar de inocu- a disseminação do vírus aos órgãos secundários
lação direta por insetos hematófagos, por trans- de replicação, denominados órgãos-alvo. A repli-
fusão sangüínea ou por outras formas de inocu- cação viral nesses tecidos produz uma viremia se-
lação de sangue. Essas viremias são geralmente cundária, caracterizada por uma presença maciça
transitórias e não duram mais de 12-24 h, mas de vírus no sangue e disseminação ainda maior
podem ser de tal magnitude a ponto de provocar da infecção. Os resultados da viremia são variá-
a infecção maciça de alguns órgãos. As viremias veis e, freqüentemente, resultam em infecção de
ativas resultam da replicação viral em tecidos e vários tecidos periféricos, com resultados que de-
órgãos do hospedeiro e geralmente atingem uma pendem do tropismo, da patogenicidade e viru-
maior magnitude e duração. Os vírus presentes lência do vírus. Uma conseqüência freqüente de
no sangue podem ter várias origens, tais como: a) viremia em animais é a transmissão transplacen-
partículas víricas presentes nos tecidos próximos tária do vírus ao feto, podendo resultar em uma
aos locais de penetração podem ser capturadas variedade de condições que vão desde uma infec-
pelo sistema linfático e ter acesso ao sangue; b) ção transitória até a morte fetal, seguida de abor-
vários vírus replicam em células localizadas nos tamento. As etapas da patogenia das infecções ví-
linfonodos, podendo ser liberados e ter acesso ao ricas localizadas e disseminadas estão ilustradas
sangue; c) alguns vírus são capazes de replicar na Figura 8.5.
204 Capítulo 8

Infecção
Excreção

Replicação primária
Superfície corporal

Pele Herpesvírus
Influenza
Mucosas Paramixovírus
Trato respiratório Rotavírus
Trato digestivo Papilomavírus
Coronavírus

Linfonodos

Viremia
Sangue primária

Replicação secundária
Órgãos/tecidos

Medula Endotélio
óssea Músculo Fígado Baço vascular

Transmissão
Viremia
Sangue secundária
iatrogênica
ou por vetores

Epitélio
Encéfalo Glândula salivar Trato respiratório
Replicação secundária

respiratório Pele
ou rins (pulmões)
Órgãos/tecidos

CDV CDV, Arenavírus


Rinderpest Lumpy skin Togavírus Raiva (g.salivar)
hantavírus
Flavivírus Arenavírus

Excreção

Fonte: adaptada de Mims e White (1984).

Figura 8.5. Etapas da patogenia das infecções víricas localizadas e sistêmicas: papel da viremia na disseminação das
infecções.
Patogenia das infecções víricas 205

No sangue, os vírions podem ser transporta- que as distinguem das viremias plasmáticas, tais
dos livres no plasma, no interior de leucócitos ou como: a) no interior das células os vírus estão pro-
aderidos à membrana de leucócitos, eritrócitos ou tegidos dos anticorpos neutralizantes e podem se
plaquetas. Os flavivírus, togavírus, enterovírus e propagar a grandes distâncias; b) os títulos virais
parvovírus circulam livres no plasma e produ- são geralmente baixos; c) o isolamento do vírus
zem a chamada viremia plasmática. A concentra- do sangue é geralmente difícil e pode requerer
ção de partículas víricas no sangue depende de o co-cultivo de leucócitos com células de cultivo.
um equilíbrio entre a sua produção nos tecidos Essa dificuldade de isolamento pode ser devida
infectados e a taxa de remoção ou inativação no aos baixos níveis de replicação do vírus e/ou à
sangue. A tarefa de remover vírions circulantes presença de anticorpos neutralizantes; d) em al-
cabe às células fagocíticas do sistema retículo-en- gumas infecções, a viremia persiste por toda a
dotelial, principalmente às células de Küpfer no vida do animal e não termina com o aparecimen-
fígado e, em menor proporção, aos macrófagos to dos anticorpos neutralizantes. Exemplos des-
dos pulmões, baço e linfonodos. se tipo de viremia são encontrados nas infecções
Os vírus que circulam livres no plasma po- por retrovírus animais, como o FIV, o vírus mae-
dem entrar em contato e infectar uma grande di-visna (MVV), o vírus da leucose bovina (BLV)
variedade de células, mas dois tipos celulares e o vírus da anemia infecciosa eqüina (EIAV).
desempenham um papel importante para a con- Em algumas dessas infecções, a contínua evolu-
tinuidade da infecção: as células endoteliais e os ção genética da população viral produz variantes
macrófagos adjacentes aos vasos. As interações que escapam da neutralização por anticorpos e
entre os vírions circulantes e as células de Küpfer que podem ser isolados do plasma. Esses vírus,
no fígado podem resultar em: a) internalização e no entanto, parecem representar uma pequena
inativação dos vírions; b) internalização, trans- parcela do total de vírus que é produzido e que
porte transcitoplasmático e liberação dos vírions é neutralizado e capturado nos complexos imu-
na bile; c) infecção dessas células e liberação da nes. O vírus da língua azul (BTV) produz viremia
progênie viral de volta ao sangue, incrementan- persistente e os vírions encontram-se aderidos à
do a viremia; d) infecção celular e liberação dos membrana dos eritrócitos. Embora mais estuda-
vírions recém-produzidos pela superfície basal, da em infecções persistentes, a viremia associa-
resultando na infecção maciça de hepatócitos. A da a células também é observada em infecções
infecção das células endoteliais pode favorecer a agudas, como a infecção de cães pelo CDV, entre
invasão viral nos tecidos a partir do sangue. outras. O BVDV pode ser encontrado em linfóci-
Em etapas mais avançadas da infecção, os tos e monócitos, mas viremia plasmática também
anticorpos produzidos são capazes de se ligar e pode ser detectada em animais persistentemente
neutralizar as partículas víricas livres no plasma infectados. Esses animais são imunotolerantes a
sangüíneo. A ligação dos anticorpos aos vírions antígenos virais e, por isso, não produzem an-
também facilita a fagocitose dos complexos an- ticorpos contra o vírus. Com isso, o vírus infec-
ticorpo-vírions por macrófagos adjacentes aos cioso pode ser continuamente isolado do plasma
vasos sangüíneos teciduais. Esses macrófagos se desses animais.
ligam aos complexos imunes por meio de recep-
tores para a porção Fc das imunoglobulinas. A 3.2.1.1 Penetração dos vírus nos tecidos
maioria das viremias plasmáticas possui duração
limitada e o seu término coincide com o apareci- Os vírus que se disseminam pela via hema-
mento de anticorpos neutralizantes no soro. tógena devem ultrapassar a parede vascular para
Vários vírus replicam em células sangüíneas, invadir e replicar nos tecidos e órgãos-alvo. Em-
particularmente monócitos e linfócitos B e T, e a bora seja uma etapa fundamental na patogenia
sua presença no sangue está predominantemente das infecções por virtualmente todos os vírus pa-
associada com essas células. As viremias associa- togênicos que produzem viremia, poucos deta-
das a células apresentam algumas características lhes são conhecidos sobre a penetração dos vírus
206 Capítulo 8

nos tecidos. O mecanismo de penetração utiliza- terior das células infectadas. As células mononu-
do pelos vírus depende da sua biologia e também cleares do sangue estão freqüentemente atraves-
da estrutura e relações do endotélio vascular, que sando a parede vascular e penetrando nos tecidos
varia muito entre os diferentes tecidos. Os pos- em resposta a estímulos inflamatórios e podem
síveis mecanismos utilizados, já demonstrados funcionar como verdadeiros “cavalos de Tróia”,
para alguns vírus, estão ilustrados na Figura 8.6 e transportando os vírus para os tecidos. O movi-
descritos a seguir: mento de células através do endotélio em direção
1) Penetração passiva pelo espaço entre as aos tecidos é denominado diapedese. Essa forma
células endoteliais. Esse mecanismo é possível de invasão tem sido demonstrada para o CDV,
em alguns endotélios que apresentam fenestras vírus da febre amarela (YFV) e também para ex-
entre as células endoteliais, como o plexo coróide plicar a penetração do vírus da imunodeficiência
no SNC. Após atravessar esta barreira, os vírus humana adquirida (HIV) no encéfalo.
podem infectar as células epiteliais do plexo co-
róide e ganhar acesso ao fluido cérebro-espinhal
e, assim, disseminar-se pelos espaços ocupados
por esse fluido. Exemplos de vírus que prova-
velmente utilizam essa via de invasão incluem
o vírus da coriomeningite linfocítica (LCMV) e o
retrovírus (MVV). Os vasos dos túbulos renais, 2
pâncreas, cólon e íleo também apresentam fenes-
tras que podem servir para a penetração dos ví- 1
rus nos tecidos a partir do sangue; 3
2) Os vírions podem ser transportados atra-
vés do endotélio vascular por endocitose, segui-
da de transporte vesicular intracitoplasmático e
exocitose na face oposta da célula endotelial. Para
que essas duas formas de invasão possam ocor-
rer, a concentração de vírions no sangue deve ser 4
alta e contínua, e o fluxo sangüíneo no local deve
ser lento, para permitir o contato e aderência das
partículas víricas ao endotélio e/ou penetração
pelos espaços interendoteliais; Lúmen
3) Alguns vírus podem infectar as células do vaso Tecido
endoteliais e/ou células adjacentes e completar o
seu ciclo replicativo nessas células. Assim, a sua
progênie pode ser liberada através da superfície
basal ou basolateral dessas células e infectar célu- Figura 8.6. Mecanismos de penetração de vírus nos
tecidos a partir do sangue. 1) Penetração pelos espaços
las teciduais subjacentes. Essa forma de invasão existentes entre as células endoteliais; 2) Transporte
tecidual já foi demonstrada para os picornavírus, ativo através das células endoteliais; 3) Infecção das
retrovírus, alfavírus e parvovírus. As células de células endoteliais com posterior egresso da progênie
viral na face oposta do endotélio; 4) Transporte através
Küpfer, que estão localizadas entre as células do endotélio no interior de monócitos/linfócitos.
endoteliais dos sinusóides hepáticos, servem de
porta de entrada para vírus que são veiculados 3.2.1.2 Infecção celular mediada por
no sangue. Os vírus podem ser transportados anticorpos (antibody-dependent enhancement
passivamente ou replicarem ativamente nessas of viral infection, ADE)
células;
4) Os vírus que produzem viremia associada A ADE é um mecanismo utilizado por al-
a células, em monócitos ou linfócitos, podem ser guns vírus para penetrar produtivamente e repli-
transportados através da parede vascular no in- car em células que expressam receptores para a
Patogenia das infecções víricas 207

porção Fc das imunoglobulinas, principalmente lite caprina (CAEV), replicam no SNC e produ-
os monócitos e macrófagos. Nessas células, os zem doença neurológica, porém parecem atingir
receptores de Fc são importantes para a captura o encéfalo pela via hematógena. Dentre os vírus
e inativação de complexos imunes formados nos animais que utilizam a via nervosa para invadir o
fluidos e tecidos corporais. O fenômeno de ADE encéfalo e causar doença neurológica se incluem
ocorre quando os vírions são recobertos por an- o BoHV-5, o PRV, o EHV, o vírus da raiva, o ví-
ticorpos sem atividade neutralizante ou quando rus da encefalite eqüina venezuelana (VEEV) e
os níveis de anticorpos específicos são baixos. o vírus da doença de Borna (BDV). Em modelos
Assim, a ligação dos anticorpos não neutraliza animais, o VEEV parece também utilizar a via
a infectividade dos vírions. No entanto, as célu- hematógena para invadir o encéfalo e produzir
las que expressam receptores para a região Fc se encefalite. Embora os vírus que se disseminam
ligam aos complexos anticorpos-vírions através pela via nervosa e replicam no sistema nervoso
da região Fc. Essa ligação é seguida pela inter- sejam denominados classicamente vírus neuro-
nalização dos complexos nas células, após a qual trópicos, esses agentes são capazes de infectar
os vírions podem ser liberados no citoplasma e uma variedade de células. De fato, a replicação
iniciar a replicação. Ou seja, além de não neutrali- inicial desses vírus ocorre geralmente no epitélio
zar a infectividade dos vírions, os anticorpos au- e em tecidos adjacentes aos locais de penetração,
xiliam a sua penetração nas células que possuem após a qual os vírions penetram nas terminações
receptores de Fc. Esse mecanismo somente ocor- nervosas.
re para vírus que infectam naturalmente células O mecanismo de penetração dos vírus em
que expressam esses receptores. Embora a ADE neurônios parece ser similar ao utilizado para
já tenha sido demonstrada para vários vírus in vi- iniciar a infecção de outras células. Após a pe-
tro, o seu papel na patogenia das infecções víricas netração e desnudamento, o nucleocapsídeo é
in vivo ainda é controverso e parece se restringir transportado passivamente ao longo dos pro-
a poucos vírus, como o vírus da dengue em hu- cessos neuronais (dentritos e axônios) por trans-
manos e o vírus da peritonite infecciosa felina porte axoplásmico rápido. O vírus pode ocasio-
(FIPV, um coronavírus). Nesses casos, a presença nalmente replicar nos axônios ou dendritos, mas
de anticorpos em níveis baixos contra um deter- este é um processo lento e não é requerido para
minado sorotipo do vírus resulta em um aumen- a disseminação. Drogas que inibem o transporte
to da severidade da doença por ocasião de uma axonal (p. ex.: colchicina) também bloqueiam a
reinfecção com um sorotipo heterólogo. De fato, progressão dos vírus o longo dos axônios.
tem sido demonstrado que a peritonite infecciosa Essa forma de disseminação tem sido estu-
dos gatos é mais severa em animais previamente dada com detalhes nos alfaherpesvírus, em que o
vacinados, reforçando a possibilidade de que a transporte neural até os gânglios sensoriais e au-
ADE contribua na patogenia da doença. tonômicos é essencial para o estabelecimento de
infecção latente, que, por sua vez, é crítica para a
3.2.3 Disseminação nervosa manutenção desses vírus na natureza (Figura 8.7).
Após a replicação na mucosa nasal ou genital,
Vários vírus se disseminam a partir dos sí- os vírions penetram em terminações dos nervos
tios de replicação primária no interior de fibras que se distribuem nas camadas subjacentes. Os
nervosas cujas terminações se distribuem nesses vírions íntegros ou partículas subvirais são trans-
locais. Essa forma de transporte é utilizada por portados em vesículas ao longo dos microtúbulos
vírus essencialmente neuropatogênicos (vírus da dos axônios ou dendritos até os corpos neuronais
raiva e vários alfaherpesvírus) e também por ví- que se localizam nos gânglios nervosos regionais
rus cuja invasão do sistema nervoso representa (gânglio trigêmeo, no caso de infecção oronasal;
uma circunstância da sua replicação e dissemina- gânglios sacrais, no caso de infecção genital). O
ção hematógena (reovírus e poliovírus). Alguns transporte axonal de substâncias das terminações
vírus, como o CDV e o vírus da artrite e encefa- nervosas em direção ao corpo neuronal é deno-
208 Capítulo 8

Transporte retrógrado

Latência

Cérebro

Reativação

Transporte anterógrado

Mucosa nasal Gânglio trigêmeo

Figura 8.7. Disseminação neural dos alfaherpesvírus animais do epitélio respiratório para os gânglios sensoriais
durante a infecção aguda (transporte retrógrado) e do corpo dos neurônios para o epitélio nasal durante a reativação
da infecção latente (transporte anterógrado). Durante a infecção aguda (e menos freqüentemente durante a
reativação), pode ocorrer transporte anterógrado em direção ao SNC, com invasão e replicação viral no encéfalo.

minado retrógrado. Ao alcançar os corpos neuro- ligados, resultando em invasão e replicação no


nais, os alfaherpesvírus replicam ativamente de encéfalo. As infecções neurológicas acompanha-
forma lítica ou estabelecem infecção latente. A das de meningoencefalite severa são freqüentes
infecção latente é caracterizada pela presença do em bovinos infectados pelo BoHV-5 e em suínos
genoma viral inativo no núcleo dos neurônios, jovens infectados pelo PRV. Alguns alfaherpesví-
sem expressão gênica ou produção de progênie rus que causam meningoencencefalite (BoHV-5,
viral. Em determinadas circunstâncias, geralmen- por exemplo), parecem invadir o encéfalo princi-
te associadas com estresse, ocorre a reativação palmente pela via olfatória que, provavelmente,
da infecção, a retomada da expressão gênica e a se constitui em uma via mais eficiente e rápida de
produção de partículas víricas infecciosas. Essas transporte do que a via trigeminal. Outros (PRV
partículas são transportadas de volta aos locais e BoHV-1) parecem atingir o sistema nervoso,
de replicação primária pelas mesmas vias nervo-
principalmente pelos ramos sensoriais do nervo
sas que haviam servido de acesso para os vírons
trigêmeo. O transporte neural permite a propa-
aos corpos neuronais. O transporte de vesículas
gação do vírus aos órgãos-alvo sem exposição ao
e substâncias do corpo neuronal em direção às
sistema imunológico.
terminações nervosas denomina-se anterógrado e
Embora as vias hematógena e neural sejam
permite a progênie viral alcançar os tecidos peri-
freqüentemente consideradas como vias exclu-
féricos, replicar e ser excretada.
Em alguns vírus (BoHV-5 e PRV), a repli- dentes (alternativas) de disseminação viral, a
cação nos corpos neuronais durante a infecção patogenia de alguns vírus parece envolver a par-
aguda (e provavelmente também durante a re- ticipação de ambas. A invasão dos vírus das en-
ativação da infecção latente) também pode ser cefalites eqüinas do leste (EEEV), oeste (WEEV) e
seguida pelo transporte anterógrado da progênie venezuelana (VEEV) no encéfalo de animais in-
viral ao longo das fibras nervosas em direção ao fectados experimentalmente, por exemplo, já foi
encéfalo. Esses vírus são capazes de se transmi- demonstrado que pode ocorrer por ambas as vias,
tir através de sinapses nervosas e se disseminar embora uma delas provavelmente desempenhe
ao longo de circuitos neuronais sinapticamente um papel preponderante em infecções naturais.
Patogenia das infecções víricas 209

3.3 Localização das infecções a determinados tipos celulares ou tecidos, e ape-


nas estes podem ser infectados naturalmente. Por
isso, a distribuição de receptores nos tecidos e ór-
3.3.1 Infecções em órgãos e sistemas gãos é um determinante importante da patogenia
específicos dos vírus. Existem vários exemplos de mutações
naturais ou induzidas nas proteínas virais de li-
O padrão de doença sistêmica produzida gação nos receptores que resultam em alteração
durante uma infecção depende dos órgãos e teci- no tropismo e/ou na virulência do vírus mutan-
dos-alvo do vírus, das populações de células des- te. Esses exemplos ilustram a importância das
ses órgãos que são infectadas e também do tipo interações vírion-receptores como determinantes
de alterações produzidas pela replicação viral do tropismo e da patogenia das infecções víricas.
nessas células. Felizmente, nenhum vírus é capaz
de infectar todos os tecidos e células do hospe-
deiro. Na verdade, devido a sua dependência de
processos bioquímicos e moleculares específicos,
a maioria dos vírus infecta um número limitado
de tipos celulares no hospedeiro. As Figuras 8.8
a 8.12 apresentam alguns padrões peculiares de
disseminação, distribuição e localização de in-
fecções víricas em cães.
O termo tropismo é utilizado para designar
a predileção dos vírus por determinadas célu-
las, tecidos ou órgãos. Assim, o tropismo é um
dos principais determinantes da patogenia das
infecções víricas. O tropismo celular ou tecidual
de um vírus é determinado pela interação entre Fonte: www.bakerinstitute.vet.cornell.edu.

múltiplos fatores virais e celulares, e pode ser in-


fluenciado em diferentes níveis. A constituição e Figura 8.8. Patogenia da parvovirose canina. O CPV
penetra pela via oronasal e replica inicialmente na
fisiologia da membrana plasmática (presença de
orofaringe e nas tonsilas. Após a replicação primária, o
receptores, co-receptores, atividade endocítica, vírus atinge a corrente sangüínea e é transportado
espessura do citoesqueleto cortical etc.) podem sistemicamente pelo sangue. Os sítios de predileção para
afetar as etapas iniciais da infecção (adsorção, a replicação secundária são as células das criptas do
penetração, desnudamento e transporte intra- intestino delgado, que expressam o receptor para o vírus
e estão em multiplicação ativa. A replicação viral é
celular dos vírions). A presença de fatores de
acompanhada de destruição dessas células e reposição
transcrição, de transativadores ou inibidores e deficiente das células absortivas das vilosidades
de enzimas polimerases pode afetar a expressão intestinais. Os cães com gastrenterite pelo CPV
dos genes virais. Proteases e nucleases celulares apresentam dificuldade de absorção de nutrientes,
podem ativar ou inativar fatores virais. Os meca- diarréia hemorrágica e desidratação. A infecção pelo
CPV em filhotes caninos com menos de seis semanas de
nismos celulares de transporte e distribuição de
idade pode ser caracterizada por miocardite, pois nessa
macromoléculas podem afetar a replicação, dis- fase as células do miocárdio estão em constante mitose.
tribuição, morfogênese e liberação da progênie
viral, ou seja, o tropismo de um vírus pode ser Embora aparentemente seja o principal de-
determinado por fatores que atuam em qualquer terminante do tropismo, a presença dos recepto-
etapa do ciclo replicativo, desde o seu início até a res não é o único fator que determina a capacida-
etapa de egresso das partículas víricas. de do vírus infectar um determinado tipo celular.
A presença de receptores específicos na Para alguns vírus DNA e retrovírus, a transcri-
membrana da célula hospedeira é o principal fa- ção dos genes virais pode ser influenciada pela
tor determinante do tropismo para a maioria dos presença de fatores de transcrição e/ou inibido-
vírus. Em geral, os receptores virais são restritos res celulares. A penetração em células que não
210 Capítulo 8

apresentem tais fatores pode resultar em infecção vírions, que ocorre com eficiência diferente con-
abortiva, pois os genes virais não são expressos forme o tipo celular. Assim, o tropismo desses ví-
ou são expressos em quantidades insuficientes rus é parcialmente determinado pela capacidade
de determinadas células de clivar a proteína viral
de fusão. Esses exemplos ilustram a variedade de
fatores celulares que podem ser determinantes
do tropismo dos vírus por determinados tipos
celulares.

Fonte: www.bakerinstitute.vet.cornell.edu.

Figura 8.9. Patogenia da coronavirose canina. O


coronavírus canino (CCoV) penetra pela via oral pela
ingestão de água ou alimentos contaminados. O vírus
atinge o intestino pela passagem direta pelo trato Fonte: www.bakerinstitute.vet.cornell.edu.
digestivo, pois resiste ao pH ácido do estômago. No
intestino, o vírus infecta inicialmente as células das
Figura 8.10. Patogenia da hepatite infecciosa canina. A
vilosidades do duodeno e posteriormente se dissemina
infecção pelo adenovírus canino tipo 1 (CAdV-1) pode
até o íleo. A replicação nas células absortivas das
ocorrer pela via oral, nasofaringeal e/ou conjuntival,
vilosidades provoca uma enterite, que resulta em
seguida de replicação primária nas tonsilas e placas de
redução da absorção de nutrientes, diarréia e
Peyer. Durante a viremia primária, o vírus se dissemina
desidratação. O vírus é excretado nas fezes um a dois
no organismo e infecta as células endoteliais dos vasos e
dias após a infecção. O CCoV pode, ainda, disseminar-se
as células parenquimais de vários tecidos. A replicação
aos linfonodos mesentéricos e, ocasionalmente, replicar
no parênquima hepático resulta em hepatite, com a
no baço e fígado.
ocorrência de hemorragia e necrose no órgão. Também
Os parvovírus dependem da atividade da são encontradas lesões na córnea e glomerulonefrite,
DNA polimerase celular e fatores associados resultantes da deposição de imunocomplexos. O epitélio
para a replicação do seu genoma; por isso esses tubular renal é um sítio de acesso limitado do sistema
imune, permitindo a persistência do CAdV-1 nesse local
vírus apresentam tropismo marcante por célu-
por vários meses.
las em divisão. Os papilomavírus dependem de
células cuja síntese e transporte de nucleotídeos A distribuição dos vírus nos tecidos e órgãos
para o núcleo estejam ativos, além da ativida- do organismo depende de um balanço entre o pa-
de da DNA polimerase celular. O transporte de drão de disseminação e o seu tropismo celular e
nucleocapsídeos até as proximidades dos poros tecidual. Os vírus que se disseminam pela via he-
nucleares é uma atividade requerida para a repli- matógena podem ter acesso a virtualmente todos
cação dos adenovírus. A integração do provírus os tecidos do organismo. No entanto, a maioria
DNA de alguns retrovírus somente ocorre em desses vírus infecta apenas alguns tecidos ou ór-
células em atividade mitótica. A replicação dos gãos ou podem ainda infectar apenas algumas
papilomavírus está estritamente associada com o células específicas nesses órgãos. Em resumo, a
estágio de diferenciação dos queratinócitos e dos disseminação hematógena permite ao vírus atin-
fatores celulares expressos por essas células. A gir virtualmente todos os tecidos, mas não asse-
capacidade infectiva dos coronavírus e parami- gura que a replicação irá ocorrer em todos os te-
xovírus é influenciada pela clivagem e maturação cidos potencialmente atingidos. Por outro lado, a
da proteína envolvida na fusão e penetração dos disseminação neural é predominantemente dire-
Patogenia das infecções víricas 211

cional, pois o vírus se dissemina ao longo de cir- ciam a sua disseminação e localização no orga-
cuitos neuronais sinapticamente ligados e infecta nismo. Cada vírus, em particular, produz um ou
as populações de neurônios que recebem fibras mais padrões característicos de disseminação e
dos neurônios previamente infectados. Durante localização de suas infecções. É importante res-
a transmissão transináptica, alguns vírions po- saltar que cepas ou isolados de um mesmo vírus
dem se disseminar localmente e infectar células podem apresentar padrões diferentes de dissemi-
vizinhas, mas esta infecção fica geralmente limi- nação e distribuição, podendo resultar em mani-
tada. O egresso de vírions dos corpos neuronais festações clínico-patológicas distintas. A seguir
no SNC, por outro lado, pode resultar em disse- serão abordadas sucintamente as características
minação local e infecção de outros neurônios e das infecções nos principais órgãos ou sistemas
também de células da glia. do organismo. Detalhes da patogenia de cada in-
fecção vírica serão abordados nos capítulos espe-
cíficos.

Fonte: www.bakerinstitute.vet.cornell.edu.

Figura 8.11. Patogenia da traqueobronquite infecciosa


Fonte: www.bakerinstitute.vet.cornell.edu.
canina. Essa enfermidade pode ser causada por vários
agentes virais e bacterianos, incluindo o vírus da Figura 8.12. Patogenia da cinomose canina. O CDV
parainfluenza canina (CPIV-2) e o adenovírus canino penetra geralmente pela via oronasal e replica
tipo 2 (CAdV-2). Os agentes penetram pela via inicialmente nos epitélios e em macrófagos das vias
respiratória e replicam inicialmente no epitélio da aéreas superiores, faringe e tonsilas. A replicação
nasofaringe. Posteriormente a infecção se dissemina primária é seguida de viremia que permite a
para o epitélio pseudo-estratificado ciliado da traquéia. disseminação sistêmica do vírus e infecção de uma
A injúria epitelial pela replicação viral e o processo variedade de linfonodos e acúmulos linfóides, levando a
inflamatório resultam em perda da função ciliar, um quadro de imunossupressão. Em cães que não
aumento da produção de muco, com a ocorrência de tosse conseguem montar uma resposta imune eficiente, o
seca, engasgos e aumento da secreção nasal. A vírus produz uma viremia secundária, dissemina-se e
progressão da infecção para o trato respiratório inferior replica em uma variedade de tecidos, incluindo células
depende da infecção concomitante com bactérias e o epiteliais da pele, dos tratos digestivo, respiratório e
quadro clínico-patológico pode evoluir para urinário, no sistema nervoso central e no sistema
pneumonia, com tosse produtiva e febre. As infecções retículo-endotelial. Esses animais podem apresentar
pelo CPIV-2 e pelo CAdV-2 são geralmente restritas ao uma variedade de manifestações clínicas, que possuem
sistema respiratório, não causando viremia ou correlação com os órgãos/ tecidos afetados. A
disseminação sistêmica. incapacidade de erradicar o vírus pode resultar em
persistência viral no SNC.
A localização específica das infecções, isto é,
a distribuição do vírus em órgãos, tecidos e em
grupos de células específicas é determinada por 3.3.2 Infecções da pele e tegumento
vários fatores, que incluem a via de penetração e
replicação primária, a via de disseminação, o tro- As células da epiderme e derme se consti-
pismo tecidual e celular do vírus. Além desses fa- tuem em alvos de replicação de vários vírus. Es-
tores, as interações do vírus com os mecanismos ses tecidos podem se constituir nos sítios de re-
imunológicos do hospedeiro também influen- plicação primária após transmissão por contato,
212 Capítulo 8

abrasões, vetores mecânicos (alguns poxvírus e ou por contato a partir das lesões superficiais (ver
herpesvírus, papilomavírus) ou se constituir em Figura 8.5).
sítios de replicação secundária após uma disse-
minação hematógena (alguns poxvírus, CDV). 3.3.3 Infecções do trato respiratório
Por outro lado, os vírus que replicam na pele
ou na transição muco-cutânea oronasal e genital Estima-se que aproximadamente 90%
podem produzir infecções localizadas (papilo- das infecções respiratórias de animais possuam
mavírus) ou se disseminar para outros órgãos a etiologia viral, isoladamente ou em infecções
distância pela via sangüínea (vários poxvírus e mistas. A anatomia e fisiologia do trato respira-
alguns herpesvírus) ou neural (vários herpesví- tório favorecem o estabelecimento de infecções
rus). O tecido dérmico e subdérmico são ricos em veiculadas por aerossóis, poeiras ou transmitidas
células e capilares sangüíneos e linfáticos, a partir por contato direto ou indireto. Dentre os fatores
dos quais os vírus podem se disseminar pelo or- que favorecem as infecções respiratórias pode-
ganismo (ver Figuras 8.3A e 8.4). se mencionar: a) a inalação contínua de grande
Os efeitos da replicação viral nesses locais quantidade de ar potencialmente contaminado;
são mais pronunciados e visíveis em áreas des- b) o hábito investigativo olfatório de várias espé-
providas de pêlos, como as extremidades das cies animais; c) a grande superfície das vias respi-
orelhas, a transição muco-cutânea do focinho, da ratórias, que se estendem desde as fossas nasais
vulva, úbere e tetas, prepúcio e escroto. As in- até os alvéolos pulmonares; d) a diversidade do
fecções por contato freqüentemente resultam em epitélio que reveste os diferentes segmentos do
lesões delimitadas, com o desenvolvimento de trato respiratório; e) o gradiente de temperatura
eritema e edema localizados, máculas, pápulas, entre as fossas nasais (33ºC) e os alvéolos (tem-
formação e ruptura de vesículas, pústulas e ero- peratura corporal), que favorece a replicação de
sões. As erosões e a contínua exsudação podem alguns vírus; f) além dos aspectos que favorecem
levar ao acúmulo de fibrina, formando membra- a replicação viral no epitélio respiratório ou em
nas finas que recobrem as lesões e, posteriormen- tecidos anexos, a abundância e acessibilidade do
te, dessecam e formam crostas. A contaminação tecido linfóide e a irrigação presente nos tecidos
bacteriana das vesículas pode levar à formação subjacentes facilita a disseminação sistêmica des-
de pústulas. Na infecção por alguns vírus (p. ex.: ses vírus (ver Figura 8.3B). Da mesma forma, a
vírus do ectima contagioso dos ovinos), as cros- anatomia específica do epitélio olfatório fornece
tas que se desprendem das lesões contêm o vírus uma conexão direta com o SNC, o que favorece a
e podem mantê-lo viável durante meses no meio invasão do encéfalo por vários vírus (ex. BoHV-
ambiente, servindo de fonte de infecção para ou- 5). Por isso, apesar dos mecanismos naturais de
tros animais. defesa (muco e epitélio ciliar), o epitélio do trato
Algumas infecções sistêmicas podem resul- respiratório é um importante local de replicação
tar na formação de eritema, petéquias e sufusões para vários vírus.
na pele e/ou mucosas, sem estarem necessaria- Os vírus que replicam no trato respiratório
mente associadas com a replicação viral nesses podem produzir infecções localizadas (p. ex.:
locais. Nesses casos, essas patologias estão asso- vírus da influenza, vírus da parainfluenza, ví-
ciadas com alterações/lesões no endotélio vascu- rus sinciciais respiratórios) ou se disseminar a
lares e/ou com deficiências sistêmicas na coagu- partir desse local e infectar outros órgãos e sis-
lação sangüínea (p. ex.: trombocitopenia). temas (CDV, BoHV-1 e 5 e BVDV) (ver Tabela
Embora vários vírus produzam infecções 8.3). Alguns vírus tendem a replicar nas vias aé-
cutâneas e, assim, estão presentes nas lesões, reas superiores, causando rinite ou rinotraqueíte
nem todos utilizam esta via de excreção para se- (rinovírus e BoHV-1), outros replicam em seg-
rem transmitidos. Exceções são os herpesvírus, mentos intermediários, provocando traqueíte ou
alguns poxvírus e os papilomavírus, que podem bronquite (vírus da influenza), enquanto outros
ser transmitidos de forma mecânica por vetores atingem regiões mais internas e podem estar as-
Patogenia das infecções víricas 213

sociados com bronquiolite e pneumonia (vírus podem ser expelidos pela tosse, espirro, expecto-
sincicial respiratório bovino, BRSV). rações ou durante a ingestão de água e alimentos.
A replicação viral no epitélio respiratório é Esses agentes são transmitidos por contato direto
acompanhada de edema e inflamação, resultando ou indireto e alguns podem ser veiculados por
em interrupção da atividade ciliar, perda da in- aerossóis a distâncias relativamente grandes.
tegridade da camada de muco e destruição focal
ou multifocal de células epiteliais. A destruição
do epitélio e a perda da atividade ciliar contri-
3.3.4 Infecções do trato digestivo
buem para a colonização bacteriana secundária.
O afluxo de células inflamatórias e acúmulo de As infecções víricas do trato gastrintestinal
transudato resultam no aumento da área despro- (TGI) são muito comuns, sendo superadas em
vida de muco e na exposição da superfície celu- freqüência somente pelas infecções respiratórias.
lar. A infecção pode induzir a produção local de A anatomia e fisiologia dos órgãos que compõem
citocinas, que exacerbam o processo inflamatório o TGI também oferecem condições favoráveis
e contribuem para a manifestação de sinais clíni- para a instalação de infecções virais. Dentre estas
cos. Em estágios avançados, o edema da mucosa se destacam a exposição a uma grande quantida-
associado com o acúmulo de transudato, infil- de de agentes ingeridos com a água e alimentos,
trado inflamatório e restos celulares necróticos a grande área de superfície e a existência de dife-
podem levar à redução importante do lúmen e rentes tipos de epitélio nos vários segmentos do
conseqüente dificuldade respiratória. Contami- TGI.
nações bacterianas secundárias são freqüentes As infecções intestinais ocorrem de forma
em várias infecções víricas e, muitas vezes, são as direta, pela ingestão de partículas víricas (coro-
responsáveis pela severidade do quadro clínico. navírus, rotavírus e calicivírus), ou de forma in-
Além dos vírus que produzem infecções lo- direta, por via hematógena após a replicação viral
calizadas pela sua replicação no epitélio respirató- na orofaringe (parvovírus). Os vírus que atingem
rio, outros vírus utilizam esse epitélio como porta o intestino após a ingestão devem ser capazes de
de entrada para a replicação primária e infecção resistir ao pH ácido do estômago e aos sais bilia-
de outros órgãos (ver Tabela 8.3). O BoHV-1 re- res do intestino delgado para estabelecer a infec-
plica no trato respiratório e produz rinotraqueíte, ção. Após resistir a essas adversidades, o vírus
mas também pode se disseminar sistemicamente deve ultrapassar a camada de muco e penetrar
e infectar o feto. O BoHV-5 e o PRV replicam no nas células epiteliais para iniciar a infecção.
epitélio nasal e invadem o SNC, onde replicam De acordo com a sua biologia, os vírus asso-
maciçamente e provocam meningoencefalite. O ciados com infecção do TGI podem ser divididos
BVDV pode penetrar e replicar na mucosa naso- em três grupos principais: a) os vírus associa-
faríngea, a partir da qual se dissemina sistemi- dos primariamente com replicação no TGI e que
camente e pode infectar o feto, podendo causar causam gastrenterite (parvovírus, calicivírus,
aborto ou malformações. O CDV também pode astrovírus, coronavírus e rotavírus); b) os vírus
utilizar a replicação respiratória como etapa ini- excretados nas fezes, mas que não são enteropato-
cial de uma disseminação sistêmica. Os parvoví- gênicos (vários enterovírus, picornavírus, alguns
rus podem atingir o epitélio intestinal ou o feto adenovírus; vírus que causam hepatites); e c) ví-
após replicação primária e disseminação a partir rus sistêmicos que replicam no TGI e em outros
da mucosa orofaríngea. Nos vírus que atingem os órgãos, podendo estar associados com gastrente-
órgãos-alvo por viremia, a replicação secundária rite (exemplo: BVDV). Infelizmente, a biologia de
ocorre no tecido linfóide adjacente à mucosa res- muitos vírus associados primariamente com gas-
piratória e também nos linfonodos regionais. trenterite é muito pouco conhecida, pois muitos
Os vírus que replicam no trato respiratório, deles não replicam bem em cultivo celular, o que
produzindo infecções respiratórias ou sistêmicas, dificulta o seu estudo e a produção de reagentes
são excretados no muco nasal e/ou na saliva e para o diagnóstico.
214 Capítulo 8

Vírus de várias famílias replicam no TGI e células estão em divisão ativa, pois são encarre-
estão primariamente associados com doença en- gadas de substituir gradativamente as células
térica e diarréia. Embora esses agentes estejam das vilosidades que vão sendo esfoliadas. Com a
freqüentemente associados com enterite com ca- destruição das células das criptas pela replicação
racterísticas clínicas semelhantes, a sua patoge- viral, a substituição das células das vilosidades
nia apresenta algumas diferenças importantes. A se torna deficiente. Isso leva também à deficiên-
maioria desses vírus atinge o intestino pela via cia dos processos absortivos do ID, o que carac-
oral e replica nos enterócitos maduros das regi- teriza a síndrome de má-absorção secundária. A
ões mais altas das vilosidades do intestino del- destruição das células das criptas pela replicação
gado (ID) (Figura 8.13). Os vírus que replicam e viral resulta em achatamento das vilosidades e
destroem essas células provocam a redução da reação inflamatória severa. A destruição de en-
capacidade digestiva e absortiva do órgão, re- terócitos maduros leva à exposição das camadas
sultando em retenção de material parcialmente adjacentes, hemorragia e desidratação. A presen-
ou não-digerido no lúmen intestinal. Isso leva à ça de sangue nas fezes se constitui em um achado
retenção de água, aumento de volume e fermen- freqüente em várias infecções víricas intestinais,
tação excessiva nos segmentos terminais do ID e podendo estar associada com níveis importantes
no intestino grosso, exacerbando o efeito osmó- de mortalidade. Em ambos os casos, as vilosida-
tico que atrai água para o lúmen intestinal. Essa des se tornam atrofiadas e achatadas, podendo
condição é conhecida como síndrome da má-ab- ocorrer necrose progressiva e descamação.
sorção primária. Embora a maioria desses vírus replique pre-
Os parvovírus atingem o intestino delgado ferencialmente no epitélio do ID, alguns deles po-
pela via sangüínea, após a replicação na orofa- dem infectar as células epiteliais das vilosidades
ringe. Esses vírus infectam as células das criptas do intestino grosso. Em geral, a replicação desses
intestinais, que são imaturas e se constituem nas vírus fica restrita ao epitélio do intestino, com
células progenitoras dos enterócitos das vilosi- pouca ou nenhuma replicação em células da lâ-
dades (Figura 8.13). As células das criptas são os mina própria e tecidos subjacentes. Outros vírus
alvos principais de replicação do CPV e FPLV, infectam populações específicas de células, além
pelo fato de apresentarem uma taxa acelerada de das células epiteliais, como os astrovírus (células
divisão, o que favorece a replicação viral. Essas M e das placas de Peyer do ID).

A B
movimento dos enterócitos

Rotavírus
Astrovírus
Calicivírus
em maturação

Enterócitos maduros Coronavírus


(não-mitóticos, Adenovírus
Vilosidade absortivos) Torovírus
Epitélio do Dome Torovírus
(células M) Astrovírus

Células Placas de Peyer


das criptas Linfonodo Parvovírus
(mitóticas, Torovírus
secretórias)

Fonte: adaptada de Conner e Ramig (1997).

Figura 8.13. Ilustração simplificada da estrutura do epitélio do intestino delgado (A) e local de replicação de alguns
vírus entéricos (B).
Patogenia das infecções víricas 215

O BVDV está freqüentemente associado com contrário não seriam capazes de alcançar o en-
quadros de enterite, nos quais a replicação viral céfalo após a sua penetração no hospedeiro. O
nos epitélios e/ou no tecido linfóide adjacente termo neurovirulência se refere à capacidade dos
resulta em lesões erosivas e ulcerativas dissemi- vírus de replicar, disseminar-se no SNC e produ-
nadas pelo trato GI. Com certa freqüência, essas zir doença neurológica. Para a maioria dos vírus
lesões podem ser observadas ao longo do TGI, que produzem infecções neurológicas, estas duas
incluindo a língua, mucosa oral, esôfago, rúmen, propriedades estão presentes simultaneamente.
abomaso e intestino delgado. Além da replica- No entanto, tem sido demonstrado que alguns
ção nas células epiteliais, o caráter sistêmico do vírus podem ser neurovirulentos se inoculados
agente e a sua capacidade de replicar em células diretamente no SNC, mas não são capazes de
do sistema linforreticular provavelmente contri- atingir o encéfalo após replicação em sítios peri-
buem para a patogenia dessas lesões. féricos. Ou seja, são potencialmente neuroviru-
Os vírus que replicam no epitélio intesti- lentos, mas não neuroinvasivos. Alguns isolados
nal ou em órgãos anexos (fígado) geralmente são do BoHV-1, por exemplo, só produzem infecções
excretados em altos títulos nas fezes e são trans- neurológicas em coelhos após a inoculação intra-
mitidos principalmente pela via fecal-oral. Esses tecal ou intracerebral, não sendo capazes de in-
vírus são geralmente resistentes às condições vadir o encéfalo após a inoculação intranasal ou
ambientais, o que favorece a sua sobrevivência intraconjuntival.
no ambiente e transmissão. Os vírus hepatotró- A via nervosa fornece um acesso direto ao
picos (p. ex.: CAdV-1 e hepadnavírus) também encéfalo, pois os vírus são transportados ao lon-
são excretados nas fezes. Alguns vírus replicam go de fibras conectadas sinapticamente. O trans-
em órgãos anexos ao trato digestivo e são excre- porte ao longo de axônios e dentritos e a trans-
tados pela saliva, podendo ser transmitidos por missão através das sinapses permite aos vírions
mordeduras (vírus da raiva em cães, gatos e mor- percorrer longas distâncias e atingir o encéfalo a
cegos; arenavírus entre roedores; herpesvírus B partir dos sítios periféricos de replicação.
em macacos) ou pelo contato direto ou indireto A penetração de vírus no SNC a partir do
com as secreções contaminadas (CDV, CAdV-1 e sangue oferece obstáculos adicionais, representa-
FMDV). dos pela barreira hematoencefálica. Essa barreira
é formada pela estrutura especializada da parede
3.3.5 Infecções do sistema nervoso de certos capilares, que apresentam células en-
central doteliais justapostas; pela lâmina basal espessa;
pelo plexo coróide; e pelo epitélio ependimal,
O SNC se constitui em órgão-alvo para a re- que não apresenta espaço entre as células. Em-
plicação de diversos vírus, cuja infecção é geral- bora estas barreiras sejam eficientes para evitar
mente revestida de significado especial pela sua a penetração de alguns vírus no SNC, parecem
importância. Os vírus que produzem infecções não serem capazes de impedir a penetração de
neurológicas e encefalite geralmente invadem o outros. É provável que alguns vírus consigam ul-
encéfalo através dos nervos, mas vários deles po- trapassar essas barreiras; outros podem infectar
dem atingir esse órgão pela via hematógena. Os as células endoteliais e serem liberados na face
vírus que replicam em células do sistema nervoso oposta; uma minoria parece ser transportada do
são ditos neurotrópicos, mas a maioria deles tam- sangue para o tecido nervoso no interior de célu-
bém é capaz de replicar em outras células. Duas las sangüíneas.
propriedades devem ser definidas com relação a Após a penetração no tecido nervoso, o ví-
infecção neurológica por vírus. O termo neuroin- rus pode se disseminar localmente pela infec-
vasividade se refere à capacidade dos vírus atingir ção de neurônios e células da glia localizadas
o SNC após a replicação em sítios periféricos. Os nas proximidades; pode se disseminar pelos
vírus que produzem infecções neurológicas sob espaços intercelulares; e pode também atingir
condições naturais são neuroinvasivos, pois do regiões mais profundas dos SNC por transpor-
216 Capítulo 8

te transináptico. Embora as manifestações clíni- aquele de ocorrência mais freqüente – para expli-
co-patológicas mais importantes das infecções car os distúrbios neurológicos associados com as
neurológicas devam-se a distúrbios funcionais e infecções víricas do SNC, a ocorrência de doença
morte dos neurônios, uma variedade de células neurológica grave sem infecção neuronal maciça
pode ser infectada e contribuir para as patologias também tem sido descrita em infecções víricas.
observadas. Ou seja, as patologias neurológicas Isso demonstra que alguns vírus podem causar
nem sempre são derivadas exclusivamente da in- disfunção neuronal grave sem infecção ou morte
fecção viral dos neurônios. Para vários vírus que de um número significativo dessas células, o que
produzem infecções neurológicas, as células-alvo poderia explicar, em parte, os casos de recupe-
da replicação no SNC ainda não são perfeitamen- ração clínica que eventualmente ocorram após
te definidas. A identificação das células-alvo da infecções neurológicas. Em muitos casos, ocorre
replicação se constitui em um ponto-chave para a infecção de um número variável de células da
o entendimento da patogenia de muitas infecções micróglia, de astrócitos e de oligodendrócitos,
víricas neurológicas. com um envolvimento pouco significativo de
Os efeitos mais deletérios e mais estudados neurônios. É possível que produtos virais tóxicos
das infecções neurológicas por vírus se devem à para os neurônios sejam liberados por essas célu-
destruição dos neurônios infectados. Dependen- las no meio extracelular. A liberação de citocinas
do do número de neurônios infectados e destru- e outros mediadores químicos inflamatórios tam-
ídos, esses eventos podem resultar em doença bém têm sido implicados na disfunção neuronal
severa e na morte do hospedeiro, como ocorre observada nessas infecções. Em particular, o óxi-
em animais de laboratório infectados experimen- do nítrico que é produzido por células da glia em
talmente com alguns buniavírus, vírus da raiva, resposta à infecção vírica pode ser deletério para
herpesvírus e alfavírus. A morte celular pode os neurônios. De fato, tem sido demonstrado que
dever-se a uma variedade de mecanismos, mui- as interações entre células inflamatórias e neurô-
tos já descritos na secção referente às interações nios podem resultar em toxicidade e disfunção
do vírus com as células hospedeiras (seção 2.1). neuronal, sem necessariamente induzir a morte
A indução de apoptose em neurônios também de neurônios. Os mecanismos efetores celulares
tem sido implicada na patogenia de alguns vírus e humorais da resposta inflamatória também
neurovirulentos. O tropismo específico do vírus podem potencialmente contribuir para a injúria
por determinadas subpopulações de neurônios e disfunção neuronal. Esses mecanismos podem
pode influenciar o padrão de neurovirulência e explicar, em parte, a ocorrência de doença neuro-
as conseqüências clínico-patológicas da infecção. lógica severa e até mesmo fatal, desacompanha-
O poliovírus, por exemplo, infecta preferencial- da de infecção neuronal significativa, como ocor-
mente neurônios do corno anterior da medula re em algumas situações.
espinhal, resultando em sintomatologia caracte- Além das infecções neurológicas agudas
rística. O buniavírus La Crosse infecta as células com conseqüências clínico-patológicas variáveis
de Purkinge do cerebelo de camundongos infec- – e freqüentemente fatais – alguns vírus estabe-
tados experimentalmente. A via de inoculação lecem infecções persistentes no sistema nervoso.
e penetração no SNC também pode determinar Uma parte das infecções agudas resulta em mor-
as características clínico-patológicas da infecção. te do hospedeiro dentro de poucos dias, tendo,
O curso clínico e os sinais clínicos apresentados assim, importância epidemiológica limitada (p.
por coelhos inoculados com o BoHV-5 variam ex.: encefalites eqüinas por alfavírus e flavivírus,
de acordo com a via de inoculação (intranasal e raiva e cinomose). Por outro lado, as infecções
conjuntival), provavelmente refletindo diferentes persistentes podem ter conseqüências epidemio-
padrões temporais e espaciais de replicação viral lógicas mais importantes, pela perpetuação da
no encéfalo. infecção nos hospedeiros. Para estabelecer uma
Embora a infecção e destruição de neurô- infecção persistente, o vírus não pode matar as
nios seja o mecanismo mais atraente – e talvez células infectadas; ele deve manter a sua replica-
Patogenia das infecções víricas 217

ção em níveis baixos e possuir estratégias para essa ocorrência pode demorar anos. A persis-
escapar da vigilância do sistema imunológico. tência do vírus no SNC, após a infecção aguda,
De fato, nessas infecções, a extensão da injúria pode ser favorecida por mutações que resultem
e lesões é geralmente muito pequena ou mesmo na produção de vírus defectivos. Outra forma de
ausente. Por outro lado, a persistência viral em infecção persistente no SNC é a estabelecida pelo
células nervosas é freqüentemente associada com retrovírus MVV, nos quais o vírus estabelece in-
imunopatologia em neurônios e células da glia. fecção crônica em células da linhagem macrofági-
O SNC apresenta características que podem ca com produção de vírus ausente ou esporádica.
favorecer a persistência de infecções víricas, entre O vírus da doença de Borna (BDV) de eqüinos
elas: possui uma população estável e heterogênea também estabelece infecção persistente no siste-
de células susceptíveis a vários vírus; uma rede ma nervoso, porém a produção de vírus parece
intrincada de processos (axônios e dendritos) que ser contínua, apesar de ocorrer em níveis baixos.
permite a disseminação do vírus a longas distân-
cias; uma barreira hemato-encefálica que restrin- 3.3.6 Infecções do sistema linforreticular
ge o acesso de linfócitos T e anticorpos. No en- e hematopoiético
tanto, alguns vírus infectam concomitantemente
células extraneurais e produzem viremia crônica, Vários vírus utilizam células linforreticula-
indicando que o SNC pode não oferecer todas as res e/ou da linhagem hematopoiética como alvos
condições para a persistência viral. de replicação em infecções naturais. A variedade
As infecções persistentes do SNC podem ser de tipos celulares e a multiplicação contínua de
classificadas em três tipos principais, com conse- algumas dessas células favorecem a replicação
qüências clínico-patológicas e epidemiológicas desses vírus. Da mesma forma, a contínua re-
diferentes: infecções latentes, infecções crônicas circulação dessas células – especialmente os lin-
defectivas e infecções crônicas produtivas. Os fócitos – favorece o caráter sistêmico dessas in-
alfaherpesvírus (PRV, BoHV-1, BoHV-5 etc.) es- fecções. Em geral, a infecção se inicia nos órgãos
tabelecem infecções latentes em neurônios dos linfóides secundários, após a drenagem da linfa
gânglios sensoriais e autonômicos próximos ao dos tecidos ou com a passagem do sangue pelo
sítio de infecção primária. Durante a infecção la- baço. Os vírus presentes na linfa e/ou sangue são
tente, o genoma do vírus permanece inativo no capturados por ou infectam células da linhagem
núcleo dos neurônios, sem expressão gênica ou monocítica/macrofágica, células dentríticas ou
produção de progênie viral. Ocasionalmente, em linfócitos dos linfonodos, baço, placas de Peyer
situações de estresse, o vírus retoma a replicação e outros acúmulos linfóides. A replicação viral
ativa e é transportado de volta aos sítios de pene- nessas células é seguida da produção de progênie
tração, onde replica e é excretado. A reativação viral que infecta um número adicional de células
da infecção é importante na epidemiologia des- próximas, além de permitir a sua disseminação
ses vírus, pois permite a excreção e transmissão sistêmica através de células circulantes. Assim o
a outros animais. Algumas vezes a reativação é vírus pode se distribuir por outros órgãos linfor-
acompanhada de recrudescência clínica, com o reticulares e se disseminar nesses tecidos. Infec-
desenvolvimento de lesões no sítio de penetra- ções de células progenitoras hematopoiéticas da
ção, e também com o desenvolvimento esporádi- medula óssea podem ocorrer nesses estágios da
co de infecção neurológica e meningo-encefalite infecção. Os macrófagos, células dendríticas, lin-
(BoHV-5). Cães que se recuperam da infecção fócitos T e B são alvos de replicação de uma varie-
aguda pelo CDV – acompanhada ou não de si- dade de vírus que causam doenças em animais.
nais clínicos – podem ficar portadores do vírus, Além dessas, células progenitoras da linhagem
que segue replicando em níveis muito baixos no linfóide, mielóide ou hematopoiética da medu-
SNC, geralmente desacompanhado de excreção la óssea podem ser infectadas por alguns vírus e
viral. Eventualmente esses animais desenvolvem comprometer a reposição das células sangüíneas
um quadro de encefalite viral e vão a óbito, mas (alguns vírus induzem trombocitopenia).
218 Capítulo 8

A infecção maciça do sistema linforreticular 3.3.7 Infecção fetal


freqüentemente leva à depleção linfóide e disfun-
ção da resposta imunológica. A disfunção do sis-
Os tecidos embrionários e fetais apresen-
tema imunológico pode resultar em deficiências
tam uma alta taxa de multiplicação celular e, por
na resposta a outros patógenos, com predisposi-
isso, constituem-se em sítios de predileção para
ção a infecções secundárias. Vários vírus animais
a replicação de vários vírus. Os vírus que infec-
têm sido associados com infecção do sistema lin-
tam o feto se disseminam pela via hematógena e
fóide e indução de imunossupressão, incluindo o
vários deles produzem infecções inaparentes ou
vírus da doença de Gumboro em aves (IBDV), o
leves nas fêmeas prenhes. Nesses casos, as conse-
FIV e o vírus da imunodeficiência bovina (BIV).
qüências maiores da infecção são devidas às per-
Outros vírus, como o BVDV, CSFV, CDV e CPV
das reprodutivas. As conseqüências da infecção
podem estar associados com quadros transitórios
fetal variam com a espécie e cepa do vírus, com
de supressão imunológica. A imunossupressão
o status imunológico da fêmea e com a fase de
produzida por esses vírus pode dar-se em razão
gestação em que ocorre a infecção. As infecções
de vários mecanismos e será abordada em seção
que ocorrem em fases precoces da gestação são
específica.
geralmente acompanhadas de morte embrionária
Alguns dos vírus mais virulentos para hu-
ou fetal. Infecção fetal em estágios intermediários
manos e animais estão associados com infecções
pode produzir teratogenia ou abortos e infecção
do tecido linforreticular e hematopoiético, in-
cluindo o vírus ebola (filovírus), arenavírus, han- em fases avançadas pode induzir abortos, nati-
tavírus, o vírus da febre do vale Rift (um bunia- mortos ou resultar em resposta imunológica e er-
vírus), o VEEV, CSFV e ASFV. Esses vírus estão radicação da infecção pelo feto.
associados com doença severa, caracterizada pelo A infecção fetal também pode representar
curso agudo e pela ocorrência de lesões vascula- um meio para o vírus persistir na população, pela
res, disfunções hemodinâmicas, de coagulação geração de animais imunotolerantes e persisten-
sangüínea e ocorrência de eventos hemorrágicos. temente infectados, capazes de disseminar o ví-
Alguns isolados do BVDV também têm sido as- rus por longos períodos. A produção de neonatos
sociados com doença aguda severa acompanhada persistentemente infectados é característica da
de componentes hemorrágicos. Essas enfermida- infecção fetal por cepas não-citopáticas do BVDV
des possuem algumas características em comum, entre os 40 e 120 dias de gestação, e pode ocorrer
como o curso agudo, a ocorrência de alterações também com os pestivírus suíno e ovino. Os efei-
vasculares, lesões endoteliais com perda de líqui- tos da infecção fetal pelo BVDV estão ilustrados
do vascular, proteinúria e edemas. As manifesta- na Figura 8.14.
ções mais comuns da injúria nos endotélios vas- Os efeitos observados no feto podem dever-
culares incluem hiperemia acentuada, petéquias se à replicação viral nos tecidos fetais e/ou repli-
e sufusões nas mucosas e serosas, equimoses e cação na placenta e interferência com as funções
hemorragias pontuais disseminadas em quadros placentárias. A mortalidade fetal pode ser segui-
severos. Quadros de choque hipovolêmico são da de reabsorção, mumificação fetal ou aborta-
freqüentes em estágios avançados da doença. As mento. Os abortos associados com infecções víri-
hemorragias e extravasamento de plasma podem cas geralmente ocorrem dias ou semanas após a
ser por causa da injúria nos endotélios vasculares infecção, o que dificulta a detecção de vírus e/ou
pela replicação viral nas células endoteliais, por produtos virais nos tecidos fetais e conseqüente-
alterações na coagulação sangüínea (coagulação mente o diagnóstico.
intravascular disseminada com consumo de pla- Dentre os vírus animais que produzem in-
quetas) ou ainda por trombocitopenia primária. fecções embrionárias e fetais destacam-se:
Patogenia das infecções víricas 219

– herpesvírus de várias espécies: mortalida- – vírus da leucemia felina (FeLV): leucemia,


de fetal, abortos, doença ou mortalidade neona- mortalidade fetal;
tal; – vírus da síndrome respiratória e reprodu-
– pestivírus de bovinos (BVDV), suínos tiva dos suínos (PRRSV) e vírus da arterite viral
(CSFV) e ovinos (border disease virus – BDV): mor- eqüina (EAV): mortalidade fetal, abortos;
talidade fetal, abortos, malformações, natimorta- – vírus Akabane (ovinos e bovinos): morte
lidade, nascimento de animais persistentemente fetal, abortos, malformações, natimortalidade;
– vírus da febre do vale Rift (RVFV) em ovi-
infectados;
nos: mortalidade fetal e abortos.
– vírus da língua azul (BTV, um orbivírus)
Perdas reprodutivas por alguns desses agen-
em ovinos e bovinos: mortalidade fetal, abortos,
tes também têm sido relatadas após o uso de va-
malformações congênitas;
cinas atenuadas contendo os respectivos agentes.
– parvovírus suíno (PPV): reabsorção em- Por outro lado, para os vírus que causam perdas
brionária, mortalidade fetal, abortos, mumifica- reprodutivas importantes, a vacinação deve ser
ção, natimortalidade; realizada antes da cobertura ou inseminação para
– vírus da panleucopenia felina (FPLV): hi- prevenir a infecção fetal e, assim, minimizar as
poplasia cerebelar; perdas.

BVDV

ncp ou cp

Soropositivo, sem o vírus

ncp

Bezerro PI

Natimortos
Malformações
ncp ou cp Bezerros PI
Infertilidade
Abortos

Atrofia da retina
Cegueira
Embrião muito
susceptível Lesões no SNC
Bezerros saudáveis
soropositivos
Imunotolerância (PI)
Efeitos na
fertilização,
implantação Abortos

0 40 80 120 160 200 240 280

D I A S D E G E S TA Ç Ã O

Figura 8.14. Efeitos da infecção de fêmeas bovinas prenhes pelo vírus da diarréia viral bovina (BVDV). As
conseqüências da infecção dependem do status imunológico da fêmea, da cepa do vírus (biotipo e virulência) e do
estágio de desenvolvimento do embrião/feto.
220 Capítulo 8

4 Padrões principais de infecção principais de infecção podem ser reconhecidos:


as infecções agudas e as infecções crônicas (ou
A sobrevivência dos vírus como espécie persistentes). No entanto, variações e combina-
depende de infecções sucessivas e contínuas de ções desses tipos também ocorrem com freqüên-
diferentes indivíduos e/ou de infecções prolon- cia (Figura 8.15).
gadas no mesmo indivíduo. Por outro lado, o re- Alguns vírus produzem infecções agudas, que
sultado da infecção viral em um animal depende se caracterizam pela curta duração e rápida er-
de interações múltiplas entre componentes virais radicação do agente pela resposta imunológica
e do hospedeiro. Objetivamente, depende do do hospedeiro. Outros vírus produzem infecções
balanço entre as estratégias virais para se perpe- persistentes ou crônicas, caracterizadas pela per-
tuar no organismo e dos mecanismos de defesa manência do agente no hospedeiro por longos
do hospedeiro para erradicar o agente. Apesar períodos, muitas vezes pelo resto da vida. A na-
da diversidade dos vírus e da complexidade de tureza autolimitante das infecções agudas se deve
suas interações com os hospedeiros, dois padrões principalmente à eficiência do sistema imunoló-

Infecção Aguda

Infecção Latente

Infecção Persistente

Infecção Persistente
temporária

Replicação viral

Manifestações clínicas

Fonte: adaptada de Flint et al. (2000).

Figura 8.15. Principais padrões de infecção.


Patogenia das infecções víricas 221

gico do animal em combater e erradicar a infec- ções entéricas por rotavírus em várias espécies,
ção. Visto por outro ângulo, o caráter transitório vírus da influenza em suínos e eqüinos, vírus da
dessas infecções se deve à incapacidade dos vírus raiva em várias espécies, CPV, entre outras.
persistir no animal na presença da resposta imu-
nológica. As infecções persistentes ou crônicas 4.2 Infecções persistentes ou crônicas
também podem ser vistas sob duas óticas: a) do
ponto de vista do hospedeiro, a persistência do As infecções crônicas ou persistentes se ca-
agente em seus tecidos reflete a incapacidade do racterizam pela persistência do vírus ou do ge-
sistema imunológico de erradicá-lo; e b) do ponto noma viral no hospedeiro por longos períodos.
de vista do agente, a persistência é o resultado A maioria dessas infecções se inicia como uma
de estratégias evolutivas, que foram desenvolvi- infecção aguda, caracterizada por uma rápida
das para se adaptar ao hospedeiro e escapar da replicação viral, acompanhada ou não de sinais
vigilância do sistema imunológico, garantindo, clínicos. No entanto, ao contrário das infecções
assim, a sua permanência no animal. agudas, a resposta imunológica montada pelo
hospedeiro não é capaz de erradicar o agente,
4.1 Infecções agudas resultando na sua permanência nos tecidos por
períodos variáveis. Diferentes tipos de infecções
A principal característica das infecções agu- crônicas podem ser reconhecidos de acordo com a
das é o curto período de tempo em que o vírus biologia do agente, com a dinâmica de replicação
replica no organismo do hospedeiro. É o padrão viral (ausência ou presença de replicação ativa) e
de infecção mais estudado e conhecido e é carac- com a duração. Em geral, os níveis de replicação
terístico de vários vírus que replicam com eficiên- e excreção viral nas infecções crônicas são muito
cia em animais e em cultivos celulares. O termo mais baixos do que nas infecções agudas e, algu-
aguda se refere à rapidez de replicação e produ- mas vezes, podem ser dificilmente detectáveis.
ção de progênie viral, que é seguida também por De acordo com a ocorrência ou não de re-
uma rápida resolução e erradicação da infecção. plicação viral durante a persistência, dois tipos
Os níveis de replicação viral no organismo au- principais de infecções crônicas são reconheci-
mentam rapidamente, atingem um pico após al- dos: as infecções latentes e as infecções persisten-
guns dias e decrescem também com certa rapidez tes. As infecções latentes são caracterizadas pela
(Figura 8.15). A redução dos níveis de vírus no permanência do genoma viral nas células do hos-
organismo coincide com o desenvolvimento de pedeiro, na maior parte do tempo sem replicação
resposta imunológica humoral (anticorpos) e ce- e produção de vírus. A replicação e produção de
lular (linfócitos T citotóxicos). Em geral, a respos- progênie viral somente ocorrem em situações es-
ta imunológica é capaz de erradicar o agente dos porádicas e duram horas ou poucos dias. Já nas
tecidos após alguns dias. Se, por um lado, o curto infecções persistentes, a replicação viral ocorre
período de replicação e excreção pode ser detri- de forma contínua, em níveis variáveis, e é fre-
mental para a sobrevivência do vírus na popula- qüentemente acompanhada de excreção do agen-
ção, os altos títulos de vírus que são excretados te. Em algumas infecções persistentes, no entan-
favorecem a transmissão do agente. to, os níveis de replicação são tão baixos – e em
É importante ressaltar que o termo aguda se determinados tecidos do organismo – que não
refere à cinética de replicação viral (níveis e tem- são acompanhados de excreção viral detectável
po) e não às manifestações clínicas. De fato, muitas (p. ex.: persistência do CDV no encéfalo de cães
infecções agudas são absolutamente subclínicas, adultos e persistência do FMDV na faringe). Em
ou seja, são desacompanhadas de manifestações outras, a replicação e excreção viral ocorrem de
clínico-patológicas. Não obstante, muitas vezes forma contínua e em níveis significativos.
as infecções agudas não podem ser controladas As infecções persistentes – aquelas que cur-
pelo sistema imunológico e resultam em doen- sam com replicação viral contínua – podem ser
ça de severidade variável, algumas vezes fatais. agrupadas em duas classes, que são determina-
Exemplos de infecções agudas incluem as infec- das pela biologia dos vírus e por suas interações
222 Capítulo 8

com o hospedeiro. Para alguns vírus, o estabe- 4.2.1 Infecções latentes


lecimento de infecção persistente é uma regra
e ocorre em, virtualmente, todos os indivíduos Esse tipo de infecção é típico dos alfaher-
infectados. Em outras palavras, a persistência é pesvírus animais (BoHV-1, BoHV-5, PRV, EHV-
uma característica biológica inerente às relações 1, herpesvírus canino, herpesvírus felino, entre
daquele vírus com os seus hospedeiros. Esse tipo outros) e se caracteriza pela permanência do ge-
de infecção persistente se prolonga por tempo in-
noma viral inativo em neurônios dos gânglios
determinado, provavelmente por toda a vida do
sensoriais e autonômicos após o término da repli-
animal. Essas são as infecções persistentes clássicas
cação na fase aguda. Durante a infecção latente
e são características das infecções pelos retro-
não ocorre produção de proteínas virais, replica-
vírus animais, além de outros vírus. Em outros
ção do genoma ou produção de partículas víri-
grupos de vírus, infecções persistentes podem
cas. Com isso, os neurônios que abrigam o geno-
ser estabelecidas após a infecção aguda, em um
ma viral não são reconhecidos como infectados
número variável de indivíduos, e a persistência
geralmente possui duração variável, não necessa- pelo sistema imunológico, o que permite ao vírus
riamente indefinida. Nesses casos, a persistência escapar da vigilância imunológica. O genoma vi-
é uma conseqüência provável – e muitas vezes ral não é integrado aos cromossomos celulares e
freqüente – da infecção, mas não se constitui em permanece como um epissomo, fortemente asso-
regra ou padrão biológico da infecção por esses ciado com proteínas celulares no núcleo dos neu-
vírus. Além disso, grande parte dos animais que rônios. Esporadicamente, geralmente associado
se tornam portadores consegue erradicar a infec- com situações de estresse e produção de glico-
ção após algum tempo, determinando o fim da corticóides endógenos, a infecção é reativada e o
persistência, ou seja, são infecções persistentes tem- vírus replica de forma aguda e é excretado. O pe-
porárias (Figura 8.15). ríodo e a magnitude de excreção viral durante a
Algumas infecções persistentes são acompa- reativação são geralmente bem inferiores àqueles
nhadas de sinais clínicos crônicos, que podem ser observados durante a infecção aguda. A reativa-
brandos ou graves; outras vezes a infecção é ab- ção da infecção ocasionalmente é acompanhada
solutamente inaparente. Várias infecções crônicas de manifestações clínicas, geralmente mais bran-
resultam em patologias progressivas de desen- das do que aquelas observadas durante a infec-
volvimento lento (MVV, CAEV, vírus da pneu- ção aguda. As reativações ocorrem a intervalos
monia progressiva dos ovinos [OPPV] e FeLV), variáveis (semanas, meses, anos) em uma parcela
em imunopatologia ou imunodeficiência (EIAV, dos indivíduos e é possível que alguns hospedei-
FIV e LCMV) ou no desenvolvimento de neopla- ros não apresentem episódios de reativação. A
sias malignas (vírus da leucose aviária [ALV] e infecção latente representa um meio do vírus se
BLV). Essas patologias são mais comumente ob- perpetuar no hospedeiro, e a sua reativação peri-
servadas nas infecções persistentes clássicas.
ódica permite a sua excreção e transmissão.
Os locais de persistência do vírus não são
necessariamente os mesmos em que o vírus re-
plicou e produziu patologias na fase aguda e, fre- 4.2.2 Infecções persistentes ou crônicas
qüentemente, incluem sítios de acesso restrito do
sistema imunológico. Os padrões de replicação e
Essas infecções se caracterizam pela contí-
excreção viral durante as infecções crônicas tam-
bém são muito variáveis. Em algumas infecções, nua replicação e produção de partículas víricas
a replicação viral é contínua e ocorre em níveis nos tecidos do hospedeiro por tempo ilimitado,
moderados a altos; em outras, os níveis de repli- provavelmente por toda a vida do animal. É pos-
cação são muito baixos, com pouca ou nenhuma sível se detectar o agente infeccioso em qualquer
excreção viral. Já as infecções latentes são carac- momento após a infecção aguda, desde que se
terizadas por longos períodos de absoluta ausên- examinem os tecidos certos com técnicas apro-
cia de replicação viral intercaladas com episódios priadas. As infecções persistentes se estabelecem
esporádicos de reativação, replicação e excreção porque o sistema imunológico do hospedeiro não
viral. consegue erradicar o vírus durante a infecção
Patogenia das infecções víricas 223

aguda. Subseqüentemente, por diferentes me- outros casos, as infecções crônicas que se seguem
canismos, o agente consegue coexistir com uma às infecções agudas parecem ocorrer na maioria,
resposta imune que mantém um controle parcial senão em todos os animais. Os níveis de repli-
da infecção, sem conseguir eliminá-la totalmente. cação e excreção viral variam de acordo com o
Os níveis de replicação nesse tipo de infecção va- agente e com a resposta do hospedeiro. A dura-
riam de acordo com o vírus. Alguns vírus man- ção da persistência também é variável, podendo
têm níveis consideráveis de replicação de forma ser de meses e até anos (ou até mesmo por toda a
contínua; outros apresentam uma replicação vida do animal). Naqueles casos em que a erradi-
mínima, às vezes, de difícil detecção. As infec- cação do agente ocorre após algum tempo, é pro-
ções pelos retrovírus animais (EIAV, BLV, FeLV, vável que o vírus tenha esgotado o seu arsenal de
CAEV, entre outras), BTV e infecção persistente estratégias para persistir no animal, sendo even-
pelo BVDV são exemplos clássicos de infecções tualmente combatido pelo sistema imune. Vários
víricas persistentes. vírus produzem este tipo de infecção. O PRRSV
No caso dos retrovírus, a manutenção da in- permanece replicando nos testículos de repro-
fecção se deve à integração definitiva de cópias dutores suínos por até seis meses após a infec-
DNA do genoma viral nos cromossomos das ção aguda. O CAdV-1 também pode permanecer
células hospedeiras, ou seja, as células infecta- durante meses replicando no epitélio dos túbulos
das ficam persistentemente infectadas e, caso se renais, que são locais de acesso restrito do sistema
multipliquem, transmitem o genoma viral para imunológico. A infecção pelo CDV é um exemplo
a sua progênie. Assim, gerações sucessivas de de infecção que é geralmente aguda – na maioria
células produzem vírus infecciosos ao longo da dos animais – mas pode se tornar crônica em uma
vida do animal. No caso do BLV, a manutenção parcela dos cães que não conseguem erradicar o
da infecção persistente deve-se principalmente a vírus na fase aguda. Nesses animais, o vírus per-
divisões celulares contínuas e transmissão do ge- siste replicando em níveis baixos no SNC. Essa
noma viral para a progênie, do que à produção replicação não é acompanhada de excreção viral
de vírus infecciosos. É interessante observar que em secreções ou excreções. A maioria desses ani-
os retrovírus, além de inserir o seu material ge- mais eventualmente desenvolve doença neuro-
nético nos cromossomos do hospedeiro, também lógica de curso fatal, em um prazo que varia de
sofrem contínuas mutações que contribuem para meses a anos. No caso do calicivírus felino (FCV),
a sua perpetuação no animal infectado. a persistência do vírus no hospedeiro parece ser
As infecções persistentes pelo BVDV somen- favorecida pela ocorrência contínua de mutações
te ocorrem em animais que tenham sido infecta- genéticas que resultam em variantes virais que
dos intra-uterinamente, entre os 40 e 120 dias de escapam da resposta imune do animal. O FMDV
produz uma infecção clínica aguda (febre aftosa)
gestação. Esses animais se tornam imunotoleran-
que se resolve em poucos dias. No entanto, uma
tes e são incapazes de montar uma resposta imu-
parcela dos animais permanece abrigando o vírus
nológica contra o vírus infectante. Assim, o vírus
na faringe por um determinado tempo. Os níveis
pode replicar continuamente em altos títulos no de replicação são geralmente muito baixos e pa-
tecido linforreticular e epitélios dos animais, sem recem não ser acompanhados de excreção viral.
a interferência do sistema imunológico. Alguns arenavírus e hantavírus produzem
infecções crônicas em roedores silvestres. Essas
4.2.3 Infecções persistentes temporárias infecções são acompanhadas por viremia prolon-
gada – muitas vezes por toda a vida – e de trans-
Em alguns vírus, a infecção aguda pode ser missão vertical do vírus para a progênie. Já as
seguida de persistência do agente nos tecidos do infecções crônicas por hantavírus são caracteriza-
hospedeiro por períodos variáveis. Em algumas das por viremia transitória seguida de excreção
delas, a persistência ocorre apenas em alguns prolongada de vírus pela saliva, secreções nasais,
animais, não se constituindo em uma regra. Em fezes e urina. Esses vírus podem ser ocasional-
224 Capítulo 8

mente transmitidos para humanos e são impor- 8.4 apresenta as principais características das in-
tantes causas de febres hemorrágicas. A Tabela fecções virais persistentes.
Tabela 8.4 Sítios de persistência de vírus que estabelecem infecções latentes ou persistentes nos hospedeiros

Tipo Família/subfamília Vírus Espécie Local de persistência

Gânglios sensoriais e autonômicos, tonsilas e


BoHV-1 bovina linfócitos T (BoHV-1.1), linfonodos da região
sacral (BoHV-1.2).

BoHV-5 bovina Gânglio trigêmeo e sítios do SNC.

BoHV-2 bovina Gânglio trigêmeo, pele e linfonodos.

CaHV-1 canina Gânglios sensoriais e autonômicos.

FHV-1 felina Gânglios sensoriais e autonômicos.


Herpesviridae/
Alphaherpesvirinae CpHV caprina Gânglios sensoriais e autonômicos.

PRV suína Gânglio trigêmeo, bulbo olfatório, tronco


cerebral, medula espinhal, tonsilas.
Latente

EHV-1, 3 e 4 eqüina Gânglios sensoriais e autonômicos.

GaHV-1 aves Gânglios sensoriais e autonômicos.

Herpesviridae/ PCMV (SHV-2) suína Glândula salivar, epitélio vesical e células


Betaherpesvirinae mononucleares.

Herpesviridae/ MCFV (AHV-1) ruminantes Células linfoblastóides.


Gammaherpesvirinae
EHV-2 e 5 eqüina Células linfoblastóides.

Adenoviridae DAdV-A aves Células da glândula da casca e do oviduto.

BLV bovina Linfócitos B.

Maedi/ Visna ovina Monócitos e macrófagos.

CAEV caprina Linfócitos, SNC, epitélio alveolar, monócitos e


macrófagos.

FIV/FeLV felina Células mielóides, linfócitos T e B.


Retroviridae
EIAV eqüina Macrófagos e linfócitos.

ALV aves Células linfóides, mielóides, renais, ósseas,


endoteliais e mesenquimais.

Vírus Jaagsiekte ovina Células epiteliais do sistema respiratório.


OPAV
Persistente

Coronaviridae FIPV felina Macrófagos.

Paramyxoviridae CDV* canina SNC (oligodendrócitos).

Caliciviridae FCV felina Epitélio respiratório e anexos.

Células do sistema imune, SNC, medula


BVDV, BDV e bovina, ovina e óssea, células endoteliais e células
Flaviviridae
CSFV** suína epiteliais dos sistemas respiratório e
digestório.

Alphaherpesvirinae MDV (GaHV-2) aves Linfócitos T.

Adenoviridae EAdV-2 eqüina Mucosa respiratória, adenóides.

Parvoviridae PPV*** suína Tecido linfóide, rins e testículos.

Reoviridae BTV bovina e ovina Células hematopoiéticas.

patos, gansos,
DHBV, WHBV,
Hepadnaviridae marmotas, esquilos Hepatócitos.
GSHBV
ovinos
Patogenia das infecções víricas 225

Tabela 8.4 Continuação

Tipo Família/subfamília Vírus Espécie Local de persistência

BPV-1 a 7 bovina Células epiteliais.

CaPV canina Células epiteliais.


Papillomaviridae
EPV-1 e 2 eqüina Células epiteliais.

Adenoviridae CAdV-1 canina Epitélio dos túbulos renais.


Persistente temporária

suína e bubalina Células mononucleares e fagocíticas,


Asfarviridae ASFV
tonsilas e linfonodos.

Células mononucleares sangüíneas,


Circoviridae PCV-1 e 2 suína
macrófagos e linfócitos.

FMDV bovina, suína


Picornaviridae Mucosa da orofaringe.
e ovina
Macrófagos, células germinativas
PRRSV suína
dos testículos.
Arteriviridae
EAV eqüina Macrófagos, células endoteliais e
mesoteliais.

TGEV suína Mucosas respiratória e intestinal.


Coronaviridae
IBV aves Células do epitélio renal.

Bornaviridae BDV eqüina Neurônios, astrócitos e oligodendrócitos.

* Alguns animais que se recuperam da doença ficam portadores,mas não excretam o vírus, que replica em níveis baixos no SNC.
**Fetos infectados em determinada fase de gestação ficam imunotolerantes e nascem persistentemente infectados.
***Alguns fetos infectados no útero se tornam imunotolerantes e ficam portadores, excretando o vírus por longos períodos.

4.3 Mecanismos envolvidos na 4.3.1 Restrição do efeito citopatogênico


manutenção das infecções persistentes
Os vírus que produzem infecções não-cito-
Os mecanismos envolvidos no estabeleci- líticas são mais propensos a estabelecerem infec-
mento e manutenção das infecções persistentes ções persistentes, pois a sua replicação não resul-
são muito complexos e pouco esclarecidos até o ta na destruição das células infectadas (ou resulta
presente. No entanto, independentemente dos em destruição limitada). Exemplos de vírus não-
citolíticos que causam infecções persistentes são
mecanismos responsáveis, a manutenção de uma
alguns arenavírus (infecção renal persistente em
infecção vírica no organismo deve preencher três
roedores), o BVDV (infecção de células do siste-
condições essenciais: a) a infecção celular deve
ma linforreticular) e o vírus da hepatite B (infec-
ser não-citolítica (ou de citopatogenicidade limi-
ção não-citolítica de hepatócitos).
tada); b) manutenção do genoma viral nas célu-
las do hospedeiro, e c) evasão da resposta imune
4.3.2 Infecção de células
do hospedeiro. Vários mecanismos adicionais ou semipermissivas
complementares têm sido sugeridos para expli-
car a persistência desses agentes em tecidos do A replicação dos alfaherpesvírus em células
hospedeiro, por longos períodos, a despeito da epiteliais e do tegumento é altamente citolítica, o
resposta imunológica desencadeada contra eles. que também é observado em uma variedade de
É provável que nenhuma infecção persistente seja células in vivo e in vitro. A infecção também é ci-
mantida por causa de apenas um desses mecanis- tolítica em vários tipos de neurônios. No entanto,
mos; ao contrário, provavelmente são mantidas alguns neurônios sensoriais e autonômicos não
pela combinação de vários deles. são permissivos à replicação lítica aguda. Como
226 Capítulo 8

conseqüência, após penetrar e ter o seu ciclo re- sistência no hospedeiro. Em muitos vírus, essas
plicativo interrompido, o vírus estabelece infec- estratégias provavelmente complementam os ou-
ções latentes nesses neurônios, ou seja, a infec- tros mecanismos envolvidos na permanência do
ção de células semi-permissivas à infecção lítica agente no organismo. Os mecanismos mais utili-
é o mecanismo responsável pela persistência dos zados pelos vírus para evasão da resposta imune
alfaherpesvírus nos seus hospedeiros. Sob deter- são: a) restrição de produção das proteínas virais
minadas condições, esses neurônios que abrigam (como no caso da latência dos herpesvírus); b) in-
o genoma viral se tornam permissivos, o que de- fecção de locais imunologicamente privilegiados
sencadeia a reativação e replicação viral. (p. ex.: infecção das células do SNC pelo CDV e
e de células do epitélio seminífero dos testículos
4.3.3 Infecção de um pequeno número pelo PRRSV); c) variação antigênica (EIAV, FCV
de células e FMDV); d) tolerância imunológica (bovinos
persistentemente infectados pelo BVDV); f) inter-
Essa forma de infecção tem sido observada ferência com células e moléculas do sistema imu-
por alguns vírus in vitro e é possível que também nológico (adenovírus e poxvírus).
ocorra in vivo. Candidatos para esse tipo de mo-
dulação são os adenovírus e os arterivírus (EAV 5 Oncogênese por vírus
em eqüinos e PRRSV em suínos). A infecção per-
sistente no hospedeiro seria mantida através de A transformação celular e produção de tu-
infecções sucessivas – citolíticas ou não – de um mores estão entre as conseqüências da replicação
número pequeno de células a cada ciclo. Os vírus de alguns grupos de vírus nos seus hospedeiros.
produzidos por essas células infectariam outra De fato, acredita-se que uma parte considerável
pequena população de células e, assim, a infecção dos tumores de humanos e animais possua a par-
se prolongaria sucessivamente. Provavelmente ticipação direta ou indireta de agentes virais. De
algum mecanismo concomitante de evasão do acordo com o vírus, diferentes tipos celulares e
sistema imune seja necessário para permitir a órgãos podem ser afetados, com conseqüências
ocorrência dessas infecções continuadas, mesmo diversas. Alguns tumores induzidos por vírus
em baixos níveis. são benignos, mas uma parcela importante é
constituída por neoplasias malignas que resul-
4.3.4 Manutenção do genoma viral nas tam em doença progressiva e morte do animal.
células hospedeiras Para alguns vírus indutores de tumores, os me-
canismos moleculares de oncogênese já foram
A manutenção do genoma viral nas células razoavelmente esclarecidos. Para outros vírus,
do hospedeiro pode ocorrer por dois mecanis- no entanto, esses mecanismos permanecem obs-
mos distintos: pela integração do genoma viral curos e se constituem em temas de contínuas in-
nos cromossomos da célula do hospedeiro, como vestigações. Dentre os vírus animais associados
ocorre com as infecções pelos retrovírus, ou pela com neoplasias, encontram-se famílias de vírus
manutenção do genoma como elemento extracro- RNA (retrovírus) e DNA (poliomavírus, papilo-
mossomal no núcleo da célula, como ocorre nas mavírus, adenovírus e hepadnavírus).
infecções latentes pelos alfaherpesvírus e papilo-
mavírus. 5.1 Oncogênese por retrovírus

4.3.5 Evasão da resposta imune Os retrovírus envolvidos com a produção


do hospedeiro de tumores – também chamados de oncornavírus
– são amplamente distribuídos na natureza e têm
As estratégias de evasão do sistema imunoló- sido isolados de virtualmente todas as espécies
gico estão entre os mecanismos mais importantes animais. Esses vírus diferem entre si em relação
utilizados pelos vírus para assegurar a sua per- ao tropismo celular, potencial oncogênico, perí-
Patogenia das infecções víricas 227

odo de incubação e mecanismo de oncogênese. e B após um longo período de incubação. Entre


Com base no tempo necessário para a produção esses vírus se destacam o vírus da leucemia de
dos tumores, os oncornavírus podem ser dividi- linfócitos T humano (HTLV) e o BLV. O genoma
dos em vírus transformantes não-agudos, agudos desses vírus não possui oncogenes e o mecanismo
e transindutores. Os retrovírus transformantes de indução da oncogênese difere daqueles dos
não-agudos induzem a formação de neoplasias dois grupos anteriores. A transformação tumo-
após um longo período de incubação (meses até ral induzida por esses vírus parece estar ligada à
décadas), assim como os transindutores. Os re- função dos produtos de dois genes acessórios, tax
trovírus transformantes agudos induzem tumo- e rex, que também possuem papel importante no
res em um intervalo menor de tempo (semanas). ciclo replicativo do vírus. A proteína Rex é essen-
Os mecanismos de oncogênese também variam cial para o ciclo replicativo lítico do HTLV, mas a
entre os grupos. sua participação na oncogênese permanece des-
Os retrovírus transformantes não-agudos conhecida. Já a proteína Tax é necessária para o
estão envolvidos em vários tipos de neoplasias, ciclo lítico e também para a transformação tumo-
incluindo linfomas e leucemias. Esses vírus não ral das células hospedeiras. Esta proteína é um
possuem genes específicos com atividade onco- potente transativador de transcrição do provírus
gênica no seu genoma. Ao contrário, induzem viral e também de vários genes celulares. Já foi
oncogênese pela integração do seu genoma (pro- demonstrado que vários genes celulares que pos-
vírus DNA) nas proximidades de proto-oncoge- suem um papel potencial na regulação do ciclo
nes celulares ou de genes envolvidos no controle celular podem ser ativados pela proteína Tax. Por
do ciclo e diferenciação celular. Com isso, a ex- isso a ativação de genes envolvidos no controle
pressão desses genes é alterada e pode levar à do ciclo celular é um dos prováveis mecanismos
transformação tumoral. Este processo é denomi- de oncogênese pelos retrovírus transindutores.
nado de oncogênese insercional.
Os retrovírus transformantes agudos podem 5.2 Pequenos vírus DNA tumorigênicos
induzir a formação de tumores dentro de poucos
dias. Ao contrário do grupo anterior, esses vírus Algumas famílias de vírus DNA possuem
possuem oncogenes (genes oncogênicos) no seu membros que têm sido associados com tumores,
genoma. Mais de 30 diferentes oncogenes já fo- seja em infecções naturais ou após inoculação
ram identificados no genoma de retrovírus ani- experimental. Alguns deles produzem tumores
mais e todos eles parecem ter sido adquiridos – em animais e, por isso, possuem importância em
integralmente ou por rearranjos – do genoma dos medicina veterinária. Em particular, alguns vírus
hospedeiros em infecções passadas. As funções das famílias Polyomaviridae e Papillomaviridae têm
dos produtos desses oncogenes são variáveis e sido associados com tumores em seus hospedei-
incluem desde quinases até fatores de transcri- ros naturais e têm comprovado o seu potencial
ção. Uma característica comum a quase todos os oncogênico após inoculação em hospedeiros he-
oncogenes retrovirais identificados até o presente terólogos. O primeiro vírus DNA tumorigênico
é que os seus produtos estão envolvidos em me- identificado foi o CRPV (papilomavírus dos co-
canismos de sinalização intracelular (signal trans- elhos cauda-de-algodão) que causa papilomas
duction). Retrovírus com essas características já cutâneos benignos nos hospedeiros naturais.
foram identificados em várias espécies animais e Quando inoculado em coelhos domésticos, no
têm sido associados com uma grande variedade entanto, o CRPV induz papilomas que tendem a
de tumores, incluindo sarcomas, carcinomas e progredir e se tornar carcinomas. Vários aspectos
linfomas em aves; sarcomas e linfomas em roedo- da tumorigênese associada com infecções virais
res; fibrossarcomas e linfossarcomas em felinos; e foram estudados nesse modelo animal. O papilo-
sarcoma em primatas. mavírus de camundongos também tem sido as-
Os retrovírus transformantes transindutores sociado com tumores múltiplos, sobretudo após
produzem leucemias monoclonais de linfócitos T inoculação experimental em neonatos. O vírus
228 Capítulo 8

símio 40 (SV-40), também um membro da família rios mecanismos têm sido propostos e acredita-se
Polyomaviridae, é capaz de produzir tumores em que a oncogênese pode resultar da combinação
hamsters recém-nascidos. O SV-40 também tem de mais de um deles. Os mecanismos propostos
sido associado com alguns tumores raros em pes- incluem: a) ativação de proto-oncogenes celula-
soas que foram vacinadas há aproximadamente res pela inserção do genoma viral nos cromos-
50 anos com uma vacina antipoliomielite conta- somos; b) ativação de proto-oncogenes celulares
minada com o vírus. Os papilomavírus bovinos pela proteína X; c) injúria e inflamação hepática
(BPVs) também têm sido associados com a indu- crônica, com produção de substâncias potencial-
ção de tumores nos seus hospedeiros. O BPV-1 mente mutagênicas. Em geral, o desenvolvimen-
está associado com papilomas e fibropapilomas, to do carcinoma hepatocelular é precedido por
tumores cutâneos de caráter benigno e com fre- uma infecção hepática crônica de longa duração.
qüência muito menor, a tumores cutâneos malig-
nos. O BPV-4 está associado com a produção de 6 Imunopatologia em infecções
carcinomas de laringe e esôfago em bovinos, cuja víricas
etiologia parece estar combinada com a intoxica-
ção por samambaia. Os papilomavírus humanos O sistema imunológico é o responsável pela
16 e 18 (HPV-16; HPV-18) estão envolvidos na proteção do organismo contra agentes agresso-
produção de um dos tumores mais freqüentes res, porém a ativação da resposta imune nem
em humanos, o carcinoma de colo de útero de sempre é capaz de controlar a infecção. Além
mulheres. disso, em determinadas situações, a resposta
Os mecanismos pelos quais esses vírus in- produzida pode induzir lesões imunomediadas,
duzem transformação neoplásica nas células hos- determinando a ocorrência da doença. Várias do-
pedeiras têm sido intensivamente estudados nas enças víricas, como a AIDS, a dengue, a anemia
últimas décadas. A capacidade oncogênica desses infecciosa eqüina e a artrite-encefalite caprina,
vírus tem sido atribuída a uma ou mais proteínas entre outras, apresentam as lesões resultantes da
virais que se ligam e inativam proteínas celula- resposta imunológica como componentes de sua
res envolvidas na regulação do ciclo celular. Em patogenia.
particular, as proteínas celulares pRb e p53 são os A resposta imune em infecções víricas tem
alvos para o antígeno T, dos poliomavírus, e para como objetivo a eliminação e/ou neutralização
as proteínas E6 e E7 dos papilomavírus. As pro- das partículas virais livres, pela ação de anticor-
teínas da família da pRb e p53 exercem um papel pos e do complemento; além da destruição das
regulatório-chave no controle da estabilidade do células infectadas, pela citotoxicidade celular
genoma, na proliferação, diferenciação e apopto- dependente de anticorpo (ADCC), linfócitos T
se em células de mamíferos. A sua inativação pe- citotóxicos (CD8+) e lise por células natural killer
las proteínas virais citadas resulta no descontrole (NK). Em algumas situações, essa resposta é su-
do ciclo celular e eventualmente pode resultar ficiente para eliminar o vírus do organismo. No
em transformação neoplásica. entanto, em outras situações, essa resposta pode
Os vírus da família Hepadnaviridae, também causar injúria tecidual, doença e até matar o hos-
conhecidos como vírus das hepatites B, também pedeiro. Em alguns casos, é comum a coexistên-
têm sido associados com a produção de tumores cia do hospedeiro com o vírus, com a ocorrência
em seus hospedeiros naturais. Além do vírus da de injúrias celulares e teciduais mínimas, muitas
hepatite B humana (HBV), os hepadnavírus de vezes sem o comprometimento da saúde geral do
esquilos (GSHV) e de marmotas (WHV) estão animal.
associados com o desenvolvimento de carcino- O grau de lesão que a resposta imunológica
ma hepatocelular, que ocorre ocasionalmente em pode produzir no hospedeiro depende, em parte,
hospedeiros com hepatite crônica. Os mecanis- dos órgãos envolvidos. Se a infecção ocorre no
mos responsáveis pela transformação neoplásica SNC ou no coração, as lesões são geralmente gra-
que ocorre nas infecções crônicas pelos hepadna- ves, enquanto uma resposta localizada na pele,
vírus não estão completamente esclarecidos. Vá- por exemplo, possui conseqüências limitadas.
Patogenia das infecções víricas 229

Os vírus podem induzir imunopatologias sua ação física e sim da ativação local do com-
por diferentes mecanismos, como a indução de plemento e dos eventos inflamatórios resultantes
auto-imunidade, imunossupressão e pela depo- dessa ativação.
sição de imunocomplexos, que caracteriza a re- A deposição de imunocomplexos na pare-
ação de hipersensibilidade do tipo III. As lesões de dos vasos e nos tecidos é seguida do aumento
imunomediadas ocorrem com maior freqüência da permeabilidade vascular local, mediada por
em infecções persistentes ou crônicas, e princi- aminas vasoativas como a histamina e seroto-
palmente em infecções por vírus não-citolíticos. nina. A ligação da região Fc dos anticorpos dos
imunocomplexos a receptores Fc das membranas
6.1 Imunopatologia mediada provoca a liberação das aminas vasoativas prove-
por imunocomplexos nientes de basófilos, plaquetas e mastócitos que
circulam no local da deposição. A porção Fc se
A conseqüência imunopatológica mais fre- liga ao componente C1 e ativa a via clássica do
qüente em infecções víricas agudas ou persis- complemento. Ocorre a atração de neutrófilos
tentes é a formação de imunocomplexos. Esses para o local de deposição, e a formação do com-
complexos são formados por anticorpos ligados plexo de ataque à membrana (MAC), o que con-
a partículas víricas ou a antígenos virais solúveis. tribui para a injúria local.
Quando esses imunocomplexos são produzidos Os receptores para a porção Fc das imuno-
em excesso, podem resultar em imunopatologia. globulinas G estão presentes no plexo coróide,
Isso ocorre quando os antígenos virais não são onde possuem distribuição periventricular. A
eliminados eficientemente ou quando a replica- localização desses receptores parece ter relevân-
ção do vírus não é controlada de forma eficiente cia na distribuição das lesões por deposição de
pelo sistema imunológico. Dependendo do tipo imunocomplexos observadas na infecção pelo
de anticorpo e da sua capacidade neutralizante, MVV e CAEV em pequenos ruminantes (ovinos
os complexos podem carrear vírus viáveis que e caprinos).
podem penetrar produtivamente em células que Na anemia infecciosa eqüina, os anticorpos
possuam receptores para anticorpos (receptores se ligam a vírions livres no plasma, e os imuno-
para a porção Fc), como macrófagos e linfócitos complexos são depositados principalmente nos
ativados. Lesões de glomerulonefrite imunome- glomérulos renais, levando à glomerulonefrite
diada são freqüentemente observadas em infec- imunomediada. A circulação desses imunocom-
ções víricas como a hepatite infecciosa canina, pe- plexos também pode levar à hemólise, resultan-
ritonite infecciosa felina, imunodeficiência felina, do em anemia.
peste suína clássica, peste suína africana, entre O FeLV pode induzir deposição de imu-
outras. nocomplexos e imunodeficiência. Algumas ve-
Doenças mediadas por imunocomplexos so- zes ocorrem altos níveis de antígenos virais e a
mente ocorrem quando a sua produção excede a formação e deposição de imunocomplexos leva
capacidade do organismo de removê-los dos te- à glomerulonefrite imunomediada. Em outros
cidos e fluidos corporais. Em condições normais, casos, ocorre depleção linfóide, em parte pela
os imunocomplexos produzidos são removidos ADCC. Essa depleção leva a uma maior suscepti-
através de fagocitose por macrófagos e células bilidade a infecções secundárias, como estomati-
mesangiais antes que eles se depositem e causem tes crônicas, gengivites, lesões de pele e abscessos
algum tipo de lesão. Quando em excesso, a de- subcutâneos.
posição dos imunocomplexos ocorre geralmente As lesões imunomediadas podem ocorrer
em locais com função de filtragem de líquidos também como seqüelas de infecções virais, sem
orgânicos, como os glomérulos renais, a parede envolvimento direto na patogenia da infecção,
dos vasos sangüíneos, as membranas sinoviais e como a síndrome oftálmica que ocorre em cães
o plexo coróide. As lesões causadas pela deposi- convalescentes da infecção pelo CAdV-1. A lesão
ção dos imunocomplexos não são resultantes da é caracterizada pela deposição de imunocomple-
230 Capítulo 8

xos na córnea, resultando em opacidade, conhe- zir anticorpos contra proteínas próprias. Assim,
cida como “olho azul”. os linfócitos T – que possuem papel essencial na
resposta imune contra vírus – são responsáveis
6.2 Imunopatologia mediada por pela modulação da intensidade da resposta, li-
linfócitos T citotóxicos mitando os danos causados por uma resposta
agressiva. A expansão clonal dessas células em
Os linfócitos T citotóxicos (CTLs, CD8+) pos- resposta a epitopos de proteínas do hospedeiro,
suem um papel relevante na erradicação de infec- evento que pode ocorrer em determinadas infec-
ções víricas dos hospedeiros, pela sua capacidade ções víricas, está envolvido na indução de auto-
de identificar e lisar células infectadas por vírus. imunidade. Esse processo ocorre, por exemplo,
Os CTLs reconhecem peptídeos virais conjuga- na encefalomielite murina de Theiler, em que a
dos com moléculas do MHC-I na superfície das resposta específica de células T ao vírus ocorre
células infectadas, através das moléculas TCR + junto com uma resposta imune contra a proteí-
CD8. Além de lisar células infectadas, os CTLs na básica da mielina, induzindo desmielinização
parecem ser capazes de erradicar certos vírus (p. auto-imune.
ex.: vírus da hepatite B humana), sem a necessi-
dade de lisar as células infectadas, provavelmen-
te interferindo (através de citocinas) com alguma 7 Imunossupressão por vírus
etapa da replicação viral. Dessa forma, a infecção
aguda pelo HBV é geralmente erradicada por Grande parte das infecções víricas é acom-
uma resposta vigorosa mediada principalmente panhada por disfunções no sistema imunológico,
por CTLs específicos para antígenos do vírus. muitas das quais podem ser detectadas in vivo e
Por outro lado, a resposta imunológica de demonstradas experimentalmente in vitro. Fre-
alguns pacientes não consegue erradicar a infec- qüentemente, essas alterações ocorrem concomi-
ção e esses indivíduos se tornam portadores de tantemente com uma resposta imunológica efeti-
infecção hepática crônica. Nesses indivíduos, a va contra o vírus que as induziu. Por outro lado,
resposta mediada por CTLs é fraca ou indetectá- alguns vírus suprimem a resposta imunológica
vel, provavelmente devido a uma expansão clo- contra os seus antígenos, proporcionando condi-
nal deficiente. Essa resposta fraca e contínua tem ções para o estabelecimento de infecções prolon-
sido implicada na patogenia da infecção crônica, gadas ou persistentes. As alterações imunológicas
levando a lesões necro-inflamatórias crônicas no causadas por infecções víricas podem aumentar
fígado, ou seja, a injúria celular de intensidade a susceptibilidade do hospedeiro a infecções se-
fraca, porém contínua, resultaria em um proces- cundárias, dificultar ou retardar a resposta contra
so inflamatório persistente que resulta em hepa- a própria infecção, ou levar a um desequilíbrio
tite crônica. Eventos semelhantes ocorrem em ca- amplo e duradouro na resposta imunológica con-
mundongos inoculados com o LCMV. tra vários agentes. Falha em responder a outros
antígenos, tanto por vacinação como infecção
6.3 Imunopatologia por indução de natural, resposta deficiente em provas de hiper-
auto-imunidade sensibilidade retardada e resposta proliferativa
e citotóxica deficientes, têm sido associadas com
A indução de auto-imunidade é outro me- diversas infecções víricas em humanos e animais.
canismo de imunopatologia que pode ocorrer em Ativação policlonal de linfócitos B, que pode re-
algumas infecções virais. Nesse mecanismo, pode sultar em um aumento inespecífico do nível de
ocorrer estimulação antigênica por determinantes imunoglobulinas plasmáticas e dificultar o diag-
antigênicos de proteínas virais que sejam seme- nóstico sorológico da infecção, além de reduzir
lhantes a proteínas do hospedeiro ou por distúr- a resposta a antígenos recém-introduzidos, tam-
bios na ativação de linfócitos, que podem produ- bém tem sido identificada em algumas infecções.
Patogenia das infecções víricas 231

Os mecanismos envolvidos nesses eventos, 7.1 Replicação viral em células


no entanto, nem sempre são facilmente elucidá-
envolvidas na resposta imunológica
veis, sobretudo pela dificuldade de se mimetizar
experimentalmente in vitro a complexidade das
interações imunológicas que ocorrem in vivo. Em Diversos vírus replicam em células da linha-
geral, os mecanismos envolvidos com imunossu- gem mielóide e/ou linfóide, cujas células dife-
pressão por vírus podem ser devidos à replica- renciadas estão envolvidas com a resposta imu-
ção viral em células que participam da resposta nológica natural e adquirida. Para alguns vírus,
imunológica, alteração da resposta imunológica essas células se constituem nos principais alvos
normal pela resposta específica contra o vírus ou da replicação, enquanto, para outros, elas repre-
a efeitos indiretos da replicação e/ou de produ- sentam apenas uma parcela das populações celu-
tos virais. A Tabela 8.5 apresenta um resumo das lares infectadas. A infecção e destruição de célu-
alterações imunológicas já identificadas em in- las imunológicas é o mecanismo mais atraente e
fecções víricas e os mecanismos potencialmente lógico na tentativa de explicar a imunossupressão
envolvidos. causada por vírus. No entanto, este não é o úni-

Tabela 8.5. Principais alterações imunológicas e seus mecanismos de indução, por diferentes grupos de vírus

Alterações imunológicas Mecanismos


Família/
Família
grupo Vírus
Susceptibilidade Proliferação Aumento nas Replicação em Ativação do Produtos de Proteínas
a infecções linfóide imunoglobu- células sistema monócitos e virais
reduzida linas imunológicas imune linfócitos Th

Picornaviridae +
Flaviviridae +
Arteriviridae + + + +
Coronaviridae + + +

Orthomyxoviridae + + + +
Paramyxoviridae + + + +
Rhabdoviridae +
Arenaviridae + + + + +

Reoviridae + +
Retroviridae + + + + + + +
Parvoviridae + + +
Adenoviridae + + +

Herpesviridae + + + + + + +
Poxviridae + + +

Fonte: adaptada de Griffin (1997).


232 Capítulo 8

co e talvez nem seja o mecanismo mais relevante contra o vírus infectante. Seriam, portanto, con-
envolvido na supressão da resposta imunológica seqüências inevitáveis da resposta necessária
por vírus. para combater este agente e montar uma respos-
Na verdade, na grande maioria das infec- ta duradoura que proteja contra reinfecções. Nes-
ções víricas imunossupressivas estudadas, o per- se sentido, deficiências imunológicas podem ser
centual de células de determinada população que resultantes de: a) ativação generalizada de lin-
é infectada raramente atinge 1%. Essa pequena fócitos T sem os sinais apropriados (muitos dos
proporção infectada dificilmente seria suficiente quais morrem por apoptose); b) produção anor-
para explicar a deficiência imunológica associada mal (quantitativa e qualitativamente) de citoci-
com essas infecções. nas; c) depleção de linfócitos T vírus-específicos
O HIV, por exemplo, infecta linfócitos pela sua ativação em resposta ao agente. A parti-
TCD4+. Em células quiescentes, o vírus se encon- cipação desses mecanismos na imunossupressão
tra em um estado de latência, sem o genoma in- é evidenciada pelo fato de que os níveis máximos
tegrado nos cromossomos celulares. Por ocasião de supressão coincidem com o aparecimento da
da ativação dessas células, que é seguida da inte- resposta imunológica específica e erradicação do
gração do provírus DNA, a replicação viral é ini- agente. Esse tipo de imunossupressão tem sido
ciada. A fração de linfócitos TCD4+ circulantes detectado em infecções pelo vírus da influenza,
que é infectada situa-se em torno de 0,01 a 1%, vírus da coriomeningite linfocítica (LCMV), entre
sendo que menos de 10% destas produzem pro- outros.
gênie viral. Essa proporção de células infectadas
não justifica as severas alterações imunológicas 7.3 Produtos de monócitos e linfócitos
observadas nos pacientes soropositivos, indican- ativados
do a participação de outros mecanismos na imu-
nossupressão. Várias interleucinas são produzidas por cé-
Já o IBDV, um birnavírus de galinhas, infec- lulas especializadas em resposta a infecções ví-
ta liticamente populações de linfócitos B que es- ricas, incluindo os interferons do tipoI (IFN alfa
tão em divisão, resultando em imunossupressão e beta), IL-2 e receptor de IL-2, entre outras. A
profunda pela extensiva perda dessas células. maioria dessas interleucinas atua modulando
Nos animais afetados, ocorre uma disfunção na e estimulando a resposta celular e/ou humoral
resposta humoral, mediada por linfócitos B. contra o agente infeccioso. No entanto, já foram
Dentre os vírus animais que infectam células identificados vários fatores produzidos por mo-
do sistema imunológico se incluem: a) vírus que nócitos e linfócitos ativados que inibem a resposta
infectam linfócitos T: vários retrovírus animais imunológica. A resposta contra o vírus de New-
(p. ex.: FeLV e FIV) e GHV-2 (vírus da doença de castle, por exemplo, é caracterizada pela redução
Marek); b) vírus que infectam linfócitos B: birna- da atividade dos linfócitos T citotóxicos contra
vírus (IPNV e IBDV), vírus da leucemia murina um segundo vírus, associada com supressão dos
(MuLV), retrovírus símio, BVDV e BLV; c) vírus níveis de IFN. As interleucinas 4 e 10 (IL-4, IL-10)
que infectam células da linhagem monocítica- produzidas por linfócitos ativados suprimem a
macrofágica: VEEV, LCMV, vírus da influenza, função de monócitos/macrófagos.
vírus Maedi-Visna, CAEV, vírus da parainfluen-
za, vírus da peste suína africana (ASFV). ASFV, 7.4 Proteínas virais
vários coronavírus, circovírus, arterivírus (PRR-
SV, EAV, LDEV), EIAV e ALV. Diversas proteínas codificadas por vírus in-
terferem com a resposta imunológica do hospe-
7.2 Imunossupressão associada com a deiro, retardando ou suprimindo esta resposta,
ativação do sistema imune permitindo, assim, a replicação e disseminação
do vírus no hospedeiro (Tabela 8.6). Algumas
Muitas alterações da resposta imunológica dessas proteínas podem ser secretadas pelas célu-
ocorrem no contexto da resposta desencadeada las infectadas e interferir com a função de células
Patogenia das infecções víricas 233

Tabela 8.6. Proteínas virais que interferem com a resposta imunológica do hospedeiro

Mecanismo efetor Vírus Proteína viral Proteína-alvo


Família Vírus
gE+gI Porção Fc das Igs
Vírus do herpes simplex
Lise celular mediada por gC C3b
anticorpos e complemento
Vírus vaccinia VCP C3b+C4b

Adenovírus E3/19K Cadeia pesada MHC-I


Apresentação de antígenos
peloMHC-I a linfócitos Vírus do herpes simplex ICP47 TAP
citotóxicos
Citomegalovírus UL-18 Beta 2-microglobulina

Vírus do mixoma (Pox) ? TNF

Produção de citocinas por TNF


macrófagos Vírus vaccina ?
IL-1 beta

Cowpox ? TNF
crmA IL-1 beta

Orthopox orfB8R IFN gama


Produção de citocinas por
linfócitos Th Tanapox 38kDa IFN gama, IL-2, IL-5

Vírus do mixoma 37kDa IFN gama

Fonte: adaptada de Griffin (1997).

não-infectadas. Já foi demonstrado, por exemplo, células infectadas. Os poxvírus codificam proteí-
que a hemaglutinina do vírus da influenza afeta nas que são secretadas pelas células infectadas e
diretamente a função de neutrófilos. Outras pro- interferem com a ação de interleucinas produzi-
teínas virais podem se ligar a receptores de su- das em resposta à infecção. Alguns desses vírus
perfície celular e interferir com a sua função. Por codificam uma proteína que se liga ao fator de
exemplo, as glicoproteínas gE e gI do HSV (e pro- necrose tumoral (TNF) e o impede de se ligar à
vavelmente de outros alfaherpesvírus) se ligam superfície das células infectadas. O vírus do mi-
na porção Fc das imunoglobulinas, impedindo xoma codifica uma proteína homóloga ao recep-
que ocorra a ativação do complemento na super-
tor do interferon gama (IFN ). Os vírus da vacci-
fície de células infectadas e prevenindo, assim, a
nia e cowpox codificam proteínas que se ligam e
destruição dessas células. Proteínas virais podem
inibem a função da IL-1, IFN- e TNF.
também atuar como superantígenos, ligando-se a
Em resumo, a infecção e alteração da função
receptores de linfócitos T e estimulando-os até a
de células envolvidas na resposta imunológica
exaustão e depleção. A proteína E3/19 K dos ade-
não é o único mecanismo de imunossupressão
novírus se liga com a cadeia pesada da molécula
de MHC-I, retendo-a no retículo endoplasmáti- causado por vírus. É provável que a imunossu-
co. Assim, as células infectadas pelos adenovírus pressão observada nas infecções víricas, em sua
não apresentam peptídeos virais associados com maioria, deva-se à interação de múltiplos fatores,
o MHC-I e não são reconhecidas pelos linfócitos que incluem citocinas/interleucinas, infecção e
Tc. Alguns poxvírus e herpesvírus também su- disfunção de células imunológicas e efeitos de
primem a expressão de MHC-I na superfície das proteínas virais específicas.
234 Capítulo 8

8 Bibliografia consultada GAMOH, K. et al. The pathogenicity of canine parvovirus type-


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RESPOSTA IMUNOLÓGICA CONTRA VÍRUS
Luiz Carlos Kreutz
9
1 Introdução 239

2 Resposta imune inata 239

2.1 Interferon tipo I 240


2.2 Sistema complemento 242
2.3 Células natural killer 242

2.4 Células dendríticas 243


2.4.1 Interação entre as DCs e células NK 243
2.4.2 O papel das DCs na resposta imune adquirida 243

3 Resposta imune adquirida 244

3.1 Reconhecimento de antígenos pelo sistema imunológico 244


3.1.1 Reconhecimento de antígenos pelos linfócitos B 244
3.1.2 Reconhecimento de antígenos pelos linfócitos T 245

3.2 Resposta imune celular 249


3.2.1 Importância dos linfócitos Tc na imunidade antiviral 250

3.3 Resposta imune humoral 250


3.4 Respostas primária e secundária/memória imunológica 252

3.5 As imunoglobulinas na defesa antiviral 253


3.5.1 Mecanismos de ação das imunoglobulinas 254

3.6 O papel da resposta humoral e celular na imunidade antiviral 255

4 Mecanismos virais de evasão da resposta imune 256

4.1 Infecções latentes no sistema nervoso central 256


4.2 Variações antigênicas 256
4.3 Indução de tolerância 257
4.4 Integração do material genético viral no genoma do hospedeiro 257
4.5 Infecção de sítios imunologicamente privilegiados 257
4.6 Interferência com funções do sistema imunológico 258
5 Considerações finais 258

6 Bibliografia consultada 258


1 Introdução 2 Resposta imune inata

A imunidade ou resistência do hospedeiro A resposta imune inata (também denomina-


contra infecções víricas depende da atuação in- da natural ou inespecífica) é mediada por células e
tegrada da resposta imune inata e da resposta moléculas. Previamente à estimulação dessa res-
imune adquirida. Os mecanismos envolvidos na posta, mecanismos naturais de proteção contra a
resposta imune inata atuam imediatamente após o penetração de patógenos, como a pele, os pêlos,
contato do hospedeiro com os antígenos virais, o muco, enzimas, peptídeos antivirais e anti-bac-
não possuem capacidade de discriminação entre terianos representam as barreiras iniciais contra
os vírus e não necessitam de exposição prévia os agentes infecciosos. A ausência ou disfunção
para serem desencadeados. Os mecanismos en- desses mecanismos provavelmente resultaria em
volvidos na resposta imune adquirida, por sua vez, um aumento da freqüência e da severidade das
desenvolvem-se seqüencialmente e de forma infecções. Embora sejam considerados compo-
mais lenta e sincronizada, resultando na indução nentes da imunidade inata, essas barreiras não
de células efetoras, que irão combater o agente, e serão abordadas nessa revisão. Aqui, será dado
de células de memória, que possuem vida longa enfoque aos mecanismos imunológicos naturais
e que serão efetivamente reestimuladas em expo- que efetivamente participam da imunidade anti-
sições posteriores ao mesmo agente. viral e, principalmente, que cooperam com a ati-
A divisão entre a resposta imune inata e vação da resposta imune específica.
adquirida não é absoluta, e essas duas formas A resposta imune inata é assim denominada
de resposta estão interligadas, atuando conjun- em razão de algumas características peculiares,
tamente no combate aos agentes agressores. Os tais como: a) atua imediatamente após o con-
principais protagonistas da conexão entre essas tato com o agente; b) não discrimina diferentes
respostas são as células dendríticas (dendritic cells, tipos de antígenos; c) atua com intensidade rela-
DCs). Essas células circulam pelos tecidos perifé- tivamente constante e d) não possui memória. É
ricos, onde capturam antígenos, e se dirigem aos questionável se, agindo isoladamente, a resposta
órgãos linfóides secundários, onde estimulam as inata seria capaz de erradicar uma infecção víri-
células linfóides. Além disso, as infecções víricas
são acompanhadas de estímulos químicos e celu-
lares que formam uma intrincada rede de infor-
mações, que visam maximizar o mecanismo imu-
nológico mais efetivo contra a maioria dos vírus:
os linfócitos T citotóxicos (Tc).
Os componentes da imunidade inata são ati-
vados precocemente após a infecção e se encarre-
gam de limitar e restringir a replicação viral até
que os mecanismos da resposta imune adquirida
tenham sido desencadeados. Na resposta inata
contra vírus, atuam principalmente o interferon
do tipo I (IFN-I), células natural killer (NK) e os
componentes ativos do complemento. A resposta
imune adquirida é mediada por células (linfóci-
tos T) e por moléculas circulantes (anticorpos),
produzidas por células derivadas dos linfócitos
B. As citocinas (ou interleucinas [ILs]) são pep-
tídeos produzidos por uma variedade de células
que moderam e influenciam a função de outras
células do sistema imunológico.
240 Capítulo 9

ca estabelecida. No entanto, os seus mecanismos os receptores celulares também parece estimular


efetores se constituem em obstáculos importan- a produção de IFN-I. Qualquer célula nucleada é
tes, que retardam a progressão do processo infec- capaz de produzir IFN-I em resposta a uma infec-
cioso, controlando-o temporariamente e, assim, ção por vírus, mas evidências recentes indicam
permitindo o desenvolvimento da imunidade es- que as DCs plasmacitóides (pDCs) representam a
pecífica. Os principais componentes da resposta principal fonte dessa citocina.
inata contra vírus são representados pelo IFN-I, O IFN-I produzido por células infectadas é
sistema complemento, células NK e DCs. Esses secretado no meio extracelular e se distribui lo-
mecanismos são desencadeados seqüencialmente calmente, interagindo com as células vizinhas
após a infecção vírica e antecedem o desenvolvi- e induzindo um estado de resistência antiviral
mento dos mecanismos específicos (Figura 9.1). (Figura 9.2). Essa interação é mediada por recep-
tores específicos na superfície celular, que estão
2.1 Interferon amplamente distribuídos nos tecidos. A ligação
do IFN-I aos receptores desencadeia uma série
O primeiro obstáculo à infecção viral é re-
de sinais intracelulares que induzem a transcri-
presentado pelos IFN-I, que foram justamente
ção de genes cujos produtos estão envolvidos na
identificados pela sua capacidade de interferir
resposta mediada pelos IFNs. Os principais efei-
com a replicação viral. O IFN-I compreende dois
tos antivirais do IFN-I são devidos à degradação
tipos principais: interferon alfa (IFN-α) e interfe-
ron beta (IFN-β), que são produzidos por vários de RNAs mensageiros (mRNA) e inibição da tra-
tipos de células em resposta às infecções víricas. dução. Dessa forma, esta citocina inibe a síntese
Vários vírus são potentes indutores de IFN-I, e de proteínas na célula-alvo, tornando-a um meio
a sua indução está associada com a produção de impróprio para a replicação viral, uma vez que
RNA de fita dupla no interior da célula durante a os vírus dependem integralmente da maquinaria
replicação viral. A interação de alguns vírus com celular de síntese protéica para a sua replicação.

3 2 2 3

4 4

2
Aumento da Ativação de:
expressão 5 6 – Células NK;
do MHC-I – Linfócitos Tc;
– Macrófagos.

Estado de -resistência antiviral


(inibição da síntese protéica, degradação de mRNA)

Figura 9.2. Indução e principais funções do IFN-I na resposta imune inata. A presença de RNA de fita dupla em
células infectadas por vírus induz a produção de IFN-I (1), que é secretado no meio extracelular (2). O IFN-I interage
com receptores nas células vizinhas (3) e desencadeia uma série de reações que resultam na indução de um estado de
resistência antiviral (4). O IFN-I também promove um aumento na expressão do MHC-I (5), além de ativar células NK,
linfócitos Tc e macrófagos (6).
Resposta imunológica contra vírus 241

O IFN-I desencadeia uma série de reações O IFN-I atua também como fator de sobre-
intracelulares que levam à expressão da enzima vivência para as pDCs, promove o desenvolvi-
2’-5’-adenilato sintetase. Essa enzima sintetiza mento, maturação e atividade microbiocida dos
oligômeros de adenina (oligo-A), que, por sua macrófagos e ativa as células NK, que, por sua
vez, ativam a endorribonuclease RNAse L. A vez, interagem sinergisticamente com as DCs.
ativação da RNAse L resulta na degradação de Além de seu papel na imunidade inata, o
mRNA celulares e virais. Além disso, o IFN-I IFN-I possui um papel importante no desenvol-
promove a ativação da enzima proteína kinase R vimento da imunidade específica, por meio de
(PKR), que fosforila e inativa o fator de iniciação diferentes mecanismos, tais como: a) indução da
da tradução (elongation initiation factor 2 - eIF-2). expressão de moléculas do complexo de histo-
Com isso, a tradução de mRNAs celulares e virais compatibilidade principal do tipo I (MHC-I), o
também fica inibida. Outro grupo de IFN-I induz que favorece o processamento e a apresentação
um estado antiviral pela indução das proteínas de antígenos endógenos; b) ativação das DCs,
Mx, que também contribuem para a inibição da produzindo um aumento da expressão de recep-
síntese protéica celular. tores e produção de citocinas; c) estimulação da

8 10
Fagócito
9
12
11

7
NK
4 Célula 6
2
infectada
Linfócitos Tc
5
3

Dcs

Células vizinhas

Figura 9.3. Mecanismos efetores associados com a resposta imune inata. A infecção viral (1) resulta na produção e
secreção de IFN-I pelas células infectadas (2). O IFN-I secretado induz um estado de resistência antiviral nas células
vizinhas (3); ativa células NK (4), DCs (5), linfócitos Tc (6) e estimula a atividade fagocítica dos macrófagos (7).
Simultaneamente, a presença de vírions pode levar à ativação do complemento (8); cujos componentes ativados
atraem e ativam fagócitos (9, 10), opsonizam vírions, facilitando a fagocitose (11) ou promovem a lise de vírus
envelopados (12).
242 Capítulo 9

sobrevivência e proliferação de linfócitos T de e fungos) torna-as resistentes ao complemento,


memória; d) estimulação da produção de inter- pois inibe a ligação de alguns componentes que
feron gama (IFN-γ) pelas DCs e linfócitos T; e) dão continuidade à cascata e posterior formação
participação direta e indireta na diferenciação e do MAC.
atividade dos linfócitos B. Os mecanismos de ati-
vação e as atividades desempenhadas pelo IFN-I 2.3 Células natural killer
na resposta imune à infecções víricas estão ilus-
trados nas Figura 9.2 e 9.3. As células natural killer (NK) são derivadas
de progenitores linfóides da medula óssea e foram
2.2 Sistema complemento assim denominadas em razão de sua capacidade
de destruir células tumorais e células infectadas
O sistema complemento é composto por um por vírus na ausência de um reconhecimento an-
conjunto de proteínas presentes no plasma san- tígeno-específico. Constituem o que se conven-
güíneo na forma inativa. Essas proteínas podem cionou chamar de terceira população de linfócitos
ser ativadas pela presença de complexos imunes, (linfócitos B, T e células NK). Por não possuírem
formados pela ligação de imunoglobulinas com marcadores específicos de linfócitos B ou de lin-
antígenos (via clássica de ativação), pela deposi- fócitos T, foram inicialmente chamadas de células
ção espontânea do componente C3b do comple- nulas (null cells). As células NK estão presentes
mento na superfície de microorganismos (via al- principalmente nos tecidos linfóides periféricos e
ternativa) ou devido à ligação com proteínas que atuam direta, pela capacidade de destruir células
se ligam à manose (via da lecitina). A ativação infectadas, e indiretamente mediante a secreção
do complemento por qualquer uma dessas vias de citocinas. A atividade das células NK precede
resulta em uma cascata de ativação seqüencial, a ativação da resposta imune específica. A des-
com a formação de moléculas intermediárias que truição de células infectadas por vírus é realizada
possuem diversas atividades biológicas, princi- inicialmente pelas células NK e, posteriormente,
palmente ligadas à ativação do processo inflama- pelos linfócitos Tc.
tório. Dentre as funções dos componentes ativa- A capacidade das células NK em distinguir
dos do complemento destacam-se: opsonização; células infectadas de células não-infectadas está
quimiotaxia e ativação de neutrófilos e outras relacionada com a presença de receptores inibido-
células inflamatórias; degranulação de mastóci- res da destruição (killing inhibitory receptors = KIR)
tos com conseqüente vasodilatação e aumento da na sua superfície. Esses receptores reconhecem as
permeabilidade capilar e formação do complexo moléculas do complexo de histocompatibilidade
de ataque à membrana (membrane attack complex, principal do tipo I (MHC-I), que estão presentes
MAC), formado pela associação dos componen- na superfície de virtualmente todas as células do
tes C5-9 e que se inserem na membrana de células organismo. A expressão do MHC-I está geral-
infectadas ou no envelope de vírions, resultando mente reduzida em células infectadas por vírus e
na sua destruição. em células tumorais. Dessa forma, utilizando os
O componente mais importante do comple- receptores KIR, as células NK podem detectar se
mento é denominado C3, que, a partir da ativa- uma célula está expressando moléculas do MHC-
ção da cascata, é clivado de forma contínua e es- I em níveis normais. A ligação dos KIR em molé-
pontânea, gerando os produtos C3a e C3b. Uma culas do MHC-I inibe a ação das células NK. No
vez produzido, o C3b se deposita em superfícies caso da expressão das moléculas de MHC-I estar
que não possuam ácido siálico, como o envelope reduzida, essa célula torna-se alvo de destruição
de diversos vírus, e, assim, desencadeia a cascata pelas células NK.
de ativação do complemento, que culmina com a O mecanismo utilizado pelas células NK
formação do MAC e com a destruição do vírion. A para destruir as células-alvo é semelhante ao uti-
presença de ácido siálico na superfície das células lizado pelos linfócitos Tc. O contato com a célula
animais (e eventualmente em algumas bactérias infectada estimula as NK a liberarem perforinas
Resposta imunológica contra vírus 243

no meio extracelular. As perforinas são proteínas freqüentes de penetração de agentes virais. As


semelhantes aos componentes C5-C9 do comple- células de Langerhans (LC), por exemplo, estão
mento e produzem pequenos poros na membra- localizadas na epiderme; DCs intersticiais estão
na plasmática da célula-alvo. As células NK libe- localizadas na derme, nas mucosas e em tecidos
ram então as granzimas, que penetram por estes periféricos. Por outro lado, as pDCs encontram-
poros e induzem morte celular por apoptose. se principalmente nos órgãos linfóides, como a
Durante a resposta inata, as células NK des- medula óssea, timo, baço, tonsilas e linfonodos.
troem células infectadas independentemente do As mDCs desempenham a importante função de
reconhecimento de antígenos específicos. No cur- apresentar antígenos aos linfócitos T e transferir
so da resposta imune específica e após a produção antígenos aos linfócitos B, eventos que se consti-
de anticorpos antivirais, as células NK também tuem no principal elo entre a imunidade inata e
podem participar da destruição de células infec- a imunidade adquirida. Além disso, as pDCs são
tadas. Nesse caso, anticorpos produzidos contra as principais células produtoras de IFN-I durante
antígenos virais se ligam em antígenos virais pre- as infecções virais e participam ativamente da es-
sentes na superfície das células infectadas. Essa timulação das células NK.
ligação facilita o seu reconhecimento pelas célu-
las NK, pois estas possuem receptores para a por- 2.4.1 Interação entre as DCs e células NK
ção Fc das imunoglobulinas. Essa atividade é de-
nominada citotoxicidade celular dependente de As DCs estimulam as células NK por meio
anticorpos (antibody dependent cellular citotoxicity, de mediadores solúveis e também por contato di-
ADCC) e também pode ser mediada por outras reto. A interação entre as DCs e as células NK é
células que possuem receptores para a porção Fc importante para a ativação das próprias DCs. A
(macrófagos, neutrófilos e eosinófilos). ativação das DCs pelas células NK depende de
Além de destruir células infectadas por ví- contato direto, da proporção NK:DCs e de citoci-
rus, as células NK contribuem para a defesa anti- nas como o TNF-α. Células NK pré-ativadas por
viral pela secreção de várias citocinas, incluindo IL-2 são potentes estimuladoras das DCs, agindo
o IFN-γ e fator de necrose tumoral alfa (TNF-α). tanto de forma isolada como em sinergismo com
Essas células também possuem receptores para estímulos inflamatórios, como os lipopolissaca-
várias citocinas (IL-2, IL-12 e TNF-α) que podem rídeos (LPS). A interação entre as células NK e
influenciar na sua atividade. DCs parece ocorrer nos locais da infecção, onde
existem DCs imaturas residentes e para onde
migram as células NK em resposta a estímulos
2.4 Células dendríticas inflamatórios. Essa interação pode ocorrer tam-
bém nos linfonodos e em outros órgãos linfóides
As células dendíticas (DCs) constituem uma secundários, para onde as DCs migram após cap-
população heterogênea de células que diferem turar antígenos nos tecidos periféricos.
entre si em relação à origem, fenótipo, localiza-
ção, função e necessidades para o desenvolvi- 2.4.2 O papel das DCs na resposta
mento. As DCs que se originam de progenitores imune adquirida
mielóides da medula óssea são semelhantes aos
monócitos e são denominadas de DCs mielóides As DCs constituem o principal elo entre a
(mDCs). Por outro lado, as DCs que se originam imunidade inata e a imunidade adquirida. As
dos progenitores linfóides são denominadas de DCs são especializadas na captura e apresenta-
DCs plasmacitóides (pDCs) e se assemelham aos ção de antígenos aos linfócitos T, evento essencial
plasmócitos. As mDCs são encontradas em qua- para a estimulação dessas células em resposta a
se todos os tecidos e órgãos, com exceção do antígenos. Por sua vez, a estimulação de linfócitos
cérebro, dos olhos e dos testículos. São especial- Th resulta na produção de citocinas que ativam
mente abundantes nos linfonodos, na pele e em tanto a resposta mediada por células (Tc) como a
tecidos subjacentes a superfícies mucosas, locais resposta humoral (linfócitos B – plasmócitos). Os
244 Capítulo 9

estímulos para a proliferação dessas células são tos Tc é fundamental na erradicação da infecção;
fornecidos por mediadores solúveis (citocinas ou para outros, a resposta humoral desempenha um
interleucinas) produzidos pelas próprias DCs, ou papel mais importante na proteção. O conheci-
no microambiente dos linfonodos, onde os linfó- mento dos mecanismos específicos envolvidos na
citos são ativados. resposta imunológica contra cada vírus é funda-
As DCs encontram-se nos principais locais mental para a elaboração de vacinas.
de penetração dos vírus e também nos linfonodos A etapa inicial da resposta imunológica es-
e em outros tecidos linfóides secundários. Con- pecífica é o reconhecimento de antígenos pelos
seqüentemente, o contato dos vírus ou de suas linfócitos Th, Tc e B. Em resposta ao contato com
proteínas com as DCs é praticamente inevitável o antígeno, os linfócitos Th secretam várias citoci-
e é fundamental para que as DCs processem ade- nas, que estimulam a atividade de outras células
quadamente os antígenos virais e os apresentem envolvidas na resposta imunológica. Os linfócitos
às diferentes populações de linfócitos. Tc reconhecem e destroem células infectadas por
Os mecanismos envolvidos na resposta imu- vírus e também secretam algumas citocinas. Esti-
ne inata contra vírus estão ilustrados na Figura mulados pelo contato com o antígeno, os linfóci-
9.3. tos B proliferam e se diferenciam em plasmócitos.
Os anticorpos, produzidos pelos plasmócitos são
3 Resposta imune adquirida proteínas solúveis que possuem diversas funções
no combate aos agentes invasores.
Os mecanismos imunológicos específicos
contra as infecções víricas são desencadeados 3.1 Reconhecimento de antígenos pelo
após a estimulação direta ou indireta dos linfóci- sistema imunológico
tos T e B pelos antígenos virais e possuem como
características principais: especificidade (cada cé- A capacidade de distinguir antígenos pró-
lula reconhece apenas um determinante antigê- prios de antígenos não-próprios (neste caso, os
nico); diversidade (capacidade de reconhecer uma antígenos virais) se constitui no evento central
da resposta imune adquirida. Antígenos não-
grande variedade de antígenos) e memória imu-
próprios devem ser reconhecidos como tal, e o
nológica (capacidade de produzir uma resposta
seu reconhecimento deve induzir uma resposta
qualitativa e quantitativamente diferente em ex-
que resulte na sua eliminação e/ou inativação.
posições subseqüentes a um determinado antíge-
Por outro lado, os antígenos próprios devem ser
no). Além disso, a resposta imune específica se
igualmente reconhecidos, porém devem ser tole-
caracteriza pela tolerância a antígenos do próprio
rados. Ou seja, antígenos do próprio organismo
organismo.
não devem estimular uma resposta imunológi-
De acordo com os mecanismos efetores, a ca. A resposta imunológica específica contra ví-
resposta imune específica pode ser dividida em rus é mediada por diferentes subpopulações de
celular e humoral. A resposta celular é media- linfócitos: os linfócitos Th, Tc e B. Essas três po-
da pelos linfócitos T auxiliares (T helper ou Th) pulações de linfócitos apresentam mecanismos
e linfócitos Tc. A resposta humoral é mediada efetores distintos e reconhecem os antígenos de
pelos anticorpos produzidos pelos plasmócitos, formas diferentes. A seguir serão apresentados
células derivadas dos linfócitos B. Embora sejam os mecanismos de reconhecimento de antígenos
tratados separadamente com fins didáticos, os pelos linfócitos B e T.
mecanismos envolvidos nessas duas respostas
são complementares e atuam conjuntamente no 3.1.1 Reconhecimento de antígenos
combate às infecções víricas. A importância rela- pelos linfócitos B
tiva desses mecanismos, no entanto, varia entre
os diferentes vírus, de acordo com a sua biologia. Os linfócitos B reconhecem os antígenos vi-
Para alguns vírus, a resposta mediada por linfóci- rais através de receptores de membrana denomi-
Resposta imunológica contra vírus 245

nados BCRs (B cell receptors). Os BCRs são molé- por ambos. A forma de reconhecimento de antí-
culas de imunoglobulinas das classes IgD e IgM, genos por esses dois tipos de linfócitos, no entan-
que possuem uma região altamente variável, ca- to, é diferente:
paz de se ligar a uma variedade muito grande de
determinantes antigênicos. Os BCRs podem se 3.1.2.1 Reconhecimento de antígeno
ligar a antígenos de qualquer natureza química, pelos linfócitos Th
sejam proteínas, carboidratos, lipídios ou outras
macromoléculas, ou seja, os linfócitos B podem Os linfócitos Th reconhecem antígenos virais
reconhecer e responder a antígenos protéicos e através de seus receptores de membrana, deno-
não-protéicos, desde que esses possuam regiões minados TCRs (T cell receptors), juntamente com
complementares às regiões variáveis dos seus a molécula acessória CD4. Por isso, são também
BCRs. Isso faz com que os linfócitos B reconhe- chamados de linfócitos T CD4+. Para que um an-
çam antígenos na sua forma nativa, solúvel ou tígeno protéico seja reconhecido pelo complexo
não, sem a necessidade de processamento prévio. TCR+CD4 e estimule o linfócito Th, ele deve ser
No caso dos vírus, os principais antígenos reco- previamente processado e apresentado de forma
nhecidos pelos linfócitos B são as proteínas de adequada por células especializadas. O processa-
superfície dos vírions, devido a sua localização mento do antígeno protéico envolve a sua inter-
e acessibilidade aos BCRs. Proteínas virais inse- nalização por endocitose ou fagocitose, clivagem
ridas em membranas celulares, além de proteí- enzimática em peptídeos de 12 a 16 aminoácidos
nas secretadas pelas células infectadas, também e conjugação dos peptídeos com moléculas do
podem estimular os linfócitos B. Os linfócitos B complexo de histocompatibilidade principal do
também podem reconhecer antígenos virais cap- tipo II (MHC-II). Esses processos ocorrem em
turados e armazenados na superfície das DCs, compartimentos citoplasmáticos especializados
sob a forma de pequenas esferas (icossomos). Do (endossomos, fagossomos e retículo endoplasmá-
ponto de vista de proteção, os anticorpos induzi- tico). Os complexos MHC-II + peptídeo são, en-
dos contra proteínas de superfície (do capsídeo tão, transportados até a superfície celular, onde
ou envelope) possuem importância especial, pois ficam expostos à espera do reconhecimento pelos
podem se ligar e neutralizar a infectividade dos linfócitos Th. O reconhecimento dos complexos
vírus. MHC-II + peptídeos é realizado pelos receptores
Os locais de contato entre os antígenos e os TCR+CD4 existentes na membrana dos linfócitos
linfócitos B – locais de reconhecimento do antíge- Th e resulta na ativação desses linfócitos. Essa
no – são principalmente os órgãos linfóides peri- via de apresentação é denominada exógena, pois
féricos, dentre estes, os linfonodos. ocorre com proteínas extracelulares que são pre-
viamente internalizadas e processadas. Proteínas
3.1.2 Reconhecimento de antígenos estruturais dos vírions, proteínas virais secreta-
pelos linfócitos T das pelas células infectadas ou extravasadas no
meio extracelular após a lise celular podem ser
O reconhecimento de antígenos pelos linfó- processadas desta maneira e ser apresentadas
citos T é mais complexo e requer que o antígeno aos linfócitos Th. Em resumo, os linfócitos Th re-
seja previamente processado e apresentado por conhecem antígenos virais protéicos, desde que
células e moléculas especializadas. Os linfóci- devidamente processados e apresentados em as-
tos T não são capazes de responder a antígenos sociação com moléculas do MHC-II por células
em sua forma nativa, solúvel ou não, e somente especializadas (Figura 9.4).
são estimulados por antígenos protéicos, ou seja, Embora um número grande de células do or-
apenas as proteínas virais estimulam a resposta ganismo seja capaz de capturar proteínas e outras
celular. Dependendo da sua origem e da forma macromoléculas no meio externo e processá-las,
como são processadas, as proteínas virais podem somente um grupo restrito de células expressa
ser reconhecidas pelos linfócitos Th, pelos Tc ou moléculas do MHC-II. Dentre estas, incluem-se
246 Capítulo 9

6 Linfócito Th

núcleo
Célula apresentadora
de antígeno (APC)

Figura 9.4. Apresentação de antígenos virais extracelulares e resposta por linfócitos Th. Antígenos virais
extracelulares são internalizados por endocitose e/ou fagocitose (1) e processados proteoliticamente no interior de
vesículas (2), gerando peptídeos que são conjugados com moléculas do MHC-II no retículo endoplasmático (3). Os
complexos peptídeo-MHC-II são transportados até a superfície celular (4), onde são reconhecidos pelos linfócitos Th
(5). Os linfócitos Th, estimulados por esse contato, secretam interleucinas (6) que possuem diversas ações
modulatórias sobre as células envolvidas na resposta imunológica.

as células da linhagem monocítica/macrofágica aos linfócitos Th está representada esquematica-


(monócitos, macrófagos, CDs, células interdi- mente na Figura 9.4.
gitantes e LC), algumas células endoteliais e os
linfócitos B. Ou seja, somente essas células são ca- 3.1.2.2 Reconhecimento de antígeno
pazes de apresentar antígenos virais presentes no pelos linfócitos Tc
meio extracelular (exógenos) aos linfócitos Th. As
células que possuem como função precípua a cap- Os linfócitos Tc reconhecem proteínas virais
tura, processamento e apresentação de antígenos através dos TCRs, juntamente com a molécula
aos linfócitos Th são denominadas genericamente acessória CD8. Por isso, essas células também são
células apresentadoras de antígenos (APCs) pro- chamadas de linfócitos T CD8+. Para que as pro-
fissionais e, dentre estas, destacam-se as DCs e os teínas virais sejam reconhecidas pelos receptores
macrófagos. Embora não se constituam em APCs TCR+CD8 e estimulem os linfócitos Tc, também
profissionais, os linfócitos B também apresentam devem ser adequadamente processadas e apre-
antígenos virais de forma eficiente aos linfócitos sentadas. No entanto, essa forma de processa-
Th. A via exógena de apresentação de antígenos mento e apresentação somente ocorre com as
Resposta imunológica contra vírus 247

proteínas sintetizadas no interior das células du- cimento dos complexos MHC-I+peptídeo é rea-
rante a infecção, e não com proteínas extracelu- lizado pelos complexos TCR+CD8 existentes na
lares que são internalizadas. Por isso, essa via de membrana dos linfócitos Tc. Essa interação gera
apresentação é denominada endógena. Proteínas estímulos que, em conjunto com citocinas produ-
virais produzidas no interior das células durante zidas pelos Th e DCs, levam à ativação dos linfó-
o ciclo replicativo são clivadas enzimaticamente citos Tc. Resumindo, os linfócitos Tc reconhecem
em peptídeos de 8 a 12 aminoácidos, que são con- proteínas virais endógenas, após o seu processa-
jugados com moléculas do MHC-I. Os complexos mento e conjugação com moléculas do MHC-I.
MHC-I+peptídeos virais são transportados até Como, virtualmente, todas as células do organis-
a superfície celular, onde ficam expostos (Figu- mo – com exceção dos neurônios – expressam o
ra 9.5). Esse é um processo fisiológico e resulta MHC-I, a infecção de quaisquer dessas células
também na apresentação de fragmentos de pro- por vírus irá resultar no reconhecimento e res-
teínas celulares. No entanto, apenas os peptídeos posta mediada por linfócitos Tc. Acredita-se, no
resultantes da clivagem das proteínas virais são entanto, que as DCs sejam mais efetivas na indu-
capazes de estimular os linfócitos Tc. O reconhe- ção dos linfócitos Tc, pois, além da apresentação

Linfócito Tc

7 7

Replicação viral
prossegue...
...

2
4
3

núcleo
Qualquer célula nucleada

Figura 9.5. Apresentação de antígenos virais endógenos e resposta por linfócitos Tc. Após a penetração do vírus (1), as
proteínas virais são produzidas pelo aparato celular de tradução (2). Parte dessas proteínas são processadas pelos
proteassomos (3), resultando em peptídeos que são conjugados com moléculas do MHC-I no RE (4). Esses complexos
são transportados até a superfície celular (5), onde serão reconhecidos pelos linfócitos Tc (6). Ativados pelo contato
com o antígeno e por citocinas, os linfócitos Tc liberam o conteúdo citotóxico de seus grânulos (7), destruindo a célula
infectada.
248 Capítulo 9

do MHC-I+ peptídeos, são capazes de fornecer As DCs desempenham um papel muito im-
os sinais adicionais para a ativação integral dos portante no processo de apresentação de antíge-
Tc. Essa via de apresentação e reconhecimento de nos a outras células do sistema imunológico. As
antígenos é muito importante na resposta a infec- DCs podem ser infectadas por uma variedade de
ções víricas, pois permite ao sistema imunológico vírus e, assim, apresentar fragmentos de proteí-
reconhecer células infectadas por vírus e ativar o nas virais conjugadas com o MHC-I aos linfócitos
mecanismo mais efetivo para a sua destruição, os Tc. Além de apresentar esses antígenos, as DCs
linfócitos Tc. Tanto as proteínas estruturais como fornecem estímulos químicos (citocinas) para a
as não-estruturais produzidas durante a replica- ativação integral desses linfócitos (Figura 9.6). As
ção viral podem ser processadas e apresentadas DCs podem detectar vírions ou proteínas virais
aos linfócitos Tc. A via endógena de apresentação através de receptores do tipo TLR 7 e 9, resultan-
de antígenos aos linfócitos Tc está representada do em uma cascata de eventos intracelulares que
esquematicamente na Figura 9.5. as induzem a produzir citocinas e acelerar o seu

Linfócito Th

2a 2b

3
1
3

Célula
Linfócito Tc dendrítica Linfócito B

7 4

CTL 5
Plasmócito
9
Célula infectada

Figura 9.6. Interações entre as DCs e os linfócitos e estimulação da resposta adquirida. As DCs são capazes de
apresentar peptídeos exógenos aos linfócitos Th (1), estimulando-os a produzir citocinas do tipo Th1 (2a) ou Th2 (2b).
O reconhecimento de antígenos em solução ou nos icossomos da superfície das DCs (3), juntamente com as citocinas
do tipo Th2, estimula os linfócitos B a proliferar (4) e se diferenciar em plasmócitos, que são células secretoras de
anticorpos (5). Os linfócitos Tc podem reconhecer antígenos endógenos na superfície de células infectadas ou nas
DCs (6). Este reconhecimento, juntamente com as citocinas do tipo Th1 (2a), ativa os linfócitos Tc que se tornam CTLs
(7). Ao reconhecerem o mesmo padrão antigênico (MHC-I+ peptídeo viral) na membrana de células infectadas (8), os
CTLs descarregam o seu arsenal citotóxico que resulta em apoptose e morte celular (9).
Resposta imunológica contra vírus 249

processo de maturação. As DCs possuem pro- NK e macrófagos). A resposta do tipo Th2 carac-
longamentos citoplasmáticos denominados den- teriza-se pela secreção de IL-2, IL-4, IL-5, IL-10,
dritos, que aumentam a sua superfície, facilitan- citocinas que atuam principalmente na ativação
do, com isso, a interação com as demais células da imunidade humoral. Essas citocinas possuem
do sistema imunológico. As DCs são capazes de papel importante na ativação, proliferação e di-
capturar e armazenar antígenos em pequenas es- ferenciação de linfócitos B e secreção de anticor-
feras na sua superfície, denominadas icossomos. pos, ou seja, as citocinas produzidas pelos Th em
Dessa forma, as DCs podem oferecer e transferir resposta ao antígeno estimulam tanto a resposta
antígenos para outras DCs, para macrófagos e celular como a resposta humoral. O balanço entre
mesmo para os linfócitos B. As interações entre as respostas do tipo Th1 e Th2 depende da bio-
as DCs e as células envolvidas na resposta imune logia de cada vírus e de suas interações com o
adquirida estão ilustradas na Figura 9.6 sistema imunológico.
O contato entre os antígenos e as células do A função principal dos Tc na resposta an-
sistema imunológico – apresentação e reconheci- tiviral é a destruição de células infectadas por
mento de antígenos – ocorre principalmente nos vírus. Para muitas infecções víricas, a resposta
linfonodos e outros tecidos linfóides secundários. celular, mediada pelos Tc, representa a forma
Nesses tecidos, o microambiente existente favore- mais eficiente de combate e erradicação da in-
ce as interações entre o antígeno, as DCs e outras fecção. A ativação dos linfócitos Tc ocorre após
APCs, linfócitos T e B e células acessórias, resul- o reconhecimento de antígenos apresentados por
tando na estimulação eficiente de uma gama de células infectadas. Esta ativação depende de dois
células envolvidas com a resposta imunológica estímulos básicos: a estimulação resultante do
específica. Além de se constituir no evento cen- reconhecimento dos complexos peptídeo-MHC-I
tral da imunidade adquirida, o reconhecimento na superfície das células células infectadas e as
de antígeno e a conseqüente estimulação de po- citocinas produzidas pelas DCs ou pelos linfóci-
pulações de linfócitos T e B representa a etapa tos Th ativados (Figura 9.6). Os complexos pep-
inicial da resposta imunológica específica. tídeo-MHC-I são reconhecidos exclusivamente
pelo TCR e CD8 dos linfócitos Tc. Após a sua
3.2 Resposta imune celular ativação, esses linfócitos tornam-se competentes
para destruir as células que apresentem o mes-
A resposta imune específica mediada por mo complexo peptídeo-MHC-I que induziu a sua
células é representada pela atividade dos linfóci- estimulação. Esses complexos serão encontrados
tos T, pois a participação das demais células (ma- nas células que albergam o vírus infectante. Os
crófagos, DCs e células NK) faz parte da resposta linfócitos Tc ativados e capazes de destruir célu-
inata e ocorre de forma inespecífica. Os mecanis- las infectadas são denominados CTLs (citotoxic T
mos efetores dos linfócitos Th e Tc são distintos. lymphocytes). Ao entrar em contato com a célula
Os linfócitos Th modulam a resposta imunológi- infectada, os linfócitos Tc aderem a ela por meio
ca através das citocinas, que agem estimulando e do complexo TCR/CD8 e de outras moléculas de
modulando a atividade de uma variedade de cé- superfície. Essas interações resultam na reorga-
lulas do sistema imune. Os linfócitos Tc possuem nização do citoesqueleto, polarizando o linfócito
a função precípua de identificar e destruir células Tc com o objetivo de descarregar o seu arsenal
infectadas por vírus. citotóxico sobre a célula infectada. Entre os com-
De acordo com as citocinas produzidas, dois ponentes citotóxicos dos linfócitos Tc encontram-
tipos de respostas mediadas por linfócitos Th po- se as perforinas, que possuem a capacidade de
dem ser identificadas: as respostas do tipo Th1 e induzir a formação de poros na célula-alvo. Os
Th2. A resposta do tipo Th1 é caracterizada pela linfócitos Tc também secretam as granzimas, que
secreção de IFN-I, IL-2, IL-12 e TNF-α. Essas ci- penetram nas células através dos poros e ativam
tocinas atuam principalmente na estimulação mecanismos intracelulares que culminam com a
da imunidade celular (linfócitos Tc, DCs, células morte programada da célula (apoptose). Poste-
250 Capítulo 9

riormente, o linfócito Tc desprende-se da célula linfócitos B em resposta a antígenos (Figura 9.7).


e parte em busca de novas células-alvo, caracte- As Igs apresentam cinco classes principais, com
rística que lhe confere o codinome de serial killer estrutura e funções diferentes: IgG, IgM, IgA, IgE
entre as células do sistema imunológico. O meca- e IgD. Imunoglobulinas das classes IgM e IgD são
nismo de destruição celular pelos linfócitos Tc é também encontradas na superfície dos linfócitos
similar ao desencadeado pelas células NK. B, onde servem de receptores (BCRs) para o reco-
nhecimento de antígenos por essas células.
3.2.1 Importância dos linfócitos Tc na Devido aos mecanismos de diversidade e
imunidade antiviral especificidade, cada linfócito B e a sua progênie
possuem BCRs idênticos entre si e com a capaci-
Células infectadas por vírus podem produzir dade para reconhecer um único determinante an-
milhões de novas partículas virais em um período tigênico. Felizmente, o organismo possui bilhões
de poucas horas. A disseminação dos vírions en- de linfócitos B com BCRs diferentes e, por isso,
tre as células ocorre pela liberação de partículas capazes de reconhecerem e responderem a uma
virais no meio extracelular ou pela transmissão variedade virtualmente infinita de antígenos. A
direta dos vírions entre células. A transmissão capacidade de reconhecimento de antígenos pe-
direta entre células minimiza a possibilidade de los linfócitos B depende exclusivamente do BCR
um encontro indesejado dos vírions com as cé- e, conseqüentemente, os linfócitos B podem re-
lulas e moléculas do sistema imunológico. Nesse conhecer antígenos solúveis e também antígenos
caso, as únicas defesas das células infectadas são não-protéicos. Ou seja, os linfócitos B reconhecem
a produção de IFN-I e a apresentação dos antí- os antígenos em sua forma nativa, sem a necessi-
genos virais associados ao MHC-I. Dessa forma, dade de processamento e apresentação prévios,
a presença do vírus no interior das células pode como ocorre com os linfócitos T.
ser detectada pelas células vizinhas (via IFN-I) e A ativação dos linfócitos B depende da sua
pelos linfócitos Tc. interação com os antígenos virais (via BCR) e da
A estratégia do organismo em utilizar os ação de citocinas secretadas pelos linfócitos Th,
linfócitos Tc para destruir precocemente células também em resposta ao reconhecimento do an-
infectadas é muito apropriada, pois é preferível tígeno. As DCs desempenham um papel funda-
destruir pequenas fábricas de vírions a tentar ina- mental nesse processo, pois podem transferir an-
tivar milhões de partículas víricas disseminadas tígenos aos linfócitos B por meio dos icossomos
no organismo e com o potencial de infectar no- e, simultaneamente, apresentar antígenos ao lin-
vas células. O processamento e apresentação de fócitos Th (Figuras 9.6 e 9.7).
proteínas virais aos linfócitos Tc em fases iniciais Por outro lado, os linfócitos B, após reconhe-
da infecção permite ao hospedeiro identificar e cerem um antígeno, podem interagir diretamente
destruir as células infectadas antes do início da com os linfócitos Th, em um processo de estimu-
produção da progênie viral. Não obstante, alguns lação recíproca. É importante ressaltar que os lin-
vírus desenvolveram estratégias para evitar ou fócitos B, além de secretarem imunoglobulinas,
retardar o reconhecimento de células infectadas, também são excelentes APCs, ou seja, podem
a fim de assegurar a conclusão do ciclo replicati- apresentar antígenos associados ao MHC-II aos
vo e a liberação de progênie viral. linfócitos Th. As citocinas produzidas pelos Th,
juntamente com o reconhecimento do antígeno
3.3 Resposta imune humoral pelo BCR, resultam em estimulação, proliferação
e diferenciação dos linfócitos B em plasmócitos,
A resposta específica humoral é mediada células secretoras de anticorpos. As DCs também
pelas imunoglobulinas (Igs), popularmente co- podem fornecer citocinas importantes para uma
nhecidas como anticorpos. As Igs são produzidas adequada estimulação dos linfócitos B.
e secretadas pelos plasmócitos, que são células O contato com o antígeno e as citocinas pro-
originadas da proliferação e diferenciação dos duzidas pelos Th estimulam os linfócitos B a se
Resposta imunológica contra vírus 251

multiplicarem de forma rápida e abundante. As relativamente curta; as células de memória pos-


células resultantes dessa proliferação podem ter suem vida longa. Tanto os BCRs presentes na
dois destinos: a grande maioria se diferencia em membrana dos linfócitos B de memória como as
plasmócitos e uma minoria se diferencia em cé- imunoglobulinas secretadas pelos plasmócitos
lulas de memória. Os plasmócitos possuem vida possuem a mesma especificidade dos BCRs do

Vaso aferente

Células
dendríticas

Ativação
3 4

Córtex B Th
5
2

7 6

Proliferação
7

9 8 Diferenciação

Centros
germinativos
10
Célula de Plasmócitos
memória

11 Vaso eferente
Linfonodo

Figura 9.7. Mecanismos envolvidos na estimulação dos linfócitos B e produção de anticorpos. Partículas víricas ou
antígenos virais drenados pela linfa nos tecidos periféricos penetram nos linfonodos pelos vasos aferentes (1). Esses
antígenos podem ser reconhecidos diretamente pelos linfócitos B (2) ou em icossomos na superfície das DCs (3).
Tanto as DCs como os linfócitos B podem processar e apresentar antígenos virais aos linfócitos Th (4, 5), que secretam
citocinas em resposta (6). Estas citocinas atuam nos linfócitos B, estimulando a sua proliferação (7) e diferenciação em
plasmócitos (8) ou em células de memória (9). Os plasmócitos secretam grande quantidade de anticorpos (10) que têm
acesso aos líquidos corporais (11). Células fagocíticas e/ou DCs podem também penetrar nos linfonodos já com
antígenos virais capturados nos tecidos periféricos e os apresentar aos linfócitos Th e B.
252 Capítulo 9

linfócito B que os deu origem. A estimulação e uma resposta proliferativa e de diferenciação rá-
proliferação dos linfócitos B ocorrem nos órgãos pida e intensa. Essa resposta é denominada res-
linfóides secundários, sobretudo nos linfonodos. posta imune secundária. Embora mais estudados
Os anticorpos produzidos são secretados no meio em linfócitos B, pela facilidade de quantificação
extracelular e através dos vasos eferentes podem dos anticorpos, os eventos envolvidos na respos-
ter acesso à corrente sangüínea e, posteriormen- ta primária e secundária provavelmente ocorram
te, aos tecidos. Os processos de reconhecimento de forma semelhante aos linfócitos T. A resposta
do antígeno, proliferação e diferenciação dos lin- primária a um determinado vírus pode resultar
fócitos B estão ilustrados esquematicamente na de infecção natural ou de vacinação e prepara o
Figura 9.7. sistema imunológico para responder e montar
uma resposta secundária caso ocorra uma reex-
3.4 Respostas primária e posição posterior ao agente.
secundária/memória imunológica A memória imunológica de linfócitos B e T
é diferente. A produção contínua de anticorpos
Os linfócitos possuem um período de vida específicos tem sido detectada várias décadas
relativamente curto após a sua produção a par- após a infecção por alguns vírus. Como a vida
tir dos progenitores linfóides na medula óssea. média dos anticorpos no organismo é de poucas
No entanto, a sua sobrevivência pode ser pro- semanas, isto indica que ocorre uma produção
longada desde que encontrem o antígeno que os contínua de anticorpos para que os níveis sejam
estimule a proliferar e se diferenciar, ou seja, os mantidos. Uma possível explicação para esse fato
linfócitos que não encontram o antígeno que os é de que linfócitos B de memória seriam cons-
estimule possuem vida curta; aqueles que encon- tantemente reestimulados a se diferenciarem em
tram o antígeno complementar ao seu BCR têm a plasmócitos secretores de Igs, pois os plasmóci-
sua vida prolongada. Dessa forma, a presença de tos possuem vida curta. O contato freqüente com
antígenos específicos no organismo literalmente o antígeno – e as conseqüentes reestimulações
resgata os linfócitos da morte, estimulando-os a – podem decorrer da reexposição ao próprio mi-
proliferar e se diferenciar, gerando uma resposta croorganismo ou resultar de reatividade cruzada
imune, denominada resposta primária. O principal com antígenos semelhantes, próprios ou heteró-
evento da resposta primária é a expansão dos logos. Além disso, recentemente foi observado
clones de linfócitos que possuem receptores para que as DCs possuem a capacidade de armazenar
os antígenos introduzidos pela primeira vez no antígenos em seus dendritos por períodos pro-
organismo. Porém, a maioria das células origina- longados e liberá-los lentamente para os linfóci-
das pela expansão clonal se diferenciará em célu- tos de memória, provocando a sua reestimulação
las de vida curta, os plasmócitos. Os plasmócitos contínua. Isso poderia proporcionar uma estimu-
exercem a sua função de secreção de Igs e sobre- lação prolongada não somente dos linfócitos de
vivem por algumas semanas ou meses. Felizmen- memória, mas também de linfócitos que ainda
te, após a expansão clonal, uma fração pequena não haviam sido estimulados (naive ou virgens).
dos linfócitos estimulados não se diferencia em Estes, ao chegarem aos órgãos linfóides, encon-
plasmócitos, e sim em células de memória. Es- trariam com o antígeno pela primeira vez, geran-
tas mantêm a capacidade de reconhecimento do do novamente uma resposta imune primária e,
mesmo antígeno que as estimulou (pois possuem conseqüentemente, a produção de mais linfócitos
os BCRs com especificidade idêntica aos da célu- de memória.
la original) e sobrevivem no organismo por um Ao contrário da fase efetora da resposta hu-
longo tempo. As células de memória habitam a moral – cuja produção de anticorpos pode persis-
medula óssea e circulam pelo organismo. Ao en- tir por longos períodos – a fase efetora da resposta
contrarem o mesmo antígeno que as estimulou celular é de curta duração. A presença prolonga-
previamente (vírions ou proteínas virais), essas da de linfócitos Th e Tc efetores seria deletéria
células respondem rapidamente, produzindo para o organismo, pois a secreção persistente de
Resposta imunológica contra vírus 253

citocinas e a atividade citolítica continuada po- dos linfócitos de memória, que proliferam e se di-
deriam resultar em imunopatologia. Após a fase ferenciam em células efetoras, a exemplo do que
efetora, as células T de memória são encontradas ocorreu na resposta primária, porém com muito
com freqüência mais alta e podem responder com maior eficiência e rapidez. O resultado é a produ-
mais rapidez e eficiência a estímulos antigênicos ção de linfócitos Th e Tc efetores e de plasmócitos
secundários. A rapidez e eficiência com que as secretores de anticorpos, que se encarregam de
células T de memória se deslocam para os sítios combater o vírus invasor.
de infecção e respondem a estímulos secundários
faz com que não seja necessária a preexistência 3.5 As imunoglobulinas na defesa
de células efetoras para gerar uma resposta pro- antiviral
tetora.
Uma das questões fundamentais na resposta A importância dos anticorpos na imunidade
imune está relacionada com os mecanismos que antiviral tem sido muito discutida e parece va-
garantem a sobrevivência e manutenção das cé- riar de acordo com a biologia do vírus e também
lulas T e B de memória. A estabilidade da memó- com o estágio da infecção (infecção primária ver-
ria dos linfócitos Tc, por exemplo, é mantida por sus reinfecção). Como os anticorpos aparecem
divisões celulares lentas e continuadas. As célu- apenas tardiamente durante a infecção primária,
las B de memória podem ser mantidas por esti- acredita-se que desempenhem um papel secun-
mulações paralelas, ou seja, por citocinas produ- dário na erradicação dessa infecção. O papel prin-
zidas pelas células Th e DCs em resposta a outros cipal nesses casos seria assumido pelos linfócitos
antígenos. No entanto, embora a medula óssea Tc. Os anticorpos teriam participação mais efeti-
apresente o ambiente ideal para a manutenção, va na proteção em casos de reinfecção, quando
replicação e sobrevivência dessas células, acredi- atuariam limitando e restringindo a penetração e
ta-se que a reexposição e contato com o antígeno disseminação do vírus no organismo. Além dessa
sejam importantes para a manutenção das células diferença, a importância relativa dos anticorpos
B de memória. Com isso, as reestimulações con- e da imunidade celular variam de acordo com a
tribuiriam para a reposição das células secretoras biologia e interações de cada vírus com o hospe-
de Igs e a conseqüente manutenção dos níveis de deiro.
anticorpos circulantes. Os principais locais de produção de anti-
O conhecimento dos eventos que ocorrem corpos pelos plasmócitos são os centros germi-
durante a resposta primária e secundária é fun- nativos dos linfonodos e as regiões equivalentes
damental para o entendimento das bases imu- dos outros órgãos linfóides secundários. As Igs
nológicas da proteção induzida por vacinas. A estão presentes nos fluidos do organismo (plas-
vacinação induz uma resposta primária, com a ma sangüíneo, saliva, lágrima, urina, colostro/
conseqüente expansão de clones de linfócitos B leite, muco, secreções, líquido céfalo-raquidiano
e T específicos para os antígenos vacinais. Com e líquido sinovial) e são capazes de se ligar es-
isso, são produzidos plasmócitos e linfócitos T pecificamente no determinante antigênico que
efetores, que possuem vida curta; e, principal- induziu a sua formação. Para várias infecções
mente, células B e T de memória, que possuem virais, a quantidade de Igs específicas presentes
vida longa e são capazes de responder ao mesmo no soro sangüíneo pode ser correlacionada com
padrão antigênico que induziu a sua prolifera- proteção. Por isso, esse parâmetro é utilizado
ção. A infecção subseqüente de um animal vaci- para o monitoramento dos prováveis níveis de
nado irá induzir uma resposta secundária, com proteção e da necessidade de novas imunizações.
estimulação e proliferação muito mais rápida e Considerando-se que a resistência antiviral deve-
intensa de linfócitos T e B, pois o número dessas se, em grande parte, à atividade dos linfócitos Tc
células específicas para o antígeno agora é muito (que efetivamente destroem células infectadas), a
maior, resultado da expansão clonal da resposta quantificação dos anticorpos não pode ser consi-
primária. Esta infecção resulta em estimulação derada o indicador único de proteção. Não obs-
254 Capítulo 9

tante, a sorologia é muito utilizada para se avaliar – Opsonização: o revestimento de partículas


os níveis de imunidade como um todo, visto que víricas por moléculas de imunoglobulinas (IgM e
os métodos para detectar e quantificar a função IgG) facilita a ligação e remoção dessas partícu-
de linfócitos T são de difícil aplicação. las pelas células fagocíticas, via receptores para a
porção Fc das Igs. A ativação do sistema do com-
3.5.1 Mecanismos de ação plemento também gera fragmentos capazes de
das imunoglobulinas opsonização viral (C3b);
– Ativação do complemento: a ligação das
As Igs possuem várias atividades biológicas Igs aos antígenos resulta em alterações tridi-
que potencialmente podem estar envolvidas na mensionais na sua região Fc, expondo sítios de
resposta antiviral. Algumas dessas atividades já ligação para o componente C1 do complemento,
foram demonstradas in vivo e a sua participação iniciando a sua ativação em cascata. O resultado
na resposta antiviral parece ser inquestionável; é a estimulação de vários mecanismos da imuni-
outras somente foram demonstradas inequivoca- dade inata (vasodilatação, aumento da permeabi-
lidade capilar, quimiotaxia para fagócitos, entre
damente in vitro e/ou possuem um papel contro-
outros) e a formação do MAC sobre a superfície
verso na resposta imunológica contra os vírus. A
dos vírions, o que pode resultar na inativação
seguir são listadas as principais atividades anti-
da infectividade dos vírus envelopados. A liga-
virais dos anticorpos (essas atividades na defesa
ção de anticorpos em proteínas virais inseridas
contra vírus estão ilustradas na Figura 9.8):
na membrana de células infectadas pode ativar o
– Neutralização: a interação dos vírions com
complemento e levar à formação do MAC. Com
os receptores celulares para o início da infecção
isso, a célula infectada pode sofrer lise osmótica.
é mediada por regiões específicas das proteínas
Esse mecanismo pode também ocorrer com bac-
de superfície dos vírions (anti-receptores). Anti-
térias;
corpos produzidos contra essas regiões possuem – Citotoxicidade mediada por células de-
a capacidade de se ligar aos vírions e impedir a pendente de anticorpos (ADCC): durante a re-
interação com os receptores celulares, neutrali- plicação de alguns vírus, certas proteínas virais
zando a sua infectividade. Esses anticorpos são podem ser inseridas na membrana plasmática da
denominados genericamente neutralizantes e célula infectada. Anticorpos específicos são pro-
constituem uma parcela do total de anticorpos duzidos contra essas proteínas e se ligam a elas na
produzidos contra os vírus. Anticorpos com ati- superfície celular. Com isso, a célula infectada se
vidade neutralizante são direcionados contra pro- torna alvo para algumas células do sistema imu-
teínas de superfície dos vírions. A neutralização nológico que possuem receptores para a porção
de partículas virais pode ocorrer por Igs da clas- Fc das Igs (células NK e neutrófilos) e destroem
se IgA, presente nas mucosas e em secreções; ou a célula. Embora a ADCC tenha sido amplamen-
por IgM e IgG, presentes no plasma sangüíneo. te demonstrada in vitro, a sua importância in vivo
Um dos desafios da vacinologia é a indução de ainda é desconhecida;
proteção sólida nas mucosas, pela estimulação de – Outras atividades dos anticorpos: embo-
IgA com capacidade de neutralizar as partículas ra as Igs desempenhem funções benéficas para a
víricas nos locais mais freqüentes de penetração manutenção da integridade e funcionalidade do
viral (sistema respiratório, digestório e reprodu- organismo, pelo combate a agentes infecciosos
tivo) e, assim, impedir a instalação da infecção. potencialmente nocivos, eventualmente podem
A neutralização da infectividade é o mecanismo participar de processos que são prejudiciais ao
mais direto de ação dos anticorpos contra vírus e, hospedeiro. A presença de grande quantidade
talvez, o mais importante; de antígenos no plasma sangüíneo pode levar à
– Aglutinação: as IgM e IgG possuem a ca- formação disseminada de complexos antígeno-
pacidade de aglutinar partículas virais e, com anticorpo. Esses complexos geralmente são re-
isso, facilitar a sua remoção mediada pelo siste- movidos pelas células fagocíticas. No entanto,
ma complemento e por células fagocíticas; quando estão em excesso, depositam-se em locais
Resposta imunológica contra vírus 255

1
2 3

5
Tc

6 7

Figura 9.8. Atividades dos anticorpos na resposta contra vírus. Neutralização da infectividade (1), aglutinação (2),
opsonização e fagocitose (3), ativação do complemento (4), lise de vírus envelopados mediada por complemento (5),
ADCC (6) e lise celular mediada por complemento dependente de anticorpos (7).

como as superfícies articulares e túbulos renais rios vírus, dentre os quais o vírus da dengue, o
e, freqüentemente, causam imunopatologia. O coronavírus felino e o vírus da imunodeficiência
revestimento de vírions com anticorpos sem ati- humana (HIV). O papel da ADE na patogenia
vidade neutralizante pode, ao invés de neutrali- dessas doenças, no entanto, ainda é tema de de-
zá-lo, potencializar a sua infectividade. Essas Igs bates.
são reconhecidas por células que possuem recep-
tores para a porção Fc (monócitos e macrófagos), 3.6 O papel das respostas celular e
resultando na internalização eficiente de vírions humoral na imunidade antiviral
recobertos com anticorpos, facilitando a infecção
dessas células, ou seja, os anticorpos aumentam Os avanços no estudo da imunologia antivi-
a eficiência de penetração desses vírions. Esse ral têm resultado na emergência de importantes
mecanismo é denominado Antibody Dependent componentes e mecanismos anteriormente rele-
Enhancement (ADE) e tem sido descrito para vá- gados a papéis secundários na resposta imune,
256 Capítulo 9

como as DCs. No entanto, o papel exato de cada tolerância, integração do material genético viral
componente na intrincada cadeia de relações ce- no genoma do hospedeiro, infecção de sítios imu-
lulares e moleculares que resultam na eliminação nologicamente privilegiados e interferência com
de uma determinada infecção vírica ainda não funções do sistema imunológico.
está satisfatoriamente esclarecido. O esclareci-
mento desses mecanismos depende do entendi- 4.1 Infecções latentes no sistema
mento detalhado da biologia e da patogenia de nervoso central
cada infecção e das interações peculiares de cada
vírus com o sistema imunológico. Não obstante, O estabelecimento de infecções latentes é
pode-se afirmar que os linfócitos Tc são funda- um eficiente mecanismo de perpetuação no hos-
mentais na erradicação da infecção primária, pela pedeiro utilizado pelos vírus da família Herpesvi-
destruição das células infectadas. Os anticorpos ridae. A fase de latência, que se segue à infecção
não teriam grande participação no combate à in- aguda, é caracterizada pela presença do genoma
fecção primária, pois aparecem tardiamente no viral inativo em neurônios, sem síntese protéica
curso da infecção. Seriam de fundamental impor- ou produção de progênie viral. Como conseqüên-
tância por ocasião de uma reexposição ao agente, cia, a infecção desses neurônios não é detectada
prevenindo e/ou limitando a infecção através de pelo sistema imunológico e essas células podem
neutralização viral e de outros mecanismos que manter o material genético viral indefinidamen-
restringiriam a disseminação do vírus no orga- te. No entanto, sob determinadas circunstâncias,
nismo. Caberia aos linfócitos Th o papel de co- geralmente associadas com estresse, ocorre a
ordenar e moderar as duas respostas (humoral, reativação e a retomada da replicação viral nos
mediada por linfócitos B; e celular, mediada por neurônios infectados. Os vírions produzidos mi-
linfócitos Tc) pela secreção de citocinas. gram pelos axônios de volta aos locais de replica-
ção primária, de onde são excretados, podendo
4 Mecanismos virais de evasão da infectar outros hospedeiros. O estabelecimento e
resposta imune reativação de infecções latentes, portanto, cons-
tituem-se em estratégias dos herpesvírus para
A ocorrência contínua de doenças virais so- escapar do sistema imunológico e garantir a sua
mente é possível devido ao sucesso desses mi- perpetuação no hospedeiro e na população. In-
croorganismos em produzir infecções, resistir ou fecções latentes ocorrem com os herpesvírus bo-
escapar dos mecanismos antivirais do hospedei- vino tipo 1 e 5 (BoHV-1 e 5), herpesvírus suíno
ro e se disseminar para outros hospedeiros sus- (doença de Aujeszky), herpesvírus felino tipo 1
ceptíveis. Hospedeiros imunes impedem a pro- (FHV-1), herpesvírus eqüinos tipo 1 e 4 (EHV-1 e
gressão da infecção, o que reduz drasticamente 4), entre outros.
a possibilidade de transmissão do vírus para ou-
tros animais. Dezenas ou centenas de milhares de 4.2 Variações antigênicas
anos de coexistência, além da rapidez com que
os vírus se multiplicam e evoluem geneticamen- Alterações na seqüência de aminoácidos de
te, permitiram o desenvolvimento de estratégias determinantes antigênicos em proteínas de su-
que lhes permitem evitar ou resistir às defesas do perfície dos vírions permite o escape da neutra-
hospedeiro, causando infecções produtivas, agu- lização por anticorpos e é uma estratégia muito
das ou crônicas, e garantindo a sua manutenção e utilizada pelos vírus, principalmente os vírus
perpetuação na natureza. Dentre os mecanismos RNA. Essas alterações surgem como resultado
utilizados pelos vírus para compatibilizar a sua dos erros cometidos pela enzima RNA polimera-
existência e perpetuação, apesar dos mecanis- se viral durante a replicação do genoma. Como
mos imunológicos do hospedeiro, destacam-se conseqüência, aminoácidos diferentes são fre-
os seguintes: infecções latentes no sistema ner- qüentemente incorporados durante a síntese das
voso central, variações antigênicas, indução de proteínas virais, alterando a sua seqüência e es-
Resposta imunológica contra vírus 257

trutura, podendo resultar no não-reconhecimen- mais. Essa condição só é possível pela tolerância
to pelos anticorpos produzidos contra os epitopos do sistema imunológico aos antígenos virais.
originais. Vírions com alterações antigênicas po-
dem, assim, escapar da resposta imune existente 4.4 Integração do material genético viral
naquele momento no hospedeiro, principalmente no genoma do hospedeiro
da imunidade humoral, e infectar novas células.
A presença desses novos determinantes antigêni- Os vírus da família Retroviridae podem per-
cos elicitará a síntese de anticorpos com uma nova sistir no hospedeiro durante toda a sua vida, mes-
especificidade. Porém, novas variações poderão mo na presença da resposta imune. O mecanismo
ser posteriormente produzidas e novamente al- de persistência resulta de dois aspectos da biolo-
guns variantes podem escapar da neutralização. gia desses vírus: a) possuem a capacidade de in-
Essas variações antigênicas discretas, geralmente serir cópias do seu genoma nos cromossomos das
associadas com a acumulação de mutações em células hospedeiras e b) possuem a enzima deno-
ponto, são denominadas genericamente de anti- minada transcriptase reversa, responsável pela
genic drift e têm sido bem caracterizadas nos vírus transcrição reversa do genoma (RNA para DNA),
da influenza, embora ocorram também em outros mas que não corrige os seus próprios erros. Com
vírus. Alterações antigênicas mais drásticas ocor- isso, a cada ciclo são produzidas populações de
rem quando os vírus da influenza trocam entre si vírus compostas por indivíduos com pequenas
os genes que codificam as proteínas do envelope diferenças genéticas entre si (quasiespecies). A
(HA e NA), resultando em vírus antigenicamente inserção do material genético viral garante que
muito diferentes dos parentais. Esse mecanismo a infecção seja permanente, e as alterações anti-
é denominado antigenic shift e tem sido implicado gênicas que resultam de cada ciclo de replicação
no surgimento de vírus de maior patogenicidade, viral asseguram que alguns vírions produzidos
responsáveis por epidemias de grandes propor- possam escapar da resposta imune para infectar
ções. novas células. Dentre as infecções por retrovírus
animais destacam-se a anemia infecciosa eqüina
4.3 Indução de tolerância e a imunodeficiência felina.

Em condições normais, o sistema imunológi- 4.5 Infecção de sítios imunologicamente


co possui tolerância, ou seja, não reage contra os privilegiados
antígenos do próprio organismo. Ocasionalmen-
te o sistema imunológico pode se tornar tolerante Os tecidos e órgãos aos quais os componen-
também a antígenos estranhos, contra os quais tes do sistema imunológico não possuem acesso
deveria produzir uma resposta. Um exemplo é o imediato e irrestrito são denominados generica-
que ocorre quando fetos bovinos são infectados mente sítios de privilégio. Os neurônios do SNC,
por cepas não-citopáticas do vírus da diarréia vi- por exemplo, não expressam de forma constitu-
ral bovina (BVDV) entre os 40 e 120 dias de ges- tiva as moléculas do MHC-I, o que dificulta o
tação. Nessa fase, o sistema imunológico do feto reconhecimento da infecção celular e a ação dos
ainda está imaturo e não reconhece os antígenos linfócitos Tc. Conseqüentemente, os vírus que in-
virais como estranhos. Com isso, não ocorre a esti- fectam neurônios são privilegiados, pois as célu-
mulação e proliferação de linfócitos B e T e, como las hospedeiras não denunciam a sua presença.
conseqüência, o feto fica incapaz de montar uma Por outro lado, a falta de expressão de moléculas
resposta contra o vírus. Os fetos imunotoleran- do MHC-I pode ser considerada um mecanismo
tes nascem persistentemente infectados (PI) pelo de proteção, evitando a destruição de células tão
BVDV e excretam o vírus continuamente em se- importantes. Da mesma forma, a barreira hemato-
creções e excreções. Os animais PI se constituem encefálica restringe o acesso de algumas células
no ponto-chave da epidemiologia do BVDV, pois imunológicas ao SNC. São também considerados
são fontes contínuas de vírus para os outros ani- sítios de privilégio as células da epiderme (onde
258 Capítulo 9

ocorrem infecções pelos vírus da papilomatose), espécies animais. Observando a trajetória desses
as células germinativas das gônadas (onde pode fascinantes microorganismos e de suas comple-
ocorrer a infecção pelo vírus da síndrome repro- xas interações celulares e moleculares, percebe-
dutiva e respiratória dos suínos, PRRSV), retina, se o quanto ainda há para descobrir em relação
células dos túbulos renais (utilizadas pelos han- aos mecanismos imunológicos protetores. Tanto
tavírus e arenavírus) e tecidos fetais (diversos ví- é verdade que o surgimento do HIV renovou o
rus). interesse dos pesquisadores pela imunologia. A
partir de então, o descobrimento de novas infec-
4.6 Interferência com funções do ções e o desafio de vencer velhos conhecidos fez
sistema imunológico da imunologia uma das áreas do conhecimento
que mais rapidamente acumula informações.
Os estudos sobre as relações vírus-célula e Paralelamente aos avanços no conhecimen-
sobre a biologia dos vírus permitiram elucidar to das interações dos vírus com o sistema imu-
vários mecanismos utilizados pelos vírus para nológico – e dos mecanismos utilizados por es-
subverter o sistema imunológico, por meio da in- ses agentes para se perpetuarem no hospedeiro
terferência com a função das células e moléculas – surgem importantes linhas de pesquisa na área
imunológicas. Essa interferência freqüentemente de desenvolvimento de vacinas. Um dos maio-
leva a deficiências na resposta imunológica, con- res avanços dos últimos anos foi a elucidação do
seqüências denominadas genericamente de imu- papel central das DCs na resposta às infecções
nossupressão. Cada vírus utiliza uma estratégia virais. Essas células se constituem no elo de li-
específica, dependendo da sua biologia, o que gação entre mecanismos imunológicos naturais
torna impraticável enumerá-las aqui. No entanto, e específicos. Juntamente com a descoberta da
como mecanismos gerais, citam-se: a) destruição, importância das DCs, novos questionamentos di-
inibição ou indução da maturação das DCs, o recionam as investigações futuras que, necessa-
que altera o padrão de secreção de citocinas e de riamente, deverão considerar a manipulação de
expressão de receptores nas DCs, resultando em vetores virais para maximizar a resposta imune
prejuízo nas suas relações com as demais células com vistas à produção de vacinas.
do sistema imunológico, principalmente os lin-
fócitos T; b) destruição ou alteração das funções 6 Bibliografia consultada
dos linfócitos T; c) interferência com a apresenta-
ção de antígenos, inibindo a ação das proteínas ABBAS, A.K.; LICHTMAN, A.H.; POBER, J.S. Cellular and
TAP-1 e TAP-2 e inibição da formação do com- molecular immunology. 4.ed. Philadelphia: Saunders, 2000.
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É inquestionável o avanço no entendimen- New York: Lippincott-Raven, 1998. Cap.19, p.651-699.
to dos mecanismos imunológicos estimulados
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durante as infecções víricas. Os imunologistas to influenza infection. Seminars in Immunology, v.16, p.171-
aprendem imunologia com os vírus, cujas intera- 177, 2004.
ções com o sistema imunológico são repletas de
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estratégias para driblar ou conviver com os me- Seminars in Immunology, v.16, p.197-203, 2004.
canismos imunológicos e, assim, perpetuar-se nas
Resposta imunológica contra vírus 259

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EPIDEMIOLOGIA DAS INFECÇÕES VÍRICAS
Eduardo Furtado Flores 10
1 Introdução 263

2 A cadeia do processo infeccioso 263

2.1 Fontes de infecção 265


2.2 Vias de excreção 269
2.3 Mecanismos de transmissão 270
2.4 Vias de penetração 273

2.5 O novo hospedeiro 274


2.5.1 Patogenia e resposta imunológica 274

3 Mecanismos de perpetuação dos vírus na natureza 275

3.1 Infecções persistentes 276


3.2 Infecções latentes 276
3.3 Infecção de várias espécies animais 277
3.4 Infecção de vetores 279
3.5 Sobrevivência no ambiente 279
3.6 Transmissão vertical 280
3.7 Ciclos contínuos de transmissão 281

4 Doenças em populações 281

4.1 Definição de população 281


4.2 População de risco 282
4.3 Populações abertas e fechadas 282
4.4 Quantificação de doença: incidência e prevalência 283

5 Padrões temporais de ocorrência das doenças víricas 284

5.1 Doenças esporádicas 284


5.2 Doenças endêmicas 285
5.3 Doenças epidêmicas 285
5.4 Fatores determinantes das epidemias 287
5.5 Outros padrões de ocorrência 287
6 Distribuição espacial das doenças víricas 288

6.1 Doenças de distribuição mundial 288


6.2 Doenças com certa limitação geográfica 289
6.3 Doenças restritas geograficamente 289
6.4 Áreas livres naturais 289
6.5 Áreas livres artificiais 290

7 Doenças víricas emergentes 290

8 Bibliografia consultada 293


1 Introdução Os principais objetivos das investigações
epidemiológicas são o conhecimento dessas ca-
deias de interações e a identificação de pontos
A epidemiologia estuda as doenças em po-
frágeis que sejam passíveis de intervenção, vi-
pulações, investigando os seus determinantes, a
sando ao controle das doenças. A ênfase maior
sua dinâmica e distribuição. Os fatores envolvi-
da epidemiologia é a população – a sua saúde e
dos na manutenção e transmissão das infecções bem-estar. A importância do indivíduo limita-
víricas nas populações são múltiplos e partici- se à sua condição de componente da população,
pam de interações complexas, às vezes, de difícil pois, como tal, pode originar informações úteis
compreensão. A complexidade dessas interações para a preservação da saúde coletiva.
é muito variável entre as viroses. Existem infec- Este capítulo aborda, de forma genérica, os
ções víricas que são mantidas na população por principais aspectos da epidemiologia das infec-
uma cadeia sucessiva de infecções agudas entre ções víricas de animais. Os aspectos epidemioló-
hospedeiros de uma única espécie animal. Essas gicos mais relevantes de cada virose serão abor-
infecções apresentam, portanto, uma epidemio- dados oportunamente nos capítulos especifícos.
logia relativamente simples. Outras viroses con- A epidemiologia aplicada às doenças animais
seguem persistir na população graças a infecções possui uma terminologia própria (epizootiologia,
persistentes ou latentes. Por outro lado, alguns epizootia, enzootia etc.). Este texto, no entanto,
vírus desenvolveram a capacidade de infectar vá- utilizará a terminologia clássica (epidemia, en-
rias espécies de hospedeiros e a sua manutenção, demia etc.), consagrada ao longo de décadas na
na natureza, é possível pela ocorrência de ciclos descrição de doenças humanas, mas que também
alternados de infecção nessas espécies. tem sido utilizada em epidemiologia veterinária.
Infecção de espécies silvestres, transmissão
por artrópodes, longos períodos de incubação ou 2 A cadeia do processo infeccioso
de sobrevivência no meio ambiente, transmissão
vertical, variabilidade genética e antigênica, en- A sobrevivência de um vírus como espécie
depende de sua capacidade de cumprir uma se-
tre outras, fazem parte do arsenal de estratégias
qüência de etapas que se convencionou chamar
utilizadas pelos vírus para assegurar a sua sobre-
de cadeia do processo infeccioso. Para facilitar o seu
vivência como espécie. Alguns vírus fazem uso
entendimento, a cadeia do processo infeccioso
concomitante de várias dessas estratégias, o que pode ser dividida nas seguintes etapas: fontes de
torna a sua epidemiologia extremamente comple- infecção, vias de excreção, mecanismos de trans-
xa, favorecendo a sua manutenção no ambiente e missão, vias de penetração e o novo hospedeiro
dificultando o seu controle. (Figura 10.1).

Excreção Penetração

Fonte de Novo hospedeiro


infecção
Transmissão

Figura 10.1. A cadeia do processo infeccioso.


264 Capítulo 10

Inicialmente, o agente deve penetrar e se Ao contrário de outros microorganismos


multiplicar no hospedeiro e, mesmo na presen- (bactérias e fungos) a maioria dos vírus não é ca-
ça da resposta imunológica, produzir progênie paz de manter a viabilidade por longos períodos
viável. Essa progênie deve ser excretada do hos- no meio externo. Isso é crítico para muitos desses
pedeiro a tempo, pela via adequada e em quanti- agentes, uma vez que a viabilidade e a perspec-
dade suficiente para permitir a sua transmissão a tiva de transmissão são freqüentemente perdidas
outros indivíduos (Figura 10.2). Após a excreção, pela inativação no meio ambiente. Após encon-
o agente deve ser capaz de resistir no meio am- trar um hospedeiro susceptível, o agente deve
biente o tempo necessário para encontrar outro penetrar pela via adequada (Figura 10.3) e mul-
hospedeiro susceptível. tiplicar nos tecidos e órgãos-alvo para produzir
A transmissão dos vírus entre hospedeiros progênie e ser novamente excretado.
O cumprimento dessas etapas é fundamen-
pode ocorrer por diferentes meios. Alguns vírus
tal para a perpetuação dos vírus – assim como
são transmitidos por contato direto entre hospe-
de outros agentes infecciosos – na natureza. Na
deiros. Nesses casos, a capacidade do vírus resis-
realidade, o processo evolutivo fez com que os
tir em condições ambientais é irrelevante, pois o
agentes virais que existem atualmente tenham
tempo e espaço entre os hospedeiros são virtuais.
desenvolvido meios para cumprir essas etapas e,
Já outros agentes não são transferidos imediata- assim, sobreviver como espécie. Não obstante, as
mente, e a sua transferência entre hospedeiros estratégias utilizadas para realizar essa tarefa são
ocorre com o auxílio de objetos inanimados ou variadas e peculiares de cada vírus ou grupo de
de artrópodes (insetos). Nesses casos, o agente vírus. É também provável que, ao longo dos tem-
necessita obrigatoriamente resistir no meio am- pos, tenham surgido vírus que não foram capazes
biente e/ou replicar ou persistir viável nos veto- de cumprir alguma dessas etapas. Tais agentes
res pelo tempo necessário, a fim de assegurar a certamente não tiveram sucesso em sua história
sua transmissão ao próximo hospedeiro. natural e, conseqüentemente, desapareceram.

Descamações Secreções
cutâneas urogenitais,
Tecidos
sêmen

Secreções Urina,
oronasais fezes

Sangue, Fetos, fluidos e


linfa membranas fetais
Colostro
e leite

Figura 10.2. Vias de excreção de vírus que infectam animais.


Epidemiologia das infecções víricas 265

Mucosa
conjuntival
Pele
Mucosa
urogenital

Mucosa
respiratória

Mucosa
orofaríngea
Mucosa
intestinal

Figura 10.3. Vias de penetração de vírus que infectam animais.

2.1 Fontes de infecção Os portadores são os animais que abrigam e


excretam o agente sem estar manifestando altera-
Define-se como fonte de infecção qualquer ções clínicas indicativas de doença. Por isso não
animal vertebrado que esteja infectado e seja ca- são facilmente reconhecíveis, o que os torna mui-
paz de transmitir o agente para outros animais to importantes na epidemiologia de cada infec-
susceptíveis. Excluem-se dessa definição os ar- ção. Os animais portadores podem ser também
trópodes, que, na maioria das infecções víricas denominados de hospedeiros assintomáticos. De-
animais, parecem desempenhar um papel pre- pendendo da sua participação na disseminação
dominantemente de transmissão e não de manu- viral, dois tipos de portadores podem ser reco-
tenção do agente. Dependendo do resultado das nhecidos: ativos e passivos. Os portadores ativos
interações agente-hospedeiro, que podem ou não são aqueles que excretam o vírus; os portadores
resultar em manifestações clínicas, as fontes de passivos apenas abrigam e replicam o agente sem
infecção (também chamados de hospedeiros) po- excretá-lo ou transmiti-lo. A grande maioria dos
dem ser classificadas em doentes e portadores. portadores de agentes virais enquadra-se na pri-
Os doentes são os animais infectados que ma- meira categoria. Entretanto, cães adultos podem
nifestam sinais clínicos de doença. Do ponto de abrigar o vírus da cinomose (CDV) no sistema
vista estritamente epidemiológico, essas fontes nervoso central (SNC) de forma persistente sem
de infecção possuem uma importância relativa- excretá-lo. Aparentemente, búfalos infectados
mente menor, pois são facilmente reconhecidas pelo vírus da febre aftosa (FMDV) tornam-se
como tal, o que permite o diagnóstico e a ado- portadores após a infecção aguda, mas parecem
ção das medidas de controle pertinentes. Alguns ser incapazes de transmiti-lo. Nesses casos, esses
exemplos são os cães, com sinais clínicos de raiva, animais se constituem em portadores passivos.
e os bovinos, com sinais característicos de febre Dependendo do período em que excretam o
aftosa. Não obstante, em infecções víricas, nas agente, os portadores ativos podem ser classifica-
quais o desenvolvimento de doença é freqüente, dos em permanentes ou temporários. Os portadores
os animais doentes se constituem nas fontes de ativos permanentes são aqueles que excretam o ví-
infecção mais comuns e epidemiologicamente rus continuamente. Alguns exemplos são os ani-
importantes. mais infectados por retrovírus e aqueles persis-
266 Capítulo 10

tentemente infectados pelo vírus da diarréia viral maioria das vezes, para designar espécies silves-
bovina (BVDV). Os portadores ativos temporários tres, essa denominação pode também ser utiliza-
excretam o agente – sem manifestar sinais clíni- da para designar animais domésticos que sirvam
cos concomitantes – por determinados períodos. de fontes de infecção e, como tal, mantenham e
Quando a excreção viral inicia-se no período transmitam agentes infecciosos. Geralmente, as
de incubação ou na fase prodrômica e os animais principais espécies que servem de reservatórios
ainda não apresentam sinais clínicos, eles são cha- de agentes virais na natureza são as espécies de
mados de portadores em período de incubação e por- origem desses agentes, também chamadas de
tadores prodrômicos, respectivamente. Exemplos hospedeiros ou reservatórios naturais. No entanto,
incluem os bovinos infectados com vírus respi- mesmo espécies que não se constituam nos hos-
ratórios, que podem iniciar a excretar o vírus de pedeiros naturais de determinados vírus podem,
um a três dias antes do início dos sinais clínicos. ocasionalmente, servir de reservatórios. Deve ser
Em outras infecções, os animais podem seguir enfatizado que algumas espécies que abrigam
excretando o vírus após a resolução da doença agentes virais na natureza – e que se constituem,
clínica, sendo, então, denominados portadores em portanto, em reservatórios – desenvolvem a en-
fase de convalescença. Suínos infectados pelo vírus fermidade devido à infecção. Nesse sentido, os
da síndrome respiratória e reprodutiva (PRRSV) agentes que conseguem infectar e se manter em
e cães infectados pelo adenovírus canino (CAV) espécies animais sem causar doença apresentam
enquadram-se nessa categoria, pois podem per- uma grande vantagem, pois possuem uma maior
manecer excretando o vírus por semanas ou até probabilidade de perpetuação e transmissão.
meses após o término dos sinais clínicos. Nesses Exemplos de espécies reservatórios são as aves
casos, a excreção viral pode ocorrer durante pe- aquáticas e migratórias, para os vírus da influen-
ríodos em que o animal não exibe sinais clínicos, za A; pássaros e outras aves, para os alfavírus;
o que caracteriza a condição de portador. Porta- roedores silvestres, para os arenavírus e hanta-
dores ativos temporários intermitentes (ou esporádi- vírus; morcegos de várias espécies, para diversos
cos) excretam o vírus apenas esporadicamente, vírus (Nipah, Hendra, vírus da raiva).
por poucas horas ou dias, a intervalos variáveis. Os morcegos hematófagos e carnívoros sil-
São característicos das infecções latentes por al- vestres (raposas, cães silvestres, raccons) são re-
faherpesvírus, cujas reativações periódicas resul- servatórios do vírus da raiva e podem transmiti-
tam em excreção viral transitória, geralmente de- lo a várias espécies silvestres e domésticas (Figura
sacompanhada de manifestações clínicas. 10.4). Os pássaros e outras aves silvestres são
Animais portadores podem permanecer por reservatórios do vírus do Nilo Ocidental (WNV)
longo tempo na população excretando o vírus e e dos vírus das encefalites do leste (EEEV) e oes-
contribuindo para a perpetuação do agente no te (WEEV) e podem transmiti-los para eqüinos,
rebanho. Várias infecções víricas somente conse- aves domésticas (faisões, emas) e, ocasionalmen-
guem se manter na natureza graças à existência te, para humanos (Figura 10.5). Suídeos silvestres
de portadores, nos quais o agente encontra con- (warthogs) são reservatórios do vírus da peste suí-
dições de se multiplicar continuamente. O reco- na africana (ASFV) e podem transmiti-lo para suí-
nhecimento e isolamento e/ou eliminação desses nos domésticos. Nesses exemplos, independente-
portadores constituem-se nos pontos-chave do mente se as espécies mencionadas constituem-se
combate a essas infecções. nos hospedeiros naturais do agente – e em alguns
Outro conceito importante em epidemiolo- casos parecem sê-lo –, na prática, desempenham
gia é o de reservatório. Denomina-se reservatório a o papel de reservatórios, pois abrigam e transmi-
espécie animal que abriga e mantém agentes in- tem o agente para outras espécies de interesse. O
fecciosos em um ecossistema, podendo transmi- termo reservatório, portanto, teria uma definição
ti-los para outras espécies. Embora utilizada, na mais funcional do que ecológica.
Epidemiologia das infecções víricas 267

Hospedeiros terminais Hospedeiros terminais

Figura 10.4. Ciclo natural da raiva de herbívoros.

Ciclo Hospedeiros
natural acidentais

Figura 10.5. Ciclo natural dos vírus da encefalites eqüina do leste (EEEV), oeste (WEEV) e vírus do Nilo Ocidental
(WNV) e infecção de hospedeiros acidentais.
268 Capítulo 10

Espécies domésticas que mantenham um e manutenção na natureza. Por isso, obviamente,


agente e o transmitam a outras espécies também não podem se constituir em seus hospedeiros na-
podem ser consideradas reservatórios. A raiva turais. As razões pelas quais essas espécies não
pode ser mantida na população de cães urbanos participam da cadeia de transmissão podem ser
e, ocasionalmente, ser transmitida para pessoas. várias, incluindo o desenvolvimento de enfermi-
Nesse caso, os cães seriam os reservatórios para a dade rápida e fatal (não haveria tempo para uma
população humana. Espécies domésticas também excreção e transmissão significativa), a produção
podem servir de reservatórios de agentes virais e de níveis baixos de viremia (insuficientes para as-
transmiti-los a animais silvestres. Surtos com alta segurar a transmissão) e incapacidade de trans-
mortalidade de mamíferos marinhos (focas, leões mitir o agente (pela razão anterior ou pela natu-
marinhos e cetáceos) associados a um morbiliví- reza da transmissão). O termo terminal se refere
rus (provavelmente o vírus da cinomose – CDV) ao final da cadeia de transmissão e não necessa-
foram relatados nos mares Mediterrâneo e Cás- riamente ao curso da enfermidade. Os bovinos,
pio. O CDV, provavelmente transmitido por cães gatos e cães podem ser ocasionalmente infecta-
domésticos, também foi associado com doença e dos pelo vírus da doença de Aujeszky (PRV), mas
mortalidade de leões e hienas em uma reserva na não possuem papel importante na transmissão,
Tanzânia e com doença em mãos-pelada (raco- devido ao curso rápido e fatal da doença. Situa-
ons) e gatos nos Estados Unidos (Figura 10.6). Na ção semelhante ocorre com a raiva nessas espé-
África do Sul, a raiva é mantida principalmente cies e também em humanos. Mesmo na hipótese
em cães domésticos urbanos ou rurais e, ocasio- de a raiva bovina não possuir curso rápido e fa-
nalmente, é transmitida a carnívoros selvagens tal, dificilmente seria transmitida por essas espé-
(chacais), nos quais pode se manter por algum cies, devido à forma de transmissão (bovinos não
tempo. possuem o hábito de morder outros animais). Os
O termo hospedeiro terminal (dead end host) é humanos, eqüinos e outras espécies domésticas
utilizado para designar indivíduos de uma espé- são freqüentemente infectados pelo WNV, EEEV
cie que são infectados esporadicamente (ou aci- e WEEV, mas não possuem papel importante na
dentalmente) por um agente, mas não possuem transmissão. Nesses casos, os níveis e duração
participação relevante no seu ciclo de transmissão da viremia são geralmente incompatíveis com a

Hospedeiros Ciclo Hospedeiros


acidentais natural acidentais

Figura 10.6. Ciclo natural do vírus da cinomose e transmissão acidental para espécies de vida livre.
Epidemiologia das infecções víricas 269

transmissão por mosquitos. Em alguns desses ca- agente-hospedeiro, ou seja, o desenvolvimento


sos, a infecção também é rápida e fatal, o que di- de doença severa nos hospedeiros desfavoreceria
ficulta a transmissão do agente a partir do animal a manutenção desses agentes na natureza.
infectado. Casos de transmissão do WNV entre
pessoas, por transfusão sangüínea, via placen- 2.2 Vias de excreção
ta e pela amamentação já foram relatados, mas
representam exceções e possuem importância Para que ocorra a transmissão entre indi-
epidemiológica restrita. Pessoas infectadas pelos víduos, o vírus deve ser inicialmente excretado
hantavírus também não participam ativamente do hospedeiro infectado pela via adequada em
na transmissão do agente. Acredita-se que as es- quantidade suficiente. As vias pela qual o agente
pécies em que um determinado vírus cause do- é excretado do organismo animal são denomina-
ença severa e mortalidade considerável não se das vias de excreção (vias de eliminação) ou portas
constituam em seus hospedeiros naturais, e sim de saída. A via de excreção de um vírus é determi-
acidentais. A tendência é que os vírus não causem nada primariamente pelo seu tropismo, ou seja,
doença severa em seus hospedeiros naturais de- pelo tecido ou órgão-alvo onde ocorre a sua re-
vido a um processo evolutivo que, eventualmen- plicação. Por exemplo, os vírus que replicam na
te, tenha resultado em um equilíbrio na interação mucosa das vias respiratórias são excretados pe-

Tabela 10.1. Vias de excreção dos principais vírus de animais

Vias de excreção Tipos de vírus/infecção Exemplos

vírus da influenza, parainfluenza, rinovírus,


vírus respiratórios herpesvírus bovino tipo 1 (BoHV-1)
Secreções oronasais e
expectorações vírus que replicam na CDV, vírus da febre aftosa (FMDV),
cavidade oral e anexos vírus da raiva

enterovírus, coronavírus, parvovírus


vírus entéricos canino (CPV)
Fezes

vírus hepáticos vírus das hepatites

vírus que replicam nos


epitélios dos túbulos renais arenavírus, hantavírus

Urina vírus que replicam no


epitélio vesical CDV

outros vírus
sistêmicos

vírus que replicam nas


gônadas PRRSV

Sêmen e/ou secreções vírus que replicam no PRRSV, BoHV-1, vírus do exantema
genitais trato genital externo coital eqüino (EHV-3)

vírus vírus da leucose bovina (BLV), outros


sistêmicos retrovírus

vírus que BVDV, BoHV-1, parvovírus suíno


Fetos/membranas e fluidos infectam o feto (PPV), PRRSV
fetais
vírus sistêmicos

vírus sistêmicos ou vírus que


produzem viremia permanente retrovírus, BVDV, flavivírus, vírus da
Sangue e linfa língua azul (BTV), etc.
ou transitória

vírus que replicam em camadas


Pele, descamações e poxvírus, vírus do ectima contagioso,
superficiais da pele ou na
exsudações cutâneas papilomavírus, FMDV, BoHV-2
transição pele-mucosa
270 Capítulo 10

las secreções oro-nasais e expectorações; os vírus em outro hospedeiro susceptível. No entanto, ao


que replicam no fígado e no trato intestinal são contrário de outros microorganismos que conse-
excretados pelas fezes. guem sobreviver no meio ambiente por longos
As principais vias de excreção de agentes períodos, a viabilidade da maioria dos vírus fora
virais estão ilustradas na Figura 10.2, e os agen- do organismo do hospedeiro é muito limitada.
tes que as utilizam estão apresentados na Tabela Por isso, certamente, grande parte das partículas
10.1. A grande maioria dos vírus pode ser excre- virais produzidas pelas infecções virais é inati-
tada por mais de uma via, embora geralmente vada no meio ambiente antes de ter conseguido
uma delas apresente maior importância em de- alcancar um novo hospedeiro.
terminadas situações. As principais formas de transmissão dos
A via de excreção também determina a for- agentes virais estão apresentadas na Figura 10.7
ma de transmissão. Os vírus que são excretados e Tabela 10.2. Em termos gerais, a transmissão
no sêmen serão transmitidos pela cópula ou pela dos vírus entre indivíduos pode ser horizontal ou
inseminação artificial; os vírus que são excreta- vertical. Transmissão horizontal se refere à trans-
dos nas fezes provavelmente serão transmitidos missão entre indivíduos de uma mesma geração,
pela via fecal-oral, pela contaminação de água e pela coabitação de um mesmo habitat. Transmissão
alimentos. Os vírus presentes no sangue e/ou na vertical refere-se à transmissão do agente de um
linfa provavelmente serão transmitidos por veto- hospedeiro para os seus descendentes. A trans-
res ou por procedimentos iatrogênicos (agulhas e missão horizontal pode ser direta ou indireta. A
material cirúrgico contaminado). transmissão horizontal direta pode ocorrer por
contato direto ou indireto. A transmissão indireta
2.3 Mecanismos de transmissão pode ocorrer com a participação de veículos, por
vetores ou pelo ar.
A transferência ou transmissão do agente A transmissão direta por contato direto ocorre
entre indivíduos representa o ponto-chave na pelo contato físico entre o hospedeiro infectado e
cadeia do processo infeccioso. O agente excreta- o novo hospedeiro. O contato entre mucosas, en-
do deve ser capaz de resistir no meio ambiente tre pele e mucosa ou entre pele e pele permite ao
o tempo necessário para encontrar e penetrar agente passar diretamente ao animal susceptível

Contato direto
Direta
Contato indireto

Veículos
Horizontal Indireta Biológicos
Vetores
Mecânicos

Aérea
Transmissão

Transovariana

Transplacentária
Vertical
Perinatal

Colostro/leite

Figura 10.7. Formas de transmissão dos vírus de animais.


Epidemiologia das infecções víricas 271

e pode ocorrer por mordedura (transmissão do BVDV), focinho-pele (vírus da mamilite herpé-
vírus da raiva, arenavírus entre roedores), lam- tica [BoHV-2]), contato pele-pele (poxvírus, pa-
bedura (vírus entéricos), contato focinho-focinho pilomavírus) e pela cópula (BoHV-1, vírus do
(viroses respiratórias, FMDV, CDV), focinho- exantema coital dos eqüinos [EHV-3], PRRSV).
genitália (herpesvírus bovino tipo 1 [BoHV-1], Nessas formas de transmissão, o agente é trans-

Tabela 10.2. Principais mecanismos de transmissão dos vírus de animais

Família Mecanismo de transmissão

Contato direto e indireto (fecal-oral, respiratória),


Parvoviridae transplacentária (vírus da panleucopenia felina, parvovírus
suíno).

Circoviridae Contato direto e indireto (fecal-oral, respiratória).

Papillomaviridae Contato direto e indireto (cutânea, lesões de pele).

Adenoviridae Contato direto e indireto (fecal-oral, respiratória).

Contato direto ou indireto (cutânea [orf, cowpox], respiratória [sheep


Poxviridae pox]), vetores artrópodes (vírus do mixoma).

Contato direto ou indireto (sexual [exantema coital eqüino [EHV-3],


Herpesviridae balanopostite e vulvovaginite pelo BoHV-1], respiratória (BoHV-1),
transplacentária (PRV, BoHV-1).

Contato direto ou indireto (respiratória), indireto por vetores


Asfarviridae (carrapatos), oral (alimento contaminado).

Contato direto ou indireto (fecal-oral [enterovírus, FMDV], respiratória


Picornaviridae [rinovirus, FMDV]), transmissão indireta por veículos (alimentos
contaminados, fômites [FMDV]).

Caliciviridae Contato direto ou indireto (fecal-oral, respiratória).

Contato direto ou indireto (respiratória, sexual), indireto (fômites,


Arteriviridae sêmen contaminado [PRRSV, EAV]).

Togaviridae Indireta por vetores.

Indireta por vetores (WNV), contato direto e indireto (fecal-


Flaviviridae oral, respiratória [BVDV, vírus da peste suína clássica
[CSFV]), transplacentária (BVDV).

Coronaviridae Contato direto ou indireto (fecal-oral, respiratória)

Contato direto ou indireto (urina contaminada,


Arenaviridae mordeduras, respiratória)

Bunyaviridae Indireta por vetores (vírus da febre do Vale Rift)

Orthomyxoviridae Contato direto ou indireto (respiratória)

Contato direto (mordedura [vírus da raiva]), direto ou


Rhabdoviridae indireto (vírus da estomatite vesicular [VSV]), indireta
por vetores (VSV).

Paramyxoviridae Contato direto ou indireto (respiratória).

Contato direto ou indireto (fecal-oral [rotavírus, vírus da


Reoviridae gastrenterite transmissível dos suínos [TGEV]), indireta por
vetores (BTV).

Contato direto ou indireto, vertical (in ovo [leucose


Retroviridae aviária] ou transplacentária [BLV]), ingestão, indireta por
vetores (EIAV).
272 Capítulo 10

ferido imediatamente a outro hospedeiro, assim, procedimentos, pode transmitir agentes como o
a sua capacidade de resistência no meio ambiente VLB, vírus da leucemia felina (FeLV) e vírus da
é pouco relevante para o sucesso da transmissão. anemia infecciosa eqüina (EIAV), entre outros.
Na transmissão direta por contato indireto A possibilidade de transmissão por veículos
não ocorre contato físico entre o corpo do ani- é maior para os vírus que possuem grande capa-
mal infectado e o novo hospedeiro. Nesses casos, cidade de resistência no meio ambiente. O FMDV
ocorre o contato imediato entre o material con- é um exemplo de agente que possui grande capa-
taminado recém-excretado (secreções, excreções, cidade de disseminação por meio de veículos (sa-
líquido ou membranas fetais) e uma superfície patos, roupas, utensílios, alimentos etc.). A trans-
mucosa (focinho, mucosa nasal, oral e genitália) missão por aerossóis a curtas distâncias pode
ou pele do novo hospedeiro. A diferença entre ocorrer para os vírus que replicam na cavidade
essa forma de transmissão e a transmissão indireta oronasal e anexos (vírus da influenza, vírus da
por veículos, descrita a seguir, é muito tênue e de bronquite infecciosa das aves [IBV], vírus da la-
difícil percepção em alguns casos. ringotraqueíte infecciosa [ILTV], BoHV-1, CDV,
A transmissão indireta envolve a transmissão vírus da Doença de Newcastle [NDV]).
do agente por meio de objetos inanimados (de- O termo iatrogênico se refere à transmissão
nominados veículos ou fômites) ou por vetores de agentes por procedimentos médicos e/ou re-
invertebrados (insetos). Veículos ou fômites, fre- lacionados com a saúde animal. Os retrovírus
qüentemente envolvidos na transmissão de vírus animais (BLV, EIAV, vírus da imunodeficiência
animais, incluem agulhas hipodérmicas, mate- felina [FIV]), além de outros vírus que produzem
rial cirúrgico, luvas de palpação retal, espéculos, viremia (BVDV, BTV) podem ser transmitidos
formigas, focinheira, tatuadores, aplicadores de por agulhas, material cirúrgico ou outros equipa-
brinco, roupas e utensílios, instalações, equipa- mentos contaminados (p. ex.: tatuadores, aplica-
mentos (ordenhadeiras), cochos, solo e outros. A dores de brinco). Vários vírus sistêmicos podem
água, leite, sêmen, subprodutos cárneos e outros ser transmitidos por transfusão de sangue ou de-
alimentos contaminados com o agente também rivados e também por transplante de órgãos.
podem servir de veículos para a transmissão de Vários vírus animais são transmitidos pela
picada de artrópodes (insetos), denominados
agentes virais. No caso de transmissão por veícu-
genericamente vetores. Dependendo de sua par-
los, o sucesso da transmissão depende da capaci-
ticipação na transmissão, os vetores artrópodes
dade de o agente preservar a sua viabilidade no
podem ser classificados em vetores biológicos e
meio ambiente o tempo suficiente para alcancar o
mecânicos. Na maioria dos casos, os insetos pos-
novo hospedeiro.
suem um papel mais amplo do que simples-
A transmissão de vírus por luvas de palpa-
mente transferir o agente entre hospedeiros, ou
ção, espéculos contaminados ou equipamento
seja, são susceptíveis à replicação e amplificação
de inseminação artificial também pode ocorrer
do vírus em seus tecidos, eventos que ocorrem
(vírus da leucose bovina [BLV], BVDV, PRRSV).
após a sua contaminação e que são necessários
Viroses respiratórias (BoHV-1, BVDV, vírus res-
para que ocorra a subseqüente transmissão a ou-
piratório sincicial bovino [BRSV], vírus da pa- tro hospedeiro. Por isso são chamados de vetores
rainfluenza tipo 3 [bPI3v]) ou cutâneas (FMDV, biológicos. Exemplos de vírus transmitidos prima-
poxvírus, BoHV-2) podem ser transmitidas pelo riamente por mosquitos são os vírus das encefa-
contato de mucosas com cochos contaminados; lites eqüinas (EEEV, WEEV e vírus da encefalite
viroses entéricas e hepáticas podem ser transmi- venezuelana [VEEV]), o WNV, o vírus da dengue
tidas pela via oro-fecal através da contaminação e febre amarela (YFV), além de vários buniaví-
de cochos, água e alimentos. O sêmen utilizado rus. Os culicóides transmitem o BTV, carrapatos
em inseminação artificial pode servir de veícu- transmitem o ASFV, entre outros. Os vírus trans-
lo para vários vírus (BoHV-1, PRRSV, vírus da mitidos primariamente por insetos são chamados
língua azul [BTV], BVDV, PRV). O sangue con- genericamente de arbovírus (arthropod-borne viru-
taminado, utilizado em transfusões e/ou outros ses).
Epidemiologia das infecções víricas 273

Além dos arbovírus, outros agentes virais rus aviários e murinos são capazes de integrar o
podem ocasionalmente ser transmitidos por essa seu genoma no cromossomos dos gametas (vírus
via. Nesses casos, a transmissão por insetos é ape- da leucose aviária [ALV], retrovírus murinos).
nas uma das formas de transmissão – geralmente Esse tipo de transmissão é denominada transova-
não a principal – e, por isso, possui importância
riana. Essa forma de transmissão também ocorre
epidemiológica limitada (p. ex.: BLV).
com alguns vírus nos vetores artrópodes (p. ex.:
Alguns vírus podem ser transmitidos por
a fêmea do mosquito Aedes aegypty transmite o
insetos, de forma mecânica, pela simples con-
vírus da dengue aos ovos e larvas; esse tipo de
taminação de partes de seu corpo (probóscide,
transmissão também ocorre com o ASFV em car-
asas) (p. ex.: vírus da mixomatose, poxvírus,
rapatos). Outros vírus são transmitidos através
BLV, BoHV-2). Por outro lado, os tabanídeos e as
da placenta (transmissão transplacentária), resul-
moscas do estábulo transmitem mecanicamente
tando em infecção fetal com conseqüências di-
o EIAV, e esta é a principal forma de transmis-
versas (BVDV, BLV, PRRSV, parvovírus suíno
são do vírus. Transmissão mecânica por alguns
[PPV], entre outros). A transmissão que ocorre
insetos também pode ocorrer no ciclo natural
nas proximidades e/ou durante o parto é deno-
do VEEV. Nesta infecção, no entanto, os insetos
minada de perinatal (herpesvírus canino [CHV],
desempenham preponderantemente o papel de
PRV, FIV). A transmissão pelo colostro e/ou leite
vetores biológicos. No caso de transmissão me-
contaminado (vírus da artrite-encefalite caprina
cânica, os vetores não são susceptíveis à replica-
[CAEV], maedi-visna, VLB) também é considera-
ção do agente, desempenhando apenas um papel
da uma forma de transmissão vertical se envol-
mecânico na transferência do agente entre hospe-
ver mãe e filho.
deiros. Por isso são denominados vetores mecâni-
A maioria dos vírus pode ser transmitida
cos. Pela analogia de função, os vetores mecâni-
por mais de uma forma, embora geralmente uma
cos são ocasionalmente referidos como “agulhas
delas desempenhe um papel epidemiológico
voadoras”.
mais importante em cada situação.
A transmissão aérea pelo transporte de go-
tículas e/ou partículas contaminadas a longas
distâncias tem sido demonstrada em algumas 2.4 Vias de penetração
viroses. Gotículas em aerossóis (ou partículas
dessecadas) podem ser resultado de espirro e/ou Após ser excretado e transportado (se for o
tosse em viroses respiratórias (influenza) ou de caso), o vírus deve penetrar no novo hospedeiro
aerossolização/dessecação de urina (hantavírus) pela via adequada para que possa estabelecer a
ou fezes (enterovírus). Essa forma de transmissão infecção. Os sítios por onde os vírus penetram no
somente é possível para os agentes que apresen- hospedeiro são denominados vias de penetração
tam grande resistência no meio ambiente. Já foi (ou portas de entrada) (Figura 10.3). A via de pe-
demonstrado que o FMDV pode se disseminar netração de um agente é determinada primaria-
por vários quilômetros, dependendo das con- mente pelo mecanismo de transmissão. Assim, os
dicões de umidade do ar e ventos. No entanto, vírus transmitidos por água e alimentos contami-
sabe-se que a maioria dos vírus, principalmente nados provavelmente irão penetrar pela via oral;
os respiratórios, só se dissemina pelo ar a peque- os vírus transmitidos por vetores artrópodes irão
nas distâncias. A infecção por hantavírus em hu- penetrar através de orifícios (picadas) na pele; os
manos ocorre freqüentemente pela inalação e/ou vírus transmitidos pelo sêmen irão penetrar na
deposição conjuntival de partículas de poeira mucosa genital feminina.
oriundas de solo contaminado pela urina de roe- A maioria dos vírus pode utilizar mais de
dores portadores. Os poxvírus, por causa de sua uma via de penetração, dependendo da via de
grande resistência ambiental, também podem ser excreção e do mecanismo de transmissão; poucos
transmitidos por via aérea. vírus utilizam uma única via de penetração. As
A transmissão vertical de um vírus pode ocor- principais vias de penetração de agentes virais
rer de várias formas (Figura 10.7). Certos retroví- nos seus hospedeiros são:
274 Capítulo 10

– mucosa respiratória: vírus respiratórios infectados experimentalmente por uma varieda-


(vírus da influenza, rinovírus, BoHV-1, NDV); de de vírus humanos e animais, embora a infec-
– mucosa conjuntival: adenovírus, hantaví- ção natural por esses agentes nessas espécies não
rus, alguns herpesvírus; tenha sido descrita. Essa característica tem sido
– mucosa orofaríngea: CDV, FMDV, vírus explorada para estudos de patogenia e outros
sistêmicos; aspectos da biologia desses agentes. É provável
– mucosa intestinal: enterovírus, coronaví- que a resistência à infecção natural (ou a ausência
rus, rotavírus; de casos de infecção natural) de algumas dessas
– pele: BoHV-2, poxvírus, papilomavírus, espécies deva-se à falta de oportunidade de infec-
arbovírus (pela picada de insetos); ção mais do que à resistência propriamente dita,
– mucosa genital: BoHV-1, PRRSV, EHV-3, ou seja, é possível que algumas dessas espécies
além de agentes virais veiculados pelo sêmen. poderiam ser infectadas também in vivo, desde
que providas as condições necessárias para tal (p.
2.5 O novo hospedeiro ex.: contato apropriado com animais que estejam
excretando o vírus e penetração do agente pela
A simples penetração do agente no orga- via adequada).
nismo de um animal não assegura o desenvolvi-
mento da infecção. Para que isso ocorra, o hos- 2.5.1 Patogenia e resposta imunológica
pedeiro deve ser susceptível ao agente. O termo
susceptibilidade refere-se ao conjunto de condições Após a penetração no hospedeiro suscep-
apresentadas pelo hospedeiro para permitir a tível, o vírus deve replicar próximo ao local de
multiplicação do vírus. O termo resistência refe- entrada (geralmente nas células epiteliais e/ou
re-se ao conjunto de barreiras que o organismo no tecido linforreticular adjacente) para produzir
oferece para impedir ou limitar a infecção. A sus- progênie suficiente para ultrapassar as defesas
ceptibilidade e resistência são características in- do hospedeiro. Dependendo das interações entre
dividuais e podem variar com vários fatores, tais o agente e o hospedeiro, a infecção pode ou não
como: espécie, raca, sexo, idade, exposição prévia resultar em manifestações clínicas. Os mecanis-
ao agente, estado nutricional e fisiológico, entre mos pelos quais os agentes infecciosos produzem
outros. O termo refratariedade, por outro lado, re- doença em seus hospedeiros são considerados
fere-se a um grau absoluto de resistência, que é sob a denominação de patogenia ou patogênese
característico da espécie animal. Por exemplo, a (pato = doença, genesis = origem, formação). O
espécie canina é naturalmente refratária ao vírus conjunto de respostas do hospedeiro à infecção
da imunodeficiência humana (HIV); assim como vírica (resistência natural e adquirida) é denomi-
os eqüinos são refratários ao FMDV. nado genericamente de resposta imunológica. Os
Os fatores que determinam a susceptibili- mecanismos gerais da patogenia e da resposta
dade (e resistência) de uma espécie animal a um imunológica às infecções víricas foram tratados
determinado vírus são múltiplos e, em muitos de forma geral nos Capítulos 8 e 9, respectiva-
casos, não são completamente conhecidos. Nesse mente, e, especificamente, nos capítulos de cada
sentido, deve-se fazer uma distinção entre suscep- família. Abaixo são relacionados alguns termos
tibilidade natural e susceptibilidade experimental. Al- relacionados com a patogenia.
gumas espécies não são naturalmente infectadas O período de incubação de uma infecção é o in-
por um determinado agente, mas podem ser in- tervalo de tempo entre a penetração do agente e o
fectadas experimentalmente. Como exemplo, ci- início dos sinais clínicos. A sua duração varia de
tam-se: a) os coelhos, que não são infectados natu- acordo com fatores do vírus (espécie, cepa, dose,
ralmente pelo BoHV-1 e BoHV-5, mas podem ser virulência etc.) e do hospedeiro (espécie animal,
infectados experimentalmente, desenvolvendo a condição nutricional e imunológica, via de inocu-
enfermidade; b) animais de laboratório (cobaias, lação etc.) e pode variar entre poucos dias (febre
coelhos, camundongos e ratos), que podem ser aftosa, influenza), meses, até anos (leucose bovi-
Epidemiologia das infecções víricas 275

na). Quando a infecção for subclínica, o período após. Em infecções persistentes por retrovírus, o
de incubação pode ser infinito. agente pode ser excretado por um longo período
O periodo pré-patente é o intervalo de tempo (até anos) antes do aparecimento de sinais clíni-
entre a penetração do agente e o início da excreção cos. Em outras infecções (PRRSV, ILTV, vírus da
viral pelo hospedeiro. Depende principalmente arterite eqüina [EVAV], CAV, alguns coronaví-
da duração do ciclo replicativo do vírus e pode rus), os hospedeiros podem continuar excretan-
ser de horas, poucos dias (vírus respiratórios, do o vírus por longo períodos após o término das
FMDV) até semanas ou meses (alguns gamaher- manifestações clínicas (Figura 10.8).
pesvírus). O período patente, também chamado
de período de transmissibilidade ou comunicabili- 3 Mecanismos de manutenção dos
dade é a fase da infecção em que o agente é ex- vírus na natureza
cretado e, portanto, pode ser transmitido. Em in-
fecções agudas clínicas, a duração da excreção do A sobrevivência dos vírus na natureza de-
vírus coincide razoavelmente com o período clí- pende da sua capacidade de cumprir seqüencial-
nico, podendo iniciar horas ou poucos dias antes mente as etapas da cadeia do processo infeccioso.
e estender-se por algumas horas ou alguns dias A incapacidade da maioria dos vírus de resistir

Infecção aguda

Infecção latente

Infecção persistente

Infecção persistente
temporária

Replicação viral
Manifestações clínicas

Fonte: adaptado de Flint et al. (2000).

Figura 10.8. Padrões de ocorrência das infecções e período de transmissibilidade em diferentes tipos de infecções
virais.
276 Capítulo 10

por longo tempo no meio ambiente os obriga a – ou ficam disponíveis no organismo para serem
utilizar diferentes estratégias para prolongar e transmitidos – continuamente a partir do final do
perpetuar a sua existência. Infecções persistentes período pré-patente. Exemplos são as infecções
ou latentes, longos períodos de replicação e ex- pelos retrovírus animais, pelo BTV, papiloma-
creção, longos períodos de incubação, infecção de vírus (persistem nas lesões) e calicivírus felino
várias espécies animais e/ou de insetos, e trans- (FeCV). Bezerros infectados intra-uterinamente
missão aos descendentes (transmissão vertical) pelo BVDV podem nascer portadores e excretar
estão entre as estratégias utilizadas pelos vírus o vírus por toda a vida. Outros vírus podem ser
para se perpetuar na natureza. Não obstante, as excretados por longos períodos após a infecção
partículas víricas de diversos vírus são relativa- aguda (PRRSV, EVAV, CAV, alguns coronaví-
mente estáveis, podendo persistir viáveis por pe- rus). Por outro lado, alguns tipos de persistência
ríodos consideráveis no meio ambiente. Muitos apresentam um papel pouco relevante do ponto
vírus utilizam uma combinação de mais de uma de vista epidemiológico, pois o vírus não é ex-
dessas estratégias para conseguir se perpetuar na cretado. Por exemplo, a infecção persistente pelo
população. Outros vírus não utilizam nenhuma CDV no SNC de cães adultos geralmente não é
dessas estratégias e só conseguem se manter na acompanhada de excreção viral. Da mesma for-
natureza por meio de infecções agudas sucessi- ma, alguns bovinos previamente imunizados
vas. contra o FMDV e posteriormente infectados,
assim como bubalinos infectados pelo FMDV,
3.1 Infecções persistentes podem ficar portadores do vírus após a infecção
primária, embora a sua capacidade de transmi-
As infecções persistentes, acompanhadas tir o agente para outros hospedeiros ainda seja
ou não de manifestações clínicas, constituem-se questionável.
em importantes meios de manutenção de vários
agentes virais na natureza. Durante o período de 3.2 Infecções latentes
infecção – que pode durar toda a vida do animal
– o vírus fica disponível no organismo do ani- Animais infectados pelos alfaherpesvírus
mal e pode ser excretado de forma contínua ou (BoHV-1, BoHV-5, PRV, EHV-1), entre outros,
intermitente, podendo infectar outros animais e, excretam o agente por alguns dias durante a
assim, alimentar a cadeia do processo infeccioso infecção aguda, mas a replicação viral eventu-
(Figuras 10.8 e 10.9). Alguns vírus são excretados almente cessa devido à resposta imunológica

Excreção viral

Infecção aguda Infecção persistente

Dias Meses, anos

Figura 10.9. Infecções persistentes de vírus de animais: vírus da anemia infecciosa eqüina (EIAV).
Epidemiologia das infecções víricas 277

Reativação da infecção

Situações de
estresse etc.

Excreção
viral

Infecção aguda Infecção latente

Estabelecimento da latência

Figura 10.10. Infecções latentes de vírus animais: vírus da doença de Aujeszky (PRV).

do hospedeiro. Esses animais, no entanto, ficam que representa uma vantagem em sua estratégia
portadores do agente na forma latente para o res- de sobrevivência. Alguns exemplos clássicos são
to da vida. A infecção latente se caracteriza pela a maioria dos alfavírus (Togaviridae), alguns rab-
presença do genoma viral inativo, principalmen- dovírus (vírus da estomatite vesicular, VSV) e
te em neurônios de gânglios nervosos, sem a ex- flavivírus, que podem infectar uma variedade de
pressão de proteínas e/ou produção de partículas espécies de aves e mamíferos (Figura 10.11). O ví-
virais. Esporadicamente, a infecção latente pode rus da influenza A, por meio de mutações/adap-
ser reativada por situações de estresse, resultan- tações, também pode infectar várias espécies de
do em replicação e excreção viral (Figura10.10). O aves domésticas e silvestres, além de mamíferos
vírus excretado durante os eventos de reativação (Figura 10.12); o VSV pode infectar várias espé-
pode, então, ser transmitido a outros animais. Os cies de mamíferos. O WNV é capaz de infectar
episódios de reativação e excreção podem se re- naturalmente mais de 180 espécies de vertebra-
petir periódica e indefinidamente durante a vida dos, incluindo pássaros e outras aves silvestres e
do animal, proporcionando inúmeras ocasiões domésticas (mais de 150 espécies) e mamíferos.
para a transmissão do agente. Assim, as infecções A infecção alternada dessas espécies pode favo-
latentes e suas reativações periódicas se consti- recer a permanência do agente no ecossistema.
tuem em meios eficientes de perpetuação e disse- Além dos vírus que usualmente infectam mais de
minação desses vírus na natureza e representam um hospedeiro como parte de seu ciclo natural,
o principal obstáculo para o estabelecimento de outros podem, ocasional ou acidentalmente, in-
medidas de combate contra essas infecções. Por fectar outras espécies. Nesses casos, o hospedeiro
isso, a capacidade de estabelecer infecções laten- acidental não participa da cadeia de transmissão
tes possui um papel central e fundamental na epi- do agente. A transmissão de vírus entre os reser-
demiologia das infecções pelos alfaherpesvírus. vatórios silvestres e destes para a espécie hospe-
deira principal pode ocorrer por vários mecanis-
mos e, freqüentemente, envolve a participação de
3.3 Infecção de várias espécies animais vetores artrópodes. Em geral, considera-se que
quanto maior o espectro de hospedeiros suscep-
Ao contrário de alguns vírus que possuem tíveis, mais favorecida será a sobrevivência do
um espectro de hospedeiros restrito (infectam agente na natureza. No entanto, isso não impede
uma única espécie animal), vários outros agen- que vírus que infectem naturalmente apenas uma
tes virais podem infectar mais de uma espécie, o espécie – e os exemplos são numerosos – consi-
278 Capítulo 10

Hospedeiros Ciclo natural Hospedeiros


acidentais acidentais

Figura 10.11. Ciclo natural dos alfavírus e WNV em animais silvestres e infecção acidental de humanos e espécies
domésticas.

Fonte: adaptado de Webster et al. (2006).

Figura 10.12. Evolução do vírus da influenza A H5N1 por meio de infecções em várias espécies.
Epidemiologia das infecções víricas 279

gam se manter indefinidamente nas respectivas nos hospedeiros invertebrados seja questionável,
populações. considera-se que esta seja uma das formas pos-
síveis de sobrevivência desses microorganismos
na natureza. Para o VEEV e WNV, já foi demons-
3.4 Infecção de vetores trada a sobrevivência do vírus em larvas de mos-
quitos ao longo de períodos prolongados (meses)
A infecção de vetores artrópodes (mos- de clima frio.
quitos, carrapatos) é uma importante forma de
transmissão de alguns vírus, denominados ge- 3.5 Sobrevivência no ambiente
nericamente arbovírus. Após a ingestão de san-
gue do hospedeiro infectado, o vírus replica no Os vírus necessitam células vivas para se
intestino e/ou nas glândulas salivares do inseto, multiplicar e a maioria deles não é capaz de resis-
podendo ser transmitido após um período de tir por muito tempo no meio ambiente. A sua re-
incubação de alguns dias (chamado de período sistência no ambiente depende da estabilidade fí-
extrínseco de incubação). A transmissão é consu- sica da partícula viral e das condicões ambientais
mada pela picada e inoculação de saliva conta- (temperatura, umidade, radiação solar). Os vírus
minada em outro hospedeiro. Embora os insetos sem envelope geralmente são capazes de resistir
hematófagos tenham preferência por determi- por mais tempo fora do hospedeiro (parvovírus,
nada espécie para se alimentar, podem ocasio- FMDV, enterovírus, adenovírus), embora alguns
nalmente transmitir o agente a animais de outra vírus envelopados (poxvírus, mixomavírus) tam-
espécie. De fato, a transmissão por vetores hema- bém possam resistir por períodos consideráveis.
tófagos oferece uma oportunidade ímpar para a Já foi demonstrado que o parvovírus canino
transmissão interespécie de vários vírus. Mos- (CPV) pode permanecer viável no ambiente, des-
quitos podem transmitir o WNV e os alfavírus de que protegido por material orgânico, por perí-
das encefalites eqüinas entre aves, de aves para odos de até seis meses. O parvovírus suíno (PPV)
mamíferos (eqüinos, mamíferos silvestres) e de também pode resistir durante dias ou semanas
aves para humanos. Os vírus da WNV e VEEV já em fezes e/ou em membranas e restos fetais. O
foram identificados em mais de uma dezena de parapoxvírus, agente do ectima contagioso de
espécies de mosquitos, embora se acredite que, ovinos, pode permanecer viável durante meses
em cada ecossistema, apenas uma ou poucas es- nas crostas que se desprendem das lesões labiais
pécies desses insetos tenham papel preponde- dos animais afetados. O circovírus suíno (PCV)
rante na transmissão desses agentes. O vírus da também pode permanecer viável por dias ou até
febre amarela pode ser transmitido pela picada semanas no ambiente. A contaminação de água,
de mosquitos entre primatas, entre primatas e o alimentos, solo, pastagens e mesmo de insetos
homem e entre pessoas. O ASFV é transmitido pode servir de meio para transmissão desses
por carrapatos entre suídeos silvestres e entre es- agentes. Os vírus com envelope – especialmente
tes e suínos domésticos. aqueles que causam infecções respiratórias – são
Em geral, acredita-se que a manutenção dos geralmente mais instáveis e, por isso, são mais
arbovírus na natureza depende da transmissão rapidamente inativados por fatores fisicos e/ou
periódica a um hospedeiro vertebrado, ou seja, a químicos ambientais. Os poxvírus estão entre
infecção seria mantida pela replicação seqüencial os vírus envelopados com maior resistência am-
e alternada em hospedeiros vertebrados e inver- biental. Embora possam resistir no ambiente por
tebrados (os vetores). A manutenção dos arboví- períodos consideráveis e, assim, ser transmitidos
rus em épocas de pouca ou nenhuma atividade de forma indireta, esses vírus são freqüentemen-
dos vetores, devido a temperaturas baixas, pode te transmitidos por contato direto ou indireto (Fi-
ser explicada em parte pela transmissão transo- gura 10.13), ou seja, a transmissão indireta após
variana do agente e também pela infecção ocasio- um período de sobrevivência no ambiente repre-
nal de hospedeiros vertebrados com hábitos de senta uma estratégia adicional para assegurar a
hibernação. Embora a capacidade de manuten- sua transmissão ao novo hospedeiro e perpetua-
ção de vírus por longos períodos exclusivamente ção na população.
280 Capítulo 10

animais. Os retrovírus, arenavírus, alguns her-


pesvírus, parvovírus e alguns togavírus são fre-
qüentemente transmitidos aos fetos/neonatos.
Em alguns desses vírus (retrovírus e arenavírus),
os fetos ou recém-nascidos infectados tornam-se
portadores e servem de fontes contínuas e per-
manentes de infecção. Uma forma especial de
perpetuação por esse mecanismo é descrita para
o BVDV, um pestivírus (família Flaviviridae) de
ruminantes (Figura 10.14). A infecção de fetos
bovinos entre os 40 e 120 dias de gestação fre-
qüentemente resulta na produção e nascimento
Ambientes, solo,
instalações etc. de bezerros imunotolerantes, persistentemente
infectados (PI). Os bezerros PI podem ser clinica-
mente saudáveis (embora freqüentemente apre-
Meses
sentem crescimento retardado e susceptibilidade
aumentada a outras doenças) e excretam o vírus
em secreções e excreções em grandes quantida-
des durante toda a vida. Os animais PI represen-
Figura 10.13. Sobrevivência ambiental dos vírus
animais: parvovírus canino (CPV).
tam o principal meio de perpetuação do BVDV
na natureza, servindo de fonte de vírus para as
3.6 Transmissão vertical infecções agudas e outras infecções fetais persis-
tentes. As infecções fetais que resultam em morte
A transmissão ao feto e/ou ao recém-nas- fetal e abortamento possuem um menor impacto
cido constitui-se em um importante mecanismo epidemiológico, ainda assim os restos fetais (feto,
de prolongamento da existência de vários vírus fluidos, membranas) ou objetos inanimados con-

Bezerro saudável,
soropositivo,
não-infectado.

– aborto;
– mumificação;
– natimorto.

Infecção fetal Anos

Excreção viral
Bezerro persistentemente
infectado

Figura 10.14. Transmissão vertical e infecção persistente pelo vírus da diarréia bovina (BVDV).
Epidemiologia das infecções víricas 281

taminados podem servir de veículos para a trans- Os vírus que causam infecções agudas são
missão do agente e facilitar a sua diseminação. geralmente excretados por secreções oronasais
(vírus respiratórios) ou pelas fezes (vírus entéri-
cos) em altos títulos durante um curto espaço de
3.7 Ciclos contínuos de transmissão tempo. Essas características, aliadas com a dispo-
nibilidade de hospedeiros susceptíveis e facilida-
As estratégias mencionadas acima são ca- de de contato, permitem a transmissão contínua e
racterísticas de famílias ou de grupos de vírus o prosseguimento da cadeia infecciosa. Exemplos
e representam vantagens evolutivas que favore- de vírus que se mantêm dessa forma são: o CDV,
cem a perpetuação desses agentes na natureza. os vírus respiratórios (bPI3v, NDV, BRSV), coro-
No entanto, alguns vírus que não utilizam es- na e rotavírus bovino, vírus da influenza (trans-
sas estratégias também são capazes de se man- missão dentro da espécie). Não obstante, vários
ter indefinidamente nas populações. Como não vírus que são capazes de utilizar as outras estra-
são capazes de persistir por longos períodos no tégias também podem ser mantidos por períodos
hospedeiro (infecção latente ou persistente) ou longos por meio de ciclos contínuos de transmis-
de infectar vetores ou outras espécies animais, são.
e não resistem por muito tempo no ambiente, a
sobrevivência desses vírus depende da infecção 4 Doenças em populações
seqüencial, imediata e contínua de novos hos-
pedeiros de uma única espécie (Figura 10.15).
Isso requer condições epidemiológicas especí- 4.1 Definição de população
ficas, que incluem a presença constante de um
percentual alto de hospededeiros susceptíveis e Em epidemiologia, define-se população como
condições de convivência que favoreçam o con- o grupo de indivíduos no qual se está estudan-
tato freqüente e, assim, a sua transmissão entre do aspectos relacionados à saúde e à doença. A
indivíduos. partir desse conceito, pode-se derivar duas de-

Figura 10.15. Ciclos contínuos de transmissão do vírus da cinomose (CDV).


282 Capítulo 10

finições, dependendo da delimitação geográfica enfermidade em questão. Se todos os indivíduos


e do número de indivíduos. População local é um da população forem susceptíveis ao agente, a po-
grupo de indivíduos que habita uma determi- pulação de risco equivale à população total. A
nada área, sujeito às mesmas condições e cujos população de risco para a febre aftosa em uma
indivíduos interagem freqüentemente entre si. O população bovina não-vacinada, por exemplo,
termo metapopulação é mais abrangente e se refe- é composta por todos os bovinos da população,
re a uma população maior, geralmente composta pois todos os animais são igualmente susceptí-
por várias populações locais, em que a migração veis. Em outras situações, a população de risco
de indivíduos entre populações locais é possível. é apenas uma parcela da população, que é sus-
Para algumas espécies de animais – sobretudo ceptível à infecção ou à enfermidade. Em estudos
aquelas de interesse econômico –, os termos reba- de abortos por vírus em bovinos, a população de
nho e criação são muito utilizados como sinônimo risco é constituída apenas pelas vacas prenhes.
de população, principalmente quando se refere a Estudos sobre as causas de mastite em bovinos
populações locais. contemplam apenas as vacas em lactação. A defi-
O tamanho e as características das popula- nição da população de risco é importante quando
ções-alvo de estudos epidemiológicos são muito se quantifica os eventos de doença e se expressa
variáveis. Pode-se estudar os fatores que deter- em índices ou taxas. Esses cálculos devem sem-
minaram a ocorrência de cinomose em um ca- pre considerar a população de risco (e não a po-
nil, por exemplo. Nesse caso, a população-alvo é pulação total) como denominador.
composta apenas pelos cães presentes no canil na
época da ocorrência da doença. É uma popula- 4.3 Populações abertas e fechadas
ção limitada e sob certo controle, o que caracte-
riza uma população local. Em um estudo da in- Dependendo da possibilidade de contato
fecção pelo parvovírus em cães de uma cidade, a com o meio exterior (e com outras populações),
população-alvo abrange todos os cães da cidade. as populações de animais podem ser classificadas
Essa é uma população com um número grande em abertas e fechadas. Populações abertas são aque-
de indivíduos, de difícil enumeração e identifica- las sobre as quais não são impostas restrições à
ção, e, por isso, sobre a qual não se tem controle. movimentação (entrada e saída) de animais e de
Estudos de viroses em animais silvestres (febre subprodutos, estando, por isso, mais susceptíveis
amarela em primatas, raiva em morcegos) tratam à introdução e disseminação de agentes infeccio-
de uma população de tamanho desconhecido e sos. As populações de cães de cidades são exem-
sobre a qual não se possui nenhum controle. Evi- plos de populações abertas, pois não existem
dentemente, os estudos epidemiológicos em po- restrições à entrada e movimentação de animais
pulações limitadas que habitam uma área restrita oriundos de outras cidades ou regiões. Muitos re-
e sobre a qual se tem controle são mais facilmente banhos bovinos, principalmente aqueles de cria-
exequíveis e produzem resultados mais objetivos ção extensiva, também se enquadram nessa cate-
e confiáveis. No entanto, estudos em populações goria pela ausência de medidas de biossegurança
numerosas de dimensões desconhecidas são, para impedir a entrada de agentes infecciosos.
muitas vezes, necessários e, dependendo da me- Nesses casos, as populações locais podem, com
todologia empregada, podem também produzir maior ou menor freqüência, interagir com outras
resultados confiáveis e de grande utilidade. Nes- populações locais dentro de uma mesma meta-
ses casos, geralmente, estuda-se apenas uma par- população.
cela da população, denominada amostra. As populações fechadas são grupos de animais
mantidos sob certo isolamento do meio exterior.
4.2 População de risco As condições de isolamento – em nível e rigor
variáveis – geralmente são impostas pelo homem
O termo população de risco refere-se à parce- com o intuito de evitar a introdução de agentes
la da população que é susceptível à infecção ou infecciosos e preservar a condição sanitária da po-
Epidemiologia das infecções víricas 283

pulação. É possível manter populações fechadas Nº de casos novos


Incidência (%) = _______________________ x 100
com diferentes abrangências, desde rebanhos em População de risco (média) x tempo

propriedades, municípios, regiões, estados, paí-


ses e até mesmo continentes. Rebanhos suínos ou O cálculo da incidência sempre considera
granjas de aves livres de determinados patógenos o parâmetro tempo, que pode ser dias, semanas,
(PRV, PRRSV, NDV) e que impõem restrições à meses ou anos, dependendo da dinâmica da in-
introdução de quaisquer fatores que possam in- fecção. A incidência é uma freqüência relativa
troduzir o agente são exemplos de populações que dá uma idéia da dinâmica da infecção ou do-
pequenas fechadas. Por outro lado, países como ença. É expressa em percentagem (exemplo: 1%
os Estados Unidos impõem restrições à introdu- de novos casos por mês) ou fração (1/100.000 por
ção de animais e subprodutos de outros países, mês) x tempo. A incidência também é denomina-
com o objetivo de preservar seus rebanhos suíno da de taxa de ataque ou morbidade incidente.
e bovino livres do vírus da peste suína clássica A prevalência também é uma freqüência re-
(CSFV) e FMDV, respectivamente. A tendência lativa (número de casos/população de risco),
é que criações comerciais de várias espécies ani- porém determinada em certo momento (não con-
mais se tornem progressivamente fechadas, a fim sidera a variável tempo). É utilizada principal-
de preservar uma condição sanitária compatível mente para expressar a freqüência de infecções
com saúde animal e atividade econômica. ou doenças crônicas, ou de doenças que ocorram
há algum tempo na população e cujo início não
4.4 Quantificação de doença: incidência foi monitorado. Define-se prevalência como uma
e prevalência freqüência relativa de casos de uma doença (ou
de outro fator relacionado) em um determinado
A quantificação dos eventos de doença nas momento. O cálculo da prevalência não considera
populações se constitui em um dos instrumentos o parâmetro tempo e também pode ser expresso
mais utilizados em epidemiologia. Essa quanti- em percentual (p. ex.: 1% de infectados) ou fração
ficação é expressa sob a forma de taxas e coefi- (1/10.000).
cientes. Define-se taxa (ou índice) como uma fra-
ção em que o numerador é número de casos e o Nº de casos
Prevalência (%) = ______________________ x 100
denominador é a população de risco, ou seja, é a População de risco

expressão de uma freqüência relativa de casos de


uma determinada doença ou indicador de saúde.
Dois índices muito utilizados em epidemiologia A prevalência de infecções em rebanhos é
são a incidência e a prevalência. Embora sejam ín- freqüentemente determinada por exames soroló-
dices relacionados e, muitas vezes, confundidos, gicos que detectam anticorpos e indicam que hou-
incidência e prevalência são índices que possuem ve uma exposição prévia ao agente. A freqüência
composição, cálculo e significados distintos e, relativa de animais reagentes é chamada de soro-
como tal, devem ser considerados e analisados. prevalência. Ao contrário da incidência, o índice
O índice de incidência é mais utilizado para de prevalência não fornece informações acerca
descrever a dinâmica de infecções agudas, em da dinâmica da infecção, e sim da situação mo-
que o número de novos casos aumenta rapida- mentânea, ou seja, constitui-se em uma informa-
mente com o decorrer do tempo. Define-se inci- ção estática, pois não acompanha a evolução do
dência como a freqüência relativa de novos casos processo infeccioso.
da doença (casos novos em relação a população Outras taxas comumente utilizadas em epi-
de risco) que surgem em relação ao tempo. A in- demiologia são morbidade, mortalidade e letalidade.
cidência é calculada da seguinte forma: Taxa de morbidade é o percentual (ou fração) dos
284 Capítulo 10

animais expostos a um determinado agente que


desenvolvem a doença. O cálculo dessa taxa pode A Doença Esporádica
considerar, como denominador, a população po-
tencialmente exposta (abrange todos os animais
do rebanho ou população) ou a população que

Nº de novos casos
realmente entrou em contato com o agente (so-
mente os animais que foram infectados). No se-
gundo caso, a taxa de morbidade seria um reflexo
direto da patogenicidade do agente; no primei-
ro caso, seria o produto da patogenicidade e da
transmissibilidade. Taxa de mortalidade é a fração
dos animais (potencial ou realmente expostos) Tempo
que vai a óbito em decorrência da infecção. Taxa
de letalidade é o percentual dos animais doentes B Doença Endêmica
que vai a óbito (é uma medida da severidade da
doença).
Nº de novos casos

5 Padrões temporais de ocorrência


das doenças

Os eventos de doença ocorrem continua-


mente com o decorrer do tempo, com freqüên-
cia e distribuição temporal que podem variar de
acordo com diversos fatores. Dependendo da Tempo
distribuição da freqüência ao longo do tempo,
três padrões principais de ocorrência podem ser C Doença Epidêmica
reconhecidos: doenças de ocorrência esporádica,
endêmica e epidêmica (Figura 10.16). Os termos en- Epidemia
em ponto
Nº de novos casos

demia e epidemia são utilizados para designar do-


Epidemia de
enças de ocorrência endêmica e epidêmica, res- propagação
pectivamente. Os termos enzoótica e epizoótica
são utilizados para referir-se a doenças animais.
Porém, como mencionado anteriormente, os ter-
mos epidemiológicos clássicos (endemia, epide-
mia) são também utilizados em epidemiologia
veterinária. Tempo

5.1 Doenças esporádicas


Figura 10.16. Padrões temporais de ocorrência de
doenças.
As doenças esporádicas são aquelas que não
estão presentes na população a maior parte do reservatórios (outras espécies animais). Esses re-
tempo e a sua ocorrência é caracterizada pelo servatórios apenas ocasionalmente entram em
aparecimento de um número geralmente peque- contato e transmitem o agente para a espécie em
no de casos a intervalos variáveis, irregulares e questão, desencadeando o aparecimento da do-
imprevisíveis (Figura 10.16A). Tratando-se de ença (p. ex.: casos de infecção pelo vírus ebola em
doenças infecciosas, algumas possíveis explica- pessoas na África, hantavirose em humanos no
ções para esse comportamento são: a) o agente Brasil); b) o agente está sempre presente na po-
está sempre presente no ecossistema, porém em pulação, porém causando infecções subclínicas
Epidemiologia das infecções víricas 285

na maioria e doença em uma minoria dos indiví- lações. A infecção pelo BoHV-1, por exemplo, é
duos, ou seja, a infecção raramente causa a doen- endêmica na população bovina do Brasil. Para
ça. Assim, a infecção seria endêmica e a doença infecções que ocorram endemicamente em todo o
seria esporádica (p. ex.: a infecção pelo BLV em mundo, não é necessário especificar a população.
bovinos é endêmica; a ocorrência do linfossarco- Por exemplo, a parvovirose é uma doença endê-
ma causado pelo BLV é esporádica); c) o agente mica na população canina (fica implícito que se
não está presente na população na maior parte trata da população mundial).
do tempo, sendo esporadicamente introduzido.
Quando é introduzido, ocasiona os eventos de 5.3 Doenças epidêmicas
doença (p. ex.: casos de febre aftosa nos estados
do Rio Grande do Sul e Mato Grosso do Sul nos Doenças de ocorrência epidêmica ou epide-
últimos anos). mias (epizootias) são aquelas que se caracterizam
pela ocorrência de um número excessivo e ines-
5.2 Doenças endêmicas peradamente alto de casos em um determinado
período em uma população (Figura 10.16C), ou
Doenças endêmicas ou endemias (enzootias) seja, ocorre com uma freqüência inesperada em
são aquelas que ocorrem continuamente, com certo intervalo de tempo. Os termos epidemia (epi-
freqüências pouco variáveis – e, portanto, razo- zootia) e surto são comuns e indistintamente uti-
avelmente previsíveis na população – ao longo lizados para designar esses eventos. Surto é um
do tempo (Figura 10.16B). Em outras palavras, a termo popular e tem sido utilizado mais amiúde
infecção é dita nativa da população. Infecções en- para referir-se a eventos restritos geograficamen-
dêmicas são geralmente mantidas pela ocorrên- te; enquanto epidemia é um termo técnico, mais
cia simultânea e contínua de múltiplas cadeias comumente (mas não exclusivamente) utilizado
de transmissão do agente entre hospedeiros sus- para designar eventos mais abrangentes geogra-
ceptíveis. Três componentes são absolutamente ficamente. No entanto, deve-se enfatizar que não
necessários para que uma infecção seja endêmica existe uma distinção clara entre esses dois concei-
em uma população: a) a presença do agente; b) o tos e ambos são utilizados indistintamente para
número/proporção adequado(a) de hospedeiros se referir a esses eventos.
susceptíveis e c) a presença dos mecanismos de A caracterização de uma epidemia necessa-
transmissão. A ausência de um desses compo- riamente requer a consideração dos parâmetros
nentes preclude a ocorrência endêmica da doen- freqüência (número excessivo de casos), tempo
ça. Uma infecção ou doença pode ser endêmica (dia, semana, mês, ano) e espaço (população).
em diferentes níveis (hipoendêmica [incidência Uma epidemia não pode ser definida pelo núme-
baixa], mesoendêmica [incidência moderada], ro absoluto de casos, e sim pelo número relativo,
hiperendêmica [incidência alta] e holoendêmica que deve ser comparado com o número de casos
[incidência altíssima]), dependendo do núme- esperado para o respectivo período naquela po-
ro/proporção de animais que afeta. Exemplos de pulação. Por exemplo, um único caso de febre af-
infecções víricas endêmicas em populações ani- tosa nos Estados Unidos (EUA), em 2006, pode
mais são abundantes: cinomose e parvovirose em configurar estatisticamente uma epidemia, pois
cães, infecção pelo BVDV e BoHV-1 em bovinos a freqüência esperada era zero. Por outro lado,
de muitos países, rotavirose e parvovirose suína, 1.000 casos de doença causada pelo PRRSV no es-
leucose enzoótica bovina, entre outras. tado de Nebraska, EUA, em maio de 2006, pode
O termo endêmico refere-se ao padrão tem- não configurar uma epidemia, pois pode ser se-
poral de ocorrência de uma doença em uma de- melhante à freqüência observada nos meses ante-
terminada população. Por isso, quando se refere riores. Estatisticamente, considera-se uma epide-
uma doença endêmica, é preciso, necessariamen- mia sempre que o número de casos exceder 1,96
te, mencionar a população em questão, pois essa desvio padrão acima da média de casos espera-
doença pode não ser endêmica em outras popu- dos para aquele intervalo de tempo.
286 Capítulo 10

As dimensões de uma epidemia podem va- de tempo. A introdução de um animal infectado


riar amplamente de acordo com o número de pelo FMDV em um rebanho pequeno susceptível
animais afetados e área ocupada pela popula- provavelmente resultará em uma epidemia com
ção. A introdução de um animal infectado pelo essas características. Essas epidemias geralmente
BVDV em um rebanho de cria, por exemplo, possuem curta duração. Epidemia em torre, ma-
pode resultar em um surto localizado de abortos ciça, de fonte comum ou hídrica são sinônimos
naquela propriedade. Mordeduras de morcegos utilizados para designar eventos com essas carac-
em bovinos e eqüinos produzem surtos de rai- terísticas.
va que, freqüentemente, atingem uma ou mais As epidemias de propagação são aquelas em
propriedades vizinhas. O surto de febre aftosa que a incidência aumenta gradualmente – e não
no Rio Grande do Sul (RS), em 2000, e no Mato de forma explosiva – à medida que novos ani-
Grosso do Sul (MS), em 2005, envolveu vários mais vão sendo infectados, transmitem o agente
municípios; na Argentina, em 2000, houve o en- a novos hospedeiros e apresentam sinais clínicos
volvimento de várias províncias e, na Inglaterra, (Figura 10.16C). São características de infecções
atingiu praticamente todo o país. Epidemias pe- transmitidas por contato direto ou indireto. A
quenas (envolvendo rebanhos ou populações pe- epidemia da AIDS em humanos, a parvovirose
quenas) provavelmente ocorram continuamente em cães e a PRRS em suínos são exemplos recen-
em populações animais do mundo inteiro, sem tes de epidemias de propagação. Epidemias de
despertar a atenção. No entanto, algumas epide- propagação geralmente possuem duração pro-
mias atingem grandes proporções por envolver longada.
países e até mesmo continentes. A epidemia de Acredita-se que, mesmo em populações de
SARS (2003-2004) atingiu grande parte da Ásia, animais silvestres e sem a intervenção humana, as
alguns países europeus e o Canadá. Epidemias epidemias sejam autolimitantes e não continuem
que atingem populações de continentes ou even- indefinidamente. O fim das epidemias ocorre
tualmente de todo o mundo são denominadas eventual e inevitavelmente pelo esgotamento dos
pandemias, das quais a parvovirose canina (a par- susceptíveis, tanto pela morte como pelo desen-
tir da década de 1980) e a infecção pelo HIV cons- volvimento de imunidade pelos indivíduos.
tituem-se em exemplos contemporâneos. Algumas enfermidades epidêmicas em seu
Dois tipos de epidemia podem ser reconhe- início, principalmente aquelas causadas pela
cidos de acordo com a dinâmica (taxa de aumen- introdução de um agente novo na população,
to da incidência de acordo com o tempo) e dura- podem se tornar endêmicas com o decorrer do
ção, refletindo doenças com diferentes formas de tempo. Exemplos são a parvovirose canina e a
transmissão e propagação. As epidemias em ponto PRRS, que, após um início explosivo, se torna-
são caracterizadas por um aumento brusco, de ram endêmicas nas populações canina e suína de
magnitude variável e curta duração, no número vários países, respectivamente. A infecção pelo
de novos casos (Figura 10.16C). Geralmente são WNV foi introduzida nos EUA, em 1999, quando
resultantes de exposição simultânea de vários resultou em epizootias/epidemias em aves e hu-
indivíduos ao agente, seja diretamente na fonte manos. Após esta introdução e início epidêmico,
de infecção (animal infectado), em água, alimen- a infecção se estabeleceu no ecossistema e se tor-
tos, aerossóis ou em produtos contaminados. São nou endêmica em vários estados norte-america-
características de infecções altamente transmis- nos. Recentemente o WNV foi detectado no noro-
síveis (FMDV, CSFV, influenza) ou de infecções este da América do Sul e também na Argentina.
transmitidas maciça e simultaneamente por uma Outras epidemias se tornam restritas temporal-
fonte comum de infecção. Ocorrem freqüente- mente (por fatores naturais ou por medidas de
mente pela ingestão de água ou alimentos conta- controle) e não persistem de forma endêmica na
minados aos quais os animais têm acesso simul- população. Exemplos recentes incluem a SARS e
taneamente. Caracterizam-se por uma grande as ocorrências de febre aftosa no RS, em 2000; no
concentração de novos casos em um curto espaco MS, em 2005; e na Inglaterra, em 2001, cujas me-
Epidemiologia das infecções víricas 287

didas de combate resultaram na erradicação do roedores silvestres que servem de reservatórios


agente e no término das respectivas epidemias. para os hantavírus e arenavírus. Essas alterações
têm sido implicadas na ocorrência de hantavirose
5.4 Fatores determinantes das e doença hemorrágica por arenavírus em huma-
epidemias nos. O estresse do transporte e aglomeração ao
qual bezerros são submetidos após o desmame
Os surtos de doenças víricas resultam do tem sido associado com surtos de viroses respi-
desequilíbrio das interações agente-hospedei- ratórias (BoHV-1, BRSV) e encefalite herpética
ro-meio ambiente e podem ser potencialmente (BoHV-5). A temperatura e umidade no verão
determinados por inúmeros fatores que podem favorecem a proliferação de vetores e a conse-
atuar individualmente ou em conjunto. Os surtos qüente ocorrência de arboviroses (WNV, encefa-
de febre aftosa no RS e Grã-Bretanha, em 2000- lites eqüinas, dengue). A aglomeração de cães em
2001, por exemplo, foram determinados pela in- canis e pet shops pode favorecer o contato entre os
trodução do agente em populações susceptíveis. animais e a conseqüente transmissão do CDV e
A pandemia de parvovirose canina, a partir da vírus respiratórios, entre outros.
década de 1980, foi determinada pelo surgimento A falha de cobertura vacinal na população
de um novo vírus na espécie canina, a partir da em um determinado ano pode resultar em sur-
mutação/evolução do vírus da panleucopenia fe- tos de doenças que normalmente são endêmicas
lina. A pandemia de AIDS provavelmente origi- e cuja freqüência é geralmente baixa. A reativa-
nou-se há decadas pela transmissão e adaptação ção de infecções latentes, geralmente associada
de um vírus de primatas (vírus da imunodefici- com fatores ambientais (estresse, má nutrição,
ência símia [SIV]) para humanos. Os surtos anu- aglomeração, mudança de alimentação) tem sido
ais de gripe em humanos devem-se, entre outros freqüentemente responsabilizada por surtos de
fatores, à contínua evolução e variação antigênica doenças associadas ao BoHV-1 e BoHV-5 em bo-
do vírus. A influenza denominada “gripe do fran- vinos. Esses fatores ambientais podem também
go”, que acomete pessoas e aves na Ásia desde atuar em conjunto sobre o sistema imunológico,
1997, deve-se a um vírus de aves que sofreu mu- predispondo os animais a outras enfermidades.
tações sucessivas e tornou-se mais virulento para Em resumo, virtualmente, qualquer fator do
aves silvestres e domésticas e capaz de infectar agente, do hospedeiro e do meio ambiente que
pessoas. O PRRSV de suínos provavelmente se determine direta ou indiretamente o aumento
originou de um vírus de roedores (lactate dehi- na freqüência esperada de uma doença pode ser
drogenase elevating virus, LDEV) que sofreu mu- considerado o fator determinante de uma epi-
tações e adaptação em suídeos silvestres, sendo demia. A origem e os fatores determinantes de
posteriormente transmitido e disseminado entre surtos podem ser freqüentemente determinados
suínos domésticos. O vírus da SARS que infectou pela realização de investigações epidemiológicas
milhares de pessoas na Ásia, Europa e Canadá, criteriosas e sistemáticas. No entanto, em mui-
em 2003-2004, provavelmente se originou e foi tas situações, as interações que produzem esses
transmitido a humanos a partir de espécies de eventos são muito complexas e não permitem a
animais silvestres. identificação da origem e dos fatores responsá-
Alteração em fatores ambientais, sem mo- veis.
dificações evidentes no agente, também podem
resultar em um aumento expressivo da freqüên- 5.5 Outros padrões de ocorrência
cia de doenças. A superpopulação de morcegos
hematófagos em determinadas áreas, devido a Além dos padrões clássicos de ocorrência,
alterações ecológicas, são acompanhadas de sur- algumas infecções víricas agudas apresentam
tos de raiva em herbívoros. Mudanças ecológi- variações de incidência diferentes dos descritos
cas relacionadas com a agricultura têm causado acima. Várias infecções víricas agudas apresen-
aumento da população e mudança de hábitos de tam aumentos de incidência coincidentes com
288 Capítulo 10

determinadas estações do ano. Viroses respira- presença e da interação entre vários fatores. Os
tórias (BRSV, parainfluenza canina) geralmente requerimentos mais óbvios para a ocorrência
apresentam picos de incidência no inverno; em de uma infecção e doença em uma determinada
contraste, algumas viroses entéricas e arboviro- população são a presença do agente e de hospe-
ses apresentam picos no verão. Esse tipo de com- deiros susceptíveis. No entanto, outros fatores
portamento é denominado sazonal ou estacional, e epidemiológicos são determinantes da distribui-
o aumento de incidência verificado nessas épo- ção geográfica das viroses animais. A existência
cas deve-se geralmente à ação direta ou indireta e número de reservatórios e vetores, condições
de fatores climáticos sobre os hospedeiros, veto- favoráveis para a sobrevivência e transmissão do
res e/ou agentes. A maior incidência de viroses agente, barreiras naturais ou artificiais, medidas
respiratórias no inverno deve-se a fatores como de controle e/ou erradicação (incluindo vacina-
aglomeração de indivíduos, ventilação deficiente, ção), sistemas de produção, entre outros, contri-
estresse térmico, umidade, temperatura e facili- buem para os diferentes padrões de distribuição
dade de transmissão dos vírus. A maior incidên- e localização das infecções víricas.
cia de arboviroses nos meses quentes deve-se ao
aumento da população e atividade dos artrópo- 6.1 Doenças víricas de distribuição
des vetores. A causa de sazonalidade de algumas mundial
infecções víricas, no entanto, não é facilmente
explicável e pode envolver múltiplas interações As viroses de animais de companhia, sobre
de fatores climáticos com o hospedeiro e com o os quais geralmente não se impõe restrições à
agente. movimentação e que não se constituem em al-
Doenças com variações cíclicas apresentam vos de programas sanitários oficiais, geralmente
aumentos de incidência a intervalos maiores do possuem uma distribuição ampla, muitas vezes
que um ano. Os picos geralmente ocorrem quan- mundial. Enquadram-se nessa categoria as prin-
do a imunidade da população, que atinge o seu cipais infecções víricas de cães e gatos. Embora
máximo logo após cada pico, atinge níveis cri- amplamente difundidas na população, essas vi-
ticamente baixos após um período de redução roses certamente apresentam diferenças de pre-
gradativa. Esse padrão de ocorrência é mais fa- valência e de incidência entre populações, refle-
cilmente reconhecido em populações humanas (o tindo peculiaridades epidemiológicas locais e
sarampo apresenta picos a cada 2-3 anos; rubéola medidas voluntárias de controle eventualmente
a cada 5-7 anos) e de animais silvestres, pois os praticadas. Populações de cães e gatos que vivem
animais domésticos de interesse econômico fre- em condições isoladas (ilhas, comunidades re-
qüentemente têm o seu ciclo de vida interrompi- motas) podem ocasionalmente ser livres de algu-
do devido à finalidade produtiva. mas dessas viroses. Algumas infecções víricas de
Doenças com tendência secular são aquelas animais de interesse econômico (BoHV-1, bPI3v,
cuja incidência apresenta uma redução ou au- BVDV, rotavirose, coronavirose, parvovirose
mento muito lento ao longo de anos e décadas. suína) também possuem distribuição mundial,
Essas variações devem-se, em geral, a alterações embora algumas delas tenham sido alvos recen-
ecológicas graduais e progressivas, mudanças de tes de programas de erradicação e, atualmente,
hábitos e de práticas de manejo, e a medidas ge- estejam erradicadas de alguns países. A maioria
rais de profilaxia e controle das doenças animais. das viroses humanas também possui distribuição
mundial, embora possam apresentar níveis variá-
6 Distribuição espacial das infecções veis de ocorrência nas diferentes subpopulações.
víricas Algumas viroses humanas já foram erradicadas
mundialmente (varíola) ou estão em vias de er-
As infecções víricas apresentam distribui- radicação em vários países (poliomielite, saram-
ções geográficas diversas que dependem da po).
Epidemiologia das infecções víricas 289

6.2 Doenças víricas com certa limitação infectou humanos e eqüinos na Austrália, estan-
geográfica do, até então, limitado àquele continente. Evento
similar ocorreu na Malásia e Indonésia, onde o
Algumas infecções víricas – sobretudo as ar- vírus Nipah (também um morbilivírus de mor-
boviroses – embora possam apresentar uma dis- cegos) infectou e provocou doença em pessoas e
tribuição relativamente ampla e possam acometer grande mortalidade em suínos. Outro exemplo
populações de vários continentes, possuem certa de infecção vírica restrita geograficamente é o as-
limitação geográfica. A delimitação da ocorrência sociado ao vírus ebola, cujos eventos epidêmicos
dessas infecções é geralmente determinada pela concentram-se quase que exclusivamente na Áfri-
existência de condições climáticas para a sobre- ca Central. As infecções pelos vírus das encefali-
vivência e atividade dos insetos envolvidos na tes eqüinas do leste e oeste (EEEV, WEEV) tam-
transmissão do agente. Enquadram-se nessa ca- bém possuem certa delimitação geográfica, que é
tegoria a dengue, a febre amarela, algumas infec- determinada pelas interações do agente com seus
ções por alfavírus, flavivírus e outras arboviroses vetores e hospedeiros. Esses agentes, no entanto,
(WNV, VEEV). A distribuição dessas infecções têm sido também detectados fora de seus nichos
coincide com uma faixa territorial de certa am- ecológicos originais, o que pode, eventualmente,
plitude laditudinal, onde as condições climáticas caracterizar uma expansão de sua abrangência.
são favoráveis à sobrevivência e à atividade dos A restrição geográfica de muitas dessas vi-
vetores. Essas enfermidades podem, ocasional- roses pode possuir caráter apenas circunstancial
mente, ser detectadas em áreas remotas e que e pode ser modificada ocasionalmente, acompa-
não apresentam condições para a perpetuação nhando alterações ecológicas ou epidemiológi-
dos vetores, mas dificilmente se tornam endêmi- cas. A doença do Nilo Ocidental (WNV), causada
cas nessas regiões. por um flavivírus transmitido por insetos e cujos
hospedeiros naturais são várias espécies de pás-
6.3 Doenças víricas restritas saros e outras aves silvestres, por exemplo, esta-
geograficamente va historicamente restrita ao nordeste do conti-
nente africano, a alguns países do Oriente Médio
Algumas infecções víricas apresentam uma e à europa mediterrânea (casos isolados). Intro-
distribuição geográfica restrita, ficando limita- duzida, em 1999, nos Estados Unidos, a infecção
das a determinadas regiões ou países. A peste pelo WNV rapidamente se disseminou e se tor-
suína africana ocorre endemicamente na África, nou endêmica no país e está avançando na dire-
provavelmente pelas condições epidemiológicas ção sul em países da América Central e Caribe.
favoráveis (população susceptível, reservatórios, Outro exemplo recente de expansão geográfica
vetores, falta de medidas de biossegurança). Es- foi o vírus da língua azul (BTV), que atingiu re-
poradicamente introduzida na Europa e no Brasil banhos ovinos da Holanda, Alemanha e Bélgica,
no passado, a doença foi rapidamente erradicada em 2006, provavelmente a partir da África, onde
e não se tornou endêmica. A doença do vale Rift, a infecção é endêmica.
enfermidade zoonótica que afeta várias espécies
de mamíferos domésticos e silvestres, tem sido 6.4 Áreas livres naturais
historicamente restrita a uma região da África.
Ocasionalmente detectada fora do continente Algumas populações de animais são natu-
africano (Oriente Médio e Ásia), aparentemente ralmente livres de determinadas infecções víricas.
não encontrou condições para se manter ende- Essas populações (ou as áreas que habitam) são
micamente. A retrovirose Maedi-Visna foi ini- ditas indenes sem relação à doença e livres em rela-
cialmente identificada em ovinos/caprinos da ção ao agente. Essas áreas foram mantidas livres
Islândia e tem ficado praticamente restrita a esse do agente ao longo de décadas, sobretudo, pela
país insular. O vírus Hendra (um morbilivírus de existência de barreiras naturais que dificultavam
morcegos) ultrapassou a barreira interespécies e a sua introdução. A Austrália é naturalmente in-
290 Capítulo 10

dene à raiva animal (silvestre e urbana) e febre ção/variação genética de um vírus já existente na
aftosa, condições favorecidas pela sua localização população; c) alterações ecológicas que afetam as
geográfica. O Chile manteve-se livre de febre af- interações entre os hospedeiros, reservatórios e
tosa durante décadas, apesar da situação endêmi- vetores, ou d) ação do homem através dos siste-
ca da infecção na América do Sul, também graças mas de criação, manejo, transporte e comerciali-
à cordilheira dos Andes, que serviu de barreira zação/utilização de animais.
natural contra a introdução do agente. Embora O HIV surgiu na África, entre 1940 e 1950,
muitas dessas áreas tenham se mantido histori- provavelmente a partir de um vírus de primatas
camente livres de doenças graças à existência de não-humanos (simian immunodeficiency virus, SIV).
barreiras naturais, a manutenção dessa condição, Acredita-se que o SIV tenha sido transmitido de
nos últimos anos, também deveu-se à imposição macacos a pessoas pelo contato com o sangue ou
de barreiras artificiais. A condição de área livre outros fluidos corporais, proporcionado por prá-
também pode ser meramente circunstancial, pois ticas como caça, abate e alimentação. Após atra-
o agente pode ser potencialmente introduzido a vessar a barreira interespécies, o novo vírus foi
partir de áreas endêmicas. gradativamente se adaptando e disseminando na
população humana. Atualmente o HIV está am-
6.5 Áreas livres artificiais plamente difundido na população humana e re-
presenta um dos principais problemas de saúde
Vários países têm envidado esforços e con- pública em todo o mundo, ou seja, a epidemia de
seguido erradicar viroses outrora endêmicas em AIDS deveu-se ao surgimento de um novo vírus
seus rebanhos. O BLV, BoHV-1 e PRV foram erra- na população humana.
dicados de alguns países europeus; a febre aftosa Outro exemplo de vírus que atravessou a
e a peste suína clássica (PSC) foram erradicadas barreira entre espécies e alterou o seu espectro
de grande parte do Brasil. Embora existam apenas de hospedeiros foi o parvovírus canino (CPV). O
alguns relatos remotos de ocorrência de casos, a CPV surgiu como patógeno de cães no final dos
PSC e febre aftosa foram erradicadas dos EUA há anos 1970, a partir de mutações nas proteínas
muitas décadas. O PRV foi erradicado de vários do capsídeo do parvovírus causador da panleu-
países europeus e recentemente da população su- copenia felina (FLPV). Como conseqüência des-
ína comercial dos EUA. Esforços de erradicação sas alterações genéticas, o parvovírus teve a sua
de doenças víricas têm sido empreendidos por gama de hospedeiros alterada, adquirindo a ha-
vários países e, se bem-sucedidos, resultarão em bilidade de infectar e causar doença em cães. Nos
novas áreas livres. As principais viroses-alvo de anos que se seguiram ao surgimento desse novo
programas de erradicação são aquelas sob regu- vírus na espécie canina, as cepas de parvovírus
lação internacional que restringe a movimenta- eram altamente virulentas. Ao longo dos anos, no
ção de animais e subprodutos. entanto, as cepas de alta virulência foram sendo
gradativamente substituídas na população por
7 Doenças víricas emergentes cepas menos virulentas, o que indica uma adap-
tação gradativa aos novos hospedeiros.
As últimas décadas têm testemunhado o O vírus da encefalite eqüina venezuelana
surgimento e ressurgimento de várias enfermi- (VEEV), um alfavírus zoonótico transmitido por
dades víricas em populações humanas e animais. insetos, tem sido implicado em epidemias e epi-
As causas da emergência de algumas dessas en- zootias (em eqüídeos) de grandes proporções no
fermidades já foram parcialmente esclarecidas norte e noroeste da América do Sul nas últimas
e parecem envolver diversos fatores que atuam décadas. Esses eventos se repetem a intervalos
individualmente ou em conjunto. Em geral, a de aproximadamente 10 anos. No intervalo entre
emergência/reemergência de enfermidades ví- os surtos, não há evidência de atividade viral nas
ricas está associada com: a) surgimento de um populações de eqüinos ou de humanos, mas o ví-
novo vírus na população ou espécie; b) muta- rus provavelmente permaneça circulando no seu
Epidemiologia das infecções víricas 291

ambiente natural, infectando pequenos mamífe- (Rhinonophus sinicus) como provável hospedeiro
ros silvestres. Os vírus que circulam nas popu- natural do vírus. Não obstante, a análise filoge-
lações silvestres nesses períodos – denominados nética desse vírus sugere que eventos de mutação
enzoóticos –, embora capazes de infectar eqüinos ou recombinação, envolvendo coronavírus aviá-
e pessoas, produzem baixos níveis de viremia e rios e de mamíferos, tenham ocorrido no passa-
são virtualmente apatogênicos para essas espé- do. Aliado a fatores ambientais e culturais, esses
cies. Periodicamente esses vírus sofrem mutações eventos genéticos podem ter contribuído para a
que os tornam patogênicos e capazes de produzir capacidade do agente de infectar diferentes espé-
altos níveis de viremia em eqüinos. Esses vírus cies silvestres e, eventualmente, ser transmitido a
– denominados epizoóticos – são, então, transmi- humanos. A transmissão a humanos foi seguida
tidos aos eqüinos, nos quais são amplificados e de uma rápida disseminação no sudeste asiáti-
disseminados nessa espécie e também para hu- co, extendendo-se para alguns países europeus
manos, causando epidemias/epizootias de gran- e para o Canadá pela movimentação de pessoas.
des proporções. Os surtos periódicos de VEE são Felizmente as medidas profiláticas adotadas fo-
exemplos da reemergêngia de doenças devido a ram capazes de restringir a disseminação e, even-
mutações/alterações genéticas de vírus preexis- tualmente, resultaram no final na epidemia.
tentes no ecossistema. Dois exemplos de doenças que emergiram
O PRRSV foi inicialmente identificado como devido a alterações ecológicas foram as causadas
patógeno de suínos no final dos anos 1980, nos pelos vírus Nipah e Hendra. Esses vírus cruza-
EUA, e no início dos anos 1990, na Europa. A hi- ram a barreira interespécies e causaram doença
pótese mais aceita é que o agente tenha se origi- e mortalidade em animais e pessoas na Malásia
nado de um vírus muito semelhante de roedores e Austrália, respectivamente. O desmatamen-
(lactate dehidrogenase elevating virus, LDEV). O to indiscriminado, seguido de queimadas nas
LDEV teria sido transmitido de roedores para su- florestas da Malásia em 1997-1998, desalojou
ídeos silvestres na Europa há, aproximadamente, populações de morcegos frugívoros da espécie
um século. Posteriormente, teria sido transmitido Pteropus (conhecidos como “raposas voadoras”)
a suínos domésticos e introduzido nos EUA no de seu habitat natural. Essas populações foram,
início de século 20 pela importação de animais. então, procurar abrigo e alimento em pomares
A partir daí, o vírus teria evoluído na espécie domésticos, alguns deles localizados em granjas
suína paralelamente nos dois continentes. Qual de suínos. Como conseqüência da proximida-
a razão, então, para o seu “surgimento” apenas de, os suínos se infectaram ao ingerir restos de
nos anos 1980-1990? A explicação mais plausível frutas contaminadas com a saliva dos morcegos
é que, embora presente nesses países há décadas, infectados. O vírus Nipah se disseminou rapi-
a grande disseminação teria apenas ocorrido nas damente em granjas com alta concentração de
duas últimas décadas, por modificações drásticas animais, contaminando e causando doença grave
nas práticas de manejo, comercialização, inter- em suínos e humanos. Evento similar ocorreu na
câmbio intensivo de reprodutores e uso indiscri- Austrália em 1994-1995, quando eqüinos foram
minado da inseminação artificial. contaminados com outro morbilivírus, o vírus
O coronavírus causador da SARS (SARS- Hendra, pelo contato com excreta e restos pla-
CoV) emergiu na Ásia, em 2003, como um vírus centários de morcegos contaminados. Essa enfer-
novo na população humana. O seu surgimento midade foi mais restrita, mas atingiu e ocasionou
parece ter envolvido a interação de fatores eco- a morte de vários eqüinos e de algumas pessoas
lógicos e virais. Estudos epidemiológicos ini- que tinham contato com esses animais. O vírus
ciais indicavam as civetas (civet cats) – pequenos da febre do Vale Rift (RVFV), um vírus buniaví-
carvívoros silvestres domesticáveis e utilizados rus zoonótico transmitido por insetos, também
também para alimentação humana – como pro- tem sido associado com eventos epidêmicos de
vável origem do agente. Estudos mais recentes, proporções consideráveis em humanos e animais
no entanto, indicam uma espécie de morcego domésticos em alguns países da África. Um des-
292 Capítulo 10

ses eventos foi associado com a abertura de uma ciado com surtos de alta mortalidade em focas
grande represa no Egito, seguida de enchentes e (>10.000) e outros mamíferos nos mares Mediter-
alagamentos. Essas condições propiciaram uma râneo e Cáspio no início do século 21, e no lago
proliferação rápida e abundante de insetos e a Baikal, Rússia, em 1997/1998. O CDV também
conseqüente disponibilidade de vetores para a foi associado com mortalidade de leões e hienas
transmissão do agente. em uma reserva natural da Tanzânia, e tem sido
O WNV emergiu na América do Norte no esporadicamente isolado de doença em mãos-pe-
ano de 1999, inicialmente produzindo doença e ladas (racoons), felídeos e outros animais silves-
mortalidade em aves silvestres (corvos, pardais) tres de vida livre ou de zoológicos. Um estudo
e de zoológicos, acompanhada de alguns casos de retrospectivo demonstrou antígenos do CDV em
doença humana. Até então, a infecção pelo WNV amostras de, aproximadamente, 50% dos leões e
estava restrita ao nordeste do continente africa- tigres que morreram entre 1972 e 1992 em zooló-
no e a alguns países do Oriente Médio e Europa gicos da Suíça.
mediterrânea. Nesses locais, a infecção ocorria O vírus da influenza A de aves (H5N1), pro-
sob a forma de surtos restritos geograficamente e vavelmente por meio de mutações sucessivas e
atingindo um número limitado de pessoas e/ou adaptação gradativa, tornou-se virulento para
de animais. O vírus provavelmente foi introdu- aves domésticas e silvestres e infeccioso para hu-
zido no continente americano pelo movimento manos, causando centenas de mortes na Ásia a
migratório de aves a partir da África (aves silves- partir de 1997. Durante esse surto, dois tigres e
tres são os seus hospedeiros naturais), importa- dois leopardos de zoológicos da Tailândia foram
ção ilegal de aves ornamentais contaminadas ou infectados com o H5N1 e morreram. A reemer-
pelo transporte de mosquitos contaminados em gência do H5N1 a partir de 2004 tem resultado
navios e/ou aviões. Após a introdução, o WNV em uma disseminação maior, atingindo aves sil-
encontrou condições ecológicas e rapidamente vestres e domésticas e pessoas de países da Ásia,
se disseminou nos EUA, ocasionando doença em Oriente Médio e Leste Europeu. Esse vírus está
aves (mais de 150 espécies de pássaros e outras sendo considerado o candidato mais provável e
aves são naturalmente susceptíveis), humanos temido a causar uma pandemia de gripe na popu-
(aproximadamente 700 mortes até meados de lação humana nos próximos anos.
2007) e em animais domésticos (mais de 25 mil É provável que o surgimento e ressurgimen-
casos em eqüinos até julho de 2007). A infecção to de enfermidades víricas continuem a ocorrer
em humanos tem assumido características até com o decorrer do tempo em razão de alterações
então não relatadas, como ocorrência esporádica ecológico-ambientais, modernização de sistemas
de transmissão transplacentária e neonatal, além de manejo, produção e reprodução e também
de transmissão por transfusão sangüínea e trans- por causa da evolução natural (mutação + sele-
plante de órgãos. O vírus já foi detectado em al- ção) desses agentes. O exemplo mais recente foi a
guns países da América Central e, recentemente, transmissão de um vírus da influenza (H3N8) de
foi detectado na Colômbia (2004-2005) e Argenti- eqüinos para cães nos Estados Unidos em 2004.
na (2006). Relatos iniciais indicaram que o novo vírus está
São vários os exemplos de doenças víricas se disseminando eficientemente da população de
emergentes de animais domésticos e humanos cães de carreira naquele país. A recente transmis-
cujos agentes se originaram de animais silves- são do vírus da influenza para felídeos domésti-
tres. O caminho inverso, ou seja, transmissão cos (gatos) e selvagens cativos (tigres e leopardos)
de agentes víricos de animais domésticos para também se constituiu em um evento inusitado.
espécies silvestres, embora menos freqüente, Para vários vírus, a linha que delimita o seu
também tem sido bem documentada. O vírus da espectro de hospedeiros parece ser mais epide-
cinomose (CDV), um morbilivírus canino, tem miológica do que biológica, ou seja, a restrição
sido freqüentemente associado com eventos de de alguns agentes aos seus hospedeiros natu-
doença em animais silvestres. O vírus foi asso- rais ocorreria mais por falta de oportunidade de
Epidemiologia das infecções víricas 293

transmissão do que pela sua incapacidade de in- CRUZ, M.H. et al. Caracterizacion de la problacion animal. Rio
de Janeiro: Centro Panamericano de Fiebre Aftosa. 1979. p.72.
fectar outras espécies. Nesses casos, a barreira in-
terespécies seria circunstancial e tênue e, por isso, DINTER, Z.; MOREIN, B. Virus infections of ruminants. New
potencialmente temporária. Exemplos de agentes York, NY: Elsevier Science, 1990. 386p.
virais que ultrapassam a barreira entre espécies DOHOO, I.; MARTIN, W.; STRYHN, H. Veterinary
e se tornam capazes de infectar novos hospedei- epidemiologic research. Charlottetown, P.E.I.: AVC, 2003. 706p.
ros têm sido cada vez mais freqüentes. Nesse
FLINT, S.J. et al. Principles of virology: molecular biology,
sentido, acredita-se que mais de 70% das viroses
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emergentes em humanos teve origem zoonótica,
tendo sido adquirida de animais em um passa- HALPIN, K. et al. Newly discovered viruses of flying foxes.
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do mais ou menos recente. De especial interesse
para a saúde humana e animal é a imensurável HAYES, E.B. et al. Epidemiology and transmission of West Nile
gama de agentes infecciosos existentes em ani- virus disease. Emerging Infectious Diseases, v.11, p.1167-1173,
mais silvestres. A história recente tem demons- 2005.

trado que essa gama freqüentemente contempla HUI, E. K-W. Reasons for the increase in emerging and re-
populações humanas e de animais domésticos emerging viral infectious diseases. Microbes and Infection, v.8,
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DIAGNÓSTICO LABORATORIAL
DAS INFECÇÕES VÍRICAS
Eduardo Furtado Flores
11
1 Introdução 297

2 Aplicações do diagnóstico virológico 298

3 Propriedades das técnicas diagnósticas 299

4 Métodos de diagnóstico 299

4.1 Métodos diretos 302


4.1.1 Microscopia eletrônica 302
4.1.2 Isolamento e identificação 304
4.1.3 Hemaglutinação e inibição da hemaglutinação 308
4.1.4 Detecção de antígenos 309
4.1.5 Detecção de ácidos nucléicos 311

4.2 Métodos indiretos – diagnóstico sorológico 314


4.2.1 Imunodifusão em ágar 316
4.2.2 Soro-neutralização 316
4.2.3 Inibição da hemaglutinação 317
4.2.4 ELISA 318
4.2.5 Imunofluorescência/imunoperoxidase 319
4.2.6 Imunoblots 320
4.2.7 Fixação do complemento 320
4.2.8 Outras técnicas sorológicas 320

5 Coleta e remessa de material 320

5.1 Eleição do material a ser coletado 321


5.2 Cuidados na coleta e acondicionamento 321
5.3 Conservação e remessa 322
5.4 Histórico 323
5.5 Fluxograma dos procedimentos de diagnóstico 323
5.6 Processamento das amostras 325
5.7 Interpretação dos resultados 325

6 Bibliografia consultada 326


1 Introdução O número de agentes virais que causam do-
enças de importância sanitária e econômica em
A elaboração do diagnóstico laboratorial das animais é muito grande. Isso torna virtualmente
infecções víricas animais depende de ações coor- impossível que um único laboratório disponha
denadas do veterinário de campo e dos técnicos de técnicas, reagentes e pessoal capacitado para
de laboratório. Os resultados dos testes laborato- o diagnóstico de todas as viroses. Por isso, existe
riais, isoladamente, possuem pouco significado uma tendência de laboratórios se especializarem
se não forem interpretados à luz de conhecimen- em viroses de determinadas espécies animais.
tos de epidemiologia, patogenia e imunologia Esse direcionamento é, em grande parte, deter-
das doenças. Por isso, o diagnóstico laboratorial minado pela demanda de serviços na sua região
contribui com uma parte das informações neces- de abrangência.
sárias à solução do problema sanitário sob inves- Durante a realização do diagnóstico, deve-se
tigação. A outra parte, necessariamente, deve ser considerar que agentes diferentes podem causar
provida pelos técnicos encarregados da investi- doenças semelhantes e que a elaboração do diag-
gação clínico-patológica e epidemiológica; e da nóstico deve, necessariamente, considerar outros
coleta e remessa do material. patógenos, tais como: bactérias, fungos e proto-
A coleta e acondicionamento adequados do zoários. Por isso, o encaminhamento do material
material a ser examinado são críticos para o su- para exame deve contemplar também as outras
cesso do diagnóstico laboratorial. Se as técnicas áreas da microbiologia.
laboratoriais já apresentam dificuldades intrínse- Embora as técnicas clássicas de diagnóstico
cas, a sua realização com material em condições virológico (isolamento, microscopia eletrônica)
impróprias dificulta a realização das técnicas continuem sendo utilizadas, a crescente deman-
e reduz a probabilidade de obter o diagnósti- da por diagnóstico em nível populacional tem
co correto. Por essa razão, amostras cuja coleta impulsionado o desenvolvimento de técnicas
e acondicionamento tenham sido inadequados rápidas, sensíveis e automatizáveis. O diagnós-
possuem um valor limitado para a realização do tico de um evento de doença determina, muitas
diagnóstico. vezes, as medidas de controle a serem adotadas.
O material para exame deve ser acompanha- Nesses casos, a rapidez na obtenção dos resulta-
do de um histórico clínico e epidemiológico deta- dos pode ser crítica para o sucesso da estratégia
lhado. O histórico é importante para a formulação escolhida.
de hipóteses sobre os possíveis determinantes da O desenvolvimento de kits diagnósticos
doença e para o planejamento e direcionamento para uso em clínicas e consultórios de peque-
das técnicas e reagentes a serem empregados. Ou nos animais tem auxiliado a difundir e popula-
seja, grande parte da estratégia laboratorial de rizar o diagnóstico virológico como uma prática
diagnóstico depende das informações que acom- necessária para um adequado direcionamento
panham a amostra. da conduta do médico veterinário. Da mesma
A elaboração do diagnóstico pode ser com- forma, técnicas de baixo custo e que podem ser
parada com a montagem de um quebra-cabeça. automatizadas para uso em animais de interesse
As informações clínicas, patológicas e epidemio- econômico têm sido incorporadas ao arsenal de
lógicas colhidas a campo se constituem em parte técnicas já disponíveis. As técnicas moleculares
das peças; e as informações obtidas com a reali- também têm contribuído para a realização de
zação das técnicas laboratoriais representam as diagnósticos mais rápidos, seguros e confiáveis,
peças restantes. Essa analogia ilustra bem a im- embora a utilização dessas técnicas ainda não es-
portância dos diferentes componentes do intrin- teja amplamente difundida.
cado complexo de informações necessárias para A seguir serão abordados os aspectos gerais
a elucidação dos fatores que levam à ocorrência do diagnóstico laboratorial de infecções víricas,
das doenças. com enfoque para a aplicação das técnicas com
298 Capítulo 11

fins diagnósticos. A descrição detalhada das téc- e diagnóstico nas regiões endêmicas ou de risco.
nicas aqui abordadas foi apresentada no Capítulo O monitoramento constante da evolução genética
3, e a sua aplicação no diagnóstico individual das dos vírus da influenza, que infectam aves aquáti-
doenças será abordada nos capítulos específicos. cas e migratórias, tem fornecido informações im-
portantes sobre o potencial zoonótico desses vírus
e também tem direcionado a elaboração de vacinas
2 Aplicações do diagnóstico
e a adoção de medidas preventivas. O acompanha-
virológico mento da história natural de outros vírus zoonó-
ticos, como o coronavírus causador da SARS, o
O diagnóstico laboratorial de infecções víri- vírus ebola e os paramixovírus Nipah, Menangle
cas possui aplicações muito mais amplas e abran- e Hendra também se baseia na disponibilidade de
gentes do que a de suporte à investigação clínica. métodos virológicos de diagnóstico.
Mesmo em enfermidades que possam ser diag- A comercialização, especialmente interna-
nosticadas clinicamente e/ou com auxílio da his- cional, de animais de interesse econômico geral-
topatologia, a confirmação da etiologia por méto- mente requer a certificação de que esses animais
dos virológicos e/ou sorológicos é recomendável são livres de infecções persistentes ou latentes,
e, em muitos casos, imprescindível. como as infecções pelo vírus da leucose bovina
A investigação clínica e epidemiológica de (BLV), herpesvírus bovino tipo 1 (BoHV-1), vírus
eventos de doença em indivíduos ou em popula- da língua azul (BTV), vírus da doença de Au-
ções freqüentemente requer a complementação ou jeszky (PRV), vírus da anemia infecciosa eqüina
confirmação por técnicas laboratoriais. As varia- (EIAV), entre outras. O mesmo ocorre com ani-
ções na apresentação clínica das viroses, a ocorrên- mais enviados a feiras, exposições, centrais de
cia de síndromes distintas associadas com o mes- coleta de sêmen e hipódromos. Em áreas endê-
mo agente ou, ainda, a ocorrência de manifestações micas, o mais comum é que as propriedades que
clínicas semelhantes produzidas por diferentes comercializem reprodutores erradiquem essas
vírus, fazem dos testes laboratoriais importantes infecções e obtenham a certificação oficial. Para
recursos auxiliares ao diagnóstico clínico. Além isso, é necessário um sistema de diagnóstico efe-
disso, as infecções víricas freqüentemente cursam tivo, capaz de identificar os animais infectados e
sem sinais clínicos perceptíveis ou com sinais ines- certificar as propriedades ou áreas livres do agen-
pecíficos, tornando a confirmação laboratorial um te. Da mesma forma, os reprodutores e/ou sêmen
requisito essencial para o seu diagnóstico. destinados à comercialização devem ser testados
Criações em diferentes níveis (propriedades, e certificados livres de determinados agentes.
regiões, países e continentes) têm empregado esfor- Em infecções por retrovírus (BLV, EIAV,
ços para erradicar e/ou evitar a introdução de do- vírus da artrite e encefalite caprina [CAEV]) e
enças víricas de importância sanitária estratégica, por herpesvírus (BoHV-1/5, PRV), entre outras,
como a febre aftosa, peste suína clássica e africana, é possível reduzir gradativamente a prevalência
doença de Aujeszky, influenza aviária, entre ou- da infecção e, eventualmente, erradicar o agente
tras. Nesses casos, a existência de um sistema inte- através de programas de identificação e remoção
grado e ágil de monitoramento, capaz de detectar e dos animais soropositivos. Para isso, é necessário
identificar esses agentes rapidamente, constitui-se um sistema efetivo e sistemático de diagnóstico,
em uma ferramenta essencial para a manutenção aliado a políticas públicas ou privadas que viabi-
da condição sanitária dessas criações. lizem o descarte dos animais e a indenização dos
As zoonoses víricas, como a raiva, influen- proprietários, medidas freqüentemente adotadas
za H5N1, hantavirose, febres hemorrágicas, febre nesses programas.
amarela, encefalomielites eqüinas, doença do Nilo O estabelecimento de programas de sani-
Ocidental, entre outras, possuem grande importân- dade animal depende do conhecimento das en-
cia em saúde pública, o que justifica a manutenção fermidades prevalentes em uma determinada
de sistemas integrados e contínuos de vigilância região. Portanto, estudos epidemiológicos para
Diagnóstico laboratorial das infecções víricas 299

determinar a ocorrência, prevalência e distribui- da técnica de identificar um determinado vírus e,


ção de enfermidades víricas específicas são fre- simultaneamente, distingui-lo de outros agentes,
qüentemente realizados e utilizam testes diag- mesmo que sejam muito semelhantes. A rapidez
nósticos, principalmente testes sorológicos. de obtenção do diagnóstico é essencial, pois, mui-
A decisão de se adotar medidas de controle tas vezes, o resultado determina as medidas a se-
e/ou erradicação de doenças víricas depende do rem adotadas. A confiabilidade de qualquer teste
conhecimento prévio sobre a situação da respec- diagnóstico depende também da sua repetibilida-
tiva infecção na população. Este conhecimento de (ou reprodutibilidade), ou seja, da consistên-
pode ser obtido por estudos soro-epidemiológi- cia dos resultados obtidos pela repetição de sua
cos que fazem parte de um estudo descritivo ini- execução. Para possuírem utilização na rotina, as
cial, denominado diagnóstico de situação. A toma- técnicas devem também ser simples e práticas de
da de decisões, a natureza das medidas adotadas executar, de preferência automatizáveis para pos-
e avaliações periódicas do andamento e sucesso sibilitar o teste simultâneo de um grande número
de programas de controle também dependem de amostras. Além disso, devem apresentar um
dos resultados obtidos em testes diagnósticos. custo baixo, sobretudo, para o diagnóstico de en-
As aplicações do diagnóstico virológico la- fermidades de animais de interesse econômico e,
boratorial são amplas e abrangentes e contem- quando necessário, o teste de um número grande
plam desde investigações clínicas em nível indi- de amostras.
vidual até programas de controle e erradicação
de doenças em nível nacional ou continental. Por
essa razão, as técnicas de diagnóstico estão sob Praticidade

contínuo aperfeiçoamento para contemplar os Simplicidade


Custo baixo
diferentes graus de exigência. Novas técnicas – e
variações de técnicas já existentes – são relatadas
continuamente em publicações especializadas e Técnica
Sensibilidade Repetibilidade
muitas delas acabam sendo incorporadas ao ar- diagnóstica
senal de técnicas disponíveis para o diagnóstico
de viroses animais.
Especificidade Rapidez

3 Propriedades das técnicas Capacidade de


Automatização
diagnósticas

A aplicação de uma determinada técnica la-


Figura 11.1. Propriedades desejáveis nos testes diagnósticos.
boratorial em diagnóstico requer o preenchimen-
to de alguns requisitos básicos. A técnica deve
possuir predicados como sensibilidade, especi- 4 Métodos de diagnóstico
ficidade, rapidez, simplicidade (ou praticidade),
reprodutibilidade, automatização e custo baixo Os métodos de diagnóstico virológico po-
(Figura 11.1). Sensibilidade refere-se à capacidade dem ser classificados em diretos e indiretos. Os
da técnica de detectar quantidades mínimas do métodos diretos são utilizados para detectar o ví-
agente ou de seus produtos. Como freqüentemen- rus, antígenos ou ácidos nucléicos virais. A detec-
te a quantidade de vírus (ou antígenos) presente ção pode ser realizada diretamente em amostras
nas amostras clínicas é muito pequena, as técni- clínicas ou após a multiplicação do agente em
cas devem ser suficientemente sensíveis para de- cultivos celulares, ovos embrionados ou animais
tectá-los. Em nível populacional, a sensibilidade susceptíveis. Os métodos indiretos detectam anti-
se refere à capacidade de detecção de um número corpos específicos contra o vírus, isto é, detectam
maior ou menor dos indivíduos que são realmen- a resposta do hospedeiro à infecção e, por isso, a
te positivos. Especificidade refere-se à capacidade sua denominação.
300 Capítulo 11

Dentre as técnicas diretas, destaca-se a mi- diagnósticos para uso em consultórios, clínicas
croscopia eletrônica (ME) que permite a visuali- veterinárias ou mesmo a campo popularizaram
zação de partículas víricas diretamente no ma- essas técnicas e ampliaram o seu uso. A detecção
terial clínico ou após a multiplicação do agente de antígenos através de métodos imunoenzimá-
em cultivo celular. Esse método é rápido e per- ticos (ELISA), imunocromatográficos e imunoblot
mite a identificação de partículas víricas viáveis (Western/dot blot) também tem se popularizado
e também inviáveis. No entanto, a técnica exige ultimamente e somaram-se à IFA e IPX como téc-
equipamento caro e pessoal altamente treinado, nicas importantes de diagnóstico.
é aplicável somente a alguns vírus e não possui Nas últimas décadas, o desenvolvimento de
boa sensibilidade. técnicas moleculares contribuiu de forma notável
O isolamento em cultivo celular (ICC) per- para o diagnóstico de enfermidades infecciosas.
manece sendo o método mais utilizado para in- Técnicas de detecção de ácidos nucléicos através
vestigar a presença de vírus em material clínico. de hibridização (Southern, Northern, dot/slot blot) e
Após a multiplicação em células de cultivo, o ví- reação da polimerase em cadeia (PCR) são mui-
rus pode ser identificado pela produção de efeito to sensíveis e específicas, permitindo uma iden-
citopático (ECP) característico ou pela detecção tificação rápida e segura do ácido nucléico viral
de antígenos ou ácidos nucléicos nas células in- em amostras clínicas. A substituição dos isóto-
fectadas, ou, ainda, por neutralização com soro pos radioativos por substâncias não-radioativas
imune específico. O ICC é um dos métodos mais para a marcação das sondas moleculares também
sensíveis de detecção de vírus, porém a demora contribuiu para a popularização e difusão dessas
na obtenção dos resultados se constitui na sua técnicas. A adaptação da PCR para o diagnóstico
principal restrição em relação a outros métodos. rápido a campo (PCR em tempo real) ampliou as
Uma das vantagens do método é a obtenção do perspectivas para o diagnóstico aplicado à inves-
vírus viável, o que permite a sua caracterização e tigação de infecções víricas de importância sani-
estudos posteriores. tária estratégica. Os métodos diretos de diagnós-
A inoculação de ovos embrionados (OE) ou de tico virológico estão apresentados na Figura 11.2
animais susceptíveis já foi amplamente utilizada
para o diagnóstico e detecção de vírus. No en-
tanto, atualmente esse método possui aplicação
restrita a poucos vírus e a algumas situações es- Tecidos
Microscopia Secreções Isolamento
pecíficas. Métodos que se utilizam da capacidade eletrônica
Excreções e identificação

hemaglutinante (hemaglutinação) ou hemadsor-


vente (hemadsorção) de alguns vírus também têm Pesquisa de Pesquisa de
sido utilizados em diagnóstico virológico, porém antígenos ácidos nucléicos
Hemaglutinação
são aplicáveis somente a um grupo restrito de
agentes.
A detecção de antígenos virais pelo uso de an-
ticorpos específicos é um dos métodos mais utili- Figura 11.2. Métodos de detecção de vírus ou produtos
zados para a detecção e identificação de vírus. A virais em amostras clínicas.
detecção pode ser realizada em amostras clínicas
(secreções, sêmen, sangue, urina, fezes etc.), te- A detecção de anticorpos antivirais no soro
cidos (obtidos por biópsia ou necropsia) ou em ou em secreções (leite, colostro) também é ampla-
células de cultivo após a multiplicação do agente. mente utilizada em técnicas de diagnóstico. Esse
As técnicas de imunofluorescência (IFA) e imuno- procedimento se constitui em método indireto,
peroxidase (IPX) têm sido amplamente utilizadas pois detecta os produtos da reação do organismo
em diagnóstico, sobretudo, pela boa sensibili- animal contra o agente. As técnicas de detecção
dade, especificidade, rapidez, custo baixo e fa- de anticorpos, também chamadas de testes soroló-
cilidade de execução. O desenvolvimento de kits gicos, possuem aplicação ampla em estudos epi-
Diagnóstico laboratorial das infecções víricas 301

demiológicos, sobretudo, quando o objetivo é a devem ser interpretados à luz dos conhecimen-
determinação da prevalência e distribuição de in- tos sobre a biologia e epidemiologia do agente e
fecções víricas em populações. Dentre as técnicas da resposta imunológica do hospedeiro. Detalhes
sorológicas, destacam-se a imunodifusão em gel sobre a interpretação dos resultados de exames
de ágar (IDGA), ELISA, soroneutralização (SN), sorológicos para diferentes vírus serão aborda-
fixação do complemento (FC) e inibição da hema- dos na seção 4.2.
glutinação (HI). Os principais métodos diretos e indiretos de
O significado da sorologia para o diagnósti- diagnóstico, com o seu princípio, propriedades,
co varia de acordo com a biologia de cada vírus. restrições e aplicações estão apresentados nas Ta-
Por isso, os resultados dos exames sorológicos belas 11.1 e 11.2, respectivamente.
Tabela 11.1. Princípios, propriedades e restrições dos principais métodos diretos de diagnóstico virológico

Método Princípio Propriedades Restrições Aplicações

Microscopia Visualização das – Rápida (poucas horas); – Equipamento caro; – Infecções entéricas
eletrônica partículas víricas – Detecta vírions viáveis e – Exige pessoal (rotavírus, coronavírus,
coradas com metais inviáveis; treinado; astrovírus);
pesados em um – Útil para vírus que não – Baixa sensibilidade; – Infecções cutâneas
microscópio replicam em cultivo; – Aplicação restrita a (poxvírus, herpesvírus).
– Pode permitir a alguns vírus.
identificação do agente.

Isolamento em Observação do efeito – Sensível; – Demorado (até semanas); – Todos os vírus que
cultivo celular citopático e/ou detecção – O agente fica disponível – Não aplicável a alguns replicam em cultivos
de produtos virais após para estudos posteriores; vírus; celulares;
a sua multiplicação em – Implementação e – Somente detecta vírus – Qualquer material clínico
células de cultivo. execução relativamente que estejam viáveis; pode ser submetido ao
simples. – Contaminação bacteriana isolamento.
e fúngica;
– Contaminação com vírus
adventícios.

Hemaglutinação Observação da – Rápida; – Aplicável ao um grupo – Aplicável aos vírus


(HA) capacidade do vírus de – Boa sensibilidade; restrito de vírus; hemaglutinantes de aves e
aglutinar eritrócitos. – Boa especificidade; – Hemaglutinação mamíferos (ver tabela no
– Fácil execução. inespecífica; capítulo 3);
– Necessidade de –Fluidos corporais,
espécies doadoras de suspensões de tecidos.
hemácias;
– Não automatizável.
Imunofluorescên- Proteínas virais são – Rápida (minutos ou – Equipamento caro (IFA); – Aplicável a qualquer vírus
cia (IFA). detectadas por poucas horas); – Reações inespecíficas para o qual se disponha de
anticorpos específicos – Simples, baixo custo; (uso de anticorpos anticorpos específicos;
Imunoperoxidase conjugados com um – Boa sensibilidade e policlonais); – Materiais: tecidos
(IPX). marcador fluorescente especificidade; – Reagentes para alguns (frescos, congelados,
(IFA) ou com uma – Detecta também vírus vírus podem não ser fixados), esfregaços
enzima (IPX). inviável; disponíveis. (sangüíneos, de secreções),
– Pode informar sobre células de cultivo.
sorotipos;
– Disponível em kits;
– Aplicável a virtualmente
todos os vírus.

Testes imunoenzi- A presença do antígeno – Simples e prática; – Não automatizável; – Aplicável a vários vírus de
máticos/cromatográ que reage com o – Disponível em kits; – Especificidade e pequenos animais;
ficos anticorpo específico – Rápida; sensibilidade podem – Kits disponíveis para uso
imobilizado ou após – Boa sensibilidade e deixar a desejar; em clínicas;
migração, é revelada especificidade. – Custo alto por amostra. – Também para alguns vírus
pela mudança de cor. de aves, suínos e bovinos.

Detecção de Ácidos nucléicos (RNA, – Específica; – Custo alto; – Aplicável a virtualmente


ácidos nucléicos DNA) do vírus são – Sensível; – Requer equipamento todos os vírus conhecidos;
(PCR, detectados por sondas – Necessita quantidades e pessoal treinado; – Pode ser realizada em
hibridização). marcadas (hibridização) mínimas da amostra; – Técnica sofisticada. qualquer amostra clínica.
ou após amplificação por – Potencialmente aplicável
reações enzimáticas a todos os vírus;
(PCR). – Rápida (PCR);
– Automatizável (PCR).

Fonte: adaptada de Murphy et al. (1999).


302 Capítulo 11

Tabela 11.2. Princípios, propriedades e restrições dos principais métodos indiretos de diagnóstico virológico

Método Princípio Propriedades Restrições Aplicações

Imunodifusão Observação de linhas – Simples execução e – Reações inespecíficas - Anemia infecciosa eqüina,
em ágar (IDGA) de precipitação no implementação; freqüentes; língua azul, leucose
ágar, produzidas pela – Custo baixo; – Sensibilidade limitada; enzoótica bovina.
formação de – Sensibilidade razoável; – Qualidade do antígeno é
complexos antígeno- – Resultados em 24-72 h. crítica;
anticorpos. – Somente qualitativa (não
permite a quantificação dos
anticorpos).

Soroneutralização Anticorpos presentes – Sensível; – Exige cultivos celulares; – Virtualmente todos os


(SN) no soro previnem a – Específica; – Implementação/execução vírus que replicam em
replicação do vírus e a – Custo reduzido; podem ser problemáticas; cultivo celular.
produção de efeito – Qualitativa (sim/não) e – Contaminação bacteriana;
citopático nos cultivos. quantitativa (título de – Toxicidade do soro;
anticorpos); – Detecta somente
– Similar à neutralização in anticorpos neutralizantes.
vivo.

ELISA Anticorpos presentes no – Rápida (2-3 h); – Requer equipamento; – Utilizada para inúmeros
soro ligam-se aos – Sensível; – Kits comerciais podem vírus;
antígenos imobilizados – Específica; ter custo alto; – Pode ser qualitativa e
em placas de poliestireno – Automatizável; – Não disponível para quantitativa;
e são detectados por – Disponível em kits; todos os vírus; – Utilizada para detectar
anti-anticorpos – Pode detectar classes – Qualidade do antígeno anticorpos totais ou
conjugados com específicas (IgG, IgM etc.). é crítica. classes específicas no
enzimas. soro ou secreções (leite);
– Variações da técnica
são disponíveis para a
detecção de antígenos.

Inibição da Anticorpos antivirais – Rápida; – Somente aplicável a – Vírus


hemaglutinação impedem a atividade – Sensível; vírus hemaglutinantes; hemaglutinantes de
(HI). hemaglutinante do vírus. – Específica; – Requer animais aves e mamíferos (ver
– Custo baixo. doadores de eritrócitos; tabela capítulo 3).
– Inibidores inespecíficos
podem dar falso positivo;
– Não-automatizável.

Fixação do A presença de anticorpos – Boa sensibilidade e – Demorada; – Já foi muito usada para
Complemento. leva à ativação do especificidade. – Trabalhosa; vários vírus, atualmente
complemento e lise de – Não automatizável; está em desuso.
eritrócitos. – Requer animais doadores
de eritrócitos.

Imunofluorescên- Anticorpos presentes no – Rápida; – Reações inespecíficas; – Já foi usada para vários
cia (IFA) para soro se ligam em – Boa sensibilidade; – Exige microscópio de UV; vírus;
anticorpos. antígenos específicos – Simples. – Pode não detectar níveis – Uso atual restrito a
imobilizados e são baixos de anticorpos; alguns vírus.
detectados por anticorpos – Não automatizável.
marcados com FITC.

Imunocromatografia A presença do anticorpo – Simples e prática; – Não automatizável; – Aplicável a vários vírus
que reage com o antígeno – Disponível em kits; – Especificidade e de pequenos animais;
é revelada pela mudança – Rápida; sensibilidade podem deixar – Kits disponíveis para uso
de cor. – Boa sensibilidade e a desejar; em clínicas;
especificidade. – Custo individual alto. – Também para alguns
vírus de aves, suínos e
bovinos.
Fonte: adaptada de Murphy et al. (1999).

4.1 Métodos diretos (morfologia, diâmetro, estrutura do capsídeo e


envelope), aliada com a sua distribuição no ma-
4.1.1 Microscopia eletrônica
terial examinado (núcleo ou citoplasma), permi-
A técnica de microscopia eletrônica (ME) te, algumas vezes, a identificação definitiva do
permite a visualização das partículas víricas em agente. Por isso, a ME constitui-se em um dos
material clínico ou após a sua amplificação em métodos mais notáveis de diagnóstico de infec-
cultivo celular (Figura 11.3). A simples observa- ções víricas. O método é particularmente útil
ção das características morfológicas dos vírions para infecções entéricas (rotavírus, coronavírus,
Diagnóstico laboratorial das infecções víricas 303

astrovírus), cutâneas (poxvírus, herpesvírus) e O diâmetro, a morfologia dos vírions e deta-


também para a identificação de vírus de difícil lhes da sua superfície são os aspectos principais
multiplicação em cultivo celular (torovírus, he- observados no diagnóstico por ME. Essas carac-
padnavírus, circovírus, alguns adenovírus, astro- terísticas variam muito entre as famílias de vírus,
vírus, coronavírus e rotavírus). mas são pouco variáveis entre vírus de um mes-

A B

C D

E F

Figura 11.3. Fotos de microscopia eletrônica de material enviado para diagnóstico virológico. A) Biópsia de pele de
glândula mamária de vacas com mamilite. Partículas típicas de herpesvírus (setas) (magnificação 60.000x); B) Células
de cultivo inoculadas com macerado de cérebro de bezerros com doença neurológica. Partículas víricas envelopadas
típicas de herpesvírus (42.000x); C) Crostas na junção mucocutânea oral de ovinos com doença vesicular-crostosa.
Partículas típicas de parapoxvírus (100.000x). D) Fezes de bezerro com diarréia. Partícula de 75-80 nm semelhante a
rotavírus (75.000x); E) Fezes de bezerro com diarréia. Partícula envelopada com aproximadamente 80 nm, sugestiva de
coronavírus (120.000x). E) Sobrenadante de cultivo inoculado com secreções nasais de bezerros com doença
respiratória. Partícula envelopada semelhante a herpesvírus (260.000x).
304 Capítulo 11

mo gênero ou espécie. No entanto, alguns vírus ção de vírus, após o seu isolamento em cultivo
são de difícil visualização e detecção através da celular, continua sendo o método direto mais
ME, devido a sua morfologia pouco definida (po- utilizado em diagnóstico virológico. Também é
dendo ser confundidos com estruturas celulares) o método mais fascinante utilizado em Virolo-
ou pela baixa concentração de partículas víricas gia, pois permite a obtenção do agente viável
no material. Isso faz com que a ME não possua para estudos posteriores. O isolamento em ovos
aplicabilidade universal. embrionados somente é aplicável para alguns
Dentre as amostras clínicas mais comumen- vírus; já o isolamento em animais de laboratório
te submetidas à ME estão o material fecal (fezes encontra-se atualmente em desuso e possui apli-
ou conteúdo intestinal), fluidos ou escaras de le- cação muito restrita.
sões cutâneas ou mucosas, tecidos coletados na
necropsia, células ou sobrenadante de cultivos
4.1.2.1 Isolamento em cultivo
previamente inoculadas com o material suspeito.
A realização de ME em tecidos de animais infec- celular
tados também pode indicar o local da célula onde
ocorre a replicação do vírus, podendo fornecer Como os vírions freqüentemente estão pre-
informações sobre a patogenia dessas infecções. sentes em pequenas quantidades no material clí-
Quando a concentração mínima requerida para a nico, a inoculação em células susceptíveis permite
visualização das partículas não é atingida (apro- a sua multiplicação para posterior identificação.
ximadamente 106 partículas virais por mL de flui- Além do uso em diagnóstico, a multiplicação de
do ou por grama do material), pode-se realizar a vírus em cultivos celulares é muito utilizada com
ultracentrifugação do material para concentrar os diversas finalidades em laboratórios de virolo-
vírions. O uso de anticorpos específicos conjuga- gia, ou seja, os cultivos celulares são instrumen-
dos com micropartículas de ouro (técnica de im- tos indispensáveis à prática virológica. A maior
munogold) aumenta a probabilidade de detecção e restrição para a utilização do isolamento com fins
visualização do agente. Como a ME requer gran- diagnósticos é o tempo necessário para se obter o
de quantidade de vírus para poder detectá-lo, resultado final – pode levar até semanas.
resultados negativos nessa técnica não indicam O ICC é aplicável a maioria dos vírus de
necessariamente a ausência de vírus na amostra. interesse veterinário e possui boa sensibilidade.
Dentre as propriedades deste método desta- O material suspeito é inoculado em células ani-
cam-se a rapidez de execução, a possibilidade de mais cultivadas in vitro e a replicação do vírus é
reconhecimento da morfologia viral (às vezes, a evidenciada pela produção de efeito citopático
identificação da família e espécie do vírus) e a pos- (ECP) ou pela detecção de proteínas ou ácidos
sibilidade de detecção de vírus viáveis e também nucléicos virais nas células inoculadas.
aqueles que eventualmente já estejam inviáveis O material enviado ao laboratório deve ser
no material submetido. A ME também é muito acompanhado de um histórico clínico que permi-
útil para detectar vírus que não replicam eficien- ta a formulação de hipóteses sobre os vírus sus-
temente em cultivo celular. As maiores restrições peitos. Isto facilita a tomada de decisão com rela-
referem-se a sua baixa sensibilidade, aplicabili- ção ao tipo de célula e da técnica utilizada para a
dade restrita a alguns vírus, equipamento caro identificação, por exemplo, em casos de doença
e necessidade de pessoal altamente treinado. A respiratória de bovinos, quatro agentes virais es-
Figura 11.3 apresenta fotografias de ME obtidas tão associados com maior freqüência: BoHV-1,
pelo exame de amostras clínicas e cultivos celula- vírus da diarréia viral bovina (BVDV), vírus da
res inoculados com o material suspeito. parainfluenza 3 (bPI-3) e vírus sincicial respira-
tório bovino (BRSV). Portanto, o procedimento a
4.1.2 Isolamento e identificação ser adotado deverá ser direcionado para a detec-
ção desses agentes. O material deverá ser inocu-
Apesar do desenvolvimento de técnicas mo- lado em cultivos celulares que sejam susceptíveis
dernas e sofisticadas de diagnóstico, a identifica- aos quatro agentes para que, se algum deles esti-
Diagnóstico laboratorial das infecções víricas 305

ver presente no material, possa se multiplicar e ser seguido da reinoculação do sobrenadante do


ser identificado. cultivo em cultivos frescos (subcultivados 18 a
A escolha das células é crítica para o sucesso 24 h antes). Cada etapa de inoculação e monito-
do procedimento. Em geral, células primárias são ramento, que leva entre 4 e 5 dias, é denomina-
mais sensíveis para o isolamento do que linha- da passagem. Para alguns vírus, previamente à
gens celulares. Apesar disso, muitos laboratórios reinoculação, recomenda-se proceder três ciclos
utilizam linhagens celulares pela facilidade de de congelamento e descongelamento rápido do
manutenção e multiplicação mais eficiente. Como material, para provocar a ruptura das células e a
regra, deve-se preferir células da espécie animal liberação dos vírions intracelulares. O material é,
de origem do material. Amostras oriundas de bo- então, centrifugado à baixa rotação, o sedimen-
vinos devem ser inoculadas em células de origem to é desprezado e o sobrenadante é inoculado
bovina, e assim por diante. Alguns vírus são es- em um novo cultivo. A maioria dos protocolos
tritamente espécie-específicos e somente se mul- recomenda a realização de três passagens antes
tiplicam em células da espécie homóloga; outros de considerar o material negativo. A necessidade
são capazes de replicar em células de diferen- da realização dessas passagens é explicada pelo
tes espécies (o BVDV, por exemplo, replica em fato de que alguns vírus de campo replicam len-
células de bovinos, ovinos, suínos, carnívoros, tamente em cultivo. Além disso, a quantidade de
primatas etc.). Poucos vírus se multiplicam bem vírus viável no material original pode ser mui-
somente em células de outras espécies. O vírus to pequena, sendo necessária uma amplificação
da síndrome respiratória e reprodutiva dos suí- substancial que permita a visualização do ECP.
nos (PRRSV) replica eficientemente em células da A replicação da maioria dos vírus animais
linhagem MARC-145, de origem primata; os her- em cultivo celular produz ECP característico do
pesvírus eqüinos são amplificados nas linhagens seu gênero ou espécie. Esses vírus são denomina-
VERO (de primatas) e RK-13 (coelho); os vírus da dos citopáticos (ou citopatogênicos, CP). Por isso,
influenza de eqüinos e humanos se multiplicam com freqüência, é possível identificar o agente
bem na linhagem MDCK (canina). Esses exem- viral pelo tipo de ECP produzido, aliado com o
plos representam exceções. As células utilizadas histórico clínico-patológico. Os ECPs produzidos
para o isolamento e multiplicação dos principais pelos principais vírus animais estão apresenta-
vírus animais e o ECP produzido por esses vírus dos na Tabela 3.3 (Capítulo 3). As características
estão apresentados na Tabela 3.3 (Capítulo 3). do ECP podem apresentar variações entre dife-
Os materiais mais freqüentemente enviados rentes isolados do vírus e entre diferentes célu-
para a detecção de vírus são fragmentos de teci- las. Alguns vírus apresentam replicação rápida e
dos (coletados em necropsias ou de fetos aborta- produzem ECP bem pronunciado e característi-
dos), secreções (leite, secreções nasais, vaginais, co. Outros replicam lentamente e produzem um
prepuciais, sêmen), fezes, conteúdo intestinal ou ECP pouco evidente e nem sempre reconhecível.
uterino, líquido de vesículas, soro e sangue inte- Quando não há a produção de ECP, ou quando
gral. Previamente à inoculação, cada material é este não é característico, é necessária a identifica-
submetido a um determinado procedimento, que ção do agente pelo uso de técnicas de detecção de
pode incluir maceração e homogeneização (teci- antígenos (IFA ou IPX). O agente detectado pela
dos); centrifugação para a remoção de sujidades produção de ECP pode também ser identificado
(secreções) ou para a separação dos leucócitos por neutralização com anti-soro específico. A
(sangue integral); ou filtração para a remoção de identificação de alguns vírus, após a produção de
bactérias e outros contaminantes (fezes, conteú- ECP, pode ser realizada também por ME. Uma
do intestinal). minoria de vírus não produz citopatologia, sen-
Os cultivos celulares são inoculados com do denominados não-citopáticos (ncp, exemplos:
o material suspeito e devem ser monitorados circovírus suíno, BVDVncp). Nesses casos, a exe-
diariamente para o aparecimento de alterações cução de técnicas de detecção de antígeno ou de
morfológicas que caracterizam o ECP. O não ácidos nucléicos é indispensável para a detecção
aparecimento de ECP ao final de 4 a 5 dias deve e identificação do agente.
306 Capítulo 11

O isolamento de vírus em cultivo a partir de 4.1.2.2 Isolamento em ovos


material clínico apresenta algumas dificuldades, embrionados
como a toxicidade do material e contaminação
bacteriana ou fúngica. A toxicidade de materiais, Os tecidos de embriões de galinha represen-
como o sêmen, pode ser reduzida pela sua dilui- tam sistemas ideais para a multiplicação de vá-
ção em meio de cultivo ou em soro fetal bovino rios vírus. Por isso, ovos embrionados têm sido
(sêmen); a contaminação das fezes pode ser mini- utilizados para o isolamento e também para o
mizada pela filtração ou por centrifugação previa- cultivo de alguns vírus de aves e de mamíferos.
mente à inoculação, além do uso de antibióticos Dependendo do vírus suspeito, o material pode
e antifúngicos no meio de cultivo. Outros fatores ser inoculado por diversas vias e em diferentes
estágios de desenvolvimento do embrião. Após
que influenciam o sucesso do ICC são: a coleta,
a inoculação, a viabilidade do embrião é monito-
conservação e remessa adequadas do material.
rada diariamente em um ovoscópio. Em caso de
Como o método detecta apenas partículas víricas
morte, realiza-se a necropsia do embrião à busca
viáveis, e, portanto, capazes de replicar em culti-
de alterações macroscópicas. A identificação do
vo, determinadas temperaturas, pH e exposição
agente pode requerer a realização de outros tes-
a condições ambientais que sejam prejudiciais
tes (hemaglutinação, detecção de antígenos e/ou
à viabilidade do agente podem afetar negativa-
ácidos nucléicos virais) em material coletado do
mente o teste. O material a ser submetido deve embrião.
ser mantido sob refrigeração (ou congelado) até a As principais propriedades desse método
submissão ao laboratório, para preservar a viabi- são: boa sensibilidade, facilidade de manipula-
lidade do vírus. As recomendações para a coleta ção e custo relativamente baixo. As maiores res-
e remessa de material para diagnóstico virológi- trições se referem à dificuldade de obtenção de
co encontram-se ao final deste capítulo. ovos embrionados livres de patógenos, contami-
O protocolo para o isolamento e identifica- nação bacteriana e/ou fúngica e impossibilidade
ção de vírus em cultivo celular está ilustrado na de automação. Além disso, a sua aplicação é res-
Figura 11.4. trita aos vírus que se multiplicam em embriões

Tecidos Antígenos virais


Órgãos

Secreções
Sêmen

Efeito citopático (ECP)


Sangue
3 - 5 dias
Inoculação
Soro
Cultivo celular
Processamento Ácidos nucléicos
Fezes
(ver texto)

Figura 11.4. Protocolo para isolamento e identificação de vírus pela inoculação em cultivo celular. As amostras são
inicialmente processadas e inoculadas em células susceptíveis aos vírus suspeitos. Os cultivos são monitorados por
alguns dias para o aparecimento de efeito citopático (ECP). Ao final da terceira passagem do material ou quando
aparecer ECP os cultivos são submetidos à identificação do agente por técnicas de detecção de antígeno ou de ácidos
nucléicos. A presença de vírus não-citopáticos deve ser monitorada por IFA ou IPX. Deve-se proceder três passagens
do material antes de considerá-lo negativo para vírus.
Diagnóstico laboratorial das infecções víricas 307

de galinha. Na Tabela 3.2 (Capítulo 3), estão lista- permitindo o diagnóstico definitivo da enfermi-
dos os vírus que replicam em ovos embrionados, dade. Os camundongos são inoculados pela via
as vias de inoculação e as alterações produzidas intracerebral com o material suspeito e monito-
nos embriões. rados por até 28 dias. A presença do vírus rábico
no material resulta no desenvolvimento de doen-
4.1.2.3 Isolamento em animais ça neurológica severa e morte entre o 8 e 21 dias
após a inoculação. A confirmação da identidade
Com o advento dos cultivos celulares, a do agente pode ser realizada por imunofluores-
inoculação de animais para o diagnóstico de in- cência do cérebro dos camundongos que morre-
fecções por vírus foi sendo gradativamente subs- ram. O protocolo padrão para o diagnóstico da
tituída. Além das questões operacionais (custo, raiva está ilustrado na Figura 11.5.
espaço, dificuldade de manutenção de animais A encefalite eqüina venezuelana (VEE), cau-
com este propósito), o uso de animais tem sido sada por um alfavírus, além de infecções neuro-
restrito por questões éticas. No entanto, esse mé- lógicas causadas por alguns flavivírus, também
todo ainda possui aplicação em alguns casos es- pode ser diagnosticadas pela inoculação intrace-
pecíficos, geralmente associados com outras téc- rebral do material suspeito em camundongos lac-
nicas de diagnóstico. Em casos suspeitos de raiva, tentes. A inoculação de camundongos também é
pesquisa-se inicialmente a presença de antígenos realizada em algumas situações para o diagnós-
em fragmentos de cérebro por IFA. Este teste é tico da febre aftosa. A inoculação de leitões tam-
seguido pela inoculação de um macerado do cé- bém tem sido ocasionalmente realizada como
rebro suspeito em camundongos lactentes (6-10 teste confirmatório da presença do PRRSV, do
dias de idade), o que constitui a prova biológica, vírus da peste suína clássica (CSFV) e da peste

Prova rápida (1 hora)

Positivo
IFD
Negativo Resultado

Doença neurológica
Morte
+
Camundongos
lactentes
Inoculação
intracerebral Sem manifestações -
Prova biológica (10-20 dias)

Figura 11.5. Protocolo para o diagnóstico de raiva animal. Impressões do cérebro do animal suspeito são submetidas à
imunofluorescência direta (IFD) para a detecção de antígenos virais. Em caso positivo, o diagnóstico é comunicado
imediatamente. Após, uma suspensão do cérebro macerado é inoculada pela via intracerebral em camundogos
lactentes, que são observados por até 30 dias. Em casos positivos, os animais apresentam sinais neurológicos severos e
morrem geralmente entre os dias 8 e 20. A ausência de manifestações clínicas e morte ao final do período indicam que
o material é negativo para vírus. A prova biológica deve ser realizada nas amostras que foram positivas na IFD e,
principalmente, nas amostras que foram negativas.
308 Capítulo 11

suína africana (ASFV). Esse método já foi utili- res da hemaglutinação contra um determinado
zado para a detecção de vários vírus, incluindo o vírus no soro de um animal indica que este já foi
BTV, vírus da estomatite vesicular (VSV), poxví- exposto ao agente.
rus ovino, entre outros. No entanto, este sistema As técnicas de HA e HI são realizadas em
tem sido gradualmente substituído por métodos tubos ou em placas de microtitulação, requerem
que não utilizam animais e que produzem resul- eritrócitos frescos (galinha, cobaias ou coelhos,
tados equivalentes ou superiores. dependendo do vírus) e permitem a obtenção
do resultado em uma a duas horas. Tanto a HA
4.1.3 Hemaglutinacão e inibição como a HI são técnicas simples, rápidas e de bai-
da hemaglutinação xo custo, possuindo boa sensibilidade e especifi-
cidade. No entanto, são aplicáveis somente aos
Alguns vírus possuem a capacidade de se
ligar a moléculas da membrana plasmática de
eritrócitos de determinadas espécies animais e
provocar a sua aglutinação. Essa atividade, de-
nominada hemaglutinação (HA), pode ser utili-
zada como indicador da presença desses vírus
+
em amostras clínicas. A hemaglutinação é o re- Amostra Eritrócitos
suspeita
sultado da ligação de glicoproteínas da super-
fície dos vírions, denominadas genericamente Incubação
hemaglutininas, com receptores da superfície dos 1 hora
eritrócitos. Os vírus que possuem essa atividade
são chamados de hemaglutinantes. A técnica de
HA tem sido muito utilizada para pesquisar e
quantificar vírus em diversos materiais, porém é
aplicável somente aos vírus que apresentam essa
propriedade biológica. Essa propriedade também
é utilizada para a pesquisa de anticorpos capazes
de inibir a hemaglutinação, na técnica sorológica
denominada inibição da hemaglutinação (HI).
Ao contrário da reação de HA, que somente
revela uma atividade biológica do vírus, a rea-
ção de HI é uma prova sorológica e, dessa forma,
pode ser empregada tanto para a identificação do
agente como para o diagnóstico sorológico de in-
fecções por esses vírus. O princípio da HI baseia-
se na capacidade de anticorpos se ligarem nas
hemaglutininas virais e inibirem a sua atividade A Amostra B Amostra
hemaglutinante. A HI realizada com um soro-pa- positiva negativa
drão conhecido frente a um material positivo re-
cém-detectado na HA possibilita a identificação Figura 11.6. Teste de hemaglutinação (HA) para
do agente. Por exemplo, a detecção de atividade demonstração de vírus hemaglutinantes em amostras
hemaglutinante em líquidos provenientes de fe- clínicas. A amostra suspeita (fluido corporal ou
macerado de tecido) é misturada e incubada com uma
tos suínos abortados indica a presença de vírus. suspensão de eritrócitos. Na presença do vírus
A inibição dessa atividade hemaglutinante com hemaglutinante, os eritrócitos aglutinam-se e se
um soro-padrão para o parvovírus suíno (PPV) depositam como uma fina camada de contorno irregular
no fundo da cavidade. Na ausência do vírus suspeito, os
indica que o agente presente nos fluidos é o PPV. eritrócitos livres rolam para o fundo da cavidade,
Por outro lado, a detecção de anticorpos inibido- formando um botão espesso de contorno bem definido.
Diagnóstico laboratorial das infecções víricas 309

vírus que possuem atividade hemaglutinante, com boa sensibilidade e especificidade. A maior
além de não serem automatizáveis. A HI pode restrição refere-se à dificuldade de automação, o
ser relativamente trabalhosa se houver a necessi- que torna trabalhosa a sua realização em um nú-
dade de pré-tratamento do soro para a remoção mero grande de amostras. Não obstante, algumas
de inibidores inespecíficos da hemaglutinação. A etapas dessas técnicas podem ser automatizadas,
dificuldade de se obter eritrócitos da espécie indi- o que reduz a dificuldade para se testar várias
cada também pode representar uma restrição ao amostras simultaneamente.
uso dessas técnicas na rotina diagnóstica. A HA As técnicas mais utilizadas para a detecção
e a HI são utilizadas para os vírus da influenza e de antígenos virais são a IFA, a IPX, os ELISAs
parainfluenza, para alguns poxvírus e togavírus, e imunocromatográficos, além dos imunoblots
picornavírus, parvovírus, reovírus e adenovírus. (Western blot, dot e slot blot). O princípio de cada
Os principais vírus que possuem atividade he- uma dessas técnicas foi descrito no Capítulo 3.
maglutinante e as espécies dos eritrócitos que são Em resumo, as proteínas virais são detectadas
aglutinados por esses vírus estão apresentados por anticorpos específicos, conjugados com subs-
na Tabela 3.1 (Capítulo 3). A Figura 11.6 apresen- tâncias indicadoras que permitam a sua detecção.
ta uma ilustração da técnica de HA. Na IFA, os anticorpos são conjugados com um
marcador fluorescente (fluoresceína), que pode
ser visualizado sob UV. No caso da IPX e ELISAs,
4.1.4 Detecção de antígenos
os anticorpos são marcados com uma enzima,
que reage com o substrato e promove a mudança
A multiplicação dos vírus nos tecidos do de cor deste ou emite luminosidade. A luminosi-
hospedeiro resulta na produção de grande quan- dade emitida pode ser detectada por aparelhos
tidade de proteínas virais. Uma parte dessas pro- (luminômetros) ou captada em filmes de raios X.
teínas – as chamadas proteínas estruturais – é Proteínas virais presentes em uma variedade de
incorporada nas partículas víricas produzidas, amostras podem ser detectadas por esses méto-
mas grande parte delas e também as proteínas dos. O desenvolvimento de kits diagnósticos para
não-estruturais permanecem nas células infec- a utilização em consultórios, clínicas ou mesmo a
tadas. Como conseqüência, os tecidos infectados campo popularizou e ampliou o uso dessas téc-
geralmente possuem uma quantidade considerá- nicas.
vel de antígenos virais. Os fluidos corporais (san- Exemplos de aplicação dessas técnicas na ro-
gue, secreções, excreções) também podem conter tina diagnóstica incluem a detecção de antígenos
células infectadas e/ou proteínas virais solúveis. virais em impressões de cérebro (raiva, BoHV-5,
A detecção desses antígenos pelo uso de anticor- cinomose); em células descamativas em secreções
pos específicos é um dos métodos mais utilizados nasais (BoHV-1, BoHV-5, BRSV, BVDV, vírus
no diagnóstico de infecções víricas. A disponibi- da cinomose [CDV]), em esfregaços sangüíneos
lidade de anticorpos para virtualmente todos os (BVDV); conjuntivais (CDV) e genitais (PRRSV,
vírus de interesse veterinário possibilita a apli- BoHV-1). Esses testes são realizados em secções
cação universal desse método. Além do uso em ou impressões de tecidos, em células imobilizadas
diagnóstico, as técnicas de detecção de antígeno em placas de cultivo ou em lâminas histológicas. A
possuem uma ampla aplicabilidade em diversas detecção de antígenos virais em cortes histológicos
áreas da Virologia. possui uma grande aplicação para estudos retros-
A complementaridade química entre os an- pectivos, pois as proteínas previamente fixadas e
ticorpos e determinantes antigênicos e exclusivos incluídas em parafina preservam a sua estrutura
de cada espécie de vírus confere a especificida- antigênica por longos períodos. Nesses casos, uti-
de do método. Várias técnicas que utilizam este liza-se a técnica de IPX, associada com protocolos
princípio foram desenvolvidas e são utilizadas para a recuperação/renaturação dos antígenos
na rotina de laboratórios de virologia. Em geral, e com sistemas de amplificação do sinal emitido
são técnicas simples, rápidas, de custo baixo e (sistema avidina-biotina).
310 Capítulo 11

Outra importante aplicação desse método é a que facilita o diagnóstico pelo teste simultâneo de
detecção e identificação de antígenos após a mul- um número grande de amostras. Essa técnica tem
tiplicação do vírus em cultivos celulares. A confir- apresentado grande aplicação em programas de
mação da identidade do agente é importante para controle e erradicação dessa enfermidade na Euro-
os vírus que produzem citopatologia pouco carac- pa e América do Norte. Também tem sido utiliza-
terística e, principalmente, para aqueles que não da para identificar rebanhos positivos, através do
produzem ECP. Nesses casos, a detecção das pro- teste de amostras de leite coletadas na indústria.
teínas virais nos cultivos se constitui no indicador Antígenos do BLV e de outros retrovírus (CAEV,
da presença do agente no material suspeito. EIAV) também podem ser detectados no sangue
Para a pesquisa de antígenos em fluidos (san- por técnicas imunoenzimáticas ou por imunoblots.
gue, sêmen, secreções nasais), podem ser utilizadas A Figura 11.7 lista os métodos diretos de detecção
técnicas imunoenzimáticas (ELISA), imunocroma- de antígenos virais em amostras clínicas.
tográficas e imunoblot. As técnicas imunoenzimá- O princípio dos métodos cromatográficos e
ticas do tipo ELISA possuem diversas variações imunoenzimáticos foi utilizado para o desenvol-
(detecção de antígenos e anticorpos – ver Capítu- vimento de testes aplicáveis em clínicas e consul-
lo 3), são geralmente muito sensíveis, específicas tórios. Vários testes para a detecção de antígenos
e automatizáveis, permitindo o teste simultâneo e também de anticorpos, sob a forma de kits, estão
de um número grande de amostras. Possuem es- disponíveis comercialmente. São testes rápidos
pecial aplicação para o diagnóstico em rebanhos. (15-30 min), de execução simples e geralmente
Um exemplo desse uso é a triagem de rebanhos à possuem boa sensibilidade e especificidade. Den-
busca de animais persistentemente infectados pelo tre os testes disponíveis em kits para a detecção de
BVDV. Existem kits comerciais para a detecção de antígenos se incluem aqueles para a detecção dos
antígenos do BVDV no soro sangüíneo, no leite ou parvovírus canino (CPV) e felino (FLPV) em fe-
em biópsias de pele. Os fragmentos de pele, geral- zes; rotavírus tipo A em fezes de bovinos, suínos
mente coletados da orelha, podem ser submetidos e caninos; vírus da raiva na saliva ou no encéfalo
à IPX ou a ensaios imunoenzimáticos em placas, o de cães, bovinos e de furões; vírus da leucemia

Material

Secreções
Tecidos
Sangue
Órgãos
Excreções

Fluidos Células Fresco Congelado Parafinizado

– ELISA – IFA – IFA – IFA - IFA


– Imunoblot – IPX – IPX – IPX - IPX
– Cromatografia – Imunoblot – Imunoblot
– Cromatografia

Figura 11.7. Técnicas de detecção de antígenos virais em amostras clínicas.


Diagnóstico laboratorial das infecções víricas 311

felina (FeLV) no sangue, plasma ou soro; vírus Essas técnicas foram desenvolvidas a partir da
da gastrenterite transmissível (TGEV) em fezes década de 1980 e tiveram um impacto notável na
de suínos; vírus da influenza aviária em fezes de pesquisa e no diagnóstico de inúmeras doenças
aves; coronavírus em fezes de bovinos e caninos; humanas e animais. A sua versatilidade e a apli-
CDV em secreções nasais, conjuntivais ou urina cabilidade praticamente universal resultaram em
de cães, entre outros. A grande vantagem desses rápida difusão e adoção como técnicas preferen-
testes é a realização in loco, como suporte à inves- ciais de diagnóstico em inúmeros laboratórios. O
tigação clínica, ou seja, paralelamente ao exame princípio das técnicas de hibridização (Southern e
clínico, o veterinário pode recorrer ao exame la- Northern blot, dot/slot blot) foi utilizado e ampliado
boratorial para dar suporte ao seu diagnóstico. O para o desenvolvimento da técnica de PCR, uma
custo individual dos testes é relativamente alto, o técnica altamente específica que é capaz de de-
que restringe o seu uso em nível populacional. tectar quantidades mínimas do genoma viral em
A técnica de radioimunoensaio (RIA) já teve amostras clínicas. A universalidade de aplicações
importante aplicação na detecção e diagnóstico do PCR foi ampliada e adaptada para detecção
de vírus, mas, atualmente, encontra-se em desu- rápida e possibilidade de quantificação do ácido
so, pela disponibilidade de outras técnicas equi- nucléico presente na amostra (PCR em tempo
valentes e que não requerem o uso de marcadores real). Por outro lado, as técnicas de hibridização
radioativos. Assim, possui aplicação restrita e es- in situ (ISH) e PCR in situ, que se constituem em
pecífica em algumas situações. A aglutinação em variações das técnicas originais, possuem aplica-
látex, técnica de execução simples que se popu- ção restrita em diagnóstico, sendo mais utilizadas
larizou no diagnóstico de gestação em mulheres, em pesquisa e em estudos de patogenia.
tem sido difundida em kits para uso no diagnósti- Quando a amostra clínica contém uma de-
co de viroses de pequenos animais. No entanto, a terminada quantidade do ácido nucléico viral,
sua rapidez e simplicidade são contrabalançadas pode-se detectá-lo pelas técnicas de hibridização,
por problemas de sensibilidade e especificidade. utilizando-se sondas moleculares marcadas com
Em geral, protocolos que resultem em au- isótopos radioativos ou com enzimas. Quando a
mento de sensibilidade, especificidade e permi- quantidade de ácidos nucléicos é muito pequena
tam maior facilidade de execução têm sido con- para ser detectada diretamente, a técnica de PCR
tinuamente desenvolvidos. Com isso, técnicas pode ser utilizada para multiplicar/amplificar o
modificadas e aperfeiçoadas – a maioria delas número de moléculas presentes na amostra.
baseada em princípios já bem estabelecidos – têm As técnicas de detecção de ácidos nucléicos
sido continuamente incorporadas aos métodos podem ser utilizadas para detectar DNA e RNA
tradicionais de detecção de antígenos. e são aplicáveis a qualquer vírus, desde que se
conheçam algumas seqüências do seu genoma.
4.1.5 Detecção de ácidos nucléicos Atualmente, as seqüências genômicas parciais ou
totais de virtualmente todos os vírus de interesse
A multiplicação dos vírus nos tecidos do veterinário encontram-se disponíveis em bancos
hospedeiro resulta na produção de grande quan- genômicos acessíveis via Internet. Da mesma for-
tidade de ácidos nucléicos virais, incluindo RNA ma, existe uma variedade de softwares destinados
mensageiro (mRNA), RNAs intermediários (ví- ao desenho de primers e sondas utilizando essas
rus RNA), além do RNA e DNA genômicos. Por- seqüências.
tanto, os tecidos infectados e fluidos corporais e As técnicas moleculares podem ser utiliza-
excreções freqüentemente contêm quantidades das para detectar ácidos nucléicos virais em ma-
consideráveis de ácidos nucléicos de origem terial clínico de qualquer natureza, incluindo te-
viral. A detecção desses ácidos nucléicos, com cidos, sangue (soro/plasma), células sangüíneas,
base na especificidade das seqüências e na com- secreções (leite, saliva, secreções nasais, urina,
plementaridade de bases, constitui-se no funda- sêmen), descamações cutâneas, entre outros. Po-
mento das técnicas moleculares de diagnóstico. dem também ser utilizadas para detectar o geno-
312 Capítulo 11

ma viral em cultivos celulares previamente ino- tanto os vírus RNA como os vírus DNA neces-
culados com o material suspeito. Essas técnicas sitam da produção de RNAs durante a sua re-
possuem especial utilidade para detectar quanti- plicação. O dot/slot blot são versões simplificadas
dades muito pequenas do material genético; para dessas técnicas, nas quais o ácido nucléico é de-
vírus que não multiplicam com eficiência em tectado diretamente na membrana, sem a separa-
cultivo celular e também para detectar o agente ção prévia por eletroforese.
já inativado em amostras inadequadamente con-
servadas. Também possuem aplicação especial 4.1.5.2 Reação da polimerase
para a detecção de infecções latentes, nas quais em cadeia
o genoma do vírus permanece inativo nas células
do hospedeiro. A PCR é uma técnica de amplificação de
A seguir será dado enfoque para a utilização ácidos nucléicos que, quando utilizada com fins
das técnicas de detecção de ácidos nucléicos com diagnósticos, permite a detecção e identificação
fins diagnósticos. de quantidades mínimas do material genético do
agente suspeito. Pode ser aplicada em qualquer
4.1.5.1 Hibridização (Southern/Northern material clínico que, potencialmente, contenha o
blot) agente ou o seu ácido nucléico. Possui aplicabili-
dade universal, ou seja, pode ser realizada para
Para a detecção por hibridização, os áci- qualquer vírus, desde que se disponha de suas
dos nucléicos devem ser inicialmente extraídos seqüências nucleotídicas. As principais vanta-
da amostra clínica e, posteriormente, imobiliza- gens da técnica são: a) sensibilidade (pode detec-
dos em membranas. A detecção é realizada por tar mínimas quantidades do agente); b) especi-
sondas moleculares específicas – que são seqüên- ficidade (altamente específica para o agente); c)
cias de nucleotídeos complementares às do ácido rapidez (pode ser realizada em poucas horas); d)
nucléico do agente pesquisado. A especificidade universalidade (pode ser aplicada para qualquer
da reação deve-se à especificidade e complemen- vírus); e) pode ser realizada em quantidades mí-
taridade do pareamento de bases. Para permitir a nimas da amostra; f) é capaz de detectar também
detecção, as sondas são conjugadas com isótopos vírus que já esteja inviável; g) pode ser adapta-
radioativos ou com enzimas. Esses marcadores da para detectar vários subtipos do mesmo vírus
são, então, detectados pela captação da radiação ou vírus diferentes em uma mesma reação (PCR
emitida (marcação radioativa) ou pela observa- multiplex); h) pode ser padronizada para aumen-
ção da ação enzimática em substratos. Dentre tar a sensiblidade e especificidade (nested PCR); i)
as vantagens dessas técnicas, destacam-se a boa pode ser utilizada para detectar ácidos nucléicos
sensibilidade, especificidade e relativa rapidez em tecidos incluídos em parafina (útil em estu-
na obtenção dos resultados. São aplicáveis a dos retrospectivos) ou j) pode ser realizada em
qualquer agente infeccioso desde que se conheça amostras conservadas de forma imprópria para a
parte da seqüência do genoma; e podem ser exe- realização de outras técnicas.
cutadas em vários tipos de material clínico. As O custo dos testes tem se reduzido ao longo
suas restrições referem-se principalmente à ne- do tempo e já não representa uma restrição im-
cessidade de equipamentos e tecnologia, além de portante para o diagnóstico. Dentre as restrições
serem técnicas relativamente recentes e, por isso, se incluem o risco de contaminação e a produção
ainda não assimiladas por muitos laboratórios. de resultados falso-positivos; a necessidade de se
A técnica de hibridização para a detecção utilizar substâncias tóxicas para extrair os ácidos
de DNA, após a sua separação por eletroforese, nucléicos, necessidade do aparelho termociclador
denomina-se Southern blot. É aplicável para a de- (pode ser limitante para laboratórios pequenos) e
tecção de vírus com genoma DNA. A detecção de dificuldades na padronização.
RNA por um método equivalente é denominada Pela suas vantagens, essa técnica tem sido
Northern blot. É aplicável a qualquer vírus, pois padronizada e utilizada para o diagnóstico de
Diagnóstico laboratorial das infecções víricas 313

inúmeras viroses. Possui especial aplicação para processadas e rapidamente testadas, fornecendo
a detecção de quantidades pequenas de ácido nu- o resultado ainda na propriedade. Termociclado-
cléico, quando outras técnicas são incapazes de res portáteis, acoplados a microcomputadores,
fazê-lo. É muito útil para a detecção de bovinos têm sido desenvolvidos com essa finalidade. Essa
portadores do BoHV-1 e BoHV-5 e de suínos por- estratégia pode ser muito útil na investigação de
tadores do PRV em programas de erradicação; surtos de doenças de importância sanitária estra-
e também para a detecção de vários vírus no sê- tégica, como a febre aftosa, peste suína clássica,
men ou em secreções. Pode ser aplicada em fases influenza aviária, entre outras. Nesses casos, a
precoces da infecção, para detectar vírus difíceis investigação clínica e epidemiológica no rebanho
de se isolar e quando ainda não há indicadores pode já ser acompanhada do diagnóstico definiti-
sorológicos. Ou seja, a PCR encontra aplicação vo, o que agiliza a tomada de decisões e a adoção
em todas as situações em que exista a necessida- de medidas para o controle da infecção.
de de se detectar especificamente um agente viral
em material suspeito. Também possui um amplo
espectro de aplicação em várias áreas da Biologia
4.1.5.4 Hibridização in situ/ PCR in situ
e Medicina, constituindo-se em uma das técnicas
mais úteis e de maior impacto nas Ciências Bio- A técnica de hibridização in situ (ISH) é uma
lógicas. técnica de detecção de ácidos nucléicos, a exemplo
do Southern e Northern blot. A diferença fundamen-
4.1.5.3 PCR em tempo real tal é que a ISH é realizada em cortes histológicos
e os ácidos nucléicos são detectados diretamente
A técnica tradicional de PCR envolve as eta- nos tecidos. Além da boa sensibilidade e especi-
pas de extração do ácido nucléico, amplificação ficidade, essa técnica permite a identificação das
e detecção do produto amplificado. O procedi- células infectadas. Em razão disso, a ISH é muito
mento integral pode demandar várias horas até a utilizada em estudos de patogenia de infecções
obtenção do resultado. Da mesma forma, a quan- víricas. Também permite a detecção de vírus em
tidade de ácido nucléico presente na amostra ori- tecidos conservados por longo tempo em blocos
ginal é de difícil quantificação. Nos últimos anos, de parafina ou em lâminas histológicas, possibili-
foi desenvolvida a técnica de PCR em tempo real, tando estudos retrospectivos. As suas aplicações
na qual as etapas de amplificação podem ser diagnósticas, no entanto, são restritas, sobretudo,
monitoradas à medida que vão ocorrendo, pela pela sua complexidade, necessidade de pessoal
utilização de sondas marcadas com substâncias treinado e tempo requerido para a sua execução.
indicadoras que são liberadas a cada ciclo de am- Em geral, as técnicas de imunoistoquímica (IHC)
plificação. O sinal emitido a cada ciclo é, então, têm substituído a ISH com fins diagnósticos. Em
captado e quantificado por um software acoplado alguns casos, especialmente quando a má conser-
a um microcomputador. Isso permite o acompa- vação dos antígenos virais nos tecidos prejudica
nhamento da reação e a visualização do acúmulo o reconhecimento das proteínas virais pelos anti-
dos produtos à medida que são produzidos, isto corpos, a ISH pode substituí-la com vantagens.
é, o resultado pode ser obtido bem antes do final A técnica de PCR in situ também é realizada
da reação, o que reduz significativamente o tem- em cortes de tecidos, e a amplificação dos ácidos
po de realização. Além de abreviar o tempo da nucléicos virais pode ser detectada diretamente
reação, não é necessário analisar os produtos por nas células infectadas. A exemplo da ISH, essa
eletroforese em géis de agarose. Essa técnica tam- técnica possui aplicação restrita em diagnóstico,
bém permite a quantificação dos ácidos nucléicos sobretudo, pela sua complexidade e requerimen-
presentes na amostra. A técnica de PCR em tem- to de equipamento específico. Possui algumas
po real tem sido também adaptada para a realiza- aplicações em estudos de patogenia e biologia de
ção a campo, na qual as amostras são coletadas, determinadas infecções víricas.
314 Capítulo 11

4.2 Métodos indiretos – diagnóstico monitoramentos de rebanhos. Testes sorológicos


sorológico também são utilizados para se verificar a condi-
ção imunológica de rebanhos e para avaliar o po-
A detecção de anticorpos no soro é muito tencial imunogênico e a cobertura conferida por
utilizada com fins diagnósticos em Virologia. As vacinas.
infecções víricas induzem uma resposta imuno- Os resultados dos exames sorológicos reali-
lógica específica, mediada por anticorpos (além zados em cada situação devem ser interpretados
de células), que persiste por um tempo variável e à luz de conhecimentos sobre a biologia e respos-
que pode ser detectada por diversas técnicas. Os ta imunológica a cada vírus. Testes sorológicos
anticorpos produzidos contra um determinado realizados em uma amostra única podem ter sig-
vírus são estritamente específicos para este agen- nificados diferentes, dependendo do vírus. Para
te. Por isso, as técnicas de detecção de anticorpos os vírus que produzem infecções agudas autoli-
são também específicas, permitindo distinguir a mitantes – que constituem a maioria –, o resul-
resposta sorológica produzida contra vírus dife- tado positivo em um teste isolado indica apenas
rentes. Da mesma forma, as técnicas sorológicas exposição prévia ao agente (ou vacinação). Em
podem ser altamente sensíveis, capazes de de- populações, resultados positivos em uma amos-
tectar quantidades mínimas de anticorpos e de tragem única podem indicar a circulação prévia
identificar quase a totalidade dos animais que ou atual do agente na população. Em alguns ca-
os possuem. Variações dessas técnicas permitem sos, a quantificação dos anticorpos pode indicar
não só a detecção, mas também a quantificação se a exposição foi recente ou remota. Para infec-
dos anticorpos presentes no soro. Os níveis de ções cuja resposta humoral é de curta duração,
anticorpos são geralmente expressos como tí- a detecção de altos títulos de anticorpos indica
tulos, que representam a recíproca da maior di- uma exposição recente ao agente. Para os vírus
luição do soro, na qual os anticorpos – ou o seu que estabelecem infecções persistentes (todos os
efeito – podem ser detectados. Algumas técnicas retrovírus) e latentes (herpesvírus), um teste so-
são também automatizáveis, permitindo o teste rológico positivo indica a condição de portador.
de um número grande de amostras simultanea- Em monitoramentos sorológicos da febre aftosa,
mente, sendo muito úteis para estudos de reba- a detecção de anticorpos reagentes no teste VIA
nhos. As técnicas de detecção de anticorpos são indica que houve infecção, e não vacinação. Ao
denominadas genericamente técnicas sorológicas, se interpretar o resultado de um teste sorológico
e a análise da resposta sorológica a antígenos é deve-se considerar também a possibilidade dos
denominada genericamente sorologia. anticorpos detectados terem sido adquiridos pas-
Os testes sorológicos possuem aplicações sivamente (via placenta e/ou colostro) ou terem
tanto individuais como em rebanhos ou em po- sido induzidos por vacinas.
pulações. O seu uso individual, como método au- A sorologia também pode ser utilizada
xiliar à investigação clínica, possui repercussão como método auxiliar à clínica, em investigações
limitada. No entanto, a detecção de anticorpos de eventos de doença isolada ou em grupos de
possui aplicações importantes na identificação animais. Nesses casos, podem-se adotar duas es-
de animais portadores de alguns vírus, na detec- tratégias: a realização de sorologia pareada ou
ção de infecção intra-uterina e na identificação da a detecção de IgM específica para o agente sus-
fase aguda de algumas viroses. Por outro lado, peito. A sorologia pareada deve ser realizada
o seu uso populacional pode apresentar uma re- com duas amostras coletadas com intervalo de
percussão sanitária mais importante, por permi- duas a três semanas (uma durante a fase aguda
tir o conhecimento sobre a situação da infecção e a outra na fase de convalescença). Um aumento
e, ao mesmo tempo, indicar a necessidade e/ou de quatro vezes ou mais no título de anticorpos
viabilidade de programas de combate. As técni- entre as coletas – denominado soroconversão – é
cas sorológicas têm aplicação especialmente rele- um indicativo de que a doença foi causada pelo
vante em estudos epidemiológicos, em triagens e agente sob investigação. A detecção de IgM espe-
Diagnóstico laboratorial das infecções víricas 315

cífica para o vírus suspeito em amostras únicas, implementação pode ser avaliada comparando-
coletadas durante a fase aguda, também permite se os seus resultados com os resultados de um
o diagnóstico da infecção. Nesse caso, um único teste padrão (gold standard). A especificidade de um
teste já é suficiente para o diagnóstico, pois os teste sorológico é medida pelo percentual de ani-
níveis séricos de IgM só se encontram aumenta- mais negativos (sem anticorpos) que são conside-
dos durante a infecção aguda. Essa estratégia tem rados positivos no teste. Uma técnica sorológica
sido utilizada no diagnóstico de várias viroses para ser utilizada em diagnóstico deve resultar
(hantavirose, infecção pelo vírus Junin, dengue, em um número mínimo de falso-negativos (boa
encefalites eqüinas pelos togavírus – encefalite sensibilidade) e mínimo de falso-positivos (boa
eqüina venezuelana, VEE, por exemplo – e pelo especificidade). A sensibilidade e especificidade
vírus do Nilo Ocidental [WNV]) e encontra apli- são propriedades intrínsecas de cada teste soroló-
cabilidade especial para os vírus que produzem gico e podem variar entre as diferentes técnicas.
viremia transitória e cujo isolamento é difícil. No O valor preditivo positivo mede a probabilidade
caso da VEE, a detecção de IgM por um teste ELI- de resultados positivos no teste serem realmente
SA é o método mais utilizado para o diagnóstico positivos; o valor preditivo negativo é um indi-
da infecção aguda. cador da probabilidade de resultados negativos
A realização de testes sorológicos em ani- serem realmente negativos.
mais recém-nascidos, no soro coletado previa- A Figura 11.8 ilustra a utilização de técnicas
mente à ingestão de colostro, é um indicativo de sorológicas para o diagnóstico de infecções víri-
infecção intra-uterina. Testes sorológicos também cas.
são úteis para monitorar os níveis de imunidade
adquiridos passivamente pela placenta ou pelo
colostro.
De acordo com o seu princípio, as técnicas
Soro
sorológicas podem ser divididas em três grupos: Plasma
a) técnicas que detectam diretamente a interação Secreções
entre os anticorpos com os antígenos virais (RIA,
ELISA, imunoblots, IFA, IPX); b) técnicas em que
a interação anticorpo-antígeno resulta em efeitos
não relacionados com o vírus (fixação do com-
Pesquisa de
plemento, aglutinação em látex) e c) técnicas que anticorpos
mensuram diretamente a capacidade dos anticor-
pos de bloquear ou alterar alguma atividade bio- – Imunodifusão
lógica do vírus (SN, HI). Algumas dessas técnicas – ELISA
– Soroneutralização
também estão amplamente difundidas e popula- – Inibição da hemaglutinação
rizadas, estando disponíveis em kits para uso em – Fixação do complemento
clínicas e consultórios veterinários. – Imunoblots
– Imunocromatografia
Ao se padronizar uma técnica sorológica – Aglutinação em látex
para um determinado agente, deve-se considerar – Imunofluorescência
– Radioimunoensaio
e avaliar as seguintes propriedades: sensibilida-
de, especificidade, valores preditivo positivo e
negativo. A sensibilidade se refere ao percentual Figura 11.8. Técnicas utilizadas para a pesquisa de
de animais que possuem anticorpos e que são anticorpos antivirais no soro ou em secreções.
detectados pelo teste. Individualmente, a sen-
sibilidade depende da capacidade do teste em
detectar quantidades mínimas de anticorpos. A A seguir, estão descritas as principais técni-
sensibilidade de um teste em padronização ou cas sorológicas, seus princípios e aplicações:
316 Capítulo 11

4.2.1 Imunodifusão em ágar 4.2.2 Soro-neutralização

O princípio da imunodifusão em gel de ágar O teste de soro-neutralização (SN) é utiliza-


(IDGA) é insolubilização e precipitação de com- do para se detectar anticorpos que possuem ca-
plexos formados pela reação antígeno-anticorpo. pacidade de neutralizar a infectividade do vírus.
Esses complexos podem ser visualizados sob a O teste é geralmente utilizado com soro sangüí-
forma de linhas de precipitação no gel de agaro- neo, mas pode ocasionalmente utilizar outros
se (Figura 11.9). A IDGA é uma técnica simples, fluidos corporais que possuam anticorpos. Nesse
de custo baixo, possui boa sensibilidade e espe- teste, examina-se o soro suspeito frente a um ví-
cificidade. Pela sua simplicidade e praticidade, rus-padrão previamente conhecido e quantifica-
pode ser implementada em qualquer laboratório. do. O teste é realizado em microplacas de 96 cavi-
Foi inicialmente desenvolvida para a detecção dades, nas quais se incubam diluições crescentes
de antígenos, mas a sua maior aplicação atual
do soro-teste com uma quantidade constante do
é como teste sorológico. É particularmente útil
vírus (geralmente 100-200 DICC50 por cavidade)
para inquéritos sorológicos de grandes popula-
por um determinado tempo. Após esse período,
ções animais, sobretudo, pela sua praticidade e
durante o qual os anticorpos presentes no soro se
custo baixo. Essa técnica tem sido utilizada para
ligam e neutralizam o vírus, são adicionadas as
o diagnóstico sorológico de várias viroses, mas
células de cultivo. As placas, contendo a mistura
possui aplicação particular para o vírus da EIAV
soro-vírus-células, são incubadas a 37ºC em at-
(teste de Coggins), BLV, BTV, doença de Gum-
mosfera com 5% de C02 por 48 a 96 h. A presença
boro e bronquite infecciosa aviária. A IDGA se
constitui no teste oficial de diagnóstico da infec- de anticorpos neutralizantes na diluição testada
ção pelo EIAV, BLV e BTV em vários países. As previne a produção de ECP pelo vírus nos culti-
suas maiores restrições referem-se a problemas vos (Figura 11.10). O aparecimento de ECP indica
de sensibilidade (pode não detectar níveis baixos a ausência de anticorpos neutralizantes suficien-
de anticorpos), especificidade (reações inespecífi- tes para neutralizar o vírus, na respectiva dilui-
cas), repetibilidade e tempo para a obtenção dos ção. Os cultivos podem ser corados com cristal
resultados (até 72 horas). violeta para facilitar a leitura dos resultados. Os

Soro-teste Antígeno-padrão

Reação antígeno-anticorpo

Figura 11.9. Técnica de imunodifusão em gel de ágar (IDGA). O antígeno padrão é depositado no orifício central e as
amostras-teste são colocadas nos orifícios periféricos da roseta perfurada na camada de ágar. Durante as 48-72 h de
incubação, antígeno e anticorpos se difundem radialmente a partir dos respectivos orifícios. O encontro entre
antígenos e anticorpos resulta em precipitação e formação de uma linha opaca no local. A formação desta linha indica
que a amostra é positiva para anticorpos contra o antígeno específico.
Diagnóstico laboratorial das infecções víricas 317

tapetes íntegros (pela presença de anticorpos que Dentre as técnicas sorológicas, o princípio da
preveniram a replicação viral) se coram em azul; SN é o que mais se assemelha às interações entre
a ausência de coloração indica a destruição do ta- anticorpos e vírus que ocorrem in vivo. A neutra-
pete celular pela atividade do vírus (ausência de lização viral reflete uma atividade dos anticorpos
anticorpos). Dependendo do objetivo, o teste de com maior significado biológico. Por isso, a SN é
SN pode ser realizado para a obtenção de resul- uma das técnicas sorológicas mais utilizadas em
tado qualitativo (positivo/negativo) ou quantita- Virologia. Como a neutralização de um determi-
tivo (título de anticorpos). No teste qualitativo, nado vírus só ocorre por anticorpos específicos
testa-se apenas uma diluição do soro; no teste contra ele, essa técnica é altamente específica. A
quantitativo, testam-se várias diluições. SN também possui boa sensibilidade. As maiores
restrições referem-se à necessidade de cultivos
celulares (possibilidade de contaminação bacte-
riana e fúngica, toxicidade do soro), tempo para
obtenção dos resultados (até uma semana) e a di-

+ ficuldade de automação. A SN possui aplicação


potencial para qualquer vírus que replique bem
em cultivo celular, mas possui aplicação prefe-
rencial para determinados vírus, tais como: o
Soro-teste Vírus-padrão
BoHV-1, BVDV, bPI-3, BRSV, vários adenovírus,
CDV, coronavírus canino (CCoV), PRV, adenoví-
Incubação rus canino (CAdV), calicivírus felino, herpesvírus
(2 - 24 h)
eqüinos (EHV), entre outros.

4.2.3 Inibição da hemaglutinação

A detecção de anticorpos capazes de inibir


a atividade hemaglutinante de alguns vírus tem
Inoculação sido muito utilizada no diagnóstico virológico. A
em cultivo
técnica de detecção é denominada HI e foi des-
crita na seção 4.1.3. Resumidamente, o soro-tes-
te (puro ou em diluições crescentes) é incubado
com uma quantidade predeterminada do vírus
2-4 dias
padrão em questão (4 ou 8 unidades hemagluti-
nantes) por uma hora, seguido da adição de uma
ECP - ECP + suspensão de eritrócitos de uma determinada es-
Soro positivo Soro negativo pécie animal, e outra incubação de 1-2 horas. Ao
final procede-se a leitura: a presença de anticor-
pos contra o vírus padrão impede a sua atividade
Figura 11.10. Técnica qualitativa de soro-neutralização hemaglutinante, e os eritrócitos rolam formando
para a detecção de anticorpos antivirais. Cada soro um botão circular de borda bem definida no fun-
suspeito – geralmente diluído 1:2 ou 1:10 – é incubado
por 2-24 h com uma quantidade constante do vírus em do da cavidade da placa. A ausência de anticor-
questão. A seguir, são adicionadas células em suspensão pos resulta na atividade hemaglutinante do ví-
a cada cavidade que contém a mistura soro + vírus. As rus, provocando a aglutinação dos eritrócitos e a
placas são incubadas em estufa de CO2 por 72-96 h e,
então, examinadas sob microscopia ótica para a presença sua precipitação, formando uma camada difusa,
de efeito citopático (ECP). A presença do tapete íntegro recobrindo todo o fundo da cavidade da placa.
indica neutralização viral (amostra positiva para A incubação de diferentes diluições do soro per-
anticorpos). A produção de ECP indica ausência de
anticorpos neutralizantes (amostra negativa para mite a quantificação dos anticorpos inibidores da
anticorpos). hemaglutinação. A maior diluição do soro capaz
318 Capítulo 11

de prevenir a hemaglutinação é denominada tí- 4.2.4 ELISA


tulo inibidor da HA. A técnica de HI está repre-
sentada esquematicamente na Figura 11.11. Os testes do tipo ELISA (enzyme-linked immu-
nosorbent assay) são realizados em microplacas de
poliestireno de 96 cavidades e utilizam anticor-
pos marcados com enzimas (peroxidase ou fosfa-
tase alcalina). Embora tenham sido originalmen-

+ te planejados para a detecção de antígenos (pela


ligação específica de anticorpos marcados), a sua
Vírus-padrão
maior utilização atual tem sido para a detecção
Soro-teste hemaglutinante de anticorpos. Desde a sua descrição inicial, em
1971, essa técnica tem tido uma aplicação notá-
Incubação
1 hora vel nas diversas áreas da pesquisa e diagnóstico
em Biologia. A sua adaptação para uso como tes-
te sorológico literalmente revolucionou o campo
do diagnóstico e controle de infecções humanas e
animais. A técnica possui muitas variações, cujas
Adição de aplicações são indicadas para casos específicos.
eritrócitos
Como técnica sorológica, tem sido utilizada para
a detecção de anticorpos contra praticamente
todos os vírus de interesse veterinário, por isso
a sua enumeração se faz desnecessária. No en-
tanto, a sua aplicabilidade e utilidade não são
as mesmas para todos os vírus, principalmente
Incubação
1 hora por questões relacionadas à pureza do antígeno e
ocorrência de reações inespecíficas, entre outras.
Pode ser utilizada individualmente ou em reba-
nhos, constituindo-se em uma técnica de grande
aplicação em estudos epidemiológicos e progra-
mas de combate a viroses em grandes popula-
ções. Também tem sido usada para a detecção
de anticorpos no leite, como forma de identificar
rebanhos positivos para determinados vírus. As
principais vantagens da técnica incluem a espe-
cificidade, sensibilidade, rapidez (resultados em
Amostra Amostra 2-3 horas), custo relativamente baixo, praticidade
negativa positiva e capacidade de automação (em uma placa po-
dem ser testadas 96 amostras). Geralmente pro-
duz resultados qualitativos (positivo/negativo),
Figura 11.11. Teste de inibição da hemaglutinação (HI).
O soro suspeito é incubado com o vírus padrão, que
mas pode ser adaptada para uma avaliação semi-
possui atividade hemaglutinante. Após 1-2h, é quantitativa dos anticorpos. A técnica pode ser
adicionada uma suspensão de eritrócitos, seguida de adaptada também para a detecção de isotipos es-
outra incubação. A ocorrência de hemaglutinação
(camada difusa de eritrócitos no fundo da cavidade)
pecíficos de imunoglobulinas (IgG, M, E), sendo
indica a ausência de anticorpos inibidores da particularmente útil no diagnóstico de algumas
hemaglutinação no soro-teste. A formação de um botão infecções víricas agudas (p. ex: dengue, hantavi-
de eritrócitos no fundo do poço indica a inibição da
atividade hemaglutinante do vírus por anticorpos rose, infecção pelo vírus Junin, WNV, encefalites
presentes no soro. eqüinas), nos quais os níveis de IgM estão au-
Diagnóstico laboratorial das infecções víricas 319

mentados na fase aguda. Possui aplicação espe- Estados Unidos e Japão. Também tem sido utili-
cial quando utilizada em conjunto com vacinas zado na erradicação dessa doença de granjas de
com marcadores antigênicos, em programas de suínos no estado de Santa Catarina.
controle de doenças de importância sanitária es- As maiores restrições ao uso tecnologia de
tratégica como a doença de Aujesky. Nesse caso, ELISA para o diagnóstico se referem à necessi-
o vírus vacinal contém deleção em um dos genes dade dos aparelhos para a lavagem das placas
que codifica as glicoproteínas do envelope. Ani- e para a leitura da reação (espectofotômetro).
mais vacinados com essa vacina podem ser dife- Para laboratórios com grande rotina diagnóstica,
renciados dos animais infectados pelo vírus de no entanto, esses custos se diluem pelo teste de
campo pelo uso de um teste ELISA que detecta grande número de amostras. Uma ilustração es-
anticorpos contra a proteína deletada. Esse siste- quemática da técnica de ELISA está apresentada
ma tem sido utilizado nos programas de controle na Figura 11.12.
e erradicação da doença de Aujeszky na Europa,
4.2.5 Imunofluorescência/
imunoperoxidase

Antígeno
viral
Embora seja mais utilizada para a detecção
de antígenos, a IFA também tem sido utilizada
Incubação
com sucesso para a detecção de anticorpos contra
soro-tes te
-
Lavagem vários vírus. O antígeno (proteínas purificadas ou
células infectadas) é, inicialmente, imobilizado
sobre um suporte sólido (placa de poliestireno ou
Anticorpos no
soro-teste lâminas de microscopia). O soro-teste é incubado
por um determinado período (geralmente 30 min
a 1 h), seguido da lavagem para a remoção dos
Anticorpo
antiespécie Lavagem anticorpos não-ligados e pela adição do anticor-
po secundário marcado com fluoresceína (FITC).
O anticorpo secundário deve ser específico para
Anticorpos a espécie animal do soro-teste. A leitura do teste
marcados
é realizada sob microscopia de UV, na qual se ob-
serva a emissão de luz fluorescente quando há a
Adição do
substrato presença de anticorpos específicos contra o antí-
geno imobilizado. É uma técnica rápida e de fácil
Mudança execução, porém freqüentemente resulta em re-
de cor
sultados de difícil interpretação, pela ocorrência
de reações inespecíficas. Já foi utilizada para a de-
Positivo Negativo tecção de anticorpos contra vários vírus, porém,
atualmente, tem a sua utilização restrita, princi-
palmente pelo desenvolvimento de técnicas mais
Figura 11.12. Teste imunoenzimático do tipo ELISA para
a detecção de anticorpos. As cavidades das placas estão
específicas e objetivas e que não resultam em rea-
recobertas com o antígeno viral. O soro suspeito é ções inespecíficas. No entanto, ainda possui apli-
adicionado e incubado por um determinado tempo (1-2 cação no diagnóstico sorológico de alguns vírus,
h), seguido de lavagem para a remoção dos anticorpos
não-ligados. Adiciona-se um anticorpo antiespécie do como o circovírus suíno, o PRRSV e o ASFV. A
primeiro anticorpo, conjugado com a enzima técnica de IPX também pode ser adaptada com
peroxidase. Incuba-se e procede-se uma nova lavagem. essa finalidade. Nesse caso, os anticorpos anties-
A seguir, adiciona-se o substrato. A mudança de cor no
substrato indica a presença de anticorpos no soro pécie são conjugados com as enzimas peroxidase
suspeito. ou fosfatase alcalina.
320 Capítulo 11

4.2.6 Imunoblots 4.2.8 Outras técnicas sorológicas

As técnicas de imunoblot (Western, dot/slot Vários testes sorológicos, baseados em cro-


blots) podem ser utilizadas para a detecção de matografia e imunoensaio, também se encontram
anticorpos. Para tal, os antígenos do vírus sus- disponíveis em kits, para a realização a campo
peito devem ser solubilizados e imobilizados (consultórios, clínicas). Dentre eles incluem-se o
em membranas de nitrocelulose ou nylon. Essa teste para a detecção de IgG contra o CDV; an-
imobilização pode ser realizada diretamente pela ticorpos totais contra o vírus da peritonite infec-
deposição do material em pontos na membrana ciosa felina; anticorpos grupo-específicos contra
ou ser precedida pela separação das proteínas o vírus da imunodeficiência felina. Esses testes
por eletroforese e posterior transferência para a podem ser realizados com sangue total, plasma
membrana. A membrana é, então, incubada com ou soro e permitem a obtenção do resultado em
o soro-teste, seguida de lavagem e incubação minutos. Possuem, em geral, boa sensibilidade e
com um anticorpo espécie-específico marcado especificidade. A sua grande vantagem é a pos-
com uma enzima (geralmente a peroxidase). A sibilidade de uso em clínicas, paralelamente à
presença do anticorpo específico no soro é revela- investigação clínica. O custo de cada exame, no
da pela ação da enzima no substrato, que resulta entanto, é relativamente alto, o que restringe o
em mudança de cor (substratos cromógenos) ou seu uso populacional.
em emissão de luminosidade (substrato lumines- As técnicas de radioimunoensaio e agluti-
cente). Essa técnica possui aplicações específicas, nação em látex, desenvolvidas inicialmente para
como o monitoramento da evolução dos níveis a detecção de antígenos, foram posteriormente
de anticorpos no curso da infecção, mas possui adaptadas para a detecção de anticorpos e uti-
limitada aplicação no diagnóstico sorológico de lizadas em diagnóstico sorológico. A técnica de
rotina. RIA foi sendo gradualmente substituída com
vantagem pelas técnicas imunoenzimáticas e atu-
4.2.7 Fixação do complemento almente encontra-se em desuso. A aglutinação
em látex tem sido popularizada em kits, princi-
A observação de que os anticorpos ao se palmente para o diagnóstico de viroses de peque-
ligarem ao antígeno específico são capazes de nos animais. Esse método tem sido utilizado em
interagir com componentes do sistema do com- clínicas e consultórios, tanto para a detecção de
plemente da espécie homóloga e desencadear a antígenos como de anticorpos. As suas principais
cascata de ativação, levou ao desenvolvimento da vantagens são a simplicidade e a rapidez de exe-
técnica de fixação do complemento (FC). O efeito cução. Em geral, possuem sensibilidade e especi-
dos componentes ativados do complemento (p. ficidade compatíveis com a sua finalidade.
ex: lise de eritrócitos) pode ser observado e é um
indicador da presença de anticorpos na amostra- 5 Coleta e remessa de material
teste. Na ausência de anticorpos contra o agente,
não há ativação do complemento pela ausência A qualidade do material que ingressa no la-
da formação de complexos antígeno-anticorpo. boratório é crítica para o sucesso do diagnóstico.
Nesse caso, não ocorre a lise dos eritrócitos. Essa Por isso, as etapas de coleta, acondicionamento,
técnica teve grande aplicação no diagnóstico de conservação e remessa são tão importantes quan-
infecções víricas e bacterianas. Atualmente, po- to a realização e interpretação dos testes laborato-
rém, possui aplicação bastante restrita e é utili- riais. E, assim, o papel dos profissionais de cam-
zada apenas em situações especiais. As maiores po e dos técnicos de laboratórios envolvidos no
restrições à técnica referem-se ao tempo para ob- diagnóstico se equivale em importância.
tenção dos resultados (24 h) e ao fato de ser uma A eleição do material adequado para a cole-
técnica muito trabalhosa e não-automatizável. ta depende de conhecimentos sobre a biologia e
Diagnóstico laboratorial das infecções víricas 321

patogenia do agente. Uma vez eleito, o material 5.1 Eleição do material a ser coletado
deve ser adequadamente coletado, acondiciona-
do e remetido ao laboratório. O material destina- A escolha do material a ser enviado para
do à pesquisa de vírus viável deve ser enviado exame depende de conhecimentos básicos de clí-
com a maior brevidade possível. Na impossibi- nica e de patogenia das enfermidades víricas. Em
lidade de fazê-lo em um curto espaço de tempo, geral, coleta-se material dos sistemas e órgãos
este material deve ser armazenado sob condições afetados pela patologia, nos quais há maior pro-
adequadas para preservar a viabilidade do agen- babilidade de se detectar o agente ou seus pro-
te. dutos. A coleta de material de animais doentes
Descrições detalhadas dos aspectos epide- deve ser realizada tão logo se observe os sinais
miológicos, clínicos e patológicos observados clínicos, quando os níveis de replicação viral ge-
a campo são muito úteis para a elaboração do ralmente atingem os valores mais altos. Na ne-
diagnóstico e devem fazer parte do histórico que cropsia, deve-se dar preferência aos órgãos e teci-
acompanha as amostras ao laboratório. dos que apresentam alterações macroscópicas. A
A seguir, são apresentadas algumas regras coleta de sangue para a sorologia é recomendada
básicas para orientar a tarefa de coleta e submis- para uma variedade de infecções. A seguir, são
são de amostras clínicas para o diagnóstico viro- listados os materiais mais indicados para coleta,
lógico. A Figura 11.13 ilustra, de maneira simpli- de acordo com os sistemas afetados:
ficada, a seqüência de eventos que acompanham – enfermidades respiratórias: secreções na-
as infecções víricas agudas e que devem ser con- sais, aspirados nasofaríngeos, trato respiratório
siderados para se determinar o tipo de material a superior, pulmões;
ser coletado e o momento mais apropriado para – enfermidades entéricas: fezes, conteúdo
fazê-lo. intestinal, segmentos intestinais, linfonodos re-
gionais;
– doença genital: secreções genitais, sêmen;
– conjuntivite: raspados conjuntivais, secre-
Sinais clínicos
ções;
– pele: raspados cutâneos, fluidos vesicula-
res, fragmentos de pele;
Vírus Resposta – doença neurológica: secreções nasais, cére-
imunológica bro, fluido cérebro-espinhal;
– doença sistêmica: secreções nasais, fezes,
soro, sangue integral, linfonodos, baço;
– fetos abortados: placenta, líquidos fetais,
timo, baço, pulmão, cérebro;
– outras doenças: soro, órgão ou tecido afe-
2 4 6 8 10 12 14 16 18
Dias após a infecção tado, secreções/excreções do sistema afetado.
Material
para:
Isolamento viral 5.2 Cuidados na coleta e
Antígenos
Ácidos nucléicos
acondicionamento
Sorologia
Devem-se observar os seguintes cuidados
Sorologia pareada
no momento da coleta de material e no seu acon-
dicionamento:
– secreções nasais, oculares ou genitais de-
Figura 11.13. Cinética da infecção viral e resposta
imunológica, com indicação do momento de coleta de vem ser coletadas com o auxílio de suabes. Ape-
material para diagnóstico. sar de existirem suabes para esse uso específico,
322 Capítulo 11

muitas vezes não se encontram disponíveis a bem fechadas, para evitar o vazamento e mistura
campo. Nesses casos, pode-se utilizar cotonetes do material ou a entrada de água originada do
de uso humano, com a ressalva de que não de- derretimento do gelo;
vem conter antissépticos e/ou outras substâncias – as embalagens devem ser rotuladas e
químicas. Os suabes devem ser coletados agres- identificadas individualmente com caneta ou lá-
siva e profundamente na cavidade nasal, para pis. Deve-se evitar o uso de rótulos de papel que
se aumentar a possibilidade de coletar material se desprendam pelo umedecimento e de cane-
que contenha o vírus e/ou células descamativas. tas cuja tinta seja removida pelo contato com a
Após a coleta, os suabes devem ser acondicio- água;
nados em meio apropriado, solução fisiológica – tubos de vidro ou de outro material frá-
estéril ou PBS e mantidos sob refrigeração (ver gil devem ser acondicionados de forma a evitar a
abaixo); sua ruptura durante o transporte.
– tecidos e fragmentos de órgãos devem ser
coletados individual e assepticamente, para mi- 5.3 Conservação e remessa
nimizar a possibilidade de contaminação bacte-
riana e fúngica. Para isso, pode-se utilizar lâmi- Os maiores cuidados com a conservação de-
nas de bisturi, tesouras ou outros tipos de lâmina. vem ser dispensados aos materiais destinados ao
Quando o órgão for volumoso (fígado, cérebro), isolamento viral. Essas amostras devem ser pron-
deve-se coletar frações representativas de várias tamente acondicionadas em recipientes estéreis
áreas. Os fragmentos de diferentes órgãos devem (tubos, sacos plásticos, placas) e conservadas sob
ser acondicionados em tubos ou em sacos plásti- temperaturas baixas. A resistência dos vírus sob
cos individuais e bem fechados; temperaturas ambientais varia muito: certos ví-
– fetos abortados podem ser enviados intei- rus são muito resistentes (pox, polio, entero), en-
ros ou submetidos à necropsia para a coleta de quanto outros são muito sensíveis (BRSV, outros
tecidos e órgãos; paramixovírus). Por isso, o tempo entre a coleta
– fezes devem ser preferencialmente coleta- do material e a inoculação deve ser o mais breve
das da ampola retal. Segmentos de intestino de- possível. Se o intervalo entre a coleta e entrega ao
vem ser coletados com o seu conteúdo. Para isso, laboratório for curto (até 2 a 3 dias), é preferível
as extremidades da seção intestinal devem ser manter o material refrigerado (a 4ºC). Se o tem-
bem amarradas com barbante; po necessário para a remessa e entrega do ma-
– sangue integral deve ser coletado com an- terial for superior a três dias, deve-se optar pelo
ticoagulante (citrato, heparina ou EDTA). Geral- seu congelamento. O sangue integral destinado
mente, 2 a 3 mL (pequenos animais) e 5 a 10 mL ao isolamento viral nunca deve ser congelado.
(grandes animais) são suficientes para os propó- Alguns vírus (p. ex.: BRSV) são extremamente
sitos a que se destinam; sensíveis a temperaturas ambientais altas, além
– a coleta de sangue para exames sorológi- de não resistirem a congelamentos/descongela-
cos deve ser realizada de modo a minimizar a mentos sucessivos. Em geral, pode-se adotar a se-
hemólise. Tubos estéreis de plástico ou vidro são guinte regra: para horas ou até 2 a 3 dias, conser-
recomendáveis. Em geral, 1 a 2 mL de soro são var o material a 4ºC; para mais tempo, congelar a
suficientes para a maioria dos testes; -20ºC ou -70ºC. Para a remessa, o material deve
– raspados cutâneos ou de mucosas devem ser acondicionado em caixas térmicas com gelo
ser obtidos pelo uso de lâminas estéreis. Em algu- reciclável em abundância. Também como regra:
mas situações, lâminas de vidro podem ser ade- quanto menor o tempo decorrido entre a coleta e
quadas para essa finalidade. A raspagem deve a inoculação do material, maior será a probabili-
ser capaz de coletar as células superficiais da pele dade de se isolar o vírus.
e/ou das mucosas; Quando o sangue for destinado a exames so-
– as embalagens (tubos e sacos plásticos) em rológicos, deve-se proceder à separação do soro
que as amostras serão acondicionadas devem ser (à temperatura ambiente ou a 4-6ºC) previamente
Diagnóstico laboratorial das infecções víricas 323

ao envio. Após a sua separação, o soro pode ser


conservado a 4-6ºC por vários meses, sem afetar Recebimento da
amostra e histórico
a viabilidade e atividade biológica das imuno-
globulinas. Quando o tempo até o teste for muito
prolongado, pode-se optar pelo congelamento
do soro. Nunca se deve congelar o sangue antes Registro
da separação do coágulo, pois pode inutilizar a
amostra para fins diagnósticos.
Formulação da hipótese
5.4 Histórico etiológica

Todo o material para exame deve ser acom-


panhado por um histórico detalhado, no qual Encaminhamento
devem constar informações referentes à amostra,
que podem ser necessárias para a elaboração do
diagnóstico. Laboratórios de diagnóstico geral-
Virologia
mente possuem formulários próprios que espe-
cificam as informações requeridas em cada caso.
Patologia Bacteriologia
O histórico deve ser anexado na parte exterior toxicologia micologia
do recipiente, para evitar o seu umedecimento e Realização da técnica
inutilização. Se incluído no interior do recipiente,
deve ser acondicionado em sacos plásticos à pro-
va d’água.
Leitura do teste

5.5 Fluxograma dos procedimentos de


diagnóstico
Interpretação do resultado
Cada laboratório possui o seu próprio fluxo-
grama de encaminhamento das amostras desti-
nadas ao diagnóstico. A seguir serão descritas as
etapas de um protocolo-modelo (Figura 11.14): Envio do resultado
– logo após o recebimento, o material deve
ser removido da embalagem de transporte e
acondicionado provisoriamente sob temperatura Figura 11.14. Fluxograma de procedimentos realizados
adequada (geralmente em geladeira a 4-6ºC); na rotina diagnóstica.
– a seguir, deve-se registrá-lo em um proto-
colo interno (livro ou arquivo);
– a próxima etapa é o encaminhamento para
a realização do teste pertinente. O encaminha-
Amostras de soro geralmente são acompa-
mento do material ao método indicado depende
nhadas de uma requisição específica (p. ex.: so-
de uma análise preliminar que objetiva definir o
rologia para BLV). Nesses casos, o encaminha-
agente (s) suspeito (s) e a metodologia a ser utili-
zada para diagnosticá-lo. Nessa etapa, o histórico mento é simples. Algumas vezes, as amostras
que acompanha a amostra é fundamental para a são acompanhadas de um histórico clínico, sem
tomada de decisão. a indicação do exame requerido. Nesses casos, o
Ao se encaminhar a amostra para o diag- técnico deve definir, com base no histórico, qual
nóstico, deve-se considerar outros possíveis pa- o agente suspeito e encaminhar a amostra para o
tógenos e encaminhar parte do material para a respectivo exame. Pode-se também contatar o ve-
bacteriologia, micologia, toxicologia entre outras terinário que submeteu a amostra para inquiri-lo
(Figura 11.14). sobre a natureza do exame solicitado. Em labora-
324 Capítulo 11

tórios que realizam testes sorológicos como parte Caso 1. Material: secreções nasais.
de programas de monitoramento de rebanhos, é Espécie: bovina.
comum a submissão de centenas ou milhares de Histórico: bezerros com sinais de doença
amostras de soro simultaneamente, as quais são respiratória.
diretamente encaminhadas para a realização dos Hipótese etiológica: quatro agentes virais
testes a que se destinam. são mais comumente associados com doença res-
Quando a amostra submetida é de outra na- piratória em bezerros: BoHV-1, bPI-3, BVDV e
tureza (tecidos, secreções, fetos), pode-se exigir BRSV.
uma análise mais detalhada do histórico para for- Encaminhamento: pesquisa de vírus por iso-
mular uma hipótese diagnóstica e encaminhar o lamento em cultivo celular.
material ao destino apropriado. Amostras desse
tipo podem ser acompanhadas pela requisição de Caso 2. Material: cérebro.
um determinado exame, o que simplifica a toma- Espécie: bovina.
da de decisão. Cérebros de caninos ou bovinos Histórico: doença neurológica seguida de
são freqüentemente enviados com a solicitação morte.
específica de diagnóstico de raiva; fezes bovinas Hipótese: dois agentes virais são mais fre-
são acompanhadas de uma requisição de diag- qüentemente associados com doença neurológica
nóstico para rotavírus; sêmen bovino é encami- em bovinos: o vírus da raiva e o BoHV-5.
nhado para a pesquisa de herpesvírus, entre ou- Encaminhamento: inicialmente investiga-se
tros. Nesses casos, cabe ao técnico do laboratório o vírus da raiva por IFA. Em caso de resultado
simplesmente encaminhar o material para a rea- negativo, investiga-se o BoHV-5, por IFA em im-
lização do teste solicitado. Os tipos de exames a pressões de cérebro, PCR ou por isolamento vi-
serem realizados para cada material (e para cada ral.
agente suspeito) são geralmente predetermina-
dos pelo laboratório. Caso 3. Material: secreções nasais e raspa-
Outras vezes, o material é enviado sem a dos oculares.
indicação de um agente suspeito e sem a requi- Espécie: canina.
sição específica de um exame. Nesses casos, cabe Histórico: filhotes com sinais respiratórios.
ao laboratorista analisar o histórico e formular a Hipótese: pode-se suspeitar de cinomose ou
hipótese etiológica a ser investigada. Com base de outra virose respiratória (adenovírus, parain-
nessa hipótese, indicará o exame mais apropria- fluenza canina).
do. A formulação da hipótese e o encaminha- Encaminhamento: pode-se inicialmente pes-
mento correto do material exigem conhecimentos quisar antígenos virais em células descamativas
de Virologia, clínica, patogenia e epidemiologia nas secreções ou raspados por IFA ou por méto-
das doenças víricas e nem sempre são tarefas dos cromatográficos (kits). Posteriormente pode-
fáceis. Especialmente nesses casos, um histórico se encaminhar para PCR ou isolamento, depen-
detalhado reveste-se de grande importância. Em dendo do protocolo de cada laboratório.
geral, a análise do histórico, realizada à luz dos
conhecimentos acima mencionados, permite a Caso 4. Material: feto abortado e membra-
formulação de uma hipótese, que pode envolver nas fetais.
um ou mais agentes suspeitos. Assim, o encami- Espécie: suína.
nhamento deverá ser realizado objetivando a pes- Histórico: rebanho com problemas de abor-
quisa e comprovação da hipótese. A seguir, serão to, mumificações, natimortos.
mencionados alguns exemplos de procedimentos Hipótese: dois agentes são mais comumente
dessa natureza freqüentemente adotados, e os di- associados com perdas reprodutivas em suínos:
recionamentos indicados: o parvovírus e o PRRSV. No Brasil, ainda não foi
Diagnóstico laboratorial das infecções víricas 325

descrita a presença do PRRSV, então, deve-se, sangue integral deve ser centrifugado à baixa ro-
inicialmente, investigar o parvovírus. tação, e a capa flogística deve ser cuidadosamen-
Encaminhamento: pesquisa de atividade te removida, ressuspendida em meio de cultivo e
hemaglutinante (HA) nos tecidos, membranas e inoculada nos cultivos. O sêmen deve ser diluído
líquidos fetais. em soro fetal bovino (1:5 ou 1:10) para reduzir a
toxicidade. Materiais destinados a outros méto-
Caso 5. Material: fezes. dos de diagnóstico são submetidos a um proces-
Espécie: bovina. samento apropriado a cada tipo de exame.
Histórico: diarréia em bezerros com poucos
dias de vida.
Hipótese: dois vírus são mais freqüente- 5.7 Interpretação dos resultados
mente associados com esses casos: o rotavírus e
coronavírus. Os resultados dos testes laboratoriais devem
Encaminhamento: pesquisa de partículas ví- ser analisados conjuntamente com as informações
ricas por microscopia eletrônica. que acompanham a amostra e interpretados à luz
Esses exemplos ilustram a importância do de conhecimentos de patogenia, clínica e epide-
histórico clínico-patológico junto com a amos- miologia. Se analisados isoladamente, podem
tra submetida. A análise do histórico pode ser conduzir a interpretações incompletas e conclu-
decisiva para direcionar o procedimento e mes- sões equivocadas. A detecção de ácidos nucléi-
mo para descartar possíveis suspeitos. Algumas cos do BoHV-5 por PCR no cérebro de bovinos
vezes, amostras são enviadas sem o mínimo de acometidos de doença neurológica, por exemplo,
informações, nem mesmo relativas à natureza do não deve ser considerada prova definitiva do en-
material ou à espécie animal do qual foram cole- volvimento desse vírus na etiologia deste caso de
tadas. Nesses casos, a formulação da hipótese e doença. Bovinos portadores da infecção latente
o encaminhamento do material ficam muito pre- possuem o DNA viral em várias partes do encé-
judicados, tornando muito difícil a obtenção do falo, sem que isso tenha significado patológico
diagnóstico correto. ou que possa estar associado com ocorrência da
doença em questão. Por outro lado, o resultado
5.6 Processamento das amostras negativo em um determinado teste laboratorial
não significa necessariamente que o material era
Dependendo da natureza das amostras e realmente negativo, pois as técnicas apresentam
dos testes a que se destinam, diferentes processa- certo limite de sensibilidade e podem, ocasional-
mentos são realizados previamente à realização mente, falhar em detectar o agente ou seus pro-
do exame. Para o isolamento de vírus em cultivo dutos. Da mesma forma, o resultado negativo no
celular, fragmentos de tecidos ou órgãos devem isolamento viral não descarta definitivamente o
ser macerados com areia estéril, homogeneizados agente suspeito, pois condições inadequadas de
e centrifugados à baixa rotação. O sobrenadan- coleta e conservação do material podem ter afeta-
te deve, então, ser inoculado. Secreções (nasais, do negativamente a viabilidade do agente e pre-
oculares, genitais) devem ser centrifugadas para judicado o teste. Por essas razões, os resultados
a remoção de debris celulares e sujidades; o so- laboratoriais devem ser considerados como uma
brenadante deve ser inoculado. Material conta- parte de um conjunto de informações necessárias
minado (secreções, conteúdo intestinal, fezes) à elaboração do diagnóstico e não como o diag-
deve ser filtrado em filtros acopláveis a seringas nóstico em si.
para remover bactérias e fungos contaminantes Em todas as situações, os resultados e a sua
que possam interferir com o isolamento. As fe- interpretação devem ser transmitidos com a maior
zes devem ser previamente diluídas em meio de brevidade possível ao pessoal que os requisitou,
cultivo ou PBS para reduzir a sua toxicidade. O para que as medidas apropriadas – muitas vezes
326 Capítulo 11

dependentes dos resultados e de sua interpreta- HIRSCH, D.C.; ZEE, Y.C. Veterinary microbiology. Malden,
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VACINAS VÍRICAS
Cláudio Wageck Canal & Clarissa Silveira Luiz Vaz 12
1 Introdução 329

2 Formas de imunização 329

2.1 Imunização passiva 329


2.2 Imunização ativa 331

3 Objetivos da vacinação 331

4 Tipos de vacinas 332

4.1 Vacinas replicativas 333


4.1.1 Vacinas com vírus patogênico 334
4.1.2 Vacinas com vírus de espécie heteróloga 334
4.1.3 Vacinas com vírus atenuado 334
4.1.4 Vetores vacinais 339

4.2 Vacinas não-replicativas 342


4.2.1 Vacinas com vírus inativado 342
4.2.2 Vacinas de subunidades virais 343
4.2.3 Vacinas de proteínas recombinantes 344
4.2.4 Vacinas de peptídeos sintéticos 345

4.3 Vacinas de DNA e RNA 346


4.4 Vacinas monovalentes e polivalentes 347

5 Adjuvantes 347

6 Controle de qualidade 350

7 Conservação e administração de vacinas 350

8 Falhas vacinais 352

9 Reações adversas da vacinação 353

10 Drogas antivirais 354


11 Vacinas víricas licenciadas no Brasil 356

12 Bibliografia consultada 358


1 Introdução cinação constitui-se na estratégia mais efetiva de
prevenção e controle de várias enfermidades hu-
No século 18, a varíola afetava e matava mi- manas e veterinárias causadas por vírus. Diver-
lhões de pessoas em todo o mundo. Naquela épo- sas viroses animais e humanas já foram ou estão
ca, a prática utilizada para evitar a doença era a sendo controladas e erradicadas de países e con-
exposição das pessoas a uma pequena quantidade tinentes graças à vacinação. A varíola foi erradi-
de material obtido de lesões cutâneas de varíola. cada do mundo há três décadas. Doenças como a
Isto tinha como objetivo provocar uma infecção poliomielite e sarampo estão em vias de erradica-
controlada, que seria seguida de resposta imuno- ção. Doenças animais como a febre aftosa, peste
lógica e proteção frente a uma nova exposição ao suína clássica, doença de Aujeszky, entre outras,
agente. A prática, conhecida como variolação, era também foram erradicadas de países e continen-
originária da China e, embora bastante difundida tes inteiros pelo uso sistemático da vacinação.
nas áreas endêmicas, não era considerada segura, A tecnologia empregada para a produção
já que uma significativa parcela dos indivíduos de vacinas contra vírus apresentou um valioso
que eram submetidos ao procedimento desenvol- avanço com o domínio das técnicas de cultivo de
via a doença após a exposição. células, a partir das quais foi possível otimizar a
Em seus estudos sobre a varíola humana, atenuação e a multiplicação de diversos agentes
o médico Edward Jenner observou que os orde- virais. No entanto, apesar dos avanços recentes na
nhadores de vacas afetadas pela varíola bovina vacinologia, muito ainda pode ser obtido através
não desenvolviam a forma humana da enfer- da tecnologia de DNA recombinante, que permite
midade, o que sugeria algum tipo de proteção a manipulação do genoma viral e a produção de
cruzada. Em 1796, para comprovar a sua teoria, vacinas cada vez mais eficientes e seguras. Entre
Jenner coletou material de lesões de varíola do os desafios para a indústria de imunobiológicos,
úbere de uma vaca e o administrou a um menino está a adequação das tecnologias surgidas nas úl-
de oito anos de idade. Alguns meses mais tarde, timas décadas frente à demanda cada vez maior
ele expôs esta criança ao vírus da varíola humana por segurança, bem-estar e produtividade.
(smallpox) que, confirmando suas suspeitas, não
produziu a doença. Jenner demonstrou, com esta 2 Formas de imunização
prática, que a exposição prévia ao vírus da va-
ríola bovina, um patógeno de baixa virulência, O termo imunização se refere à indução de
conferia proteção frente ao desafio com o vírus imunidade frente a um determinado agente ou
da varíola, antigenicamente relacionado ao vírus antígeno. De acordo com a participação do siste-
bovino, porém mais virulento. Posteriormente, ma imunológico na produção dessa imunidade,
na década de 1870, Louis Pasteur utilizou o ter- dois tipos principais de imunização podem ser
mo vacina (do Latim, vaccinia; termo derivado de reconhecidos: imunização passiva ou ativa. A
vaca) como forma de homenagem a Jenner, para imunização passiva pode ser natural (pela pla-
designar a prática da administração de patóge- centa, colostro ou gema) ou artificial (adminis-
nos a indivíduos sadios com o objetivo de indu- tração de soro hiperimune). A imunização ativa
zir resposta imunológica, numa época em que as ocorre pela exposição do animal ao agente infec-
bases teóricas da imunização ainda eram pouco cioso (infecção) ou por vacinação.
conhecidas.
As vacinas consistem em microorganismos 2.1 Imunização passiva
ou frações destes que, quando administradas a
um indivíduo, induzem uma resposta imunoló- A imunização passiva resulta da transferên-
gica capaz de proteger frente ao contato posterior cia de anticorpos específicos pré-formados atra-
com o agente original. A resposta imunológica vés da placenta ou do colostro materno ao filhote
que é induzida resulta do desenvolvimento de mamífero; da gema do ovo em aves, ou da admi-
células efetoras e de células de memória. A va- nistração de soro hiperimune. Nesses casos, não
330 Capítulo 12

há a produção de resposta específica pelo siste-


ma imunológico do hospedeiro. Ao contrário, o
hospedeiro recebe os anticorpos pré-formados.
A imunidade passiva é de extrema importância

Nível de anticorpos
para neonatos e em situações em que é necessária
uma rápida resposta frente a um patógeno ou an-
Imunidade passiva
tígeno específico, como nos casos de exposição a
toxinas ou doenças de caráter letal, como a raiva. Imunidade ativa
A capacidade de transferência de imunida-
de humoral através da placenta varia de acordo
com características peculiares de cada espécie.
A placenta humana, de outros primatas, de roe- Semanas (meses)
dores e de carnívoros permite a transferência de
anticorpos da classe IgG durante a gestação. A
placenta de ruminantes, eqüídeos e suídeos, no Figura 12.1. Evolução da imunidade passiva e ativa nas
entanto, é virtualmente impermeável à passagem primeiras semanas/meses de vida.
de imunoglobulinas. Nessas espécies, a imuniza-
ção passiva depende exclusivamente da ingestão
do colostro nas primeiras horas de vida, quando o A avicultura industrial é um bom exemplo
epitélio intestinal é permeável à absorção dessas da utilização em larga escala da imunidade passi-
moléculas. Neste caso, o período que os anticor- va para o controle de doenças virais importantes.
pos serão capazes de proteger depende da quan- As fêmeas reprodutoras recebem várias doses
tidade de colostro ingerida pelo filhote em tempo de vacinas que visam proteger passivamente a
hábil. A duração da imunidade passiva recebida sua progênie contra a infecção por alguns pató-
pelo colostro varia entre as espécies e depende genos aos quais os pintos são expostos nos pri-
de vários fatores, incluindo o título de anticorpos meiros dias de vida. Apesar de ser inicialmente
maternos, concentração de imunoglobulinas no dispendioso, o custo-benefício deste programa
colostro, quantidade de colostro ingerida, quan- de vacinação acaba sendo favorável, pois cada
tidade de imunoglobulinas efetivamente absorvi- fêmea gera aproximadamente 150 pintos imu-
das e taxa de crescimento corporal. nizados passivamente. Este tipo de imunidade é
Por outro lado, a imunidade passiva pode fundamental para a proteção dos pintos contra o
interferir na produção de imunidade ativa resul- vírus da doença infecciosa da bursa de Fabricius
tante de uma subseqüente vacinação dos animais (IBDV), reovírus das aves e vírus da encefalomie-
jovens. Em geral, quanto maior a concentração lite aviária.
plasmática de anticorpos maternos, menor será A vacinação de fêmeas, antes ou depois da
a eficácia da vacinação. A imunidade induzida cobertura, para induzir a produção de anticorpos
por vacinas com vírus atenuado é menos afetada que sejam posteriormente transferidos aos re-
pela imunidade passiva do que a induzida por cém-nascidos pelo colostro, também é um méto-
vacinas inativadas. A imunidade colostral pode do muito utilizado para prevenir doenças víricas
ser sistêmica, quando mediada por IgG que são de neonatos, como a rotavirose e coronavirose
absorvidas na mucosa intestinal e ganham acesso suína e bovina. Em tese, fêmeas imunes contra
ao sangue. Por outro lado, IgAs ingeridas com o qualquer agente viral irão transferir essa imuni-
colostro podem conferir proteção local pela neu- dade aos fetos ou neonatos, conferindo proteção
tralização de microorganismos no lúmen intes- nas primeiras semanas de vida.
tinal. O decréscimo gradual dos níveis de anti- A resposta imunológica conferida pela imu-
corpos adquiridos passivamente é seguido pelo nização passiva é tipicamente de curta duração,
surgimento de anticorpos produzidos ativamen- pois é baseada nos anticorpos que são adminis-
te, frente à infecção natural ou vacinação (Figura trados e não na resposta do hospedeiro. Essa imu-
12.1). nidade não possui memória e perdura somente o
Vacinas víricas 331

período em que os anticorpos transferidos não são contagioso obtidas de ovinos adultos, buscando
degradados pelo organismo do hospedeiro. Ape- a proteção contra uma subseqüente exposição
sar dessas características, a imunidade passiva é ao vírus. Essas formas empíricas de imunização
fundamental não só para a defesa de neonatos, apresentam alguns riscos, pois podem expor os
mas também em situações na quais é necessária animais a outros agentes patogênicos, além da
uma resposta imediata. Para combater a infec- incerteza com relação à inocuidade do vírus ad-
ção pelo vírus da cinomose (CDV), por exemplo, ministrado.
pode-se administrar soro hiperimune específico De acordo com o tipo de antígeno envolvido
aos cães doentes, na tentativa de auxiliar o seu na exposição inicial, a imunidade resultante pode
organismo a combater a infecção. Também os in- ser do tipo humoral, celular ou ambas. Na imuni-
divíduos expostos ao vírus da raiva (RabV) de- zação passiva, a imunidade obtida é tipicamente
vem receber a aplicação do anti-soro específico, humoral e de curta duração. Na imunização ati-
já que uma imunização ativa provavelmente não va, a resposta imunológica é geralmente de maior
teria tempo hábil para proteger antes do final do magnitude e duração. A maior duração da imu-
período de incubação. nidade ativa deve-se principalmente à produção
de linfócitos específicos de vida longa, chamados
genericamente de linfócitos de memória.
2.2 Imunização ativa
3 Objetivos da vacinação
A imunidade ativa pode resultar tanto da ex-
posição ao patógeno por infecção natural quanto As vacinas são utilizadas com o objetivo de
da administração do antígeno em vacinas especí- induzir a formação de uma resposta imunológi-
ficas. Como resultado, o sistema imunológico do ca específica capaz de combater o agente frente
hospedeiro é estimulado pelo antígeno ao qual a uma nova exposição. Assim, as vacinas devem
foi exposto. A magnitude e duração da respos- ser efetivas – para induzirem proteção – e segu-
ta imunológica dependem de fatores do hospe- ras, para não produzirem doença no hospedeiro.
deiro, como a presença de anticorpos adquiridos Nesse sentido, as vacinas inativadas são consi-
passivamente, idade e imunocompetência do deradas mais seguras se comparadas com as va-
hospedeiro; e de vários fatores da vacina. Como cinas vivas atenuadas, uma vez que não ocorre
regra, considera-se que a resposta imunológica replicação do agente ou risco de reversão à viru-
mais efetiva e duradoura é aquela induzida pela lência. Por outro lado, os vírus presentes nas va-
infecção natural. Portanto, quanto mais as vaci- cinas vivas possuem a capacidade de replicação
nas mimetizarem a infecção natural, melhor será no organismo hospedeiro, estimulando a imuni-
a resposta imunológica. Por isso, acredita-se que dade humoral e celular. Por isso, as vacinas vivas
as vacinas com vírus replicativos (ou vivos) se- (ou replicativas) são consideradas mais eficientes
jam as mais efetivas, pois são as que mais se asse- na indução de proteção.
melham à infecção natural. A efetividade vacinal está relacionada com a
Além da vacinação clássica, outras formas capacidade de estimulação de células apresenta-
de imunização ativa têm sido ocasionalmente uti- doras de antígenos, seguida da liberação das ci-
lizadas em alguns sistemas. Por exemplo, leitoas tocinas apropriadas. As vacinas devem estimular
susceptíveis ao parvovírus suíno (PPV) podem linfócitos T e B, gerando um número adequado
ser expostas a fezes ou a ambientes contamina- de células de memória específicas para o antíge-
dos com o vírus, de modo a adquirirem a infec- no inoculado. Devem ainda estimular a produção
ção (que é benigna nesses animais) e se tornarem de linfócitos T auxiliares (Th) e T citotóxicos (Tc)
imunes. Posteriormente, se forem expostas ao específicos para diferentes epitopos do antíge-
agente durante a gestação, estarão imunizadas e no vacinal. O antígeno contido na vacina deverá
os seus fetos estarão protegidos contra a infecção. persistir, preferivelmente, em locais específicos
Da mesma forma, alguns pecuaristas mantêm o do tecido linfóide, permitindo que continue esti-
hábito de expor os cordeiros às crostas de ectima mulando as células do sistema imunológico.
332 Capítulo 12

A indução de resposta imunológica media- passiva aos recém-nascidos; f) reduzir a excre-


da por linfócitos T (imunidade celular), que pode ção viral. Animais vacinados, se posteriormente
ser obtida de acordo com o tipo de vacina utiliza- expostos ao agente, devem excretar o vírus em
da, é uma das mais efetivas defesas do organismo menores quantidades e por menos tempo, redu-
contra os vírus. Igualmente importante é a capa- zindo, assim, a sua disseminação e transmissão;
cidade de estimular a produção de anticorpos g) erradicar o agente da população. A vacinação
neutralizantes, capazes de neutralizar os vírions contra determinados vírus, mais do que prevenir
circulantes e, dessa forma, evitar a infecção de e/ou atenuar a doença clínica, objetiva criar, na
novas células. população, uma imunidade protetora que torne
De modo ideal, espera-se que uma vacina inviável a circulação e perpetuação do agente.
seja capaz de conferir proteção prolongada do in- Esse tipo de cobertura denomina-se imunidade de
divíduo frente a uma nova exposição ao agente, população ou de rebanho.
caracterizando a imunidade de longa duração. Em situações em que o uso de imunógenos
Espera-se, portanto, a estimulação de memória pode dificultar o diagnóstico sorológico da doen-
imunológica, que irá permitir uma resposta imu- ça e, com isso, dificultar programas de controle
nológica mais intensa frente a uma nova expo- ou erradicação, a decisão sobre o uso de vacina-
sição ao vírus. Vacinas contra vírus de animais ção deve ser criteriosamente avaliada.
devem apresentar características específicas, tais
como: facilidade de administração, custo de aqui-
sição acessível, estabilidade do produto durante
4 Tipos de vacinas
o armazenamento e, após a inoculação no orga-
nismo, adequação para programas de vacinação
em massa e capacidade de estimular imunidade Diferentes tipos de vacina contra vírus estão
forte e duradoura. Devem ainda causar o menor licenciados para uso veterinário, sendo a maio-
número possível de efeitos colaterais, e não afetar ria composta por vírus inativados ou por vírus
o desempenho produtivo dos animais. vivos atenuados. A utilização de novas tecnolo-
Em termos práticos, os objetivos da vacina- gias, principalmente envolvendo a manipulação
ção incluem: a) prevenir a infecção (imunidade genética (tecnologia de DNA recombinante), tem
esterilizante), o que é virtualmente impossível originado inúmeros estudos e expectativas no
com as vacinas atuais. Mesmo em animais ade- surgimento de novas opções de vacinas. Algu-
quadamente vacinados, a exposição subseqüen- mas vacinas recombinantes já estão no mercado,
te é seguida de replicação inicial do agente; b) enquanto várias outras estão em fase de desen-
prevenir a doença clínica e suas conseqüências volvimento ou de testes. Para algumas dessas
(esse objetivo pode ser alcançado por várias va- vacinas, no entanto, muitos estudos ainda são ne-
cinas animais); c) atenuar a doença clínica e suas cessários para a comprovação de sua segurança e
conseqüências (para algumas viroses, as vacinas eficácia; motivo pelo qual ainda possuem pouca
somente conseguem atenuar ou reduzir a inten- participação no mercado veterinário. Por outro
sidade e severidade dos sinais, reduzindo as con- lado, algumas vacinas produzidas por métodos
seqüências da doença); d) proteger o feto. Para clássicos, há décadas, ainda conservam o seu es-
várias viroses (diarréia viral bovina e parvoviro- paço devido à sua eficácia e segurança. Vacinas
se suína, por exemplo), as maiores conseqüências autógenas de uso individual, produzidas com
da infecção resultam das perdas fetais. Nesses material coletado do animal a ser vacinado, são
casos, a vacinação objetiva imunizar as mães ainda uma das melhores formas de controle da
para que a sua resposta imunológica proteja e papilomatose bovina e canina, demonstrando
impeça a infecção fetal; e) proteger os neonatos. maior eficiência se comparadas com outros tipos
Para viroses que afetam os animais nas primei- de vacinas. Os diferentes tipos de vacinas contra
ras semanas de vida (rotavirose, coronavirose), vírus, já licenciadas ou ainda em fase de desen-
a imunização das fêmeas visa conferir proteção volvimento, estão apresentados na Tabela 12.1.
Vacinas víricas 333

Tabela 12.1. Tipos de vacinas víricas

Tipo Características/propriedades
Gênero
Vírus patogênicos

Vírus heterólogos
Vírus naturalmente atenuados;
1. Replicativas Vírus atenuados por passagens em cultivo celular;
(vírus vivo)
Vírus atenuados por passagens em ovos embrionados;
Vírus atenuados
Vírus atenuados por passagens em espécie heteróloga;
Vírus temperatura-sensíveis;
Vírus modificados pela deleção de genes;
Vacinas com marcadores antigênicos.
Vetores virais
Vírus inativado
Subunidades de vírus;
2. Não-replicativas
(sem vírus vivo) Produtos de vírus Proteínas recombinantes;
Peptídeos sintéticos.

3. DNA/RNA Contêm o gene da proteína de interesse.

4.1 Vacinas replicativas na amplificação viral e no aumento da quanti-


dade de antígeno que é apresentada ao sistema
imunológico. Essas vacinas comportam-se de
São vacinas que contêm o vírus viável (vivo, modo semelhante ao vírus em infecções naturais.
replicativo) e, por isso, proporcionam a replicação Os vírus vivos podem ser utilizados como vaci-
do agente no organismo hospedeiro, resultando nas em diferentes apresentações (Figura 12.2).

Vacinas replicativas
(vírus vivo)

Vírus Vírus Vetores


patogênico heterólogo vacinais

Vírus
atenuado Vetores Vetores
virais bacterianos

Naturalmente Atenuação por Atenuação por Vírus temperatura-


atenuado métodos clássicos manipulação genética sensível

Passagens Passagens Passagens Deleção Vacinas


em cultivo em ovos em animais de genes diferenciais
celular embrionados

Figura 12.2. Tipos de vacinas que contêm o vírus viável, replicativo.


334 Capítulo 12

4.1.1 Vacinas com vírus patogênico a espécie vacinada e induz proteção cruzada con-
tra um vírus antigenicamente semelhante ao da
Em casos específicos, os próprios vírus com espécie.
potencial patogênico, sem atenuação ou trata-
mento prévio, podem ser utilizados como vacina. 4.1.3 Vacinas com vírus atenuado
Ovinos infectados pelo vírus do ectima contagio-
so apresentam lesões na região oral e focinho, Vírus que apresentam maior patogenicida-
desenvolvendo uma resposta imunológica pro- de e virulência precisam ser submetidos a proce-
tetora após a primeira exposição ao vírus. Ain- dimentos específicos para reduzir o seu potencial
da é freqüente a prática de expor os cordeiros às patogênico e viabilizar a sua utilização como va-
lesões de ectima contagioso (crostas), buscando cinas replicativas. Do contrário podem produzir
induzir o desenvolvimento de imunidade. Este doença e, até mesmo, mortalidade nos animais
procedimento se assemelha muito à prática re- vacinados. Esses procedimentos devem preservar
alizada na época da variolação humana. Outra as suas características antigênicas e a capacidade
forma de vacinação contra o ectima é o uso de replicativa. A redução do potencial patogênico
uma vacina comercial contendo o vírus patogêni- do agente denomina-se genericamente atenuação,
co, porém inoculado através de escarificação na e o agente com a patogenicidade reduzida é dito
pele da face interior da coxa, onde o vírus não atenuado. As vacinas que contêm o vírus replicati-
causa os sintomas indesejáveis. Para a parvoviro- vo, capaz de se multiplicar no organismo do ani-
se suína, a exposição prévia de leitoas primíparas mal inoculado, são denominadas genericamente
às fezes de suínos adultos (que provavelmente já de vacinas vivas, vacinas atenuadas ou vacinas
entraram em contato com o vírus) pode conferir com vírus vivo modificado.
imunidade e prevenir a ocorrência de perdas re- Em geral, os vírus vacinais atenuados repli-
produtivas, caso sejam infectadas posteriormen- cam nos tecidos próximos ao local da inoculação,
te, durante a gestação. produzem pouca ou nenhuma disseminação sis-
têmica e, por isso, geralmente não produzem do-
4.1.2 Vacinas com vírus de espécie ença nos animais vacinados, ou seja, a vacinação
heteróloga com vírus atenuado se constitui em uma infecção
controlada ou restrita.
Alguns vírus, que são antigenicamente rela- A imunidade conferida por vacinas atenua-
cionados com outros vírus, podem ser utilizados das é, geralmente, de maior magnitude, amplitu-
para induzir imunidade em determinadas espé- de (resposta celular e humoral) e duração do que
cies nas quais não causam doença. O poxvírus a imunidade induzida pelas vacinas com vírus
bovino é antigenicamente semelhante ao vírus da inativado. Vacinas atenuadas estão disponíveis
varíola humana e, como comprovado pelos estu- contra a doença de Marek das galinhas, parvo-
dos clássicos de Jenner, pode induzir imunidade virose e cinomose canina, rinotraqueíte felina,
em humanos. Os poxvírus de outras espécies de encefalomielite aviária, rinotraqueíte infecciosa e
aves também têm sido utilizados para induzir diarréia viral bovina, entre muitas outras.
proteção de galinhas contra a bouba (varíola avi- A imunidade conferida é geralmente prolon-
ária). Um herpesvírus de perus já foi utilizado gada e reduz ou mesmo elimina a necessidade de
para imunizar galinhas contra a doença de Ma- se realizar revacinações com a mesma vacina. A
rek, causada por um herpesvírus antigenicamen- resposta vacinal será melhor quando a vacina for
te relacionado. Da mesma forma, o rotavírus bo- capaz de mimetizar a infecção natural e estimular
vino já foi utilizado para imunizar suínos contra uma resposta imunológica específica; de magni-
a rotavirose suína. O vírus da parainfluenza 3 de tude, espectro e duração adequados. As vacinas
bovinos já foi utilizado para imunizar crianças de vírus atenuados têm a capacidade de induzir
contra o vírus da parainfluenza 3 de humanos. uma replicação viral limitada no organismo hos-
Nesses casos, o vírus vacinal é apatogênico para pedeiro, que, no entanto, é de boa amplitude e
Vacinas víricas 335

capaz de estimular resposta imunológica sem re- Marek, para proteger os pintos contra o soroti-
sultar no desenvolvimento de sinais clínicos im- po 1 oncogênico. O sorotipo 2 pode ser isolado
portantes. O tipo de imunidade obtido é aquele de galinhas, e o tipo 3 pode ser isolado de pe-
considerado ideal para uma vacina, havendo es- rus, sendo ambos apatogênicos, mas capazes de
timulação dos mecanismos da resposta imunoló- proteger as galinhas contra os tumores induzidos
gica inata e adaptativa. Nesta última, são geradas pelo vírus patogênico. Provavelmente a grande
respostas celular (linfócitos Th e Tc) e humoral maioria dos vírus animais apresente alguma cepa
(linfócitos B, anticorpos), além de imunidade pouco virulenta circulando na população ou na-
de mucosas, o que é conveniente no caso de se turalmente atenuada e que poderia ser utilizada
buscar proteção contra uma infecção natural que como vacina. No entanto, o procedimento mais
ocorra em superfícies mucosas. utilizado para a produção de vacinas atenuadas
Esse tipo de vacina, entretanto, não é consi- é a indução de atenuação de cepas originalmente
derado totalmente seguro para todos os vírus, em patogênicas.
razão da possibilidade, embora rara, de reversão
à virulência da cepa viral original. Por esse moti- 4.1.3.2 Atenuação por passagens em
vo, a sua administração não é recomendada para cultivo celular
indivíduos imunodeprimidos, nos quais pode
causar a doença. Cabe ressaltar que as mutações Em 1974, foi desenvolvida uma vacina ate-
que são induzidas nos processos de atenuação vi- nuada contra a varicela, a partir de uma cepa vi-
ral são produzidas ao acaso e, na maioria das ve- ral denominada Oka, obtida de um isolado clínico
zes, são desconhecidas. Isso significa que é difícil do vírus da varicela-zoster (VZV). Essa cepa foi
prever as circunstâncias nas quais poderia ocor- propagada sucessivamente em cultivos de fibro-
rer a reversão à virulência. Por exemplo, algumas blastos de embrião de cobaias e em células WI38.
cepas atenuadas de vírus da laringotraqueíte in- O objetivo da propagação em cultivo celular era
fecciosa das galinhas (ILTV) são capazes de rever- obter a atenuação do vírus, de modo a adaptá-lo
ter-se à forma virulenta após algumas passagens a um ambiente diferente daquele encontrado no
em aves não vacinadas. Dessa forma, a utilização hospedeiro natural, sem eliminar a capacidade
dessa vacina é reservada somente para as regiões de replicação viral. No caso da cepa Oka, utiliza-
onde o vírus é endêmico ou em surtos da doença. da na profilaxia da varicela, a vacina resultante é
Vacinas atenuadas contra o herpesvírus bovino capaz de induzir uma forte imunidade frente ao
tipo 1 (BoHV-1) e vírus da diarréia viral bovina vírus sem produzir sinais clínicos nos indivíduos
(BVDV) retêm a sua capacidade de infectar o feto vacinados, ou seja, o vírus vacinal é desprovido
e causar perdas reprodutivas, por isso não devem de patogenicidade e virulência, propriedades que
ser administradas a fêmeas prenhes. caracterizam a atenuação viral.
Os vírus atenuados utilizados em vacinas Seguindo esse mesmo princípio, passagens
podem ser pouco patogênicos naturalmente ou sucessivas de vírus em cultivos de células se cons-
podem ser atenuados por métodos artificiais. A tituem, atualmente, na maneira mais comum de
maioria das vacinas atenuadas disponíveis atu- se obter atenuação de vírus para uso em vacinas.
almente foi obtida pela atenuação proposital do Essa prática tem sido adotada para a atenuação
agente, por diferentes métodos. da maioria das vacinas víricas vivas disponíveis
para uso veterinário. As passagens podem ser
4.1.3.1 Vírus naturalmente atenuado realizadas em linhagens celulares de espécies di-
ferentes daquela para a qual a vacina se destina.
Determinadas cepas virais são naturalmente Alternativamente, pode-se realizar passagens em
pouco virulentas e, assim, podem ser utilizadas células da mesma espécie, porém de tecido ou ór-
em vacinas vivas sem a necessidade de atenua- gão diferente daqueles infectados naturalmente
ção prévia. Um exemplo está na utilização de pelo vírus. Uma das formas de se obter a atenu-
vírus dos sorotipos 2 e 3 do vírus da doença de ação do CDV, que naturalmente infecta células
336 Capítulo 12

linfóides, é a realização de passagens sucessivas minado número de passagens, pode ser confir-
do vírus em cultivo de células renais de origem mada por ensaios laboratoriais e pela inoculação
canina. do vírus na espécie de interesse. Essa é uma etapa
Após várias passagens em cultivo celular, indispensável para a certificação da vacina como
existe uma tendência ao acúmulo de mutações atenuada e estável.
pontuais no genoma viral, e a freqüência dessas
mutações é maior nos vírus RNA. O acúmulo de 4.1.3.4 Atenuação por passagens em
mutações, algumas provavelmente em genes as- espécie heteróloga
sociados com a virulência, eventualmente resulta
na atenuação do vírus, ou seja, o vírus se adapta Os vírus destinados para uso em vacinas
aos cultivos e perde algumas funções necessárias também podem ser atenuados por múltiplas pas-
para a sua virulência na espécie hospedeira. Uma sagens em uma espécie heteróloga, geralmente
vez atenuado, este vírus pode ser utilizado em animais de laboratório (coelhos, camundongos,
vacinas. Uma das maiores restrições a esse tipo cobaias). Esse método, embora seja pouco prático
de vacina é o desconhecimento da base genética e cada vez menos desejável quando comparado
da atenuação. Se a atenuação for devida a uma ou ao uso de cultivo celular, é o mais adequado para
a poucas mutações, existe o risco de reversão ao a atenuação de determinados vírus, como o RabV
fenótipo virulento após a administração ao ani- e alguns arbovírus.
mal. Dentre as vacinas víricas com vírus vivo de A espécie animal utilizada para a atenuação
uso humano e veterinário, a grande maioria foi viral pode também ser próxima à espécie para a
obtida por este método. qual a vacina é destinada. Vacinas contra o CDV
podem ser atenuadas por passagens sucessivas
4.1.3.3 Atenuação por passagens em do vírus em furões. Já a cepa chinesa do vírus da
ovos embrionados peste suína clássica (CSFV), mundialmente uti-
lizada como vacina viva, foi atenuada por pas-
A realização de múltiplas passagens em sagens sucessivas em coelhos. Há algumas déca-
embriões de galinha também tem sido utilizada das, vacinas contra a raiva eram produzidas pela
como forma de se atenuar vírus para uso em va- inoculação sucessiva em cérebro de coelhos.
cinas. Esse procedimento pode ser utilizado tanto
para vírus de aves como para vírus de mamífe- 4.1.3.5 Vírus temperatura-sensíveis (TS)
ros que replicam em embriões de galinha. Dentre
os vírus aviários que foram atenuados por pas- Vírus atenuados para uso em vacinas podem
sagens em ovos embrionados destacam-se o ví- também ser obtidos pela seleção de variantes que
rus da bronquite infecciosa das galinhas (IBV) e apresentam capacidade limitada de replicar sob
o vírus da influenza. Vacinas contra a influenza temperatura corporal (37°C), mas que replicam
de mamíferos (suínos e eqüinos) também foram com eficiência sob temperaturas mais baixas (30-
produzidas pela atenuação do vírus em ovos em- 33°C). Os vírus que apresentam essas caracterís-
brionados. A exemplo das vacinas atenuadas por ticas são denominados vírus TS. Para a obtenção
passagens em cultivos celulares, a restrição maior dos variantes TS, o vírus é cultivado em células
desse tipo de vacina é o desconhecimento da base sob temperaturas mais baixas que a temperatura
genética da atenuação, havendo o risco potencial do organismo hospedeiro (geralmente 30-33°C).
de reversão à virulência. Isso resulta na seleção de variantes virais capazes
Além de vírus aviários, diversos outros ví- de replicar eficientemente nessa temperatura. Es-
rus podem ser atenuados desse modo. Vacinas ses vírus, geralmente, não são capazes de replicar
atenuadas através da passagem do vírus em à temperatura corporal e, por isso, não causam
embriões de galinha já foram produzidas con- infecção sistêmica quando administrados ao hos-
tra o CDV, vírus da língua azul (BTV) e da raiva pedeiro. Esse tipo de vacina possui aplicação es-
(RabV). A redução da virulência, após um deter- pecial em viroses respiratórias, como a influenza
Vacinas víricas 337

(gripe) humana e na infecção pelo BoHV-1 em A atenuação que pode ser obtida nos herpes-
bovinos. vírus é um bom exemplo da produção de vacinas
As vacinas TS são geralmente indicadas para atenuadas por deleção. Esses vírus possuem um
administração intranasal. Após a administração, gene que codifica a enzima timidina quinase (TK),
o vírus vacinal replica próximo à superfície cor- associada com a capacidade do vírus de replicar
poral (na mucosa nasal), onde a temperatura é em neurônios e ser neurovirulento. Já os genes
inferior à temperatura corporal. Uma vacina TS que codificam as glicoproteínas do envelope gE,
contra o vírus da influenza foi licenciada para uso gI e gC não são essenciais à viabilidade e repli-
humano nos Estados Unidos, enquanto uma va- cação viral. A eliminação do gene da TK produz
cina TS contra o BoHV-1 já é utilizada em vários um vírus mutante atenuado, com capacidade re-
países, inclusive no Brasil. Uma das principais duzida ou nula de produzir infecções neurológi-
vantagens das vacinas TS contra o BoHV-1 é a se- cas. A deleção simultânea de outro gene resulta
gurança, pois o vírus vacinal infecta as células do em um vírus vacinal ainda mais atenuado e mais
local da inoculação, mas não é capaz de replicar seguro e, ao mesmo tempo, capaz de estimular a
à temperatura corporal. Com isso, o BoHV-1 TS resposta imunológica do hospedeiro. No Brasil,
é teoricamente incapaz de se disseminar de for- uma vacina atenuada obtida por deleção de genes
ma sistêmica e infectar o feto, cuja infecção pode (gE negativa) está licenciada para uso contra a
causar aborto. doença de Aujeszky dos suínos. Outras vacinas
desse tipo encontram-se em desenvolvimento
4.1.3.6 Vírus atenuados por deleção de para o BoHV-1 e BoHV-5. Vacinas contra alguns
poxvírus animais também foram obtidas pela de-
genes
leção do gene da TK, enzima que também está
envolvida na capacidade de replicação e virulên-
Quando os genes envolvidos na virulência cia desses vírus.
de um vírus são conhecidos, é possível introduzir
alterações direcionadas no genoma viral através 4.1.3.7 Vírus com marcadores
de manipulação genética. Vacinas deletadas são antigênicos
obtidas pela remoção ou inativação de genes re-
lacionados com a virulência, utilizando técnicas Vacinas com marcadores antigênicos – tam-
de DNA recombinante. Os mutantes virais que bém denominadas vacinas diferenciais – são
são produzidos preservam a capacidade de re- aquelas que induzem uma resposta sorológica
plicação e, por isso, retêm a sua capacidade imu- nos animais vacinados que pode ser distinguida
nogênica. No entanto, são incapazes de causar da resposta à infecção natural (Figura 12.3). Essas
doença porque apresentam pouca ou nenhuma vacinas são muito úteis em programas de con-
virulência. trole e erradicação de infecções víricas que pro-
O vírus deve se manter viável após a mani- duzem infecções persistentes ou latentes. Nesses
pulação genética e a estabilidade desta mutação programas, a vacinação é utilizada paralelamen-
pode ser evidenciada após várias passagens em te a outros procedimentos, como a identificação e
cultivo celular. Como em qualquer outra meto- eliminação dos animais portadores. Nesses casos,
dologia empregada para se obter a atenuação é crítico que se diferenciem os animais vacinados
viral, sempre existe a preocupação de evitar a re- daqueles que são portadores do vírus. O cará-
versão para a forma virulenta. Assim, procura-se ter diferencial em um vírus vacinal geralmente
fazer a exclusão de um gene inteiro ou de mais de é obtido pela deleção do gene que codifica uma
um gene de virulência no mesmo vírus, sempre proteína do envelope do vírion. A diferenciação
preservando a capacidade de replicação viral. é realizada pelo uso de um teste sorológico – ge-
Essa estratégia reduz a possibilidade de o vírus ralmente um teste de ELISA – que detecta anti-
recuperar a virulência e torna a vacina deletada corpos contra a proteína ausente no vírus vacinal,
mais segura do que as demais vacinas de vírus mas presente no vírus de campo. Ou seja, a detec-
atenuados. ção de anticorpos específicos contra esta proteína
338 Capítulo 12

indica que os animais foram infectados com o ví- de vacinação em áreas de risco, sem prejudicar a
rus de campo. Animais somente vacinados não perda da condição de rebanho livre ou prejuízo
reagem positivamente no teste. ao trânsito de animais.
As vacinas diferenciais são comercializadas Como citado anteriormente, na vacina dife-
acompanhadas do teste diagnóstico específico, rencial licenciada contra a doença de Aujeszky, o
que permite diferenciar a resposta vacinal da herpesvírus suíno (PRV) sofreu a deleção do gene
resposta induzida pelo vírus de campo. Esta es- da glicoproteína E (gE). Esta glicoproteína, além
tratégia possibilita a implantação de programas de não ser essencial à replicação do vírus, é capaz
Vacinas víricas 339

de induzir a produção de anticorpos no hospe- e diferenciá-los daqueles que foram vacinados,


deiro. Portanto, animais vacinados com a cepa pois a referida proteína é retirada da formulação
gE negativa não formarão anticorpos específicos vacinal durante o seu processamento.
contra esta glicoproteína, mas os animais que
forem infectados com o vírus de campo desen- 4.1.4 Vetores vacinais
volverão anticorpos contra a gE. Através do teste
imunoenzimático, fornecido com a vacina, pode- Vírus natural ou artificialmente atenuados
se, subseqüentemente, diferenciar os suínos vaci- podem ser utilizados para carrear um ou mais
nados daqueles infectados pelo vírus de campo. genes que codificam antígenos virais imunopro-
Por suas características, as vacinas diferen- tetores de outros vírus. Esses vírus funcionam,
ciais são adequadas para programas de controle assim, como vetores vivos para a imunização de
e erradicação de infecções, já que não impedem o animais. O gene de interesse pode ser inserido no
trânsito e comércio de animais. A erradicação da genoma do vírus vetor por manipulação genética.
PRV, na Alemanha e em outros países europeus, O resultado é um microorganismo recombinante
foi obtida com o uso de vacinas diferenciais. O que expressa as suas próprias proteínas e tam-
programa de erradicação da PRV, nos Estados bém a proteína heteróloga. Como conseqüência,
Unidos, em fase final de execução, também se a vacinação com este vírus induz resposta imu-
valeu dessa estratégia. No Brasil, o programa de nológica contra as proteínas do vetor e também
erradicação dessa doença, em Santa Catarina, uti- contra a proteína do vírus heterólogo.
lizou uma vacina deletada na gE, associada com Os vetores de eleição devem possuir capa-
um teste imunoenzimático. Vacinas diferenciais cidade replicativa, porém devem ser pouco ou
estão sendo utilizadas em vários países euro- nada patogênicos. De preferência, os vírus ve-
peus em programas de controle e erradicação do tores devem replicar e estimular a resposta imu-
BoHV-1. A possibilidade de se manipular geneti- nológica em sítios equivalentes aos infectados
camente os vírus e modificá-los antigenicamen- pelo vírus de interesse. Dessa forma, a resposta
te abre a possibilidade da confecção e utilização imunológica será produzida nos locais naturais
deste tipo de vacina contra outros vírus animais. de infecção. Em geral, os vetores virais utilizados
O princípio das vacinas deletadas diferenciais e a são aqueles que já têm o genoma seqüenciado e
sua utilização para diferenciar animais vacinados caracterizado, além de serem capazes de receber
daqueles infectados com o vírus de campo está a inserção do gene heterólogo que irá codificar
ilustrado na Figura 12.3. o antígeno de interesse. Sendo assim, os poxví-
Embora as vacinas diferenciais clássicas te- rus, os herpesvírus e os adenovírus são os vírus
nham sido concebidas para utilização do vírus mais freqüentemente empregados como veto-
deletado como vacina viva, o vírus com marca- res vacinais. Além desses, diversos outros vírus
dor antigênico pode também ser utilizado em vêm sendo estudados como vetores para vaci-
uma vacina inativada. Da mesma forma, vacinas nas humanas e animais, como os alfavírus (vírus
de subunidades e vacinas de vetores também per- da encefalite eqüina venezuelana [VEEV], vírus
mitem a diferenciação entre animais vacinados e Sindbis), flavivírus (vírus da febre amarela) e o
infectados naturalmente. Ou seja, o caráter dife- poliovírus (cepa atenuada Sabin, a mesma que é
rencial pode ser obtido tanto por vacinas vivas utilizada contra a poliomielite).
ou inativadas geneticamente manipuladas como O vírus da varíola das galinhas, pertencente
por vacinas de subunidades ou de vetores. à família Poxviridae, é utilizado como vetor de an-
Em algumas vacinas tradicionais, é possível tígenos do vírus da doença de Newcastle (NDV)
se diferenciar a resposta vacinal da resposta à in- das aves, recentemente licenciada nos EUA. Ou
fecção. Um exemplo é a vacina inativada contra o seja, a imunização das aves com o vetor vacinal
vírus da febre aftosa (FMDV). Utilizando um tes- induz proteção contra o NDV. O vírus vaccinia
te que detecta anticorpos contra uma proteína do e o vírus da bouba dos canários, também poxví-
vírus produzida durante a sua replicação, é pos- rus, são exemplos de vetores virais utilizados em
sível reconhecer os animais que foram infectados vacinas já comercializadas no Brasil e em outros
340 Capítulo 12

países. O vírus da bouba dos canários apresenta vírus recombinante é, então, utilizado para imu-
baixo índice de replicação e incapacidade de dis- nizar cães. O resultado é a indução de resposta
seminação quando inoculado em células de ma- imunológica contra os antígenos do poxvírus – ir-
míferos. Esse vírus também é capaz de expressar relevante neste caso, pois este não é um vírus de
antígenos heterólogos de maneira muito eficiente cães – mas principalmente contra as proteínas H
e, por este motivo, é usado como vetor para vaci- e F, conferindo proteção aos cães contra o CDV
nas destinadas a outras espécies animais. (Figura 12.4). O poxvírus do canário também ser-
Um exemplo de uso desse vírus é a vacina ve de vetor para vacinas contra o vírus do Nilo
recombinante contra a cinomose canina, já dispo- Ocidental (WNV) para uso em eqüinos.
nível no comércio. Os genes das glicoproteínas A raiva em carnívoros silvestres da Bélgica e
hemaglutinina (H ou HA) e de fusão (F) do CDV França tem sido controlada com o emprego de um
foram inseridos no genoma do poxvírus do caná- vetor poxvírus (vaccinia) expressando a glicopro-
rio, que é multiplicado até atingir altos títulos. O teína G do RabV. Esta vacina – de administração

Vírus da cinomose (CDV) Poxvírus do canário

F
Síntese
de cDNA
H F Genes da
proteínas cDNA
HeF 3

Y H

Y Y
Y

Multiplicação
Y Y Y
Y Y Y
|
||
||
||
||
||
||
||
||
||
||
||
||
||

Imunização

Figura 12.4. Princípio das vacinas replicativas baseadas em vetores virais. Os genes de proteínas estruturais
imunogênicas do vírus de interesse são sintetizados como cDNA e inseridos no genoma de um vírus vetor,
geralmente de outra espécie animal. Este vírus vetor é amplificado em cultivo celular até atingir altos títulos e, então,
utilizado para imunizar os animais da espécie de interesse. Os animais imunizados desenvolvem resposta
imunológica contra as proteínas do vírus vetor e contra a proteína heteróloga, conferindo proteção contra o vírus de
interesse. O exemplo se refere à vacina contra a cinomose, em que as glicoproteínas H e F do CDV foram inseridas no
genoma do poxvírus do canário, que é, então, utilizado para imunizar cães.
Vacinas víricas 341

oral – é fornecida por meio de iscas alimentares O genoma do herpesvírus suíno apresenta
distribuídas nas florestas. As raposas que rece- boas características para a inserção de genes he-
beram a vacina não apresentaram sinais clínicos terólogos e, por isso, vem sendo utilizado expe-
de raiva ou lesões de pox. A raiva silvestre em rimentalmente como vetor para genes de outros
vários países europeus tem sido controlada pelo vírus suínos, como o CSFV e o circovírus suíno
uso desta vacina. (PCV). O resultado é um herpesvírus atenuado
Os adenovírus bovino, ovino e suíno são que atua como vacina multivalente e apresenta
também bons vetores vacinais, pois são vírus ótimas perspectivas para vacinação em suínos.
de manipulação relativamente fácil e de geno- O herpesvírus suíno também pode ser utilizado
ma bem caracterizado, que permite a inserção como vetor para outras espécies animais, haven-
de grandes seqüências de genes sem necessitar do estudos que o utilizam como vetor de genes
a remoção de seqüências originais do vírus. Os
do FMDV.
adenovírus apresentam tropismo para diferentes
As vacinas que utilizam vetores virais apre-
tipos celulares e facilidade de replicar em altos
sentam a vantagem de não sofrerem interferência
títulos em cultivos celulares. Esta estratégia foi
da imunidade passiva materna, pois os animais
utilizada para a produção de uma vacina con-
geralmente não possuem imunidade contra antí-
tra a FMDV, na qual um adenovírus humano
genos do vírus vetor. Da mesma forma, se o vírus
não-replicativo expressa proteínas do capsídeo
vetor for um vírus não-patogênico para a espécie
do FMDV. Uma vacina contra o papiloma geni-
tal humano – causador do carcinoma de colo de animal vacinada, não existe o risco de tornar-se
útero – foi produzida pela inserção de genes do virulento. Eles também são boas alternativas de
papilomavírus humano no genoma de um ade- vacinas contra vírus que replicam de maneira
novírus. Uma vacina contra a gripe humana foi insatisfatória em cultivos celulares. Conforme o
produzida utilizando um adenovírus não repli- local de replicação do vetor utilizado, haverá o
cativo como vetor para a hemaglutinina do vírus estímulo de imunidade de mucosas (penetração
da influenza. em mucosas) ou imunidade mediada por linfó-
Os herpesvírus também têm sido explora- citos T (penetração intracelular). Certamente, no-
dos como vetores potenciais para carrear antíge- vas vacinas de vetores virais serão incorporadas
nos de outros vírus pela facilidade de atenuá-los ao mercado nos próximos anos, pelas vantagens
(por deleção de genes) e pela grande capacidade e aplicações potenciais que apresentam.
do genoma (permite a inserção de um ou mais Algumas bactérias também podem ser uti-
genes). Dentre os usos experimentais de herpes- lizadas como vetores para a expressão de antíge-
vírus como vetores vacinais incluem-se: BoHV-1 nos virais. Nesse caso, o gene que codifica uma
expressando antígenos do RabV, do BVDV e do proteína viral imunoprotetora pode ser inserido
vírus sincicial respiratório bovino (BRSV). O re- no genoma bacteriano, através de manipulação
sultado é uma vacina polivalente para bovinos genética. A bactéria recombinante é, então, am-
que estimula o sistema imune no local de entrada plificada em cultura e administrada pela via oral
desses vírus. ao hospedeiro. Ao atingir o intestino, a bactéria
Umas das características desejáveis nos ve- se multiplica e produz o antígeno viral, que é
tores virais é a ausência de excreção – ou excreção apresentado ao sistema imunológico. Enterobac-
mínima – do vírus no ambiente. No caso dos ve- térias, como Escherichia coli (E. coli) e Salmonella,
tores de herpesvírus, existe ainda a preocupação são consideradas boas candidatas a vetores de
com a possibilidade do vírus vetor estabelecer antígenos de vírus entéricos devido à perspecti-
latência no animal vacinado. Estudos realizados va de apresentação do antígeno viral diretamente
com o herpesvírus canino (CHV) como vetor va- no tecido linfóide que está associado ao intestino.
cinal para uso em raposas demonstraram que, Vetores bacterianos para antígenos virais apre-
embora o vírus tenha sido detectado nos sítios de sentam boas perspectivas para uso em humanos,
latência, não foi observada a reativação viral. pois além de induzirem resposta imunológica lo-
342 Capítulo 12

cal (IgA), podem ser administrados pela via oral, versível da sua infectividade por métodos físicos
o que também representa uma vantagem. ou químicos. São, portanto, vacinas compostas de
partículas víricas íntegras, porém inertes e sem
capacidade replicativa. São consideradas vacinas
4.2 Vacinas não-replicativas seguras porque possíveis vírus contaminantes,
se presentes no estoque original de vírus, são
As vacinas não-replicativas não contêm o também inativados durante o processo de inati-
agente viável e, por isso, são mais seguras do que vação. Além disso, após a inativação, não existe
as vacinas com vírus replicativo. Assim, não ofe- possibilidade de retorno do vírus vacinal à forma
recem a possibilidade de reversão à virulência e virulenta.
de causar doença. No entanto, por não resulta- Para a produção da vacina, o vírus é ini-
rem em amplificação do antígeno – como ocor- cialmente amplificado em um sistema biológico
re com as vacinas vivas – e por não induzirem (cultivo celular, ovos embrionados) até atingir
resposta mediada por linfócitos Tc, apresentam altos títulos. Esses vírus são, então, submetidos
efetividade geralmente inferior às vacinas com ao processo de inativação, que objetiva eliminar
vírus replicativo. No entanto, essas vacinas pos- a sua viabilidade. Durante a eliminação da capa-
suem inúmeras aplicações e têm contribuído para cidade infectiva do vírus, procura-se preservar a
o controle e erradicação de várias doenças víricas capacidade antigênica, de modo que a resposta
importantes, como a febre aftosa. Várias vacinas imunológica seja devidamente estimulada. A
não-replicativas estão disponíveis no mercado e manutenção da integridade da conformação dos
outras tantas estão em fase de desenvolvimento antígenos imunoprotetores é um fator que pode
ou testes. As vacinas não-replicativas podem ser influenciar na resposta imunológica. Produtos
compostas por vírions inativados, por frações químicos, como o formaldeído, etilenemina e β-
ou proteínas extraídas dos vírions, por proteínas propiolactona, são utilizados para inativar vírus
virais recombinantes, por peptídeos sintéticos para uso em vacinas. Esses químicos, contudo,
correspondentes aos determinantes antigênicos se empregados em concentrações e tempo exces-
imunoprotetores das proteínas e, finalmente, por sivos, podem alterar a conformação de epitopos
DNA ou RNA que codifica a proteína de interes- virais e, conseqüentemente, resultar em redução
se (Figura 12.5). Dentre estas, a maioria contém da imunogenicidade do antígeno. Atualmente,
partículas víricas íntegras, porém desprovidas de a β-propiolactona e os derivados da etilenemina
infectividade (vacinas inativadas ou “mortas”). são os inativantes mais utilizados pela indústria
de vacinas.
4.2.1 Vacinas com vírus inativado A imunidade decorrente da aplicação de
vacinas inativadas é tipicamente humoral, uma
Vacinas inativadas, também chamadas de vez que as partículas inativadas são incapazes de
vacinas mortas, são obtidas a partir do vírus in- replicar no organismo hospedeiro e, deste modo,
fectivo original, que passa pela eliminação irre- desencadear a resposta celular mediada por lin-

Vacinas não-replicativas
(sem vírus vivo)

Vacinas Vacinas de Proteínas Vacinas de Vacinas de


inativadas subunidades recombinantes peptídeos DNA e RNA
sintéticos

Figura 12.5. Tipos de vacinas que não contêm o vírus replicativo.


Vacinas víricas 343

fócitos Tc. Após a administração de uma vacina 4.2.2 Vacinas de subunidades virais
inativada, ocorre a estimulação de clones especí-
ficos de linfócitos B, parte dos quais se transfor- O sistema imunológico – por meio de suas
mam em plasmócitos secretores de anticorpos e células e moléculas – não reconhece a estrutura
parte se transformam em células de memória, de completa do vírus. Ao contrário, reconhece e in-
longa duração. Clones de linfócitos Th são tam- terage com pequenas regiões das proteínas que
bém estimulados e auxiliam a proliferação e di- compõem as partículas víricas. Essas regiões, que
ferenciação dos linfócitos B por meio da secreção na realidade são determinadas seqüências de
de citocinas (interleucinas). Em uma exposição aminoácidos, são denominadas epitopos ou de-
posterior ao mesmo agente, as células de memó- terminantes antigênicos. Dentre os epitopos que
ria são rapidamente estimuladas e se diferen- um vírion possui, alguns são mais imunogênicos
ciam em plasmócitos. Os plasmócitos secretam do que outros. Além disso, a maioria dos epito-
grandes quantidades de anticorpos, muitos dos pos virais não gera imunidade protetora, capaz
quais com atividade neutralizante, que são res- de neutralizar os vírions ou provocar a lise das
ponsáveis pelo combate ao agente e controle da células infectadas. No entanto, existem proteínas
infecção. e epitopos altamente imunogênicos, contra os
Atualmente a maioria das vacinas virais quais a resposta imunológica é altamente efeti-
utilizadas em medicina veterinária são inativa- va. Dessa forma, é possível produzir vacinas com
das. O controle e a erradicação da febre aftosa, no frações ou proteínas do vírus, selecionadas den-
Brasil, são baseados na política de vacinação com tre as mais imunoprotetoras. Para isso, o vírus
deve ser inicialmente cultivado e produzido em
uma vacina inativada. A vacina contra a raiva,
grande quantidade. A seguir, uma ou mais des-
que é utilizada em diferentes espécies, também
sas proteínas virais são purificadas por métodos
é obtida pela amplificação do vírus em células de
químicos e administradas junto com adjuvantes
cultivo e posterior inativação. Várias vacinas ina-
na forma de vacina (Figura 12.6). Por conterem
tivadas estão atualmente em uso para proteger
apenas frações do vírus, essas vacinas são deno-
animais de viroses.
minadas vacinas de subunidade. Portanto, as va-
Ainda que sejam seguras e estáveis à tem-
cinas de subunidade contêm apenas porções ou
peratura ambiente, a magnitude e a duração da
proteínas do vírus, e não o vírus completo, sendo
imunidade resultante do uso dessas vacinas são
desprovidas de capacidade replicativa e são mui-
relativamente menores do que as produzidas pe-
to seguras.
las vacinas atenuadas. A incapacidade de repli- Essa metodologia tem sido utilizada para a
cação do vírus determina a necessidade de rea- produção de vacinas contra a influenza humana.
lizar reforços vacinais, além de se incluir grande Para tal, diferentes cepas do vírus são cultiva-
quantidade de antígeno na vacina, o que pode das em ovos embrionados de galinhas seguido
elevar o seu custo. Apesar dessas estratégias, os de inativação e subseqüente purificação das he-
resultados são geralmente inferiores aos obtidos maglutininas virais que irão constituir a vacina.
com vacinas vivas. Além disso, as vacinas inati- Uma outra opção disponível é a vacina contendo
vadas requerem o uso de potencializadores da as glicoproteínas da superfície do vírus (hema-
resposta imunológica – denominados adjuvantes glutinina), que são reunidas e administradas na
– que também aumentam o seu custo e provo- mesma vacina. A vacina clássica contra o vírus
cam efeitos colaterais. Não obstante, as vacinas da hepatite B humana (HBV) era produzida pela
inativadas continuam sendo a única opção contra purificação de partículas subvirais inertes, obti-
algumas doenças, seja pela impossibilidade de das do plasma de indivíduos portadores. Con-
se obter suficiente atenuação do agente ou pela tudo, apesar dos diversos trabalhos de pesquisa
impossibilidade de se usar o vírus replicativo em descritos, ainda não há opções de vacinas de su-
algumas situações, como em fêmeas prenhes ou bunidades disponíveis no comércio para vírus de
em áreas livres. interesse veterinário.
344 Capítulo 12

4.2.3 Vacinas de proteínas


Vírus de interesse recombinantes
NA A base dessas vacinas é semelhante às an-
HA
teriores, com a diferença que a proteína viral de
interesse não é extraída dos vírions, e sim pro-
duzida em organismos recombinantes. O gene
de interesse é removido do vírus e inserido no
genoma de bactérias ou leveduras, que passam a
produzir a proteína em grande quantidade, pos-
sibilitando a sua purificação e administração na
forma de vacina (Figura 12.7). Este sistema, além
de produzir uma maior quantidade da proteína
Purificação imunoprotetora, é também seguro e de baixo cus-
das proteínas
to. A vacina atual contra a HBV, licenciada e dis-
HA ponível para a imunização humana, foi produzi-
da a partir da clonagem de genes que codificam
o antígeno de superfície do HBV (HBsAg) em
NA levedura. Os antígenos produzidos pelas levedu-
ras recombinantes são subseqüentemente purifi-
cados e utilizados como vacina. A administração
dessa proteína ao hospedeiro estimula o desen-
volvimento de resposta imunológica específica
Administração
ao hospedeiro contra o vírus.
Utilizando o sistema de bactérias ou levedu-
||
||

ras, genes que codificam capsídeos virais também


||
||
||
||

podem ser clonados em plasmídeos e produzi-


||
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||
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dos em grande escala. As proteínas produzidas


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|

se organizam em uma estrutura semelhante ao


vírus original, porém vazio (virus-like particles), e
podem ser utilizadas como vacina. Como essas
partículas virais não possuem ácidos nucléicos
e capacidade de replicação, são desprovidas de
infectividade e totalmente seguras. Embora essas
partículas já tenham sido produzidas experimen-
talmente para várias espécies de rotavírus, calici-
vírus, picornavírus e orbivírus, ainda não estão
licenciadas no mercado veterinário. Alternativa-
mente, vírus de plantas, como o vírus do mosaico-
Figura 12.6. Princípio das vacinas de subunidades virais. tabaco, podem servir como vetores de antígenos
O vírus de interesse é amplificado até atingir altos
vacinais, que são administrados a plantas trans-
títulos. As proteínas de interesse são, então, purificadas
gênicas que produzem o antígeno. Vacinas que
por métodos químicos e utilizadas para imunizar os
hospedeiros. O exemplo se refere às vacinas de utilizam esta estratégia de plantas transgênicas já
subunidades contra o vírus da influenza humana, que foram desenvolvidas contendo genes do FMDV
contêm frações purificadas das glicoproteínas e do BoHV-1. Recentemente, foi produzida e está
hemaglutinina (HA) e neuraminidase (NA). disponível no comércio uma vacina recombinan-
Vacinas víricas 345

te contra o papilomavírus humano (HPV), agente


Vírus de interesse associado com carcinoma de colo uterino em mu-
lheres. A proteína do capsídeo do HPV é produ-
zida em levedura, e as suas unidades se associam
formando estruturas semelhantes aos vírions (vi-
rus like particles, VLPs). Essas partículas são, en-
tão, utilizadas como imunógeno e induzem boa
proteção contra a infecção. Uma vacina contra
gp70 o vírus da leucemia felina (FeLV) foi produzida
Clonagem do pela expressão da glicoproteína viral gp70 em E.
gene da gp70
em bactéria ou coli (Figura 12.7).
levedura
Vacinas que utilizam proteínas purificadas
estimulam linfócitos Th CD4+, além de resposta
humoral mediada por linfócitos B e anticorpos,
contudo, não geram uma resposta relevante de
Multiplicação linfócitos Tc. A ausência de resposta citotóxica
em grande
escala
deve-se ao fato de essas proteínas serem proces-
sadas e apresentadas quase exclusivamente asso-
ciadas ao complexo de maior de histocompatibi-
lidade (MHC) classe II. Como resultado, não há
a adequada estimulação e resposta mediada por
linfócitos Tc, que dependem de estimulação via
MHC-I. Vacinas contendo proteínas recombinan-
Purificação tes apresentam perspectivas promissoras para
da proteína
uso em várias doenças víricas animais e huma-
nas.
gp70

4.2.4 Vacinas de peptídeos sintéticos


Administração
ao hospedeiro
||

Por maior que seja a molécula do antígeno,


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||
||
||
||
||

somente alguns epitopos são importantes para o


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||
||
||
||

reconhecimento pelos linfócitos B e indução da


||
|

resposta imunológica. Assim, os epitopos virais,


que são bem conhecidos e caracterizados por
apresentarem maior capacidade imunoprotetora,
podem ser sintetizados em laboratório, resultan-
do em uma vacina de peptídeos sintéticos. Ou
seja, essas vacinas contêm apenas as seqüências
de aminoácidos correspondentes aos epitopos
relevantes, produzidas sinteticamente em labo-
Figura 12.7. Princípio das vacinas de proteínas
recombinantes. O gene que codifica uma proteína ratório.
estrutural imunogênica do vírus é inserido no genoma Os peptídeos produzidos são quimicamente
de bactérias ou leveduras, que passam a expressar a
proteína. Esses organismos são cultivados em grande
análogos aos determinantes antigênicos originais
escala e a proteína de interesse é purificada e utilizada e, em geral, contêm de 3 a 10 aminoácidos. Por
para imunizar os animais. O exemplo se refere à vacina meio desta metodologia, foi possível estimular
de proteína recombinante contra o FeLV, em que a
glicoproteína gp70 é produzida em um sistema a produção de anticorpos neutralizantes contra
heterólogo e utilizada como vacina. RabV, FMDV e parvovírus canino.
346 Capítulo 12

Os linfócitos B reconhecem antígenos na sua no organismo hospedeiro, o DNA é transporta-


conformação natural. Assim, muitos dos epito- do até o núcleo das células locais, onde o gene
pos capazes de estimular resposta humoral ne- será transcrito, a proteína produzida e, posterior-
cessitam manter esta conformação. No entanto, mente, apresentada ao sistema imunológico. O
grande parte dos peptídeos que são sintetizados resultado é a estimulação de resposta imunológi-
apresenta-se como cadeias curtas de forma linear, ca humoral e celular contra esta proteína e, como
não dispondo de conformação terciária ou qua- conseqüência, contra o vírus que a possui em sua
ternária. Como conseqüência, o nível de indução estrutura.
dos linfócitos B e a atividade dos anticorpos que As vias de administração mais utilizadas
é induzida pelas vacinas de peptídeos sintéticos para as vacinas de DNA são a intramuscular e
são baixos e insatisfatórios quando comparados a intradérmica, através das quais os plasmídeos
com aqueles induzidos pelas vacinas compostas podem ser injetados associados a lipídeos cati-
por partículas virais completas ou por proteínas ônicos ou através da metodologia de balística
purificadas. Uma das estratégias usadas para (gene-gun).
contornar esta baixa imunogenicidade é a ligação Nos experimentos realizados até o presente,
dos peptídeos a proteínas maiores para induzir os níveis de anticorpos detectados após a vacina-
uma melhor resposta e produção de anticorpos. ção ainda são baixos. De fato, para induzir uma
resposta imunológica satisfatória, é necessária a
4.3 Vacinas de DNA e RNA inoculação de uma grande quantidade de DNA.
Por isso, a administração das vacinas através de
No início dos anos 1990, foi demonstrado gene-gun tem se mostrado mais eficiente frente às
que a administração intramuscular de um DNA demais vias, já que possibilita administrar gran-
plasmideal contendo um gene sob a regulação de des quantidades de DNA, capazes de gerar res-
um promotor de eucariotas era capaz de levar à posta imune de maior magnitude. Porém, as di-
expressão da proteína codificada pelo gene nas ficuldades práticas da adoção desse método para
células do animal inoculado. Dessa forma, fo- aplicação da vacina tornam remota a sua adoção
ram criadas as vacinas de DNA, que consistem na área veterinária.
de DNA exógeno contendo o gene da proteína de Embora o mecanismo de ação das vacinas de
interesse sob regulação de um promotor. A ino- DNA seja aparentemente simples, pouco ainda é
culação desse DNA em animais resulta na pro- conhecido sobre a maneira exata pela qual de-
dução da proteína viral nos tecidos do hospedei- sencadeiam a resposta imunológica. Sabe-se que
ro, o que desencadeia uma resposta imunológica a produção dos antígenos imunogênicos ocorre
contra ela. A natureza da resposta desencadeada intracelularmente no organismo hospedeiro, por-
é altamente desejável: além de resposta humoral, tanto, não existem os riscos observados nas va-
essa estratégia permite a estimulação de linfóci- cinas vivas, tais como infecção, produção de la-
tos Tc, que são importantes na resposta contra tência e desenvolvimento de imunidade contra o
vírus. vetor vacinal. Os peptídeos resultantes são reco-
A elaboração de uma vacina de DNA neces- nhecidos como não-próprios, sendo, então, pro-
sita a identificação prévia de um gene que codifi- cessados por células apresentadoras de antígenos
ca uma determinada proteína imunodominante e e expostos às células do sistema imune, via MHC
indutora de resposta protetora, o qual é inserido classe I e II, resultando na indução de resposta de
em um plasmídeo de expressão. Esse plasmídeo, linfócitos Tc e Th, respectivamente. A resposta de
que serve como vetor vacinal, contém um pro- linfócitos Tc é uma das principais vantagens das
motor eucariótico forte e um marcador de sele- vacinas de DNA em relação aos outros tipos de
ção para a produção do DNA em grande escala vacinas não-replicativas, que somente estimulam
em bactérias. Uma grande quantidade desses linfócitos Th. Diversos estudos indicam que a res-
plasmídeos é produzida em E. coli, sendo, então, posta humoral e celular resultante é bastante sa-
purificada e inoculada no hospedeiro. Uma vez tisfatória e, experimentalmente, não foram detec-
Vacinas víricas 347

tadas interferências com a imunidade passiva. ses de cães, que contêm antígenos de até cinco
Uma variação das vacinas de DNA são as vírus diferentes em sua formulação, além de an-
vacinas de RNA. Nesses casos, o RNA mensa- tígenos bacterianos. Estas apresentam como obje-
geiro (mRNA) que codifica proteínas virais de tivo imunizar os animais contra os agentes mais
interesse é produzido in vitro e incorporado em prevalentes da espécie, mesmo que alguns não
lipossomos ou em micropartículas. A inoculação apresentem relação epidemiológica entre si. São
dessas partículas ou lipossomos no animal resul- disponíveis comercialmente também vacinas di-
ta em transporte do mRNA para o interior das e trivalentes, contra vírus de maior importância
células, onde ocorre a tradução e produção da em determinadas situações epidemiológicas.
proteína. Esta proteína é, então, apresentada ao A maior vantagem das vacinas multivalen-
sistema imunológico, resultando em estimulação tes é a praticidade, pois permitem a imunização
de resposta humoral e celular. dos animais contra vários agentes na mesma
Embora as vantagens e aplicações original- aplicação. Essas vacinas, no entanto, apresen-
mente vislumbradas, as vacinas de DNA e RNA tam algumas restrições potenciais do ponto de
ainda não encontraram a aplicação inicialmen- vista imunológico: a) exigem a resposta simultâ-
te prevista. Atualmente, apenas uma vacina de nea do sistema imunológico contra um número
DNA encontra-se disponível para uso veteriná- muito grande de antígenos; b) mesclam antíge-
rio. Esta vacina – disponível nos EUA – é dire- nos imunodominantes com antígenos menos do-
cionada para proteger eqüinos contra o vírus do minantes; c) incluem agentes imunosupressores
Nilo Ocidental (WNV), infecção emergente nas em algumas delas; d) unificam a ocasião da apli-
Américas. cação, que pode não ser ótima para vários dos
antígenos presentes; e) algumas mesclam vírus
4.4 Vacinas monovalentes vivo com vírus inativado. Mesmo assim, várias
e polivalentes vacinas de uso animal contêm antígenos de mais
de um vírus em sua formulação e muitas delas
Várias vacinas de uso humano e animal con- têm sido usadas com sucesso para o fim a que se
têm antígenos de mais de um vírus – e também destinam.
de bactérias – em sua formulação. O objetivo de As vacinas replicativas e não-replicativas
se formular vacinas di-, tri-, tetra- ou polivalentes apresentam propriedades e restrições, de acordo
é o de facilitar o manejo da vacinação, ou seja, com a sua formulação e finalidade a que se des-
imunizar os animais contra vários patógenos em tinam. As principais vantagens e desvantagens
apenas uma ocasião. Dentre as vacinas multiva- desses dois tipos de vacina estão apresentadas na
lentes, podem-se mencionar dois tipos, de acordo Tabela 12.2.
com o objetivo e abrangência: a) vacinas multi-
valentes direcionadas contra síndromes clínicas 5 Adjuvantes
definidas; b) vacinas multivalentes direciona-
das contra vírus não-relacionados, mas que são Os adjuvantes são substâncias que têm a fun-
prevalentes na população. Dentre as primeiras, ção de potencializar a resposta imunológica in-
incluem-se as vacinas contra os vírus que com- duzida por vacinas não-replicativas, constituídas
põem o complexo respiratório bovino (BoHV-1, por vírus inativados, subunidades ou proteínas
BVDV, vírus da parainfluenza 3 e BRSV), que fre- recombinantes. As proteínas na forma solúvel e
qüentemente estão associados na etiologia dessa os antígenos purificados e de baixo peso molecu-
patologia. Nessa categoria também se incluem as lar que compõem essas vacinas podem ser pou-
vacinas contra diarréias neonatais de bovinos e co imunogênicos, mas apresentam um aumento
suínos, que possuem rotavírus e coronavírus em acentuado na sua imunogenicidade quando são
sua formulação, além de antígenos bacterianos. combinadas com adjuvantes. Por isso, com exce-
Dentre as vacinas multivalentes contra vírus não- ção das vacinas atenuadas (compostas de vírus
relacionados, incluem-se as vacinas contra viro- vivo) e das vacinas de DNA e RNA, as outras for-
348 Capítulo 12

Tabela 12.2. Propriedades e restrições das vacinas víricas replicativas (vivas) e não-replicativas (não-vivas)

Característica Replicativas Nã-replicativas

Imunidade mediada por linfócitos TcD8+ Sim Não

Duração da imunidade Longa Curta

Necessidade de adjuvante Não Sim

Quantidade de antígeno por dose Pequena Grande

Número de doses Uma (geralmente) Várias

Via de administração Injetável ou oral Injetável

Estabilidade térmica Lábil Estável

Reversão à forma virulenta Raro Não

Uso em fêmeas em gestação Não recomendado Sim

mas de vacinas não-vivas devem, necessariamen- apresentadoras de antígenos. Por outro lado, a
te, incluir adjuvantes em sua formulação. maioria dos adjuvantes não é capaz de formar li-
Além de aumentar a magnitude da resposta gações estáveis com o antígeno.
imune, alguns adjuvantes são capazes de promo- Diversas substâncias têm sido utilizadas
ver a indução da imunidade de mucosas e esti- como adjuvantes, diferindo na sua composição,
mular linfócitos Tc, aumentando a eficiência de que geralmente determina o modo de ação (Ta-
macrófagos e células dendríticas na apresentação bela 12.3). Em geral, existem dois mecanismos
de antígenos e prolongando a expressão do com- principais de atuação: sistemas de entrega do an-
plexo peptídeo/MHC-II na superfície de células tígeno e adjuvantes imunoestimuladores.

Tabela 12.3. Principais adjuvantes utilizados em vacinas de uso veterinário e seu mecanismo de ação

Tipo de adjuvante Forma de ação Exemplos

Sais inorgânicos Armazenamento e liberação Hidróxido de alumínio, fosfato


gradual do antígeno. de alumínio, fosfato de cálcio.

Armazenamento e liberação Adjuvante completo de


Componentes de gradual do antígeno, Freund.
bactérias estimulação de macrófagos

Estimulação de macrófagos LPS, BCG (linhagem atenuada


e indução da liberação de de Micobacterium bovis).
citocinas.

Armazenamento e liberação Adjuvante incompleto de Freund


gradual do antígeno. (emulsão de óleo em água).
Partículas lipídicas
Liberação do antígeno Lipossomos, virossomos,
encapsulado no citosol, ISCOMs.
estimulando linfócitos T
citotóxicos.

Citocinas Estímulo de células T Interleucinas 1, 2 e 12;


citotóxicas ou de células Interferon alfa e gama.
dendríticas.
Vacinas víricas 349

Sais inorgânicos, como o hidróxido de alu- completo de Freund não é utilizado em animais
mínio, promovem a precipitação e a deposição de produção, devido à possibilidade de induzir
do antígeno no local da aplicação da vacina, de reação cruzada com o teste de tuberculinização e
onde será liberado gradualmente. A liberação à intensa reação local. As reações adversas locais,
lenta do antígeno é também o princípio de ação bem como a possibilidade de desenvolver efei-
das emulsões de água em óleo, como o adjuvante tos carcinogênicos, fazem com que este tipo de
incompleto de Freund, que forma depósitos no adjuvante também não seja utilizado em vacinas
tecido inoculado. humanas.
Frações de origem bacteriana podem ser
ótimos adjuvantes. Os lipopolissacarídeos (LPS)
Emulsões água Sais de
bacterianos desencadeiam sinais que tornam as em óleo alumínio
células apresentadoras de antígeno mais ativas.
Esses compostos induzem ainda a produção de
citocinas inflamatórias e, conseqüentemente, a LPS, Persistência Lipossomos,
resposta imunológica local é de magnitude su- adjuvante do antígeno polímeros de
de Freund manose
perior. O adjuvante completo de Freund contém,
além do óleo mineral, micobactérias inativadas,
cujos componentes da parede celular são capazes
de aumentar a imunoestimulação.
Vesículas artificialmente produzidas a partir
de lipídeos, denominadas lipossomos, podem in-
corporar antígenos no seu interior ou superfície.
Se os lipossomos forem envoltos por proteínas
do envelope viral, serão capazes de mimetizar o Macrófago,
célula dendrítica
envelope natural do vírus, sendo chamados de
virossomos. Vacinas contra a influenza e vírus da
Síntese de Processamento
hepatite A humana, baseadas em virossomos, já citocinas e apresentação
foram licenciadas em vários países europeus. de antígeno
Complexos imunoestimuladores (ISCOMs)
resultam da mistura do antígeno ao colesterol,
fosfolipídeos e à saponina Quil A, um glicosídeo Estimulação de linfócitos
Th, Tc e B
purificado de plantas. Os ISCOMs apresentam
estrutura esférica, com cerca de 40 nm de diâme-
tro, e já existem algumas vacinas para uso vete-
Potencialização
rinário que utilizam este complexo como adju- da imunidade
vante. Outra possibilidade que surgiu através da
tecnologia de DNA recombinante foi a fusão de
proteínas ou peptídeos imunoprotetores de vírus Fonte: adaptado de Tizard (2001).

com diferentes citocinas. Esses complexos agi-


Figura 12.8. Mecanismos de potencialização da resposta
riam como adjuvantes e direcionariam a resposta
imunológica, desencadeados pelos principais
imune desejada. adjuvantes utilizados em vacinas de uso veterinário.
As células apresentadoras de antígenos, par-
ticularmente as células dendríticas e os macrófa- Somente compostos contendo alumínio, hi-
gos, são os principais alvos da ação dos adjuvan- dróxido de alumínio ou fosfato de alumínio es-
tes, resultando em efeitos diversos que produzem tão atualmente aprovados para uso humano. Já
um aumento na resposta imune (Figura 12.8). na área veterinária, as substâncias mais utiliza-
Alguns efeitos adversos decorrentes do uso das como adjuvantes são o óleo mineral e os sais
de adjuvantes devem ser considerados. Os sais minerais baseados em alumínio, embora outros
inorgânicos geralmente desencadeiam reação gra- compostos estejam sendo testados experimen-
nulomatosa no local da aplicação. O adjuvante talmente. A principal dificuldade em identificar
350 Capítulo 12

novos adjuvantes é que, embora muitos resulta- os títulos de anticorpos que conferem proteção já
dos experimentais em animais demonstrem boa foram razoavelmente determinados. Assim, a de-
capacidade imunoestimuladora, esses compostos tecção de anticorpos com títulos desta magnitude
freqüentemente são tóxicos para os animais. nos animais vacinados pode ser utilizada como
indicativo de proteção e da eficácia da vacina.
Para vacinas replicativas, no entanto, o parâme-
6 Controle de qualidade
tro sorológico nem sempre reflete a magnitude da
resposta imunológica, pois não avalia a resposta
Durante o processo de desenvolvimento e
celular. Embora também utilizado para avaliar a
produção, as vacinas devem ser submetidas a
potência de vacinas replicativas, a sorologia deve
testes para assegurar a sua inocuidade e capaci-
ser considerada um indicador apenas parcial da
dade imunogênica. Dentre os testes realizados
imunogenicidade, pois essas vacinas induzem
incluem-se os de esterilidade (para assegurar
também resposta mediada por linfócitos Tc.
a ausência de contaminação bacteriana ou fún-
O método mais objetivo de se avaliar a eficá-
gica), inocuidade (para certificar que não causa
cia de uma vacina é a vacinação seguida de desa-
efeitos indesejáveis), estabilidade (para verificar
fio. Nesse teste, um grupo de animais é vacinado
a estabilidade genética e fenotípica dos vírus ate-
de acordo com as recomendações do fabricante,
nuados; ou para atestar a estabilidade do antí-
e outro grupo permanece não-vacinado (contro-
geno, no caso de vacinas inativadas) e potência
le). Após algum tempo (geralmente 30-60 dias),
(capacidade imunogênica).
os animais dos dois grupos são inoculados com
Dentre esses testes, os de potência assumem
o vírus patogênico pela via natural de infecção.
uma importância especial, pois avaliam a capa-
Essa inoculação é denominada desafio e objetiva
cidade da vacina de induzir uma resposta imu-
mimetizar uma situação de infecção natural que
nológica adequada. Em geral, esses testes são
os animais podem, eventualmente, enfrentar a
realizados na espécie animal para qual a vacina
campo. Após o desafio, os animais vacinados e
é destinada. No entanto, animais de laboratório
os controles são monitorados quanto à excreção
(cobaias, coelhos) podem também ser utilizados,
viral e, principalmente, quanto à manifestação de
desde que se avalie previamente a resposta imu-
sinais clínicos de doença. A eficácia da vacina é
nológica dessas espécies e se compare esta com
medida por sua capacidade de reduzir a excre-
a resposta do hospedeiro natural. A capacidade
ção viral (magnitude e duração) e, sobretudo, por
imunogênica de uma vacina pode ser avaliada
prevenir a ocorrência de doença nos animais va-
pela detecção e quantificação dos anticorpos pro-
cinados. Se a vacina objetiva prevenir a infecção
duzidos em resposta à imunização ou por testes
fetal e a ocorrência de abortos, por exemplo, fê-
de desafio.
meas prenhes previamente vacinadas devem ser
A quantificação da resposta sorológica in-
desafiadas, e o efeito da infecção nos fetos deve
duzida é o método mais utilizado para se avaliar
ser monitorado. Embora seja o método mais ob-
o potencial imunogênico de antígenos vacinais.
jetivo de avaliação de eficácia vacinal, este mé-
Para isso, um grupo de animais é vacinado e anti-
todo apresenta algumas dificuldades, tais como:
corpos específicos contra o vírus são pesquisados
custo elevado, dificuldade crescente do uso de
por técnicas sorológicas como soroneutralização
animais para experimentação, incerteza quanto à
(SN) ou ELISA, a diferentes intervalos após a va-
cepa e dose viral a ser utilizada no desafio, entre
cinação. Além da quantificação da resposta soro-
outras.
lógica a curto prazo (30, 60 dias), pode-se acom-
panhar os animais por um período mais longo, a
fim de monitorar-se a duração da resposta indu- 7 Conservação e administração de
zida. A maior restrição desse método refere-se ao vacinas
fato de que quantifica apenas a resposta humoral.
Portanto, é mais apropriado para a avaliação de As vacinas podem ser administradas por
vacinas não-replicativas, que induzem resposta diferentes vias, que são definidas pelas caracte-
predominantemente humoral. Para alguns vírus, rísticas do antígeno ou do vírus vacinal, do tipo
Vacinas víricas 351

de imunidade que se deseja estimular, da doença administradas na forma parenteral, podem não
contra a qual se destinam e também da espécie estimular a resposta de IgA na mucosa respirató-
animal na qual são aplicadas. As principais vias ria, sítio no qual a imunidade é mais importante
de administração de vacinas víricas são: intramus- frente a uma subseqüente exposição ao vírus.
cular, subcutânea, intradérmica, cutânea, ocular, Um importante avanço foi obtido na indús-
oral e nasal. A maioria das vacinas animais é ad- tria avícola com a demonstração de que embriões
ministrada por via parenteral (intramuscular ou de galinha podem ser vacinados ainda dentro do
subcutânea); algumas são administradas por via ovo e, assim, desenvolver precocemente uma res-
oral (na água de bebida ou ração) ou por meio de posta imunológica. A vacinação in-ovo estimula a
aerossóis; e poucas são administradas através de imunidade dos pintos antes dos primeiros dias
escarificações na pele. Vacinas de aplicação in- de vida, momento em que, provavelmente, terão
traprepucial e intravaginal também já foram de- o primeiro contato com o vírus de campo. Nesse
senvolvidas para a doença genital causada pelo caso, os ovos são vacinados entre os 17 e 18 dias
BoHV-1. A vacina contra o ectima contagioso de de incubação, exatamente no momento em que é
ovinos é aplicada em gotas, após escarificação feita a transferência para os nascedouros. A vaci-
da pele da face interna da coxa. A vacinação em nação in-ovo é realizada de modo automatizado,
massa é a forma mais adequada para a imuniza- através de um equipamento capaz de imunizar
ção de animais de produção, como suínos e aves, até 50.000 ovos a cada hora. Atualmente, essa via
e pode ser realizada por meio da água de beber e de vacinação está disponível apenas para a doen-
por aerossol. ça de Marek, mas há perspectiva de se estender
A via pela qual a vacina é administrada in- o método para outros patógenos importantes de
fluencia o tipo de imunoglobulina que é produ- aves.
zida, sendo um fator de grande importância na A correta conservação desempenha um pa-
prevenção da infecção, pois o estímulo da imu- pel muito importante na eficácia das vacinas. As
nidade deve ocorrer preferencialmente nos lo- vacinas com vírus replicativo apresentam menor
cais de penetração do vírus no organismo. Como estabilidade, pois o vírus pode perder a sua via-
exemplo, as vacinas de vírus atenuados que são bilidade sob condições inadequadas de tempe-
administradas pelas vias nasal e oral devem re- ratura e exposição à radiação solar. As vacinas
plicar no trato respiratório e intestinal, respecti- não-replicativas são geralmente mais estáveis,
vamente. porém também necessitam ser adequadamente
Nas infecções de mucosas, como a respira- conservadas para evitar a degradação dos antíge-
tória, intestinal, genital, urinária e ocular, a IgA nos e redução da sua potência. Como regra, reco-
secretada nessas mucosas é a imunoglobulina menda-se conservar as vacinas não-vivas a 4-6°C,
mais importante para a prevenção da infecção. evitando-se o congelamento e descongelamento.
Portanto, há situações em que a imunidade local A maioria das vacinas víricas vivas é comerciali-
é mais importante do que a imunidade sistêmica, zada de forma liofilizada e deve ser conservada
o que influencia diretamente na via de adminis- sob congelamento (-20ºC). Estas vacinas devem
tração da vacina. Vacinas atenuadas, administra- ser ressuspendidas imediatamente antes do uso,
das pela via oral contra o NDV das aves, têm a para evitar a perda da viabilidade do vírus vaci-
vantagem de favorecer a replicação viral no trato nal. Recomenda-se a sua aplicação no menor in-
intestinal, promovendo o estímulo e síntese de tervalo de tempo possível após a ressuspensão.
IgA local por um período prolongado. O vírus Se necessário, podem ser mantidas resfriadas
da poliomielite humana replica no epitélio intes- por algumas horas, evitando-se o congelamento
tinal, que é o mesmo sítio de replicação da vaci- e descongelamento. Exposição a desinfetantes,
na atenuada de uso oral, conhecida como Sabin. água clorada, irradiação solar e altas temperatu-
A imunidade resultante é, portanto, vantajosa ras são altamente prejudiciais à viabilidade dos
em relação à administração injetável da vacina. vírus e possuem efeitos altamente deletérios so-
Vacinas inativadas contra a influenza, que são bre a eficácia vacinal.
352 Capítulo 12

8 Falhas vacinais menos eficiente. O mesmo ocorre com o BVDV,


cujas vacinas disponíveis no comércio brasileiro
As vacinas víricas são utilizadas para con- contêm isolados norte-americanos, que são an-
ferir proteção contra exposições posteriores ao tigenicamente diferentes dos isolados locais. In-
agente, impedindo que as infecções resultem em felizmente, para muitas espécies de vírus, ainda
doença clínica. Se a resposta imunológica decor- existe pouca informação sobre as características
rente da vacinação for de amplitude e magnitu- genômicas e antigênicas das cepas que circulam
de adequadas, deverá minimizar a replicação e a na população animal local.
disseminação do vírus no organismo e prevenir Alguns métodos utilizados para a produção
a ocorrência de manifestações clínicas. No entan- de vacinas podem resultar em antígenos que são
to, algumas vezes, não se obtém o efeito protetor menos eficientes na ativação do sistema imuno-
esperado, por razões diversas. Em geral, as fa- lógico se comparados com o vírus original. De
lhas vacinais podem ser atribuídas a problemas fato, a destruição parcial ou completa dos epito-
intrínsecos da vacina, de sua conservação ou ad- pos imunoprotetores, que pode ocorrer durante
ministração, ou também a falhas do animal em o processamento e inativação do vírus vacinal, é
responder à vacinação (Figura 12.9). capaz de reduzir a sua capacidade imunogênica.
Várias famílias de vírus, principalmente as Ainda que o antígeno inativado permaneça es-
de genoma RNA, possuem sorotipos ou varian- tável, se estiver presente em quantidade insufi-
tes antigênicos que possuem distribuição variada ciente, poderá resultar no comprometimento da
na população. Dessa forma, pode ser importan- eficácia vacinal. Em grande parte, esses efeitos
te tipificar a cepa de campo de algumas espécies podem ser minimizados com base nos testes de
de vírus antes de se recomendar a vacina mais qualidade a que as vacinas comerciais devem ser
apropriada para uma determinada região. Um submetidas. Esses testes devem incluir necessa-
exemplo disto tem sido o IBV, contra o qual es- riamente provas de potência vacinal, nos quais
tão disponíveis várias cepas vacinais diferentes. é avaliada a capacidade imunogênica da vacina
Os isolados têm sido caracterizados por SN ou produzida.
PCR, seguido de seqüenciamento ou clivagem Muitas vezes, as causas de falhas vacinais
do genoma com enzimas de restrição. O resulta- estão relacionadas ao animal e decorrem da va-
do da caracterização é comparado com a das ce- cinação em período impróprio. Uma das causas
pas vacinais e pode-se optar pela cepa que mais mais freqüentes da falta de resposta vacinal é a
se assemelhe ao vírus de campo. Outro exemplo vacinação dos animais no período de incubação
tem sido a vacina autógena utilizada para o con- da doença, quando a vacina não será efetiva. O
trole do PCV, já que isolados de outras regiões momento de vacinar também deveria ser con-
ou empresas produtoras conferem uma proteção siderado na decisão de vacinar animais jovens.

Falhas vacinais

Falhas Falhas na conservação/ Falhas


da vacina administração do animal

– cepa incorreta; – conservação inadequada; – imunidade passiva;


– pouco antígeno; – administração inadequada; – animal já infectado;
– antígeno não-protetor; – animal com imunidade passiva; – animal imunodeprimido;
– pouco adjuvante/ – animal já infectado. – animal doente;
adjuvante incorreto. – variação individual.

Figura 12.9. Principais causas de falhas vacinais.


Vacinas víricas 353

Se realizada no momento em que os animais lote. Para espécies criadas em grandes concentra-
ainda estão protegidos pela imunidade passiva, ções, como na avicultura industrial, a viabilidade
a vacinação será parcialmente efetiva devido à de vacinas orais compostas de vírus sensíveis ao
interferência dos anticorpos maternos. De fato, cloro pode ser comprometida com a excessiva
a presença de imunidade passiva provavelmen- cloração da água, que é utilizada como veículo
te se constitui em uma das causas mais comuns vacinal. Finalmente, deve ser considerada a inter-
de falhas vacinais. A resposta à vacina pode ser ferência de desinfetantes empregados excessiva-
prejudicada ainda por condições desfavoráveis mente para a antissepsia que precede a adminis-
do animal vacinado, principalmente situações de tração parenteral de vacinas vivas.
estresse, presença de doenças imunodepressoras, Cabe ressaltar que a ocorrência de doença
subnutrição ou intensa infestação por parasitas. branda em animais vacinados não significa ne-
Por todos os aspectos que influenciam a cessariamente uma falha vacinal. As vacinas são
imunidade que decorre da vacinação, sabe-se produzidas para proteger os animais da doença
que a resposta imunológica não será de magni- clínica. No entanto, algumas delas não conse-
tude igual em todos os indivíduos vacinados. Ou guem cumprir integralmente este objetivo e, mes-
seja, cada animal responderá de maneira indivi- mo animais vacinados, podem desenvolver um
dual. Assim, a maioria dos animais montará uma quadro clínico discreto. Se esta vacina for efetiva
resposta moderada ou média; e alguns animais na redução significativa da gravidade da doença,
responderão de forma excelente e outros de for- quando comparada com animais não-vacinados,
ma insatisfatória. Os animais que respondem de pode-se afirmar que a mesma cumpriu parcial-
maneira insuficiente são epidemiologicamente mente o seu objetivo.
importantes em doenças altamente contagiosas,
como a febre aftosa, e representam uma possibi- 9 Reações adversas da vacinação
lidade de disseminação da doença. Já em viroses
pouco insidiosas e de evolução lenta, como a rai- Embora os benefícios obtidos pelo uso da
va, uma população vacinada que responde de vacinação sejam inquestionáveis, como a erradi-
forma parcial à vacina pode ser suficientemente cação de várias doenças virais, nenhuma vacina
capaz de impedir a disseminação da doença. é totalmente isenta de riscos. Apesar de relativa-
A eficácia das vacinas pode ser prejudicada mente raros, efeitos indesejáveis e prejudiciais à
pelo armazenamento inadequado, principalmen- saúde do hospedeiro têm sido relatados pelo uso
te no caso de vacinas contendo vírus vivos man- de vacinas. Por isso, a possibilidade de efeitos
tidas sob temperaturas superiores à recomenda- colaterais não deve ser negligenciada e os bene-
da. Mesmo que armazenadas de modo correto, fícios advindos da vacinação devem superar os
o título viral das vacinas vivas tende a reduzir riscos possíveis resultantes de seu uso.
devido à inativação de vírus ao longo do prazo Efeitos residuais de virulência em vacinas
de validade do produto. Por exemplo, as vacinas vivas devem ser considerados. Um sorotipo avi-
associadas a células que são utilizadas contra a rulento do poliovírus, utilizado na vacina oral in-
doença de Marek sofrem acentuada redução do fantil, pode sofrer mutações e tornar-se virulento,
título viral durante o período de armazenamen- causando poliomielite pela administração da va-
to a -20ºC. Dessa forma, devem ser estocadas em cina numa taxa de um caso a cada milhão. Casos
nitrogênio líquido e, uma vez descongeladas, de- de encefalite pós-vacinal, atribuída ao vírus pre-
vem ser aplicadas em um curto período de tem- sente na vacina, já foram relatados em bovinos
po. vacinados contra o BoHV-1 e em cães vacinados
Por outro lado, a vacinação por métodos al- contra o CDV.
ternativos ao parenteral, como a via nasal, oral ou Vacinas vivas devem ser utilizadas com
por aerossóis, pode dificultar não só a adminis- muito critério em animais imunodeprimidos.
tração da dose vacinal correta, como também a Por outro lado, a vacinação contra um agente
imunização uniforme de todos os animais de um pode causar imunodepressão, que pode ser de-
354 Capítulo 12

terminante na resposta à vacinação contra outros que a resposta de cada organismo é muito pecu-
microorganismos. Vacinas atenuadas contra a liar. Contudo, os mais envolvidos são os antíge-
parvovirose canina causam imunodepressão em nos derivados dos cultivos de células ou de ovos
filhotes, os quais podem adoecer após a aplicação embrionados utilizados para o cultivo do vírus.
de vacina viva contra a cinomose. Também o es- Pessoas ou animais alérgicos a albumina do ovo
tresse causado pelo manejo dos animais durante podem apresentar hipersensibilidade imediata
a vacinação é uma causa comprovada de reativa- e desenvolver choque anafilático em resposta a
ção das infecções latentes pelos herpesvírus. vacinas cujo vírus foi amplificado em ovos em-
A vacinação de fêmeas em gestação deve ser brionados. Um efeito adverso menos deletério é
precedida de cuidados com relação à decisão de a opacidade da córnea em cães decorrente da va-
vacinar contra determinados vírus, assim como cinação contra a hepatite viral canina com o ade-
na escolha do tipo de vacina a ser utilizada. Vaci- novírus canino tipo 1 (CAdV-1). Este problema
nas com vírus atenuados administradas a fêmeas tem sido evitado pela utilização do CAdV-2 na
gestantes que não foram anteriormente imuniza- formulação vacinal, em vez do CAdV-1.
das podem prejudicar o desenvolvimento fetal e O uso de vacinas pode favorecer a seleção
mesmo causar abortos, como no caso do vírus da de novas variantes antigênicas dos vírus. A imu-
panleucopenia felina (FPLV), BoHV-1 e BVDV. nização parcial do rebanho é apontada como uma
Sendo assim, vacinas contendo vírus inativados das causas de pressão seletiva que favorece o sur-
são as mais indicadas para a vacinação das fê- gimento de novas variantes do vírus, as quais po-
meas nesse período. dem substituir o vírus de campo. Em galinhas,
Por outro lado, é possível que vacinas inati- tem sido bem evidente o surgimento periódico
vadas potencializem a doença decorrente de um de novas variantes do IBV e do IBDV, apesar da
contato posterior com o vírus de campo por parte massiva utilização de vacinas contra esses pató-
do filhote vacinado. Esse fato já foi observado em genos.
crianças previamente vacinadas contra o vírus
respiratório sincicial (RSV) e em potros vacina- 10 Drogas antivirais
dos contra o vírus da encefalite eqüina do leste
(EEEV). A abordagem convencional para o controle
Reações de hipersensibilidade podem surgir das doenças virais tem sido o desenvolvimen-
após a administração de várias doses de vacina; to de vacinas efetivas, o que não tem sido pos-
principalmente tratando-se de vacinas inativadas sível para um número considerável de agentes.
ou de anti-soro. Essas reações podem variar de Em virtude disso, uma ênfase muito grande tem
hipersensibilidade do tipo III, com intensa reação sido dada para a busca de drogas antivirais, so-
inflamatória local, até distúrbio vascular generali- bretudo em medicina humana. No entanto, o
zado. Pacientes expostos ao RabV passavam pelo desenvolvimento de drogas antivirais é muito
tratamento pós-exposição com o soro anti-rábico mais difícil do que o desenvolvimento de drogas
produzido em coelhos, que exigia múltiplas apli- antibacterianas, embora as perspectivas a longo
cações abdominais, as quais, muitas vezes, desen- prazo sejam encorajadoras. A dificuldade de se
cadeavam reações de hipersensibilidade. Reações obter drogas antivirais aplicáveis a humanos e
de hipersensibilidade retardada, com formação animais se deve principalmente ao fato de a re-
de granulomas, podem ser ocasionadas pelo uso plicação viral utilizar fundamentalmente o me-
de determinados tipos de adjuvantes, como os tabolismo das células hospedeiras para replicar.
que agem pela formação de depósitos. Por isso, Desse modo, o equilíbrio para evitar a replicação
esses tipos de adjuvantes não são utilizados na viral e não causar toxicidade para a célula é mui-
formulação de vacinas para uso humano e ani- to sensível. Apesar disso, o conhecimento sobre
mal. Qualquer componente da vacina pode ser a bioquímica da replicação viral tem aumentado
responsável pelo desencadeamento da reação, já sensivelmente e permitido o desenvolvimento de
Vacinas víricas 355

drogas que são fundamentais para o tratamento de novas drogas é a síntese de substâncias que
de algumas viroses humanas (Tabela 12.4). Ain- inibam essas etapas, como os inibidores da trans-
da não existem drogas licenciadas para uso vete- criptase, replicase e protease. Após, variações
rinário, embora existam perspectivas de que isto dessas drogas são sintetizadas e testadas para se
possa ocorrer em breve. obter um inibidor mais potente e menos tóxico.
Teoricamente, todas as enzimas e processos Assim como ocorre nas drogas antibacteria-
essenciais para a replicação viral são alvos po- nas, a resistência às drogas antivirais também tem
tenciais para a terapia antiviral. Uma abordagem sido descrita. Por exemplo, existem dois tipos de
que tem sido utilizada para o desenvolvimento drogas contra o vírus da influenza A: os inibido-

Tabela 12.4. Drogas antivirais disponíveis para o tratamento de infecções víricas humanas

Droga Vírus Tipo químico Alvo

Vidarabina herpesvírus análogo de nucleosídeo polimerase viral

Aciclovir herpes simplex análogo de nucleosídeo polimerase viral


(HSV)

Ganciclovir e citomegalovírus análogo de nucleosídeo polimerase viral


valganciclovir

Análogos de
nucleosídeo inibidores
da transcriptase
reversa: Zidovudina
(AZT), Didanosina retrovírus (HIV) análogo de nucleosídeo transcriptase reversa
(ddI), Zalcitabina (ddC),
Stavudina (d4T),
Lamivudina (3TC)

Não nucleosídeos
inibidores da
retrovírus (HIV) análogo de nucleosídeo transcriptase reversa
transcriptase reversa:
Nevirapina, Delavirdina

Inibidores da protease:
Saquinavir, Ritonavir, HIV análogo de peptídeo protease do HIV
Nelfinavir

amplo espectro:
Ribavirina HSV, HCV, triazol carboxamida mutágeno de RNA
rubéola, sarampo

amplo espectro:
Ribavirina HSV, HCV, triazol carboxamida mutágeno de RNA
rubéola, sarampo

Amantadina, vírus da proteína da matriz,


amina tricíclica
Rimantadina influenza A hemaglutinina

vírus da mimético do ácido inibidor da


Relenza, Tamiflu
influenza A e B neuramínico neuraminidase

vírions (bloqueia a ligação


Meconaril picornavírus cíclico pequeno
e desnudamento)

vírus da hepatite ativa proteínas de


Interferons proteína
BeC defesa
356 Capítulo 12

res da neuraminidase e os derivados da adaman- dores de carne bovina, suína e de frango. Parale-
tina (amantadina e rimantadina). Um estudo do lamente, no âmbito interno, foi possível observar,
Centers for Disease Control (CDC), nos EUA, em nas últimas décadas, o aumento expressivo do
2005, demonstrou que ambos os princípios ativos interesse por animais de companhia, estimulan-
eram eficazes na redução da duração da sintoma- do o desenvolvimento de um mercado bastante
tologia clínica, contudo, não eram eficazes con-
específico de produtos alimentares e de medica-
tra todas as cepas circulantes. De fato, algumas
mentos.
cepas possuíam resistência contra mais de uma
Nesse sentido, as vacinas desempenham
dessas drogas. Outra desvantagem que as drogas
antivirais apresentam é a de que são efetivas na um papel fundamental no controle e erradicação
fase mais intensa de replicação viral. No entanto, de várias doenças virais humanas e animais. No
quando os sinais clínicos são mais aparentes – e mercado veterinário de vacinas, os animais de
por isto atraem o interesse do médico ou veteri- produção apresentam a maior parcela no fatura-
nário – grande parte da replicação viral responsá- mento (88,1%), enquanto os animais de compa-
vel pelas patologias observadas já ocorreu. nhia já respondem por 9,3%. Somados todos os
O interesse pelo desenvolvimento de drogas tipos de vacinas contra patógenos de animais, no
antivirais foi renovado após o surgimento de ví- ano de 2004, esse tipo de produto foi o que apre-
rus para os quais a obtenção de vacinas efetivas
sentou o maior faturamento (31,5%) no mercado
parece ser muito difícil, como o vírus da imuno-
de produtos veterinários no Brasil. Atualmente,
deficiência humana (HIV) e o vírus da hepatite
são licenciadas 433 diferentes vacinas para a li-
C (HCV), entre outros. O desenvolvimento de
drogas antivirais para vírus de interesse huma- nha veterinária, sendo que nem todas estão no
no certamente trará consigo importantes avanços mercado. Na Tabela 12.5, encontram-se listadas
para a obtenção de drogas aplicáveis também em as vacinas víricas licenciadas no país.
viroses animais. Diante da perspectiva futura de desenvol-
vimento e licenciamento de novas vacinas ba-
11 Vacinas víricas licenciadas seadas na metodologia de DNA recombinante,
no Brasil muito provavelmente algumas das vacinas atuais
poderão ser, gradativamente, substituídas por
O Brasil é um dos principais produtores pe- opções mais seguras e eficientes para proteger os
cuários e está entre os principais países exporta- animais de doenças víricas.

Tabela 12.5. Vacinas de uso veterinário, para as diferentes espécies animais, licenciadas para produção e
comercialização no Brasil

Espécie Vírus Tipo

parvovírus suíno inativada

Suínos herpesvírus suíno (doença de atenuada por deleção gênica (TK- e gE-);
Aujeszky) inativada (inativação de mutante viral gE-)

herpesvírus eqüino tipo 1 inativada

vírus da influenza eqüina inativada


Eqüinos vírus da encefalite Leste e Oeste inativada

vírus da raiva inativada por métodos químicos

vírus do ectima contagioso vírus vivo patogênico


Ovinos e Caprinos
vírus da raiva inativada por métodos químicos
Vacinas víricas 357

Tabela 12.5. Continuação

Espécie Vírus Tipo

vírus da cinomose atenuada por passagens em células; poxvírus


como vetor dos antígenos HA e F do vírus da
cinomose

adenovírus canino tipo 2 atenuada por passagens em


(traqueobronquite) células

parvovírus canino atenuada por passagens em


células
Caninos
adenovírus canino tipo 1 (hepatite atenuada por passagens em
infecciosa canina) células

vírus da raiva inativada por métodos químicos

coronavírus canino inativada por métodos físicos

vírus da parainfluenza tipo 2 atenuada por passagens em células

calicivírus felino atenuada por passagens em células

herpesvírus felino (rinotraqueíte) atenuada por passagens em células


Felinos
vírus da panleucopenia felina atenuada por passagens em células

vírus da leucemia felina antígeno recombinante purificado

vírus da raiva inativada por métodos químicos

vírus da febre aftosa inativada por métodos químicos

vírus da raiva inativada por métodos químicos

herpesvírus bovino tipo 1 e 5 inativada por métodos químicos,


atenuada por termosensibilidade

vírus da diarréia viral bovina inativada por métodos químicos


Bovinos
vírus da parainfluenza tipo 3 atenuada por alterações químicas,
atenuada por termossensibilidade,
inativada

vírus sincicial respiratório bovino atenuada (amostra viva modificada)

rotavírus bovino inativada por métodos químicos

coronavírus bovino inativada por métodos químicos

vírus da doença infecciosa da bursa atenuada

vírus da bronquite infecciosa aviária atenuada, inativada

vírus da doença de Marek atenuada por passagens em células; vírus


naturalmente atenuado (HVT)

vírus da doença de Newcastle atenuada, inativada

adenovírus aviário (síndrome da inativada


Aves queda de postura)

vírus da encefalomielite aviária atenuada por passagens em embriões de galinha;


cepa naturalmente atenuada

reovírus aviário inativada,


atenuada por termossensibilidade

pneumovírus aviário atenuada, inativada

vírus da laringotraqueíte atenuada por passagens em células

vírus da bouba aviária atenuada


358 Capítulo 12

12 Bibliografia consultada OSHOP, G.L.; ELANKUMARAN, S.; HECKERT, R.A. DNA


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13, p.225-244.
PARTE II
VIROLOGIA ESPECIAL
CIRCOVIRIDAE
Janice Reis Ciacci Zanella 13
1 Introdução 363

2 Classificação 363

3 Estrutura do vírion e do genoma 364

4 Replicação 366

5 Circovírus de interesse veterinário 367

5.1 Circovírus suíno tipo 2 368


5.1.1 Epidemiologia 368
5.1.2 Patogenia, sinais clínicos, patologia e imunidade 369
5.1.3 Diagnóstico 371
5.1.4 Controle e profilaxia 371

5.2 Anemia infecciosa das galinhas 372


5.2.1 Epidemiologia 372
5.2.2 Patogenia, sinais clínicos, patologia e imunidade 373
5.2.3 Diagnóstico 374
5.2.4 Prevenção e controle 374

6 Bibliografia consultada 374


1 Introdução lia Circoviridae e recentemente foi reclassificado
em um novo gênero, denominado Anellovirus. A
Os membros da família Circoviridae pos- exemplo dos circovírus de animais, os TTV pos-
suem vírions icosaédricos, sem envelope, com 14 suem vírions pequenos, não-envelopados, com
a 26 nm de diâmetro. O genoma DNA circular de DNA circular de fita simples. O genoma possui
fita simples (1.7-2.3 kb) é um dos menores entre entre 3.3 e 3.9 kb. Os TTV são vírus ubíquos e
os vírus animais. Os circovírus são encontrados 60 a 100% de pessoas saudáveis mundialmente
com freqüência em várias espécies, mas os suínos já tiveram contato com o vírus. Semelhanças ge-
se constituem nos únicos mamíferos nos quais o nômicas também existem entre os circovírus ani-
vírus já foi isolado. A família dos circovírus ani- mais (PCV-1) e vírus de plantas (Geminiviridae),
mais é composta por três vírus aviários e dois suí- atualmente reclassificados como nanovírus de
nos. Os circovírus aviários são: o vírus da anemia plantas.
infecciosa das galinhas (CAV), o vírus da doen-
ça das penas e bicos dos psitacídeos (BFDV) e o 2 Classificação
circovírus dos pombos (PiCV). Dois circovírus já
foram identificados em suínos: o PCV-1 e o PCV- Os circovírus foram identificados, pela pri-
2. O PCV-1 é um contaminante comum de células meira vez, em 1974, como contaminantes de uma
de cultivo de rim (PK-15) e não tem sido asso- linhagem de células renais de suínos (PK-15) e
ciado com doença em animais. Já o PCV-2 tem foram inicialmente descritos como “partículas
sido associado com diferentes síndromes clínicas, semelhantes aos picornavírus”. Posteriormente,
denominadas conjuntamente de circovirose suí- a caracterização do ácido nucléico extraído de
na. Com exceção do PCV-1, as infecções com os partículas víricas purificadas demonstrou que os
circovírus animais são associadas com doenças vírions continham uma molécula de DNA de fita
potencialmente fatais. Nessas doenças, as lesões simples circular. O nome circovírus suíno ou cir-
nos tecidos linfóides e imunossupressão são fre- covírus porcino (PCV) foi proposto por Tischer
qüentes. e colegas (1974), em reconhecimento ao primeiro
Na década de 1990, houve várias descrições vírus animal a possuir um genoma DNA circu-
de outros circovírus ou circovirus-like vírus, prin- lar. Essa denominação foi, posteriormente, ado-
cipalmente em aves (canários, avestruzes, gan- tada pelo Comitê Internacional de Taxonomia de
sos, dentre outros). O único circovírus humano Vírus (ICTV) quando os membros da Circoviridae
até hoje classificado, o torquetenovírus (TTV), foram descritos como uma família de vírus (Ta-
foi isolado de casos de hepatite pós-transfusão. bela 13.1). Em seguida, o BFDV e o CAV foram
Esse vírus foi previamente classificado na famí- também caracterizados e classificados conjunta-

Tabela 13.1. Reconhecimento e classificaçăo de membros da família Circoviridae

Ano de reconhecimento
Vírus Gênero Espécie (caracterização) Doença

PCV1 Circovirus Suínos 1974 (1982) Nenhuma

Anemia infecciosa
CAV Gyrovirus Galinha 1979 (1989)
das galinhas
Doença das penas e
BFDV Circovirus Pássaros psitacídeos 1984 (1989)
bicos dos psitacídeos
Mortalidade associada
PiCV Circovirus Pombos 1993 (2000) com definhamento e
anorexia
Circovirose suína ou
síndrome multissistêmica
PCV2 Circovirus Suínos 1997 (1998)
do definhamento dos
suínos (SMDS)

Fonte: adaptada de Todd (2000).


364 Capítulo 13

mente na família Circoviridae. O BFDV e os PCVs tras crio-preservadas. Os capsídeos desses vírus
são classificados no gênero Circovirus, enquanto possuem uma estrutura icosaédrica, contendo
o CAV é o único membro do gênero Gyrovirus, 60 moléculas da proteína do capsídeo arranjadas
com base em diferenças moleculares. Um segun- em 12 unidades pentaméricas. Porém, enquanto
do circovírus suíno, o PCV-2, com características o PCV-2 e o BFDV possuem capsômeros planos
antigênicas e genéticas diferentes do PCV-1, foi bastante similares, os capsômeros do CAV pos-
descrito posteriormente e está comprovadamen- suem aparência pontiaguda em forma de trom-
te associado com doença em suínos. pete. Essas características morfológicas distintas
demonstram que os vírus dos gêneros Gyrovirus e
3 Estrutura do vírion e do genoma Circovirus não são estruturalmente relacionados.
O capsídeo do CAV é composto por cópias
Os circovírus possuem vírions pequenos múltiplas de uma única proteína viral, a VP1. A
(14-26 nm de diâmetro), icosaédricos, sem enve- VP1 possui uma região N-terminal altamente bá-
lope. Pequenas diferenças estruturais podem ser sica de 50 aminoácidos, que interage com o DNA
observadas entre os vírions dos dois gêneros (Fi- viral encapsidado. A região C-terminal da VP1
gura 13.1). Em geral, os vírions do CAV são um possui seqüências funcionais associadas com a
pouco maiores do que os do PCV-2 e do BFDV replicação do DNA pelo mecanismo de círculo
(Tabela 13.2). A superfície do CAV também pos- rolante (RCR ou rolling circle), o que indica que a
sui um aspecto diferenciado quando analisada VP1 desempenha tanto papéis estruturais como
em estudos de mapas tridimensionais com amos- funcionais.

Criomicroscopia Mapa tridimensional

CAV

PCV2

CAV

BFDV

Fonte: Crowter et al. (2003).

Figura 13.1. Vírions da família Circoviridae. Esquerda: criomicroscopia eletrônica do CAV (A); PCV-2 (B) e
CAV/BFDV (C). Direita: mapa tridimensional dos respectivos vírions.
Circoviridae 365

Tabela 13.2. Características físicas e bioquímicas dos circovírus

Vírus CAV PCV1 PCV2 BFDV

Diâmetro da partícula (nm) 19.1-26.5 16.8-20.7 15-16 14-20.7

Densidade (g/ml em CsCl) 1.33-1.37 1.33-1.37 - 1.378

Coeficiente de sedimentação 91S 57S - -

Extensão do genoma (nt) 2298/2319 1759 1768 1993


Massa da proteína do
vírion (kDa) 50 36 28 27, 23, 17

Fonte: adaptada de Todd (2000).

O capsídeo do PCV-2 consiste de múltiplas nômico como pela cadeia complementar, estra-
cópias de uma proteína codificada pela ORF2, a tégia denominada ambissense. No genoma dos
qual encapsida um genoma de 1.7 kb. As prote- PCVs, três ORFs estão presentes no sentido do
ínas codificadas pela ORF2 do PCV-1 e do PCV- DNA complementar ao genoma (C1, 2 e 3) e uma
2 possuem 66% de identidade de aminoácidos. ORF está presente na seqüência correspondente
Essa proteína possui uma região N-terminal bási- ao DNA genômico (V1) (Figura 13.2A).
ca, capaz de interagir com o DNA viral, porém é O genoma do CAV possui polaridade ne-
desprovida da região envolvida na RCR. A repli- gativa, ou seja, as seqüências codificadoras estão
cação do genoma do PCV-2 é realizada com auxí- presentes no DNA complementar (e nos mRNAs
lio de outra proteína (Rep’). O BFDV possui uma transcritos a partir da cópia genômica). O DNA
organização genômica semelhante aos PCVs, e complementar apresenta três ORFs que codifi-
a proteína codificada pela sua ORF2 apresenta cam uma proteína estrutural (VP1) e duas não-
uma identidade de aminoácidos de 26% com a estruturais (VP2 e VP3) (Figura 13.2B). A VP3
proteína homóloga do PCV-2. está associada com a indução de apoptose em
As partículas dos circovírus podem ser puri- células do timo de galinhas infectadas. A VP2
ficadas em gradientes de cloreto de Césio a uma atua auxiliando a VP1 a adotar uma conformação
densidade de 1.35 a 138 g/ml e possuem um adequada para a construção do capsídeo. Todos
coeficiente de sedimentação de 91S (CAV) e de os isolados do CAV identificados até o presente
57S (PCV-1) em gradiente de sacarose. Os circo- pertencem ao mesmo sorotipo, e todos são pato-
vírus são extremamente estáveis sob condições gênicos quando inoculados experimentalmente
ambientais. Cultivos celulares, contendo esses em animais.
vírus, conservam o seu potencial infectivo após Os genomas do PCV-1 e PCV-2 são seme-
incubação a 56 ou 70°C, e tratamentos a pH 3 ou lhantes na sua organização e apresentam 76% de
clorofórmio, por 15 minutos. Essa resistência à homologia. Nesses genomas, existem seis ORFs
inativação desempenha um importante papel na potenciais, mas apenas três codificam proteínas
epidemiologia do agente e possui implicações já identificadas: ORF1, ORF2 e ORF3 (Figura
para o controle das infecções por esses vírus. As 13.2A). A ORF1 codifica uma proteína, a Rep, es-
principais características físico-químicas dos ví- sencial para replicação do DNA viral, enquanto
rions dessa família estão apresentadas na Tabela a ORF2 codifica a proteína do capsídeo. A ORF3
13.2. codifica uma proteína viral não essencial para
O genoma dos circovírus é uma molécula de replicação, mas com um papel importante na in-
DNA de fita simples circular, com 1.7 kb (circo- dução de apoptose. A análise do genoma de vá-
vírus suíno), 1.99 kb (PFDV) ou 2.3 kb (CAV). O rios isolados do PCV-2 da Europa, América do
genoma dos PCVs e do PFDV possui genes que Norte, sudeste asiático e do Brasil demonstraram
são codificados tanto pela cadeia de sentido ge- que esses vírus são muito semelhantes entre si,
366 Capítulo 13

A Stem-loop B Região do promotor


C2
AA
5'

C3

C1 CAV C3
PCV-2 V1
1.767 nt 2.298 nt

C1
C2

Fonte: adaptado de Todd et al. ( 2001).

Figura 13.2. Estrutura e organizaçăo do genoma dos circovírus. A) Estrutura e regiőes codificantes do genoma do PCV-
2; B) Estrutura e regiőes codificantes do genoma do CAV; C - ORFs presentes no DNA complementar; V - ORF
presente no DNA de sentido genômico. No genoma do CAV, o mRNA correspondente as tręs ORFs está representado
internamente.

com homologia média de 96% entre os isolados. A replicação do genoma do CAV se inicia
Estudos recentes, realizados na Suécia e Canadá, logo após a penetração do vírus na célula, pela sín-
indicam a existência de dois genótipos diferentes tese da fita complementar de DNA (Figura 13.3).
do PCV2 (PCV2a e PCV2b) com uma alta identi- Essa molécula de DNA de fita dupla possui 2.298
dade de nucleotídeos. ou 2.319 pares de bases, de acordo com a presen-
O genoma dos circovírus apresenta algumas ça de quatro ou cinco seqüências repetidas de 21
características em comum, como a presença de nucleotídeos (nt). Uma seqüência “TATA” locali-
uma estrutura secundária em forma de grampo zada na posição 324 e outros sítios de ligação de
(stem-loop) que está associada com a iniciação da fatores de transcrição possuem papel importante
replicação do DNA viral. na regulação da transcrição do genoma (região
do promotor) e constituem a parte não-transcrita
4 Replicação do genoma do CAV (Figura 13.2B). Após a sua
síntese, o DNA replicativo intermediário é trans-
Os circovírus são os menores vírus capazes crito em um RNA mensageiro (mRNA) de 2.1 kb.
de replicação autônoma em células de mamíferos. Este mRNA é policistrônico e contém três ORFs
Devido à sua simplicidade genômica e estrutural, sobrepostas entre si, cada uma codificando uma
a replicação requer a participação de várias pro- das três proteínas do CAV: VP1 (51.6 kDa), VP2
teínas das células hospedeiras e ocorre durante (24 kDa) e VP3 (13.6 kDa). A partir do DNA repli-
a fase S do ciclo celular. A replicação do genoma cativo intermediário, são produzidas moléculas
ocorre no núcleo das células e envolve a síntese de DNA de fita simples circulares, corresponden-
de uma molécula de DNA de fita dupla (replica- tes ao DNA genômico. Essas moléculas são en-
tivo intermediário). Após a síntese do replicativo capsidadas por múltiplas cópias da proteína VP1
intermediário, o genoma é, provavelmente, repli- (Figura 13.3). A morfogênese ocorre no núcleo
cado pelo mecanismo de círculo rolante. por mecanismos ainda não esclarecidos.
Circoviridae 367

ORF1

ORF2

ORF3

5' AAAAn 3'

3
2
Vp2
Vp3
4

VP1

DNA fita dupla 5


(replicativo
intermediário) 5
1

DNA circular
fita simples Progênie
viral

Fonte: adaptado de Brentano (2000).

Figura 13.3. Ilustração esquemática do ciclo replicativo do CAV. A etapa inicial é a síntese da cadeia de DNA
complementar ao DNA genômico (1). O DNA de fita dupla (replicativo intermediário) é transcrito pela maquinaria
celular, originando um mRNA de 2.1 kb (2). Este mRNA contém três ORFs e é traduzido em três proteínas (3). O DNA
de fita dupla serve de molde para a replicação, com a produção de cópias genômicas do DNA (4). Este DNA é, então,
encapsidado por múltiplas cópias da VP1 (5).

Os PCVs replicam em uma variedade de não produz efeito citopático. O CAV pode tam-
células primárias e de linhagem suína e, geral- bém ser cultivado em pintos de um dia e em ovos
mente, não produzem citopatologia evidente. embrionados de galinha.
Por isso, têm sido freqüentemente detectados
como contaminantes de cultivos celulares. Essa
propriedade possui implicações também para o
5 Circovírus de interesse veterinário
diagnóstico, pois o isolamento viral em cultivo
deve ser necessariamente seguido da detecção de As infecções com os quatro membros da
antígenos ou de ácidos nucléicos virais nas célu- família Circoviridae são associadas com doenças
las inoculadas. potencialmente fatais em animais. Este capítulo
O CAV replica em células MDCC-MSB1 (li- abordará apenas as duas doenças mais importan-
nhagem linfoblastóide derivada de tumores de tes para a produção pecuária no Brasil: as infec-
doença de Marek). Em passagens iniciais, o vírus ções pelo PCV-2 e pelo CAV.
368 Capítulo 13

5.1 Circovírus suíno tipo 2 no crescimento-terminação. Em alguns rebanhos,


essas taxas retornam à normalidade dentro de al-
A síndrome da circovirose suína é a denomi- guns meses.
nação dada ao conjunto de manifestações clínicas Co-fatores infecciosos e não-infecciosos, as-
causadas pelo PCV-2, um vírus que está dissemi- sim como fatores de risco predisponentes ao es-
nado em rebanhos suínos de todo o mundo. Esta tresse, como densidade elevada, variações térmi-
doença foi diagnosticada pela primeira vez no cas extremas, frio, baixa qualidade do ar, ar seco
Brasil, em 2000, no Laboratório de Sanidade da e misturas de lotes com idades diferentes podem
Embrapa Suínos e Aves em Concórdia, SC. Atu- exacerbar os sinais e a severidade da doença. Nos
almente, a circovirose é considerada uma doença países onde o vírus da síndrome reprodutiva e
endêmica no país, e um aumento do número de respiratória dos suínos (PRRSV) é endêmica, a
casos clínicos com confirmação laboratorial tem co-infecção com o PRRSV foi detectada na maio-
sido observado. Apesar de ter sido reportada ria dos plantéis, exacerbando a SMDS. Outros
pela primeira vez em 2000, a circovirose suína foi agentes, como o Haemophilus parasuis, até então
diagnosticada em materiais de arquivo de 1988, pouco diagnosticados na suinocultura brasileira,
sugerindo que a infecção já estava presente an- passaram a possuir grande importância após o
teriormente no Brasil. Os fatores que determina- surgimento da circovirose. A infecção pelo par-
ram o surgimento da circovirose como uma do- vovírus suíno (PPV) também parece ser um im-
ença emergente, nos últimos anos, permanecem portante co-fator para o agravamento da SMDS.
desconhecidos. A identificação e classificação de isolados do
Seis formas clínicas ou síndromes estão re- PCV-2, oriundos de vários rebanhos do mundo
lacionadas com a circovirose suína, sendo a sín- em dois genótipos diferentes (PCV2a e PCV2b),
drome multissistêmica do definhamento (SMDS) indicam diferenças na virulência, o que é impor-
a mais freqüente e a mais bem caracterizada. tante na evolução da infecção e epidemiologia da
circovirose suína.
5.1.1 Epidemiologia O PCV-2 pode ser transmitido de forma ho-
rizontal ou vertical, sendo a via oronasal a rota
A SMDS foi diagnosticada inicialmente em mais freqüente de transmissão. O PCV-2 é ex-
rebanhos de alto padrão sanitário no Canadá, cretado nas fezes por até 13 dias após a infecção.
porém também pode atingir plantéis de ciclo Os circovírus são muito resistentes às condições
completo ou unidades produtoras de leitões de ambientais e aos desinfetantes. Portanto, o con-
tamanhos variados (maiores que 50 matrizes) ou, tato direto ou indireto com suínos infectados,
ainda, unidades de segundo e terceiro sítios de instalações, equipamentos, pessoal contaminado
produção (crechários e terminadores). Os suínos e fômites também podem transmitir o agente. O
são mais freqüentemente afetados entre as 5 e 16 DNA do PCV-2 pode ser detectado no sêmen de
semanas de idade, e a morbidade e mortalidade machos infectados, mas ainda não se detectou
variam de acordo com a fase em que a doença a presença de infectividade nessa secreção. Em
surge e com o manejo da criação. Cerca de 50% caso positivo, esses reprodutores poderiam re-
dos suínos afetados morrem em menos de oito presentar uma fonte potencial de disseminação
dias. Os demais animais podem sobreviver, mas da infecção para matrizes, pela monta natural ou
a maioria evolui para o definhamento extremo, inseminação artificial.
sem perspectiva de recuperação. Poucos animais Estudos de prevalência, formas de transmis-
sobrevivem e, mesmo assim, apresentam um são, excreção e tropismo do vírus ainda estão sen-
mau desempenho produtivo. do realizados. Estudos sorológicos no Brasil e em
O principal problema da SMDS é a sua du- outros países indicaram que anticorpos contra o
ração nos rebanhos, podendo persistir por vários PCV-2 estão presentes na maioria dos rebanhos
meses se medidas apropriadas de controle não suínos (rebanhos SPF, unidades de terminação e
forem adotadas. Na média, há um aumento de criações de fundo de quintal) e a maior parte dos
três vezes nas taxas de mortalidade na creche e animais se infecta ao redor da terceira e quarta
Circoviridae 369

semanas após o desmame. Suídeos selvagens, infectado desenvolver uma resposta imunológi-
como os javalis, também são susceptíveis à infec- ca efetiva, o PCV-2 pode infectar células em vá-
ção pelo PCV-2 e desenvolvem a SMDS quando rios órgãos, produzir lesões e, assim, agravar o
submetidos a estresse e a outros fatores de risco. quadro clínico. Um desequilíbrio das substâncias
mediadoras da imunidade, morte de linfócitos e
falhas na reposição de células linfóides colabo-
5.1.2 Patogenia, sinais clínicos,
ram para esta imunodeficiência. Ainda não está
patologia e imunidade claro porque apenas uma parcela dos leitões in-
fectados desenvolve a doença. A explicação pode
O PCV-2 geralmente infecta os suínos com estar relacionada com a presença de co-fatores in-
5 a 16 semanas de idade, freqüentemente pela fecciosos e não-infecciosos, que são responsáveis
via oronasal. O vírus infecta células do sistema pelo aumento dos níveis de replicação do PCV-2
imunológico, como macrófagos, linfócitos e célu- nos suínos com SMDS (Figura 13.4). Sabe-se que
las dendríticas, e é capaz de replicar em vários os animais que desenvolvem a infecção subclí-
tipos celulares, preferencialmente em células nica apresentam uma carga viral inferior àquela
com divisão ativa. Após a infecção e replicação presente nos animais que desenvolvem a SMDS.
em células do sistema imunológico, o PCV-2 Estes animais também desenvolvem títulos supe-
produz viremia e se dissemina sistemicamente riores de anticorpos neutralizantes contra o PCV-
no organismo. Devido à incapacidade do animal 2.

Transmissão viral: via oro-nasal ou outra

Infecção pelo PCV-2


Suíno de 5-16 semanas

Infecção de macrófagos, APCs, células epiteliais


Co-fatores
não-infecciosos
VIREMIA
Co-fatores
Distribuição sistêmica: monócitos do sangue infecciosos

Infecção subclínica SMDS

PCV-2 PCV-2

Órgãos Sangue
Sangue Tecido
Sem lesões CD8+ não-linfóide
BeT
– Pneumonia
Monócitos Tecido – Hepatite
Linfóide – Nefrite
– Enterite

Atrofia do timo Células dendríticas


Monócitos B (apoptose) e T
Fagócitos

Depleção linfocitária
Infiltração histiocitária

Fonte: adaptado de Darwich et al. (2004).

Figura 13.4. Patogenia das infecçőes pelo circovírus suíno -2 (PCV-2).


370 Capítulo 13

Do ponto de vista clínico, três fatores prin- pequenas áreas multifocais de necrose (pontos
cipais são sugeridos para explicar a grande va- branco-amarelados), provavelmente devido a in-
riação no número de animais afetados por lote: fecções concomitantes. O fígado de animais icté-
o efeito individual, o efeito leitegada e o efeito ricos também pode apresentar hipotrofia e áreas
manejo (fatores de risco). O efeito individual é de descoloração. Pontos multifocais brancacentos
decorrente da genética individual do animal, podem ser observados na superfície e no parên-
da herança imunológica e da sua capacidade de quima dos rins, porém a hipertrofia renal pode
responder adequadamente às infecções. O efeito ser apenas discreta. Lesões de pele (manchas
leitegada sugere um importante papel da ma- avermelhadas) também podem ser observadas
triz como possível reservatório do vírus e/ou na em alguns casos. Muitos animais com sinais de
transferência de imunidade passiva aos leitões. definhamento apresentam úlcera gastresofági-
O efeito manejo ou fatores de risco causadores ca, responsável por hemorragias internas e pela
de estresse, como densidade elevada, ambiente palidez da pele e das mucosas. Alterações como
inadequado, baixa qualidade do ar, da água e poliserosite, hepatização pulmonar e colite po-
da ração, misturas de leitões com procedências e dem ser observadas, dependendo das infecções
idades diferentes, falhas na limpeza/desinfecção intercorrentes.
e a não-realização de vazio sanitário são muito O PCV-2 também está associado com a forma
importantes. A consideração desses fatores é in- epidêmica da síndrome da dermatite e nefropatia
dispensável no planejamento de medidas de con- suína (SDNS) e pode ser identificado em tecidos
trole da SMDS. de suínos afetados por essa síndrome. Geralmen-
A SMDS é a forma clínica mais importante te, a SDNS é a primeira manifestação clínica da
associada com o PCV-2, mas o vírus também está infecção pelo PCV-2 observada em um rebanho,
relacionado com outras manifestações clínicas. que é, então, seguida pela SMDS. A SDNS tam-
Os sinais mais importantes são o emagrecimento bém pode ocorrer isoladamente, acometendo
progressivo, anorexia, aumento de volume dos principalmente suínos com idade superior a três
linfonodos, diarréia crônica e dispnéia, que não meses. Os sinais da SDNS são: anorexia, edema
regridem com tratamentos antimicrobianos. Pa- subcutâneo ventro-caudal e áreas eritematosas
lidez nas mucosas, icterícia e úlcera gástrica tam- na pele dos membros pélvicos e na região peria-
bém podem ocorrer. Outros sinais, alguns deles nal. Ainda não está esclarecida a participação do
relacionados com infecções secundárias – como PCV-2 na patogenia da SDNS. Além das lesões
a pneumonia enzoótica, colibaciloses, doença de necróticas da pele, ocorrem lesões bilaterais nos
Glasser (H. parasuis), salmonelose, infecções de rins, que aparecem pálidos, com severa hipertro-
pele por Staphylococcus – podem estar presentes. fia, aderência difusa da cápsula, superfície irre-
Infecções causadas por outros vírus, como o PPV gular e, às vezes, petéquias disseminadas pela
e o PRRSV, podem exacerbar os sinais clínicos, cortical. Estrias brancacentas, que se prolongam
resultando em doença mais severa e taxa maior do córtex até a medula renal, são observadas ao
de mortalidade. corte. Em alguns casos não são observadas lesões
As lesões macroscópicas mais importantes macroscópicas, e o diagnóstico da doença é rea-
incluem a hipertrofia de linfonodos (inguinais, lizado pela detecção de vasculite necrótica sistê-
submandibulares, mesentéricos e mediastínicos), mica.
atrofia do timo e ausência de colabamento pul- O PCV-2 está geralmente associado com
monar. Entretanto, essas lesões nem sempre estão outros agentes patogênicos em infecções mistas.
presentes e, portanto, não podem ser utilizadas Isoladamente, o agente pode causar pneumonias,
como um indicador seguro da SMDS. O infar- enterites e distúrbios reprodutivos. Essas infec-
tamento dos linfonodos geralmente acompanha ções se caracterizam por pneumonia intersticial
os estágios precoces da infecção, e esses órgãos proliferativa e necrosante; enterite granulomato-
podem retornar ao tamanho normal ou mesmo sa; falhas reprodutivas que resultam em abortos,
reduzido. Alguns linfonodos podem apresentar mumificação fetal, natimortalidade e mortalidade
Circoviridae 371

de leitões pré-desmame com miocardite. Tremor O isolamento do vírus pode ser realizado
congênito em leitões e doenças do sistema nervo- em células de linhagem, tais como: PK-15, ST
so central (SNC) que levam leitões desmamados (testículo suíno) e SK-6 (rins de suíno). Como o
à morte súbita também já foram relatados. vírus replica com mais eficiência em células com
A confirmação do PCV-2 como o agente etio- replicação ativa, o tratamento de células de cul-
lógico da SMDS veio de infecções experimentais tivo com substâncias indutoras do ciclo celular,
que resultaram em: a) lesões características de como a D-glucosamina, é útil para induzir níveis
SMDS em suínos inoculados; b) presença de altas de replicação que permitam a multiplicação do
concentrações de antígenos virais em tecidos; c) agente. O PCV-2 não produz efeito citopático em
presença do DNA viral nas lesões; d) isolamento células de cultivo, sendo necessária a detecção de
do PCV-2 dos animais infectados; e) desenvolvi- antígenos virais por imunofluorescência (IFA) ou
mento de anticorpos específicos contra o agente. imunoperoxidase (IPX). Anticorpos monoclonais
Nas infecções experimentais em que o PCV-2 é o específicos para o PCV-2 e PCV-1 são utilizados
único agente, os sinais clínicos e as lesões foram nesses testes.
brandos. Isso indica que co-fatores infecciosos e Anticorpos presentes no soro podem ser de-
não-infecciosos são importantes para a manifes- tectados por imunofluorescência indireta (IFI) ou
tação do quadro clínico observado a campo. Por- por imunoperoxidase indireta, podendo ocorrer
tanto, parece que o PCV-2 é necessário, porém reações cruzadas entre o PCV-1 e o PCV-2. Testes
não suficiente para reproduzir a doença, o que de ELISA específicos para o PCV-2 têm sido utili-
indica que a circovirose é uma doença multifa- zados em estudos de prevalência, porém não são
torial. recomendados para o diagnóstico da doença.
Em resumo, o diagnóstico definitivo de
5.1.3 Diagnóstico SMDS deve ser realizado pela identificação de
antígenos ou ácidos nucléicos virais, associados
O diagnóstico da SMDS deve ser realizado com o quadro clínico-patológico compatível com
com base na análise dos sinais clínicos, lesões ma- as descrições da enfermidade.
cro e microscópicas e detecção de antígenos ou O diagnóstico diferencial deve ser realizado
ácidos nucléicos virais nos tecidos. A imunoisto- para alguns patógenos que também produzem
química (IHC) e reação em cadeia da polimerase sinais clínicos semelhantes, principalmente o
(PCR) são muito utilizadas para demonstrar a definhamento. Inclui-se, nesses casos, a diarréia
presença do agente. causada por Lawsonia e Brachyspira. Devido à
Como esta síndrome cursa com sinais varia- possível co-infecção pelo PCV-2 e PRRSV, algu-
dos e produz imunossupressão que predispõe a mas lesões atribuídas ao PRRSV podem ter sido
ocorrência de outras doenças, três aspectos de- causadas pelo PCV-2.
vem ser considerados para o diagnóstico:
– sinais clínicos: emagrecimento progressi- 5.1.4 Controle e profilaxia
vo, problemas respiratórios e/ou diarréia;
– lesões macroscópicas: aumento de volume Vacinas específicas para o PCV-2 estão apre-
de linfonodos, hipotrofia do timo e consolidação sentando resultados promissores em países da
pulmonar com pulmões não-colabados. Lesões Europa e América do Norte. No entanto, não es-
microscópicas: depleção de linfócitos nos lin- tão disponíveis comercialmente no Brasil, o que
fonodos e baço, infiltração de histiócitos, pneu- dificulta o controle da doença. As vacinas, em
monia intersticial. A presença de corpúsculos de diferentes preparações, são disponíveis para uso
inclusão basofílicos no citoplasma de macrófagos em porcas marrãs. A vacinação das fêmeas po-
possui valor diagnóstico limitado, pois aparece tencialmente confere proteção para a síndrome
somente em cerca de 30% dos casos; da circovirose suína através da transferência pas-
– detecção de antígenos ou de ácidos nucléi- siva de anticorpos. As vacinas também são indi-
cos do agente associados com as lesões, por IHC cadas para uso em leitões, com aplicação antes da
ou PCR, respectivamente. fase de maior exposição ao agente.
372 Capítulo 13

O controle da circovirose baseia-se na iden- se realize uma limpeza geral com o uso de de-
tificação e eliminação dos fatores de risco e na tergentes, antes do uso dos desinfetantes. Estes
redução dos fatores de estresse. Fatores compli- devem ser utilizados na dosagem recomendada
cadores para o controle da enfermidade incluem para inativação do vírus. Os desinfetantes mais
a grande resistência do agente no meio ambiente eficazes para o PCV-2 são aqueles à base de uma
e a inexistência de tratamento específico para os mistura de peroximonosulfato de potássio e clo-
suínos afetados. Os melhores resultados para a reto de sódio, seguidos pelos desinfetantes à base
redução da mortalidade e das perdas podem ser de hidróxido de sódio, de amônia quaternária, de
obtidos através de mudanças de manejo baseadas hipoclorito de sódio e dos derivados fenólicos.
nos 20 pontos de Madec, o que permite reduções Para prevenir a entrada do PCV-2 em gran-
de taxas de mortalidade abaixo dos 5% em cre- jas livres, deve-se seguir à risca as medidas de
ches. A observância das recomendações de Madec biossegurança. Essas medidas devem ser tanto
melhora a biossegurança da granja e reduz o po- externas (controle de visitantes, veículos, acesso
tencial patogênico de outros agentes de doenças de animais, introdução de suínos e sêmen), quan-
que afetam os suínos, especialmente os entéricos to internas (uso de desinfetantes, controle de
e os respiratórios. vetores, manejo das instalações e redução de es-
Esses pontos podem ser resumidos em: tresse). Estudos recentes demonstraram a presen-
– redução do estresse: especialmente am- ça do PCV-2 no sêmen de cachaços de algumas
biental (variações de temperatura, correntes de centrais de inseminação artificial do país, achado
ar, excesso de gases e excesso de densidade ani- que deve merecer atenção especial.
mal);
– limitação dos contatos entre suínos: evitar 5.2 Vírus da anemia infecciosa das
enxertias e misturas de leitões com idades e/ou galinhas
origens diferentes, e pronta remoção dos animais
doentes para baias-hospital; A anemia infecciosa das galinhas (AIG)
– adoção de medidas de higiene: adotar o é uma doença de aves jovens, que produz per-
sistema “todos dentro-todos fora” com vazio sa- das significativas, principalmente em frangos
nitário rigoroso entre lotes, utilizando desinfe- de corte. Apesar de a infecção ser freqüente em
tantes eficazes para o PCV-2, além de melhorar galinhas poedeiras, a doença clínica não é muito
as medidas de biossegurança; comum nessa categoria. A enfermidade é mais
– boa nutrição: assegurar-se da ingestão freqüente em pintinhos jovens, que se infectam
adequada de colostro nas primeiras horas de de forma vertical (via ovo) a partir de matrizes
vida e de nutrição de boa qualidade para auxiliar com a infecção subclínica. O CAV associado à
a fisiologia do sistema imunológico (uso de anti- AIG foi identificado, pela primeira vez, no Japão
oxidantes, por exemplo); e, atualmente, está disseminado mundialmente.
– estabilização imunitária: auto-reposição, No Brasil, o CAV já foi identificado e a doença foi
adaptação das marrãs por seis semanas antes reproduzida em aves SPF (specific pathogen free).
da cobertura e realização de um programa de Anticorpos específicos contra o CAV foram de-
vacinação efetivo das fêmeas para as outras en- tectados no soro de matrizes e frangos de corte
fermidades prevalentes no rebanho. Outra reco- no início dos anos 1990 no Sul do Brasil.
mendação importante é a ampliação da idade de
desmame para acima de 25 dias. 5.2.1 Epidemiologia
Medidas básicas de higiene, como a limpeza
e desinfecção de instalações, seguidas de vazio O CAV está presente em praticamente todos
sanitário, são prioritárias. Os circovírus são mui- os países que possuem avicultura comercial, e a
to resistentes aos desinfetantes de uma maneira infecção é mais freqüente em lotes de matrizes
geral, principalmente por ficarem protegidos na acima de 20 a 25 semanas de idade. As galinhas
matéria orgânica. Dessa forma, é importante que se constituem na única espécie susceptível à in-
Circoviridae 373

fecção, e a doença não apresenta riscos à saúde doença podem ser acompanhados por infecções
pública. No Brasil, estudos realizados em vários bacterianas secundárias (dermatites e colibacilo-
estados demonstraram uma soroprevalência de ses), pelo agravamento de outras doenças imu-
aproximadamente 90% nas matrizes de corte. A nossupressoras (doença de Gumboro e reoviro-
transmissão do CAV ocorre principalmente de ses) e por falhas vacinais a outras infecções virais,
forma vertical, da matriz para o embrião, mas como as doenças de Marek e Newcastle.
o agente também pode ser transmitido horizon- Em aves com idade superior a três semanas,
talmente pela via fecal-oral. O vírus é excretado a infecção geralmente é subclínica, mas, mesmo
nas fezes e pode contaminar a cama e instalações, assim, pode causar perdas significativas. A infec-
podendo persistir no ambiente devido à sua alta ção produz alterações na função de macrófagos
resistência à inativação. A maioria das matrizes e de outras células responsáveis pela fagocitose,
se infecta ao redor das cinco semanas de idade, apresentação de antígenos e produção de citoci-
provavelmente pela ingestão de material conta- nas.
minado. A forma clínica mais importante associada
As taxas de morbidade, mortalidade e a se- com a infecção pelo CAV ocorre em pintinhos
veridade da doença variam de acordo com o títu- jovens. Nesses animais, são observados diversos
lo do vírus, via de infecção, com a idade das aves, graus de anemia, palidez na musculatura, barbe-
imunidade passiva, presença de co-fatores infec- la e crista, depressão e desuniformidade do lote.
ciosos (outros vírus imunossupressores) e não- Esses sinais podem ser confundidos com outras
infecciosos (ambiência, estresse, nutrição). Além doenças. Hemorragias musculares e dermatites
desses fatores, alguns relatos indicam a existência secundárias também podem ocorrer.
de amostras do CAV de maior patogenicidade e As lesões macroscópicas mais importantes
virulência que podem produzir quadros clínicos incluem hipotrofia de timo e alterações da colo-
mais severos. ração da medula do fêmur. Hemorragias mus-
As matrizes infectadas, geralmente, não culares, subcutâneas ou no proventrículo podem
apresentam sinais clínicos, e os primeiros sinais também ser observadas. A co-infecção pelo CAV
da doença aguda são observados quando os pin- e o reovírus pode resultar em um quadro deno-
tinhos estão com 7 a 14 dias de idade. As aves ge- minado “doença da asa azul”, ilustrando mais
ralmente ficam deprimidas, apresentando taxas uma vez o caráter multifatorial das infecções
de morbidade próximas a 100% e de mortalidade pelos circovírus. Microscopicamente, pode-se
entre 5 e 15%, apesar de taxas de até 60% já terem observar depleção linfocitária no timo, na bursa
sido relatadas. de Fabricius e no baço. Uma redução de células
hematopoiéticas na medula, degeneração de he-
5.2.2 Patogenia, sinais clínicos, patócitos e infiltração de macrófagos no fígado
patologia e imunidade também podem ser observados.
Estudos recentes avaliaram a persistência
O CAV infecta células do timo e da medula do CAV nas gônadas de matrizes de corte que
óssea, mas pode também ser detectado em outras possuíam níveis variáveis de anticorpos neu-
células linfóides. A replicação do CAV ocorre em tralizantes e também a capacidade do vírus ser
células precursoras dos linfócitos T no córtex do transmitido para a progênie. Foi observado que a
timo, em células T maduras no baço, e em hemo- transmissão do vírus ao embrião pode ocorrer in-
citoblastos na medula óssea. A infecção de células dependentemente dos altos níveis de anticorpos
progenitoras da medula, tais como os eritroblas- neutralizantes nas matrizes. Ainda não se tem
tos, hemocitoblastos e trombocitoblastos, resulta estabelecido qual o título de anticorpos neutra-
em anemia e hemorragias. O efeito imunossu- lizantes necessários para prevenir a transmissão
pressor do CAV se deve à depleção de linfócitos vertical. Também é desconhecido se a vacinação
e a alterações na produção de mediadores quími- das matrizes, que vem sendo realizada atualmen-
cos da resposta imunológica. Por isso, surtos da te, é efetiva para proteger a progênie.
374 Capítulo 13

5.2.3 Diagnóstico 6 Bibliografia consultada

O diagnóstico da AIG deve ser realizado CHAE, C. A review of porcine circovirus 2-associated syndromes
com base nas combinações entre os sinais clíni- and diseases. The Veterinary Journal, v.169, p.326-336, 2005.
cos, lesões macro e microscópicas e na detecção
BRENTANO, L. Anemia infecciosa das galinhas. In: BRECHIERI
de antígenos ou ácidos nucléicos do CAV nos ór- JR.; A. MACARI, M. Doenças das aves. Campinas: FACTA, 2000.
gãos das aves afetadas. As técnicas de IHC, IFA Cap.5.9, p. 339-350.
e PCR são amplamente utilizadas para demons-
CIACCI-ZANELLA, J.,R.; MORES, N. Diagnostic of Post-
trar a infecção pelo CAV. O isolamento viral não Weaning Multisystemic Wasting Syndrome (PMWS) in Swine in
é um método recomendado para o diagnóstico, Brazil Caused by Porcine Circovirus Type 2 (PCV-2). Arquivo
pois é demorado e caro. No entanto, o vírus re- Brasileiro de Medicina Veterinária e Zootecnia, Belo Horizonte,
plica em células MDCC-MSB1, que são células MG, v. 55, p. 522-527, 2003.

de linhagem de linfoma que se multiplicam em CROWTER, R.A. et al. Comparison of the structures of three
suspensão. O vírus também pode ser isolado pela circoviruses: Chicken Anemia Virus, Porcine Circovirus Type 2,
inoculação de ovos embrionados. Anticorpos no and Beak and Feather Disease Virus. Journal of Virology, v.77,
p.13036-13041, 2003.
soro podem ser detectados por imunofluorescên-
cia indireta, soroneutralização ou ELISA (testes DARWICH, L.; SEGALÉS, J.; MATEU, E. Pathogenesis of
comerciais já estão disponíveis). Postweaning Multysistemic Wasting Syndrome caused by
Porcine Circovirus 2: an immune riddle. Archives of Virology,
v.149, p.857-874, 2004.
5.2.4 Prevenção e controle
MADEC F. et al. La maladie de l’amaigrissement du porcelet
A infecção pelo CAV é muito comum em (MAP) en France. 1. Aspects descriptifs, impact en élevage.
Journées de la Recherche Porcine en France. v.31, p. 347-354,
plantéis avícolas de todo o mundo. A prevenção
1999.
da doença clínica pode ser obtida pela indução
de títulos altos de anticorpos nas matrizes antes MANKERTS, A. et al. Molecular biology of Porcine circovirus:
analysis of gene expression and viral replication. Veterinary
do início da idade de postura. Dessa forma, evita-
Microbiology, v.98, p.81-84, 2004.
se a transmissão vertical do CAV. Todavia, ainda
não estão claros quais os níveis de anticorpos que ROYER, R.L. Susceptibility of Porcine Circovirus type 2 to
são necessários para prevenir a transmissão ver- commercial and laboratory disinfectants. Journal of Swine
Health Production, v.9, n.5, p. 281-284, 2001.
tical do vírus. Vacinas vivas atenuadas estão dis-
poníveis no Brasil e são recomendadas em uma LUKERT, P.D.; ALLAN, G.M. In: Straw, B.E. et al. Eds. Diseases
ou duas aplicações, entre as 16 e 20 semanas de of swine. 8.ed. Ames: Iowa State University Press, 2002. p.119-
124.
idade, desde que os animais recebam a última
dose pelo menos quatro semanas antes do início TISCHER, I. et al. Characterization of papovavirus and
da postura. picornavirus like particles in permanent pig kidney cell lines.
Zentralbl Bakterio. Parasitenkd Infektionskr Hyg Abt 1 Orig,
Medidas como o controle de outros agentes
v.26, p.153-167, 1974.
imunossupressores e associados com infecções
secundárias, limpeza e desinfecção das instala- TODD, D. Circoviruses: immunosuppressive threats to avian
ções também auxiliam a minimizar as perdas e a species: a review. Avian Pathol, v.29, p.373-394, 2000.

melhorar a biossegurança da granja. TODD, D. et al. Genome sequence determinations and analysis
of novel circoviruses from goose and pigeon. Virology, v.286,
p.354-362, 2001.
PARVOVIRIDAE
Mauro Pires Moraes & Paulo Renato dos Santos Costa
14
1 Introdução 377

2 Classificação 377

3 Estrutura do vírion e do genoma 378

4 Replicação 381

4.1 O ciclo replicativo 381

5 Parvovírus de interesse veterinário 384

5.1 Vírus da panleucopenia felina 384


5.1.1 Epidemiologia 384
5.1.2 Patogenia, sinais clínicos e patologia 384
5.1.3 Diagnóstico 387
5.1.4 Controle e profilaxia 388

5.2 Parvovírus canino 388


5.2.1 Epidemiologia 388
5.2.2 Patogenia, sinais clínicos e patologia 389
5.2.3 Diagnóstico 391
5.2.4 Controle e profilaxia 391

5.3 Parvovírus suíno 392


5.3.1 Epidemiologia 392
5.3.2 Patogenia, sinais clínicos e patologia 393
5.3.3 Diagnóstico 394
5.3.4 Controle e profilaxia 395

5.4 Parvovírus bovino 395

6 Bibliografia consultada 395


1 Introdução responsável por perdas reprodutivas importan-
tes quando infecta fêmeas prenhes. Outros par-
Os membros da família Parvoviridae são ví- vovírus também são responsáveis por enfermi-
rus pequenos, esféricos, com capsídeo icosaédri- dades em gansos, roedores e humanos. Existem
co, que possuem uma molécula de DNA linear de também os parvovírus isolados em galinhas, coe-
fita simples como genoma. O nome da família de- lhos e eqüinos, porém ainda não foram relatadas
riva do tamanho dos vírions (parvus = pequeno). enfermidades associadas com esses agentes. O
Uma característica marcante dos parvovírus parvovírus bovino (BPV) encontra-se amplamen-
é a dependência de células na fase S do ciclo celu- te disseminado na população bovina, no entanto,
lar ou em divisão, para a sua replicação. Essa de- a sua importância clínico-patológica é questioná-
pendência se deve ao requerimento da maquina- vel. Além de sua importância como patógenos,
ria celular para a síntese de DNA e replicação do vários parvovírus têm sido utilizados como ve-
genoma viral, devido ao número restrito de ge- tores para a transferência de DNA em animais.
nes e funções codificadas pelo genoma do vírus. Em geral, esses vetores podem carrear até 5 kb de
Os parvovírus possuem somente quatro genes, DNA heterólogo, tendo como vantagem a ausên-
distribuídos em duas regiões codificantes (open cia ou fraca resposta imune do animal contra o
reading frames – ORFs) sobrepostas no genoma vetor, permitindo a sua ampla utilização.
DNA de fita simples de 5 quilobases (kb). Além
disso, alguns vírus dessa família dependem de 2 Classificação
infecção conjunta com outros vírus (adenovírus
ou herpesvírus) para completarem o seu ciclo re- Segundo o Comitê Internacional de Taxo-
plicativo. Esses vírus são agrupados no gênero nomia Viral (ICTV), a família Parvoviridae é com-
Dependovirus e não há relatos de enfermidades posta por duas subfamílias: Parvovirinae e Den-
animais associadas com esses agentes. sovirinae. A primeira agrupa os parvovírus que
A dependência de células na fase S do ci- infectam vertebrados e, por isso, os seus mem-
clo celular exerce uma grande influência sobre a bros serão discutidos mais detalhadamente neste
patogenia das infecções pelos parvovírus. As in- capítulo. A segunda contém vírus que infectam
fecções por esses vírus afetam preferencialmente insetos e, aparentemente, não possuem impor-
órgãos que apresentam células em multiplicação, tância em medicina veterinária. Os principais
como as células da medula óssea, células embrio- parvovírus de interesse veterinário estão listados
nárias e células precursoras do epitélio intestinal na Tabela 14.1.
(células das criptas intestinais). Os parvovírus A subfamília Parvovirinae é dividida em
apresentam uma grande estabilidade no ambien- cinco gêneros: Parvovirus, Erythrovirus, Dependo-
te, podendo manter a sua infectividade durante virus, Amdovirus (ADMV-like viruses) e Bocavirus
meses, em determinadas condições, e são muito (BPV-like viruses). O gênero Erythrovirus é repre-
restritos quanto à espécie hospedeira. sentado pelo parvovírus humano, o B19, que cau-
Os primeiros relatos de enfermidades cau- sa abortos e doença exantematosa em crianças; e
sadas por parvovírus em animais datam de mais por outros vírus de primatas, como o parvovírus
de 100 anos e se referiam à panleucopenia felina do macaco rhesus (RhPV) e o parvovírus símio
(FPL). Posteriormente, foram descritos o vírus (SPV).
da enterite dos visons (MEV), em 1947, e o par- A maioria dos gêneros abriga vírus que re-
vovírus canino (CPV) em 1978. As enfermidades plicam de forma autônoma. Por outro lado, os De-
causadas por esses três agentes são muito seme- pendovirus são dependentes de adenovírus para
lhantes e cursam com enterite e leucopenia. A in- replicar e, por isso, são chamados adeno-associated
fecção por esses agentes pode, ainda, estar asso- virus (AAV). Os AAV têm sido utilizados como
ciada com mortalidade e malformações fetais. vetores de expressão, por serem apatogênicos e
O parvovírus suíno (PPV) produz infecções por não induzirem resposta imune nos animais
subclínicas em animais jovens e adultos, porém é inoculados.
378 Capítulo 14

Tabela 14.1. Principais parvovírus animais, hospedeiros e manifestações clínicas

Gênero Espécie Abreviatura Hospedeiros Manifestações Clínicas

Parvovírus de galinha ChPV galinhas subclínica

Vírus da panleucopenia FPLV gatos panleucopenia, enterite,


felina hipoplasia cerebelar

Parvovírus canino CPV cães leucopenia, miocardite,


enterite
Parvovirus

Vírus da enterite das MEV martas (M. vision) panleucopenia, enterite


martas

Parvovírus dos mãos- RPV mão-pelada panleucopenia, enterite


peladas (racoon)

Vírus minuto dos MMV ou MVM camundongos deformidades congênitas


camundongos

Parvovírus suíno PPV suínos infertilidade, aborto,


mumificação fetal
Dependovirus

Parvovírus de gansos GPV gansos hepatite, miocardite

Parvovírus de patos MDPV patos hepatite, miocardite


Muscovy

Vírus adeno-associados AAV-1 a 6 várias espécies subclínica


Amdovirus Bocavirus

Parvovírus bovino BPV bovinos subclínica

Vírus minuto canino CnMV cães diarréia

Aleutian mink disease AMDV martas (M. Vision) encefalopatia


virus

No gênero Parvovirus, são classificados os cação em células de origem felina), sorológicas e


agentes associados com doenças em animais, filogenéticas de que o CPV realmente deriva do
como o vírus da panleucopenia felina (FPLV), o FPLV. A diferença entre os vírus felino e canino
CPV e o parvovírus suíno (PPV). Originalmente, parece estar restrita à substituição de dois amino-
era reconhecido apenas um parvovírus de cães, ácidos em uma proteína do capsídeo, responsá-
o canine minute virus (CnMV), que pertence ao vel pela interação dos vírions com os receptores
gênero Bocavirus e possui ocorrência esporádi- das células hospedeiras.
ca. Na década de 1970, surgiu outro parvovírus
nesta espécie, denominado parvovírus canino
tipo 2 (CPV-2). Este vírus, denominado generi- 3 Estrutura do vírion e do genoma
camente de CPV, originou-se a partir do FPLV,
disseminou-se rapidamente na população canina Os vírions dos parvovírus são pequenos (18
e, atualmente, constitui-se em um dos principais a 26 nm de diâmetro), aproximadamente esféri-
patógenos da espécie canina. cos, com simetria icosaédrica e são desprovidos
Tem sido proposto que o grupo do FPLV, de envelope (Figura 14.1). As partículas virais
que inclui o CPV, o parvovírus das martas (MEV) possuem uma massa de 5,5 a 6,2 x 106 daltons,
e da mão-pelada ou racoon (RPV), constitui-se, na distribuídas em uma porção protéica (80%) e
verdade, em uma espécie viral, e que os vírus in- DNA (20%). A densidade situa-se entre 1,39 e
dividuais seriam subespécies. Neste caso, o CPV 1,42 g/cm3 em gradiente de cloreto de césio, o
seria, na verdade, uma subespécie do FPLV. De que permite a separação dos Dependovirus dos ví-
fato, existem evidências biológicas (como a repli- rus associados, como os adenovírus.
Parvoviridae 379

espécie do vírus. A maioria dos parvovírus pos-


sui uma gama de hospedeiros e tropismo muito
A restritos. No entanto, alguns vírus podem sofrer
mutações e ampliar a sua gama de hospedeiros.
Um exemplo foi a substituição de dois aminoá-
cidos na proteína VP2 do FPLV, que permitiu ao
vírus utilizar o receptor da transferrina (TfR) pre-
sente em células de cães e, assim, estabelecer o
CPV como um novo patógeno canino.
As partículas virais são formadas por três
classes de proteínas: VP1, VP2 e VP3, com ex-
ceção do AMDV (vírus da doença das martas
Aleutian), que possui apenas as duas primeiras.
A massa molecular das proteínas varia entre 80 e
86 kDa (VP1), 64-75 kDa (VP2) e 60-62 kDa (VP3).
B
Essas proteínas são codificadas a partir de uma
única ORF no genoma viral, sendo a VP1 e VP2
originadas por splicing alternativo do RNA men-
sageiro (mRNA). A VP3 é formada a partir da
clivagem de 15 a 20 aminoácidos da região ami-
no-terminal da VP2. A VP3 somente é detectada
em partículas inteiras, ou seja, em partículas que
contêm o genoma viral completo, pois há produ-
ção de grande quantidade de partículas defec-
tivas que apresentam genomas incompletos ou
ausentes.
O capsídeo é formado por 60 cópias da VP2
e poucas cópias da VP1 e da VP3. Quando obser-
vada por cristalografia, a proteína VP2 apresen-
Fonte: A) web.uct.ac.za; B) Muzyczka e Berns (2001). ta oito cadeias estruturais em forma de barril- ,
Figura 14.1 Vírions da família Parvoviridae. A)
estrutura que é conservada em outros vírus ico-
Fotografia de microscopia eletrônica de partículas saédricos. Essas estruturas são ligadas por alças
víricas; B) Reconstrução de crio-eletromicroscopia, com que estão expostas na superfície do vírion e são
indicação das estruturas na superfície do vírion.
Depressões, chamadas de dimples (2); projeções ou
responsáveis pela estabilidade das partículas no
spikes (3) e cilindros (5). As depressões que circundam ambiente. A VP2 possui ainda epitopos que in-
os cilindros são conhecidas como canyons. duzem a produção de anticorpos neutralizantes
juntamente com a VP3, e pequenas diferenças
Os vírions apresentam uma grande resis- nesta proteína podem determinar o tropismo por
tência à inativação no meio ambiente, que pode diferentes tecidos e hospedeiros.
ser creditada à sua estrutura simples e compacta, Na superfície dos vírions, podem ser obser-
desprovida de envelope. A estrutura vírica é es- vadas estruturas características, como protube-
tável sob pH entre 3 e 9, e a temperatura de 56ºC râncias (spikes), depressões (dimples) e estruturas
por 60 minutos. Por outro lado, a infectividade na forma de cilindros circundados por depres-
pode ser inativada com desinfetantes à base de sões (canyons) (Figura 14.1). Essas estruturas
formalina, hipoclorito de sódio e agentes oxi- possuem funções biológicas importantes, como o
dantes. Outra característica dos parvovírus é a reconhecimento e ligação a receptores celulares
capacidade de aglutinar eritrócitos de suínos, de (depressões) e determinação das características
cobaias e/ou de macacos rhesus, dependendo da imunogênicas (projeções).
380 Capítulo 14

O genoma dos parvovírus é composto por a replicação do genoma viral, e a NS2 está asso-
uma molécula de DNA linear de cadeia simples, ciada com a formação dos capsídeos, controle da
com aproximadamente 5 kb. Os Dependovirus expressão gênica e também participa da replica-
apresentam um genoma de 4.5 kb. Em geral, a ção do genoma. As proteínas produzidas a par-
molécula de DNA que é incorporada aos vírions tir da outra ORF (VP1 e VP2) fazem parte da es-
é de polaridade negativa (complementar aos mR- trutura do capsídeo. As proteínas VP1 e VP2 são
NAs), mas alguns parvovírus podem encapsidar traduzidas a partir de um mesmo mRNA, após
qualquer uma das cadeias em proporções varia- splicing, e compartilham a maior parte de sua se-
das. Os vírions do BPV, por exemplo, apresentam qüência de aminoácidos. A diferença entre a VP1
moléculas de DNA de polaridade positiva em e VP2 resulta da utilização de diferentes códons
aproximadamente 20 a 30% das partículas. de iniciação pelos ribossomos. A VP3 é compos-
O genoma dos parvovírus de importân- ta por uma seqüência de aminoácidos da região
cia veterinária possuem apenas duas ORFs, que amino-terminal da VP2. Os mRNAs, produzidos
codificam quatro proteínas: duas proteínas não- pela transcrição do genoma, possuem 5’ cap e são
estruturais (NS1 e NS2) e duas ou três proteínas poliadenilados na extremidade 3’.
estruturais (VP1 e VP2/VP3) (Figura 14.2). O genoma viral apresenta de 6 a 10 seqüên-
As proteínas não-estruturais (NS1 e NS2) cias palindrômicas, que possibilitam a formação
são produzidas pela tradução de mRNAs que so- de estruturas em forma de grampo nas regiões
frem splicing alternativo. A NS1 é essencial para terminais (Figura 14.2). Essas estruturas são es-

3’ 5’
NS1 e NS2 VP1 e VP2

NS1 n
A 1

NS2 n
A 2 ORF

VP1 A
n 3

VP2 A
n
3

1 2 3 4 5kb

Fonte: adaptado de Murphy et al. (1999).

Figura 14.2 Ilustração esquemática da estrutura e organização do genoma e dos transcritos do parvovírus canino
(CPV). A figura superior representa o DNA genômico com as extremidades 5' e 3' flexionadas sobre si; a localização
das duas ORFs e os sítios de iniciação da transcrição (setas). A figura inferior mostra os três transcritos (1, 2 e 3), com as
respectivas ORFs e locais de processamento. As linhas contínuas representam a cadeia de RNA, e os retângulos
representam as ORFs codificantes das respectivas proteínas. NS1 e NS2: proteínas não-estruturais; VP1 e VP2:
proteínas do capsídeo.
Parvoviridae 381

senciais para a replicação do genoma viral e para 4.1 O ciclo replicativo


a encapsidação do genoma na progênie viral.
O ciclo replicativo dos parvovírus inicia-
se pelo reconhecimento e ligação dos vírions a
4 Replicação receptores celulares. O receptor utilizado pelo
FPLV e CPV provavelmente seja o TfR, que é
A replicação dos parvovírus autônomos expresso preferencialmente em células em divi-
ocorre no núcleo das células hospedeiras e de- são, que são dependentes de transferrina para
pende de fatores celulares que estão presentes so- realizarem a sua multiplicação. O BPV e alguns
mente quando a célula está em fase S ou G2. Al- AAVs utilizam sialoglicoproteínas como recep-
gumas características da patogenia das infecções tores, ligando-se ao componente ácido siálico. O
por parvovírus dependem das células em mitose. parvovírus humano B19 liga-se a carboidratos; e
Por exemplo, a infecção de fetos (parvovírus suí- o AAV-2 utiliza o sulfato de heparina ou uma in-
no e felino) ou de animais recém-nascidos (CPV) tegrina como receptor.
é favorecida pela presença de um grande número A penetração ocorre pela via endocítica, e
de células em divisão. A infecção pode ser sistê- os vírions são transportados rapidamente até as
mica em fetos e em animais recém-nascidos, mas proximidades do núcleo da célula. Durante esse
é geralmente restrita a tecidos com células em mi- trajeto, as partículas virais são expostas a pH pro-
tose, como o epitélio intestinal, em animais com gressivamente mais baixo no interior dos endos-
mais idade. somos, o que induz alterações na conformação
Em fetos felinos ou em gatos recém-nasci- das proteínas do capsídeo.
dos, a infecção afeta o cerebelo; enquanto em cães No interior dos endossomos, as partículas
com até seis semanas de idade, o miocárdio é o sí- virais sofrem três alterações importantes: expo-
tio preferencial de infecção pelos parvovírus. Em sição da região amino-terminal da VP1, clivagem
animais mais velhos, as células que se encontram da região amino-terminal da VP2 e, finalmente, o
em divisão são, principalmente, as células linfói- desnudamento do genoma. Essas alterações ocor-
des e as células das criptas do intestino. A repli- rem simultaneamente e podem ser detectadas
cação do parvovírus nessas células pode produ- aos 30 minutos após a internalização dos vírions.
zir linfopenia ou enterite, respectivamente. As partículas que permanecem nessas vesículas
Usualmente, a replicação dos parvovírus in até a fusão com os lisossomos são degradadas. A
vitro é restrita a células da espécie hospedeira, região amino-terminal da VP1 possui sinais de
como as PK-15 (rim de suíno) para o PPV; CRFK localização nuclear, promovendo a sinalização
(rim de gato) para o FPLV. O CPV constitui-se para o transporte do complexo nucleoproteína
em exceção, pois replica em células MDCK (rim (DNA + proteínas) para o núcleo da célula.
de cão – o hospedeiro) e pode multiplicar-se tam- No núcleo, a primeira etapa da replicação é
bém em células da linhagem CRFK. a síntese da fita de DNA complementar ao geno-
A determinação do tropismo celular ou teci- ma viral, resultando em uma molécula de DNA
dual do vírus depende de seqüências específicas de fita dupla (Figura 14.3). Essa síntese é realiza-
de aminoácidos na superfície dos vírions, impor- da por DNA polimerases celulares e fatores auxi-
tantes para o reconhecimento e ligação aos recep- liares, também de origem celular. A abundância
tores celulares. No CPV, o tropismo é determi- da DNA polimerase e de nucleotídeos é a prin-
nado por três aminoácidos da VP2 (posições 93, cipal razão da dependência dos parvovírus por
300 e 323). O tropismo de cepas não-patogênicas células em multiplicação. A molécula de DNA
do PPV, como a NADL-2, e patogênicas, como a de fita dupla produzida pode, então, ser utiliza-
Kresse, é determinado por diferenças em um ami- da como molde pela RNA polimerase II celular
noácido na projeção da VP2 (posição 436), e em para a transcrição e conseqüente produção dos
dois aminoácidos que circundam a depressão. mRNAs.
382 Capítulo 14

3’
5’
NS1 e NS2 VP1 e VP2

- +
+ -
3 5 4

- + VP1, VP2/3

2
NS1 + - 6
NS2
1

-
7

Vírion

Figura 14.3. Etapas da expressão gênica e replicação dos parvovírus autônomos. O genoma DNA de fita simples
(ssDNA) é, inicialmente, convertido em DNA de fita dupla (dsDNA) por enzimas celulares (1), seguido da expressão
(transcrição, tradução) das proteínas NS1 e NS2 (2). A proteína NS1 é essencial nas etapas seguintes da replicação do
genoma (3), para a expressão das proteínas estruturais (4) e também na fase final da replicação do DNA (5). Os
genomas recém-replicados são encapsidados pelas proteínas estruturais VP1 e VP2/3, originando as novas partículas
víricas (6,7).

Apesar da variação entre a posição específica VP2. Além desses, já foram detectados outros seis
de cada elemento, três transcritos são produzidos transcritos, que são produzidos de forma estável
durante a replicação dos parvovírus autônomos. em células infectadas, mas a sua função ainda
A sua produção é dependente de promotores dis- não foi estabelecida.
tribuídos ao longo do genoma viral. Em contras- A expressão gênica dos parvovírus é regu-
te, existe apenas um sinal para a poliadenilação lada de forma que a produção da proteína NS1
desses transcritos, que está localizado na região ocorra somente na fase S do ciclo celular. Na re-
terminal do genoma. Os mRNAs originados por gião anterior ao sinal de transcrição deste gene,
splicing dos transcritos R1 e R2 serão traduzidos existe uma seqüência específica de nucleotídeos
nas proteínas não-estruturais NS1 e NS2, respec- que é reconhecida pelo fator de transcrição celu-
tivamente. O outro transcrito primário (R3) é o lar Sp1. No entanto, somente a presença deste ele-
responsável pela codificação das proteínas VP1 e mento não explica a regulação da expressão gêni-
VP2/VP3. Estes transcritos também são subme- ca. Essa regulação é fundamental para o sucesso
tidos a processamento por splicing. A utilização da infecção pelos parvovírus, pois a produção da
de um determinado códon para início da tra- NS1 de forma contínua é tóxica para a célula. No
dução resulta na produção da VP1; a utilização entanto, o acúmulo da proteína NS1 durante a
de um códon mais adiante resulta na síntese da fase S é necessário para a ativação dos genes que
Parvoviridae 383

codificam as proteínas estruturais. Essa função é vida pela atividade endonuclease da NS1, que
realizada pela ligação da NS1 a fatores de trans- clivaria o multímero em unidades genômicas de
crição celulares, alguns deles já descritos (TBP e polaridade positiva e negativa (Figura 14.4). Em
TFIIA). A proteína NS1 também é essencial para geral, as moléculas de DNA de polaridade nega-
a replicação do genoma viral, atuando em dife- tiva são preferencialmente encapsidadas. No en-
rentes etapas do processo. Entre outras funções, tanto, algumas espécies virais podem encapsidar
a NS1 participa da replicação através de suas fun- uma mistura das duas ou também uma propor-
ções helicase e endonuclease. Esta última função ção variável de DNAs de polaridade positiva/
está relacionada com a maturação do DNA viral e negativa.
com a interferência com a replicação do DNA ce- A maturação dos vírions ocorre no núcleo e
lular. A fosforilação da NS1 é necessária para que leva aproximadamente 60 minutos para ser com-
suas funções sejam exercidas de forma plena.
As etapas seguintes do ciclo envolvem a ex-
pressão das proteínas estruturais (VP1, VP2/3),
Monômero
a complementação da replicação do genoma e, ssDNA -
finalmente, a morfogênese das partículas víricas,
pela interação das proteínas do capsídeo com
monômeros de DNA (Figura 14.3).
+
1
Monômero -
Vários grupos têm estudado com detalhes
dsDNA
os mecanismos de replicação do genoma dos par- 2
vovírus. O conhecimento adquirido é importan-
te para o desenvolvimento de vetores baseados
em parvovírus dependentes (principalmente os
3
AVV) e também para a produção de vacinas. O
modelo de replicação mais aceito é o de produção
de cópias genômicas por um mecanismo de círcu-
Dímero dsDNA
lo rolante modificado. Neste modelo, as seqüên- - +
4
cias palindrômicas repetidas da região terminal + -
3’ do genoma serviriam como iniciadores para a
Clivagem
síntese da cadeia complementar, ao formar estru- enzimática
turas terminais semelhantes a grampos de cabelo
+
(hairpins). Esse processo ocorreria no início do ci- - 5
clo replicativo, logo após o ingresso do DNA no +
núcleo celular, resultando na síntese de cadeias
-
de DNA complementares, que seriam utilizadas
como molde para a transcrição (Figura 14.4).
Com a produção das proteínas não-estru- Fonte: adaptado de Murphy et al. (1999).

turais NS1 e NS2 e uma vez completada a pri-


Figura 14.4 Ilustração simplificada da replicação do
meira cadeia de DNA fita dupla, a polimerização genoma dos parvovírus. A replicação se inicia na
continuaria, produzindo uma cópia linear dupla extremidade 3' livre e prossegue ao longo do genoma (1),
resultando inicialmente na formação de um monômero
que corresponderia a quatro cópias do genoma de DNA de fita dupla (dsDNA) (2). O prosseguimento da
viral (duas de polaridade positiva, duas negati- polimerização (3) leva à formação de uma molécula
vas). Essa estrutura tetrâmera pode não ser a úni- dimérica de dsDNA, que contém quatro moléculas com a
extensão genômica (4). A clivagem deste multímero
ca produzida, e alguns pesquisadores acreditam resulta em quatro moléculas genômicas de ssDNA,
que estruturas maiores, contendo um número sendo duas de sentido positivo e duas de sentido
maior de cópias do genoma, podem ser também negativo (5). Acredita-se que multímeros contendo um
número maior de unidades genômicas possam ser
produzidas. Essa macromolécula composta por formados durante a replicação do genoma dos
múltiplas cópias do genoma seria, então, resol- parvovírus.
384 Capítulo 14

pletada, no entanto, a produção de capsídeos va- ambiente. O vírus resiste a vários desinfetantes,
zios pode ocorrer em menos tempo. Os capsídeos porém é inativado pelo hipoclorito de sódio a 6%,
vazios apresentam uma conformação diferente formol a 4% e glutaraldeído a 1% quando exposto
das partículas virais completas. O processo de re- por 10 minutos.
plicação dos parvovírus produz corpúsculos de
inclusão intranucleares grandes. A liberação dos 5.1.1 Epidemiologia
vírions ocorre por lise das células infectadas.
O FPLV pode causar doença em todos os
membros da família dos felídeos. O vírus possui
5 Parvovírus de interesse veterinário distribuição mundial pela sua natureza altamen-
te contagiosa e pela alta capacidade de persistir
Os parvovírus que possuem importância no meio ambiente. Cerca de 75% dos gatos com
como patógenos de animais de produção e com- um ano de idade, não-vacinados e clinicamente
panhia pertencem à subfamília Parvovirinae. Nes- saudáveis, apresentam anticorpos contra o FPLV.
te capítulo, serão abordados o vírus da panleuco- Portanto, a maioria dos gatos susceptíveis é ex-
penia felina (FPLV), o parvovírus canino (CPV), posta e infectada pelo vírus durante seu primeiro
o parvovírus suíno (PPV) e o parvovírus bovino ano de vida. Nesses animais, a infecção é geral-
(BPV), pela sua importância clínico-patológica e mente subclínica.
sanitária nas respectivas espécies. A doença com sinais clínicos típicos ocorre
mais freqüentemente nos animais jovens não va-
5.1 Vírus da panleucopenia felina cinados, embora os filhotes vacinados também
possam desenvolver a enfermidade. Isso ocorre
A panleucopenia felina (FPL) é uma doença pela interferência da imunidade materna com a
infecciosa de distribuição mundial, que afeta os resposta vacinal. Na verdade, existe uma relação
felídeos domésticos e selvagens, e também outras inversa entre a incidência da doença e a idade
espécies (visons e guaxinins). A FPL é uma das dos animais, ou seja, a incidência da enfermidade
principais doenças virais de felinos e encontra-se diminui à medida que a faixa etária aumenta.
controlada nas comunidades onde a vacinação é A transmissão do vírus ocorre pelo contato
realizada de forma rotineira. Entretanto, a doen- direto ou indireto dos animais susceptíveis com
ça clínica em sua forma mais grave ainda é fre- os animais infectados ou com as suas secreções.
qüentemente observada em gatos não-vacinados, O vírus pode estar presente em todas as secreções
geralmente provenientes de gatis. Nesses ani- corpóreas de gatos infectados, porém é mais con-
mais, as taxas de morbidade e mortalidade são sistentemente encontrado nas fezes diarréicas. A
elevadas. rota fecal-oral é considerada a principal forma
A panleucopenia felina é causada pelo FPLV, de transmissão. Pela alta resistência do FPLV no
um vírus muito semelhante ao CPV. Nos últimos ambiente, a transmissão por fômites contamina-
anos, foram isoladas as cepas a e b do CPV de ga- dos pode desempenhar um importante papel na
tos sadios e também de gatos com sinais clínicos propagação da infecção.
de FPL. Da mesma forma, diferentes cepas de
CPV foram capazes de reproduzir uma doença 5.1.2 Patogenia, sinais clínicos
compatível com a FPL em gatos inoculados ex- e patologia
perimentalmente. É possível que o FPLV e o CPV
apresentem transmissão mútua entre as espécies Após a exposição oronasal, o vírus se multi-
felina e canina e, eventualmente, alguns desses plica inicialmente nos linfonodos regionais. Após
animais desenvolvam a doença clínica. a replicação primária, o vírus atinge a corrente
Os vírions do FPLV são muito resistentes sangüínea e dissemina-se para os tecidos que pos-
sob condições ambientais, sendo capazes de man- suem células em divisão, como a medula óssea,
ter a viabilidade por até um ano sob temperatura epitélio das criptas intestinais e órgãos linfóides
Parvoviridae 385

(Figura 14.5). O tropismo do vírus pelas células taxa menor de renovação das células linfóides e
hematopoiéticas explica um dos eventos caracte- intestinais do que os animais com microflora in-
rísticos da doença, a panleucopenia. Da mesma testinal preservada. Na ausência de patógenos, a
forma, a replicação viral no epitélio intestinal é renovação celular seria menor, com isso, a replica-
responsável pelo quadro de enterite. Quando a ção viral e a destruição celular seriam reduzidas,
infecção ocorre no terço final da gestação ou no resultando em doença de severidade moderada.
neonato, além do tecido linfóide e medula óssea,
As infecções bacterianas secundárias pela micro-
o sistema nervoso, incluindo o cérebro, cerebelo,
flora intestinal parecem contribuir para o agrava-
nervo óptico e também a retina, podem ser infec-
mento da doença. A endotoxemia resultante da
tados.
As infecções experimentais de gatos SPF (li- absorção de toxinas das bactérias gram-negativas
vres de patógenos específicos) têm demonstrado intestinais, acompanhada ou não de bacteremia,
quadros mais brandos do que aqueles observados e o desenvolvimento da coagulação intravascular
em infecções naturais. Isso sugere que outros fato- disseminada (CID) são complicações comuns da
res podem participar no agravamento da doença. FPL e, provavelmente, responsáveis pela evolu-
Acredita-se que os animais SPF apresentem uma ção fatal da doença (Figura 14.5).

Gatos SPF
(> 3 semanas de idade)

Exposição ao vírus

Replicação nos linfonodos


oronasais (18-24 h)

Anticorpos Anticorpos
insuficientes suficientes

Viremia Infecção
(2 a 7 dias) Medula óssea subclínica

Necrose do Jejuno
tecido linfóide e íleo Leucopenia
Infecções
bacterianas
secundárias
Atrofia linfóide Necrose Septicemia,
das criptas CID

Recuperação Óbito

Fonte: adaptado de Greene (1998).

Figura 14.5 Patogenia da panleucopenia felina. CID: coagulação intravascular disseminada.


386 Capítulo 14

Durante a infecção intestinal, a replicação linfóides foi associada à capacidade do FPLV de


do FPLV destrói as células das criptas do epité- induzir apoptose em células linfóides felinas. Foi
lio. Essas células normalmente se diferenciam em demonstrado in vitro que o FPLV pode provocar
células de absorção à medida que migram para o lise de células das linhagens eritróide e mielóide.
ápice das vilosidades. A conseqüência imediata É possível que essa lise ocorra também in vivo e
desta destruição celular é atrofia das vilosidades, seja responsável pela leucopenia intensa.
pela perda e não reposição das células epiteliais, e A infecção intra-uterina pelo FPLV, no início
o conseqüente colapso dos vilos com exposição da da gestação, pode resultar em morte e reabsor-
lâmina própria da mucosa. A diarréia resultante ção dos embriões ou fetos, infertilidade, abortos
é devida à deficiência de absorção e aumento da ou no nascimento de fetos mumificados (Figura
permeabilidade. A diarréia é freqüentemente he- 14.6). A infecção no terço final da gestação irá re-
morrágica pelo sangramento de capilares a partir sultar no nascimento de filhotes vivos com graus
da destruição do revestimento epitelial da muco- variáveis de deficiências neurológicas. Em uma
sa. Esse sangramento também resulta em perda mesma ninhada, podem estar presentes animais
de proteínas para a luz intestinal. A conseqüência com diferentes graus de deficiência e mesmo ani-
final das lesões provocadas pelo vírus é a quebra mais sem alterações aparentes, devido à aquisi-
da barreira de proteção intestinal e a translocação ção de imunidade. O cerebelo é a área mais afe-
de bactérias, que atingem a circulação sangüínea tada, pois parte do desenvolvimento deste órgão
e sítios extra-intestinais, podendo ocorrer septi- em gatos ocorre na fase final da gestação e no pe-
cemia e CID. A isquemia intestinal ocorre devido ríodo neonatal. Os filhotes infectados nessa fase
à hipovolemia, pelas perdas líquidas por vômito apresentam hipoplasia cerebelar e aqueles que
e diarréia; e pode ser agravada pela septicemia, sobrevivem apresentam sinais permanentes de
causando o choque séptico. Pode também ocor- doença cerebelar.
rer uma resposta inflamatória sistêmica e falência Uma grande parcela dos gatos infectados
múltipla de órgãos. parece não manifestar sinais clínicos da infecção.
A replicação viral provoca também lise de A doença, com os sinais clássicos, é observada,
linfócitos, resultando em depleção marcante dos principalmente, em animais jovens e sem histó-
folículos linfóides dos linfonodos, baço, tecido rico de vacinação, embora animais mais velhos
linfóide intestinal e timo. A atrofia dos tecidos e mesmo vacinados possam desenvolver a en-

Exposição ao vírus

Feto Filhotes
(estágio de gestação) (2-3 semanas)

Início Terço Terço


médio final

Infertilidade Abortos Cérebro Tecido linfóide/medula óssea


Morte fetal Mumificação Nervo ótico (panleucopenia)
Reabsorção fetal Retina Cerebelo (hipoplasia)

Fonte: adaptado de Greene (1998).

Figura 14.6 Patogenia da panleucopenia felina após infecção fetal e neonatal.


Parvoviridae 387

fermidade. A faixa etária de maior incidência da Os achados patológicos incluem congestão e


doença situa-se entre os três e cinco meses. A taxa redução da espessura do intestino delgado, áreas
de letalidade em animais com menos de um ano de necrose, vilosidades atrofiadas, muco e debris
de idade varia de 50 a 90%. celulares. Inclusões intranucleares podem ser en-
Os sinais clínicos iniciais da doença, com contradas nas células das criptas intestinais. Os
evolução de três a quatro dias, incluem depres- linfonodos podem estar aumentados de volume,
são profunda, anorexia, hipertermia (40ºC), vô- edematosos, com destruição de linfócitos e infil-
mito e desidratação. A diarréia, com ou sem he- tração massiva de neutrófilos. Nos fetos e filhotes
morragia, pode ocorrer em uma fase mais tardia. com sinais neurológicos, são observadas lesões
Muitas vezes os gatinhos podem morrer antes na lâmina granular externa do cerebelo, além de
de apresentarem diarréia hemorrágica. Quando hipoplasia cerebelar.
submetidos à palpação abdominal, os animais
podem demonstrar dor abdominal, alças intes- 5.1.3 Diagnóstico
tinais espessadas e ruídos intestinais. Petéquias
e equimoses podem ser observadas em animais
O achado de intensa leucopenia em gatos
que desenvolvem CID. Em estágios terminais, po-
com histórico e sinais clínicos compatíveis com
dem ser observadas hipotermia, estupor e coma.
a FPL é suficiente para se estabelecer um diag-
Animais que sobrevivem por mais de cinco dias
nóstico presuntivo. Entretanto, o diagnóstico de-
geralmente evoluem para a recuperação clínica. finitivo depende da realização de outros testes,
Os gatinhos que adquirem a infecção no fi- como a microscopia eletrônica (ME) das fezes,
nal da gestação ou logo após o nascimento po- isolamento viral, sorologia e imunofluorescência
dem apresentar apenas o quadro neurológico. Os (IFA). Nos casos fatais, as alterações histopatoló-
sinais típicos de lesão cerebelar, como ataxia, hi- gicas intestinais são consideradas patognomôni-
permetria, tremor, estação em base larga (mem- cas.
bros afastados) e quedas pela incoordenação dos Podem ser realizados testes de hemaglutina-
membros e tronco, são observados após três ou ção (HA) a partir de amostras fecais, uma vez que
quatro semanas de vida. A intensidade dos sinais o FPLV aglutina eritrócitos de suínos. O isola-
pode variar entre filhotes da mesma ninhada. As mento viral em cultivo celular também pode ser
anormalidades neurológicas não são progres- utilizado para a confirmação da etiologia. Nesse
sivas, porém são permanentes. Os animais com caso, células primárias felinas ou células de li-
sinais brandos podem se adaptar à sua deficiên- nhagem de origem felina, como a CRFK, podem
cia e viver normalmente, apesar dos seus deficits ser utilizadas.
neurológicos. O exame de fundo de olho pode Testes comerciais de ELISA para a detecção
revelar áreas de degeneração da retina, que apa- de antígenos virais nas fezes estão disponíveis
recem como pequenos focos acinzentados com no comércio. Pode-se também realizar a técnica
bordas escurecidas. de IFA em tecidos para a detecção de antígenos
O principal achado laboratorial é a panleu- virais. Outro recurso diagnóstico é a técnica de
copenia, observada em 100% dos casos de doença PCR, para a identificação de DNA viral em teci-
sistêmica. A panleucopenia pode ser detectada a dos, fezes ou em células infectadas.
partir do segundo dia da infecção, podendo atin- A pesquisa de anticorpos pode ser realizada
gir números extremamente baixos (200 leucóci- por soroneutralização (SN), imunofluorescência
tos/dl) entre o quarto e o sexto dia. Quanto mais indireta (IFI) e ELISA, porém os resultados de-
intensa for a leucopenia, mais desfavorável será o vem ser interpretados com cautela, em razão da
prognóstico. Anemia e trombocitopenia também grande disseminação da infecção. Nesse sentido,
ocorrem. Outros achados laboratoriais, como hi- somente a sorologia pareada ou a detecção de
perbilirrubinemia e aumento das enzimas hepáti- IgM são indicativos de infecção recente. A técni-
cas, podem eventualmente ser detectados. ca de inibição da hemaglutinação (HI) também
388 Capítulo 14

pode ser utilizada para titular amostras únicas Após o seu surgimento a partir do FPLV,
ou pareadas. o CPV continuou sofrendo alterações genéticas,
dando origem a novas cepas, designadas como
5.1.4 Controle e profilaxia subtipos CPV-2a e CPV-2b. Felizmente, as dife-
renças antigênicas entre essas cepas são mínimas
O tratamento da FPL é tipicamente de supor- e as vacinas protegem contra ambas. Um terceiro
te, pois não existem drogas antivirais específicas. subtipo tem sido proposto, o CPV-2c. O CPV-2b
Após aproximadamente cinco dias da infecção, é amplamente difundido nos Estados Unidos,
os animais desenvolvem mecanismos imunológi- enquanto na Europa encontram-se tanto o CPV-
cos adequados para controlar a infecção. Os obje- 2b como o CPV-2a. No Brasil, existem relatos da
tivos principais da terapia incluem a manutenção circulação de ambos os subtipos. O CPV-2a pre-
do equilíbrio hídrico e eletrolítico, a redução das dominou na década de 1980, porém entre 1990 e
perdas líquidas por vômito e diarréia e o combate 1995 a infecção pelo CPV-2b ocorreu com maior
às infecções bacterianas secundárias. freqüência.
A vacinação se constitui em um método efi- Assim como os demais parvovírus, o CPV é
ciente para proteger os animais e reduzir a inci- muito resistente no ambiente e à maioria dos de-
dência da FPL. Para isso, existem vacinas inativa- sinfetantes. Uma das exceções é o hipoclorito de
das e com vírus vivo modificado. Estas últimas sódio, comercializado como água sanitária, em
produzem imunidade mais rápida e efetiva do concentrações que variam de 2 a 3%. O hipoclo-
que as vacinas inativadas. A primeira vacinação rito de sódio a 0,175% é efetivo para a inativação
deve ser realizada com seis a oito semanas de ida- do CPV. Para assegurar a ação do produto, a so-
de e repetida com intervalos de quatro semanas. lução deve permanecer em contato com o agente
Recomenda-se a revacinação anual, porém acre- por tempo prolongado (horas).
dita-se que as vacinas atenuadas possam pro-
duzir imunidade duradoura, e as possíveis ex- 5.2.1 Epidemiologia
posições naturais permitiriam a manutenção de
títulos adequados de anticorpos por toda a vida A parvovirose canina surgiu no final dos
do animal. Em animais vacinados adequadamen- anos 1970, apresentando altas taxas de morbida-
te quando jovens, uma revacinação a cada três de e mortalidade. A gravidade da doença obser-
anos pode oferecer uma segurança adicional. vada nessa época foi atribuída à falta de imuni-
dade natural da população canina contra o novo
5.2 Parvovírus canino vírus. Atualmente, os cães são mais resistentes
ao CPV, provavelmente pelas vacinações e pela
A parvovirose canina é considerada uma resistência natural contra a doença. Entretanto, a
das principais causas de diarréia de origem in- incidência da infecção se mantém alta em animais
fecciosa em cães com idade inferior a seis meses. com idade entre seis semanas e seis meses.
A doença é causada pelo parvovírus canino (cani- Os filhotes dessa faixa etária, quando não-
ne parvovirus, CPV) que surgiu no final dos anos vacinados, são altamente susceptíveis ao desen-
1970 e disseminou-se rapidamente por todos os volvimento da doença. Os anticorpos maternos
continentes. A incidência da infecção é elevada são protetores contra a infecção nas primeiras se-
em todo o mundo. A parvovirose canina carac- manas de vida. No entanto, em um determinado
teriza-se por enterite grave, com anorexia, vômi- momento, os níveis de anticorpos são insuficien-
tos, diarréia hemorrágica e choque. O CPV deve tes para proteger da doença e, em contrapartida,
ser diferenciado do outro parvovírus que infecta bloqueiam o desenvolvimento de uma resposta
cães, o canine minute virus (CnMV), que foi descri- imune efetiva pelas vacinas. Esse período é co-
to em 1970, possui ocorrência pouco freqüente e é nhecido como “janela de susceptibilidade” e
considerado pouco patogênico. pode explicar porque alguns animais, mesmo
Parvoviridae 389

adequadamente vacinados, desenvolvem a infec- Durante a infecção intestinal, o parvovírus


ção e a doença. replica nas células epiteliais das criptas da muco-
Os filhotes são mais propensos ao desen- sa intestinal. Essas células estão em constante mi-
volvimento da gastrenterite hemorrágica (GEH) tose e são responsáveis pela reposição do epitélio
pelo CPV, porém cães de qualquer idade, sexo ou absortivo das vilosidades. As células das criptas
raça podem ser acometidos. Animais de algumas se diferenciam em células de absorção à medida
raças de porte médio e grande, como dobermann, que migram para superfície das vilosidades. A
rottweiler, labrador, pastor alemão e pitbull, pa- conseqüência imediata da infecção pelo CPV é o
recem apresentar a doença mais severa quando achatamento das vilosidades, o colapso e a necro-
infectados. A incidência maior em animais sem se epitelial, com exposição da lâmina própria da
raça definida provavelmente está ligada à vaci- mucosa (Figuras 14.7 e 14.8). A diarréia, resultan-
nação inadequada, associada com o acesso livre à te da má absorção intestinal, costuma ser hemor-
rua, o que aumenta o risco desses animais adqui- rágica, pelo sangramento de capilares subjacen-
rirem a infecção. tes ao revestimento epitelial da mucosa.
O CPV é altamente contagioso, e a infecção A perda do epitélio intestinal permite a pe-
geralmente ocorre por exposição oro-nasal a fe- netração de bactérias na circulação sangüínea,
zes, fômites ou ambientes contaminados. O vírus que é facilitada pela leucopenia. A replicação do
pode permanecer por longos períodos (mais de vírus nas células linfóides e na medula óssea re-
seis meses) no ambiente e nos pêlos dos animais sulta em linfopenia e neutropenia. A imunossu-
que tiveram contato com fezes contaminadas. As pressão decorrente permite o estabelecimento de
pessoas, equipamentos veterinários, insetos e ro- infecções secundárias por outros vírus, bactérias,
edores podem atuar como veículos para a propa- fungos ou parasitas. Essas infecções podem con-
gação do vírus. tribuir para o agravamento dos sinais clínicos.
Estudos sorológicos realizados em vários A excreção do vírus nas fezes inicia no ter-
países indicam uma grande disseminação do ceiro ou quarto dia após a infecção e se intensifica
agente, com índices variáveis de soropositivida- com o surgimento da doença. O CPV é excretado
de em cães urbanos, geralmente entre 60 e 95%. em grandes quantidades por até 20 dias. O tér-
mino da excreção viral fecal está provavelmente
relacionado com o desenvolvimento de imunida-
5.2.2 Patogenia, sinais clínicos
de.
e patologia Duas síndromes clínicas são descritas em
cães infectados com o CPV: a miocardite e a gas-
Após a exposição oronasal, o vírus replica trenterite hemorrágica (GEH). A miocardite pode
nos tecidos linfóides próximos ao local de entra- ocorrer em neonatos, após a infecção intra-uteri-
da (geralmente na orofaringe) e atinge a corren- na ou nas primeiras seis semanas de vida. Esses
te sangüínea. Durante a disseminação virêmica, animais apresentam morte súbita ou sinais ines-
o vírus se localiza preferencialmente em tecidos pecíficos e, posteriormente, desenvolvem sinais
com rápida divisão celular, como a medula óssea, de insuficiência cardíaca. Essa forma clínica da
órgãos linfopoiéticos e criptas do jejuno e íleo (Fi- doença ocorreu com freqüência quando foram
gura 14.7). O período de incubação varia de 2 a relatados os primeiros surtos de parvovirose no
14 dias, mas, na maioria dos casos, é de 4 a 7 dias. final dos anos 1970. Atualmente essa manifes-
A viremia é intensa do primeiro ao quinto dia da tação é considerada muito rara, provavelmente
infecção e cessa por volta do quinto ou sexto dia, pela alta prevalência de anticorpos contra o CPV
quando anticorpos neutralizantes já podem estar na população canina. A imunidade passiva pro-
presentes no soro. Os animais com imunidade tege os filhotes na fase de ocorrência dessa forma
parcial apresentam infecção subclínica ou formas clínica. A principal manifestação da parvovirose
clínicas mais brandas. canina é a gastrenterite.
390 Capítulo 14

Exposição ao vírus

Viremia

Medula Tecido Criptas Outros tecidos


óssea linfóide intestinais (miocárdio,
esôfago, rins,
fígado, pulmões)

Neutropenia Linfopenia Necrose


epitelial

Imunossupressão Quebra da Diarréia


barreira hemorrágica
intestinal

Bacteremia, endotoxemia,
septicemia, SIRS, CID, FMO

Recuperação Óbito

Fonte: adaptado de Greene (1998).

Figura 14.7 Patogenia da parvovirose canina. SIRS= síndrome da resposta inflamatória sistêmica, CID= Coagulação
intravascular disseminada, FMO= Falência múltipla de órgãos.

A B
movimento dos enterócitos

Enterócitos maduros
(não-mitóticos,
em maturação

absortivos)

Vilosidade

Cripta

Células
das criptas
(mitóticas,
secretórias)

Fonte: adaptado de Conner & Ramig (1997).

Figura 14.8 Ilustração da patogenia das lesões provocadas pelo parvovírus canino (CPV) no epitélio intestinal. A)
Vilosidade intestinal com estrutura normal; B) Vilosidade afetada. A destruição das células das criptas pela
replicação viral resulta em reposição deficiente das células absortivas das vilosidades. Com isso, ocorrem necrose e
descamação epitelial, achatamento das vilosidades e exposição da lâmina própria.
Parvoviridae 391

A apresentação típica da GEH geralmente a identificação do vírus por HA, sorologia parea-
ocorre em cães jovens não-vacinados, e é carac- da por HI e SN, testes de ELISA para a detecção
terizada pelo surgimento brusco de prostração, de IgM, detecção dos vírions por ME podem ser
anorexia, vômitos freqüentes, sialorréia, febre, utilizados para o diagnóstico definitivo. Em ca-
dor abdominal e diarréia hemorrágica. Os sinais sos clínicos, a grande concentração de partículas
de prostração, anorexia e vômitos precedem o virais nas fezes (pode chegar até 109 partículas/
quadro de diarréia, geralmente em 12 a 24 horas. grama) e a estabilidade viral favorecem a utili-
Cães com diarréia podem apresentar desidra- zação da ME. Uma alternativa é a imunomicros-
tação, hipovolemia e choque. Os sinais clínicos copia (IME) eletrônica, na qual os anticorpos são
iniciais de choque incluem taquicardia, pulso adicionados às suspensões fecais para a formação
normal ou fraco, palidez das mucosas, tempo de complexos que favorecem a visualização.
de preenchimento capilar aumentado, hipoten- O isolamento do vírus a partir de fezes ou
são, nível de consciência reduzido e temperatu- de tecidos pode ser realizado em células de ori-
ra corporal baixa. Os animais que não recebem gem canina, como as MDCK e A-72, e/ou em cé-
tratamento (fluidoterapia) nesse estágio evoluem lulas CRFK de origem felina.
para o estágio terminal do choque, apresentando
bradicardia, mucosas pálidas e cianóticas, hipo- 5.2.4 Controle e profilaxia
tensão grave, pulso muito fraco ou ausente, hipo-
termia, anúria e estupor ou coma. Nessa situação, O tratamento da gastrenterite pelo CPV é de
a parada cardíaca e respiratória é iminente e os suporte e se baseia na reposição de fluidos e ele-
animais que atingem esse estágio dificilmente so- trólitos, na antibioticoterapia de amplo espectro e
brevivem. no controle dos vômitos, para minimizar as per-
O hemograma de animais infectados de- das líquidas e eletrolíticas. Terapias específicas
monstra leucopenia, neutropenia e linfopenia. com antivirais têm sido estudadas, sendo que o
Na fase de recuperação, pode ocorrer leucocitose. interferon-omega felino apresentou bons resulta-
Anemia pode ocorrer pela perda sangüínea intes- dos em cães com parvovirose. É possível que es-
tinal. Hipoproteinemia, pela perda de proteínas sas substâncias possam fazer parte do tratamento
plasmáticas pelo intestino, elevação dos níveis de de rotina no futuro.
uréia e creatinina por azotemia pré-renal e redu- Cães com parvovirose devem ser isolados
ção dos níveis de potássio também podem estar e receber tratamento em um local específico. A
presentes. limpeza e desinfecção do ambiente e equipamen-
Na necropsia, observa-se a mucosa intesti- tos devem ser feitas com hipoclorito de sódio a
nal congesta, hemorrágica e freqüentemente re- 0,175%.
coberta por uma pseudomembrana. As placas de A maneira mais efetiva de prevenção da
Peyer encontram-se atrofiadas. A medula óssea parvovirose canina é a vacinação sistemática de
pode apresentar-se liquefeita e hiperêmica. A filhotes, que devem receber a primeira dose da
histopatologia intestinal revela necrose epitelial, vacina com seis a oito semanas de idade, receben-
colapso das vilosidades e aumento do infiltrado do duas doses de reforço a cada quatro semanas.
inflamatório na lâmina própria. Uma quarta dose pode ser efetuada aos seis me-
ses de vida. A revacinação anual é recomendada.
5.2.3 Diagnóstico Esse esquema é recomendado para estimular a
imunidade ativa à medida que a imunidade pas-
O diagnóstico presuntivo na rotina clínica siva declina, o que geralmente ocorre entre seis
geralmente é feito pelo histórico, sinais clínicos e 20 semanas de vida. Por um período de duas
e hemograma. Porém, o diagnóstico definitivo a quatro semanas, os títulos de anticorpos atin-
de parvovirose exige a identificação do vírus por gem níveis não-protetores, que interferem com a
testes específicos. Testes de ELISA para a detec- eficácia das vacinas. Ou seja, há um período em
ção de antígenos virais nas fezes estão disponí- que os anticorpos passivos inativam o vírus va-
veis no mercado brasileiro. Outros testes, como cinal, porém não são suficientes para proteger os
392 Capítulo 14

animais contra a infecção natural. Recomenda-se com poucas exceções, todas as porcas apresen-
manter os animais isolados até completarem a tam imunidade contra o agente. Além disso, uma
fase de imunização, sempre observando a desin- grande proporção das leitoas é naturalmente in-
fecção do local. fectada com o PPV antes da cobertura, desenvol-
Vacinas com cepas pouco atenuadas po- vendo imunidade protetora contra o vírus, que
dem diminuir a janela de susceptibilidade, pois provavelmente persiste por toda a vida.
o vírus replica e estimula uma imunização ativa A introdução do PPV no rebanho pode ocor-
nos filhotes, mesmo com a presença de imunida- rer pela aquisição de reprodutores infectados.
de passiva. Nesses casos, alguns animais podem Quando o agente é introduzido em um rebanho
negativo, a disseminação é rápida e muitas fême-
apresentar uma forma branda da enfermidade.
as apresentam falhas reprodutivas. Em alguns
5.3 Parvovírus suíno casos, a infecção pode ser controlada e o vírus
pode até ser erradicado da propriedade, princi-
A infecção pelo parvovírus suíno (PPV) pro- palmente em criações pequenas (com menos de
vavelmente é a causa mais freqüente e importan- 100 matrizes). Nesses casos, a redução da incidên-
te de falhas reprodutivas em suínos. Essas falhas cia da doença ocorre pela redução ou ausência de
são relacionadas com a infecção de embriões e fe- animais susceptíveis, uma vez que a imunidade
tos, que resulta em mortalidade embrionária, mu- conferida pela infecção natural é longa e sólida.
mificação fetal, abortamentos, natimortalidade e Os surtos em granjas em que não há controle por
o nascimento de leitões inviáveis. Além disso, a vacinação podem ocorrer em períodos cíclicos
infecção pode resultar em infertilidade e repeti- (normalmente a cada três a quatro anos), pela re-
ções de cio. Em animais adultos não-gestantes, o dução gradativa dos níveis de anticorpos.
PPV replica no intestino sem causar manifesta- As maiores fontes de infecção, para os ani-
ções clínicas. As maiores conseqüências da infec- mais susceptíveis dentro de uma granja, são as
ção devem-se à infecção de fêmeas soronegativas, instalações contaminadas. O PPV é muito resis-
geralmente primíparas, durante a gestação. tente a variações de temperatura e a vários de-
Até o presente, somente um sorotipo do sinfetantes comuns. Pode, portanto, permanecer
PPV foi identificado. Entretanto, existem diferen- infeccioso em excreções e secreções de animais
ças de patogenicidade entre isolados de campo. infectados por vários meses. A ampla distribui-
O PPV é relacionado antigenicamente com outros ção do agente também levanta hipóteses sobre a
membros do gênero Parvovirus, podendo ser di- possibilidade de alguns suínos serem persisten-
ferenciado por testes de SN e HA. A capacidade temente infectados e excretarem o vírus periodi-
hemaglutinante do PPV tem sido utilizada no camente. Além disso, há evidências da ocorrência
diagnóstico da infecção, pelas técnicas de HA e de portadores imunotolerantes que sobreviveram
HI. Outra característica importante do agente é a à infecção durante a fase fetal. No entanto, esses
resistência a temperaturas ambientais e a varia- casos são raros e ainda não estão comprovados.
ções de pH, o que garante que o vírus permaneça Os machos podem desempenhar um papel im-
viável no ambiente por vários meses. portante na disseminação do PPV, uma vez que
o vírus pode ser encontrado nos testículos. Além
5.3.1 Epidemiologia disso, os machos também podem atuar como ve-
tores para a disseminação do vírus entre fêmeas
A infecção pelo PPV está amplamente distri- susceptíveis.
buída na população suína de todo o mundo. Uma Estudos sorológicos demonstraram a gran-
das razões para isso é a grande estabilidade do de prevalência e disseminação do vírus no Bra-
vírus no ambiente. Dessa forma, uma granja in- sil, principalmente nos estados de Minas Gerais,
fectada pode manter o vírus durante meses, mes- Santa Catarina e Rio Grande do Sul. No entanto,
mo quando a higiene aparentemente é satisfató- acredita-se que o PPV esteja disseminado em to-
ria. Nas maiores regiões produtoras de suínos, das as regiões criadoras de suínos.
como o meio oeste dos Estados Unidos, a infecção A transmissão do vírus ocorre pelas vias
pelo PPV é enzoótica na maioria dos rebanhos e, oronasal e transplacentária. A imunidade passiva
Parvoviridae 393

protege os leitões por longos períodos, podendo depois da concepção), a infecção geralmente leva
interferir com a imunidade ativa. Algumas fê- à morte embrionária e reabsorção. Se a maioria
meas podem permanecer susceptíveis e, se forem dos embriões morrer, a fêmea pode retornar ao
infectadas durante a gestação, podem apresentar cio com intervalo prolongado. Se a maioria dos
falhas reprodutivas. Até 50% das primíparas po- embriões resistir, o resultado será o nascimento
dem ser susceptíveis na época da primeira cober- de leitegadas pequenas, pois os embriões mortos
tura. são reabsorvidos.
A infecção fetal entre os 30 e 55 dias geral-
5.3.2 Patogenia, sinais clínicos e mente leva à morte e mumificação fetal. A ges-
patologia tação pode ser levada a termo, e a fêmea pode
produzir uma leitegada composta por alguns
A infecção pelo PPV inicia-se principalmen- leitões saudáveis e outros mumificados (Figura
te pela via oronasal, pelo contato com fezes ou 14.9). A freqüência de natimortos também pode
com restos de aborto. No entanto, a transmissão estar aumentada e pode ser conseqüência do re-
por sêmen contaminado durante o coito também tardo na parição. A infecção fetal após os 70 dias
pode ocorrer. Não há evidências diretas de que geralmente não causa efeito deletério sobre os fe-
a transmissão por sêmen produza problemas re- tos, pois, nessa fase, já estão com o sistema imune
produtivos nas fêmeas infectadas. No entanto, desenvolvido e são capazes de responder imuno-
acredita-se que as alterações que ocorrem no úte- logicamente à infecção.
ro durante a infecção possam interferir em está- Durante a infecção intra-uterina, o vírus é
gios avançados da gestação. transmitido de um feto a outro, atingindo os dife-
Após a penetração, o vírus replica em teci- rentes fetos a determinados intervalos de tempo.
dos linfóides, na medula óssea e nas criptas do Ou seja, a infecção de toda a leitegada não ocorre
intestino delgado. A infecção pode ser crônica, simultaneamente. Este fato pode explicar a pre-
com a replicação do vírus nas células intestinais sença de fetos mumificados em diferentes fases
e excreção nas fezes por períodos prolongados, de desenvolvimento, muitas vezes mesclados
contribuindo para a contaminação ambiental. com fetos normais (Figura 14.9).
Tecidos fetais e membranas de abortos possuem
grande importância na transmissão e contamina-
ção ambiental, devido à quantidade maciça de
vírus presentes nesses fômites.
A infecção transplacentária ocorre durante
a fase de viremia na fêmea gestante. Apesar da
dificuldade de se detectar o vírus no epitélio ute-
rino, não se descarta a possibilidade de infecção
direta por replicação neste órgão e nas membra-
nas placentárias. Outro mecanismo sugerido se-
ria a transferência do vírus ao feto no interior de
macrófagos.
O PPV apresenta particular avidez pelos te- A B
cidos do embrião e/ou do feto e seus envoltórios.
O feto é sensível aos efeitos do vírus durante a
Fonte: Mengeling (2006).
primeira metade da gestação. Após este período,
torna-se imunologicamente competente e capaz Figura 14.9. Efeitos do PPV na reprodução. A) Leitegada
de eliminar a infecção pelo desenvolvimento de de uma porca inoculada experimentalmente com o PPV
aos 34 dias de gestação. L: fetos do corno uterino
uma resposta imune ativa contra o vírus. A infec-
esquerdo; R: fetos do corno direito. A foto foi tirada do
ção embrionária ou fetal ocorre 10 a 15 dias após a animal abatido no dia 114 de gestação. B) Leitegada de
infecção da fêmea, e a evolução depende do está- uma porca infectada naturalmente com o PPV. Note o
gio de gestação. Na fase embrionária (até 30 dias avançado grau de desidratação dos fetos.
394 Capítulo 14

Cabe ressaltar que a ocorrência de abortos de autólise e mumificados. Microscopicamente,


é rara durante a infecção pelo PPV, e essa carac- observa-se necrose generalizada nos tecidos fe-
terística pode auxiliar no diagnóstico diferencial tais com a presença de corpúsculos intranuclea-
de outras infecções que causam perdas reprodu- res. Inflamação e hipertrofia endotelial, além de
tivas. infiltração de células mononucleares nas mem-
Os sinais da infecção geralmente são restri- branas placentárias e no epitélio uterino também
tos às fêmeas primíparas e caracterizam-se por são observados.
falhas reprodutivas, como o retorno ao cio, três a
oito semanas após a inseminação ou coito. Algu-
5.3.3 Diagnóstico
mas fêmeas permanecem sem retorno ao cio por
períodos maiores. Geralmente não há descrição
de sinais clínicos em outros animais da granja. A presença da infecção pelo PPV deve ser
Dentre os sinais indicativos da infecção pelo investigada sempre que houver aumento nos ín-
PPV em uma granja destacam-se: a) nascimen- dices de retorno ao cio e atraso na data de pari-
to de leitegadas pequenas, associadas com fetos ção, associados com a presença de fetos mumi-
mumificados de diferentes tamanhos, geralmen- ficados e leitegadas com número reduzido de
te resultantes de fêmeas não-vacinadas ou de leitões, especialmente em fêmeas de primeiro
primeira cria; b) aumento das taxas de retorno ou segundo parto. Leitegadas, contendo alguns
ao cio; c) ausência de sinais clínicos nas fêmeas leitões normais e outros mumificados, freqüente-
afetadas; d) gestação falsa em algumas fêmeas; mente em diferentes estágios de desenvolvimen-
e) leitegadas com fetos mumificados e normais; to, são fortes indicativos da infecção. Esses sinais
f) natimortalidade aumentada. Um resumo dos geralmente não são acompanhados por outras
achados clínico-reprodutivos, em granjas afeta- manifestações clínicas nas fêmeas.
das de forma aguda pela parvovirose suína, está O material a ser remetido para o laboratório
apresentado na Tabela 14.2. para confirmação do diagnóstico deve incluir fe-
tos mumificados, restos fetais e fragmentos de te-
Tabela 14.2 Achados clínico-reprodutivos observados cidos necróticos. Pode-se, ainda, enviar amostras
durante surtos de infecção aguda pelo parvovírus suíno
(PPV) de soro pareado das fêmeas (isto é, uma amos-
tra coletada no momento da falha reprodutiva e
Rebanho Rebanho
Parâmetro outra coletada com 2 a 4 semanas de intervalo),
normal afetado
amostras de soro dos fetos abortados, dos leitões
Número total de leitões
Normal Reduzido
nascidos natimortos ou dos leitões antes da ingestão do
colostro.
Vivos e mortos 11.5 < 9.5
Os fetos mumificados podem apresentar
% de leitegadas c/ < 9
Porcas (< 10%);
20-40%
grande quantidade de antígenos virais, que po-
marrãs (< 18%)
dem ser detectados por ELISA e IFA. Pode-se,
Natimortos 4-7% 7-12% ainda, detectar o vírus por HA, realizada com
Fetos mumificados
eritrócitos de cobaias. Tecidos e fluidos fetais são
< 0,6% 1-4%
indicados para serem testados por esta técnica.
Porcas sem cria/vazias 1,0% 2-6%
Nos casos em que a infecção ocorre no período
Retorno retardado ao cio < 3% > 4% inicial da gestação, a presença do vírus é de difícil
detecção.
Intervalo desmame-cio Normal Normal
Em geral, os testes sorológicos são recomen-
dados apenas quando tecidos de fetos mumifica-
As lesões são bem características e restritas dos não são disponíveis. O uso de sorologia apre-
aos fetos e útero. Os fetos podem apresentar di- senta restrições devido à ampla disseminação
ferentes aspectos e, pela infecção em diferentes da infecção, o que dificulta a interpretação dos
fases, podem ser observados, em uma mesma lei- resultados. Nesse sentido, testes como a HI, SN
tegada, animais sadios, natimortos, em processo e ELISA podem ser utilizados para o diagnósti-
Parvoviridae 395

co. No entanto, o seu uso é restrito a amostras de evidências de hipoplasia cerebelar congênita e
soro pareado e análise da variação dos títulos de de doença respiratória associadas com a infecção
anticorpos entre uma amostra e outra. A detecção pelo BPV.
de anticorpos no soro fetal, de natimortos e de Acredita-se que a dificuldade em esclarecer
leitões antes da primeira mamada são evidências o impacto patogênico desse agente está associada
da infecção intra-uterina, uma vez que anticorpos à dependência de outros fatores, tais como: ma-
maternais não atravessam a barreira transplacen- nejo, falha da imunidade passiva e a presença de
tária nessa espécie. infecções concomitantes. Pode-se especular que a
O diagnóstico diferencial deve considerar alta prevalência de anticorpos contra o agente em
outras infecções que cursam com perdas repro- animais pode dificultar o aparecimento de casos
dutivas, como a doença de Aujeszky, infecção clínicos decorrentes da infecção por este vírus.
pelo vírus da síndrome respiratória e reproduti- No Rio Grande do Sul, um inquérito soroló-
va (PRRSV), leptospirose, entre outras. Deve-se gico realizado com aproximadamente 4.000 bovi-
levar em consideração que, na infecção pelo PPV, nos leiteiros revelou 97% de positividade, sendo
não ocorrem manifestações clínicas de doença em que 66,3% dos animais apresentavam um título
qualquer categoria animal e os abortos são raros. maior que 160 pela técnica de HI.
Também existem evidências de resposta
5.3.4 Controle e profilaxia imune, tanto por anticorpos hemaglutinantes
como neutralizantes, contra o BPV em fetos e ter-
Como a infecção pelo PPV é endêmica na neiros recém-nascidos de vacas leiteiras sorologi-
maioria dos rebanhos suínos, o controle deve ser camente positivas.
baseado na vacinação. Para esta finalidade, exis-
tem vacinas atenuadas e inativadas. No Brasil, só
6 Bibliografia consultada
existem vacinas inativadas no comércio, podendo
ser monovalentes ou combinadas com antígenos
de outros agentes virais e/ou bacterianos. Reco- CONNER, M.E.; RAMIG, R.F. Viral enteric diseases. In:
NATHANSON, N. (ed). Viral Pathogenesis. Philadelphia:
menda-se a vacinação das fêmeas pelo menos 30
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dias antes do período de cobertura (duas doses
com 30 dias de intervalo) e a aplicação de refor- DEVEY, J.J.; CROWE, D,T. Microenteral nutrition. In:
ços anuais. A imunidade passiva pode interferir BONAGURA, J.D. Kirk’s current veterinary therapy XIII.
Philadelphia: Saunders, 2000. p.136-140.
com a vacinação de fêmeas em cobertura antes
dos sete meses de idade. A vacinação de repro- GAMOH, K. et al. The pathogenicity of canine parvovirus type-
dutores machos jovens também tem sido indi- 2b, FP84 strain isolated from a domestic cat, in domestic cats.
The Journal of Veterinary Medical Science, v.65, p.1027-1029,
cada para aumentar a eficácia do programa de
2003.
controle.
A prática de fornecimento de restos fetais e GASKELL, R.M.; BENNETT, M. Doenças infecciosas felinas. In:
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membranas placentárias para fêmeas não-gestan-
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tes não é recomendável, pelo risco de dissemina-
ção de outros agentes. GREENE, C.E. Infectious diseases of the dog and cat. 2.ed.
Philadelphia: WB Saunders, 356p, 1998.

5.4 Parvovírus bovino GUILFORD, W,G.; STROMBECK, D.R. Gastrointestinal tract


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encontra-se disseminada mundialmente. Apesar HOSKINS, J.D. Canine viral enteritis. In: GREENE, C.E.
de o agente ser freqüentemente isolado de fezes Infectious diseases of the dog and cat. 2.ed. Philadelphia:
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396 Capítulo 14

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PAPILLOMAVIRIDAE
Amauri A. Alfieri, Sheila R. Wosiacki & Alice F. Alfieri
15
1 Introdução 399

2 Classificação 400

3 Estrutura e propriedades dos vírions 402

4 Estrutura e organização genômica 402

5 O ciclo replicativo 404

5.1 Adsorção, penetração e desnudamento 404


5.2 Transcrição e expressão das proteínas virais 404
5.3 Replicação do genoma 404
5.4 Montagem do capsídeo e egresso 405

6 Patogenia 405

7 Patologia 405

8 Papilomavírus e tumores 406

9 Diagnóstico 407

10 Imunologia 407

11 Imunoprofilaxia 408

12 Doenças de importância em medicina veterinária causadas por papilomavírus 409

12.1 Papilomatose 409


12.2 Hematúria enzoótica e tumores no trato digestório superior de bovinos 410

13 Bibliografia consultada 411


1 Introdução rabbit papillomavirus (CRPV), que foi o primeiro
vírus DNA oncogênico identificado. O CRPV foi
Os vírus da família Papillomaviridae infectam um importante modelo para os estudos pioneiros
diferentes espécies de mamíferos e aves e carac- sobre a oncogênese viral. Entretanto, assim como
terizam-se pela propriedade oncogênica, que é todos os outros membros dessa família, o CRPV
responsável pela produção de lesões tumorais, também se manteve refratário aos estudos viroló-
benignas e malignas, nos epitélios cutâneo e mu- gicos padrões pela incapacidade de propagação
coso. Em medicina veterinária, as lesões ocasio- do vírus em sistemas de cultivos celulares. Na
nadas pela infecção com os papilomavírus de- década de 1950, os estudos com os papilomaví-
terminam prejuízos econômicos consideráveis à rus perderam campo para os membros da família
bovinocultura tanto por perdas diretas, causadas Polyomaviridae, que podem ser cultivados e multi-
pela morte de animais, quanto indiretas, repre- plicados em cultivos de células convencionais.
sentadas por reduções na produtividade e no va- Por muitos anos, os papilomavírus, tanto na
lor comercial dos animais e subprodutos como o medicina humana quanto na veterinária, foram
couro. Em bovinos, a correlação entre a infecção considerados de pouco interesse. Com o advento
pelo papilomavírus e o desenvolvimento de neo- da tecnologia do DNA recombinante e clonagem
plasias tem sido extensivamente avaliada, não gênica na década de 1970, o primeiro genoma
apenas pela repercussão econômica da infecção, de papilomavírus foi clonado com sucesso. Esse
mas também por ser um modelo experimental in- passo foi importante para o reinício das pesqui-
teressante para o estudo do sinergismo com fato- sas com os papilomavírus, que possuem vários
res ambientais na etiologia das neoplasias. genes com potencial oncogênico e são de grande
A infecção por membros da família Papillo- importância no estudo da oncologia molecular.
maviridae ocasiona enfermidades semelhantes nas As mudanças na percepção da importância das
diversas espécies acometidas e está amplamente infecções, em conjunto com o avanço tecnológico
distribuída em todo o mundo. As lesões cutâ- da biologia molecular, conduziram à intensifica-
neas são comumente denominadas papilomatose ção das pesquisas que proporcionaram aos papi-
ou apenas verrugas, e são relatadas em quase to- lomavírus uma posição de destaque no estudo do
das as espécies de mamíferos e em algumas aves câncer e da virologia molecular.
e animais marinhos. A infecção do epitélio muco- Historicamente, os papilomavírus foram
so geralmente está associada com a formação de agrupados em conjunto com os poliomavírus,
tumores malignos. Em seres humanos, a infecção constituindo a família Papovaviridae, cujo nome
pelo papilomavírus está intimamente associada é derivado das iniciais de seus três membros
ao câncer do colo do útero; e, em bovinos, a tu- (Papillomavirus, Polyomavirus e Simian Vacuola-
mores vesicais (hematúria enzoótica bovina) e no ting Agent − SV40). Todos os três diferentes vírus
trato digestório superior (caraguatá). apresentam propriedades semelhantes (tamanho
A ocorrência de papilomas cutâneos em hu- e forma do vírion, ausência de envelope e genoma
manos é descrita há séculos e está presente em re- constituído por DNA fita dupla circular). Apenas
latos de origem grega e romana. As lesões muco- com base no diâmetro médio dos vírions, a famí-
sas do colo do útero foram amplamente relatadas lia Papovaviridae inicialmente incluía dois gêne-
na Idade Média, ocasião em que todas as doenças ros: o Polyomavirus, com as espécies poliomavírus
sexualmente transmissíveis eram consideradas e o SV40, e o Papillomavirus. Estudos moleculares
como ocasionadas por um único agente. O estu- comparativos indicaram diferenças fundamentais
do do papilomavírus animal também tem uma entre eles, destacando-se o tamanho do genoma
longa história. Em 1898, M’Fadycan e Hobday re- e a organização genômica, na qual, praticamen-
lataram a etiologia infecciosa do papilomavírus te, não são observadas similaridades na seqüên-
oral canino (COPV). No entanto, o primeiro pa- cia de nucleotídeos. Com isso, no ano 2000, o 7º
pilomavírus animal foi identificado somente em Comitê Internacional de Taxonomia Viral (ICTV)
1933, por Richard Shope, que estudou o cottontail reclassificou a família Papovaviridae em famílias
400 Capítulo 15

Tabela 15.1. Classificação e doenças associadas com os papilomavírus

Gênero Biologia/patologia Espécies Espécies/nº de tipos

Alphapapillomavirus Lesões cutâneas e mucosas em 15 Papilomavírus humano – 32


humanos e primatas.

Betapapillomavirus Lesões cutâneas em humanos, 5 Papilomavírus humano – 5


geralmente de forma latente. É
ativado após eventos
imunossupressivos.

Gammapapillomavirus Lesões cutâneas em humanos com 5 Papilomavírus humano – 4


corpúsculos de inclusão
intracitoplasmáticos característicos.

Deltapapillomavirus Lesões fibropapilomatosas em 4 Papilomavírus do alce


ungulados. Infecções interespécies europeu
são relatadas.

Epsilonpapillomavirus Lesões cutâneas em bovinos. 1 Papilomavírus bovino – 5

Zetapapillomavirus Lesões cutâneas em eqüinos. 1 Papilomavírus eqüino – 1

Etapapillomavirus Lesões cutâneas em aves. 1 Papilomavírus do Fringilla coelebs

Lotapapillomavirus Lesões cutâneas em roedores. 1 Papilomavírus Mastomys


natalensis

Thetapapillomavirus Lesões cutâneas em aves. 1 Papilomavirus Psittacus erithacus


timneh

Kappapapillomavirus Lesões cutâneas e de mucosas em 2 Papilomavírus do coelho cauda-


coelhos. de-algodão

Lambdapapillomavirus Papilomavírus animal que causa lesões 2 Papilomavírus oral canino


cutâneas e de mucosas.

Mupapillomavirus Lesões cutâneas em humanos com 2 Papilomavírus humano – 1


corpúsculos de inclusão
intracitoplasmáticos característicos.

Nupapillomavirus Lesões cutâneas benignas e malignas 1 Papilomavírus humano – 41


em humanos.

Xipapillomavirus Papilomavírus que induz verdadeiros 1 Papilomavírus bovino – 3


papilomas no hospedeiro, causando
lesões cutâneas e de mucosas.

Omikronpapillomavirus Isolado de lesões genitais em cetáceos. 1 Papilomavírus do Phocoena


spinipinnis

Pipapillomavirus Lesões mucosas em hamsters. 1 Papilomavírus oral dos hamsters

Fonte: ICTV (2004).

Papillomaviridae e Polyomaviridae. Nessa ocasião, a sim como a caracterização de alterações celulares


família Papillomaviridae continha apenas um gê- e patológicas da infecção. Nos últimos 30 anos,
nero, o Papillomavirus. Em 2004, o 8º ICTV propôs com os avanços da biotecnologia, a taxonomia
a existência de 16 gêneros (Tabela 15.1). dessa família viral tem evoluído com base em
algoritmos filogenéticos para a comparação de
2 Classificação seqüências genômicas e subgenômicas. Existem
fortes evidências de que o genoma dos papiloma-
A família Papillomaviridae encontra-se em vírus é relativamente estável e de que pequenas
ativa expansão. Uma característica viral de gran- variações provavelmente ocorram na mesma fre-
de importância para a classificação é a impossi- qüência que em outros vírus DNA.
bilidade de isolamento dos papilomavírus em De acordo com o ICTV, a atual classificação
cultivo celulares convencionais, o que dificulta o dos papilomavírus teve o objetivo de estabelecer
processo de identificação e experimentação, as- a relação entre os tipos de papilomavírus, com-
Papillomaviridae 401

parar o termo “tipo” de papilomavírus nos pa- papilomavírus que infectam animais estão apre-
drões taxonômicos “espécie” e “gênero” e inves- sentadas na Tabela 15.2. A classificação por soro-
tigar a relação entre a classificação taxonômica e tipos não é utilizada para a sistemática dos papi-
as propriedades biológicas e patológicas. Assim, lomavírus, que se baseia na espécie hospedeira,
a família Papillomaviridae foi avaliada em bases fi- na origem e extensão das lesões, e no genoma
logenéticas e, atualmente, é composta por 16 gê- viral, sendo referido como genótipos virais.
neros (Tabela 15.1). Alguns desses agrupamentos O gene L1, que codifica a principal proteína
filogenéticos coincidem com as propriedades bio- do capsídeo, é o mais conservado do genoma viral
lógicas e patológicas, enquanto outros divergem, e tem sido utilizado para a identificação de novos
mostrando apenas relações moleculares. tipos de vírus. Um novo isolado de papilomaví-
Os papilomavírus são altamente espécie/ rus é reconhecido quando, após o seqüenciamen-
tecido-específicos e têm sido descritos em diver- to da seqüência codificante L1 (ORF, seqüência
sas espécies de mamíferos, como seres humanos, aberta de leitura, L1), houver diferença superior
animais domésticos e selvagens, assim como em a 10% com os papilomavírus conhecidos e com
algumas espécies de aves. Infecções entre dife- seqüências disponíveis em bancos genômicos.
rentes espécies hospedeiras são relatadas; no Diferença entre dois e 10% na homologia define
entanto, nenhum caso de infecção produtiva foi um subtipo, e inferior a 2% define uma variante
comprovado na segunda espécie. As espécies de viral.

Tabela 15.2. Espécies de papilomavírus que infectam animais

Gênero Espécies Espécie/tipo Outros papilomavírus

Papilomavírus do alce europeu Papilomavírus do cervo reindeer


1 (EEPV)

2 Papilomavírus do cervo (DPV) -


Deltapapillomavirus

3 Papilomavírus ovino 1 (OvPV-1) OvPV-2

4 Papilomavírus bovino 1 (BPV-1) BPV-2

Epsilonpapillomavirus 1 Papilomavírus bovino 5 (BPV-5) -

Zetapapillomavirus 1 Papilomavírus eqüino 1 (EcPV-1) -

Etapapillomavirus 1 Papilomavírus do Chaffinch (ChPV) -

Thetapapillomavirus 1 Papilomavírus dos papagaios (PePV) -

Papilomavírus do coelhos cauda-de- -


1 algodão (CRPV)
Kappapapillomavirus

Papilomavírus oral dos coelhos -


2 (ROPV)

1 Papilomavírus oral canino (COPV) -


Lambdapapillomavirus

2 Papilomavírus felino (FDPV) -

Xipapillomavirus 1 Papilomavírus bovino 3 (BPV-3) BPV-4 e BPV-6

Papilomavírus oral dos hamsters


Pipapillomavirus 1 (HaPV) -

Não-classificado - Papilomavírus bovino 7 (BPV-7) -


402 Capítulo 15

Embora ainda não utilizada com muita fre-


qüência, a classificação dos papilomavírus em
gênero e espécie também foi recentemente defi-
nida em bases filogenéticas. Diferentes gêneros
apresentam menos de 60% de similaridade na
seqüência de nucleotídeos da ORF L1 e entre 23
e 43% de similaridade na seqüência completa do
genoma viral. Entre as espécies virais pertencen-
tes ao mesmo gênero, devem ser encontradas se-
melhanças entre 60 e 70% na seqüência da ORF
L1.
Atualmente, os bancos genômicos dispõem
da seqüência completa do genoma de 118 tipos
de papilomavírus. Porém, esse número deve ser
constantemente reavaliado, uma vez que novos Fonte: www.oralcancerfoundation.org
estudos têm conduzido à determinação de novos
Figura 15.1. Fotomicrografia eletrônica de um
tipos, subtipos e variantes virais com grande fre-
papilomavírus humano.
qüência.
4 Estrutura e organização genômica
3 Estrutura e propriedades
dos vírions Apesar do tamanho relativamente pequeno,
a organização do genoma dos papilomavírus é
Os papilomavírus são pequenos vírus on- muito complexa (Figura 15.2). Não são observa-
cogênicos não-envelopados, com 52 a 55 nm de
diâmetro. O capsídeo viral, com simetria icosa-
édrica, é composto por 72 capsômeros, sendo 60 Região conservada e
capsômeros que se ligam de forma hexavalente expressa após a integração
e 12, de forma pentavalente. Os capsômeros são
arranjados em superfícies com triangulação T = 7,
originando à microscopia eletrônica o aspecto ar- R s
LC otoreres E6
m do
redondado (Figura 15.1). Cada capsômero é com- proegula E7
e r
posto por duas proteínas codificadas pelo vírus: 7945
7000 1000
a proteína principal (L1) e a proteína secundária
E1
(L2). Partículas semelhantes ao vírus (VLPs) po-
dem ser produzidas pela expressão somente da L1 6000 BPV - 1 2000

proteína L1 ou pela combinação das proteínas L1


5000 3000
e L2. Os vírions apresentam coeficiente de sedi-
4000 E2
mentação (S20, W) de 300 e densidade no cloreto E4
L2
de césio de 1.34 g/mL. E5
O ácido nucléico dos papilomavírus consiste
de uma molécula de DNA de fita dupla circular,
com 7.3 a 8 kpb. Nos vírions e nas células hos- Região pouco, ou Região interrompida
pedeiras, o genoma está conjugado com histonas, não-expressa após a integração
após a integração
formando um complexo semelhante à cromatina
celular. A massa molecular do ácido nucléico é
de 5.0 x 106 daltons e representa 12% da massa do Fonte: Alfieri, A.A.
vírion. A partícula viral é resistente às condições
do meio ambiente e a solventes lipídicos, como o Figura 15.2. Ilustração esquemática da organização do
éter e o clorofórmio. genoma do papilomavírus bovino tipo 1.
Papillomaviridae 403

das diferenças na organização genômica entre os genoma viral e codifica as proteínas do capsídeo
gêneros de papilomavírus. Todas as ORFs estão (L1 e L2), que são produzidas nas fases tardias
localizadas em uma das fitas do DNA viral, in- da replicação viral e são encontradas apenas nas
dicando que apenas uma fita é utilizada como infecções produtivas. As ORFs dos papilomaví-
molde para codificar as proteínas virais. A fita co- rus estão sobrepostas e aninhadas, compactando
dificante contém cerca de 10 ORFs, classificadas vários genes em uma pequena extensão do geno-
em dois segmentos principais, conforme a fase de ma. A massa molecular e a função das proteínas
virais são bem conservadas entre as diferentes
transcrição: o segmento E contém oito ORFs a se-
espécies de papilomavírus.
rem traduzidas, chamadas de iniciais (early – E), e
Entre os segmentos genômicos L e E existe
o segmento L contém duas ORFs tardias (late – L).
outro segmento, denominado LCR (long control
As ORFs E e L são encontradas em locais distin-
region), que representa 15% (500-1.000 pb) do
tos do genoma. O segmento E representa 45%
genoma viral. Essa região não codifica proteí-
do genoma viral e codifica proteínas necessárias nas, mas contém elementos promotores e regiões
para as fases iniciais de replicação e transcrição regulatórias da replicação viral. A maioria dos
viral. Nesse segmento, estão as ORFs que codifi- elementos cis de regulação da replicação e trans-
cam as proteínas regulatórias e as proteínas onco- crição do material genético, assim como o ponto
gênicas dos papilomavírus. As proteínas iniciais de origem (ori) da replicação estão contidos nessa
são expressas em células recém-infectadas, em região.
infecções não-produtivas, assim como em células Em síntese, no genoma dos papilomavírus,
transformadas. O segmento L representa 40% do são encontrados três oncogenes (E5, E6 e E7), que

Tabela 15.3. Proteínas codificadas pelo papilomavírus bovino tipo 1

Tamanho
Proteína (aminoácidos) Função

Em conjunto com a E2, é a primeira proteína a ser produzida. É


uma helicase dependente de ATP que separa as cadeias do DNA
E1 605
viral e age como fator de elongação na replicação do DNA. Atua
como proteína regulatória de oncogenes virais.

Está envolvida tanto no controle da transcrição quanto na replicação


E2 306 do DNA. Atua como proteína regulatória de oncogenes virais.

São pequenas proteínas, expressas tardiamente, produzidas por


E4 120 splicing alternativo e modificada após a tradução. Estão envolvidas na
transformação da célula hospedeira, desregulando a mitogênese.

Proteína de transformação celular que interage com receptores de


E5 44 fatores de crescimento, obstruindo os mecanismos de supressão do
crescimento. Altera o controle do ciclo celular.

Proteína de transformação celular que ao se ligar à p53 (proteína


E6 137 de supressão de tumores), ocasiona a sua degradação. Altera o
controle do ciclo celular.

Proteína de transformação celular que ao se ligar à pRb ou p107


E7 127 (proteínas de supressão de tumores) ocasiona a sua degradação.
Altera o controle do ciclo celular.

Proteína principal do capsídeo. Representa 80% do capsídeo protéico


L1 495 e contém epitopos que induzem anticorpos neutralizantes.

Proteína secundária do capsídeo viral. Também contém epitopos


L2 469 que induzem anticorpos neutralizantes.
404 Capítulo 15

modulam os processos de transformação celular; múltiplos promotores e formas alternativas de


dois genes que codificam proteínas reguladoras transcrição. Os primeiros indicadores de trans-
(E1 e E2), que modulam a transcrição e a replica- crição do genoma aparecem cerca de quatro se-
ção; e dois outros genes que codificam as proteí- manas após a infecção, quando pode ser detec-
nas estruturais (L1 e L2) que compõem o capsídeo tada a expressão dos genes iniciais E1 e E2. Na
viral. As ORFs E1, E2, L1 e L2 são particularmen- infecção produtiva, as células da camada basal da
te bem conservadas entre todos os membros des- epiderme, que possuem a capacidade de se mul-
sa família. Na Tabela 15.3, estão apresentadas as tiplicar, aumentam a taxa de proliferação. Esse
proteínas codificadas pelos papilomavírus bovi- efeito, provavelmente, deva-se à combinação das
no tipo 1 e suas respectivas funções. ações das proteínas expressas pelo gene E5, que
O genoma dos papilomavírus pode ser en- atuam em conjunto com receptores de fator de
contrado no núcleo da célula infectada sob duas crescimento epidérmico; proteína viral E6, que se
formas físicas: a epissomal e a integrada. A epis- liga à proteína p53; e proteína E7, que se liga à
somal é encontrada em lesões iniciais e benignas, proteína retinoblastoma (Rb). As oncoproteínas
sob a forma circular e em múltiplas cópias. A virais interferem, dessa forma, no ciclo vegetati-
vo celular.
forma integrada é encontrada apenas em células
A transformação promovida pelos papilo-
transformadas. Nessa forma, o genoma do papi-
mavírus é complexa e depende dos produtos dos
lomavírus encontra-se integrado ao cromossomo
genes iniciais. As proteínas de transformação po-
da célula hospedeira, com uma única cópia por
dem ser diferentes entre os vários tipos virais, e
célula. A integração do genoma viral ao cromos-
o mecanismo de ação dessas proteínas ainda não
somo celular ocorre de forma aleatória, porém to-
está totalmente elucidado. O princípio geral con-
das as células infectadas apresentam a integração
siste em duas ou mais proteínas iniciais coope-
no mesmo sítio.
rando para formar o fenótipo transformado. Al-
guns vírus podem transformar células por si só,
5 O ciclo replicativo como o papilomavírus bovino tipo 1 (BPV-1), e
outros requerem a cooperação com um oncogene
5.1 Adsorção, penetração celular ativado, como o papilomavírus humano
e desnudamento tipo 16 (HPV-16). Na maioria dos casos, parte ou
todo o genoma do papilomavírus é mantido nas
A infecção pelo papilomavírus é iniciada células tumorais. Em casos excepcionais, como o
com a adsorção dos vírions à superfície das cé- papilomavírus bovino tipo 4 (BPV-4), o DNA vi-
lulas basais do epitélio. O receptor responsável ral pode ser perdido antes da transformação.
pela ligação dos vírions é uma molécula conser-
vada, presente na membrana celular, porém a 5.3 Replicação do genoma viral
sua identidade não é conhecida. O vírus penetra,
provavelmente, por meio de endocitose e é trans- A replicação do genoma viral ocorre no nú-
portado pelo citoesqueleto em direção ao núcleo. cleo celular e é realizada em diferentes etapas, de
Durante essa etapa, ocorre a desestruturação e a acordo com as fases de diferenciação das células
perda do capsídeo viral, processo ainda pouco do epitélio. Inicialmente, nas células abaixo da
compreendido. Utilizando os poros nucleares, o superfície da derme, o DNA viral é amplificado
DNA viral penetra no núcleo da célula hospedei- até um total de 50 a 400 cópias por célula. Após
ra. esta fase inicial de replicação, o DNA viral passa
a ser replicado em conjunto com o ciclo de divi-
5.2 Transcrição e expressão são celular e o número de cópias virais por célu-
das proteínas virais la permanece constante. Nas células diferencia-
das da epiderme, o DNA viral é amplificado em
A expressão das proteínas codificadas pelos grande número de cópias por célula e de forma
papilomavírus é complexa devido à presença de descontrolada.
Papillomaviridae 405

5.4 Montagem do capsídeo e egresso da replicação ocorrem sucessivamente de acordo


com o estágio de diferenciação celular (Figura
A montagem, maturação e a subseqüente 15.3).
produção de vírions ocorrem no núcleo celular. O período de incubação das patologias in-
As proteínas tardias, L1 e L2, são expressas e a duzidas pelos papilomavírus varia de acordo
com o local da célula infectada. As verrugas nas
montagem do capsídeo ocorre mesmo sem a pre-
mãos e pés de seres humanos apresentam longo
sença do DNA viral. Essa característica é de gran-
período de incubação (6 a 18 meses), enquanto as
de importância para a produção de VLPs que
verrugas genitais têm período de incubação de 2
apresentam potencial para utilização em vacinas.
a 6 meses.
As partículas virais são liberadas por interferên-
Os papilomavírus podem também ser encon-
cia da proteína codificada a partir do gene E4,
trados em células polimorfonucleares do sangue
que desestabiliza a rede de queratina intracelu-
periférico, no entanto, não existem evidências da
lar. Os vírions são, então, agrupados e liberados
sua multiplicação nessas células. Essa observação
das células.
é importante pela implicação que pode ter na pa-
togênese da infecção, pois sugere que a corrente
6 Patogenia sangüínea pode carrear o vírus para diferentes
tecidos.
Cada papilomavírus apresenta especifici-
dade por uma única espécie animal, na qual se
replica de forma produtiva. Alguns tipos virais 7 Patologia
podem infectar uma segunda espécie animal.
Nesses casos, produzem uma infecção não-pro- A infecção pelo papilomavírus pode oca-
dutiva, ou seja, sem a produção de vírions infec- sionar alterações na morfologia e função celular.
ciosos, como ocorre no sarcóide eqüino, que é um Essas alterações são reflexos das mudanças gené-
exemplo de infecção heteróloga ocasionada pelos ticas e fisiológicas que se acumulam por longos
BPV-1 e BPV-2. períodos de tempo, levando à perda progressiva
Os papilomavírus são também tecido-es- do controle do ciclo celular, imortalização celular
pecíficos, com tropismo por células do epitélio e transformação tumoral.
escamoso. Os receptores celulares responsáveis Nas células epiteliais transformadas, podem
por esse tropismo ainda não são conhecidos, no ser observadas alterações do tipo hiperplasia e
entanto, alguns tipos de papilomavírus apresen- hipertrofia. As células germinativas não são per-
tam tropismo pelo epitélio cutâneo e outros pelo missivas à replicação viral e, ao se dividirem e se
epitélio mucoso. Outro aspecto importante é que deslocarem para a superfície, disseminam o vírus
os papilomavírus necessitam da diferenciação a todas as células irmãs que, então, passam por
celular do epitélio. Portanto, o cultivo em célu- processos de transformação e de proliferação de
las indiferenciadas não pode ser realizado com forma displásica, induzidos pelo vírus. A cama-
êxito, visto que as células podem ser infectadas, da celular fica mais espessa, com células vacuo-
mas não ocorre a infecção produtiva. O ciclo de lizadas, adquirindo a aparência clássica de papi-
replicação viral é completado nos processos de loma. Assim, o aspecto de “verruga” deve-se à
diferenciação das células epiteliais. Inicialmente, proliferação e não à destruição celular. À medida
o vírus infecta os queratinócitos basais, provavel- que as células infectadas passam pelo processo
mente por meio de microlesões; expressa parte de diferenciação e queratinização, elas se tornam
dos seus genes nas camadas basal e suprabasal; permissivas à replicação viral. Os vírions podem
replica o genoma viral na região de diferenciação reinfectar as células adjacentes, sendo esta a razão
das camadas espinhosa e granular; expressa os pela qual os papilomas cutâneos são contagiosos
genes estruturais e transfere o DNA para as cé- e aparecem agrupados. A infecção de várias célu-
lulas da camada escamosa, onde a progênie viral las basais origina colônias celulares sobrepostas,
é finalmente liberada após a descamação celular com a aparência de “verruga” em forma de cou-
normal do epitélio. Ou seja, as diferentes etapas ve-flor.
406 Capítulo 15

Vírus introduzido
por microlesões

Diferenciação dos Replicação dos


queratinócitos papilomavírus

Estrato córneo Liberação de vírions maduros


Camadas
granulares Vírions maduros

Morfogênese dos vírions


Camadas
Produção das proteínas tardias
espinhosas
Amplificação vegetativa do DNA
superiores
Níveis altos de proteínas iniciais (E4)

Camadas Proteínas dependentes


espinhosas da diferenciação E6 e E7
inferiores Proteínas iniciais E1, E2, E3 e E4

Células amplificadores Possível sítio alternativo


em trânsito (mitóticas) de infecção
Proteínas iniciais E1 e E2
Células basais
e de reserva Infecção primária
(subsitituem as Estabelecimento da replicação
ampllficadoras) Proteínas iniciais E1 e E2
Membrana basal
Derme
(tecido conjuntivo,
fibroblastos, endotélio
vascular)

Fonte: adaptada de Frazer (2004) e Chow e Braker (1997).

Figura 15.3. Ilustração esquemática da infecção pelo papilomavírus em epitélio cutâneo.

8 Papilomavírus e tumores carcinoma oral em cães e, possivelmente, câncer


do trato alimentar e de bexiga em humanos.
A progressão neoplásica é um processo sem Embora a etiologia viral de tumores esteja
perspectiva para o vírus, visto que a célula trans- bem estabelecida, os mecanismos moleculares
formada não é mais permissiva à maturação dos induzidos pelo vírus sobre a célula transforma-
vírions. O genoma viral é incorporado pela célula, da ainda não são bem compreendidos. O DNA
mantido como um elemento extracromossômico, viral pode não estar presente em muitos tumores
com replicações sincronizadas com o ciclo celu- e em células transformadas in vitro. Essa caracte-
lar, ou pode até mesmo ser perdido pelas células rística sugere que o vírus possa ser o responsável
transformadas. pelos eventos iniciais da carcinogênese, mas não
O papilomavírus está associado com neo- pela continuidade das transformações fenotípi-
plasias, incluindo carcinomas urogenitais e cân- cas, quando a informação genética do vírus não
cer do trato respiratório superior em humanos, é necessária para a manutenção da malignidade.
câncer de pele em humanos e coelhos, câncer do Também não está claro como os fatores carcino-
canal alimentar superior e de bexiga em bovinos, gênicos e os agentes promotores da carcinogê-
Papillomaviridae 407

nese estão envolvidos nos diferentes estágios de a detecção do papilomavírus são: a hibridização
desenvolvimento dos papilomas e carcinomas. do ácido nucléico e a reação em cadeia da poli-
Dois estágios da carcinogênese – a iniciação e a merase (PCR).
promoção – que apresentam componentes inde- Diferentes métodos de hibridização foram
pendentes já foram descritos. desenvolvidos para a detecção do DNA do pa-
Como a maior parte dos papilomas não pro- pilomavírus em fragmentos de tecidos e em es-
gride para o câncer e o desenvolvimento maligno fregaços. O limiar de detecção é variável e, em
somente ocorre após longo período de latência, a sua maioria, esses métodos apresentam baixa
infecção viral é considerada como condição neces- sensibilidade e especificidade. A técnica de Sou-
sária, mas não suficiente, para o desenvolvimen- thern blot é considerada o “padrão ouro” para
to dos diferentes tipos de neoplasias epiteliais a detecção do genoma do papilomavírus. Esse
associados com os papilomavírus. O papiloma é método é um valioso instrumento de pesquisa,
um tumor benigno, mas as alterações displásicas mas não tem aplicação para a rotina diagnóstica.
ocasionadas pelo vírus podem originar a lenta Algumas variações de métodos de hibridização
progressão para uma doença maligna. já foram utilizadas para a detecção do DNA do
papilomavírus, como o Dot blot, a hibridização in
9 Diagnóstico situ, a hibridização in situ com filtro, entre outras.
Porém, todas essas técnicas somente detectam in-
A maioria das viroses pode ser diagnostica- fecções com mais de 10 a 20 cópias do genoma
da por técnicas tradicionais de Virologia, como viral por célula e também não são utilizadas na
os cultivos celulares, a microscopia eletrônica ou rotina diagnóstica.
a sorologia. Entretanto, nenhum desses métodos A PCR tem sido amplamente utilizada para
é rotineiramente utilizado para a detecção do pa- o diagnóstico e caracterização molecular dos pa-
pilomavírus. pilomavírus com bons níveis de sensibilidade e
A histologia possibilita a identificação de especificidade. A PCR possibilita ainda que os
neoplasia intra-epitelial, que pode estar associa- produtos amplificados sejam avaliados por análi-
da com vírus de potencial oncogênico e que são ses do polimorfismo dos fragmentos de restrição
de risco para a progressão do câncer. Por meio (RFLP) e, mais comumente, por seqüenciamento,
da histologia, não é possível identificar o tipo de permitindo, assim, a elaboração de análises filo-
papilomavírus associado com o efeito citopático. genéticas. Segmentos do gene L1 são os mais uti-
A interpretação histológica é também dificultada lizados para a amplificação tanto com o objetivo
quando as alterações vírus-associadas são míni- de diagnóstico quanto para a caracterização mo-
mas, além de não permitir a identificação de in- lecular de novas espécies e tipos virais.
fecção latente.
A técnica de imunoistoquímica é um méto- 10 Imunologia
do com baixa sensibilidade e especificidade e que
exige a presença de grande concentração de pro- As lesões benignas produzidas na infecção
teínas virais. Apesar de ainda estar sob avaliação, cutânea e mucosa pelo papilomavírus apresentam
a sorologia para o diagnóstico de rotina do HPV tendência de regressão espontânea. No entanto,
tem mostrado algumas vantagens. No momento, algumas infecções com curso clínico prolongado
a técnica de VLP-ELISA (ensaio imunoenzimá- e que determinam lesões extensas podem, ocasio-
tico com partículas semelhantes a vírus) ainda nalmente, progredir para o câncer.
apresenta baixa especificidade e sensibilidade. Infecções pelo papilomavírus, ocasionando
A impossibilidade do cultivo dos papiloma- lesões benignas, podem ser encontradas tanto
vírus em sistemas in vitro de cultivos celulares em animais imunossuprimidos quanto imuno-
tem direcionado o desenvolvimento de técni- competentes. Casos de papilomatose persistente
cas de diagnóstico baseadas na identificação do geralmente são observados em animais imunos-
DNA viral. As principais técnicas utilizadas para suprimidos. Um grande número de animais com
408 Capítulo 15

papilomatose em um rebanho pode estar relacio- prias de cada tipo viral podem influenciar na
nado com fatores químicos ou mecanismos imu- forma de manifestação clínica e na evolução da
nomodulados, que podem ativar o vírus laten- infecção pelo papilomavírus, bem como no pro-
te. A relação entre o número de células CD4+ e cesso de recuperação do animal infectado.
CD8+ no sangue periférico de animais infectados
com o papilomavírus é significativamente menor 11 Imunoprofilaxia
quando comparada com animais não-infectados,
sugerindo uma depleção linfocitária. As pesquisas de vacinas contra o papilo-
A maior susceptibilidade de animais jovens mavírus são prejudicadas pela incapacidade do
à infecção pelo papilomavírus deve-se à falta de vírus de replicar em cultivos celulares e tam-
reconhecimento do patógeno pelo sistema imu- bém pela dificuldade de adaptação em cultivos
ne. Após a infecção primária, os animais tornam- de tecidos. Os primeiros estudos realizados com
se menos susceptíveis ou mesmo resistentes a vacinas contra os diferentes tipos de papilomaví-
novas infecções. rus bovino foram realizados na década de 1990,
A regressão e o desaparecimento de lesões quando se sugeriu a existência de imunidade
benignas apresentam evidências do desenvol- tipo-específica para esse vírus.
vimento de imunidade sistêmica, uma vez que Sucessos na profilaxia e na regressão de
todas ou a maioria das lesões regridem simulta- tumores epidermais e do trato digestório foram
obtidos em bovinos, tanto utilizando vacinas
neamente. Após o desaparecimento das lesões,
convencionais quanto vacinas produzidas por
ocorre um período de resistência à reinfecção
engenharia genética. Inicialmente, dois tipos de
pelo mesmo tipo viral que ocasionou as lesões.
vacinas foram considerados: vacinas profiláticas,
Entretanto, outro tipo viral pode produzir nova
que induziriam anticorpos vírus-neutralizantes
infecção com a produção de lesões. A imunidade
prevenindo a infecção, e vacinas terapêuticas,
à reinfecção é mediada por anticorpos neutrali-
que promoveriam a regressão das lesões já esta-
zantes produzidos contra as proteínas do capsí-
belecidas, antes que a progressão maligna tivesse
deo viral, principalmente contra a proteína L1. A
início.
imunidade humoral tem importância na preven-
Diferentes estratégias para a elaboração de
ção de infecção, mas não é efetiva para a regres-
vacinas têm sido utilizadas para o controle da in-
são das lesões.
fecção pelo papilomavírus, destacando-se entre
Anticorpos contra as proteínas iniciais E1 e
elas: a) vacina autógena, preparada a partir de
E2 (encontradas no início da infecção e responsá-
macerado de papilomas cutâneos do animal de
veis pelos eventos primários da replicação viral) origem. Esse tipo de vacina tem sido utilizado em
e contra E6 e E7 (que são proteínas envolvidas na bovinos, caninos e coelhos, e experimentos con-
transformação celular), são detectados em dife- trolados indicam um efeito positivo na regressão
rentes estágios da infecção. Os anticorpos contra das lesões; b) extratos heterólogos de papilomas
E1 e E2 permanecem constantes e os anticorpos cutâneos, semelhantes a vacinas autógenas, pre-
contra E6 e E7 declinam mais tardiamente. parados a partir de lesões obtidas de diversos
A regressão dos papilomas se deve a even- animais; c) vacina de vírus purificado. Este foi o
tos celulares da imunidade, onde são encontrados primeiro tipo de vacina testada em bovinos e pro-
infiltrados de linfócitos T nas lesões em processo tege contra subseqüentes desafios com vírus ho-
de regressão. Os tipos celulares (CD8+/CD4+), mólogos; d) proteínas recombinantes expressas
predominantes nas diferentes camadas celulares em bactérias induzem a formação de anticorpos
do epitélio, podem variar de acordo com o tipo neutralizantes produzidos contra epitopos con-
de papilomavírus envolvido na infecção. formacionais. Como vacina profilática, utiliza-se
Por fim, deve-se, ainda, considerar que as- a proteína L1 do capsídeo viral; e, para a regressão
pectos genéticos, nutricionais e imunológicos tumoral, são utilizadas as proteínas iniciais E1,
relacionados ao hospedeiro e características pró- E2, E6 e E7. Para o BPV-4, a vacina com a proteína
Papillomaviridae 409

L2 promove a regressão tumoral, provavelmente prejuízos econômicos consideráveis, destacando-


por estimular a resposta imune do hospedeiro a se a redução no consumo de alimentos e conse-
outras proteínas virais; e) proteínas recombinan- qüente perda de peso e/ou queda na produção
tes produzidas em sistema baculovírus também de leite, predisposição a mastites e a outras infec-
podem ser utilizadas como vacinas induzindo ções secundárias e redução na qualidade do cou-
resposta imune celular; f) VLPs, produzidas a ro. Os prejuízos estão intimamente relacionados
partir da expressão dos genes L1 ou L1 e L2 em com a localização anatômica e extensão das lesões
bactérias. A proteína L1 de forma isolada ou a as- encontradas. Surtos de papilomatose cutânea bo-
sociação das proteínas L1 e L2, expressas a partir vina com prevalências variadas são relatados em
de células bacterianas recombinantes, produzem, diversos estados brasileiros.
por afinidade química, o capsídeo viral e indu- O BPV-1 causa fibropapilomas em tetos, pê-
zem a formação de anticorpos neutralizantes; g) nis e em outras localizações anatômicas; o BPV-2
vacina de DNA. Fragmentos de DNA plasmidial, também causa fibropapilomas em diversas locali-
codificando antígenos virais, são bombardeados zações anatômicas, inclusive no esôfago e rúmen.
juntamente com partículas de ouro diretamente Além disso, é responsável pelo desenvolvimento
no núcleo celular. Podem ser utilizados somente de papilomas cutâneos comuns. Em associação
os genes L1 e E6 ou a sua associação com os ge- com a ingestão crônica de samambaia (Pteridium
nes iniciais E1, E2, E6 e E7, que apresenta maior aquilinum), o BPV-2 também é implicado na etio-
eficiência. A imunidade induzida por essa vacina logia da hematúria enzoótica bovina; o BPV-3
pode ser longa. tem sido isolado de papilomas cutâneos comuns;
o BPV-4 também é isolado de lesões cutâneas e,
12 Doenças de importância em quando em associação ao consumo crônico de
medicina veterinária causadas por samambaia, pode causar tumores no trato diges-
tório superior, popularmente conhecidos como
papilomavírus
“caraguatá”; o BPV-5 causa fibropapilomas em
forma de grão de arroz no úbere e tetos; e o BPV-
6 também é o agente etiológico de papilomas
12.1 Papilomatose localizados na glândula mamária. Em 2007, no
Japão, foram descritos dois novos tipos de BPV
A papilomatose cutânea é caracterizada pela (BPV-7 e BPV-8) em lesões cutâneas, ainda não
formação de tumores benignos no epitélio cutâ- classificados em nível de espécie.
neo e mucoso de várias espécies animais, des- A papilomatose eqüina é um distúrbio der-
tacando-se as domésticas (bovinos, ovinos, suí- matológico não muito comum, causada pelo pa-
nos, eqüinos e caninos), de laboratório (coelhos pilomavírus eqüino tipo 1 (EqPV-1). A infecção
e hamsters), selvagens (ursos, alces), mamíferos é geralmente autolimitante e caracterizada por
aquáticos (golfinhos, peixes-boi), outros animais pequenas lesões localizadas na região da cabeça
aquáticos (tartarugas marinhas), aves (papagaios) e pescoço. Mais comum que a papilomatose cutâ-
e também os seres humanos. nea em eqüinos é a infecção heteróloga de eqüi-
A papilomatose cutânea geralmente acome- nos com o BPV-1 ou BPV-2, resultando na pro-
te indivíduos jovens e/ou imunocomprometidos. dução do sarcóide eqüino. Essa infecção, mesmo
Os papilomas cutâneos podem ser encontrados não sendo produtiva, promove o aparecimento
em diversas localizações anatômicas e com os de grandes massas tumorais. O tratamento pode
mais variados tamanhos e morfologias, incluindo ser realizado por extirpação cirúrgica ou com
desde papilomas planos até em forma de “grão produtos imunoestimulantes, tais como a aplica-
de arroz” e “couve-flor”. ção intralesional de BCG. A papilomatose ovina,
A papilomatose bovina é uma enfermidade causada pelo OvPV-1 e OvPV-2, não é uma doen-
infecto-contagiosa de grande importância na pe- ça de importância econômica, ocorre em uma pe-
cuária mundial, tanto para as explorações leitei- quena parcela da população ovina e não provoca
ras quanto de corte. A enfermidade pode causar lesões extensas.
410 Capítulo 15

A papilomatose suína ocorre com maior fre- A samambaia é cosmopolita em todas as regiões
qüência na bolsa escrotal e interfere com a libido, tropicais e, no Brasil, sua presença é registrada
tanto pela dor localizada quanto pela presença de em praticamente todos os estados.
aderências. O agente etiológico da papilomatose A samambaia apresenta em sua composição
suína ainda não foi caracterizado. diversas substâncias mutagênicas, carcinogêni-
A papilomatose canina pode ser encontrada cas e imunossupressivas. A toxicidade da planta
sob duas formas. A primeira e mais importante é é comprovada experimentalmente, no entanto, a
a forma oral, conhecida como papilomatose oral sua associação com a patogenia dos tumores vesi-
canina. Essa forma é ocasionada pela infecção cais e do trato digestório ainda não está totalmen-
com o COPV, e caracteriza-se pelo aparecimento te esclarecida. Substâncias potencialmente muta-
de pequenos papilomas pedunculados (1-2 cm de gênicas e/ou carcinogênicas foram isoladas da
comprimento) na cavidade oral, podendo esten- samambaia, incluindo a quercetina, ptaquilosíde-
der-se desde a gengiva até o palato. Os animais os, α-ecdysone, ácido shikímico, aquilídeo A, ta-
podem apresentar também lesões ao redor da nino, prunasina e camferol. A carcinogenicidade
boca e olhos. As implicações dessa forma de pa- da planta tem sido atribuída à quercetina, ácido
pilomatose são: a dificuldade de alimentação e o shikímico e ao ptaquilosídeo. Porém, a baixa fre-
mal-estar. A segunda forma, menos comum, é a qüência de atividade citotóxica desses compostos
papilomatose cutânea propriamente dita, causa- sugere que não sejam os prováveis agentes etio-
da pelo CPV-1. Essa infecção pode causar lesões, lógicos diretos na intoxicação pela samambaia
geralmente em pequeno número, distribuídas em em bovinos. A natureza dos carcinógenos não foi
várias regiões do corpo do animal. completamente elucidada e nenhum dos cons-
tituintes tóxicos isolados foi capaz de reprodu-
12.2 Hematúria enzoótica e tumores zir, individualmente, todas as síndromes típicas
no trato digestório superior de bovi- dessa intoxicação. Apesar da baixa palatabilida-
nos de, são várias as condições em que a intoxicação
natural pela samambaia pode ocorrer, como pela
Historicamente, a etiologia da hematúria ingestão de fenos contaminados, superpastoreio,
enzoótica bovina foi relacionada a diversos fato- secas, geadas ou queimadas e a necessidade da
res, incluindo deficiências nutricionais, ingestão ingestão de fibras. A intoxicação pela samambaia
de plantas tóxicas, falta ou excesso de molibdê- em bovinos pode apresentar três formas clínicas:
nio no solo e agentes infecciosos, como bactérias intoxicação aguda, hematúria enzoótica crônica e
(Corynebacterium renale), fungos (Fusarium spp), tumores no trato digestório superior.
protozoários e até endoparasitos. Atualmente, a A hematúria enzoótica é caracterizada pela
interação do papilomavírus bovino tipo 2 com presença de sangue na urina. As primeiras mani-
carcinógenos presentes na planta samambaia festações ocorrem em animais adultos, com idade
(Pteridium aquilinum) é reconhecida mundial- superior a três ou quatro anos, sem preferência
mente como a mais provável causa da hematúria de raça ou de sexo. A doença evolui devido às cri-
enzoótica bovina. ses de hematúria, associadas à poliúria e disúria,
A hematúria enzoótica bovina apresenta intercaladas por períodos de remissão, que po-
caráter enzoótico em determinadas regiões ge- dem perdurar semanas, meses ou mesmo anos.
ográficas que reúnem condições ideais para o A fase da hematúria é variável, o volume de san-
crescimento da samambaia. Essa planta invaso- gue perdido é inconstante, e os animais também
ra se desenvolve em solos pobres, ácidos, com podem apresentar acentuada proteinúria. Em
baixos teores de cálcio e de fósforo e em regiões algumas situações, a hematúria enzoótica bovina
com umidade relativa do ar elevada. A samam- pode ocorrer em associação com neoplasias do
baia é uma pteridófita do gênero Pteridium, espé- trato alimentar.
cie aquilinum, e, no Brasil, é encontrada apenas Os tumores do trato digestório superior
a subespécie caudatum, variedade arachnoideum. obstruem a passagem de alimentos e, no exame
Papillomaviridae 411

clínico, são observados sinais de disfagia, regur- 13 Bibliografia consultada


gitação, dilatação do esôfago proximal à massa
tumoral, perda de peso e timpanismo crônico re-
cidivante. A ocorrência desses tumores, embora BLOCH, N. et al. Identification of papillomavirus in scrapings
from bovine warts by use of the polymerase chain reaction.
de etiologia não confirmada experimentalmente,
Veterinary Research Communication, v.21, p.63-68, 1997.
tem sido atribuída à ingestão da samambaia, com
uma possível associação etiológica com o BPV-4. BORZACCHIELLO, G. et al. Presence of bovine papillomavirus
type 2 DNA and expression of the viral oncoprotein E5 in
Uma porcentagem significativa dos animais com
naturally occurring urinary bladder tumours in cows. The
lesões do trato digestório superior também apre- Journal of General Virology, v.84, p.2921-2926, 2003.
senta lesões neoplásicas na bexiga urinária.
BORZACCHIELLO, G. et al. Bovine papillomavirus E5
Várias observações sobre a ocorrência do pa-
oncoprotein binds to the activated form of the platelet-derived
pilomavírus bovino e carcinomas no trato diges-
growth factor beta receptor in naturally occurring bovine urinary
tório superior de bovinos, associados com sinais bladder tumours. Oncogene, v.25, p.1251-1260, 2006.
de hematúria enzoótica e com ingestão da sa-
CAMPO, M.S. Animal models of papillomavirus pathogenesis.
mambaia, já foram relatadas no Brasil e em outros
Virus Research, v.89, p.249-261, 2002.
países. As toxinas da samambaia foram capazes
de produzir tumores em animais de laboratório CAMPO, M.S. Review: bovine papillomavirus and cancer. The
Veterinary Journal, v.154, p.175-188, 1997.
livres da infecção pelo vírus, e este, isoladamen-
te, foi capaz de produzir neoplasias na bexiga de CAMPO, M.S. Infection by bovine papillomavirus and prospects
bezerros que não tinham acesso à samambaia. for vaccination. Trends in Microbiology, v.3, p.92-97, 1995.
Resultados de vários experimentos confirmaram CAMPO, M.S. Cell transformation by animal papillomaviruses.
que tanto o vírus quanto a samambaia estão en- The Journal of General Virology, v.73, p.217-222, 1992.
volvidos na carcinogênese da bexiga.
CAMPO, M.S. et al. Latent papillomavirus infection in cattle.
O efeito clastrogênico dos componentes da
Research in Veterinary Science, v.56, p.151-157, 1994.
samambaia tem sido avaliado in vitro e in vivo.
No entanto, a contribuição potencial da clastro- CAMPO, M.S.; JARRETT, W.F. Vacination against cutaneous and
mucosal papillomavirus in cattle. Ciba Foundation Symposium,
genicidade do papilomavírus ainda não foi escla-
v. 187, p.61-73, 1994.
recida. A análise citogenética de células do san-
gue periférico de animais alimentados em pastos CAMPO, M.S. et al. Association of bovine papillomavirus yype 2
infestados com samambaia demonstra um au- and bracken fern with bladder cancer in cattle. Cancer Research,
v.52, p.6898-6904, 1992.
mento significativo na freqüência de aberrações
na estrutura dos cromossomos, quando compa- CHOW, L.T.; BROKER, T.R. Small DNA tumor viruses. In:
rados com animais em pastos não infestados. NATHANSON, N. (ed). Viral pathogenesis. Philadelphia:
Lippincott-Raven, 1997. Cap.12, p.267-301.
Como os linfócitos são células-alvo da infecção
latente do papilomavírus, sugere-se que o vírus FRAZER, I.H. Prevention of cervical cancer through
possa contribuir para a produção de anormalida- papillomavirus vaccination. Nature Reviews. Immunology, v.4,
p.46-54, 2004.
des cromossômicas nessas células.
Não se conhece um tratamento efetivo para FREITAS, A.C. et al. Viral DNA sequences in peripheral blood
esses distúrbios, porém a retirada dos animais and vertical transmission of the virus: a discussion about BPV-1.
dos pastos infestados com a planta pode propi- Brazilian Journal of Microbiology, v.34, p.76-78, 2003.

ciar uma lenta recuperação, desde que não exis- FAUQUET, C.M. et al. (Eds). Virus taxonomy, VIIIth Report of
tam lesões neoplásicas em estágios avançados de the International Committee of Taxonomy of Viruses. 2.ed. San
evolução. Diego, CA: Elsevier Academic Press, 2005. 1162p.

Possibilidades de imunoprofilaxia contra o GAUKROGER, J.M. et al. Interaction between bovine


BPV-2 e o BPV-4 para o controle e prevenção da papillomavirus type 4 and cocarcinogens in the production of
hematúria enzoótica bovina e de tumores no tra- malignant tumours. The Journal of General Virology, v.74,
to digestório superior estão sendo desenvolvidas p.2275-2280, 1993.

e avaliadas. Porém, resultados conclusivos ainda HOPKINS, N.C. Aetiology of enzootic haematuria. The
não foram produzidos. Veterinary Record, v.118, p.715-717, 1986.
412 Capítulo 15

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ADENOVIRIDAE
Mauro Pires Moraes & Paulo Renato dos Santos Costa 16
1 Introdução 415

2 Classificação 415

3 Estrutura do vírion e do genoma 417

4 Replicação 419

5 O ciclo replicativo 419

6 Adenovírus de interesse veterinário 421

6.1 Adenovírus canino 421


6.1.1 Adenovírus canino tipo 1 422
6.1.2 Adenovírus canino tipo 2 426

6.2 Adenovírus bovino 427


6.3 Adenovírus eqüino 427
6.4 Adenovírus de ruminantes silvestres 428

6.5 Adenovírus aviários 428


6.5.1 Aviadenovirus 428
6.5.2 Siadenovirus 428
6.5.3 Atadenovirus 429

7 Bibliografia consultada 430


1 Introdução os adenovírus produzem perdas importantes na
avicultura. A síndrome da queda de postura, a
A família Adenoviridae abriga um grupo de enterite hemorrágica dos perus, a bronquite das
codornas, entre outras, são exemplos de efermi-
vírus icosaédricos grandes, sem envelope, com
dades provocadas por adenovírus nas aves.
genoma DNA de fita dupla linear. A denomina-
ção dessa família originou-se do primeiro vírus
do grupo, que foi isolado a partir de explantes
de glândulas adenóides humanas em 1953. No 2 Classificação
ano seguinte, o primeiro adenovírus de interesse
veterinário foi isolado de casos de hepatite cani-
na. Desde 2002, o International Committee on Taxo- Seguindo os critérios de classificação preco-
nomy of Viruses (ICTV) classifica os membros da nizados pelo ICTV, os adenovírus são agrupados
família em quatro gêneros: Mastadenovirus, Avia- de acordo com várias características, que incluem
denovirus, Atadenovirus e Siadenovirus. a morfologia do vírion, estrutura e organização
A partir do primeiro isolado, o vírus serviu do genoma, replicação, reatividade antigênica e
propriedades biológicas. São reconhecidos qua-
de modelo para estudos de composição e orga-
tro gêneros na família Adenoviridae: Mastadeno-
nização estrutural dos capsídeos com simetria
virus (com 25 espécies, das quais 20 oficialmente
icosaédrica. Além disso, os adenovírus também
aceitas e cinco em estudo), Avianadenovirus (nove
foram os primeiros modelos para a descrição das
espécies, seis aceitas), Atadenovirus (sete espécies,
interações entre vírus e receptores celulares, em
uma aceita) e Siadenovirus (duas espécies). Várias
estudos de cristalografia.
dessas espécies apresentam isolados que podem
O conhecimento acerca da estrutura e orga-
ser diferenciados entre si em sorotipos, de acordo
nização dos vírions e do genoma favoreceu a uti-
com a reatividade sorológica.
lização desses vírus como vetores de expressão
Uma lista das espécies já descritas em ani-
e viabilizou a produção de vírus quiméricos, em
mais está apresentada na Tabela 16.1. Existe um
esforços para o desenvolvimento de vacinas não-
consenso, no entanto, que essa lista é provavel-
convencionais, assim como para a terapia gené-
mente subestimada, com base no número de iso-
tica. Além disso, esses conhecimentos impulsio-
lados já identificados em humanos. Seis espécies
naram o desenvolvimento de métodos baseados de adenovírus já foram descritos em humanos
em DNA desnudo, pois foi demonstrado que o (adenovírus humano tipo A até F), abrangendo
sucesso desta abordagem estava associado com a mais de 50 sorotipos.
eficiência da introdução artificial do genoma nas As características genômicas e antigênicas
células hospedeiras. A exemplo do primeiro iso- podem ser complementares e, algumas vezes,
lado, a maioria dos adenovírus está envolvida em resultam em novas classificações e agrupamen-
infecções respiratórias, mas esses vírus podem tos de vírus, inclusive em novos gêneros, como o
também estar associados com infecções do trato Atadenovirus e Siadenovirus. O gênero Atadenovi-
digestivo, de células parenquimatosas do fígado rus, que possui como protótipo o adenovírus ovi-
e de células endoteliais, com diferentes níveis de no 287 (adenovírus ovino tipo D) foi criado, agru-
patogenicidade em várias espécies. pando também vírus de bovinos anteriormente
Alguns membros da família possuem im- classificados como Mastadenovirus e com vírus
pacto na medicina veterinária. Como exemplo, de origem aviária, como o vírus da síndrome da
pode-se citar o adenovírus canino (CAdV), que queda de postura (adenovírus de patos tipo A),
apresenta dois representantes: o CAdV-1 e o classificado anteriormente como Aviadenovirus.
CAdV-2. O primeiro é o agente causal da hepatite Essa nova classificação é baseada principalmente
infecciosa canina, e o segundo está envolvido na em diferenças na organização genômica e na si-
etiologia de uma doença respiratória multicau- milaridade do gene que codifica a proteína hexon
sal, conhecida como tosse dos canis. Além destes, desses vírus.
416 Capítulo 16

Tabela 16.1. Adenovírus associados com enfermidades em animais

Vírus Abreviatura Enfermidade/hospedeiro

Adenovírus bovino Infecção subclínica ou doença


BAdV-A, BAdV-B, BAdV-C
(3 espécies) respiratória leve em bovinos

CAdV-1 Hepatite infecciosa canina


Protótipo Adenovírus humano C (HAdV-C)

Adenovírus canino
Traqueobronquite infecciosa (tosse dos
Gênero Mastadenovirus

CAdV-2 canis) em cães

Infecção subclínica ou doença


Adenovírus eqüino respiratória leve. Broncopneumonia e
EAdV-A, EAdV-B doença generalizada com
(2 espécies)
imunodeficiência em eqüinos

Adenovírus ovino Infecção subclínica ou doença


OAdV-A, OAdV-B, OAdV-C respiratória leve em ovinos
(3 espécies)

Adenovírus suíno Infecção subclínica ou doença


PAdV-A, PAdV-B, PAdV-C respiratória leve em suínos
(3 espécies)

Adenovírus caprino Infecção subclínica ou doença


GAdV-A respiratória leve em caprinos
(Proposto)
Protótipo Adenovírus aviário A (FAdV-A)
Gênero Aviadenovirus

Adenovírus aviário FAdV-A, FAdV-B, FAdV-C, Hepatite, doença respiratória


(5 espécies) FAdV-D, FAdV-E em galinhas

Adenovírus de Isolado de fígado e intestino


GoAdV
gansos de gansos

Adenovírus bovino Infecção assintomática ou doença


Protótipo Adenovírus ovino D (OAV-287)

BAdV-D, BAdV-E
(2 espécies) respiratória em bovinos
Gênero Atadenovirus

Adenovírus cervídeo Edema pulmonar, hemorragia e


DeAdV
vasculite em veados

Adenovírus de patos A Hepatite em patos e síndrome da queda


DAdV-A
de postura em galinhas

Infecção assintomática ou doença


Adenovírus ovino D OAV-D
respiratória leve em ovinos
Protótipo Adenovírus de perus A (TAdV-A)
Gênero Siadenovirus

Adenovírus de perus A Enterite hemorrágica em perus e


TAdV-A
pacreatite em faisões
Adenoviridae 417

As propriedades sorológicas foram as pri- ximado de 80 nm, sem considerar as fibras dos
meiras utilizadas para a classificação dos adeno- pentons. Na Figura 16.1, está apresentada uma
vírus que apresentam características peculiares. representação esquemática dos vírions da famí-
Por exemplo, alguns determinantes antigênicos lia Adenoviridae. A composição dos vírions é de
presentes na região interna dos hexons determi- aproximadamente 13% de DNA e 87% de pro-
naram a classificação em gêneros. Há epitopos teínas. Os vírions não apresentam membranas
presentes nos pentons, localizados nos vértices lipídicas e, por isso, são resistentes a condições
do capsídeo icosaédrico, que também definem ambientais e a solventes orgânicos. No entanto, a
a especificidade de gêneros. A classificação em infectividade dos adenovírus pode ser inativada
sorotipos é determinada pela reatividade com por desinfetantes comuns. Os vírions apresentam
anticorpos neutralizantes e também com anticor- densidade de 1,34 g.cm-3 em cloreto de césio; são
pos inibidores da hemaglutinação. Os epitopos resistentes a vários desinfetantes e podem so-
envolvidos com essas propriedades estão locali- breviver à temperatura ambiente por vários dias
zados na superfície dos hexons e fibras. Uma ca- em fômites. A infectividade é inativada por água
racterística interessante é que anticorpos contra quente (50 a 60ºC por mais de cinco minutos) e
os epitopos localizados na fibra e no seu botão por desinfetantes à base de iodo, fenol ou hidró-
terminal possuem fraca atividade neutralizan- xido de sódio.
te. Assim, a determinação estrutural sorológica O capsídeo é constituído por 252 capsôme-
da família é baseada na dominância relativa de ros, sendo 240 hexons e 12 pentons. Os hexons
alguns determinantes, dependendo dos testes (trímeros do gene II, 120 kDa) formam as superfí-
utilizados, mais do que na sua localização nos cies dos 20 triângulos eqüiláteros e são associados
vírions. às proteínas IIIa, IX, VI e VIII. Os vértices desses
triângulos são compostos pelos pentons (proteí-
3 Estrutura do vírion e do genoma na III, 85 kDa). Em cada vértice, há um prolon-
gamento protéico conhecido como fibra (proteína
Os adenovírus possuem vírions hexagonais, IV, 62 kDa). Essas projeções apresentam exten-
icosaédricos, sem envelope, com diâmetro apro- são variável entre as espécies de vírus e podem

A B
Capsídeo

Núcleo III

PT
II
V
VII IV
X
IIIa
DNA
VIII

VI

IX

Fonte: A) Dra Linda Stannard;www.uct.ac.za

Figura 16.1. Estrutura dos vírions da família Adenoviridae. A) Microscopia eletrônica de um adenovírus.
Representação esquemática de uma partícula vírica com os seus constituintes.
418 Capítulo 16

possuir entre 20 e 50 nm. Na porção terminal de genoma durante a morfogênese das partículas
cada fibra, há uma pequena estrutura globular víricas. A proteína terminal (55 kDa) apresenta
formando um botão terminal. Essa extremidade ligação covalente em cada uma das extremidades
da fibra é responsável pela ligação do vírion aos 5’ do DNA genômico e possui função de primer
receptores celulares. durante a replicação do genoma.
Na região interna do vírion, localiza-se o O genoma viral é uma molécula única de
genoma associado com quatro proteínas (V, VII, DNA de fita dupla linear, com 36 a 44 kbp (1 kpb
X e proteína terminal). As múltiplas cópias das = 1.000 pares de bases), possuindo entre 48 e 61%
proteínas V (48,5 kDa, 180 cópias) e VII (18,5 kDa, de G + C. A transfecção do genoma desprovido
1070 cópias) apresentam-se conjugadas com o de proteínas em células permissivas resulta no
DNA viral e estão envolvidas no empacotamen- ciclo replicativo completo, com formação e libe-
to e compactação do genoma. Em complexos de ração de progênie viral infecciosa. Por isso é dito
seis cópias, as proteínas VII são muito similares que o genoma dos adenovírus é infeccioso.
estruturalmente e funcionalmente aos complexos O genoma codifica aproximadamente 40
de histonas da cromatina de eucariotas. A pro- proteínas, com genes presentes nas duas cadeias
teína V medeia as interações entre o núcleo e o de DNA, transcritos em direções opostas (Figura
capsídeo e também se associa aos pentons, estan- 16.2). Vários desses genes originam transcritos
do provavelmente envolvida na localização do que são processados pelo mecanismo de splicing

Leader: 1 2 i 3

x y z

L5

L4
ML

L3

L2

L1 E3 (tardio)
IX
E1B
VA
E3
E1A
L1 (iniciais)

10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
E2A

E2B
IV a2 E4

Fonte: adaptada de Shenk (2001).

Figura 16.2. Representação gráfica da organização genômica e dos transcritos dos adenovírus. Os transcritos iniciais
são designados E (early), e os transcritos tardios são denominados L (late). Cada seta representa um mRNAs diferente
produzido a partir da transcrição e processamento dos transcritos primários.
Adenoviridae 419

antes de serem exportados para o citoplasma, plica em células de embrião de pato, hospedeiro
onde serão traduzidos. Uma mesma região trans- natural do vírus. Os vírus isolados de perus e fai-
crita pode originar diferentes RNAs mensageiros sões podem ser cultivados em células de linha-
(mRNAs), que são produzidos por clivagem e re- gem de pâncreas ou em células linfoblastóides de
moção de seqüências internas (introns). A organi- perus (MDCT-RP19).
zação genômica e os transcritos primários produ-
zidos pela transcrição dos genes dos adenovírus
estão representados na Figura 16.2. O genoma é 5 O ciclo replicativo
dividido em 11 regiões de transcrição, baseadas
na regulação temporal da expressão, sendo cinco A interação inicial dos vírions com a superfí-
delas iniciais (E1A, E1B, E2, E3 e E4), duas inter- cie das células-alvo ocorre pela ligação das extre-
mediárias (IX e IVa2) e uma tardia (que origina midades globulares das fibras dos pentons com
cinco mRNAs – L1 a L5). Destas regiões, os genes os receptores celulares, que são moléculas de
iniciais codificam proteínas não-estruturais, e as integrinas específicas. Essas integrinas são deno-
tardias codificam proteínas estruturais. minadas receptores de adenovírus e vírus Coxsa-
ckie (CAR) e são os receptores para os adenovírus
4 Replicação humanos mais estudados. Existem aproximada-
mente 105 moléculas de receptores na superfície
Os adenovírus possuem representantes em de cada célula. A ligação inicial aos receptores é
várias espécies de hospedeiros. A replicação do seguida por uma segunda interação, entre a base
genoma desses vírus ocorre no núcleo das células da proteína penton e um co-receptor presente na
hospedeiras e resulta na produção de corpúscu- membrana plasmática, pertencente à família das
los de inclusão basofílicos. Em geral, a replica- integrinas. Uma delas seria a vitronectina.
ção in vivo é associada aos sistemas respiratório A internalização do complexo vírion/recep-
ou gastrintestinal, mas outros tecidos e células tor ocorre por endocitose dependente de clatrina.
também podem ser envolvidos. A replicação dos As vesículas endocíticas são transportadas em
adenovírus pode interferir ou modular a respos- direção ao núcleo. Durante o trânsito, ocorre a re-
ta imunológica do hospedeiro, podendo resultar dução gradativa do pH no interior das vesículas.
em infecções persistentes e oportunistas. A redução no pH promove alterações na estrutu-
Vários adenovírus são capazes de produzir ra da partícula viral, a desintegração do capsídeo
tumores quando inoculados experimentalmente e a liberação do genoma associado com proteínas.
em hamsters recém-nascidos, porém ainda não fo- Há evidências de que o transporte para o núcleo
ram descritos como agentes de tumores em seus da célula é mediado pelos hexons, que se associa-
hospedeiros naturais. Os adenovírus geralmente riam aos microtúbulos celulares. A desintegração
replicam em altos títulos em células primárias e completa das partículas ocorre nas proximidades
linhagens celulares, independentemente da fase dos poros nucleares, através dos quais o genoma,
do ciclo celular. A replicação é acompanhada por ainda associado com algumas proteínas, é trans-
alterações na fisiologia celular e produção de efei- locado para o interior do núcleo. Entre a ligação
to citopático (ecp), culminando com a lise celular, dos vírions aos receptores até a penetração do ge-
que é necessária para a liberação dos vírions. noma no núcleo podem transcorrer aproximada-
As linhagens celulares utilizadas para am- mente duas horas.
plificação dos adenovírus in vitro geralmente são A transcrição dos genes virais é realizada
espécie-específicas. O CAdV replica em células pela RNA polimerase II e fatores celulares, que
da linhagem MDCK (Madin Darby canine kidney); reconhecem múltiplos promotores dos genes
enquanto o adenovírus eqüino é amplificado em iniciais e intermediários, além de um promotor
células primárias de rim, pulmão e ovário de que controla a expressão dos genes tardios. Esses
eqüinos. O vírus da síndrome de queda de pos- genes estão distribuídos nas duas fitas do DNA
tura de galinhas (adenovírus de patos tipo A) re- genômico do vírus (Ver Figura 16.2).
420 Capítulo 16

Os produtos dos genes de expressão ime- genoma. Esse processo ocorre com o acúmulo da
diata (E1A) estão envolvidos no controle do ciclo pTP que se liga às extremidades 5’ das cadeias
celular, pela expressão de fatores de transcrição de DNA e serve como iniciador da replicação a
e de replicação do DNA viral, promovendo um partir das regiões terminais. Essa proteína possui
ambiente favorável para a replicação do vírus. um resíduo oxidrila (OH) que serve de substrato
Nesta região genômica, encontram-se os genes para a DNA polimerase viral iniciar a polimeriza-
que modulam a resposta imune inata do hospe- ção da cadeia de deoxiribonucleotídeos (dNTPs),
deiro e o ciclo celular, interferindo na atividade formando a nova cadeia de DNA. A replicação
de interleucinas, como o fator de necrose tumoral das cadeias inicia nas extremidades e ocorre de
(TNF), na produção de moléculas do complexo forma contínua, ao contrário da replicação semi-
de histocompatibilidade maior tipo 1 (MHC-I) descontínua do DNA celular, e ocorre em duas
ou, ainda, no mecanismo de indução da apopto- etapas. Na primeira etapa, apenas uma das ca-
se. As interações dos adenovírus com as células deias é replicada, originando uma molécula de
hospedeiras, especialmente na regulação do ciclo fita dupla. A cadeia restante circulariza, pelo pa-
celular e no antagonismo da resposta imunológi- reamento das regiões repetidas localizadas pró-
ximo às extremidades, formando uma estrutura
ca, foram tratadas com maior profundidade no
semelhante a um cabo de frigideira (panhandle).
capítulo referente à replicação dos vírus DNA
A DNA polimerase reconhece a extremidade 5’
(Capítulo 6).
e inicia a síntese da cadeia complementar. Um
Na região E2, estão presentes os genes cujos
esquema mostrando as etapas da replicação do
produtos estão envolvidos na replicação do DNA
genoma dos adenovírus está apresentado na Fi-
viral, como as proteínas de ligação às fitas sim-
gura 16.3.
ples de DNA, que estão associadas aos comple-
Após a replicação do DNA viral e produção
xos de replicação; e também a DNA polimerase
dos transcritos dos genes iniciais e intermediá-
viral. A proteína precursora da proteína terminal
rios, a expressão gênica muda para a produção
(pTP), que se encontra ligada covalentemente às
dos transcritos tardios. O controle dessa mudan-
extremidades do genoma viral, também perten-
ça é complexo, e parece ser dependente do acú-
ce a este grupo de genes. Acredita-se, ainda, que
mulo de fatores de transcrição, produtos dos ge-
a pTP também esteja associada ao processo de
nes da região E1A e pela utilização preferencial
morfogênese dos vírions. da fita que codifica os genes tardios. O único pro-
A região E3 do genoma dos adenovírus pos- motor dos transcritos tardios é muito eficiente e,
sui genes que codificam fatores de virulência. por essa característica, é utilizado em vetores de
Um dos principais produtos é um polipeptídeo expressão. Ocorre um grande acúmulo de prote-
de 19 kDa que se liga à cadeia pesada do com- ínas estruturais e, nesta fase, aproximadamente
plexo maior de histocompatibilidade I (MHC-I), 20 horas após o início do ciclo viral, ocorre a ini-
provocando a sua retenção em compartimentos bição da síntese de proteínas celulares. Os trans-
intracelulares e reduzindo a sua expressão na su- critos tardios são exportados para o citoplasma e,
perfície celular. Como conseqüência, ocorre uma após a tradução nos ribossomos, as proteínas são
redução na capacidade dos linfócitos T citotóxicos transportadas até o núcleo, onde participam da
reconhecerem e destruírem células infectadas pe- montagem dos vírions.
los adenovírus. Outro produto dessa região (14,5 Acredita-se que o genoma associado com
kDa) inibe a cascata de eventos ativados pelo fa- proteínas ingresse já em capsídeos pré-forma-
tor de necrose tumoral (TNF), que promove a lise dos. Conseqüentemente, é possível ocorrer a for-
de células infectadas. Finalmente, os produtos da mação de partículas incompletas, sem a presen-
região E4 estão envolvidos na regulação da repli- ça do genoma. O acúmulo de proteínas virais e
cação viral e do ciclo celular. a condensação da cromatina celular formam os
Após a expressão dos genes iniciais, a pró- corpúsculos de inclusão intranucleares que são
xima fase do ciclo replicativo é a replicação do observados nas células infectadas.
Adenoviridae 421

Primeira Segunda
etapa etapa

Tp
3’ 5’
5’ 3’ .pTp
Tp OH

3’
.pTp OH

-OH 5’

-OH

Lineariza

5’ 3’
5’

3’ 5’
5’ 3’

+
5’ 3’

Circulariza

5’ 3’
3’ 5’
3’
5’

Fonte: adaptada de Flint et al. (2000).

Figura 16.3. Ilustração esquemática da replicação do genoma dos adenovírus. Na primeira etapa, apenas uma das
cadeias é replicada, de maneira contínua, a partir de uma das extremidades. A cadeia não-replicada circulariza para a
formação de uma nova origem de replicação. A replicação desta cadeia inicia na extremidade e prossegue ao longo da
cadeia, que, em seguida, assume a topologia linear. Ao final das duas etapas, as duas cadeias de DNA estão
replicadas.

Os vírions recém-formados se acumulam no mitantes e são considerados estritamente espé-


núcleo celular e a sua liberação depende da morte cie-específicos. Alguns adenovírus, porém, são
e lise celular. A morte celular ocorre pela falência oportunistas e causam infecções em associação
de múltiplas funções, principalmente pela inter- com outros agentes, ou servindo como fatores
ferência do vírus com a expressão de proteínas predisponentes para infecções secundárias virais
celulares, que ocorre na fase final do ciclo repli- ou bacterianas. Vários adenovírus possuem im-
cativo. O número de vírions infecciosos produzi- portância como patógenos de animais.
dos por célula infectada varia para os diferentes
adenovírus. Estima-se que sejam produzidas en- 6.1 Adenovírus canino
tre 10 e 2.300 partículas totais para cada vírion
infeccioso. O ciclo replicativo do adenovírus está Dois tipos de adenovírus canino já foram
representado esquematicamente na Figura 16.4. descritos em cães: os adenovírus canino tipos 1 e
2 (CAdV-1 e CAdV-2), sendo considerados entre
6 Adenovírus de interesse veterinário os principais adenovírus de animais. O CAdV-1
é o agente etiológico da hepatite infecciosa cani-
Os adenovírus geralmente causam infecções na (HIC). A infecção pelo CAdV-2 é caracteriza-
inaparentes ou com sinais clínicos leves, autoli- da por sinais respiratórios de baixa severidade e
422 Capítulo 16

Citoplasma

H+
H+

H+ H+
6
3 9

4 8

5 7

11 10
Egresso por
lise celular
Núcleo

Figura 16.4. Representação esquemática do ciclo de replicação dos adenovírus. O vírion se liga a receptores
específicos na membrana plasmática (1) e é internalizado por endocitose mediada por clatrina (2). A acidificação
progressiva do interior do endossoma (3) leva à desestruturação da partícula vírica e liberação do genoma próximo
aos poros nucleares (4). A translocação do genoma para o núcleo é seguida da transcrição dos genes iniciais (5), cujos
mRNAs são traduzidos nos ribossomos (6), resultando em proteínas que atuam na replicação do genoma (7). Após a
replicação do genoma, são transcritos os genes tardios (8), cujos mRNAs são traduzidos nas proteínas estruturais (9),
que penetram no núcleo e, juntamente com as cópias do DNA genômico recém-produzidas, participam da
morfogênese das partículas víricas (10). A progênie viral é liberada por lise celular (11).

este vírus está associado com outros agentes na ou acompanhadas de sinais respiratórios leves.
etiologia da traqueobronquite infecciosa canina A HIC acomete principalmente animais não-va-
(TIC). cinados com idade inferior a seis meses. A doen-
ça se apresenta geralmente de forma aguda, e os
6.1.1 Adenovírus canino tipo 1 animais que sobrevivem a essa fase apresentam
um prognóstico favorável.
A hepatite infecciosa canina (HIC) apresen- A HIC é causada pelo adenovírus canino
ta ocorrência rara em regiões onde a vacinação tipo 1 (CAdV-1), que pertence ao gênero Masta-
é realizada regularmente. Entretanto, em popu- denovirus. Esse vírus é antigenicamente relacio-
lações humanas com condições socioeconômicas nado com o CAdV-2, agente associado com a
baixas, a imunização dos animais de estimação traqueobronquite infecciosa ou tosse dos canis.
não é uma prática freqüente, o que concorre para A extensão da reatividade antigênica cruzada
uma freqüência maior da infecção. A maioria das pode ser evidenciada pela utilização do CAdV-2
infecções pelo adenovírus canino são inaparentes em formulações de vacinas para ambas as enfer-
Adenoviridae 423

midades. Essa relação antigênica também pode gãos, como o fígado, os rins, o baço e os pulmões.
interferir no diagnóstico, e a diferenciação entre As células parenquimatosas e as células endote-
estes dois agentes requer a utilização de anticor- liais do organismo são os alvos principais para a
pos monoclonais ou técnicas moleculares. replicação do CAdV-1.
No fígado, são observadas congestão e ne-
6.1.1.1 Epidemiologia crose de coagulação multifocal, com o envolvi-
mento dos hepatócitos da zona três do ácino de
O vírus é excretado nas secreções e excre- Rappaport (região centrolobular) ou necrose lo-
ções dos cães infectados. A excreção pela urina bular generalizada em casos graves. A extensão e
pode persistir por mais de seis meses após a re- a gravidade das lesões hepáticas estão relaciona-
cuperação clínica, e estes animais são a principal das com a imunidade humoral. Cães experimen-
fonte de disseminação do CAdV-1. Os animais talmente infectados, que possuem títulos baixos
susceptíveis adquirem a infecção pelo contato de anticorpos (<4), freqüentemente desenvolvem
direto, pela via oronasal ou conjuntival; ou indi- insuficiência hepática fulminante, coagulação in-
reto, a partir de fômites contaminados. Além dos travascular disseminada (CID) e vão a óbito (Fi-
cães domésticos, as raposas e outros canídeos sil- gura 16.5).
vestres são susceptíveis à infecção pelo CAdV-1, Cães com títulos altos de anticorpos neutra-
e são considerados potenciais reservatórios do lizantes desenvolvem uma infecção clinicamente
vírus. leve ou inaparente, e podem erradicar o vírus do
A infecção pelo CAdV-1 tem sido descrita sangue e do fígado na semana seguinte à infecção.
em vários países europeus, nos EUA e também Foi demonstrado que os cães com títulos modera-
no Brasil. Acredita-se que esse agente apresente dos de anticorpos neutralizantes (entre 16 e 500)
distribuição mundial. No entanto, a utilização podem desenvolver hepatite crônica com infiltra-
massiva de vacinas contra o CAdV a partir da dé- do mononuclear periportal e fibrose progressiva.
cada de 1960, aliada com proteção cruzada por Nesse mesmo estudo, os animais sobreviventes
anticorpos decorrentes da infecção natural pelo foram tratados com interferon humano (IFN), re-
CAdV-2, têm reduzido a ocorrência de casos da sultando na erradicação do vírus do organismo e
HIC em populações caninas de várias partes do na resolução das lesões hepáticas. Nas infecções
mundo. Estudos prévios ao uso extensivo de crônicas, o CAdV-1 pode ser identificado somen-
vacinas em vários países (Alemanha, países es- te nos primeiros dias após infecção, o que dificul-
candinavos, EUA e Japão) demonstraram que a ta o diagnóstico virológico em fases avançadas.
prevalência de anticorpos contra o CAdV variava Um estudo retrospectivo por imunohisto-
entre 30 e 60% entre os cães testados. Um estudo química e PCR em amostras de fígado de 45 cães
sorológico realizado, em 2006, com cães sem his- com hepatite crônica e cirrose não demonstrou a
tórico de vacinação em Santa Maria, Rio Grande presença do CAdV-1 ou de produtos virais, ques-
do Sul, revelou 43% (353/817) de amostras posi- tionando a participação do agente na etiopatoge-
tivas. nia das hepatites crônicas em cães.
Cães naturalmente infectados e também
cães que recebem vacina atenuada (mais rara-
6.1.1.2 Patogenia, sinais clínicos mente) com o CAdV-1 podem desenvolver lesões
e patologia oculares. Na fase de viremia, o vírus atinge o hu-
mor aquoso e replica no endotélio do trato uveal
Após a exposição pela via oronasal ou con- e da córnea, causando uveíte anterior e edema
juntival, o vírus replica inicialmente nas tonsilas de córnea. À medida que os níveis de anticorpos
e nas placas de Peyer, disseminando-se para os neutralizantes aumentam, ocorre a deposição
linfonodos regionais e, eventualmente, atinge a de imunocomplexos nos endotélios, ativação do
circulação sangüínea. A fase de viremia ocorre sistema complemento e migração de células in-
entre o quarto e o oitavo dia após a infecção e flamatórias, resultando em extravasamento de
resulta na disseminação do vírus para vários ór- líquido para o estroma da córnea.
424 Capítulo 16

Na fase de viremia, o vírus pode se localizar podem ocorrer e estão associados com hemorra-
e replicar nas células do endotélio glomerular e gia cerebral.
no epitélio dos túbulos renais. A lesão inicial dos A forma aguda da doença ocorre com maior
glomérulos é causada pela deposição de com- freqüência. Essa forma é caracterizada por apa-
plexos imunes (complexos antígeno-anticorpos), tia, anorexia, hipertermia, linfoadenopatia, taqui-
produzindo glomerulonefrite. cardia, taquipnéia, tosse, dor abdominal, hepato-
Os cães jovens e não-vacinados são mais sus- megalia, vômitos, diarréia, edema subcutâneo e
ceptíveis à doença. Entretanto, cães de qualquer diátese hemorrágica. A icterícia não é comum na
fase inicial da infecção, porém pode ser pronun-
idade, raça ou sexo podem ser infectados, caso
ciada em cães que sobrevivem à hepatite aguda.
não tenham sido previamente vacinados ou ex-
A infecção pelo CAdV-1 pode produzir
postos ao agente. A doença pode se manifestar de
encefalopatia hepática ou encefalite não-supu-
forma superaguda ou aguda. A hepatite crônica
rativa. A encefalopatia hepática compreende as
pode ocorrer após a infecção inicial pelo CAdV-
alterações neurológicas causadas por toxinas de
1, sem necessariamente ocorrer a manutenção do origem gastrintestinal (p. ex.: amônia), que não
vírus no fígado. são metabolisadas adequadamente pelo fígado
Os cães com a doença superaguda podem comprometido. A encefalite não-supurativa é
morrer dentro de poucas horas após o surgimen- mais rara e geralmente ocorre após a infecção do
to dos sinais clínicos. Os sinais nesta fase incluem sistema nervoso central (SNC). Esta forma mani-
apatia, anorexia, palidez das mucosas e peté- festa-se clinicamente por estupor, ataxia, convul-
quias, convulsões e coma. Sinais neurológicos sões e coma.

Exposição ao vírus

Tonsilas e linfonodos regionais

Sangue (viremia)

Olho Fígado Rins Endotélios dos


demais órgãos
Dias
Título de anticorpos
Endotélio Baixo Alto

Imunocomplexos Hepatite aguda Infecção Imunocomplexos Coagulação intravascular


Edema de córnea inaparente Glomerulonefrite disseminada (CID),
uveíte Falência múltipla de órgãos
Necrose Óbito
centrolobular
Complicações
oculares Nefrite
Óbito ou intersticial
recuperação
Hepatite
crônica

Fonte: adaptada de Greene (1998).

Figura 16.5. Achados clínicos e laboratoriais em casos de hepatite infecciosa canina. As barras horizontais
correspondem à ocorrência cronológica e à duração dos respectivos achados clínicos e laboratoriais.
Adenoviridae 425

A uveíte anterior e o edema de córnea, tam- Os cães com HIC podem apresentar várias
bém conhecidas como olho azul, podem ser as alterações na necropsia. Os linfonodos podem
únicas alterações clínicas observadas em cães estar edemaciados e hemorrágicos. Na cavidade
com infecções inaparentes (Figura 16.5). O edema abdominal, pode-se observar líquido de colora-
de córnea pode ser acompanhado por dor ocular, ção clara ou avermelhada. Petéquias ou equimo-
blefaroespasmo e fotofobia. As lesões oculares ses podem ser observadas nas serosas. O fígado
geralmente são brandas, com resolução espon- geralmente apresenta-se aumentado de volume,
tânea após duas a três semanas. Em casos mais escuro, com exsudato fibrinoso depositado sobre
severos, podem ocorrer glaucoma e/ou úlcera de a superfície. A icterícia não é observada com fre-
córnea. O surgimento das alterações oculares são qüência em cães que morrem na fase aguda da
um indicativo de que o animal apresenta respos- doença.
ta imunológica contra o vírus, e pode ser consi-
derado um indicativo de bom prognóstico. Essas
alterações ocorrem pela deposição de complexos 6.1.1.3 Diagnóstico
imunes no endotélio vascular do corpo ciliar.
Corpúsculos de inclusão podem ser obser-
vados nos tecidos-alvo de replicação viral. As in- Os achados clínicos e de patologia clínica
clusões no núcleo dos hepatócitos são estruturas não são patognomônicos para a hepatite infec-
arredondadas, escuras, circundadas por um halo ciosa canina. Os achados hematológicos iniciais
claro, resultante da migração da cromatina e do são de leucopenia, neutropenia e linfopenia, pela
nucléolo para a periferia nuclear. As inclusões infecção dos linfonodos e da medula óssea. Du-
também podem ser encontradas no encéfalo de rante a fase de recuperação, geralmente ocorrem
cães que morrem com sinais de encefalite e nas neutrofilia e linfocitose (Figura 16.6). Tromboci-
células do epitélio tubular renal de cães com ne- topenia com ou sem alteração da função plaque-
frite por deposição de complexos imunes. tária ocorrem freqüentemente.

Pirexia

Leucopenia

Linfocitose

Neurotrofilia

ALT

FA

Coagulopatia

Proteinúria

1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15
Dias a partir do início da infecção

Fonte: adaptada de Greene (1998).

Figura 16.6. Patogenia da hepatite infecciosa canina em ordem cronológica.


426 Capítulo 16

Os níveis das enzimas hepáticas e de bilir- e contêm antígenos de outros agentes virais e
rubina podem estar elevados, dependendo do bacterianos. O desenvolvimento de lesões ocula-
grau da necrose do parênquima hepático. Tam- res em cães vacinados com cepas atenuadas de
bém podem ocorrer proteinúria e bilirrubinúria CAdV-1 levou à troca desse vírus pelo CAdV-2
(Figura 16.6). Na prática clínica, os achados da nas formulações das vacinas multivalentes.
anamnese dos exames clínicos e laboratoriais po- O protocolo de vacinação recomendado
dem ser indicativos da enfermidade. Entretanto, consta de duas ou mais aplicações com intervalos
o diagnóstico definitivo só pode ser elaborado de três a quatro semanas. A primeira aplicação
mediante o isolamento do vírus, a detecção de deve ser realizada entre a sexta e a décima sema-
ácidos nucléicos ou de antígenos virais ou, ainda, na de vida dos filhotes.
pela demonstração dos corpúsculos de inclusão
intranucleares. 6.1.2 Adenovírus canino tipo 2
Dentre as técnicas de diagnóstico utilizadas
para a confirmação da infecção pelo CAdV-1 in- A traqueobronquite infecciosa canina, ou
cluem-se o isolamento viral a partir de secreção tosse dos canis, é um enfermidade multifatorial
nasal, urina, sangue e fezes. Após a necropsia, em que um dos agentes envolvidos é o CAdV-
pode-se isolar o vírus dos rins, baço, pulmão, lin- 2. Além deste, já foram relatados os seguintes
fonodos e do encéfalo. O isolamento do vírus do agentes associados com a enfermidade: Bordetella
fígado é dificultado pela interferência de enzimas brochisseptica, parainfluenzavírus canino (CPIV),
hepáticas, como a arginase, que inibe a replicação reovírus canino tipos 1, 2 e 3, Mycoplasmas spp e
do vírus nas células de cultivo. Ureaplasmas spp. No entanto, os agentes mais fre-
O CAdV replica em células de origem cani- qüentemente isolados de casos da doença são o
na, e a linhagem celular mais utilizada é a MDCK CPIV e a Bordetella bronchisseptica. Alguns fatores,
(Madin-Darby canine kidney). Após o isolamento, como produtos de limpeza à base de formol, po-
deve-se identificar o vírus por imunofluorescên- eiras, alterações bruscas de temperatura e aglo-
meração de cães também podem favorecer o de-
cia (IFA), imunoperoxidase (IPX) ou PCR. Essas
senvolvimento da doença. A infecção resulta em
técnicas podem ser realizadas diretamente nas
lesão do epitélio respiratório, inflamação aguda e
amostras suspeitas, com a possibilidade de dife-
perda da função dos cílios das vias aéreas.
renciação entre os dois tipos de adenovírus cani-
A transmissão do CAdV-2 ocorre por aeros-
nos.
sóis e é freqüente em locais que abrigam cães (ex-
A detecção de anticorpos pode ser realiza-
posições, abrigos, lojas, hospitais veterinários e
da por testes de ELISA, soroneutralização (SN) e
instalações de pesquisa). O agente também pode
inibição da hemaglutinação (HI), uma vez que o
ser transmitido por contato direto ou indireto por
CAdV aglutina eritrócitos de galinha, de perus,
fômites (gaiolas, comedouros, bebedouros, fun-
de cobaias e de humanos. Não é possível diferen- cionários entre outros). O período de incubação
ciar-se os anticorpos contra o CAdV-1 daqueles varia entre cinco e sete dias, com extremos de três
contra o CAdV-2. e dez dias.
Os sinais clínicos podem variar desde sinais
6.1.1.4 Controle e profilaxia respiratórios leves até doença respiratória severa.
O principal sinal observado é uma tosse seca e in-
Ao contrário de algumas hepatites virais em termitente, de aparecimento súbito, podendo ser
humanos, a HIC não possui nenhum tratamento confundida com obstruções esofágicas. Pode-se
específico. Portanto, o tratamento de casos sus- observar ainda tonsilite, laringite, faringite e au-
peitos ou confirmados é tipicamente de suporte. mento das secreções nasal e ocular. Casos graves
Atualmente existem, no mercado brasileiro, podem ocorrer após infecções bacterianas secun-
vacinas com vírus vivo modificado, contendo o dárias, com o desenvolvimento de broncopneu-
CAdV-2, que conferem imunidade cruzada con- monia, anorexia, tosse produtiva, febre e descar-
tra o CAdV-1. Essas vacinas são multivalentes ga óculo-nasal mucopurulenta.
Adenoviridae 427

As técnicas de diagnóstico da infecção pelo cas sorológicas utilizadas são a SN, a IDGA, HI
CAdV-2 são as mesmas recomendadas para o e fixação do complemento (FC). Na Europa, uma
CAdV-1. Nesses casos, pode-se utilizar como vacina contendo o BAdV-1, o BAdV-3 e o BAdV-
material o lavado laringotraqueal ou amostras de 4 tem sido utilizada de forma limitada para o
pulmão. controle da enfermidade. O BAdV-3 tem sido ex-
O controle da enfermidade é baseado no uso tensivamente utilizado como vetor para vacinas
de vacinas multivalentes, cuja primovacinação recombinantes.
deve ser realizada entre a sexta e décima sema-
nas de vida. Existem dois tipos de vacina contra 6.3 Adenovírus eqüino
a traqueobronquite infecciosa; uma de aplicação
intranasal e outra injetável (IM ou SC). As duas As infecções pelo adenovírus eqüino tipo 1
contêm antígenos do CAdV-2 e do CPIV, além de (EAdV-1) são usualmente inaparentes ou acom-
antígenos bacterianos (Bordetella bronchiseptica). panhadas por sinais respiratórios leves. A trans-
A vacina intranasal é considerada a mais efetiva, missão ocorre por contato direto, principalmente
pois induz imunidade local (IgA). As vacinas não pelas vias oral e nasofaríngea. Estudos sorológi-
são capazes de prevenir a infecção, e mesmo os cos indicam que a prevalência da infecção varia
cães vacinados podem apresentar sinais clínicos entre 60 e 75% entre diferentes raças, sendo de
leves ou infecção subclínica, podendo transmitir 90% em animais da raça árabe. Isso demonstra
os agentes para outros cães. Outras recomenda- a ampla disseminação do agente nos rebanhos
ções para o combate à enfermidade incluem o eqüinos.
isolamento dos animais afetados e o controle dos Os cavalos da raça árabe que apresentam
fatores ambientais mencionados. imunodeficiência primária severa – uma doença
autossomal que cursa com ausência de linfócitos
6.2 Adenovírus bovino T e B funcionais – apresentam uma maior sus-
ceptibilidade ao EAdV-1, principalmente após
O adenovírus bovino (BAdV) pode ser clas- o término da imunidade passiva. Animais com
sificado em dez tipos e esses vírus estão geral- idade inferior a três meses apresentam infecção
mente associados com conjuntivite, pneumonia, generalizada aguda e fatal. Nesses casos, a mor-
enterite e/ou poliartrite. No entanto, alguns tipos bidade da doença varia entre 10 e 15%, e a leta-
têm sido isolados de bovinos sem sinais clínicos. lidade pode chegar a 100%. As lesões podem ser
Estudos sorológicos demonstram que a infecção encontradas em vários órgãos, como o pâncreas,
pelos BAdVs apresenta distribuição mundial. glândulas salivares, epitélio intestinal, renal, be-
O adenovírus bovino tipo 3 (BAdV-3) é con- xiga e células do trato respiratório.
siderado um importante patógeno respiratório A patogenia e a patologia das infecções pelo
de bovinos jovens. Os sinais clínicos da infecção EAdV-1 são pouco conhecidas, pois em animais
aguda incluem hipertermia, dificuldade respi- imunocompetentes essas infecções são geralmen-
ratória e descarga nasal e ocular. As lesões são te autolimitantes. Alterações macroscópicas e mi-
encontradas com maior freqüência nos pulmões, croscópicas podem ser observadas quase exclusi-
com áreas de consolidação, colapso e enfisema. vamente nos eqüinos da raça árabe que morrem
Na microscopia, observa-se bronquiolite proli- como resultado da infecção. No sistema respi-
ferativa, necrose e oclusão dos brônquios, além ratório, observa-se bronquiolite, atelectasia pul-
de colapso dos alvéolos. Corpúsculos de inclusão monar e pneumonia. Alterações microscópicas
são encontrados nos tecidos pulmonares e das incluem hiperplasia, corpúsculos de inclusão e
vias aéreas. necrose de células epiteliais do trato respiratório
O diagnóstico da infecção pode ser reali- e do epitélio de transição da pelve renal, ureter,
zado por isolamento do vírus ou por sorologia. bexiga urinária e uretra.
Amostras de fezes e secreções oculares podem O diagnóstico da infecção pode ser realizado
ser utilizadas para o isolamento viral. As técni- por isolamento viral em células de origem eqüi-
428 Capítulo 16

na, a partir de secreções nasais ou de fragmentos Dentre as infecções respiratórias por adeno-
de tecidos do sistema respiratório. Técnicas de vírus em aves, destaca-se a bronquite das codor-
detecção do DNA viral (PCR, hibrização in situ, nas, produzida pelo adenovírus aviário A (Fowl
hibridização) e de antígenos virais (ELISA e IFA) adenovirus A; FAdV-A). A infecção de codornas
também podem ser realizadas em amostras de jovens pelo FAdV-A pode resultar em mortalida-
tecido. Testes sorológicos pareados, como a SN de de 100%. No entanto, as taxas de mortalidade
e HI, também podem ser utilizados para o diag- em aves com mais de quatro semanas de idade
nóstico da infecção. Não há descrições de progra- são reduzidas para menos de 25%. A infecção
mas de controle para esse agente, pois a maioria também pode produzir enterite e diarréia. Os
das infecções é inaparente e autolimitante. sinais clínicos são mais freqüentes nas codornas
de cabelo branco (Colinus virgianianus) e nas co-
6.4 Adenovírus de ruminantes silvestres dornas japonesas (Coturnix coturnix japonica). Os
(Deer adenovirus ou black tail deer adenovirus) efeitos são devastadores e podem inviabilizar a
criação após a ocorrência de surtos. As aves que
se recuperam da infecção desenvolvem imunida-
Alguns adenovírus também têm surgido
de duradoura. O controle da enfermidade baseia-
como vírus emergentes. Em uma epidemia em
se em medidas preventivas, destinadas a evitar a
1993, um desses vírus se disseminou entre cer-
introdução do vírus na criação, como a quaren-
vídeos (mule deer; Odocoileus hemionus) no estado
tena de aves a serem introduzidas e desinfecção
da Califórnia, EUA. A infecção foi caracterizada
das instalações.
por erosões no epitélio respiratório e intestinal,
O diagnóstico pode ser realizado pelo isola-
hemorragias e abscessos no intestino. Histologi-
mento do vírus do trato respiratório e do intesti-
camente, foi observada vasculite sistêmica e pre-
no de aves durante a infecção aguda.
sença de corpúsculos de inclusão intranucleares.
Cinco adenovírus aviários têm sido asso-
O diagnóstico laboratorial foi baseado na detec-
ciados com surtos de doença em frangos (FAdV
ção de antígenos virais nos tecidos por IFA e pela
tipos A, B, C, D e E). Essas epidemias se carac-
detecção do vírus por microscopia eletrônica.
terizam por mortalidade elevada, podendo atin-
gir até 30%. O curso da doença é de três a quatro
6.5 Adenovírus aviários dias e caracteriza-se por hepatomegalia e hemor-
ragias. A hepatite pode ser demonstrada pela
Vários adenovírus infectam aves, produ- presença de corpúsculos de inclusão intranucle-
zindo doenças como a síndrome da queda de ares eosinofílicos e material granular e fibrilar. A
postura, bronquite, imunossupressão, artrite e infecção pelos adenovírus aviários A ou B (Fowl
pancreatite. Dentre os adenovírus aviários exis- adenovirus B; FAdV-B) pode ocorrer concomitan-
tem representantes dos gêneros Aviadenovirus, temente com a infecção pelo birnavírus ou pelo
Siadenovirus e Atadenovirus, além de referências circovírus.
que classificam os Aviadenovirus em sorogrupos
I, II e III. 6.5.2 Siadenovirus

6.5.1 Aviadenovirus Apenas uma espécie de siadenovirus tem


sido associada com enfermidade em aves, o ade-
A infecção de aves pelos aviadenovirus cursa novírus de perus A (Turkey adenovirus A; TAdV-
principalmente com manifestações respiratórias e A). Essa espécie de vírus possui três membros
digestivas. A etiopatogenia dessas doenças pode que infectam aves: o adenovírus de perus tipo 3
estar relacionada com infecções concomitantes (Turkey adenovirus 3; TAdV-3), o adenovírus de
com outros vírus, como o birnavírus (doença de faisões (Pheasant adenovirus 1; PAdV-1) e o vírus
Gumboro) ou o circovírus (vírus da anemia in- da enterite hemorrágica dos perus (Turkey hae-
fecciosa). morrhagic enteritis virus; THEV). Esses vírus estão
Adenoviridae 429

associados com três síndromes distintas: a esple- água de bebida e deve ser administrada em aves
nomegalia dos frangos de corte (TAdV-3), a do- com quatro a cinco semanas de idade, pela pos-
ença do baço marmóreo dos faisões (PAdV-1) e a sibilidade de interferência de anticorpos adquiri-
enterite hemorrágica dos perus (THEV). dos passivamente.
Em faisões, a doença do baço marmóreo aco-
mete aves com 12 a 32 semanas. Em frangos, a es- 6.5.3 Atadenovirus
plenomegalia geralmente se desenvolve em aves
com mais idade. A enterite hemorrágica acontece A infecção mais importante por adenovírus
em perus com idade superior a quatro semanas, em frangos é a causada pelo adenovírus de patos
com maior freqüência entre as sete e nove se- A (Duck adenovirus A, DAdV-A). Além de fran-
manas. Aparentemente, as aves mais jovens são gos, esse vírus produz infecções em patos e gan-
mais resistentes. sos. A doença causada pelo DAdV-A é conhecida
Os sinais comuns às infecções por esses três como síndrome da queda da postura (EDS, egg
agentes incluem depressão, diarréia hemorrágica drop syndrome) ou EDS-76, em referência ao ano
e morte, geralmente uma semana após a infec- do primeiro diagnóstico realizado na Irlanda do
ção. Existem evidências de imunossupressão. O Norte e Holanda, em 1976. Nesse mesmo ano, a
curso da doença em perus pode ser de 10 dias, doença foi descrita em aves reprodutoras do Rio
apresentando-se de forma aguda ou superaguda. Grande do Sul. As aves afetadas apresentaram
A mortalidade pode atingir 60% em perus; 20% queda de postura após a aplicação de vacinas
em faisões e até 10% em frangos, dependendo do contra a doença de Marek, importadas, e que ha-
isolado do vírus. A principal forma de transmis- viam sido produzidas em embriões de pato.
são desses vírus é a horizontal, pela via fecal-oral, Atualmente, a infecção encontra-se disse-
não existindo evidências de transmissão vertical. minada mundialmente. A disseminação ocorreu
As lesões no baço dos faisões são conside- principalmente por transmissão vertical a partir
radas patognomônicas, com hiperplasia retículo- de reprodutoras infectadas e/ou pela utilização
endotelial e a presença de corpúsculos de inclu- de vacinas contaminadas. Na América do Norte,
são intranucleares nas células. Esplenomegalia, onde não houve a utilização de vacinas conta-
edema pulmonar e congestão com conteúdo he- minadas, o impacto econômico foi menor. Não
morrágico nos intestinos podem ser observados obstante, neste continente, o vírus já foi isolado
na necropsia. Os corpúsculos de inclusão podem de patos e gansos selvagens. Os vírus isolados de
ser detectados também em linfócitos B e em célu- pintos e patos da Europa apresentam maior vi-
las mononucleares. rulência se comparados com aqueles isolados de
O diagnóstico da infecção pode ser realizado patos nos EUA.
pelo isolamento dos TAdV-A após a inoculação Tem sido observada uma associação da do-
de material suspeito em células linfoblastóides ou ença com matrizes de ovos marrons em compa-
por inoculação de perus com cinco a dez semanas ração com matrizes poedeiras de ovos brancos,
de idade (para o THEV). Antígenos virais podem e o primeiro sinal observado é a despigmentação
ser detectados por IFA no baço, no intestino e em dos ovos. A maioria dos países desenvolvidos
órgãos linfóides. As técnicas de ELISA e IDGA conseguiu a erradicação do vírus de criações co-
podem ser utilizadas para detecção de antígenos merciais de aves reprodutoras.
em macerados de tecidos. A técnica de PCR tem A principal forma de transmissão do DAdV-
sido descrita para a detecção do genoma viral em A é a vertical, e a fêmea geralmente permanece
amostras de tecidos. A sorologia pareada pode soronegativa até o início da postura. A transmis-
também ser empregada, podendo ser utilizadas são horizontal, pela via orofecal, também pode
as técnicas de HI ou SN. ocorrer, porém a disseminação do vírus é lenta.
O controle é baseado principalmente na va- As aves positivas não transmitem o vírus após a
cinação. Existe uma vacina atenuada disponível 45ª semana de idade. A transmissão pode ocor-
para faisões e perus. Essa vacina é fornecida na rer entre galinhas, entre patos e entre gansos por
430 Capítulo 16

contato direto ou por contato indireto, por meio desenvolvem anticorpos até o início da fase re-
de fômites contaminados. produtiva. Portanto, aves positivas para o vírus
A replicação viral ocorre nos tecidos linfói- podem ser soronegativas; e a detecção de anti-
des, em um período de três a quatro dias após a corpos deve ser realizada principalmente após o
infecção. Aos sete dias, o vírus pode ser detec- pico da postura.
tado na glândula da casca e no oviduto. O vírus A eliminação de matrizes positivas é o mé-
não replica na mucosa intestinal, portanto, as todo definitivo para a erradicação da infecção
partículas virais encontradas nas fezes provavel- das criações. Pode-se também recorrer a métodos
mente são provenientes do oviduto. mais conservadores, como a incubação somente
As lesões ocorrem principalmente nas aves de ovos de reprodutoras com idade superior a 45
infectadas pela forma vertical, uma vez que a semanas. A vacinação de lotes é realizada com va-
infecção natural de animais adultos é limitada à cina inativada (adjuvante oleoso) e deve ser rea-
mucosa oral. Nesses casos, porém, pode também lizada antes da 18ª semana de idade. Essa doença
ocorrer viremia. As lesões macroscópias incluem tem sido eliminada em alguns países mediante a
a atrofia do oviduto, perda da função ovariana prevenção do contato de frangos com aves aquá-
e edema uterino. Raramente observa-se espleno- ticas, pela desinfecção regular dos equipamentos
megalia, flacidez do ovário e presença de óvulos e pela cloração da água de bebida.
na cavidade abdominal. Microscopicamente, ob-
servam-se corpúsculos de inclusão e necrose em
7 Bibliografia consultada
células epiteliais da glândula da casca e do ovi-
duto e infiltração de células inflamatórias. Esses
corpúsculos são considerados achados patogno- BERCHIERI JR, A.; MACARI, M. Doenças das aves. Campinas:
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HERPESVIRIDAE
Ana Cláudia Franco1 & Paulo Michel Roehe
17
1 Introdução 435

2 Classificação e nomenclatura 435

2.1 Subfamília Alphaherpesvirinae 436


2.2 Subfamília Betaherpesvirinae 436
2.3 Subfamília Gammaherpesvirinae 436

3 Propriedades gerais dos herpesvírus 438

4 Estrutura dos vírions 438

4.1 O núcleo 439


4.2 O capsídeo 439
4.3 O tegumento 439
4.4 O envelope 439
4.5 O genoma 440

5 Replicação 440

5.1 O ciclo replicativo 441


5.2 Infecção latente 445

6 Herpesvírus de interesse veterinário 447

6.1 Herpesvírus de bovinos 447


6.1.1 Herpesvírus bovino tipo 1 447
6.1.2 Herpesvírus bovino tipo 2 454
6.1.3 Herpesvírus bovino tipo 4 457
6.1.4 Herpesvírus bovino tipo 5 459
6.1.5 Herpesvírus associados com a febre catarral maligna 463

6.2 Herpesvírus de caprinos 465


6.2.1 Herpesvírus caprino tipo 1 465

1
Colaboraram com seções específicas: Eduardo Furtado Flores (BoHV-2, BoHV-4);
Renata Dezengrini (FeHV-1); Letícia F. da Silva (CpHV-1).
6.3 Herpesvírus de suínos 467
6.3.1 Herpesvírus suíno tipo 1 (vírus da doença de Aujeszky) 467

6.4 Herpesvírus de eqüinos 472


6.4.1 Herpesvírus eqüino tipo 1 472
6.4.2 Herpesvírus eqüino tipo 3 475
6.4.3 Herpesvírus eqüino tipo 4 476

6.5 Herpesvírus de cães 478


6.5.1 Herpesvírus canino tipo 1 478

6.6 Herpesvírus de felinos 479


6.6.1 Herpesvírus felino tipo 1 479

481
6.7 Herpesvírus de aves
481
6.7.1 Vírus da doença de Marek
484
6.7.2 Vírus da laringotraqueíte infecciosa

7 Bibliografia consultada 485


1 Introdução serve de hospedeiro natural de pelo menos um
membro da família. Apesar disso, os herpesvírus
A palavra herpes origina-se da palavra gre- identificados até o momento ainda são em peque-
ga herpein, que significa rastejar ou rastejamento. no número, compreendendo aproximadamente
Esta palavra está relacionada com as primeiras 130 espécies. Existem vários herpesvírus de im-
observações das lesões causadas por vírus desta portância veterinária, visto que cada espécie do-
família, lesões que pareciam “rastejar” na super- méstica alberga pelo menos um desses agentes.
fície da pele das pessoas afetadas. Além desta, Como exemplos, podem-se citar: os herpesvírus
outra propriedade muito importante apresenta- bovino tipos 1, 2, 4 e 5 (BoHV-1, BoHV-2, BoHV-
da por, virtualmente, todos os herpesvírus é a ca- 4 e BoHV-5); os herpesvírus eqüino tipos 1, 3 e 4
pacidade de causarem infecções inaparentes ou (EHV-1, EHV-3, EHV-4); o SuHV-1 (também de-
latentes. Assim, uma vez infectado por um her- nominado de vírus da doença de Aujeszky ou da
pesvírus, o hospedeiro permanece portador do pseudoraiva, PRV); o herpesvírus caprino tipo 1
vírus na forma latente. A latência é caracterizada (CpHV-1); o herpesvírus canino tipo 1 (CaHV-1);
pela ausência de replicação viral e de sinais clíni- o herpesvírus felino tipo 1 (FeHV-1); os herpes-
cos, e dura toda a vida do hospedeiro. Durante vírus de galídeos tipo 1 e tipo 2 (GaHV-1 e 2).
esse período, o animal pode não apresentar sinais Dentre os membros dessa família que infectam
clínicos e raramente excreta o vírus. No entanto, humanos, pode-se citar o herpesvírus humano 1
a infecção latente pode ser ocasionalmente reati- (HHV-1 ou vírus do herpes simplex, HSV-1); o
vada por situações de estresse, ocasiões em que herpesvírus humano 2 (HHV-2 ou HSV-2); o her-
o vírus é re-excretado pelo hospedeiro e pode se pesvírus humano 3 (HHV-3, agente da varicela-
disseminar para indivíduos susceptíveis. zoster,VZV); o citomegalovírus (HCMV); o vírus
Os herpesvírus são muito antigos e, aparen- Epstein-Barr (EBV) e os herpesvírus humanos 6A,
temente, vêm co-evoluindo com os seus hospe- 6B, 7 e 8 (HHV-6A, HHV-6B, HHV-7, e HHV-8).
deiros há quase um bilhão de anos. As várias se- A maioria dos herpesvírus de animais do-
melhanças observadas na estrutura de diferentes mésticos produz geralmente infecções inapa-
herpesvírus sugerem que eles tenham surgido de rentes ou leves nos seus hospedeiros. Alguns
um ancestral comum, que parece ter dado origem herpesvírus são estreitamente associados com cé-
a duas linhagens: uma representada pelo herpes- lulas, e um pequeno número deles têm capacida-
vírus alfa, beta e gama, que infectam aves e ma- de oncogênica, cuja infecção resulta na produção
míferos; e a outra representada pelos herpesví- de tumores, como o GaHV-2 (agente da doença
rus de animais de sangue frio. Estudos genéticos de Marek).
sugerem que os herpesvírus evoluíram paralela- Em geral os herpesvírus estão disseminados
mente aos seus hospedeiros, o que explica o alto nas populações animais e são detectados com fre-
nível de adaptação observado entre esses agentes qüência em laboratórios de diagnóstico, pois se
e os seus hospedeiros naturais. multiplicam com facilidade em cultivos celulares
A capacidade dos herpesvírus de causar in- (ex: SuHV-1, BoHV-1 e BoHV-5) ou em membra-
fecções latentes duradouras nos seus hospedeiros na corioalantóide (ex: GaHV-2).
naturais, sem causar doença grave ou mortalida- Este capítulo irá abordar somente as infec-
de, possibilita a transmissão viral entre hospe- ções causadas por herpesvírus que afetam ani-
deiros de forma altamente eficaz. Esse não é o mais de importância em medicina veterinária.
caso das infecções de hospedeiros acidentais, aos
quais os herpesvírus não se encontram tão bem 2 Classificação e nomenclatura
adaptados. Nesses casos, infecções fatais podem
ocorrer, como nas infecções de bovinos e cães Os membros da família Herpesviridae são
com o herpesvírus suíno tipo 1 (SuHV-1). classificados em três subfamílias, de acordo com
Os herpesvírus estão amplamente distribuí- suas propriedades biológicas: Alphaherpesvirinae,
dos na natureza. A maioria das espécies animais Betaherpesvirinae e Gammaherpesvirinae. Além des-
436 Capítulo 17

ses, existem vários herpesvírus que ainda não 2.2 Subfamília Betaherpesvirinae
foram definitivamente classificados, entre eles
destaca-se o SuHV-2, o citomegalovírus de suí-
Os vírus que pertencem a essa subfamília
nos. Os membros das respectivas subfamílias são
possuem uma gama restrita de hospedeiros e
agrupados em gêneros, de acordo com a homo-
apresentam um ciclo replicativo longo, ou seja,
logia das seqüências de DNA, similaridades na
a infecção progride lentamente em cultivos ce-
estrutura e organização genômica e relação anti-
lulares. As células infectadas freqüentemente
gênica. A Tabela 17.1 apresenta os principais her-
apresentam aumento de volume (citomegalia) e a
pesvírus que afetam animais e que serão aborda-
infecção natural resulta na produção de animais
dos neste capítulo.
portadores. O vírus pode ser mantido de forma
A nomenclatura dos herpesvírus, assim
latente em tecidos glandulares, células linforre-
como de outras famílias virais, tem sido alvo de
ticulares, rins e outros tecidos. Esta subfamília é
alterações nas últimas décadas, fruto de tentati-
dividida nos gêneros Cytomegalovirus (cujo protó-
vas de estabelecer uma nomenclatura universal
tipo é o herpesvírus humano 5 [HHV-5], também
para esses agentes. Assim, o vírus do herpes sim-
denominado citomegalovírus humano [HCMV]),
plex tipo 1 (HSV-1), que é o protótipo da família,
Muromegalovirus (protótipo: citomegalovírus
foi recentemente denominado HHV-1 (herpesví-
murino) e Roseolovirus (cujo protótipo é o her-
rus humano tipo 1). Outros vírus foram também
pesvírus humano 7, HHV-7). Esta família abriga
renomeados, buscando adaptar-se às instruções
importantes patógenos humanos, além de abri-
do ICTV (International Committee for Taxonomy of
gar vírus que afetam algumas espécies animais,
Viruses). Para evitar confusão e contradição com
como primatas e roedores.
os demais capítulos, nos quais tais vírus são men-
cionados, este capítulo utilizará a nomenclatura
clássica consagrada. Os casos em que a nova no- 2.3 Subfamília Gammaherpesvirinae
menclatura for empregada serão assinalados.
Os vírus classificados nessa subfamília tam-
2.1 Subfamília Alphaherpesvirinae bém possuem uma gama restrita de hospedeiros.
Além disso, estabelecem infecções latentes prin-
A classificação dos herpesvírus nessa subfa- cipalmente em células linfoblastóides. Alguns
mília é feita com base em suas características bio- membros podem produzir infecções líticas em
lógicas: os alfaherpesvírus possuem uma gama células epitelióides e fibroblásticas. Esses vírus
variável de hospedeiros, apresentam um ciclo possuem potencial oncogênico e podem ser es-
replicativo relativamente curto (< 24 horas), des- pecificamente adaptados a linfócitos B ou T. In-
troem rapidamente as células de cultivo e esta- fecções latentes são freqüentemente observadas
belecem infecções latentes primariamente em em tecidos linfóides. Essa subfamília contém
neurônios dos gânglios sensoriais e autonômicos. três gêneros: Lymphocryptovirus (cujo protótipo é
Essa subfamília abriga os gêneros Simplexvirus o herpesvírus humano tipo 4 [HHV-4] ou vírus
(cujo protótipo é o HHV-1 ou HSV-1, agente do Epstein-Barr [EBV]), Rhadinovirus (cujo protótipo
herpes labial), Varicellovirus (protótipo: HHV-3 é o herpesvírus saimiri 2 [SaHV-2]) e Ictalurovirus
ou VZV, agente da varicela-zoster), Mardivirus (cujo protótipo é o herpesvírus do catfish [IcHV-
(protótipo: GaHV-2, agente da doença de Marek) 1]). Vários vírus classificados nessa subfamília
e Iltovirus (protótipo: GaHV-1, agente da laringo- afetam espécies animais e alguns possuem im-
traqueíte infecciosa [ILTV]). A maioria dos her- portância em medicina veterinária, como o agen-
pesvírus de importância veterinária pertence ao te da febre catarral maligna associada a ovinos
gênero Varicellovirus (Tabela 17.1). (MCFV ou OvHV-2).
Herpesviridae 437

Tabela 17.1. Herpesvírus de importância em medicina veterinária.

Subfamília Gênero Espécie Enfermidade

Herpesvírus bovino Rinotraqueíte infecciosa


Varicellovirus tipo 1 (BoHV-1) bovina/vulvovaginite pustular
infecciosa/balanopostite pustular
infecciosa, abortos.

Herpesvírus bovino Mamilite herpética bovina


tipo 2 (BoHV-2)

Herpesvírus bovino Encefalite herpética bovina


tipo 5 (BoHV-2)

Herpesvírus canino Infecção herpética em cães


tipo 1 (CaHV-1)

Herpesvírus caprino Infecção herpética em caprinos


Alphaherpesvirinae tipo 1 (CpHV-1)

Herpesvírus eqüino Aborto herpético eqüino


Simplexvirus
tipo 1 (EHV-1)

Herpesvírus eqüino Exantema coital eqüino


tipo 3 (EHV-3)

Herpesvírus eqüino Rinopneumonite viral eqüina


tipo 4 (EHV-4)

Herpesvírus felino Rinotraqueíte viral dos felinos


tipo 1 (FeHV-1)

Herpesvírus suíno Doença de Aujeszky ou


tipo 1 (SuHV-1) pseudoraiva

Herpesvírus galídeo Doença de Marek


tipo 2 (GaHV-2)
Mardivirus
Herpesvírus galídeo Doença de Marek
tipo 3 (GaHV-3)

Iltovirus Herpesvírus galídeo Laringotraqueíte viral infecciosa


tipo 1 (GaHV-1)

Herpesvírus alcelaphine Febre catarral maligna


tipo 1 (AlHV-1)

Gammaherpesvirinae Herpesvírus bovino Associação com doença?


tipo 4 (BoHV-4) Sinais respiratórios, abortos

Herpesvírus ovino Febre catarral maligna


tipo 2 (OvHV-2) associada a ovinos

Herpesvírus ovino Adenomatose pulmonar


tipo 1 (OvHV-1) associada a herpesvírus
Vírus
não-classificados
Herpesvírus suíno Citomegalovírus de suínos
tipo 2 (SuHV-2)
438 Capítulo 17

3 Propriedades gerais – a síntese do DNA viral e a montagem do


dos herpesvírus capsídeo ocorrem no núcleo da célula hospedei-
ra. A aquisição do envelope viral ocorre durante
A inclusão de um vírus na família Herpes- o trânsito dos nucleocapsídeos através da mem-
viridae é realizada com base na estrutura da par- brana nuclear ou através de organelas citoplas-
tícula viral, no tipo e estrutura do genoma. Os máticas envelopadas (p. ex.: complexo de Golgi);
vírions dos herpesvírus consistem de um núcleo – são capazes de permanecer latentes nos
(ou core) contendo uma molécula de DNA de fita seus hospedeiros naturais. Nas células infectadas
dupla linear; um capsídeo icosaédrico de apro- de forma latente, os genomas virais se mantêm
ximadamente 100 a 110 nm de diâmetro envol- na forma circular epissomal, ocorrendo pouca ou
vendo o núcleo; uma camada protéica amorfa, nenhuma expressão gênica. Esses genomas retêm
chamada tegumento, que recobre o capsídeo; e a capacidade de replicar, o que ocorre por oca-
um envelope lipoprotéico contendo espículas de sião da reativação da infecção latente.
glicoproteínas na sua superfície (Figura 17.1). O Os herpesvírus são vírus facilmente inativa-
diâmetro dos vírions varia entre 120 e 300 nm. dos por álcoois e detergentes, em razão da presen-
As partículas não possuem uma forma bem de- ça do envelope lipoprotéico. Os vírions perdem a
finida, podendo ser aproximadamente esféricas infectividade após o contato com isopropanol ou
ou apresentar contorno irregular. Dentre as ra- etanol a 70-80% por cinco minutos; formaldeído
zões para a variação do diâmetro e da forma dos a 0,2-08% e glutaraldeído a 2%. Além disso, os
vírions estão a presença de quantidade variável vírions são inativados pelo contato por dez mi-
de tegumento e a sua distribuição irregular nas nutos com substâncias de pH abaixo de 3 e acima
partículas. de 11.
Os herpesvírus conhecidos apresentam al-
gumas características biológicas em comum, a
saber: 4 Estrutura dos vírions
– codificam um grande número de enzimas
relacionadas com o metabolismo de nucleotí- Os vírions dos herpesvírus variam de 120
deos, síntese do ácido nucléico e processamento a 300 nm em diâmetro. Parte dessa variação se
de proteínas; deve à variabilidade na espessura do tegumento.

A B

tegumento

capsídeo

genoma
núcleo
proteínas (core)

membrana
lipídica envelope
glicoproteínas

Fonte: A) Dra Linda Stannard. Web.uct.ac.za. B) Adaptada de Dr. Marko Reschke’s Group, Marburg.

Figura 17.1. Vírions de membros da família Herpesviridae. A) Fotografia de microscopia eletrônica do vírus do herpes
simplex humano (HSV-1), o protótipo da família. B) Ilustração simplificada de uma partícula vírica com os seus
componentes.
Herpesviridae 439

Outra fonte de variação no diâmetro dos vírions Estudos iniciais demonstraram que o tegumento
é o estado do envelope. Envelopes virais intac- apresentava aparência amorfa, mas recentemen-
tos são impermeáveis e, em geral, conferem uma te observou-se, por imunomicroscopia, que esse
forma praticamente esférica às partículas. Enve- componente apresenta certa organização estru-
lopes danificados são permeáveis a corantes. Ví- tural, sobretudo nas proximidades dos vértices
rions permeáveis apresentam uma aparência de do capsídeo. O tegumento pode estar distribuído
“ovo frito”, com morfologia indefinida e diâme- assimetricamente, e sua espessura pode variar
tro maior do que vírions intactos. A Figura 17.1 de acordo com a localização do vírion dentro
ilustra a estrutura de uma partícula vírica dos da célula infectada. Com isso, a morfologia e as
herpesvírus com os seus componentes. dimensões das partículas víricas podem variar.
Pelo menos oito tipos de proteínas codificadas
4.1 O núcleo pelo genoma viral estão presentes no tegumento.
Destas, duas apresentam funções importantes na
O núcleo (ou core) de um vírion maduro replicação viral, a VP16 (αTIF) e a VHS, envolvi-
contém o genoma viral conjugado com algumas das na ativação da transcrição dos genes alfa e na
proteínas codificadas pelo vírus. Em alguns her- supressão da síntese protéica celular, respectiva-
pesvírus, o DNA parece estar suspenso por uma mente.
massa proteinácea, que consiste de fibrilas que fi-
cam também embebidas na parte interna do cap-
sídeo viral. O genoma parece estar compactado
4.4 O envelope
em uma forma toróide ou de fuso e possui as ex-
tremidades livres, o que caracteriza os genomas Estudos de microscopia eletrônica têm de-
lineares. monstrado que o envelope dos herpesvírus pos-
sui uma aparência tipicamente trilaminar. O en-
4.2 O capsídeo velope viral origina-se de secções de membranas
celulares alteradas e contém numerosas protru-
Os capsídeos dos herpesvírus são icosaédri- sões de glicoproteínas. Essas protrusões são mais
cos e possuem um diâmetro aproximado de 100 numerosas e mais curtas do que as presentes na
nm. Esta estrutura é composta por 162 capsôme- superfície de outros vírus envelopados. Além de
ros, sendo 12 capsômeros pentaméricos localiza- conter várias glicoproteínas, o envelope também
dos nos 12 vértices e 150 capsômeros hexaméricos contém lipídeos. O número e a quantidade rela-
constituindo as faces triangulares do icosaedro. tiva de glicoproteínas do envelope viral variam
Os capsômeros são arranjados formando uma de acordo com o vírus. Assim, o HSV-1 codifica
simetria icosaédrica do tipo T = 16. Em prepa- pelo menos onze glicoproteínas, enquanto o nú-
rações de vírions, três tipos de capsídeos podem mero de moléculas de glicoproteínas individuais
ser observados sob microscopia eletrônica (ME): pode chegar a 1.000 por vírion. As glicoproteínas
os capsídeos do tipo “A” são desprovidos da es- do HSV-1 já identificadas são: a gB, gC, gD, gE,
trutura toróide (núcleo) interna; os capsídeos do gG, gH, gI, gK e gM. Essas glicoproteínas desem-
tipo “B” contêm as proteínas que se conjugam penham importantes funções, incluindo a liga-
ao genoma, mas são desprovidos de DNA e, fi- ção a receptores celulares, fusão, penetração e
nalmente, os capsídeos que contêm o DNA e as transporte das partículas virais entre células. No
proteínas associadas são denominados “C”. Pelo entanto, algumas delas não são essenciais para a
menos quatro tipos de proteínas virais estão pre- replicação do vírus in vitro e podem ser deletadas
sentes na estrutura dos capsídeos. experimentalmente sem afetar a capacidade do
vírus replicar em cultivo celular. As glicoproteí-
4.3 O tegumento nas do envelope também medeiam as interações
dos vírions com o sistema imunológico e se cons-
O tegumento é a camada protéica que pre- tituem em importantes alvos de anticorpos, mui-
enche o espaço entre o capsídeo e o envelope. tos deles com atividade neutralizante.
440 Capítulo 17

4.5 O genoma genes envolve a transcrição das duas cadeias. Os


promotores de alguns genes estão situados nas
Os genomas extraídos de vírions e caracte- regiões codificantes de genes adjacentes, o que
rizados até o presente são constituídos por molé- faz com que manipulações genéticas do genoma
culas de DNA lineares de fita dupla. Nos vírions, tenham que ser feitas com critérios cuidadosa-
essas moléculas são compactadas ou empacota- mente determinados. Os genes são transcritos
das na forma de um toróide ou fuso, com as ex- pela maquinaria celular de transcrição (RNA poli-
tremidades livres, porém próximas. Os genomas merase II e fatores de transcrição), possivelmente
lineares circularizam imediatamente após a sua assistida por fatores virais. A transcrição de cada
liberação no interior das células hospedeiras. gene origina um RNA mensageiro (mRNA), que
O genoma possui entre 125 e 235 quilopares possui cap na extremidade 5’ e é poliadenilado na
de bases (kbp), dependendo da espécie viral. O extremidade 3’. Poucos transcritos dos herpes-
genoma do HSV-1 já foi seqüenciado inteiramen- vírus sofrem splicing antes de serem exportados
te e possui 152.2 kpb. Os genomas dos herpesví- para o citoplasma.
rus variam com relação à extensão, composição
(conteúdo de GC-AT) e presença de seqüências
A
repetidas. A composição de bases do DNA dos
herpesvírus varia de 31 a 75% de G-C em relação DR Região UL DR

ao total de nucleotídeos. A composição de GC no


EHV-2 (192kb)
genoma do HSV-1 é de 68%. Além disso, a dis-
tribuição do conteúdo de GC também pode ser
B
desigual ao longo do genoma. A variação na ex-
Região UL IR US IR
tensão do genoma está associada principalmente
com a presença de seqüências terminais e inter- BoHV-1 (137kb)
nas repetidas. Por outro lado, deleções parciais
também já foram relatadas, o que também pode C
resultar em variações na extensão do genoma. a Região UL a' b US b'
Os genomas dos herpesvírus são organiza-
HSV-1 (152kb)
dos de formas diferentes com relação à localiza-
ção e número de seqüências repetidas terminais e
internas. De acordo com a organização genômica,
Figura 17.2. Organização do genoma de alguns
esses vírus são divididos em seis grupos designa- herpesvírus. A) Genoma do tipo A: herpesvírus eqüino
dos pelas letras A a F (ver Figura 6.9; Capítulo 6). tipo 2 (EHV-2); B) Genoma do tipo D: herpesvírus
A Figura 17.2 apresenta genomas representativos bovino tipo 1 (BoHV-1); C) Genoma do tipo E:
de três desses grupos. herpesvírus humano tipo 1 (HSV-1). UL) região única
longa; US) região única curta; IR) repetições invertidas;
O genoma dos herpesvírus possui mais de
DR) repetições diretas.
70 genes, sendo que a maioria das proteínas co-
dificadas e as suas funções já foram identificadas
ou deduzidas. Curiosamente, parte desses genes 5 Replicação
(35 genes no caso do HSV-1) codifica proteínas
que não são essenciais para a replicação do vírus Considerando-se que os membros da subfa-
em cultivo celular. Os genes situados nas regiões mília Alphaherpesvirinae são os que apresentam
únicas (UL e US) estão presentes em apenas uma maior importância em medicina veterinária,
cópia no genoma, enquanto os genes localizados esta seção abordará a replicação dos vírus dessa
nas seqüências repetidas estão presentes em mais subfamília.
cópias. O significado biológico dessas duplica- Dois ciclos replicativos com caraterísticas
ções gênicas não é conhecido. Os genes estão dis- distintas podem ser reconhecidos na biologia dos
tribuídos nas duas cadeias do DNA em orienta- alfaherpesvírus: a infecção aguda ou produtiva
ções obviamente opostas. Assim, a expressão dos (ciclo lítico) e a infecção latente (Figura 17.3).
Herpesviridae 441

dos gânglios sensoriais e autonômicos, mas pa-


rece ocorrer também em menor escala em outros
tipos celulares. O estabelecimento da infecção
latente é caracterizado pela interrupção do ciclo
Ativadores Repressores
replicativo logo após a penetração do genoma no
Infecção primária
celulares celulares núcleo celular. Com isso, não há expressão gênica
significativa, não ocorrendo produção de prote-
Expressão dos ínas virais, replicação do genoma ou produção
Expressão dos genes alfa
genes alfa bloqueada de progênie viral. Assim, o genoma viral perma-
nece inativo no núcleo dos neurônios pelo resto
da vida do animal. Em determinadas situações,
Expressão dos
genes beta
? Expressão do LAT
geralmente associadas com estresse, o genoma é
ativado e a expressão gênica é reiniciada, resul-
Reativação
tando na retomada da infecção produtiva e na
Replicação Infecção latente
do genoma estabelecida produção de progênie viral. O estabelecimento
? e reativação da latência representam pontos-cha-
ve na biologia dos herpesvírus, pois permitem a
Expressão dos Manutenção
genes gamma da latência permanência indefinida do vírus nos hospedei-
ros, acompanhada de episódios esporádicos de
Estresse, reativação e excreção viral.
Corticóides
Progênie
viral
5.1 O ciclo replicativo
Infecção Infecção O ciclo replicativo se inicia pela interação
produtiva latente
dos vírions com receptores da membrana plas-
mática das células-alvo. Os alfaherpesvírus uti-
Fonte: adaptada de Flint et al. (2000).
lizam moléculas de glicosaminoglicanos, como o
sulfato de heparina, como receptores celulares. A
Figura 17.3. Etapa dos ciclos replicativos produtivo
interação dos vírions com as moléculas de sulfato
(lítico) e latente dos alfaherpesvírus. O ciclo replicativo
lítico ocorre em células totalmente permissivas à de heparina é mediada pela glicoproteína C (gC).
replicação e resulta na produção de progênie infecciosa. Entretanto, foi observado que células que não ex-
A infecção latente ocorre em células semipermissivas,
principalmente neurônios, e resulta na manutenção do
pressam esses receptores podem ser infectadas
genoma viral sem expressão gênica ou produção de pelo HSV-1, porém, com menor eficiência. Isso
progênie viral. Em determinadas situações, a infecção indica que outras moléculas também podem de-
latente pode ser reativada e o vírus reassume a replicação
produtiva. sempenhar o papel de receptores para a adsorção
desses vírions. Já foi demonstrado, por exemplo,
que em vírus mutantes que não expressam a gC,
A replicação produtiva lítica ocorre nos lo- a gD assume o papel de ligação aos receptores.
cais de penetração do vírus no hospedeiro (epi- A adsorção é seguida da ligação de outra
télios e tecidos subjacentes) e, provavelmente, proteína viral – provavelmente a gD – com co-
também em neurônios, antes do estabelecimento receptores da membrana plasmática. Um desses
e durante a reativação da infecção latente. Esse co-receptores é membro da família de receptores
ciclo caracteriza-se pela expressão de todos os ge- do fator de necrose tumoral (TNF), chamado de
nes virais, replicação do genoma e produção de HveA, presente principalmente em células lin-
progênie viral infecciosa. A ocorrência do ciclo fóides. Outro co-receptor pertence à família dos
replicativo completo é incompatível com a sobre- receptores para poliovírus, do grupo das necti-
vivência das células hospedeiras. nas. A ligação com os co-receptores é seguida de
A infecção latente ocorre em classes especí- fusão do envelope viral com a membrana plas-
ficas de neurônios, principalmente em neurônios mática, evento que ocorre na superfície celular,
442 Capítulo 17

sem a necessidade de internalização por endoci- núcleo. A transcrição desses genes requer a pre-
tose e acidificação dos endossomos. A fusão entre sença de uma proteína que é componente do te-
o envelope e a membrana plasmática ocorre com gumento viral, chamada VP16 ou αTIF. Essa pro-
a participação da gD, do heterodímero gH-gL e teína se conjuga com um fator celular e estimula
da gB. A transição entre o processo de adsorção e a transcrição de quatro genes, cujos produtos são
a penetração é muito rápida e ocorre em poucos as proteínas ICPO, ICP4, ICP22, ICP27 e ICP47.
minutos. Essas proteínas têm, como principal função, esti-
Após a fusão, algumas proteínas do tegu- mular a transcrição dos genes beta.
mento se dissociam do nucleocapsídeo e perma- Os produtos dos genes beta, por sua vez,
necem no citoplasma, enquanto outras são trans- são, principalmente, enzimas e proteínas acessó-
portadas até o núcleo. O nucleocapsídeo, ainda rias envolvidas no metabolismo de nucleotídeos
associado com algumas proteínas do tegumen- e na replicação do genoma, incluindo a polime-
to, liga-se aos microtúbulos celulares e é, assim, rase viral. Dentre esses produtos incluem-se as
transportado até as proximidades dos poros nu- enzimas timidina quinase (TK) e ribonucleotídeo
cleares. Os nucleocapsídeos, então, associam-se redutase (RR), que catalisam a síntese de nu-
aos complexos dos poros nucleares, ocorrendo cleotídeos trifosfato. As proteínas beta também
a sua desintegração e a liberação do genoma no incluem proteínas de ligação ao DNA, helicase
interior do núcleo. Os restos do capsídeo ficam (UL9) e a própria DNA polimerase viral. Assim,
retidos no lado citoplasmático da membrana nu- a expressão dos genes beta é seguida de intensa
clear. síntese de nucleotídeos e replicação do genoma.
Acredita-se que o genoma circularize ime- Após a replicação do genoma, o terceiro gru-
diatamente após a penetração no núcleo. Assim, po de genes é expresso (genes tardios ou gama).
os mecanismos de transcrição e replicação do Os produtos desses genes se constituem princi-
DNA viral ocorreriam em genomas circulariza- palmente em proteínas estruturais do núcleo,
dos. A transcrição do genoma viral se inicia logo capsídeo e envelope, que são, então, utilizadas na
após a sua penetração no núcleo. O DNA viral construção das partículas víricas. De acordo com
é transcrito pela RNA polimerase II celular com a cinética de expressão e função, os genes tardios
o auxílio de fatores celulares e virais. A síntese podem ser divididos em gama-1 e gama-2.
de proteínas virais é regulada de forma precisa, Várias proteínas virais são modificadas após
pois a expressão de genes virais ocorre de forma a sua síntese, modificações que incluem clivagem
coordenada e em ordem seqüencial, em forma de proteolítica, fosforilação e glicosilação, entre ou-
uma reação em cascata. Vários produtos dos ge- tras. A maioria dessas modificações ocorre por
nes virais são enzimas e proteínas que se ligam ação de enzimas celulares, embora algumas en-
ao DNA, envolvidas no processo de replicação zimas virais possam também estar envolvidas
do genoma. nesses processos.
De acordo com a cinética de expressão e Simultaneamente à expressão das proteínas
com a função de seus produtos, os genes virais virais, ocorre a inibição da transcrição de genes,
são divididos em três grupos principais: genes do processamento e transporte de mRNAs e
alfa (immediate early ou de transcrição imediata), síntese de proteínas da célula hospedeira. Esses
beta (early ou iniciais) e gama (late ou tardios). Os eventos são induzidos por proteínas virais e têm
genes alfa e beta são expressos abundantemente como objetivo subverter a maquinaria celular
antes da replicação do genoma, enquanto os ge- para o processamento e transporte de mRNA vi-
nes gama somente são expressos em quantidades rais e síntese de proteínas virais.
significativas após a replicação do DNA viral. A maioria das proteínas dos genes beta é im-
Os primeiros genes a serem transcritos são portada para o núcleo celular, onde se conjugam
os genes alfa, e a sua transcrição inicia imediata- com o genoma, formando os sítios pré-replicati-
mente após a liberação do genoma no interior do vos. Esses sítios são os locais de iniciação da sín-
Herpesviridae 443

tese de DNA. Enquanto a síntese ocorre, as mo- A montagem dos nucleocapsídeos ocorre
léculas de DNA recém-produzidas se acumulam em várias etapas. Após a síntese das proteínas
em compartimentos replicativos, localizados em tardias que participam da estrutura das partícu-
determinadas áreas do núcleo, juntamente com
os complexos de replicação. A síntese de DNA,
a partir da molécula genômica parental, origina
concatâmeros, que são macromoléculas lineares
contendo várias unidades genômicas unidas en- 1

tre si pelas extremidades, as quais se acumulam


no núcleo da célula hospedeira.
A replicação do genoma viral depende de,
pelo menos, sete proteínas codificadas pelo ví-
rus, mas provavelmente envolve também a par-
ticipação de fatores celulares, como a DNA poli- 2
ICP8
merase-primase, DNA ligase e topoisomerase II.
Três origens de replicação foram identificadas no UL9
genoma do HSV-1, sendo uma delas situada na
Iniciação
região repetida invertida S (e, portanto, em duas
Helicase/
cópias) e a outra localizada no componente L. Os primase
primeiros passos da replicação do genoma envol-
3
vem a ligação e alteração das seqüências de ori-
gem da replicação pela proteína UL9. A proteína Complexo
polimerase
ICP8 liga-se, então, à UL9 ou a regiões de DNA
de fita simples, e a UL9 inicia a sua atividade de
Replicação
4
helicase, separando as fitas do DNA viral. O com- tipo Theta
plexo helicase-primase, que contém as proteínas
virais UL5, UL8 e UL52, é, então, recrutado para
o local onde se inicia a polimerização das cadeias- UL9
5
filhas pela polimerase viral. A DNA polimerase
do HSV-1 é um heterodímero, composto pela
5' 3' 5'
proteína UL30 associada com a proteína UL42.
A subunidade UL30 possui o sítio catalítico res- Replicação
ponsável pela polimerização das novas cadeias e por círculo
rolante
também possui atividade de proofreading (corre-
ção dos erros). A proteína UL42 é necessária para
a processividade da UL30.
Fonte: adaptada de Roizman e Knipe (2001).
Com base em informações disponíveis, foi
proposto um modelo para a replicação do geno- Figura 17.4. Modelo para a replicação do genoma dos
ma do HSV-1 (Figura 17.4). Esse modelo propõe alfaherpesvírus. O DNA genômico é circularizado logo
após a penetração no núcleo (1). A UL9 se liga na origem
o início da replicação em uma molécula de DNA
de replicação, inicia a separação das cadeias e recruta a
circularizada, seguida de replicação bidirecional US8 (proteína de ligação em DNA de fita simples) para se
que, posteriormente, é alterada para um mecanis- ligar nas cadeias separadas (2). A US9 e US8 recrutam as
mo de círculo rolante. O resultado da replicação cinco proteínas restantes, formando os complexos de
iniciação (3), que iniciam a replicação bidirecional do
é a produção de moléculas longas, formadas por
tipo Theta (4). A replicação muda para o modo de círculo
cópias genômicas múltiplas. Esses concatâmeros rolante por mecanismos desconhecidos (5). A replicação
são posteriormente clivados, originando as molé- por círculo rolante produz multímeros do genoma que
culas genômicas individuais. são, posteriormente, clivados em unidades genômicas.
444 Capítulo 17

las, inicia-se o processo da montagem ainda no ção viral, provavelmente porque o complexo gI-
citoplasma. Essas proteínas pré-associadas entre gE pode se ligar às junções celulares e mediar o
si são transportadas para o núcleo, onde a mon- movimento de vírions ao longo dessas junções.
tagem do capsídeo é finalizada pela inclusão do Quando os herpesvírus se multiplicam em células
DNA genômico no seu interior. A introdução do completamente permissivas, o ciclo replicativo é
genoma viral nos capsídeos pré-formados envol- completado em aproximadamente 18-20 horas. O
ve um processo no qual grandes concatâmeros de ciclo replicativo produtivo dos alfaherpesvírus
DNA são clivados em monômeros e empacota- está ilustrado na Figura 17.5.
dos nos capsídeos pré-formados. As células infectadas com os alfaherpesvírus
Após o encapsidamento do genoma, os nu- não sobrevivem à infecção, por causa de severas
cleocapsídeos podem realizar o brotamento atra- alterações estruturais e bioquímicas que ocorrem
vés da membrana nuclear interna. Esse processo em conseqüência da replicação viral. Entre as al-
é mediado pela interação entre proteínas do tegu- terações estruturais, podem-se citar as alterações
mento, adquiridas durante o brotamento e prote- na cromatina celular, duplicação e dobramento
ínas do capsídeo; e entre proteínas do tegumento de membranas celulares, fragmentação e disper-
e glicoproteínas virais presentes na membrana são das membranas do complexo de Golgi, inser-
nuclear interna. ção de proteínas virais em membranas celulares,
O mecanismo pelo qual os nucleocapsíde- rearranjo da rede de microtúbulos e formação de
os saem do espaço entre as membranas nuclea-
corpúsculos de inclusão intranucleares. Entre as
res interna e externa ainda não é claro, existindo
alterações bioquímicas celulares, incluem-se o
dois modelos possíveis. O primeiro sugere que os
bloqueio da síntese de proteínas celulares, degra-
nucleocapsídeos adquirem o envelope ao brota-
dação de mRNAs celulares, bloqueio da transcri-
rem através da membrana nuclear interna. Este
ção e redução da síntese de RNA celular, inibição
envelope seria perdido quando os vírions fusio-
do processamento de mRNA e degradação seleti-
nam com a membrana nuclear externa, liberando
va de proteínas celulares. Ainda, os herpesvírus
os nucleocapsídeos desprovidos de envelope no
podem interferir com o ciclo de divisão celular.
citoplasma. O outro modelo sugere que nucleo-
Foi demonstrado que proteínas codificadas pelo
capsídeos no citoplasma são diretamente enca-
HSV-1 e também pelo BoHV-1 se ligam a proteí-
minhados ao complexo de Golgi, onde adquirem
nas envolvidas no ciclo de divisão celular, como
o envelope por brotamento. Vesículas derivadas
a ciclina D3. Neste caso específico, os produtos
do aparelho de Golgi, contendo vírions envelo-
virais acabam por interferir com o processo de
pados, seriam, então, transportadas até a super-
fície celular, onde os vírions seriam liberados por morte celular programada, ou apoptose, manten-
exocitose. Estudos recentes demonstraram que do a célula viva durante a infecção.
a aquisição do envelope por vírions do SuHV-1 Os alfaherpesvírus replicam em uma varie-
segue o primeiro modelo. Foi demonstrado que dade de células in vitro, incluindo células primá-
nucleocapsídeos do SuHV-1 recebem o tegumen- rias e linhagens celulares da espécie homóloga. A
to no citoplasma da célula infectada e são reen- replicação é caracterizada por disseminação rá-
velopados no complexo de Golgi. Após a adição pida nos cultivos e destruição dos tapetes celula-
do envelope, os vírions são liberados das células res, em razão da lise celular induzida pelo vírus.
infectadas por fusão de vacúolos, contendo os ví- Além de replicar em células da espécie homólo-
rions com a membrana plasmática, ou pela fusão ga, os diferentes herpesvírus podem ser adapta-
entre células infectadas e não-infectadas, o que dos para replicar em células de outras espécies
ocorre provavelmente através de junções celula- animais. Os cultivos celulares utilizados para o
res. O complexo formado entre as glicoproteínas isolamento e multiplicação dos diferentes her-
I e E é necessário para esse tipo de dissemina- pesvírus serão abordados nas respectivas seções.
Herpesviridae 445

16

15

2
Proteínas alfa Proteínas beta Proteínas gama

5 7 10

13

mRNA-β mRNA-γ
mRNA-α 14
3 12
9

11
4 6 8

Núcleo

Citoplasma

Figura 17.5. Ciclo replicativo dos alfaherpesvírus. Após a ligação aos receptores, a penetração ocorre por fusão do
envelope com a membrana plasmática na superfície celular (1). Os nucleocapsídeos são transportados ao longo dos
microtúbulos (2) até os poros nucleares, onde ocorre o desnudamento e a liberação do genoma no interior do núcleo
(3). Segue-se a transcrição dos genes alfa (4) que são traduzidos nas proteínas alfa (5), cuja função principal é ativar a
transcrição dos genes beta (6). As proteínas beta (7) estão envolvidas na síntese de nucleotídeos trifosfato e na
replicação do genoma (8). Os genes gama somente são transcritos após a replicação do DNA (9) e codificam
principalmente proteínas estruturais (10). Parte dessas proteínas penetra no núcleo e forma pré-capsídeos, nos quais o
genoma é introduzido (11). Os nucleocapsídeos adquirem o envelope por brotamento através da membrana nuclear
interna (12). Podem perder o envelope ao atravessar a membrana nuclear externa e serem reenvelopados no aparelho
de Golgi (13), ou são enviados em vesículas até o Golgi (14). Os vírions envelopados são transportados em vesículas
do trans-Golgi até a superfície celular (15), onde são liberados por exocitose (16).

5.2 Infecção latente manece inativo em células neuronais do hospe-


deiro, não resultando em produção de progênie
O estabelecimento de infecções latentes é viral infecciosa. A expressão gênica é ausente ou
um dos aspectos mais marcantes e provavelmen- muito restrita. Obviamente, a ausência de repli-
te uma propriedade de todos os herpesvírus. cação viral resulta na absoluta ausência de sinais
Essa propriedade está relacionada com a capaci- clínicos, caracterizando uma infecção totalmente
dade desses vírus se adaptarem aos hospedeiros subclínica e de difícil detecção.
de forma a mantê-los vivos e, periodicamente, A infecção latente pelos alfaherpesvírus é es-
utilizá-los para se disseminar para novos hospe- tabelecida principalmente em neurônios dos gân-
deiros. Na infecção latente, o genoma viral per- glios sensoriais e autonômicos, para onde os nu-
446 Capítulo 17

Infecção Transporte retrógrado

Latência

Cérebro

Reativação

Transporte anterógrado

Excreção
Mucosa nasal Gânglio trigêmeo

Figura 17.6. Patogenia da infecção latente dos alfaherpesvírus. Após a replicação primária, os nucleocapsídeos são
transportados pelo fluxo axoplásmico retrógrado até os corpos neuronais localizados nos gânglios sensoriais e
autonômicos. Nestes neurônios, o vírus replica produtivamente ou estabelece infecção latente. Sob certas condições,
a infecção latente pode ser reativada e resulta em replicação produtiva. Os vírions produzidos são transportados de
volta aos locais de replicação primária, onde replicam e são excretados. O acesso dos vírions ao encéfalo pode ocorrer
tanto durante a infecção aguda quanto após a reativação.

cleocapsídeos são transportados pelos axônios ou infecções respiratórias ou orais resultam em co-
dendritos após a replicação produtiva nas muco- lonização dos neurônios sensoriais do gânglio
sas. Este transporte ocorre pelo fluxo axoplásmi- trigêmeo com o DNA viral. Os gânglios sacrais
co retrógrado, através do qual os nucleocapsíde- são os sítios de predileção para a infecção latente
os atingem os corpos neuronais (Figura 17.6). Em que se segue às infecções genitais. Além desses,
determinadas classes de neurônios, a expressão alguns locais do sistema nervoso central (SNC) e
dos genes alfa é suprimida precocemente. Como periférico, além de tonsilas e linfócitos circulan-
os produtos desses genes são necessários para as tes, dentre outros, podem abrigar o DNA viral la-
etapas seguintes de expressão gênica e replicação tente. A importância desses sítios adicionais para
do genoma, o ciclo é interrompido (ver Figura a manutenção e reativação da latência ainda são
17.3). Como resultado, o genoma viral persiste no desconhecidos.
núcleo desses neurônios na forma epissomal pelo Durante a maior parte do tempo, o geno-
resto da vida do animal. ma permanece inativo nos locais de latência, não
A infecção latente é caracterizada pela pre- ocorrendo produção e excreção de vírus infeccio-
sença do genoma sem expressão gênica signifi- so. No entanto, em situações geralmente associa-
cativa, replicação do genoma ou produção de das com estresse, a infecção latente é reativada.
progênie viral. Animais examinados durante a A reativação se caracteriza pela retomada da re-
infecção latente não apresentam indícios de in- plicação lítica nos neurônios hospedeiros e pro-
fecção, com exceção da presença de anticorpos dução de progênie viral. Os vírions produzidos
produzidos em resposta à infecção aguda. Como são transportados pelas mesmas vias nervosas de
todos os animais infectados ficam portadores, a volta aos sítios de infecção primária, onde o vírus
detecção de anticorpos contra os herpesvírus in- replica produtivamente e é excretado (ver Figura
dica a condição de portador de infecção latente. 17.6). A reativação da infecção é, ocasionalmente,
Os principais sítios de latência são os gân- acompanhada de sinais clínicos e lesões nos lo-
glios sensoriais e autonômicos, dependendo do cais de replicação, que correspondem aos sítios
local de replicação primária do vírus. Assim, de infecção primária. A ocorrência de sinais clí-
Herpesviridae 447

nicos associada com a reativação é denominada 6.1 Herpesvírus de bovinos


recrudescência e, geralmente, é caracterizada por
sinais mais brandos do que aqueles resultantes Dentre os herpesvírus de bovinos, destacam-
da infecção aguda. A recrudescência clínica, no se os vírus pertencentes à subfamília Alphaherpes-
entanto, parece não ser uma ocorrência freqüente virinae. O herpesvírus bovino tipo 1 (BoHV-1)
nas infecções por todos os herpesvírus. Na maio- tem sido associado com doença respiratória, ge-
ria das vezes, a reativação não é acompanhada de nital e abortos; o BoHV-2 é o agente da mamili-
manifestações clínicas evidentes. te herpética e o BoHV-5 é o agente da encefalite
Os mecanismos envolvidos no estabeleci- herpética (Figura 17.7). A espécie bovina tam-
mento, manutenção e reativação das infecções bém é hospedeira natural ou pode ser infectada
latentes pelos alfaherpesvírus têm sido exausti- naturalmente por herpesvírus que pertencem à
vamente estudados, porém muitos detalhes mo- subfamília Gammaherpesvirinae: o BoHV-4, o her-
leculares são ainda desconhecidos. O estabeleci- pesvírus ovino tipo 2 (OvHV-2) e o herpesvírus
mento de latência depende da supressão precoce alcelafino tipo 1 (AlHV-1). O OvHV-2 e AlHV-1
da expressão dos genes alfa, sem a qual prosse- são os agentes etiológicos da febre catarral malig-
gue o ciclo lítico. Durante a latência, um único na (MCF). O AlHV-1 está associado com a forma
transcrito viral é detectado nos neurônios infecta- africana da enfermidade, que acomete bovinos,
dos, denominado transcrito relacionado à latên- cervídeos e outros ruminantes no continente afri-
cia (LAT ou LTR). Aparentemente, esse transcrito cano, enquanto o OvHV-2 é o agente da MCF
não é traduzido em proteína, e a sua função na associada com ovinos, doença que acomete bo-
manutenção e reativação da infecção latente per- vinos e outros ruminantes e possui distribuição
manece deconhecida. Sabe-se que a reativação mundial.
experimental da infecção pela administração de
corticosteróides é acompanhada da redução tran-
sitória da transcrição do LAT-LTR, o que sugere
BoHV-1
a participação desse transcrito na manutenção e BoHV-5
Doença genital
Meningo-encefalite
reativação da latência. De qualquer forma, acre- (IPV/IBP)

dita-se que o LAT-LTR seja um componente im-


portante, porém não o único, do mecanismo de
latência dos alfaherpesvírus. Interações adicio-
nais entre produtos virais e os neurônios, assim
como a participação de mecanismos imunológi-
cos, têm sido sugeridos para explicar a infecção BoHV-1
latente. Doença
respiratória (IBR)
É importante ressaltar que animais latente-
mente infectados, que podem ser identificados
por testes sorológicos, são considerados fontes BoHV-1 BoHV-2
potenciais de infecção, sendo muito importantes Abortos Mamilite

do ponto de vista epidemiológico, pois atuam


como disseminadores do vírus.
Figura 17.7 Alfaherpesvírus de bovinos e enfermidades
6 Herpesvírus de interesse associadas.
veterinário
A seguir, serão abordadas as principais do- 6.1.1 Herpesvírus bovino tipo 1
enças animais causadas por herpesvírus, dando
ênfase àquelas que afetam animais de produção O BoHV-1 é um alfaherpesvírus e perten-
e de companhia. As doenças serão apresentadas ce ao gênero Varicellovirus. O vírus possui um
por espécie animal, seguindo-se a ordem de clas- genoma de aproximadamente 137 kbp, cuja se-
sificação taxonômica das subfamílias. qüência completa de nucleotídeos já foi deter-
448 Capítulo 17

minada. A organização do genoma do BoHV-1 6.1.1.1 Epidemiologia


– que pertence ao grupo D – está apresentada na
Figura 17.2. O BoHV-1 tem sido associado com O vírus causador da IBR foi isolado pela
diversas manifestações clínicas em bovinos, que primeira vez nos Estados Unidos em 1956. A
incluem a rinotraqueíte infecciosa (IBR), vulvo- partir de então, inúmeros estudos têm revelado
vaginite pustular/balanopostite pustular infec- a sua ampla distribuição em praticamente todo
ciosa (IPV/IPB), abortos e infecção generalizada o mundo. Alguns países europeus, como a Di-
em neonatos (Figura 17.7.). Os isolados de cam- namarca e a Finlândia, conseguiram erradicar a
po do BoHV-1 podem ser subdivididos em três infecção, tendo obtido essa condição por meio da
diferentes genótipos: 1 (BoHV-1.1), 2a (BoHV- identificação e eliminação de animais soroposi-
1.2a) e 2b (BoHV-1.2b). Esta subdivisão em ge- tivos. Outros países, como a Alemanha e Suíça,
nótipos foi proposta com base em características têm implementado programas de erradicação do
genômicas e antigênicas. Entretanto, associações BoHV-1 por meio da vacinação compulsória dos
de determinados genótipos com certos quadros rebanhos, identificação e eliminação gradual dos
clínicos foram também evidenciadas. Assim, o animais portadores.
BoHV-1.1 refere-se às amostras clássicas de vírus No Brasil, o BoHV-1 foi isolado, pela pri-
geralmente associadas com a doença respirató- meira vez, de um caso de vulvovaginite na Bahia,
ria (IBR). Esse subtipo tem sido freqüentemente em 1978. Vários relatos posteriores confirmaram
isolado de casos de IBR, assim como de abortos, a ampla distribuição do vírus no país, tanto pelo
sendo prevalente em muitos países na Europa e isolamento viral quanto pela detecção de anticor-
nas Américas. O BoHV-1.2a tem sido associado pos. Dados sobre prevalência de infecções pelo
a uma ampla variedade de manifestações clíni- BoHV-1 demonstram variações entre 8 e 82% em
cas, incluindo doença do trato genital (IPV e IPB), várias regiões do país. É provável que exista atu-
abortos e também infecções no trato respiratório. almente, no Brasil, uma parcela muito pequena
O BoHV-1.2a tem prevalência aparentemente ele- de rebanhos livres do BoHV-1 (ou BoHV-5, como
vada no Brasil, sendo o subtipo mais freqüente- será comentado a seguir). Estima-se, ainda, que o
mente isolado nos laboratórios de diagnóstico vi- nível médio de prevalência da infecção nos reba-
rológico. Esse subtipo estava presente na Europa nhos situe-se entre 30 a 70%. Para uma população
antes da década de 1970 e, após, tornou-se raro bovina de aproximadamente 190 milhões de ca-
naquele continente. O BoHV-1.2b, por sua vez, beças, pode-se estimar uma população potencial-
tem sido associado com doença respiratória leve mente infectada de 57 a 133 milhões de cabeças.
e IPV/IPB, mas até o presente não foi associado As infecções pelo BoHV-1 podem ser trans-
com abortos. Por isso, amostras do subtipo 2b são mitidas pelo contato direto e indireto entre ani-
consideradas menos patogênicas do que as amos- mais, porque o vírus é disseminado através de
tras do subtipo 1. Os vírus do subtipo BoHV-.2b secreções respiratórias, oculares e genitais, sendo
têm sido freqüentemente isolados na Austrália e excretado em grandes quantidades por animais
Europa, mas são incomuns no Brasil, onde, até o durante a infecção aguda. Nessa fase, os animais
presente, somente uma amostra desse subtipo foi excretam o vírus por até 15-16 dias em títulos de
identificada. Os isolados dos diferentes subtipos até 107 TCID50/ml. Em casos de reativação da in-
apresentam extensa reatividade sorológica cruza- fecção latente, a excreção de vírus ocorre por um
da, que pode ser evidenciada por testes de soro- período menor (2 a 7 dias, geralmente) e em me-
neutralização (SN). Nesses testes, o anti-soro pro- nores quantidades. Não obstante, a excreção viral
duzido contra o vírus de um subtipo reage em que ocorre durante a reativação representa uma
títulos semelhantes ou iguais tanto contra o vírus importante forma de transmissão e perpetuação
homólogo como contra o vírus heterólogo. do vírus na natureza. Por isso, os animais latente-
Herpesviridae 449

mente infectados são fontes potenciais de infecção meiros sinais clínicos da infecção (congestão lo-
para outros animais. As causas dos episódios de cal, presença de secreções, lesões vesiculares ou
reativação permanecem parcialmente desconhe- erosivas). Durante essa fase, altos títulos virais
cidas. No entanto, alguns fatores desencadeantes são produzidos e excretados nas secreções, o que
são notórios, como o estresse (p. ex.: induzido favorece a transmissão do vírus para outros ani-
por transporte, desmame, descorne, parto, carên- mais.
cias nutricionais graves ou excesso de trabalho) Após a replicação inicial, o vírus invade as
e aplicação de drogas imunossupressoras (p. ex.: terminações nervosas de neurônios sensoriais e é
corticosteróides). transportado através de fluxo axônico retrógrado
O vírus pode, ainda, estar presente no sêmen até os corpos neuronais nos gânglios regionais.
de touros infectados, podendo ser disseminado Nesses locais, o vírus estabelece infecção laten-
tanto por monta natural como por inseminação te, durante a qual não há expressão de antígenos
artificial. A excreção pode ocorrer durante a in- virais ou replicação. Existem também evidências
fecção aguda ou nos episódios de reativação. A de que, após a infecção primária, o vírus possa
dose infecciosa mínima necessária para infectar realizar uma viremia, provavelmente associada
uma fêmea foi calculada em torno 102 TCID50. O a monócitos e linfócitos, através da qual o vírus
sêmen é contaminado durante a ejaculação, e o poderia disseminar-se no organismo animal e
vírus não é excretado de forma uniforme ou con- causar infecções fetais e abortos.
tínua por machos soropositivos. Logo, nem to- Eventualmente, sob a influência de fatores
das as amostras de sêmen de um touro portador externos, como estresse ou tratamento com glico-
terão vírus suficientes para infectar uma fêmea. corticóides, pode ocorrer a reativação da infecção
Entretanto, todos os touros soropositivos devem latente, ocasião em que ocorre a produção de par-
ser considerados potenciais transmissores da in- tículas virais infecciosas nas células nervosas e o
fecção a fêmeas susceptíveis. Além do sêmen, o transporte dessas partículas de volta ao sítio de
vírus tem sido eventualmente detectado no lei- infecção primária. Nesses sítios, o vírus replica e
te de vacas, chamando a atenção para mais este é excretado em secreções, podendo ser transmiti-
possível veículo de transmissão. do para outros animais. A reativação da infecção
Apesar de os bovinos serem os principais latente pode, ocasionalmente, ser acompanhada
reservatórios do BoHV-1, inquéritos sorológicos de sinais clínicos geralmente moderados.
têm demonstrado a presença de anticorpos em di-
versas espécies de ruminantes silvestres, ovinos – Rinotraqueíte infecciosa bovina
e caprinos. Além disso, ovinos e caprinos desen-
volvem infecções agudas e latentes e são poten- A infecção respiratória pode apresentar-se
cialmente capazes de excretar vírus quando sub- de forma subclínica, leve ou severa, podendo
metidos à imunossupressão pela administração resultar em morbidade de até 100%, com mor-
de corticosteróides. Além das espécies domésti- talidade geralmente ausente ou baixa (<5%). As
cas citadas, bubalinos também são considerados manifestações clínicas incluem febre, depressão,
como potenciais reservatórios do BoHV-1. Entre- anorexia, dispnéia, taquipnéia, tosse e descargas
tanto, a sua importância na epidemiologia dos nasais serosas, que podem tornar-se mucopuru-
herpesvírus bovinos permanece desconhecida e lentas com a progressão da enfermidade e a ocor-
merece ser investigada. rência de infecções bacterianas secundárias. A
inflamação local pode levar ao bloqueio das vias
6.1.1.2 Patogenia, sinais clínicos respiratórias superiores. Pela dificuldade respi-
e patologia ratória, os animais tendem a forçar a respiração
pela boca, levando à salivação abundante. A mu-
Após a penetração na mucosa nasofaríngea cosa nasal pode se apresentar hiperêmica e com
ou genital, o vírus realiza uma replicação pri- lesões vesiculares a erosivas. As erosões podem
mária nas células epiteliais locais, provocando ser transitoriamente recobertas com membranas
lise celular e levando ao aparecimento dos pri- fibrinosas. Em animais em lactação, ocorre que-
450 Capítulo 17

da na produção de leite. Em machos, pode ha- na mucosa. As vesículas evoluem para pústulas,
ver prejuízos temporários à qualidade do sêmen, que podem coalescer e formar úlceras. As úlceras
como anomalias morfológicas e funcionais dos freqüentemente ficam recobertas com material
espermatozóides. fibrinoso, de coloração branco-amarelada. Febre,
O curso da enfermidade é rápido, e a recu- anorexia e depressão podem estar presentes e po-
peração clínica ocorre em até dez dias, caso não dem ser agravadas por infecções bacterianas se-
ocorram infecções bacterianas secundárias graves cundárias. Os animais apresentam dor ao urinar,
ou outras infecções virais associadas. Os animais apresentando a cauda erguida e freqüentemente
afetados podem, ainda, apresentar conjuntivite flexionada lateralmente. As lesões progridem até
uni ou bilateral que, em algumas circunstâncias, o 7º-8º dia pós-infecção, regredindo rapidamente
pode ser a única manifestação clínica da infec- a partir de então.
ção. Em reprodutores machos infectados com o
Surtos de IBR são mais freqüentemente ob- BoHV-1, as lesões desenvolvidas são semelhan-
servados em animais jovens e estão geralmente tes às descritas nas fêmeas. Após um período de
associados com situações de estresse e aglomera- um a três dias de incubação, a mucosa do pênis
ção de animais, incluindo eventos de transporte e/ou prepúcio apresenta-se hiperêmica e com
e confinamento. Outros agentes virais e bacteria- pequenos pontos amarelados, que crescem e,
nos podem estar associados com o BoHV-1 nesses eventualmente, coalescem, formando vesículas
episódios de doença respiratória, genericamente ou pústulas que, posteriormente, rompem-se,
chamados de “complexo respiratório de bovi- formando erosões ou ulcerações. Essas lesões fi-
nos”. Os agentes virais freqüentemente associa- cam recobertas por material fibrinoso que pode
dos são o vírus da diarréia viral bovina (BVDV), recobrir extensas áreas da mucosa. Em casos gra-
vírus da parainfluenza 3 (bPI-3V) e o vírus respi- ves, hemorragias podem ocorrer na mucosa pe-
ratório sincicial (BRSV), além de pasteurelas. niana. Durante a fase aguda, o animal se recusa
A infecção de fêmeas soronegativas gestan- a montar, freqüentemente exterioriza o pênis e
tes, com amostras virais de alta virulência (BoHV- apresenta corrimento prepucial. A enfermidade
1.1 ou 1.2a), pode resultar em abortos, que ocor- geralmente regride rapidamente após os dias 7-
rem principalmente entre o quinto e oitavo mês 8 pós-infecção e, não havendo complicações, o
da gestação. Os abortos ocorrem geralmente após animal apresenta cura clínica ao redor dos dias
um período de incubação de três a seis semanas, 10-14 pi. Em infecções naturais, o quadro clínico
durante o qual o vírus alcança o feto durante a pode ser mais brando, com evolução mais rápida
viremia. Até 25% das fêmeas em gestação de um e sem complicações clínicas. Formas subclínicas
rebanho podem abortar durante um surto, cons- da infecção genital também podem ocorrer, o que
tituindo-se em uma importante causa de perdas dificulta o diagnóstico e o controle da infecção.
econômicas nas criações de bovinos.
6.1.1.3 Diagnóstico
– Vulvovaginite pustular/balanopostite
pustular O diagnóstico presuntivo da infecção por
herpesvírus bovinos é feito com base no histórico
A maioria das infecções genitais por herpes- da propriedade, sinais clínicos e lesões observa-
vírus em bovinos estão associadas com amostras das ao exame clínico. A suspeita clínico-patológi-
de BoHV-1.2b. A IPV aguda se desenvolve após ca, no entanto, deve ser confirmada por exames
a infecção do trato genital da fêmea durante a laboratoriais. Durante infecções agudas, devem
cobertura ou inseminação artificial. Pode, ainda, ser realizados testes para a detecção de vírus, an-
ocorrer por contato da mucosa com secreções con- tígenos ou DNA viral em amostras clínicas. As
taminadas com o vírus. Após um curto período de amostras geralmente utilizadas para a detecção
incubação (1 a 3 dias), a vulva se apresenta hipe- de vírus são: suabes nasais e oculares, vaginais,
rêmica, edemaciada e com vesículas distribuídas de prepúcio ou coletadas das áreas com lesões
Herpesviridae 451

evidentes; tecidos (traquéia, pulmões) e fetos sença do DNA viral nos sítios de latência pode
inteiros ou tecidos de fetos abortados (pulmões, ser o único e mais seguro indicativo da infecção.
fígado e rins). As amostras devem ser remetidas
em gelo com a maior brevidade possível. Não é – Diagnóstico sorológico
recomendado congelar as amostras a -20ºC, pois
esta temperatura pode inativar o vírus. Caso não tenha sido possível obter amostras
de tecidos ou secreções na fase aguda, a infecção
– Diagnóstico virológico pode ser diagnosticada por meio de testes soro-
lógicos. Para tal, devem-se realizar duas coletas
Um diagnóstico rápido pode ser realizado de soro: a primeira durante a fase aguda e a se-
por imunofluorescência (IFA) com anticorpos es- gunda três a quatro semanas após. Um aumento
pecíficos, em cortes ou impressões de tecidos ou, de quatro vezes no título de anticorpos entre as
ainda, em esfregaços de secreções. Nesses casos, duas coletas é indicativo da infecção e pode con-
o resultado pode ser obtido dentro de uma a duas firmar o diagnóstico. Em fêmeas em reprodução,
horas. Usualmente, além da IFA, suspensões de é conveniente fazer uma coleta de soro antes da
tecidos ou secreções são preparadas e inocula- gestação e manter a amostra congelada. Se hou-
das em cultivos celulares, visando ao isolamen- ver qualquer problema reprodutivo de natureza
to do agente. Este é o procedimento padrão de infecciosa suspeita, uma nova coleta, após o sur-
diagnóstico virológico para o BoHV-1. Tanto o gimento do problema (p. ex.: aborto), deve ser
BoHV-1 como o BoHV-5 produzem um efeito ci- realizada, sendo ambas as amostras remetidas ao
topático (ECP) bastante evidente em vários tipos laboratório.
de células, incluindo cultivos primários e linha- Por outro lado, a detecção de anticorpos no
gens estabelecidas. Via de regra, os cultivos pri- soro, em um teste isolado, indica somente que o
mários são mais sensíveis para o isolamento viral animal teve contato prévio com o agente, seja por
do que linhagens contínuas. Entretanto, em razão infecção natural (ou seja, potencial portador) ou
de maior praticidade, células de linhagem (p. ex.: por vacinação. Portanto, a detecção de anticorpos
células da linhagem de rim de bovino, MDBK) em uma amostra isolada de soro possui significa-
são as mais utilizadas para o isolamento viral. O do limitado quando o objetivo é diagnosticar um
BoHV-1 e BoHV-5 geralmente causam ECP vi- evento de doença clínica.
sível entre 24 e 72 horas após a inoculação. Em As técnicas sorológicas mais utilizadas para
alguns casos, quando a concentração de vírus no o diagnóstico sorológico do BoHV-1 são o ELISA
material original é muito baixa, pode ser necessá- e a soro-neutralização (SN). É importante ressal-
rio fazer mais de uma passagem do material ino- tar que esses testes não são capazes de diferen-
culado. Raramente são necessárias mais do que ciar os anticorpos produzidos contra o BoHV-1
duas ou três passagens. Ao final da terceira pas- daqueles produzidos contra o BoHV-5.
sagem, caso não haja evidência de ECP, o mate- Além do seu uso como suporte à investi-
rial é considerado negativo para vírus. Se houver gação clínica, esses testes têm sido amplamente
ECP compatível com herpesvírus, a identidade utilizados em inquéritos epidemiológicos, certi-
do agente deve ser confirmada por IFA ou imu- ficação de rebanhos e triagem de reprodutores
noperoxidase (IPX), utilizando-se conjugados ou destinados à coleta e comercialização de sêmen.
anticorpos monoclonais apropriados. É importante enfatizar que a detecção de an-
A detecção de DNA viral em amostras clí- ticorpos contra o BoHV-1 – com exceção de anti-
nicas por PCR também pode ser utilizada, apre- corpos induzidos por vacinação – é indicativa da
sentando as vantagens de rapidez, especificida- condição de portador.
de e sensibilidade. Esta técnica, no entanto, tem A Tabela 17.2 apresenta um resumo das ma-
aplicação restrita para o diagnóstico de infecções nifestações clínicas associadas com os herpesví-
agudas pelo BoHV-1. Possui aplicação importan- rus bovinos, o material a ser enviado para o labo-
te na detecção da infecção latente, quando a pre- ratório e as técnicas de diagnóstico utilizadas.
452 Capítulo 17

Tabela 17.2. Manifestações clínicas, material a ser coletado e técnicas utilizadas para o diagnóstico das principais
herpesviroses de bovinos

Manifestação Agente provável Material/diagnóstico Diagnóstico laboratorial

Doença respiratória BoHV - 1.1 Secreções nasais 1. Isolamento


2. Imunofluorescência (IFA) de células
descamativas
3. PCR

Tecidos (pulmão, traquéia) 1. Isolamento


2. Imunoistoquímica (IHC)
3. Histopatologia

Soro pareado 1.Pesquisa de anticorpos (ELISA, SN)

Aborto BoHV - 1.1 Tecidos fetais (timo, baço, 1. Isolamento


pulmão, traquéia, cérebro), 2. PCR
placenta 3. IHC
4. Histopatologia

Soro da vaca Pesquisa de anticorpos

Vulvovaginite BoHV - 1.2 Secreções vaginais, líquido 1. Isolamento


de vesículas 2. PCR

Soro pareado Pesquisa de anticorpos

Balanopostite BoHV - 1.2 Sêmen, secreções 1. Isolamento


prepuciais 2. PCR

Soro pareado Pesquisa de anticorpos

Mamilite BoHV - 2 Líquido folicular, crostas 1. Isolamento


2. Microscopia eletrônica
Doença vesicular ou Soro pareado 3. IFA
crostosa generalizada
(PLSD) Pesquisa de anticorpos

Doença BoHV - 5 Secreções nasais, 1. Isolamento


neurológica cérebro 2. IFA
3. IHC
4. PCR
5. Histopatologia

Soro pareado Pesquisa de anticorpos

recria e confinamento que agregam novilhos de


6.1.1.4 Controle e profilaxia
várias procedências, além de propriedades com
alta rotatividade de animais (compra-venda-
As medidas de controle em relação ao transporte etc.) são recomendados a implementar
BoHV-1 devem ser relacionadas com a severida- a vacinação. Nessas situações, a vacinação contí-
de da infecção no rebanho, práticas de manejo e nua e regular pode reduzir a circulação de vírus
com a prevalência da infecção. Em geral, podem- e a ocorrência de doença clínica, reduzindo, con-
se adotar duas principais estratégias de controle, seqüentemente, as perdas econômicas.
de acordo com a situação epidemiológica e his- Rebanhos de baixo risco, sem histórico da
tórico clínico dos rebanhos: controle com ou sem enfermidade/infecção ou sem sorologia positiva
vacinação. Rebanhos com histórico comprovado devem ser encorajados a implementar medidas
da infecção, com sorologia elevada, sistemas de de biossegurança para evitar a introdução da in-
Herpesviridae 453

fecção. Nesses casos, o simples teste (e descarte) ao feto. Uma das maiores desvantagens dessas
de qualquer animal a ser anexado ao rebanho, vacinas é a necessidade de se associar adjuvan-
aliado com testes sorológicos periódicos e descar- tes para a obtenção de uma resposta adequada.
te de eventuais positivos, geralmente são méto- Além disso, a magnitude e duração da imunida-
dos efetivos. Recomenda-se testar reprodutores a de conferida por essas vacinas são inferiores às
serem anexados aos rebanhos e, no caso de serem vacinas vivas modificadas, o que exige revacina-
positivos, deve-se evitar a sua introdução. ções freqüentes que aumentam o custo final.
Rebanhos com sorologia alta, mas sem his- As vacinas, se adequadamente administra-
tórico clínico de doença respiratória ou genital, e das, podem conferir proteção adequada contra a
sem problemas reprodutivos (retorno ao cio, in- enfermidade respiratória; sendo questionáveis,
fertilidade) podem ser mantidos sem vacinação, entretanto, na proteção contra a doença genital
porém com monitoramento contínuo dos parâ- e abortos. Vacinas com vírus vivo modificado
metros produtivos e clínicos. representam riscos potenciais para fêmeas ges-
Além do uso de vacinas, outras medidas de tantes. Nos casos em que a vacinação é recomen-
controle incluem o teste de sêmen e reproduto- dada, indica-se a manutenção de um alto nível
res, o uso de sêmen e embriões livres de BoHV-1, imunitário através de vacinações periódicas e
bem como o monitoramento sorológico periódico sistemáticas. As vacinas atuais também são in-
dos rebanhos. capazes de proteger contra o estabelecimento de
Centrais de coleta de sêmen deveriam – de latência com vírus de campo, ou seja, os animais
maneira ideal – manter somente animais sorolo- vacinados podem se tornar latentemente infecta-
gicamente negativos para o BHV-1. No entanto, a dos se forem posteriormente infectados.
freqüente identificação de animais geneticamente Embora utilizadas com relativo sucesso na
superiores como soropositivos exige estratégias prevenção da enfermidade clínica e na redução
alternativas para que se possa utilizar o potencial da circulação de vírus na população, as vacinas
genético sem o risco de disseminação da infecção. tradicionais contra o BoHV-1 têm se mostrado
Nesses casos, o manejo separado desses animais incompatíveis com programas de erradicação.
e o teste de todos os ejaculados para assegurar-se Com isso, surgiu a necessidade de se elaborar va-
da ausência do vírus são as medidas indicadas. cinas que permitissem a diferenciação de animais
Vacinas convencionais atenuadas ou inati- infectados (portadores da infecção latente) dos
vadas têm sido utilizadas para controlar a disse- animais vacinados. Para suprir essa necessidade,
minação do vírus e reduzir a severidade da do- surgiram as vacinas com marcadores antigênicos
ença clínica e as conseqüentes perdas associadas – as vacinas diferenciais. Essas vacinas baseiam-
ao BoHV-1. Vacinas com vírus vivo modificado se na utilização de um vírus vivo atenuado, con-
têm sido produzidas por passagens múltiplas em tendo uma ou mais deleções em genes que codi-
cultivo celular ou por mutagênese induzida para ficam proteínas não-essenciais. O uso desse vírus
produzir mutantes temperatura-sensíveis (TS). como vacina, associado a um teste sorológico
Vacinas tradicionais, com vírus vivo modifica- que detecta anticorpos contra a proteína deleta-
do de administração parenteral, oferecem risco da, permite a distinção sorológica entre animais
de infecção fetal e abortamentos. Nesse sentido, infectados e vacinados (Figura 17.8). Essa estra-
a maior vantagem das vacinas intranasais TS é a tégia tem se constituído na base de programas
indução de imunidade local e mais rápida, apa- de controle e erradicação do BoHV-1 em vários
rentemente sem o risco de infecção fetal. países europeus. Vacinas com essas característi-
Vacinas inativadas têm sido utilizadas prin- cas estão em fase de desenvolvimento no Brasil e
cipalmente em fêmeas prenhes pelo fato de as devem estar disponíveis comercialmente em um
vacinas vivas representarem um risco potencial futuro próximo.
454 Capítulo 17

A forma generalizada – a PLSD – afeta a pele de


todo o corpo, principalmente da cabeça, dorso e
períneo.
O BoHV-2 é um típico alfaherpesvírus. Os
vírions possuem envelope e contêm uma molé-
cula de DNA de fita dupla como genoma. O ge-
noma apresenta um alto grau de homologia com
o vírus do herpes simplex humano (HHV-1 ou
HSV). O BoHV-2 é classificado na subfamília
Alphaherpesvirus, gênero Simplexvirus, do qual o
HSV-1 é o protótipo. Os isolados de campo do
BoHV-2 apresentam uma grande similaridade
genética e antigênica entre si. Alguns aspectos
da organização e seqüência do genoma têm sido
muito estudados em razão deste vírus comparti-
lhar vários determinantes antigênicos com uma
série de proteínas codificadas pelo HSV-1 e HSV-
2. Pela sua semelhança com esses vírus, especu-
la-se que a provável origem do BoHV-2 seja de
primatas e não de animais biungulados.

6.1.2.1 Epidemiologia

A infecção e doença associadas ao BoHV-2 já


foram descritas em vários países e possuem algu-
ma importância econômica, principalmente em
gado leiteiro. A ocorrência de mamilite – mesmo
de caráter transitório – pode resultar em perdas
importantes devido à redução da produção de
leite e à ocorrência de mastites. A enfermidade foi
descrita no Brasil nas décadas de 1970 e 1980. Um
estudo sorológico, realizado, em 2007, em duas
importantes bacias leiteiras dos estados do Rio
Grande do Sul e Paraná, revelou uma soropre-
valência próxima a 30% em vacas em produção.
Esses dados confirmam a presença e dissemina-
ção do vírus no rebanho brasileiro e corroboram
6.1.2 Herpesvírus bovino tipo 2 observações de campo que revelam a ocorrência
relativamente freqüente de doença clinicamente
O herpesvírus bovino tipo 2 (BoHV-2) é o compatível com a causada pelo BoHV-2. A gran-
agente da mamilite herpética, doença que possui de maioria dos casos que ocorrem a campo, no
repercussão sanitária em gado leiteiro, princi- entanto, não é diagnosticada em nível laborato-
palmente em regiões de clima temperado. A ma- rial. A doença também já foi descrita em diversos
milite herpética (BHM) é a forma localizada da países, incluindo o Kênia, EUA, Austrália, Reino
enfermidade, caracterizada por lesões nos tetos e Unido, Itália e Japão.
no úbere. Em alguns casos, a doença se manifesta As formas generalizada ou localizada da
de forma generalizada, porém menos freqüente, doença têm sido relatadas em diferentes áreas
chamada de pseudo lumpy skin disease (PLSD). geográficas. As infecções generalizadas de pele
Herpesviridae 455

tendem a ocorrer em áreas tropicais e subtropi- 6.1.2.2 Patogenia, sinais clínicos


cais, onde, possivelmente, espécies de ruminan- e patologia
tes selvagens podem ser reservatórios do agente.
Anticorpos neutralizantes contra o BoHV-2 já fo- A presença de lesões na pele (abrasões e es-
ram detectados em elefantes, búfalos e ruminan- carificações) provavelmente facilite a instalação
tes selvagens. A BHM é mais comum em gado da infecção. Após a penetração, o vírus replica
leiteiro e em gado de corte submetido à explora- nas camadas mais profundas da epiderme e na
ção intensiva e sob condição de estresse. Vacas derme, onde a replicação viral produz células gi-
de primeira cria geralmente desenvolvem lesões gantes multinucleadas. O período de incubação,
mais severas e abundantes, que são registradas após inoculação experimental, varia entre quatro
mais comumente durante o outono, quando a e nove dias. Os sinais iniciais se caracterizam por
temperatura ambiental diminui. De fato, os rela- regiões hiperêmicas circulares ou irregulares, ge-
tos da enfermidade têm sido mais freqüentes em ralmente com bordas bem definidas, na pele das
regiões que apresentam temperaturas baixas. O tetas e do úbere. A hiperemia é seguida de edema-
trauma físico pode ser um fator importante na ciação, e essas áreas se apresentam salientes sobre
patogenia das lesões pelo BoHV-2 e postula-se a superfície da pele. As vesículas nem sempre são
que as freqüentes rachaduras da pele das tetas observadas, pois se rompem rapidamente e dão
que ocorrem durante o outono poderiam, ao me- lugar a ulcerações superficiais bem definidas de
nos parcialmente, explicar essa ocorrência esta- pele, com rápida formação de crostas. As bordas
cional das lesões. Aliado a esse fator, o edema das feridas são bem definidas e necróticas.
fisiológico do úbere e tetas pode contribuir para Em casos naturais, a lesão típica associada
o desenvolvimento das lesões. com a mamilite herpética caracteriza-se por uma
A doença pode disseminar-se rapidamente depressão central na superfície dos nódulos, ne-
entre os animais durante o outono e inverno. A crose superficial da epiderme e um período curto
forma de transmissão do vírus ainda não foi bem de evolução. As lesões são encontradas principal-
esclarecida, mas, provavelmente, ocorra por con- mente nas tetas, mas podem disseminar-se pelo
tato direto ou indireto, através de fluidos vesicu- úbere e região perineal. Os tetos infectados apre-
lares e crostas contaminadas. A transmissão por sentam-se inicialmente edematosos e doloridos.
meio de equipamentos de ordenha tem sido in- A doença é autolimitante, e as lesões não
vestigada, mas não há resultados conclusivos. A complicadas regridem rapidamente. A mastite é
participação do ordenhador ou de insetos como a seqüela mais comum, particularmente se a ex-
vetores para a transmissão mecânica tem sido tremidade dos tetos está envolvida. Quando as
considerada, embora não tenha sido confirmada lesões são difundidas ou complicadas por masti-
experimentalmente. Na fase aguda, o vírus pode te ou, ainda, por infecções secundárias graves, a
ser transmitido aos bezerros durante a mamada, cicatrização é retardada.
e estes animais podem desenvolver lesões vesi- Em rebanhos afetados em surtos naturais, a
culares no focinho ou nas comissuras labiais. taxa de morbidade pode variar entre 18 e 90% e,
O BoHV-2, provavelmente, estabeleça infec- embora a mortalidade seja baixa, as perdas de-
ção latente após a infecção aguda. Essa hipótese vido à doença podem ser graves. As perdas se
é reforçada pelo desenvolvimento freqüente de devem à incidência maior de mastite, redução na
lesões nas tetas imediatamente após o parto, sem produção de leite em até 20%, descarte de algu-
fontes externas de infecção. As alterações fisio- mas vacas por mamite grave, úlceras intratáveis e
lógicas, que ocorrem próximo e durante o parto, interferência com os procedimentos de ordenha.
promoveriam o estímulo para reativação natural. A mamilite clínica pode ser reproduzida
No entanto, a biologia da infecção latente por pela inoculação intradérmica ou cutânea do vírus
esse vírus necessita ser mais bem investigada. nas tetas após escarificação da pele. A doença cli-
456 Capítulo 17

nicamente indistinguível da infecção natural foi de conservação do material (4ºC) também é críti-
reproduzida pela inoculação do vírus em ovelhas ca. Áreas de lesões podem ser incisadas e fixadas
lactantes. O vírus foi inoculado pela via cutânea em formol 10% e enviadas para diagnóstico his-
após a produção de abrasões na pele. tológico ou microscopia eletrônica. As margens
A forma cutânea da infecção (PLSD) apre- das lesões podem ser dissecadas, colocadas em
senta ocorrência mais rara e é caracterizada por meio essencial mínimo e enviadas para serem
aparecimento súbito, com a formação de nódulos submetidas a exames virológicos.
firmes, circulares e elevados distribuídos na pele. O conteúdo de partículas do vírus pode ser
Os nódulos desenvolvem um aspecto caracterís- muito alto no fluido de vesículas frescas, o que é
tico: superfície plana com centro ligeiramente característico de viroses vesiculares. O vírus pre-
deprimido. Essas lesões podem ocorrer em qual- sente pode ser propagado facilmente em cultivos
quer parte do corpo, mas usualmente são mais celulares primários, assim como em linhas celula-
prevalentes na cabeça, pescoço, dorso e períneo. res já estabelecidas. Células primárias de bovinos
Depois de duas semanas, as lesões secam e, em e células de linhagem de rim bovino (MDBK) são
duas a quatro semanas, desprendem-se do corpo indicadas para o isolamento e cultivo do vírus.
do animal, levando consigo a superfície da pele e Deve-se ressaltar que, quando a suspeita etioló-
pêlos, os quais se reconstituem em poucos dias. gica for BoHV-2, os cultivos devem ser incubados
a 32ºC, pois o vírus não replica bem a 37ºC. Nas
células de cultivo, o vírus produz ECP, caracteri-
6.1.2.3 Diagnóstico
zado pela formação de massas celulares multinu-
cleadas (sincícios) que aumentam em número e
A ocorrência de mamilite vesicular ou cros- diâmetro à medida que se prolonga a incubação.
tosa em vacas leiteiras deve ter a sua etiologia in- Após poucos dias, os sincícios tornam-se con-
vestigada, pois outros agentes virais podem tam- fluentes, estendendo-se por todo o tapete celular,
bém estar envolvidos. Outras enfermidades de que acaba por se desprender da superfície dos
pele podem se manifestar de forma semelhante à frascos. Em estágios avançados, o vírus produz
mamilite herpética bovina. Dentre essas, podem sincícios grandes, multinucleados, com inclusões
ser citadas: urticária, picadas de inseto, infecções eosinofílicas intranucleares. A identificação do
pelos vírus do Pseudocowpox e Vaccinia. Estas úl- BoHV-2 isolado em cultivos celulares – embora
timas são comuns no Brasil, principalmente na o ECP seja característico e inconfundível com ou-
região Sudeste. Por isso, o diagnóstico clínico- tros vírus – pode ser feito por SN com soro hipe-
epidemiológico deve ser, sempre que possível, rimune ou por IFA.
acompanhado de comprovação virológica e/ou O BoHV-2 pode também ser identificado por
sorológica (ver Tabela 17.2). ME após coloração negativa. A ME pode ser reali-
Para o diagnóstico laboratorial da infecção zada em fluido vesicular obtido de lesões frescas
pelo BoHV-2, são indicadas amostras de flui- ou em fragmentos de pele obtidos por biópsia.
do vesicular, crostas e soro sangüíneo coletados Além disso, um diagnóstico rápido pode ser re-
durante a fase aguda da doença. As chances de alizado pela coloração de Giemsa em microscopia
isolamento são maiores quando o líquido vesicu- ótica, com material obtido por biópsia da periferia
lar é coletado antes da ruptura das vesículas. Em das lesões vesiculares recentes. Esse método per-
amostras coletadas das vesículas rompidas há al- mite a visualização de inclusões intranucleares.
gumas horas ou de lesões crostosas, dificilmente O diagnóstico sorológico de infecções por
se consegue isolar o agente. Por isso, recomenda- BoHV-2 pode ser realizado por SN ou ELISA em
se a coleta de fluido de vesículas íntegras, com o soros pareados. A sorologia tem aplicação quan-
auxílio de seringas com agulhas finas. Alternati- do se deseja detectar os portadores em uma po-
vamente, o material pode ser coletado com sua- pulação de bovinos, uma vez que a condição de
bes. Para o sucesso do isolamento, a temperatura soropositivo indica a infecção latente.
Herpesviridae 457

6.1.2.4 Controle e profilaxia de 1,5 a 3 kb nas extremidades. Com base em aná-


lise de restrição genômica, os isolados de campo
Experimentos utilizando vacinas inativadas podem ser divididos em dois grupos: o grupo
e atenuadas do BoHV-2 falharam em demons- da cepa DN-599, que abrange os isolados norte-
trar proteção contra a doença clínica. No entanto, americanos; e o grupo Movar 33/63, que abriga
inoculações parenterais, com isolados de campo, os isolados europeus. Alguns isolados europeus
produzem lesões locais sem excreção do vírus e e asiáticos não se enquadram em nenhum desses
conferem uma imunidade sólida e duradoura. grupos. Os padrões de clivagem enzimática do
Existem protocolos descrevendo esses proces- genoma do BoHV-4 diferem marcadamente dos
sos de imunização, utilizando material vesicular outros herpesvírus de bovinos.
recente ou mesmo de vírus propagado no labo- Os isolados de campo caracterizados até o
ratório. No entanto, há risco da perpetuação do presente não apresentam grande diversidade an-
vírus pelo estabelecimento de infecções latentes tigênica e, aparentemente, pertencem ao mesmo
em rebanhos nos quais esse método é utilizado. sorotipo. Apenas diferenças discretas podem ser
Atualmente, não existem vacinas comerciais dis- detectadas com o uso de alguns anticorpos mo-
poníveis contra o BoHV-2. noclonais (AcMs). O BoHV-4 não apresenta re-
Os métodos de profilaxia devem incluir lação antigênica com os outros herpesvírus de
medidas higiênicas da sala de ordenha e equi- bovinos.
pamentos, além do combate a insetos, possíveis A replicação do BoHV-4 em cutivos celula-
vetores transmissores do agente. Outra medida res é lenta e pouco eficiente, parecendo depender
profilática importante é evitar a entrada de ani- de células em divisão. Além de células bovinas, o
mais estranhos e realização de quarentena para vírus replica em determinadas células de origem
animais introduzidos no rebanho. humana.
Uma vez instalada a infecção no animal,
pode-se utilizar antibioticoterapia tópica, redu- 6.1.3.1 Epidemiologia
zindo, assim, as infecções bacterianas secundá-
rias nas lesões. Para a desinfecção de ambientes e A infecção pelo BoHV-4 parece estar ampla-
equipamentos, os desinfetantes à base de iodófo- mente distribuída na população bovina, embora
ros parecem ser mais eficientes do que soluções à o número de estudos sorológicos seja restrito.
base de hipoclorito de sódio. Até o presente, a infecção já foi diagnosticada na
A utilização de agentes antivirais para trata- América do Norte, Europa e em alguns países
mento de infecções por herpesvírus humanos esti- africanos e asiáticos. Em alguns locais da África,
mulou pesquisas para investigar a eficiência des- a soroprevalência atinge 70% dos bovinos amos-
tes sobre a replicação do BoHV-2. Alguns desses trados, enquanto na Bélgica foram observados ín-
produtos podem ser promissores no tratamento dices de 15 a 30% e na Alemanha, de 18 a 38%.
dessas infecções, principalmente a vidarabina, que Além de bovinos e ovinos, o vírus já foi
se mostrou mais eficiente do que o aciclovir. isolado de gatos domésticos, o que constitui um
achado incomum para os herpesvírus de rumi-
nantes.
6.1.3 Herpesvírus bovino tipo 4

O herpesvírus bovino tipo 4 (BoHV-4) é clas- 6.1.3.2. Patogenia, sinais clínicos


sificado na subfamília Gammaherpesvirinae, junta- e patologia
mente com o vírus do Epstein-Barr (EBV) de hu-
manos e o herpesvírus saimiri (SHV), com o qual A patogenia da infecção pelo BoHV-4 é mui-
apresenta grande similaridade. Além da morfo- to pouco conhecida, sobretudo pela escassez de
logia típica dos herpesvírus, o BoHV-4 possui um relatos de doença natural e pela dificuldade de se
genoma de 144-150 kb, que contém uma região reproduzir sinais clínicos pela inoculação experi-
única de 108 kb e aproximadamente 15 repetições mental. A principal via natural de infecção pare-
458 Capítulo 17

ce ser a oronasal, pela inspiração de aerossóis ou ou mumificados/autolisados. Fetos inoculados


por contato indireto com material contaminado. após o quarto mês nasceram vivos e saudáveis.
Foi também demonstrado que bezerros podem se A associação do BoHV-4 com orquite, azoos-
infectar pela ingestão de leite contaminado. Após permia e conjuntivite passageiras em touros tam-
a infecção, o vírus replica na mucosa respiratória bém tem sido sugerida. Nesses casos, o vírus
superior e no epitélio intestinal, podendo infectar pode ser excretado pelo sêmen.
leucócitos e se disseminar sistemicamente para A associação do BoHV-4 com qualquer das
vários órgãos e tecidos. Dentre os tecidos infec- manifestações mencionadas acima ainda é ques-
tados durante a infecção aguda, incluem-se prin- tionável, pois muitas tentativas de reprodução
cipalmente a mucosa do trato respiratório (nasal, experimental da doença em bovinos e ovinos
traqueal e pulmonar) e o baço, com níveis infe- adultos falharam ou resultaram em sinais leves
riores de replicação nos linfonodos, rins, tonsilas e inespecíficos. Coelhos têm sido utilizados com
e timo. relativo sucesso como modelo experimental para
Após a infecção aguda, o BoHV-4 estabelece o BoHV-4, sobretudo para o estudo da patogenia
infecção latente em vários sítios, incluindo células da infecção reprodutiva.
mononucleares do baço e do sangue periférico,
além do sistema nervoso. A persistência do vírus
6.1.3.3 Diagnóstico e controle
em células da linhagem monocítica-macrofágica
sugere que a infecção pode induzir efeitos imu-
nossupressivos. A reativação da infecção pode O método de eleição para o diagnóstico é o
ocorrer em situações de estresse ou pode ser in- isolamento viral, embora o BoHV-4 seja de difícil
duzida pela administração de dexametasona. replicação em cultivos celulares de rotina (p. ex.:
Apesar de já ter sido isolado de bovinos com MDBK). Infelizmente, poucos reagentes específi-
uma variedade de manifestações clínicas, ainda cos são disponíveis para a detecção de antígenos
hoje não existe um associação clara do BoHV-4 em tecidos e células. Para a detecção do BoHV-4
com determinada doença ou síndrome clínica. A em tecidos e órgãos, deve-se recorrer a técnicas
reprodução experimental de doença em animais moleculares, como o Southern blot e PCR, pois se-
jovens ou adultos também não tem obtido suces- qüências genômicas estão disponíveis em bancos
so. de dados e permitem a elaboração de sondas e
O vírus foi inicialmente isolado na Hungria, primers.
em 1963, de bezerros com doença respiratória e Anticorpos contra o vírus podem ser detec-
ceratoconjuntivite e, posteriormente, nos Estados tados por imunodifusão em ágar (IDGA), fixação
Unidos, de uma novilha com sinais respiratórios. de complemento, imunofluorescência indireta
Posteriormente o agente foi isolado de animais (IFI) e ELISA. A infecção natural geralmente não
com conjuntivite, infecção do trato respiratório induz níveis altos de anticorpos neutralizantes,
superior e pneumonia. Também foi identificado razão pela qual a técnica de SN não é recomen-
em animais com lesões cutâneas, dermatite ma- dada. Não existem reagentes e kits diagnósticos
mária, enterite, metrite pós-parto e metrite crôni- comercialmente disponíveis, o que indica a ne-
ca. A ocorrência de abortos com a demonstração cessidade do desenvolvimento de reagentes para
do vírus no feto e em membranas fetais também o diagnóstico sorológico dessa virose.
já foi relatada. Existem relatos de associação do Não existe consenso sobre possíveis medi-
BoHV-4 com o BVDV em episódios de aborto. das de controle a serem adotadas, em razão de
A inoculação experimental do BoHV-4 em que muito pouco é conhecido sobre essa infec-
vacas em diferentes fases da gestação resultou ção. Tentativas de diagnóstico de condições clí-
em morte de alguns fetos e abortamentos entre o nico-patológicas compatíveis com a infecção pelo
terceiro e quarto meses de gestação. Mumificação BoHV-4 podem contribuir para um maior conhe-
e autólise fetal foram observadas em dois fetos. O cimento sobre a infecção e possíveis conseqüên-
vírus foi isolado de quatro dos 12 fetos abortados cias clínico-patológicas.
Herpesviridae 459

6.1.4 Herpesvírus bovino tipo 5 aproximadamente 137 kb. O genoma desses vírus
codifica mais de 70 produtos, entre os quais 10 a
12 glicoproteínas do envelope. Essas glicoproteí-
O herpesvírus bovino tipo 5 (BoHV-5) é
nas desempenham importantes funções nas inte-
agente etiológico da meningoencefalite ou encefa-
rações entre os vírions e as células hospedeiras e
lite herpética bovina, doença geralmente fatal que
se constituem em importantes alvos para anticor-
afeta principalmente animais jovens. O BoHV-5 é
pos neutralizantes.
muito semelhante ao BoHV-1 em diversos aspec-
Estudos clínico-patológicos e virológicos
tos biológicos, genéticos e moleculares, de modo
têm demonstrado que o BoHV-5 é um impor-
que a diferenciação desses dois vírus somente se
tante agente de encefalite bovina no Brasil. Em
tornou possível há, aproximadamente, 20 anos,
um estudo que investigou as causas de encefa-
com o desenvolvimento de técnicas moleculares.
lite nesta espécie (cerca de 10% do total de casos
Até então, amostras de vírus atualmente reco-
registrados), os herpesvírus foram superados em
nhecidas como BoHV-5 eram consideradas sub-
incidência somente pela raiva. Como os herpes-
tipos do BoHV-1. Isso se dava em razão da gran-
vírus isolados da maioria desses casos não foram
de similaridade entre os dois vírus, incluindo o
tipificados, supõe-se que o BoHV-5 seja o princi-
efeito citopático produzido em cultivos celulares
pal implicado, embora ocasionalmente o BoHV-1
e a reatividade cruzada em testes de IFA, para
também possa estar envolvido em infecções neu-
antígenos virais, e de SN e ELISA, para anticor-
rológicas.
pos. No entanto, as diferenças clínico-epidemio-
lógicas e moleculares existentes entre esses dois
vírus justificaram a sua classificação como duas 6.1.4.1 Epidemiologia
espécies virais distintas. Da mesma forma, alguns
AcMs são capazes de distinguir entre BoHV-1 e Em virtude da sua grande similaridade com
BoHV-5, o que revela a existência de diferenças o BoHV-1, a prevalência e distribuição da infecção
antigênicas entre esses vírus. Além disso, embora pelo BoHV-5, mundialmente, é desconhecida. As
a estrutura e organização genômica sejam virtu- infecções aparentes pelo BoHV-5 apresentam ca-
almente idênticas e a homologia de nucleotídeos racterísticas epidemiológicas peculiares, afetando
seja de aproximadamente 90%, a análise enzimá- animais jovens, com baixa morbidade e elevada
tica de restrição genômica e alguns protocolos de mortalidade. Como nas infecções por outros her-
PCR podem diferenciar entre esses vírus. Ou seja, pesvírus, em função da latência e da ocorrência
o BoHV-1 e BoHV-5 são muito semelhantes entre de infecções subclínicas, a proporção de animais
si em vários aspectos, porém apresentam diferen- que desenvolve enfermidade clínica não é um in-
ças bem definidas que podem ser detectadas por dicador apropriado do número de animais efe-
métodos específicos. tivamente infectados. Curiosamente, a infecção
Ainda hoje, a maioria dos testes sorológicos e parece ser causa de morbidade e mortalidade im-
virológicos são incapazes de distinguir esses dois portante somente em países do Hemisfério Sul,
agentes. Por isso, a história natural do BoHV-5 embora tenha sido descrita no Hemisfério Norte
ainda é pouco conhecida. Pode-se especular que há muito tempo. Até 1993, somente duas amos-
alguns estudos epidemiológicos sobre o BoHV-1, tras de BoHV-5 haviam sido isoladas nos EUA.
realizados no passado, tenham confundido infec- A baixa ocorrência de encefalites por herpesvírus
ções causadas por esse vírus com aquelas causa- em países do Hemisfério Norte, segundo alguns
das pelo BoHV-5. Assim, estudos adicionais são autores, poderia estar associada aos extensivos
necessários para poder se avaliar com precisão a programas de vacinação contra o BoHV-1, cuja
verdadeira amplitude das infecções pelo BoHV-1 imunidade conferiria proteção também contra o
e BoHV-5 na população bovina. BoHV-5.
O genoma do BoHV-5 (uma cepa brasileira, Na atualidade, não é possível precisar a
SV-507) foi recentemente seqüenciado e possui real prevalência e distribuição das infecções pelo
138.4 kb, enquanto o genoma do BoHV-1 possui BoHV-5, uma vez que não existem testes soroló-
460 Capítulo 17

gicos capazes de diferenciar entre infecções por estresse, ligadas ao desmame, transporte e mu-
BoHV-5 ou BoHV-1. É muito provável que uma dança de alimentação. Esses surtos apresentam
proporção ainda desconhecida dos animais iden- morbilidade variável (1-10%) e letalidade eleva-
tificados como positivos para o BoHV-1 tenham da (próxima de 100%), ou seja, quase a totalidade
sido de fato infectados pelo BoHV-5. Tal preva- dos animais que apresentam sinais neurológicos
lência somente poderá ser determinada a partir evolui para o óbito.
da disponibilidade de testes sorológicos capazes A transmissão do BoHV-5 provavelmen-
de diferenciar infecções por BoHV-5 e BoHV-1. te ocorra de modo semelhante à do BoHV-1, ou
Não obstante a dificuldade de se determinar seja, por contato direto ou indireto entre animais.
a prevalência por testes sorológicos, relatos clíni- As secreções nasais representam o principal veí-
co-patológicos com ou sem confirmação viroló- culo para a transmissão do agente. A exemplo de
gica têm confirmado a ampla e crescente disse- outros herpesvírus, o BoHV-5 estabelece infecção
minação do BoHV-5 em rebanhos brasileiros. No latente em seus hospedeiros após a infecção agu-
Rio Grande do Sul, o BoHV-5 tem sido freqüen- da, o que contribui para a sua persistência na po-
temente associado com surtos de meningoencefa- pulação bovina. Essa infecção pode ser reativada
lite. Com base em evidências clínicas (posterior- pela administração de corticóides, simulando o
mente confirmadas pelo isolamento do agente), que provavelmente ocorra em condições natu-
a prevalência da infecção nos estados do Mato rais. As reativações naturais da infecção podem
Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Para- ser seguidas da recrudescência clínica e inclusive
ná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo levar à morte, como sugerido pela ocorrência de
parece elevada. No entanto, é impossível precisar casos isolados de encefalite pelo BoHV-5 em ani-
esses dados, uma vez que a infecção pode ocor- mais adultos
rer sem manifestações clínicas, sendo aparente
somente aquela pequena proporção de casos em 6.1.4.2 Patogenia, sinais clínicos
que os sinais são evidentes. Por essa razão, sus- e patologia
peita-se que a incidência do BoHV-5 seja signi-
ficativamente maior do que os casos reportados. A transmissão do vírus ocorre por contato
Além da possível da confusão com o BoHV-1, direto ou indireto com animais ou secreções con-
pela reatividade sorológica cruzada, os sinais de taminadas. O vírus penetra pelo trato respiratório
comprometimento neurológico semelhantes aos superior e replica inicialmente na mucosa nasal,
da raiva podem também conduzir a um diagnós- onde a replicação persiste por até mais de 15 dias.
tico equivocado. A replicação na mucosa nasal é freqüentemente
Com ressalvas à prevalência e distribuição associada com sinais respiratórios semelhantes
geográfica, a epidemiologia das infecções pelo aos observados nas infecções pelo BoHV-1, po-
BoHV-5 parece ser muito semelhante à do BoHV- rém mais brandos. A seguir, o vírus invade os
1. Além de bovinos, infecções naturais já foram neurônios sensoriais regionais e é transportado
demonstradas em ovinos e caprinos, embora o através do fluxo axonal retrógrado para o gân-
seu significado epidemiológico seja desconheci- glio responsável pela inervação da região (no
do. Experimentalmente, a infecção aguda e laten- caso das vias respiratórias, o gânglio trigêmeo),
te pelo BoHV-5 pode ser reproduzida em ovinos, onde atinge os corpos neuronais. Neste gânglio, o
caprinos e coelhos. vírus pode estabelecer dois tipos de relação com
Em infecções naturais e experimentais, o o hospedeiro. No primeiro caso, o vírus estabe-
vírus é excretado nas secreções nasais em altos lece uma infecção latente, durante a qual não há
títulos e durante vários dias (até 15-18 dias). Em replicação viral ou expressão de antígenos virais.
surtos naturais, a disseminação do vírus entre aos Nesse caso, o animal permanece portador da in-
animais parecer ser rápida, principalmente quan- fecção, porém sem apresentar sinais clínicos evi-
do a densidade de animais é elevada. Os surtos dentes. Esse é, provavelmente, o resultado mais
ocorrem geralmente associados com situações de freqüente das infecções pelo BoHV-5.
Herpesviridae 461

A segunda possibilidade é que a replica- cegueira, pressionamento da cabeça contra ante-


ção viral no gânglio trigêmeo seja seguida do paros, ataxia, decúbito, convulsões. Freqüente-
transporte do vírus para o encéfalo, atingindo mente esses sinais manifestam-se em crises, cujos
os neurônios de segunda ordem nos núcleos da espaçamentos e intensidade intensificam-se gra-
ponte e bulbo. A partir desses sítios, o vírus pode dativamente. Esses sinais nem sempre estão pre-
disseminar-se ao cerebelo e tálamo, alcançando sentes em todos os casos e diferentes combina-
subseqüentemente o córtex cerebral. Experi- ções de sinais, com intensidades diferentes, têm
mentalmente, foi observado que o vírus pode se sido relatados. Em alguns casos, uma depressão
distribuir de forma heterogênea pelas áreas do profunda é o único sinal evidente. Na grande
encéfalo. De sete bovinos inoculados com uma maioria dos animais que apresenta sinais neu-
amostra de BoHV-5, quatro apresentaram o vírus rológicos, a enfermidade progride para o óbito,
disseminado em várias regiões do encéfalo; dois embora casos de recuperação após sinais mode-
deles apresentaram o vírus em determinadas re- rados tenham sido descritos. O curso clínico dura
giões (bulbo, ponte, mesencéfalo e córtex olfató- de poucas horas (8-12) a vários dias e culmina
rio e frontal); enquanto outros dois continham com decúbito, convulsões e morte. Sinais respira-
o vírus somente no córtex olfatório e frontal. tórios (hiperemia, corrimento nasal, dificuldade
Dois animais inoculados foram aparentemente respiratória) têm sido relatados tanto em infec-
capazes de erradicar a infecção, o vírus não foi ções naturais como experimentais. Abortos tam-
detectado em tecidos aos 21 dias após a infecção, bém têm sido relatados em rebanhos acometidos
apesar de ambos apresentarem lesões de menin- de surtos de infecção neurológica. Embora atual-
goencefalite não-supurativa. mente se acredite que a grande maioria dos casos
Estudos realizados em bovinos e coelhos de doença neurológica historicamente atribuídos
infectados experimentalmente indicam que a via ao BoHV-1 – pela confusão em sua identificação
olfatória, pela qual o vírus atinge o córtex ante- – tenham sido de fato causados pelo BoHV-5, al-
rior através do sistema olfatório, constitui-se na guns casos de doença neurológica comprovada-
via principal de acesso ao sistema nervoso central mente causados pelo BoHV-1 também já foram
(SNC) a partir da replicação primária na muco- relatados.
sa nasal. Em coelhos, a via olfatória fornece um É possível também que o BoHV-5 possa pro-
transporte muito mais rápido e eficiente do que duzir infecções genitais, pois o vírus já foi isola-
a via trigeminal. De qualquer forma, a via trige- do de sêmen de touros e de episódios de aborto.
minal de transporte também é importante, pois Já foi demonstrado que o vírus, associado a uma
permite ao vírus atingir o local de estabelecimen- pequena percentagem de monócitos e linfócitos
to de latência. periféricos, pode produzir uma viremia transitó-
Existem evidências de que as amostras de ria. Esta seria uma das possíveis explicações para
BoHV-5 apresentam diferentes níveis de neuro- a origem das infecções fetais e abortos. No entan-
virulência. Estudos em bovinos e coelhos revela- to, estudos para definir a patogenia desse tipo de
ram variações na neuroinvasividade (a capacida- quadro ainda não foram realizados.
de do vírus de invadir, multiplicar e distribuir-se É consensual que a reativação da infecção
no SNC), assim como na neurovirulência (capaci- latente pelos herpesvírus animais raramente cur-
dade do vírus de provocar lesões no SNC). sa com sinais clínicos. No entanto, o desenvolvi-
A doença neurológica pelo BoHV-5 pode mento de sinais clínicos discretos, a exemplo do
ocorrer em forma de surtos ou acometer em ani- que ocorre com outros herpesvírus, parece não
mais isolados. A enfermidade é mais freqüente ser tão raro, e a sua detecção depende de um
em bezerros, sobretudo aqueles submetidos ao exame mais acurado. No caso do BoHV-5, foi de-
estresse da desmama e confinamento. Os sinais monstrado que tanto a reativação natural quanto
observados em casos naturais são: depressão, an- a induzida por dexametasona parecem ser fre-
dar cambaleante, bruxismo, protusão da língua, qüentemente acompanhadas de sinais neuroló-
salivação, flexionamento do pescoço, opistótono, gicos, que podem ser moderados e passageiros
462 Capítulo 17

ou progressivos e fatais. A reativação da infecção detecção de antígenos ou PCR, pois as chances


latente acompanhada de recrudescência clínica de se obter um resultado confirmatório são maio-
podem explicar os casos de meningoencefalite res.
pelo BoHV-5 em que um único animal do reba- A confirmação da identidade do agente – e a
nho, geralmente adulto, é afetado. sua diferenciação do BoHV-1 – pode ser realizada
por reatividade com determinados AcMs, análise
6.1.4.3 Diagnóstico de restrição genômica e PCR diferencial, seguida
ou não de seqüenciamento do produto.
Doença neurológica de curso fatal, principal- O exame histológico de seções do SNC tam-
mente em bezerros, é sugestiva de infecção pelo bém é utilizado no diagnóstico e, geralmente,
BoHV-5. Nesses casos, o diagnóstico diferencial revela quadros de encefalite não-supurativa, in-
de raiva, listeriose, babesiose e encefalopatia es- filtração linfocitária focal ou difusa e manguitos
pongiforme deve ser realizado. O diagnóstico clí- perivasculares. Em alguns casos, o exame histo-
nico-epidemiológico deve ser, sempre que pos- lógico do cérebro revela alterações bem indica-
sível, acompanhado de comprovação virológica tivas de infecção herpética, como a presença de
e/ou sorológica (ver Tabela 17.2). Em casos de corpúsculos de inclusão e necrose neuronal. No
doença neurológica em bovinos, o material en- entanto, essas alterações nem sempre estão pre-
viado para o laboratório de virologia (cérebro) é sentes, indicando a necessidade de exames viro-
inicialmente testado para a raiva e, se negativo, lógicos para confirmar a identidade do agente.
deve ser testado para o BoHV-5. Utilizando-se o Casos de infecção neurológica pelo BoHV-5 sem
cérebro suspeito, pode-se realizar vários testes quaisquer alterações histológicas também já fo-
para comprovar a etiologia: a) IFA ou IPX em im- ram descritos.
pressões frescas de tecido nervoso; b) isolamento Amostras pareadas de soro, coletadas duran-
viral; c) PCR; d) nos casos em que secreções na- te a doença aguda e 14-21 dias após, podem ser
sais acompanham a amostra, a realização de IFA submetidas a testes sorológicos. Um aumento de
no sedimento das células descamativas pode for- quatro vezes nos títulos de anticorpos é indicati-
necer um diagnóstico rápido e confiável. vo da infecção aguda. Os testes sorológicos mais
Para isso, amostras de cérebro e bulbo olfa- comumente utilizados são SN e ELISA. A SN for-
tório devem ser remetidas resfriadas para tenta- nece quantificação dos anticorpos neutralizantes,
tivas de isolamento viral e/ou IFA. Fragmentos enquanto o ELISA é apenas qualitativo: positivo
de cérebro, acondicionados em formol a 10%, são ou negativo. Cabe enfatizar que esses testes são
úteis para exames histológicos. Encefalite não- incapazes de diferenciar anticorpos anti-BoHV-5
supurativa, infiltração linfocitária perivascular, de anticorpos anti-BoHV-1.
gliose focal ou difusa e corpúsculos de inclusão
nos neurônios são achados comuns em casos de
encefalite pelo BoHV-5. Secreções nasais e/ou 6.1.4.4 Controle e profilaxia
brônquicas e pulmonares também são úteis para
o diagnóstico. Amostras de soro pareadas, cole- Devido às semelhanças biológicas e epide-
tadas dos animais que, eventualmente, recupe- miológicas, as medidas de controle e profilaxia
rem-se da doença neurológica podem auxiliar na para o BoHV-5 são essencialmente as mesmas
elaboração do diagnóstico. preconizadas para o BoHV-1. Não existem, até
A técnica padrão de diagnóstico do BoHV-5 o presente, vacinas específicas contra o BoHV-5
é o isolamento viral em cultivo celular – no qual o disponíveis no mercado. Entretanto, com base na
vírus produz ECP típico de herpesvírus – segui- reatividade cruzada entre o BoHV-1 e BoHV-5,
do de confirmação por IFA ou IPX. Em amostras vacinas contra BoHV-1 vem sendo utilizadas no
clínicas conservadas de forma imprópria, no en- controle da meningoencefalite por BoHV-5. No
tanto, o isolamento do vírus pode ser problemá- entanto, o nível de proteção heteróloga conferido
tico. Nesses casos, deve-se recorrer a técnicas de por essas vacinas permanece indeterminado.
Herpesviridae 463

6.1.5 Herpesvírus associados com a a infecção ocorre predominantemente de forma


febre catarral maligna subclínica. Essa forma, também denominada
MCF associada a ovinos (MCF-OA), possui ocor-
Os agentes etiológicos da febre catarral rência esporádica e tem sido descrita em vários
maligna (MCF) são o herpesvírus ovino tipo países da Europa, América do Sul, América do
2 (OvHV-2) e o herpesvírus alcelafino tipo 1 Norte e em outras regiões. Em regiões endêmi-
(AlHV-1), membros do gênero Rhadinovirus, cas, a MCF-OA pode ocorrer de forma esporádi-
subfamília Gammaherpesvirinae. O AlHV-1 está ca ou em surtos, com a ocorrência de um número
associado com a forma africana da enfermida- variável de casos. No Brasil, a enfermidade tem
de, que acomete bovinos, cervídeos e outros ru- sido documentada em bovinos desde 1924, nas
minantes no continente africano. O OvHV-2 é o regiões Nordeste, Sudeste e Sul.
agente da forma da MCF associada a ovinos, do- O OvHV-2 produz uma infecção subclínica
ença que acomete bovinos e outros ruminantes e nos ovinos, seus hospedeiros naturais. Os ovinos
possui distribuição mundial. disseminam o vírus durante a parição, e o agen-
te penetra nos bovinos provavelmente pela via
6.1.5.1 Epidemiologia respiratória. Além de ovinos, cabras e animais
silvestres, como cervídeos, podem ser portado-
– Forma africana res do vírus e transmiti-lo para bovinos. Com o
advento de técnicas moleculares de diagnóstico,
Os hospedeiros naturais do agente da forma como a PCR, foi possível estabelecer que bovinos
africana da MCF e transmissores para outras es- que eventualmente se recuperam da MCF-OA
pécies são os gnus (Conochaetes taurinus e Cono- tornam-se portadores crônicos.
chaetes gnu, em inglês, denominados wildebeest).
No organismo desses animais, o vírus encon-
6.1.5.2 Patogenia, sinais clínicos
tra-se fortemente associado com células, sendo
raramente transmissível entre animais adultos. e patologia
Entretanto, a administração de corticosteróides,
assim como a ocorrência de estresse (por exem- A patogenia da infecção ainda é pouco co-
plo, transporte para zoológicos) pode induzir a nhecida. Os animais infectados apresentam uma
excreção de vírus. No período perinatal, o vírus viremia associada com células e a presença de
pode ser detectado em secreções nasais, oculares vírus nas lesões, que são provavelmente imuno-
e nas fezes de neonatos. Durante as temporadas mediadas. O período de incubação varia entre
de parição dos gnus, os povos africanos que con- 3 e 10 semanas, e a duração da doença clínica é
vivem com esses animais acreditam que o vírus de 3 a 7 dias. Os eventos centrais da patogenia
seja transmitido para bovinos pelo contato com da MCF parecem envolver a infecção e perda da
a placenta, secreções placentárias ou pelas secre- regulação funcional de determinadas populações
ções dos recém-nascidos. de linfócitos. A perda da atividade dos linfóci-
tos supressores facilitaria a proliferação linfóide
– Forma não-africana observada na doença, enquanto a atividade des-
controlada das células NK seria responsável pela
destruição tecidual. Embora a infecção aguda
A forma não-africana da MCF é uma doença
infecciosa sistêmica que ocorre em bovinos e ou- seja provavelmente seguida do estabelecimento
tros ruminantes domésticos e silvestres, podendo de latência, não existem evidências de reativação
ocorrer também em suínos. O OvHV-2 – agen- e recrudescência clínica.
te etiológico dessa forma – apresenta a espécie Os sinais clínicos da MCF incluem apatia,
ovina como hospedeira natural. Nestes animais, anorexia, febre, opacidade da córnea, corrimento
464 Capítulo 17

Tabela 17.3. Principais achados clínico-patológicos em surtos de febre catarral maligna diagnosticados no Rio Grande
do Sul.

Fonte: adaptada de Rech et al. (2005).


Herpesviridae 465

nasal mucopurulento, salivação, diarréia, úlceras amostras de soro de animais enfermos. A repli-
orais e nasais, ceratoconjuntivite, linfadenopatia, cação eficiente do OvHV-2 em cultivos celulares
diarréia, distúrbios nervosos com movimentos ainda não foi obtida, por isso o isolamento viral
de pedalagem, convulsões e exantema cutâneo. não é utilizado no diagnóstico.
Os sinais clínicos apresentados pelos bovi- A tríade de alterações histológicas da MCF
nos afetados em 15 propriedades, onde ocorreram consiste de vasculite, acúmulos de células infla-
casos isolados ou surtos de MCF no Rio Grande matórias mononucleares em vários tecidos e ne-
do Sul, estão apresentados na Tabela 17.3. Nesses crose dos epitélios de revestimento. Na vasculite,
episódios a doença apresentou um curso agudo ocorre necrose fibrinóide da parede de artérias e
ou subagudo e foi, na maioria das vezes, fatal. veias e infiltração de linfoblastos, linfócitos e ma-
As lesões macroscópicas envolvem princi- crófagos na média, adventícia e espaço perivas-
cular. Essas lesões estavam presentes em todos
palmente os tratos digestivo, respiratório supe-
os casos de MCF em bovinos deste estudo e são
rior e urinário, além de linfonodos, fígado, olhos
altamente sugestivas da doença.
e encéfalo, e incluem lesões erosivo-ulcerativas
O diagnóstico diferencial da MCF em bovi-
em várias mucosas. As lesões observadas no apa-
nos inclui outras doenças a vírus, como a febre af-
relho digestivo e respiratório estão associadas
tosa, estomatite vesicular, diarréia viral bovina/
com estomatite, faringite e laringite. Ocorre um
doença das mucosas, língua azul e peste bovina.
aumento generalizado de volume dos linfono-
Considerando-se a forma de transmissão
dos, que podem apresentar aspecto hemorrágico. do OvHV-2 para bovinos, a principal medida de
Lesões oculares, como opacidade da córnea, po- controle é evitar a criação conjunta de ovinos e
dem ser freqüentes. Histologicamente, as lesões bovinos. Uma alternativa é separar os ovinos du-
consistem de vasculite com necrose fibrinóide, rante a parição, de modo a evitar a transmissão
infiltrados mononucleares em vários órgãos, hi- a bovinos através de placentas e fluidos fetais.
perplasia linfóide e necrose dos epitélios de re- Além disso, devem-se isolar bovinos afetados de
vestimento. Essas lesões são consideradas patog- bovinos sadios. Não há vacinas disponíveis con-
nomônicas ou muito características da doença. tra a MCF.
Pode ocorrer edema de meninges e formação de
manguitos perivasculares em diferentes regiões 6.2 Herpesvírus de caprinos
do cérebro. Focos necróticos podem ser observa-
dos nos rins e fígado. Há vasculite generalizada. 6.2.1 Herpesvírus caprino tipo 1
A maioria dos animais infectados que desenvol-
vem a forma mais grave da doença morre em, O herpesvírus caprino tipo 1 (CpHV-1) é um
aproximadamente, 10 dias. alfaherpesvírus estreitamente relacionado com o
BoHV-1. Esse vírus está associado com quadros
6.1.5.3 Diagnóstico e controle de enterite e infecção generalizada fatal em ca-
britos recém-nascidos (até duas semanas de ida-
O diagnóstico presuntivo da MCF é basea- de). A maioria das infecções em animais adultos
do nos sinais clínicos e nas lesões encontradas à é subclínica, mas a infecção pode, ocasionalmen-
necropsia, e a presença de ovinos na propriedade te, resultar em sinais respiratórios, conjuntivite,
é um dado que auxilia o diagnóstico. O diagnós- vulvovaginite, balanopostite e abortos. Outro
tico definitivo da doença pode ser realizado pelo vírus caprino (CpHV-2), que pertence à subfa-
uso de testes sorológicos, detecção de antígenos mília Gammaherpesvirinae, tem sido recentemente
virais por IFA ou IHC, isolamento viral (para o associado com manifestações compatíveis com a
AlHV) e por PCR. As amostras a serem utiliza- febre catarral maligna (MCF) em algumas espé-
das para detecção do vírus e/ou DNA viral são: cies de cervídeos. Esse vírus aparentemente não
leucócitos frescos, tecido da tireóide e glândula causa doença em caprinos, que, provavelmente,
adrenal. A detecção de anticorpos é realizada em se constituem em seus hospedeiros naturais.
466 Capítulo 17

A susceptibilidade dos caprinos ao herpes- plicar e estabelecer infecção latente em bovinos


vírus bovino tipo 1 (BoHV-1) e a ocorrência da após infecção experimental. O possível papel
infecção nessa espécie, além do quadro clínico dessas outras espécies na epidemiologia da infec-
semelhante induzido por ambos os vírus nas res- ção permanece desconhecido.
pectivas espécies, tornou bastante difícil a classi-
ficação do CpHV-1 como um vírus distinto. As 6.2.1.2 Patogenia, sinais clínicos
caracterizações iniciais demonstraram que o ví- e patologia
rus de caprinos (CpHV-1) distingue-se do BoHV-
1 por apresentar um ciclo replicativo mais curto, A patogenia da infecção pelo CpHV-1 não
evidenciado por uma destruição mais rápida do está totalmente esclarecida. Em condições na-
cultivo celular in vitro; por sorologia cruzada uni- turais, o CpHV-1 produz infecção primária que
direcional e por análise de restrição enzimática evolui para a infecção latente passível de reativa-
do genoma. Embora não existam diferenças sig- ção. O CpHV-1 pode iniciar a infecção pelas vias
nificativas nas propriedades físico-químicas de nasal e genital. Quando a infecção ocorre pela via
seus DNAs, a análise de restrição demonstra cla- nasal, o vírus replica localmente e dissemina-se
ramente que o CpHV-1 e o BoHV-1 são espécies por viremia para o trato genital, onde pode cau-
virais diferentes. No entanto, apesar de serem sar aborto. Quando a penetração ocorre na mu-
diferentes em seus mapas de restrição, ambos os cosa genital, o vírus apresenta replicação local
vírus parecem ter mantido ou desenvolvido uma e, aparentemente, não se dissemina para outros
relação antigênica durante a sua evolução. órgãos e tecidos.
Após a infecção primária, o CpHV-1 estabe-
lece infecção latente nos 3º e 4º gânglios sacrais
6.2.1.1 Epidemiologia
e no gânglio trigeminal, dependendo da via de
penetração. A reativação do vírus dos sítios de la-
O CpHV-1 foi inicialmente isolado na Cali- tência tem sido muito difícil de ser demonstrada,
fórnia, em 1975, de quadros de enterite severa em tanto em infecções naturais como experimentais.
cabritos com poucos dias de vida. Posteriormen- Em condições naturais, a reativação e excreção do
te, o vírus foi detectado em rebanhos caprinos na vírus pela via genital têm sido observadas em ca-
Suíça. Embora a distribuição do agente não tenha bras com títulos baixos de anticorpos neutralizan-
sido investigada, estudos sorológicos e virológi- tes ( 4) durante as estações de monta, provavel-
cos demonstram que a infecção está presente em mente como resultado de um estresse decorrente
vários países europeus, Austrália, Nova Zelân- das alterações hormonais associadas com o estro.
dia, Canadá e Estados Unidos, em níveis de pre- Experimentalmente, a reativação e excreção viral
valência variáveis. Em países que possuem a ca- foram obtidas somente após a administração de
prinocultura comercial bem desenvolvida, como altas dosagens de dexametasona. Após reativa-
a Grécia e a Itália, os níveis de prevalência podem ção da infecção latente, o CpHV-1 apresenta um
atingir entre 30 e 50% dos animais. comportamento similar ao da infecção primária:
Embora a infecção pelo CpHV-1 tenha sido animais infectados pela via intranasal excretam o
descrita somente nos hospedeiros naturais, o vírus pelas vias nasal e genital, enquanto os ani-
CpHV-1 possui a capacidade de infectar espécies mais infectados pela via genital geralmente eli-
heterólogas. Anticorpos contra o CpHV-1 já fo- minam o vírus somente por esta via.
ram detectados em algumas espécies silvestres, Os sinais clínicos decorrentes da infecção
especialmente cervídeos. Cordeiros e bezerros pelo CpHV-1 são compatíveis com infecção no tra-
inoculados experimentalmente não desenvolvem to gastrintestinal, genital e respiratório. Embora a
sinais clínicos, porém replicam o vírus e apresen- infecção seja subclínica na maioria dos animais
tam soroconversão. A exemplo do BoHV-1, que adultos, sinais inespecíficos, como hipertermia e
replica e estabelece infecção latente passível de leucopenia, têm sido descritos. Também têm sido
reativação em cabras, o CpHV-1 é capaz de re- descritos quadros de vulvovaginite, caracteriza-
Herpesviridae 467

dos por edema vulvar, eritema, erosões, úlceras e rebanho têm sido realizadas. Os resultados mais
descarga mucopurulenta. Diarréia, conjuntivite, promissores foram obtidos com o uso de uma va-
descarga nasal, tosse e dispnéia também têm sido cina inativada, porém o nível de proteção parece
ocasionalmente observadas. Em caprinos jovens depender da via do desafio. Ou seja, a proteção
(entre uma e duas semanas de idade), o CpHV-1 foi mais sólida nos animais desafiados pela via
é responsável por infecção sistêmica, caracteri- nasal, quando comparada com os desafiados pela
zada por lesões ulcerativas no trato grastrintes- via genital, que é a rota mais provável de infecção
tinal, geralmente associadas com alta morbidade natural. Uma vacina contra o BoHV-1 foi testada
e mortalidade. em cabras e conferiu proteção parcial após o de-
O tropismo seletivo do CpHV-1 pelo trato safio com o CpHV-1.
genital, a latência nos gânglios sacrais e reativa- Considerando-se que os caprinos infectados
ção da infecção latente, coincidente com o estro, tornam-se portadores latentes após a infecção
sugerem que a disseminação do vírus dentro do aguda, medidas como triagem e identificação
rebanho é provavelmente promovida pela monta de positivos seguida de descarte ou isolamento,
natural. para evitar a transmissão a outros animais, assim
como o teste de novos animais introduzidos nos
6.2.1.3 Diagnóstico rebanhos, podem auxiliar a reduzir a circulação
do vírus e a incidência da infecção nos rebanhos.
O diagnóstico da infecção pelo CpHV-1, em A susceptibilidade de cabras e bovinos ao
casos clínicos suspeitos, pode ser realizado pelo CpHV-1 e BoHV-1, os títulos nos quais os vírus
isolamento do agente em células primárias ou são excretados pelos hospedeiros heterólogos e o
contínuas de origem caprina ou ovina. O vírus contato estreito entre bovinos e cabras em cria-
produz ECP semelhante aos outros alfaherpes- ções consorciadas sugerem que a infecção cruza-
vírus. Conjugados policlonais contra o BoHV-1 da natural pode ocorrer. Além disso, o estabele-
produzem reação cruzada em testes de IFA e po- cimento de latência no hospedeiro heterólogo e a
dem ser utilizados diretamente em tecidos ou em possibilidade de reativação do BoHV-1 em cabras
células de cultivo inoculadas. Uma vez isolado, devem despertar preocupação em programas de
o CpHV-1 pode ser diferenciado do BoHV-1 por erradicação.
análise de restrição enzimática.
Episódios de aborto têm sido investigados 6.3 Herpesvírus de suínos
pelo uso de PCR com primers específicos em te-
cidos de fetos abortados. Anticorpos contra o
6.3.1 Herpesvírus suíno tipo 1
CpHV-1 podem ser investigados por SN ou ELI-
SA, e a realização de sorologia pareada pode in- (vírus da doença de Aujeszky)
dicar infecção aguda recente. Esses testes também
têm sido utilizados em inquéritos sorológicos em A doença de Aujeszky – ou pseudoraiva – é
rebanhos caprinos e em animais silvestres. causada pelo herpesvírus suíno tipo 1 (SuHV-1),
também denominado vírus da doença de Au-
6.2.1.4 Controle e profilaxia jeszky ou vírus da pseudoraiva (PRV). Embora a
nomenclatura atual recomende o uso da primei-
Em virtude da ampla distribuição do CpHV- ra denominação, o vírus é mais conhecido como
1 e das perdas econômicas decorrentes de abor- PRV. O SuHV-1 pertence ao gênero Varicellovirus,
tos, natimortos e problemas reprodutivos, algu- da subfamília Alphaherpesvirinae, e possui um ge-
mas medidas para prevenção ou erradicação têm noma DNA de fita dupla, com, aproximadamen-
sido preconizadas. Apesar de ainda não existirem te, 150 kb, que codifica mais de 70 proteínas.
vacinas comerciais disponíveis, tentativas de se Em regiões endêmicas, a doença de Au-
produzir uma vacina que reduza a severidade da jeszky é considerada uma importante causa de
doença e a disseminação da infecção dentro do perdas econômicas na suinocultura, relacionadas
468 Capítulo 17

com as altas taxas de morbidade e mortalidade do Sul. Os focos foram prontamente identificados
de leitões, redução da performance dos reprodu- e a infecção foi erradicada.
tores e redução do desenvolvimento dos animais Os suínos são os hospedeiros naturais do
em crescimento e terminação. Atualmente, gran- SuHV-1, mas o vírus pode ser transmitido e cau-
de parte da repercussão econômica da doença se sar doença grave em hospedeiros secundários
deve a restrições ao comércio interestadual de re- (ruminantes, felinos, caninos e roedores). Além
produtores e internacional de reprodutores e pro- dessas espécies, os coelhos são particularmente
dutos suínos. Em virtude dessas restrições, vários sensíveis à infecção experimental. Os hospedei-
países já erradicaram a doença dos rebanhos co- ros secundários são geralmente terminais, e a ex-
merciais e vários outros estão com programas de creção do vírus por estes animais é insignificante.
controle e erradicação em andamento. Eqüinos e aves são muito pouco susceptíveis à
infecção, e o homem é refratário. A infecção de
6.3.1.1 Epidemiologia carnívoros pode ocorrer pela ingestão de carnes
contaminadas ou através de lesões na pele ou
Até a década de 1980, a infecção pelo SuHV- mucosas.
1 estava presente de forma endêmica em prati- Os suínos que sobrevivem à infecção se tor-
camente todos os países que possuíam expressão nam portadores subclínicos do vírus na sua for-
na suinocultura. A crescente repercussão econô- ma latente. Estes animais se constituem nos reser-
mica da doença, sobretudo devido às restrições vatórios do vírus e podem transmitir a infecção
ao comércio de animais e produtos, motivou vá- a outros animais sempre que ocorrer reativação
rios países a empreender programas de controle da infecção. A exemplo dos outros herpesvírus,
e erradicação. Atualmente, a infecção é conside- a infecção latente se constitui no ponto-chave da
rada erradicada em suídeos domésticos na Fran- epidemiologia do SuHV-1 e representa um obstá-
ça, Alemanha, Áustria, Suíça, Dinamarca, Reino culo importante para o controle e erradicação da
Unido e nos Estados Unidos. Todavia, o SuHV-1 infecção de populações suínas.
continua circulando nas populações de suídeos Os índices de morbidade e mortalidade, as-
silvestres nos Estados Unidos, Alemanha, Polô- sociados com a infecção, dependem da idade dos
nia, França, Itália, dentre outros. Dessa forma, animais infectados e são mais altos em animais jo-
programas de vigilância epidemiológica devem vens. Em leitões com 6 a 10 dias de idade, a mor-
continuar nas regiões de risco, pois as popula- bidade pode atingir 95% e a mortalidade, 90%,
ções de suídeos silvestres podem atuar como re- enquanto entre animais com 21 a 35 dias, esses
servatórios do vírus, o que dificulta a erradicação índices podem ser de 45 e 30%, respectivamente.
completa da doença. Em animais adultos, a mortalidade é insignifi-
No Brasil, a doença foi inicialmente diagnos- cante, e as perdas estão associadas principalmen-
ticada em 1912, e, posteriormente, foi identifica- te com problemas reprodutivos. A freqüência de
da em todos os estados das regiões Sul, Sudeste e infecções respiratórias é variável e depende da
Centro-Oeste, além da Bahia e Ceará. Nos últimos cepa viral e de determinados fatores ambientais
anos, a infecção tem sido mais freqüentemente que influenciam a disseminação do vírus.
relatada em Santa Catarina (SC), o que fez com O vírus é transmitido por contato direto ou
que fosse implementado um programa estadual indireto de animais susceptíveis com secreções
de erradicação. O programa, financiado por um contaminadas ou animais infectados. Os animais
esforço de parcerias firmadas entre a indústria, excretam o vírus em secreções nasais e saliva por
associação de produtores e governo, tem obtido vários dias após serem infectados. O sêmen de
sucesso em, gradualmente, erradicar o PRV de machos contaminados e as secreções genitais e
rebanhos suínos do estado. Desde julho de 2004, restos fetais de porcas que abortam também con-
a doença de Aujeszky não é identificada em SC. têm o vírus e podem transmiti-lo. Urina, fezes e
Em 2003, pela primeira vez, foram diagnostica- leite também possuem alguma importância como
dos surtos da doença em suínos no Rio Grande vias de excressão e eliminação. A infecção por
Herpesviridae 469

contato indireto pode ocorrer através da água, A replicação viral no SNC resulta em lesões
ração, restos de matadouro, caminhões de trans- progressivamente severas que levam a disfun-
porte, roupas ou contato com materiais contami- ções motoras e, eventualmente, à morte. Essas
nados. alterações são mais comuns em leitões com idade
Os animais latentemente infectados são con- entre uma e duas semanas. Os sinais neurológi-
siderados portadores, podem excretar o vírus pe- cos são gradativamente menos freqüentes e me-
riodicamente e são importantes na manutenção nos severos em animais com mais idade e raros
da doença na forma endêmica. em animais adultos, apesar da ocorrência da in-
fecção neurológica. Nestes animais, a replicação
6.3.1.2 Patogenia, sinais clínicos viral no encéfalo parece apresentar um padrão
e patologia localizado. Sinais neurológicos e morte são raros
em animais de engorda. Animais de engorda e
As conseqüências clínico-patológicas da adultos freqüentemente apresentam letargia e
infecção pelo SuHV-1 variam amplamente e de- depressão durante episódios de infecção, o que
pendem de fatores como idade e estado fisiológi- pode ser atribuído ao envolvimento do SNC.
co dos animais, via de infecção, dose e virulência A infecção, com determinadas cepas e em
da cepa viral. altas doses, freqüentemente resulta em infecção
A via mais comum de infecção é a nasofa- e doença pulmonar. Nos pulmões, o vírus replica
ríngea, e os suínos adquirem a infecção por con- focalmente em uma variedade de tipos celula-
tato direto ou indireto com animais doentes ou res, incluindo os macrófagos alveolares, células
portadores, em particular com a saliva e secres- epiteliais alveolares, células da musculatura lisa,
sões nasais contaminadas. O contato direto fo- endoteliais e leucócitos. Como mencionado, a
cinho-focinho também parece desempenhar um infecção é tipicamente focal e não-disseminada.
papel relevante na transmissão. A transmissão Assim, o SuHV-1 não é considerado um agente
por aerossóis a curtas distâncias também ocorre respiratório clássico, cuja infecção se dissemine
e pode se constituir em importante forma de dis- pelos pulmões. A infecção dos macrófagos alve-
seminação do vírus em regiões de alta densidade olares possui um significado especial, pois afeta
populacional. Eventualmente o vírus pode infec- a primeira linha de defesa dos pulmões contra
tar animais pela via digestiva, pelo coito ou pela agentes invasores. Por isso, a infecção viral é fre-
inseminação artificial. Em granjas que apresen- qüentemente acompanhada de infecção bacteria-
tam surtos ou a infecção endêmica, gatos e cães na secundária, que leva à pneumonia, absceda-
podem contrair a doença pela ingestão de restos ção e pleurite. A viremia que pode ocorrer nesses
fetais. casos ou após infecção do trato respiratório su-
Os sítios de replicação primária são os epi- perior é passageira e, provavelmente, de pouca
télios do trato respiratório superior (nasal, et- importância na patogenia da infecção.
moidal e faríngeo), tonsilas e pulmões. Após essa Após a infecção aguda, tanto subclínica,
replicação inicial, o vírus pode atingir tecidos lin- quanto com sinais inespecíficos, neurológicos ou
fóides regionais e se disseminar sistemicamente. respiratórios, os animais permanecem portadores
A viremia, no entanto, parece não desempenhar da infecção latente. Durante a latência, o genoma
um papel importante na patogenia. A invasão do viral permanece no gânglio nervoso responsável
encéfalo parece ocorrer principalmente pela via pela inervação da área onde ocorreu a infecção
nervosa olfatória, através da qual o vírus atinge primária (usualmente no gânglio trigêmeo). Es-
os bulbos olfatórios e, posteriormente, dissemina- ses animais podem, periodicamente, excretar o
se pelo cérebro. Outra via de acesso ao SNC é o vírus para o meio ambiente durante a reativação
transporte ao longo das fibras que constituem os da infecção.
nervos glossofaríngeo e trigêmeo. A infecção do A infecção nos animais adultos é, freqüen-
gânglio trigêmeo pode ser seguida de transporte temente, subclínica. As maiores perdas causadas
subseqüente até a ponte e restante do cérebro ou pela infecção se devem a um elevado índice de
do estabelecimento de latência. mortalidade e morbidade entre leitões (até 100%
470 Capítulo 17

em animais com menos de um mês), queda de das no pulmão são de pneumonia intersticial e
produtividade das matrizes e redução no desen- necrose do epitélio bronquial. Observam-se, ain-
volvimento dos animais em crescimento e termi- da, focos de necrose de 1 a 2 mm de diâmetro no
nação. fígado, nas adrenais, baço e miocárdio. Em casos
Em eventos de introdução do agente em re- neurológicos, ocorre meningoencefalite não su-
banhos livres, a doença é caracterizada por alta purativa, com ganglioneurite e mielite. Além dis-
mortalidade na maternidade, abortos e por uma so, observam-se intensa infiltração perivascular,
porcentagem variável de animais apresentando necrose neural, gliose e neuronofagia.
sinais neurológicos e respiratórios na creche, re-
cria, terminação e gestação. Essa fase inicial dura 6.3.1.3 Diagnóstico
de uma a três semanas, com a redução progressi-
va da intensidade dos sinais clínicos. Após essa Em áreas endêmicas ou de risco, a ocorrên-
fase, os surtos se repetem com menor gravidade, cia de doença neurológica em leitões jovens (uma
a intervalos de tempo aproximadamente regula- a duas semanas), sinais respiratórios em várias
res. Nesses eventos, são afetados principalmente faixas etárias e abortos devem suscitar uma in-
os leitões entre quatro dias e quatro semanas de vestigação etiológica, na qual o SuHV-1 deve
idade, com o arrefecimento dos sinais dentro de ser considerado como um potencial suspeito. Se
uma a duas semanas. a infecção é causada por uma amostra virulenta
Embora o vírus seja geneticamente pouco va- e cursa com sinais típicos, uma análise do curso
riável, podem ocorrer diferentes formas clínicas, clínico-patológico do evento, associada com os
relacionadas com o tropismo de diferentes amos- achados de necropsia, podem levar a um diag-
tras virais, que podem afetar primariamente os nóstico presuntivo relativamente seguro. No en-
sistemas respiratório ou nervoso. Em leitões, os tanto, a confirmação etiológica é imprescindível
sinais clínicos mais observados são: hipertermia, também pelo caráter regulatório do qual se reves-
inapetência, depressão, incoordenação, tremores te a enfermidade.
musculares, decúbito lateral, convulsões e morte. O diagnóstico laboratorial é realizado pela
Em animais mais velhos, observam-se hiperter- identificação do vírus em tecidos e/ou em secre-
mia, anorexia e sinais respiratórios. Porcas em ções de suínos doentes. O diagnóstico rápido é
gestação manifestam retornos ao cio e a infecção feito usualmente por testes de IFA direta em ton-
pode resultar em mumificação, abortos, natimor- silas, pulmão, traquéia, baço, rins, fígado e cére-
tos, malformações, nascimento de leitões fracos bro. O isolamento do vírus pode ser realizado
e infertilidade. Nesta categoria animal, os sinais a partir dessas amostras. O SuHV-1 replica em
clínicos neurológicos são raros, mas podem ocor- uma variedade de células de origem suína, sejam
rer. cultivos primários ou linhagens contínuas, nas
Em bovinos, ovinos, cães e gatos, a infecção quais produz um efeito citopático típico. O ví-
pelo SuHV-1 é fatal, mas não contagiosa. Nesses rus pode também ser multiplicado em células de
animais, ocorre um intenso prurido no local da origem bovina, como células de cornetos nasais.
infecção, se esta ocorrer através da pele, o que é Os isolados de campo podem ser adaptados a re-
seguido de sinais neurológicos progressivamente plicar em células de linhagem bovina, como as
severos e morte. MDBK. Após o aparecimento do ECP – que é um
Os achados de necropsia em suínos afeta- indicativo forte da identidade do agente – o vírus
dos, se presentes, são: congestão das meninges e pode ser identificado por IFA ou IPX nos cultivos
aumento de volume do líquido céfalo-raquidia- inoculados. A neutralização viral com anti-soro
no, hemorragias, congestão ou focos necróticos específico é uma alternativa para a identificação
nas amígdalas e laringe, rinite fibrinosa, edema do vírus. Em alguns laboratórios, são utilizados
pulmonar e consolidação dos lóbulos pulmona- testes de PCR para a detecção do genoma viral
res anteriores (no caso das amostras pneumotró- em amostras suspeitas. Esta técnica possui apli-
picas do vírus). As lesões microscópicas observa- cação especial para detectar infecções latentes.
Herpesviridae 471

Alternativamente, o diagnóstico de um seguido de desinfecção rigorosa e vazio sanitário.


episódio de doença aguda pode ser estabeleci- Rebanhos vizinhos – e potencialmente expostos
do por análise sorológica de soro pareado. Para ao agente – podem ser obrigados a adotar medi-
isso, amostras de soro devem ser coletadas dos das semelhantes. Regiões com essas característi-
animais doentes durante o curso da doença e três cas apresentam condições favoráveis para adoção
a quatro semanas após. Um aumento de título posterior de métodos de erradicação.
de anticorpos igual ou superior a quatro vezes Em regiões endêmicas, o melhor método
entre as coletas é indicativo de infecção recente. de controle da doença é a erradicação do vírus
Com base nisso, testes sorológicos que permitam das criações. Todavia, a prevenção da doença clí-
quantificar os anticorpos no soro (p. ex.: testes de nica e da mortalidade pode ser feita através do
SN ou ELISA) podem ser utilizados para a con- uso de vacinas. Várias vacinas são utilizadas no
firmação do agente responsável pelo episódio. controle das infecções pelo SuHV-1, incluindo
Vários testes sorológicos podem ser utilizados, vacinas tradicionais e vacinas diferenciais. Uma
mas o teste de ELISA é mais sensível, rápido e grande limitação das vacinas tradicionais contra
econômico do que o teste de SN. Variações desse o SuHV-1 é a indução de uma resposta humoral
teste, quando usados em conjunto com vacinas indistinguível da resposta induzida em resposta
diferenciais, permitem distinguir animais vaci- à infecção natural. Como virtualmente todos os
nados daqueles infectados naturalmente. animais infectados com alfaherpesvírus tornam-
se latentemente infectados, os animais soroposi-
6.3.1.4 Controle e profilaxia tivos são considerados portadores do vírus. As
vacinas diferenciais são as mais utilizadas no
As estratégias de combate ao SuHV-1 va- mundo inteiro, por possibilitar, através de teste
riam de acordo com a situação epidemiológica sorológico específico, a diferenciação de animais
da infecção nas áreas-alvo. Em todas as situa- com anticorpos vacinais daqueles infectados com
ções, o papel dos portadores latentes se reveste o vírus de campo. As vacinas diferenciais dispo-
de importância fundamental e deve permear a níveis incluem vacinas com vírus vivo atenuado,
planificação e adoção das medidas adequadas. vírus inativado e subunidades virais.
Em geral, as estratégias de combate são baseadas A possibilidade de manipulação genética
em uma combinação de vacinação, identificação do vírus para a produção de vacinas diferenciais
e descarte de soropositivos, além de medidas ge- tem permitido um avanço notável na erradicação
rais de prevenção. do PRV em vários países. Sendo assim, a maioria
Em áreas livres que apresentam risco de dos programas de erradicação de pseudoraiva no
introdução do agente, as medidas devem ter ca- mundo utilizam vacinas com marcadores antigê-
ráter essencialmente preventivo, para reduzir as nicos que não contêm a glicoproteína gE combi-
chances de introdução do vírus. Controle de trân- nada com testes diferenciais para a identificação
sito de animais, barreiras sanitárias, quarentena dos animais infectados.
e certificação de origem e condição sorológica de A vacina contra a pseudoraiva aprovada atu-
animais e produtos introduzidos na área, além de almente pelo Ministério da Agricultura Pecuária
vigilância epidemiológica sistemática, são geral- e Abastecimento para uso no Brasil é uma vacina
mente efetivos na manutenção da condição sani- inativada deletada na glicoproteína E (também
tária de regiões com essas características. chamada GI). Dessa maneira, pode-se identificar
Em regiões que apresentem focos esporádi- e diferenciar animais infectados com amostras de
cos, o controle pode ser realizado por uma com- campo dos animais vacinados, se submetidos ao
binação entre identificação e descarte de animais teste de ELISA diferencial para a gE (ausente na
positivos (e de rebanhos infectados) e vacinação, vacina). Todavia, no Estado de Santa Catarina,
associado com medidas preventivas gerais. As onde existe um programa oficial de erradicação
granjas infectadas devem ter os animais abatidos, da doença de Aujeszky desde 2001, é permitido o
472 Capítulo 17

uso de uma vacina com vírus atenuado com de- 6.4.1.1 Epidemiologia
leção no gene da gE. Este uso é permitido apenas
para suínos destinados ao abate. A infecção pelo EHV-1 é enzoótica na maio-
Existem várias estratégias de erradicação da ria das populações eqüinas e uma parcela signifi-
pseudoraiva, como a eliminação total do rebanho, cativa dos animais de áreas endêmicas apresenta
teste e remoção com ou sem vacinação, ou vaci- anticorpos contra o agente. Entretanto, a maioria
nação por um determinado período de tempo an- dos testes sorológicos não é capaz de diferenciar
tes da remoção. Os fatores que influenciam qual anticorpos contra EHV-1 e EHV-4, devido à ex-
opção escolher basicamente são os seguintes: a tensa reatividade cruzada entre os dois vírus. As-
prevalência de animais infectados no rebanho e sim, a prevalência da infecção pelo EHV-1, com
na região, a necessidade financeira e estratégica base em testes sorológicos, somente poderá ser
de eliminar o problema o mais rápido possível determinada com o uso de testes que diferenciem
(barreiras para exportação de carnes e reprodu- a resposta imunológica dirigida a esses dois ví-
tores) e o custo do programa. rus.
Devido à capacidade do SuHV-1 de esta- O EHV-1 é transmitido de forma horizontal,
belecer infecção latente sem a manifestação de por contato direto e indireto entre animais suscep-
sinais clínicos, os suínos infectados, mas aparen- tíveis e animais que estão excretando o vírus. O
temente sadios, são considerados potenciais dis- vírus é excretado durante a infecção aguda e du-
seminadores do vírus. Assim, torna-se cada vez rante episódios de reativação da infecção latente.
mais importante que os suinocultores exijam a Geralmente, a duração e magnitude de excreção
certificação sanitária oficial, emitida pelo Minis- viral são significativamente superiores durante a
tério da Agricultura, dos rebanhos que fornecem infecção aguda. No entanto, a excreção após a re-
reprodutores para a sua criação. ativação é suficiente para permitir a transmissão
do vírus. Por isso, animais latentemente infecta-
6.4 Herpesvírus de eqüinos dos são importantes fontes de infecção e manu-
tenção da infecção nos rebanhos. Os eqüinos são
os únicos hospedeiros naturais conhecidos deste
6.4.1 Herpesvírus eqüino tipo 1
agente e animais de todas as idades podem ser
afetados.
O EHV-1 é membro da subfamília Alphaher-
pesvirinae, gênero Varicellovirus e se constitui em 6.4.1.2 Patogenia, sinais clínicos e
um importante agente de aborto em éguas. Pelo patologia
fato de ser genética e antigenicamente relacio-
nado com o herpesvírus eqüino tipo 4 (EHV-4, Em éguas que abortam, o vírus é excretado
agente da rinopneumonite eqüina), estes dois junto com os fetos abortados, fluidos e restos pla-
vírus eram antigamente considerados subtipos 1 centários, os quais podem conter altos títulos de
e 2 do EHV-1, respectivamente. Entretanto, dife- vírus. Os animais susceptíveis geralmente adqui-
renças genômicas importantes entre os dois sub- rem a infecção pelo contato da mucosa respirató-
tipos virais, demonstradas pela análise por restri- ria com esses materiais. Com isso, o vírus penetra
ção enzimática, justificaram a sua reclassificação. e se multiplica inicialmente no epitélio da cavi-
Assim, em 1988, os subtipos 1 e 2 do EHV-1 fo- dade nasal, faringe, traquéia, brônquios e bron-
ram considerados duas espécies de vírus: EHV-1 quíolos, infectando a seguir leucócitos e células
e EHV-4. endoteliais de vasos sangüíneos e linfáticos. A
O EHV-1 possui um genoma de, aproxima- infecção, então, dissemina-se para os linfonodos
damente, 145 a 150 kb e, de acordo com a orga- locais, a partir dos quais células mononucleares
nização genômica, enquadra-se no grupo D dos infectadas entram na circulação sangüínea, resul-
alfaherpesvírus. O genoma do EHV-1 contém 76 tando em uma viremia associada a células. Em fê-
genes descritos até o presente. meas prenhes, o vírus alcança o útero e atravessa
Herpesviridae 473

a barreira transplacentária, sendo transferido dos Eventualmente o EHV-1 invade o cérebro


leucócitos infectados para o endotélio vascular. dos animais infectados, provavelmente da mes-
Como conseqüência, ocorre infecção de vasos e ma forma que atinge o útero. Ao chegar ao cé-
tecido uterino em algumas situações, e de tecidos rebro, o vírus replica no endotélio de vasos, em
fetais em outras. Assim, os abortos podem ser neurônios e astrócitos, podendo induzir encefa-
causados tanto pela infecção e patologias graves lomielite. A doença neurológica devida ao EHV-1
nos tecidos do feto, causando a sua morte e ex- é pouco freqüente e pode ou não estar associada
pulsão; como pela produção de vasculite, trom- com sinais respiratórios e/ou abortos. Animais
bose, infartos dos cotilédones e dano isquêmico de todas as idades são susceptíveis, mas éguas
do endométrio, o que ocorre pela replicação do prenhes e potros em amamentação são particu-
vírus em células do endotélio de vasos uterinos. larmente afetados. O período de incubação nesses
A infecção respiratória de éguas prenhes é casos é de seis a 10 dias. Os sinais clínicos variam
freqüentemente assintomática ou acompanhada desde uma leve ataxia até o decúbito completo,
de sinais inespecíficos. Quando causa infecções com paralisia dos membros anteriores e posterio-
sintomáticas, o que é pouco freqüente, o EHV-1 res. Animais que apresentam um curso leve ge-
está associado com sinais respiratórios leves. As ralmente se recuperam completamente.
infecções respiratórias vêm acompanhadas de au- Após a infecção primária, o EHV-1 estabe-
mento do volume de linfonodos locais e descarga lece infecção latente em tecidos linfóides, leucó-
nasal serosa, que pode se tornar mucopurulenta citos periféricos e nos gânglios trigêmeos. Situa-
como conseqüência de infecções secundárias bac- ções estressantes, como o desmame, castração e
terianas. transporte, bem como o uso de corticosteróides
Os abortos podem ocorrer a partir do quar- podem induzir a reativação do vírus. Dessa for-
to mês de gestação, mas acontecem com maior ma, o vírus pode ser disseminado para o meio
freqüência a partir do sétimo mês. Às vezes, os ambiente e contaminar animais susceptíveis ou
abortos ocorrem na forma de surtos, também pode causar infecções recorrentes, resultando em
chamados de “tempestades de abortos”, quando abortos ou casos de encefalomielite.
mais de 50% dos potros podem ser perdidos. Os Recentemente foi descrita uma nova forma
fetos geralmente são abortados espontaneamen- esporádica de infecção pelo EHV-1 em eqüinos
te, junto com a placenta, e estão sempre mortos, jovens, na qual o principal alvo da infecção é o
sendo que aqueles abortados antes dos seis me- endotélio vascular dos pulmões. Nessa forma da
ses de gestação estão geralmente autolisados. As infecção, a manifestação clínica predominante é
fêmeas infectadas na gestação tardia podem parir dificuldade respiratória ou morte súbita.
potros vivos, mas que são freqüentemente anor- Os achados patológicos da infecção pelo
mais, apresentam fraqueza e dificuldade respira- EHV-1 variam de acordo com os tecidos-alvo
tória e, em geral, morrem dentro de poucos dias da replicação viral. Na infecção respiratória, os
após o nascimento. animais podem apresentar lesões herpéticas nas
É importante observar que nem todas as membranas mucosas de todos os segmentos do
amostras de EHV-1 apresentam o mesmo poten- trato respiratório superior. No epitélio respira-
cial abortigênico, e que fatores do hospedeiro, tório e centros germinativos dos linfonodos, ob-
como o estágio da gestação, também influenciam serva-se necrose e presença de corpúsculos de
no resultado da infecção. Assim, foi demonstrado inclusão.
que lesões no útero de éguas infectadas no final Nas infecções de éguas gestantes, o EHV-
da gestação podem ser mais graves do que nas 1 se multiplica no endotélio dos vasos uterinos
éguas infectadas no início da gestação. e causa lesões isquêmicas, vasculite, trombose,
A infecção perinatal nos neonatos resulta infartos dos cotilédones, levando ao aborto. Os
em uma doença fatal generalizada que cursa com abortos precoces são caracterizados pela autóli-
dificuldade respiratória e esporadicamente ence- se extensa do feto. Em abortos mais tardios, uma
falite. série de lesões macroscópicas pode ser observa-
474 Capítulo 17

da, como edema subcutâneo, edema pulmonar, formação de aglomerados semelhantes a cachos
esplenomegalia e necrose hepática. As lesões his- de uva, produção de focos de destruição celular
topatológicas são caracterizadas por uma bron- e destruição total do tapete. A identificação do
quiolite necrosante e hepatite. Na mortalidade vírus pode ser feita pelo uso de anticorpos mo-
perinatal, as principais lesões aparecem no apa- noclonais em testes de IFA ou IPX. Essas técnicas
relho respiratório, com pneumonia intersticial, têm sido também utilizadas para demonstrar a
atelectasia e edema pulmonar. São observadas presença de antígenos virais em cortes de tecidos
também necrose tímica e depleção de linfócitos congelados. Como alternativa ao isolamento vi-
tímicos e esplênicos. ral, técnicas moleculares, como a PCR, podem ser
Na doença neurológica, observam-se peque- utilizadas em amostras clínicas.
nas hemorragias focais distribuídas nas menin- A detecção de anticorpos no soro de animais
ges, parênquima cerebral e medula. As alterações com suspeita de infecção pelo EHV-1 pode ser
histológicas no sistema nervoso central incluem realizada através das técnicas de SN, fixação de
vasculite, congestão, trombose e degeneração is- complemento e ELISA.
quêmica. A presença de lesões teciduais característi-
A imunidade contra o EHV-1, após a infec- cas, como vasculite, pode ser sugestiva da infec-
ção respiratória, é curta, durando aproximada- ção pelo EHV-1.
mente três a quatro meses. A imunidade induzi-
da após o aborto é mais duradoura, e a ocorrência
repetida de abortos pela mesma fêmea é rara. 6.4.1.4 Controle e profilaxia
Os potros que mamam o colostro de éguas
soropositivas podem apresentar diferentes níveis
de anticorpos protetores. Entretanto, a presença Em propriedades livres, o controle deve ba-
de anticorpos circulantes pode não ser suficiente sear-se em medidas preventivas para impedir a
para induzir proteção contra a infecção, e a imu- introdução do vírus no rebanho. Além de mo-
nidade celular parece desempenhar um papel nitoramento sorológico periódico dos animais,
importante. quaisquer animais anexados ao plantel devem ser
testados previamente para evitar a introdução de
6.4.1.3 Diagnóstico portadores. Em propriedades que possuem ani-
mais soropositivos, além dessas medidas, deve-
O diagnóstico da infecção pelo EHV-1 pode se tentar manter os animais soropositivos sepa-
ser realizado pelo isolamento e identificação viral rados dos demais, evitar a introdução de animais
a partir de amostras clínicas. As amostras a serem sem o uso de quarentena (três semanas), separar
coletadas e enviadas ao laboratório incluem o as éguas em gestação e éguas com potros dos de-
pulmão, baço, fígado e timo fetais. Suabes nasais, mais animais, e isolar do restante do rebanho as
líquido céfalo-raquidiano, medula e sangue total éguas que abortaram. Além disso, deve-se mi-
também podem ser utilizados para o isolamento nimizar a presença de fatores estressantes, tais
viral em caso de encefalomielite (Tabela 17.4). O como desnutrição, superpopulação e transporte
EHV-1 é capaz de se multiplicar em cultivos ce- de fêmeas em estado avançado de gestação.
lulares de outras espécies, além da eqüina, o que Vacinas inativadas e vivas atenuadas têm
auxilia a diferenciá-lo do EHV-4, que só se multi- sido utilizadas na prevenção da infecção pelo
plica em células de origem eqüina. Células RK-13 EHV-1. Experimentos têm demonstrado que as
(rim de coelhos) e Vero (de primatas) são rotinei- vacinas inativadas induzem melhor proteção
ramente utilizadas para o isolamento e multipli- contra abortos do que as vacinas vivas atenuadas.
cação do EHV-1 em laboratórios de virologia. As vacinas inativadas devem ser aplicadas aos 5,
Em cultivos celulares, o EHV-1 produz ECP 7 e 9 meses de gestação. Revacinações anuais são
típico de herpesvírus: arredondamento celular, recomendadas.
Herpesviridae 475

Tabela 17.4. Manifestações clínicas e material para diagnóstico nas herpesviroses de eqüinos

Vírus Doença (condição) Material para diagnóstico

Herpesvírus eqüino tipo 1 Abortos, infecção urogenital, Tecidos fetais, suabes genitais ou nasais,
(EHV-1) doença respiratória. soro pareado.

Herpesvírus eqüino tipo 2


(EHV-2) Conjuntivite, faringite Suabes conjuntivais e faríngeos.

Herpesvírus eqüino tipo 3 Doença venérea em éguas Suabes das lesões, soro pareado.
(EHV-3) e garanhões.

Herpesvírus eqüino tipo 4 Doença respiratória aguda Suabes faríngeos, tecidos fetais,
(EHV-4) em animais jovens, abortos. soro pareado.

Fonte: adaptada de Evermann (1992).

6.4.2 Herpesvírus eqüino tipo 3 6.4.2.2 Patogenia, sinais clínicos


e patologia
O exantema coital eqüino é causado pelo
herpesvírus eqüino tipo 3 (EHV-3). Esse vírus
também está classificado na subfamília Alphaher- O período de incubação da doença varia de
pesvirinae, gênero Varicellovirus e apresenta algu- dois a cinco dias, período em que o vírus replica
ma similaridade antigênica com o EHV-1. Apesar no epitélio da mucosa genital. A replicação leva
dessas semelhanças antigênicas, não há evidên- à formação de vesículas, pápulas, pústulas e úl-
cias de reatividade sorológica cruzada deste ví- ceras na mucosa genital externa. Na ausência de
rus com o EHV-1 ou com o EHV-4 em testes de complicações, a cura total ocorre em até duas se-
SN. O exantema coital é uma enfermidade aguda, manas, mas os animais permanecem portadores
geralmente leve, caracterizada pela formação de latentes do vírus.
lesões vesiculares, pustulares e exsudativas na A replicação viral na mucosa genital resulta
mucosa genital e perineal especialmente de fême- na formação de vesículas, as quais evoluem para
as. Eventualmente os lábios e a mucosa nasal são pústulas e úlceras que se localizam na vulva, vagi-
também afetados. na, pênis e prepúcio. As úlceras normalmente ci-
catrizam em 14 a 21 dias. Eventualmente, quando
6.4.2.1 Epidemiologia as lesões se formam sobre o epitélio pigmentado,
manchas esbranquiçadas podem ser observadas
O exantema coital eqüino apresenta ampla nos locais em que as úlceras se desenvolveram.
distribuição em populações de eqüinos, ocorren- As lesões genitais primárias causadas pelo vírus
do de forma endêmica na maioria dos países que podem ser contaminadas por bactérias, originan-
possuem rebanhos numerosos. A transmissão do do infecções secundárias que, se não complica-
vírus ocorre principalmente por contato direto, das, são resolvidas em até duas semanas. Embora
durante o coito, e, possivelmente, o agente pode lesões extensas possam ser observadas, a infecção
ser transmitido também por vetores mecânicos, se apresenta freqüentemente de forma subclínica
como moscas contaminadas com secreções vagi- ou leve e, muito raramente, ocorrem sinais clíni-
nais. cos sistêmicos como febre ou anorexia.
476 Capítulo 17

Apesar de ter sido demonstrado que ino- Não existem vacinas disponíveis contra o
culações experimentais intra-uterinas levam ao EHV-3. Os animais afetados devem ser isolados,
aborto, o EHV-3 geralmente não está associado e os reprodutores devem ser removidos do servi-
com falhas reprodutivas em infecções naturais. ço até que as lesões tenham desaparecido. Trata-
Entretanto, as lesões na mucosa genital são dolo- mento tópico para prevenir a ocorrência de infec-
ridas, o que pode diminuir a libido e levar à recu- ções secundárias pode ser utilizado.
sa a monta pelos reprodutores.
A exemplo dos outros herpesvírus, todos os
animais infectados com o EHV-3 se tornam porta- 6.4.3 Herpesvírus eqüino tipo 4
dores da infecção latente, carreando o vírus pelo
restante da vida. A reativação viral pode ocorrer A rinopneumonite eqüina é causada pelo
ocasionalmente, levando à excreção do vírus e herpesvírus eqüino tipo 4 (EHV-4), que também
possível infecção de outros animais. pertence à subfamília Alphaherpesvirinae, gênero
Varicellovirus. Como mencionado anteriormente,
6.4.2.3 Diagnóstico esse vírus apresenta uma estreita relação genéti-
ca e antigênica com o herpesvírus eqüino tipo 1
O diagnóstico laboratorial da infecção pelo (EHV-1, agente do aborto viral eqüino). O EHV-
EHV-3 pode ser realizado pelo uso de testes soro- 4 é um dos principais agentes virais associados
lógicos (SN) pareados ou pelo isolamento e iden- com infecções respiratórias de eqüinos.
tificação do vírus a partir de secreções e raspados
da mucosa afetada (ver Tabela 17.4). Suabes cole-
6.4.3.1 Epidemiologia
tados de lesões genitais ou orais são submetidos
ao isolamento viral em células de origem eqüina.
Deve-se ressaltar que vários isolados do vírus são A infecção pelo EHV-4 apresenta-se dissemi-
temperatura-sensíveis, dessa forma, os cultivos nada nas populações de eqüinos, e uma grande
celulares inoculados com o material suspeito de- parcela dos animais apresenta anticorpos contra
vem ser mantidos a 33-34ºC. A identificação do o vírus. Cabe ressaltar, no entanto, que os anti-
vírus por IFA ou IPX deve ser realizada com cau- corpos contra o EHV-4 não podem ser distingui-
tela, pois o vírus compartilha alguns determinan- dos daqueles direcionados contra o EHV-1 por
tes antigênicos com o EHV-1. Assim, a identifica- testes sorológicos de rotina. Assim, não se pode
ção definitiva pode ser obtida pela neutralização saber, com certeza, qual a parcela dos animais
com soro hiperimune específico. soropositivos nestes testes foi exposta a cada um
dos agentes. Ou seja, no total de animais soropo-
sitivos contra o herpesvírus eqüino, deve-se con-
6.4.2.4 Controle e profilaxia siderar que uma parcela pode ter sido infectada
com cada um destes vírus, além de possíveis in-
Em propriedades livres, medidas preven- fecções mistas.
tivas devem ser adotadas para impedir a intro- Durante a infecção respiratória aguda, o
dução do agente. Dentre essas, recomenda-se o vírus é excretado em secreções nasais e expecto-
teste de reprodutores a serem introduzidos no rações e pode ser transmitido por contato direto
rebanho. Como forma de manter a condição sani- ou indireto. A transmissão por aerossóis pode
tária do rebanho, apenas animais soronegativos também ocorrer, mas depende da quantidade de
devem ser incorporados ao plantel. Na ocorrên- vírus excretada, das condições climáticas (tempe-
cia de casos clínicos compatíveis com o EHV-3, ratura, umidade, ventos) e da distância entre os
o diagnóstico deve diferenciá-lo do EHV-1. Uma animais. A faixa etária mais freqüentemente afe-
vez confirmada a etiologia, recomenda-se o isola- tada pela infecção é de potros de dois meses a um
mento e descanso sexual dos animais afetados. ano de idade.
Herpesviridae 477

6.4.3.2 Patogenia, sinais clínicos são apenas presuntivos, pois outros agentes po-
e patologia dem estar envolvidos no quadro clínico. Assim,
deve-se proceder a investigação etiológica com o
Após a penetração pela via respiratória, auxílio de testes laboratoriais. Em geral, pode-se
o vírus se multiplica no epitélio nasal, faringe, recorrer ao isolamento e identificação do vírus
traquéia e brônquios e, logo após, dissemina-se em amostras clínicas ou à sorologia pareada, com
para os linfonodos regionais. Durante a infecção amostras coletadas durante a fase aguda e após a
primária, os animais jovens podem desenvolver recuperação clínica. Para o isolamento, são reco-
lesões erosivas características na mucosa respi- mendadas amostras de secreções nasais (coleta-
ratória. Em infecções agudas, corpúsculos de das com suabes) ou sangue total, dando-se pre-
inclusão e necrose do epitélio respiratório e dos ferência para as secreções. O isolamento deve ser
centros germinativos dos linfonodos regionais realizado em células primárias ou de linhagem
podem ser observados. de origem eqüina. A diferenciação entre EHV-1 e
A infecção aguda é seguida do estabeleci- EHV-4 pode ser obtida pela inoculação do mate-
mento de infecção latente nos gânglios trigêmeos, rial suspeito em células eqüinas (ED, derme eqüi-
e o vírus pode ser reativado periodicamente, ge- na) e RK-13 (rim de coelhos). O EHV-1 é capaz de
ralmente em situações ligadas ao estresse. Assim, replicar e produzir ECP em ambas as linhagens,
animais soropositivos são considerados carrea- enquanto o EHV-4 somente se multiplica nas cé-
dores e potenciais disseminadores do vírus. lulas da espécie homóloga.
Embora seja uma das infecções virais res- Os testes sorológicos de eleição são a SN e o
piratórias mais comuns de eqüinos, a infecção ELISA. A SN pode ser realizada para verificar o
geralmente é acompanhada de sinais leves a mo- aumento do título de anticorpos entre a fase agu-
derados. Os sinais clínicos mais freqüentes são: da e a convalescença e, assim, confirmar a etio-
febre, anorexia, aumento de volume dos linfono- logia do evento clínico. Recentemente, um teste
dos regionais, rinite e descarga nasal. A descarga de ELISA foi desenvolvido para diferenciar entre
nasal é abundante e, inicialmente, apresenta-se anticorpos contra o EHV-1 e EHV-4.
serosa, passando a mucopurulenta com a ocor-
rência de infecções bacterianas secundárias. Os 6.4.3.4 Controle e profilaxia
sinais são observados após um período de in-
cubação de, aproximadamente, dois a dez dias. As medidas de controle são basicamente as
Em infecções não complicadas, os sinais clínicos mesmas indicadas para os outros herpesvírus de
persistem por dois a sete dias. Eventualmente eqüinos e envolvem uma mescla de medidas pre-
pode ocorrer broncopneumonia grave em ani- ventivas (para evitar a introdução do agente ou
mais mais jovens, o que pode resultar em alguma de animais infectados no rebanho) com medidas
mortalidade. Esses casos estão associados com para reduzir as chances de transmissão entre ani-
condições de superlotação, higiene inadequada e mais do rebanho. Animais adquiridos e aqueles
presença de infecções secundárias graves. Em ca- que participaram de exposições e/ou competi-
sos raros, a infecção de fêmeas em gestação pelo ções devem ser submetidos à quarentena no seu
EHV-4 pode resultar em abortos. retorno para prevenir a introdução do agente.
Existem vacinas inativadas e atenuadas con-
6.4.3.3 Diagnóstico tra o EHV-4, algumas delas bivalentes (contendo
também o EHV-1). As vacinas devem ser admi-
O diagnóstico de infecções respiratórias em nistradas inicialmente aos três ou quatro meses
eqüinos deve necessariamente considerar o EHV- de idade, seguidas de reforços periódicos, espe-
4 como um dos agentes suspeitos (ver Tabela cialmente durante a idade jovem, quando os ani-
17.4). No entanto, a sintomatologia e o histórico mais são mais susceptíveis.
478 Capítulo 17

6.5 Herpesvírus de cães infecção é fatal quando o vírus infecta neonatos


que não receberam imunidade passiva das mães.
6.5.1 Herpesvírus canino tipo 1 Nesses casos, a morte ocorre com maior freqüên-
cia em animais com idade de uma e quatro se-
O herpesvírus canino tipo 1 (CaHV-1) tam- manas. Geralmente a fêmea infecta a sua ninhada
bém é classificado na subfamília Alphaherpesvi- somente uma vez, quando, provavelmente, não
transfere imunidade humoral suficiente para os
rinae, gênero Varicellovirus. Apenas um sorotipo
seus filhotes.
viral foi identificado até o presente, e a variação
A infecção de animais de mais de duas sema-
antigênica entre isolados de campo é pequena. O
nas de idade raramente é fatal e resulta no desen-
vírus replica in vitro somente em células primá-
volvimento de infecções leves ou inaparentes.
rias ou de linhagens de origem canina. Quando
O período de incubação da doença é de 6
cultivado nessas células, o vírus produz ECP bem
a 10 dias, e a duração do período clínico pode
evidente e alguns isolados induzem a formação
ser bastante curta (um a três dias em neonatos
de sincícios. sem imunidade). Os sinais clínicos observados
são: anorexia, dispnéia, dor à palpação abdomi-
6.5.1.1 Epidemiologia nal, incoordenação motora e diarréia. Pode ha-
ver descarga nasal hemorrágica e petéquias nas
A infecção pelo CaHV-1 está distribuída mucosas. Em geral, não se observa elevação de
mundialmente em caninos domésticos e também temperatura. A mortalidade da ninhada pode ser
em canídeos de vida selvagem. A doença causa- de 100%, dependendo da idade em que ocorreu a
da pelo vírus ocorre principalmente em filhotes infecção e da presença anticorpos maternos.
de até duas semanas de idade. Estudos de soro- O vírus pode ainda atravessar a barrei-
prevalência são limitados, mas demonstram que ra transplacentária e infectar os fetos durante a
entre 30 a 100% dos cães domésticos apresentam gestação, causando abortos ou o nascimento de
anticorpos contra o CaHV-1, indicando a ampla filhotes fracos e com dificuldade no desenvolvi-
distribuição do vírus entre os cães. mento.
A transmissão do CaHV-1 ocorre pelo con- O CaHV-1 pode também causar distúrbios
tato direto ou indireto dos neonatos com secre- respiratórios em animais adultos, principalmente
ções oro-nasais e vaginais durante ou logo após quando associado com outros agentes infeccio-
o parto. A transmissão pelo coito, assim como in- sos, como a Bordetella bronchiseptica, vírus da ci-
fecções intra-uterinas, também podem ocorrer. nomose (CDV), e vírus da parainfluenza canina
Após a resolução da infecção primária, ocor- (cPI-2v).
re o estabelecimento de infecções latentes, que Em animais adultos, a infecção pode ainda
persistem por toda a vida do animal. Os animais causar infertilidade. As lesões observadas em
latentemente infectados podem periodicamente fêmeas maduras estão caracterizadas principal-
excretar vírus no ambiente durante os episódios mente por lesões vesiculares e hemorragias vagi-
de reativação. Nessas ocasiões, o vírus pode ser nais, que são observadas principalmente durante
transmitido para animais susceptíveis. o proestro. Os mesmos tipos de lesões podem ser
observados na mucosa genital masculina.
6.5.1.2 Patogenia, sinais clínicos Nos neonatos doentes, as lesões observadas
e patologia na necropsia afetam principalmente os rins, os
quais se apresentam hemorrágicos e necróticos.
O vírus excretado pelas fêmeas durante ou Corpúsculos de inclusão intranucleares podem
logo após o parto contamina os neonatos, nos ser observados em áreas necróticas. Além dos
quais o vírus replica na mucosa nasal, tonsilas rins, este tipo de lesão pode ocorrer nos pulmões,
e faringe. Nestes animais, pode ocorrer viremia fígado, baço e intestino. Pode ocorrer aumento
associada a células (monócitos), seguida de repli- de volume de linfonodos, e necrose de placenta
cação viral em órgãos como o fígado, rins, tecidos é freqüentemente observada em fêmeas prenhes
linfáticos, pulmões e sistema nervoso central. A infectadas.
Herpesviridae 479

Os cães infectados permanecem latentemen- poxvírus aviários como vetores, têm sido testa-
te infectados. A infecção latente se localiza nos das, porém sem resultados promissores.
gânglios trigêmeos ou lombo-sacrais. A reativa-
ção viral nas infecções latentes pode ser induzi-
da por situações estressantes, como treinamento,
6.6 Herpesvírus de felinos
transporte, introdução de novos cães na proprie-
dade ou pelo uso experimental de medicamentos 6.6.1 Herpesvírus felino tipo 1
imunodepressores como os glicocorticóides.
O herpesvírus felino (FeHV-1) é um alfaher-
6.5.1.3 Diagnóstico pesvírus que infecta o trato respiratório superior
de gatos domésticos, produzindo uma doença co-
A presença de lesões características, como
nhecida como rinotraqueíte viral felina (FVR). As
petéquias, na superfície dos rins e edema pulmo-
doenças do trato respiratório dos felinos são fre-
nar, juntamente com a observação de corpúsculos
qüentes em abrigos e gatis, e seguem ocorrendo
de inclusão intracitoplasmáticos, são indicativos
mesmo com o uso disseminado de vacinas contra
da infecção pelo CaHV-1.
os principais agentes envolvidos: o FeHV-1, o
O diagnóstico definitivo da infecção é feito
calicivírus felino (FCV) e bactérias como a Chla-
pela demonstração de antígenos virais em cortes
mydophila felis e a Bordetella bronchiseptica. Alguns
de tecido através da técnica de IFA ou pelo iso-
estudos demonstram que 80 a 90% dos casos de
lamento viral. O isolamento pode ser realizado
doença do trato respiratório superior dos felinos
em células de origem canina, a partir de amostras
são causados pelo FeHV-1 e/ou pelo FCV.
de tecidos como pulmões e rins de animais afe-
tados.
6.6.1.1 Epidemiologia
6.5.1.4 Controle e profilaxia
A infecção pelo FHV-1 é distribuída mun-
Medidas para reduzir o estresse e minimizar dialmente. Anticorpos contra o agente podem ser
o contato de fêmeas prenhes com outros animais detectados em mais de 70% dos gatos de criações
são indicadas para a prevenção da ocorrência da ou abrigos. Nos gatos domésticos criados com
doença. Os filhotes recém-nascidos devem ser pouco contato com outros animais, a prevalência
mantidos em locais abrigados e sob temperatura é de aproximadamente 50%. No Brasil, a ocor-
adequada, evitando-se a exposição a baixas tem- rência da infecção e doença tem sido relatada em
peraturas. várias regiões. Sorologia positiva também já foi
Uma vacina de subunidades está disponível demonstrada entre felinos selvagens criados em
na Europa desde 2003. A vacina é especialmente cativeiro, que também são susceptíveis ao vírus.
indicada para fêmeas durante a gestação e con- A transmissão do agente ocorre principal-
siste de glicoproteínas virais purificadas associa- mente pelo contato direto ou indireto com descar-
das com adjuvante oleoso. Essa vacina demons- gas nasais. O vírus pode ser transmitido também
trou conferir boa proteção aos neonatos quando por aerossóis e, com menor freqüência, por fômi-
as mães são vacinadas duas vezes durante a ges- tes contaminados. A mortalidade é maior entre
tação. As cadelas devem ser vacinadas durante o filhotes com menos de seis meses de idade. Gatos
cio ou em fases iniciais da gestação e revacinadas que sobrevivem à infecção aguda desenvolvem a
uma a duas semanas antes do parto. infecção latente e a reativação da infecção, permi-
Uma vacina atenuada, cold adapted (vírus tindo a transmissão do vírus a outros animais. Os
que replica sob temperaturas abaixo da tempe- gatos portadores da infecção latente são os reser-
ratura corporal), foi recentemente desenvolvida, vatórios do FeHV-1 e constituem a principal fon-
mas ainda não está disponível no comércio. Ou- te de disseminação do agente nos gatis e abrigos
tras abordagens vacinais, como a utilização de de animais.
480 Capítulo 17

6.6.1.2 Patogenia, sinais clínicos semelhantes a cachos de uva, focos de destrui-


e patologia ção e, finalmente, destruição do tapete celular.
O calicivírus felino (FCV) também produz efeito
Após a penetração pela via nasal, o vírus citopático em cultivos celulares e, por estar fre-
replica nas células epiteliais do trato respiratório qüentemente associado com doença respiratória,
superior e atinge a conjuntiva ocular. Aparente- deve ser distinguido do FeHV. Para isso, podem-
mente não ocorre viremia e a infecção parece ser se utilizar anticorpos específicos para um dos
restrita ao trato respiratório superior. O período agentes nas técnicas de IFA ou IPX, ou realizar-se
de incubação é de 24 a 48 horas, e os sinais clínicos neutralização viral com anti-soro específico.
podem ser mais facilmente observados após três A detecção de antígenos virais em tecidos
a cinco dias da infecção, permanecendo por duas por IFA e a detecção de anticorpos por sorologia
a três semanas. Inicialmente observa-se descarga pareada também podem ser úteis no diagnóstico
nasal serosa, que pode progredir para mucopu- laboratorial.
rulenta pela colonização bacteriana da mucosa.
Outros sinais clínicos incluem descarga ocular, 6.6.1.4 Controle e profilaxia
conjuntivite, ceratite, ulceração da córnea, hiper-
salivação, úlceras orais, desidratação, tosse, disp- A FVR é um problema sanitário importan-
néia e anorexia. Infecções bacterianas secundárias te em abrigos, gatis e casas com criação múltipla
podem produzir broncopneumonia e septicemia, de gatos, onde o controle nem sempre é obtido
principalmente em filhotes, podendo resultar na somente com a utilização de vacinas. Algumas
morte. Fêmeas prenhes podem, ocasionalmente, medidas recomendadas incluem o tratamento in-
abortar devido à toxemia e hipertermia. dividual de animais infectados, a implementação
As lesões macroscópicas incluem necrose de um protocolo de vacinação maciça e o isola-
dos epitélios nasal, faríngeo, da epiglote, laringe, mento de ninhadas de filhotes susceptíveis. Dro-
traquéia e tonsilas. Broncopneumonia, pneumo- gas antivirais utilizadas contra o vírus do herpes
nite intersticial, necrose focal, acúmulo de células simplex humano (HSV), como o Aciclovir®, não
inflamatórias e exsudato fibrinoso nos alvéolos são efetivas contra o FeHV-1. Portanto, o trata-
também podem ser observados. Microscopica- mento da FVR é somente de suporte.
mente, podem ser observadas inclusões intranu- Vacinas inativadas e uma vacina atenuada
cleares nas células epiteliais. bivalente contra o FeHV-1 e o FCV estão dispo-
níveis comercialmente. Essas vacinas induzem
6.6.1.3 Diagnóstico uma resposta imunológica que não impede a
infecção, porém reduz a severidade da doença.
O diagnóstico presuntivo pode ser estabe- Recomenda-se a primovacinação de filhotes com
lecido pelo histórico e pelos sinais clínicos. No nove semanas de idade e uma segunda aplicação
entanto, deve-se buscar confirmação laboratorial, três a quatro semanas após. Reforços a cada três
pois outros agentes causam doença respiratória anos são recomendados. As vacinas podem ser
em felinos. aplicadas pela via parenteral ou intranasal. A via
O isolamento do vírus pode ser realizado intranasal apresenta vantagens como a estimula-
pela inoculação de secreções nasais, conjuntivais ção rápida de proteção, ausência de interferência
e faríngeas ou, ainda, de macerados de mucosa da imunidade passiva e estímulo de imunidade
faríngea, ocular ou nasal, em células de linhagem local (IgA) no principal sítio de infecção.
ou primárias de origem felina. O FeHV-1 produz Uma vacina experimental, contendo um
efeito citopático característico dos herpesvírus, mutante deletado do FeHV-1, no qual se inseriu
com arredondamento e desprendimento celular o gene da proteína de capsídeo do FCV, está em
do tapete, formação de aglomerados de células fase de desenvolvimento e testes.
Herpesviridae 481

6.7 Herpesvírus de aves 6.7.1.1 Epidemiologia

A produção de aves atualmente é desenvol-


6.7.1 Vírus da doença de Marek vida de forma bastante intensiva, o que favorece
a rápida disseminação de agentes infecciosos em
A doença de Marek (MD) é uma doença uma criação. A MD é altamente contagiosa, e a
linfoproliferativa altamente infecciosa que afeta infecção ocorre por inalação de poeira contami-
galinhas. As primeiras observações relacionadas nada com o vírus presente nos criatórios. O MDV
com esta enfermidade foram feitas pelo médico pode persistir por longos períodos no meio am-
veterinário József Marek, em 1907, e relataram biente e é tão ubíquo que, virtualmente, todas as
o desenvolvimento de polineurite e paralisia, aves domésticas do mundo acabam entrando em
contato com o agente em alguma fase de suas vi-
resultantes de infiltração linfóide em nervos pe-
das. A infecção nem sempre induz manifestações
riféricos. Posteriormente observou-se que a po-
clínicas, o que dificulta a determinação da pre-
lineurite e os linfomas viscerais, ocasionalmente
valência e incidência da infecção. A enfermida-
observados nas aves, também estavam associados
de ocorre comumente em galinhas, mas também
com a mesma doença. O agente etiológico dessa
têm sido descrita em perus, codornas e faisões.
enfermidade foi identificado nos anos 1960.
A partir dos anos 1960, a despeito do uso
O agente da MD (Marek’s disease vírus, MDV),
de vacinas, surtos de MD, causados por amos-
é um membro da subfamília Alphaherpesvirinae e
tras cada vez mais virulentas, vêm ocorrendo no
pertence ao gênero Mardivirus. O vírus foi inicial- mundo todo. No Brasil, os frangos criados indus-
mente classificado como um Gammaherpesvirus trialmente recebem uma vacina contra MD com
pela sua habilidade de produzir tumores linfói- a cepa HVT no primeiro dia de vida. As aves de
des em galinhas. Posteriormente foi reclassifica- ciclo longo, como poedeiras, matrizes e avós, re-
do como um Alphaherpesvirus com base em sua cebem uma combinação de vacinas dos sorotipos
estrutura, genoma e rápida replicação em cultivo 1 (CVI 988/Rispens) e 3 (HVT). A vacinação re-
celular. Três sorotipos do MDV são conhecidos duz, mas não impede a infecção nem a excreção
com base em análise de precipitação em gel de viral, o que favorece a seleção de cepas mutantes
ágar, SN e PCR. Os vírus do sorotipo 1 (MDV-1) e, conseqüentemente, problemas para o controle
incluem os MDVs oncogênicos e seus variantes desta enfermidade. O MDV continua sendo um
atenuados em cultivo celular, entre estes algu- importante patógeno na produção avícola e tem
mas cepas vacinais. Dentro do sorotipo 2 (MDV- sido intensivamente estudado por pesquisadores
2), encontram-se os vírus não-oncogênicos, que no mundo, porém pouco estudado no Brasil.
ocorrem naturalmente em galinhas; e, no soroti-
po 3, são agrupados os vírus não-oncogênicos de 6.7.1.2 Patogenia, sinais clínicos
perus (turkey herpesviruses, HVT). e patologia
As amostras de campo do MDV-1 são agru-
padas em quatro patótipos com base na sua ca- A patogenia da MD é complexa e ainda
pacidade de causar tumores em aves. As amos- não totalmente compreendida. A primeira fase
tras do MDV-1 podem ser consideradas como: da infecção inicia com a inalação do vírus pelo
a) cepas baixa patogenicidade (mild, mMDV), b) hospedeiro. Inicialmente, o vírus replica nas cé-
cepas de baixa virulência (virulent, vMDV), c) ce- lulas epiteliais do trato respiratório e, subseqüen-
pas de alta virulência (very virulent, vvMDV) e d) temente, infecta macrófagos locais e/ou célu-
cepas de altíssima virulência (very virulent plus, las dendríticas. A partir dos pulmões, o vírus é
vv+MDV). transportado sistemicamente para o baço, timo,
482 Capítulo 17

e bursa de Fabricius (BF), onde pode ser detecta- sim, os sinais clínicos muito graves causados pela
do já 24 horas pós-infecção (pi). A partir desses forma aguda, relacionada com amostras vv+ têm
órgãos, o vírus infecta os linfócitos B e T e atinge sido cada vez mais comuns. Nos últimos 20 anos,
um pico de replicação entre os dias 3 e 7 pi. Essas os sinais neurológicos são dominantes e apare-
infecções são citolíticas e causam atrofia da BF e cem na forma de paralisia transitória na maioria
timo, resultando em grave imunossupressão. das linhagens de galinhas. As amostras virais vv+
Após a fase citolítica inicial, a infecção pas- podem causar uma morbidade de mais de 90%
sa à fase latente em linfócitos T a partir dos dias e mortalidade devido a danos cerebrais graves.
6 e 8 pi. Durante esse período, o vírus pode ser Nesses casos, a polineurite periférica e os linfo-
transportado por linfócitos até a pele, onde uma mas podem estar ausentes.
infecção produtiva ocorre nos folículos das pe- As lesões observadas na doença resultam,
nas. O MDV é um vírus estritamente associado em grande parte, da infiltração e proliferação dos
com células, e partículas virais livres somente são linfócitos T em tecidos, podendo estar associadas
produzidas pela replicação nos folículos das pe- com leucemia, e também são conseqüências da
nas. A partir dessa replicação, o agente é excreta- resposta inflamatória e lise de células não-linfói-
do para o ambiente, geralmente entre os dias 10 des pela replicação viral.
e 14 pi. As lesões encontradas em vísceras e gôna-
A terceira fase da infecção consiste em uma das correspondem a áreas de lesões linfomato-
infecção citolítica secundária que envolve tam- sas, em geral pequenas e difusas, e ocorrem es-
bém o sistema nervoso. Nessa fase, lesões infla- pecialmente em aves que desenvolvem a forma
matórias importantes podem ser detectadas no aguda da infecção. Esses órgãos se apresentam
cérebro e nos nervos de galinhas adultas, por com volume aumentado e coloração acinzentada
volta dos dias 9 a 15 pi. Uma quarta fase da in- difusa. As lesões linfomatosas não são facilmen-
fecção é caracterizada pelo desenvolvimento de te distinguíveis das lesões induzidas pelo vírus
linfomas malignos de linfócitos T que se formam da leucose aviária. Lesões oculares relacionadas
a partir do dia 12. Essa divisão da patogenia em com infiltração linfocitária também podem ocor-
quatro fases pode não ser tão clara quando há rer, de forma que há opacidade de córnea. Pele,
infecção pelas amostras vv+ e quando a latência músculo e pró-ventrículo podem ser também afe-
não é estabelecida. tados pelos linfomas. A Tabela 17.5 apresenta as
Linfócitos T, transformados pelo vírus e li- semelhanças e diferenças epidemiológicas e clíni-
nhagens celulares derivadas de linfomas primá- co-patológicas entre a MD e a leucose aviária.
rios, mantêm os genomas virais integrados ao
DNA celular, um aspecto único entre os herpes-
vírus. Nas infecções latentes com os demais her-
6.7.1.3 Diagnóstico
pesvírus, o genoma latente permanece em uma
forma epissomal no núcleo das células hospedei- A disponibilidade de AcMs que reagem so-
ras. O genoma do MDV contém vários oncoge- mente contra o MDV (e não contra o HVT) é um
nes, destacando-se o que codifica a proteína Meq, pré-requisito para a identificação de tecidos ou
membro da família de oncogenes Jun/Fos. A com- células infectadas com este vírus. Esses AcMs po-
posição genética do hospedeiro influi decisiva- dem ser utilizados em técnicas de IFA ou IPX. Em
mente no resultado e gravidade da infecção pelo tecidos infectados com o MDV, independente da
MDV. Proteínas do complexo maior de histocom- linhagem da ave ou virulência da amostra, quan-
patibilidade (MHC) são fortemente associadas à tidades detectáveis de antígenos virais podem ser
resistência ou susceptibilidade genética ao vírus. identificadas na BF, timo ou baço, a partir do dia
A polineurite crônica, paralisia transitória 3 pi. Os mesmos testes podem ser utilizados para
e os linfomas viscerais, observados inicialmente identificar antígenos do MDV em cultivos celula-
como sinais e lesões característicos da MD, estão res inoculados com material suspeito, quando o
aos poucos ocorrendo com menor freqüência. As- ECP é visível.
Herpesviridae 483

Tabela 17.5. Principais diferenças clínicas e patológicas entre a doença de Marek e a leucose aviária.

Característica Doença de Marek Leucose aviária

Idade afetada 2 - 7 meses 4 - 10 meses (+ de 16 semanas)

Paralisias Comuns Ausentes

Lesões macroscópicas
Fígado Comum Comum
Nervos Comum Ausente
Pele Comum Raro
Bursa (tumores) Raro Comum
Bursa (atrofia) Comum Raro
Intestinos Raro Comum
Coração Comum Raro
Lesões microscópicas
Células pleomórficas Sim Não
Céls. blásticas
uniformes Não Sim
Infiltrado na íris Sim Não
Tumor na bursa Interfolicular Intrafolicular

Como o MDV é estritamente associado a positivas a partir do primeiro dia pós-infecção.


células, e partículas virais livres são produzidas Em estágios mais avançados da enfermidade,
somente nos folículos das penas a partir do dia quando os folículos das penas estão produzindo
12 pi, o isolamento viral nas fases mais iniciais da partículas virais, as pontas das penas se consti-
infecção envolve a passagem cuidadosa de célu- tuem em uma fonte adequada para extração de
las intactas em células de rim de galinha (CKC) DNA viral.
ou de fibroblastos de embrião de galinhas (CEF). A amplificação de seqüências do MDV por
O vírus também pode ser isolado da capa flogís- PCR é um método direto de detecção e é tão sen-
tica ou de macerados de baço pela inoculação em sível quanto o isolamento em co-cultivo de capa
co-cultivos celulares ou de ovos embrionados. flogística em CEFs. Entretanto, PCR é extrema-
A inoculação pode ser feita na membrana cório- mente simples de executar, e os resultados po-
alantóide ou no saco da gema, e os embriões de- dem ser obtidos em poucas horas. Ao contrário
vem ter aproximadamente quatro dias. A presen- do isolamento, que depende da presença de vírus
ça do vírus pode ser demonstrada pela detecção viáveis, as amostras para a análise do PCR não
de antígenos por IFA. precisam ser congeladas ou protegidas de inati-
Um ensaio imunoenzimático (ELISA) para a vação. Finalmente, a técnica de PCR representa o
detecção de anticorpos antivirais, desenvolvido único teste rápido e sensível para detectar a pre-
nos anos de 1980, foi mais sensível do que tes- sença de MDV atenuado e patogênico nas mes-
tes de IFI utilizados anteriormente. Este tipo de mas amostras.
ELISA pode ainda ser útil também para avaliar a
resposta humoral de animais vacinados. A infec- 6.7.1.4 Controle e profilaxia
ção com as amostras mais virulentas induz uma
resposta de anticorpos pobre e temporária, o que, Após a identificação do MDV como o agente
provavelmente, ocorre em conseqüência da lise etiológico da MD, os vírus MDV-2 e HVT (que
de linfócitos B que se desenvolve durante a in- não causam doença em galinhas) começaram a
fecção. ser utilizados em vacinas vivas heterólogas con-
O diagnóstico da MD também pode ser re- tra a MD. A partir de então, a incidência da MD
alizado pela técnica de PCR, utilizando DNA ex- reduziu-se em 99% e este foi o primeiro exemplo
traído de linfócitos. Amostras clínicas podem ser de uma vacina eficaz contra um vírus que induz
484 Capítulo 17

tumores. Entretanto, com o surgimento de amos- 6.7.2.1 Epidemiologia


tras mais virulentas do MDV, tornou-se comum
o uso combinado de vacinas mistas contendo o Os principais hospedeiros naturais do ILTV
MDV-2 e HVT. Quando algumas amostras ain- são as galinhas, embora a doença já tenha sido
da mais virulentas surgiram, a primeira amostra observada também em faisões e perus. Aves de
apatogênica de MDV (CVI 988-Rispens) começou todas as idades podem ser infectadas, mas os si-
a ser utilizada em uma vacina viva modificada. nais clínicos mais característicos são observados
Atualmente esta amostra vem sendo amplamente em aves adultas.
utilizada na confecção de vacinas contra a MD. O ILTV apresenta uma distribuição mun-
Uma das principais restrições das vacinas dial, tendo sido identificado em todos os países
disponíveis contra a MD é a sua incapacidade que têm avicultura comercial desenvolvida. No
de induzir imunidade esterilizante. Conseqüen- Rio Grande do Sul, o primeiro surto de LT em ga-
temente galinhas previamente vacinadas podem linhas foi descrito em 1974. O primeiro surto da
ser infectadas e disseminar o vírus de campo a doença em perus, no Brasil, foi relatado em 2004.
outros animais. Esta é provavelmente a fonte de O vírus é transmitido de forma horizontal,
amostras de MDV virulento que circula entre e a transmissão ocorre quando as aves infectadas
populações de galinhas e pode contribuir para o excretam o vírus pelas vias ocular e respiratória.
surgimento de amostras cada vez mais virulen- Aerossóis e secreções contaminadas entram em
tas. contato direto ou indireto com aves susceptíveis,
Partículas virais do MDV podem se man- possibilitando a infecção de novos hospedeiros e
ter viáveis por longos períodos na poeira dos a disseminação do vírus no lote.
galpões, mas são sensíveis ao tratamento com
detergentes, etanol e isopropanol a 70%. O uso 6.7.2.2 Patogenia, sinais clínicos
de práticas de higiene do ambiente e das pesso- e patologia
as que têm acesso às aves pode também limitar
a introdução e disseminação do agente nos cria- O período de incubação é de seis a doze
tórios. Além disso, o uso de quarentena e teste dias, e o resultado da infecção primária depen-
de aves de reposição podem também diminuir de do grau de patogenicidade da amostra viral,
a pressão de infecção e prevenir a ocorrência de da idade e do estado imunológico das aves. Du-
novos surtos. rante a fase aguda da infecção, as aves infectadas
excretam o vírus principalmente pelas secreções
6.7.2 Vírus da laringotraqueíte infecciosa respiratórias. Após penetrar pelas vias aéreas, o
vírus replica inicialmente no epitélio respiratório.
A laringotraqueíte infecciosa das aves (LT) A partir daí, penetra em terminações nervosas e é
é uma doença respiratória aguda que afeta ga- transportado por via nervosa aos gânglios trigê-
linhas, faisões e perus. O agente etiológico da meos, onde estabelece infecção latente. Aparente-
LT é o herpesvírus de galídeos tipo 1 (GaHV-1, mente a infecção latente pode se estabelecer tam-
chamado também de ILTV), pertencente à subfa- bém no epitélio respiratório e, até o momento,
mília Alphaherpesvirinae. A infecção pelo ILTV foi não foi descrita a ocorrência de viremia durante
descrita, pela primeira vez, em 1926, nos Estados a infecção pelo ILTV. Reativações esporádicas do
Unidos. A partir de então, a doença foi identifica- vírus latente causam infecções inaparentes, mas
da em vários países onde existem criações comer- produtivas, resultando em disseminação do ví-
ciais importantes de aves. A LT é uma infecção de rus a aves susceptíveis.
importância econômica que pode causar grandes Os efeitos da infecção nos lotes de aves va-
prejuízos econômicos, principalmente em cria- riam de acordo com a amostra envolvida no sur-
ções de galinhas. to. Amostras de alta virulência provocam uma
Herpesviridae 485

forma bastante grave da infecção, com altas ta- membrana corioalantóide de ovos com embriões
xas de morbidade e mortalidade. Por outro lado, de 9 a 11 dias de idade. Por volta do quarto dia
amostras de baixa virulência podem causar uma pós-inoculação, observa-se o espessamento da
forma subclínica da infecção. Nos surtos mais membrana corioalantóide e a formação de placas
agudos, a morbidade pode atingir de 90 a 100%, necróticas. O vírus também pode ser isolado pela
e a mortalidade pode chegar a 70%. Nestes casos, inoculação dessas amostras em células primárias
as aves podem morrer em até dois a três dias pós- de rim ou de fígado de pintos. O ECP observado
infecção. Mais freqüentemente, a mortalidade é inclui a formação de sincícios, corpúsculos de in-
muito baixa (até 2%). clusão intranucleares e lise das células infectadas.
A infecção afeta principalmente a traquéia e A identificação do vírus a partir de amostras clí-
laringe e é caracterizada por tosse e dispnéia. Em nicas ou do agente recentemente isolado pode ser
casos hiperagudos (raros), a tosse pode não ser realizada pelas técnicas de IFA, PCR ou ME.
observada, ocorrendo somente dispnéia, cianose A detecção de anticorpos pode ser realizada
e morte súbita. Os sinais clínicos mais observa- pelas técnicas de IFI, SN, ELISA ou IDGA. Ani-
dos na fase aguda são: descarga nasal e traqueal mais sorologicamente positivos, que não foram
e tosse. Pode ser observado ainda: conjuntivite, vacinados, são considerados portadores latentes
edema periorbital e ceratite; e as aves podem eli- e podem disseminar o vírus para animais suscep-
minar uma secreção traqueal mucosa e hemorrá- tíveis.
gica. As aves tendem a se recuperar em 7 a 10
dias pós-infecção. 6.7.2.4 Controle e profilaxia
As lesões associadas com infecção pelo ILTV
se localizam predominantemente nas vias aéreas O controle da infecção pelo ILTV é realizado
superiores. Freqüentemente observa-se conges- pelo emprego de várias medidas que visam evi-
tão acentuada da mucosa da laringe e traquéia, tar o contato das aves com o agente. Assim, ga-
que, em fases mais avançadas, podem se apre- linhas de diferentes idades e origens não devem
sentar hemorrágicas e com exsudato caseoso. ser misturadas no mesmo lote; deve-se fazer uso
Corpúsculos de inclusão intranucleares podem de medidas de higiene e desinfecção adequadas
ser observados nas células epiteliais da traquéia. dos galpões; controle de animais que entram em
A infecção com amostras menos virulentas pode contato com as aves – como roedores – além do
resultar em lesões bem mais leves, em que ape- uso sistemático de vacinação.
nas um edema facial, sinusite e conjuntivite são Vacinas vivas modificadas têm sido utiliza-
observados. das na prevenção da infecção durante décadas
A infecção pelo ILTV induz a produção de em vários países. As amostras vacinais são ate-
anticorpos neutralizantes, mas os títulos de an- nuadas pela passagem em ovos embrionados ou
ticorpos não apresentam correlação direta com cultivos celulares e podem ser aplicadas na água
proteção. Dessa forma, mesmo animais soroposi- de bebida ou por aerossóis. Muitas dessas vaci-
tivos ao ILTV são susceptíveis à doença e podem nas são eficazes, mas podem apresentar virulên-
desenvolver sinais clínicos quando infectados cia residual, que pode aumentar à medida que o
com o vírus de campo. Além disso, foi demons- vírus vacinal circula na população vacinada. Sen-
trado que aves bursectomizadas não produzem do assim, vários surtos de LT têm sido atribuídos
anticorpos anti-ILTV, mas podem ficar protegi- a amostras vacinais que recuperaram a virulência
das contra uma reinfecção, indicando a impor- e começaram a causar infecções graves em aves
tância da imunidade celular. susceptíveis.

6.7.2.3 Diagnóstico 7 Bibliografia consultada

O ILTV pode ser isolado a partir de amos- ACKERMANN, M.; PETERHANS, E.; WYLER, R. DNA of
tras clínicas (traquéia e pulmões) inoculadas na bovine herpesvirus type 1 in the trigeminal ganglia of latently
486 Capítulo 17

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POXVIRIDAE
Cláudio Wageck Canal 18
1 Introdução 491

2 Classificação 491

3 Estrutura dos vírions 493

3.1 O genoma 493

4 Replicação 495

5 Poxvírus de interesse veterinário 497

5.1 Gênero Orthopoxvirus 497


5.1.1 Vírus da vaccinia 497
5.1.2 Vírus da varíola dos bubalinos 498
5.1.3 Vírus da varíola bovina 498
5.1.4 Vírus da varíola dos camelos 498
5.1.5 Vírus da varíola dos macacos 499
5.1.6 Vírus da ectromelia 499
5.1.7 Vírus Uasin Gishu 499

5.2 Gênero Capripoxvirus 500


5.2.1 Vírus da varíola ovina e caprina 500
5.2.2 Vírus da doença da pele nodulosa 501

5.3 Gênero Suipoxvirus 502


5.3.1 Vírus da varíola suína 502

5.4 Gênero Molluscipoxvirus 503


5.4.1 Vírus do Molluscum contagiosum 503

5.5 Gênero Yatapoxvirus 503


5.5.1 Vírus yabapox e tanapox 503

5.6 Gênero Avipoxvirus 504


5.6.1 Vírus da bouba aviária 504
5.7 Gênero Leporipoxvirus 505
5.7.1 Vírus do mixoma dos coelhos 505

5.8 Gênero Parapoxvirus 506


5.8.1 Vírus do ectima contagioso 506
5.8.2 Vírus da pseudovaríola bovina 508
5.8.3 Vírus da estomatite papular bovina 509

6 Os poxvírus como vetores de expressão 509

7 Bibliografia consultada 511


1 Introdução fita dupla com 130 a 300 kb; d) realizam a sua
replicação inteiramente no citoplasma.
A gama de hospedeiros das diferentes espé-
Os membros da família Poxviridae infectam cies de poxvírus varia de extremamente restrita a
diversas espécies de invertebrados e vertebra- excessivamente ampla. A severidade da infecção
dos, incluindo o homem. Os poxvírus foram os também varia muito de uma espécie para outra,
primeiros vírus estudados intensivamente em podendo resultar desde infecção autolimitante
laboratório, pois podem ser visualizados sob mi- local até doença sistêmica devastadora, como no
croscopia ótica. Também foram os primeiros ví- caso da varíola. Não obstante, a doença típica dos
rus a serem multiplicados e titulados em cultivo poxvírus acomete a pele, embora sinais clínicos
celular, purificados fisicamente e caracterizados generalizados possam estar presentes. A doen-
quimicamente. ça nas aves é predominantemente proliferativa,
A história da imunologia e a vacinologia enquanto nos mamíferos predominam as lesões
está fortemente ligada a esses vírus, pois as ob- vesiculares e pustulares.
servações iniciais de proteção, associada com
exposição deliberada a agentes infecciosos se de-
vem a Edward Jenner, nos clássicos estudos com 2 Classificação
os vírus da varíola bovina e humana. Além disso,
o agente da varíola também foi o primeiro vírus Os membros da Poxviridae são subdividi-
erradicado da população humana, em 1979, após dos em duas subfamílias: Entomopoxvirinae, que
décadas de programas maciços de vacinação em contém vírus que infectam insetos; e Chordopoxvi-
todo o mundo. rinae, cujos membros infectam os vertebrados e
Apesar da erradicação da varíola, conside- serão os objetos deste capítulo. A subfamília Chor-
rada uma das principais moléstias infecciosas dopoxvirinae é formada por oito gêneros, denomi-
humanas em todos os tempos, o interesse nos nados Orthopoxvirus, Capripoxvirus, Suipoxvirus,
poxvírus tem se renovado nos últimos anos. Par- Leporipoxvirus, Avipoxvirus, Molluscipoxvirus, Ya-
te desse interesse se deve à possibilidade de se tapoxvirus e Parapoxvirus. O protótipo da família
utilizar o genoma dos poxvírus para clonar e ex- é o vírus da vaccinia (VV), cujos hospedeiros na-
pressar genes heterólogos para uso em vacinas, turais e origem permanecem controversos. Esse
como foi feito na vacina utilizada para o controle vírus foi isolado inicialmente de búfalos, mas pa-
da raiva silvestre em canídeos na Europa. Outra rece ter sido transmitido para esses animais por
fonte recente de interesse nesses vírus advém da humanos. A Tabela 18.1 apresenta a classificação
temeridade do seu uso potencial em bioterroris- das principais espécies de poxvírus que infectam
mo. Os poxvírus também são muito estudados os animais domésticos e a sua distribuição geo-
como exemplos de interações complexas entre os gráfica. Os membros de um gênero são relaciona-
vírus e seus hospedeiros, pois o seu genoma co- dos genética e antigenicamente entre si, além de
difica uma série de proteínas que interagem com possuírem a morfologia das partículas e a gama
os mecanismos imunológicos desencadeados em de hospedeiros similares. No entanto, também
resposta à infecção. existe alguma reatividade sorológica cruzada en-
As principais propriedades dos poxvírus tre vírus de diferentes gêneros, apesar da identi-
são: a) possuem vírions grandes e complexos; b) dade genética ser menor do que 75%. A Figura
os vírions contêm diversas enzimas para a síntese 18.1 apresenta uma árvore filogenética para ilus-
e modificação de RNAs mensageiros (mRNA); c) trar a relação genética entre os gêneros e espécies
o genoma consiste de uma molécula de DNA de dessa família.
492 Capítulo 18

Tabela 18.1. Principais poxvírus que infectam os animais domésticos e o homem, seus hospedeiros e
distribuição geográfica.
Poxviridae 493

96 Vírus da varíola dos camelos


100 Orthopoxvirus
Vírus da varíola humana

100 Vírus da vaccinia


Vírus yabapox Yatapoxvirus
99
Vírus da varíola ovina Capripoxvirus
75 Vírus do mixoma Leporipoxvirus
100
53 Vírus da varíola suína Suipoxvirus
Vírus da estomatite papular bovina
Parapoxvirus
100 Vírus do ectima contagioso

100 Vírus da varíola dos canários


Avipoxvirus
Vírus da varíola aviária
Vírus do Molluscum contagiosum Molluscipoxvirus

0,1

Fonte: André Felipe Streck

Figura 18.1. Árvore filogenética construída a partir da análise do gene que codifica a DNA polimerase de espécies dos
diferentes gêneros da família Poxviridae. A análise foi realizada pelo método de Neighbor-Joining (10.000 repetições)
e utilizada a matriz de substituição Dayhoff Matrix Model (PAM). O comprimento dos ramos é dado pelo número de
substituições por sítio.

3 Estrutura dos vírions nica de dois poxvírus diferentes e uma ilustração


esquemática dos respectivos vírions.
Os vírions dos membros da família Poxviridae
são grandes e complexos e contêm as enzimas ne- 3.1 O genoma
cessárias para a síntese de mRNA. A arquitetura
do nucleocapsídeo é complexa, já que não possui O genoma dos poxvírus consiste de uma
a simetria isomérica icosaédrica ou helicoidal en- molécula de DNA linear de fita dupla com 130
contrados na maioria dos outros vírus. Os vírions kb (parapoxvírus) a 300 kb (avipoxvírus). O ge-
possuem a forma de um tijolo arredondado, com noma contém seqüências repetidas invertidas
dimensões que variam de 170 a 260 nm de largu- do tipo hairpin (ITRs) de 0,1 a 12,4 kb nas extre-
ra/espessura por 300 a 450 nm de extensão. Os midades e uma região única longa que ocupa a
vírions do VV apresentam a forma de retângulos região central (Figura 18.3). As duas cadeias de
arredondados, com dimensões de 270 x 360 nm. O DNA que compõem o duplex são unidas entre si
envelope lipoprotéico de 30 nm de espessura en- nas extremidades por curvas (loops). As regiões
volve duas estruturas laterais (corpos laterais) e que formam as curvas são ricas em A-T e não são
um núcleo (Figura 18.2). Uma forma extracelular complementares, não permitindo o pareamento
do vírion possui um envelope adicional externo entre elas.
em relação a sua forma intracelular. O envelope Aproximadamente 50 seqüências genômicas
adicional é adquirido pelo brotamento através da completas de diferentes poxvírus já foram obti-
membrana plasmática; os vírions desprovidos do das, permitindo uma descrição detalhada da es-
envelope adicional são liberados por lise celular trutura, organização genômica e dos genes indi-
e são menos infecciosos. Os vírions intracelulares viduais. Nos Chordopoxvirus, o número de genes
desprovidos do envelope adicional são denomi- é de aproximadamente 150, embora mais de 300
nados IMV (intracellular mature virions), e os ex- genes já tenham sido deduzidos no genoma do
tracelulares com o duplo envelope são chamados poxvírus do canário. Aproximadamente 90 dos
de EEV (extracellular enveloped virions). A Figura 150 genes são conservados no genoma de todos
18.2 apresenta fotografias de microscopia eletrô- os Chordopoxvirus e codificam produtos que par-
494 Capítulo 18

Túbulos de Corpo Membrana


A B superfície lateral do núcleo

Membrana
Orthopoxvirus Envelope externa

C D Túbulos de Envelope Membrana


superfície do núcleo

Corpos Membrana
Parapoxvirus laterais externa

Fonte: ME: Dr Stewart McNulty; qub.ac.uk. Ilustrações: adaptadas de Murphy et al.(1999).

Figura 18.2. Vírions de membros da família Poxviridae (esquerda: fotos de microscopia eletrônica; direita: ilustração
esquemática dos vírions). A, B) Vírions do gênero Orthopoxvirus; C, D) Vírions do gênero Parapoxvirus. Barra = 100
nm.

Repetição invertida Seqüências únicas Repetição invertida

10 kbp 160 kbp 10 kbp

Seqüências repetidas Seqüências repetidas

0,9 kbp 1,3 kbp 1,3 kbp 0,9 kbp

Fonte: adaptado de Murphy et al. (1999).

Figura 18.3. Ilustração esquemática da estrutura do genoma dos poxvírus. O genoma é constituído por uma molécula
de DNA de cadeia dupla cuja região mais longa é única e apresenta as cadeias complementares e pareadas. Próximas
às extremidades do genoma existem regiões repetidas na orientação inversa, ricas em A-T, que não são exatamente
complementares e, por isso, não estão pareadas. As extremidades do genoma são unidas entre si, formando uma
inflexão (loop) e conferindo continuidade à molécula de DNA.
Poxviridae 495

ticipam da replicação do DNA, da transcrição, 4 Replicação


da morfogênese e da estrutura das partículas vi-
rais. Os genes mais conservados se localizam na A maioria dos poxvírus replica com eficiên-
região central do genoma, e os genes localizados cia em cultivos celulares, com exceção dos para-
entre a região central e as extremidades do geno- poxvírus, poxvírus de suínos e vírus do Mollus-
ma tendem a ser espécie-específicos e codificam cum contagiosum. Esses vírus também podem ser
proteínas cujas funções antagonizam a resposta multiplicados em ovos embrionados de galinhas,
imune do hospedeiro. Esses genes são chamados onde produzem placas (focos) esbranquiçadas
coletivamente de genes de virulência. Ao contrá- (pocks) na membrana corioalantóide.
rio dos genes centrais conservados, vários genes Os poxvírus codificam todas as enzimas ne-
de virulência são dispensáveis para a replicação cessárias para a transcrição e replicação do geno-
viral em cultivo celular. ma viral. Também trazem, nos vírions, as enzi-
Uma das dezenas de proteínas codificadas mas para a produção e modificação dos mRNA
pelo genoma viral (peso molecular de 58 kDa) para a síntese de suas proteínas, o que os tornou
forma os túbulos da superfície do vírion, que in- independentes do núcleo celular. Após a fusão
duzem a produção de anticorpos neutralizantes do vírion com a membrana plasmática ou após a
e inibidores da fusão celular. Oito proteínas, in- endocitose, o núcleo viral é liberado no citoplas-
cluindo uma hemaglutinina, foram identificadas ma, onde ocorrem todas as etapas do ciclo repli-
no envelope externo dos vírions extracelulares e cativo.
pelo menos quatro proteínas estão conjugadas O processo de expressão gênica é caracteri-
com o DNA genômico. Os poxvírus codificam zado pela transcrição temporal de três classes de
várias proteínas envolvidas na evasão e modu- genes (genes iniciais, intermediários e tardios).
lação da resposta imunológica do hospedeiro. A transcrição de cada grupo de genes requer a
Alguns genes provavelmente foram adquiridos presença de fatores de transcrição específicos que
recentemente dos hospedeiros por recombina- são produzidos pelos genes do grupo preceden-
ção, pela sua semelhança com genes encontrados te. A transcrição é iniciada pela RNA polimera-
nas espécies animais infectadas. Esses genes co- se viral e outros fatores presentes no núcleo do
dificam produtos envolvidos na resposta imune vírion, e resulta na produção de mRNAs alguns
do hospedeiro (MHC classe I, interleucinas 10, minutos após a penetração, ainda no genoma não
totalmente desnudo. Os mRNAs do VV são de-
18 e 24, receptores do interferon gama e do fator
tectados 20 minutos após a penetração e atingem
de necrose tumoral II), além de outros envolvi-
picos em aproximadamente 1 a 2 horas após. As
dos na resistência das células ao estresse oxidati-
proteínas produzidas pela tradução desses mR-
vo (glutaredoxina e glutationa peroxidase). Essa
NAs completam o desnudamento do genoma e
captura de genes do hospedeiro tem sido uma
a transcrição de aproximadamente 100 genes ini-
característica decorrente na evolução dos poxví-
ciais. Essas etapas ocorrem previamente ao início
rus e parece desempenhar um papel na adapta-
da replicação do DNA.
ção desses vírus para resistir aos mecanismos de
Em células infectadas pelo VV, a replica-
defesa do hospedeiro, pelo bloqueio da atividade
ção do DNA se inicia aproximadamente 1 a 2
de várias citocinas, quimiocinas, serion-protea-
horas após a infecção e resulta na produção de
ses e complemento, entre outras. Essa diversida-
até 10.000 cópias do genoma por célula, metade
de de estratégias utilizadas pelos poxvírus para
das quais será empacotada na progênie viral.
assegurar a sua sobrevivência tem propiciado o
Em outros poxvírus, o início da replicação pode
conhecimento de vários aspectos da imunologia, ser mais tardio, como nos parapoxvírus (4-6 h)
virologia e inflamação. Devido a natureza an- e poxvírus aviários (12-16 h). O início da repli-
tiinflamatória de várias proteínas dos poxvírus, cação parece ocorrer em ambas as extremidades
algumas têm demonstrado potencial para o uso do genoma e envolve a clivagem das cadeias de
terapêutico em inflamações agudas e crônicas. DNA no sítio de iniciação, seguida de replicação
496 Capítulo 18

por deslocamento da cadeia complementar. A re- que a produção da progênie dos poxvírus tam-
plicação do genoma envolve a síntese de longos bém seja um processo complexo e que necessite
intermediários concatamerizados (unidos pelas várias horas para ser completada. A replicação e
extremidades), que são subseqüentemente cliva- a produção de vírions ocorrem em determinados
dos em unidades genômicas únicas. locais do citoplasma, denominados viroplasmas
Após o início da replicação, ocorre uma mu- ou fábricas de vírus. Os vírions envelopados são
dança dramática na expressão gênica, quando os
liberados através de brotamento, e os vírions
produtos dos genes iniciais se ligam aos promo-
não-envelopados podem ser liberados por bro-
tores de genes intermediários e tardios, ativando
tamento ou lise da célula. Ambas as formas dos
a sua transcrição e conseqüente expressão. Al-
guns fatores de transcrição de genes iniciais são vírions são infecciosas, embora as formas envelo-
sintetizados tardiamente na infecção e empacota- padas infectem novas células mais rapidamente
dos nos vírions para serem utilizados no início do e parecem ser mais importantes na disseminação
próximo ciclo de infecção. do vírus no organismo do hospedeiro. O ciclo re-
Pelo fato de os vírions serem constituídos plicativo dos poxvírus está ilustrado esquemati-
por um grande número de proteínas, é razoável camente na Figura 18.4.

4 5 6
1
7
2
8
11

3
9
Núcleo

12
Citoplasma
10

14
13

Figura 18.4. Ciclo replicativo dos poxvírus. Os vírions se ligam a receptores de superfície e penetram por fusão do
envelope com a membrana plasmática, liberando o núcleo (core) no citoplasma (1). As enzimas trazidas nos vírions
sintetizam os mRNAs dos genes iniciais (2) que são traduzidos em proteínas iniciais (3). As proteínas iniciais
participam do desnudamento completo do genoma (4), na sua replicação (5) e na transcrição dos genes intermediários
(6), cujos mRNAs são traduzidos em proteínas (7). As proteínas intermediárias estão envolvidas principalmente na
transcrição dos genes tardios (8), e participam das fases finais de replicação (resolução e separação das moléculas-
filhas de DNA) (11,12). As proteínas tardias(9) fazem parte da estrutura vírica e participam da morfogênese dos
núcleos virais (10), que adquirem o envelope pelo brotamento no aparelho de Golgi (13) e são liberados da célula (14).
Poxviridae 497

5 Poxvírus de interesse veterinário dicação da varíola humana. O VV possui uma


distribuição muito ampla e é capaz de infectar
Somente dois poxvírus são específicos do uma grande variedade de espécies animais, em
homem: o vírus da varíola e o vírus do Mollus- algumas das quais produz doença clinicamente
cum contagiosum. Seis outras espécies de poxví- semelhante à causada pelos poxvírus específicos
rus podem, esporadicamente, causar infecções de cada hospedeiro. A sua ocorrência em reba-
zoonóticas. A Tabela 18.1 apresenta os principais nhos leiteiros, em épocas anteriores a interrupção
poxvírus de interesse veterinário, os quais serão da vacinação contra a varíola humana, era fre-
detalhados a seguir. qüentemente associada com manifestações clíni-
cas semelhantes e, por isso, atribuídas ao vírus da
5.1 Gênero Orthopoxvirus varíola bovina. Após a interrupção da vacinação
contra a varíola humana, acredita-se que pratica-
Os ortopoxvírus são morfologicamente in- mente a totalidade dos casos de varíola bovina
distinguíveis entre si e a sua replicação produz seja, de fato, associada com o vírus bovino.
corpúsculos de inclusão citoplasmáticos. Os mem- No entanto, desde 1999, vários surtos de do-
bros desse gênero são antigenicamente relaciona- ença exantematosa e vesicular têm sido relatados
dos e, por isso, um vírus pode ser utilizado em em bovinos leiteiros na região Sudeste do Brasil.
vacina para induzir imunidade protetora contra Os surtos geralmente ocorrem em propriedades
os demais. Essa imunidade parece ser de longa que realizam ordenha manual, sem os cuidados
duração. adequados de higiene. Em parte desses eventos,
Apesar de sua semelhança, esses vírus po- as lesões foram observadas concomitantemente
dem ser distinguidos por sorologia, aspectos em pessoas e vacas. Nas vacas, as lesões são se-
morfológicos, temperatura em que produzem le- melhantes às descritas nos casos de infecção pelo
sões na membrana corialantóide de embriões de VV. As lesões iniciais nas tetas e úbere se caracte-
galinha, por eletroforese de proteínas, técnicas de rizam por eritema róseo e edema localizado, que
caracterização genética e efeito citopático em cul- leva à formação de vesículas. As vesículas rapida-
tivos celulares. As lesões podem estar confinadas mente evoluem para pápulas e pústulas que, pos-
a regiões específicas da pele ou serem sistêmicas. teriormente, se rompem e supuram. O próximo
As lesões de pele geralmente iniciam como pápu- estágio é caracterizado pela formação de crostas
las, que evoluem para pústulas e crostas. escuras, algumas vezes recobrindo grandes áreas
Os hospedeiros naturais de várias espécies que podem, subseqüentemente, ulcerar. O curso
de ortopoxvírus ainda não estão bem definidos da doença pode durar entre três e quatro sema-
e, possivelmente, incluam várias espécies de ro- nas. A ocorrência de contaminação bacteriana se-
edores silvestres. Na maioria das infecções, o cundária pode resultar em mastite. Bezerros que
diagnóstico pode ser realizado por microscopia se amamentam nas vacas afetadas desenvolvem
eletrônica (ME) de material coletado das bordas lesões no focinho e na mucosa oral. As pessoas
das lesões ou por isolamento viral. O isolamento afetadas são geralmente aquelas que realizam
pode ser realizado pela inoculação do material a ordenha, apresentando lesões nas mãos, indi-
suspeito na membrana corioalantóide de ovos cando que foram infectadas pelo contato com os
embrionados de galinha, em cultivos celulares e animais. Algumas pessoas relatam a ocorrência
em animais de laboratório, pela inoculação após de cefaléia, dores musculares, hipertermia e lin-
escarificação da pele. fadenopatia.
Um dos primeiros vírus caracterizados a
5.1.1 Vírus da vaccinia partir desses eventos foi denominado Cantagalo,
por ter sido isolado de um surto de doença ve-
O vírus da vaccinia (VV) é o protótipo do sicular bovina e humana no município com este
gênero Orthopoxvirus e foi amplamente utilizado nome no estado do Rio de Janeiro, em 1999. A
na formulação de vacinas para o controle e erra- análise biológica e molecular revelou que esse ví-
498 Capítulo 18

rus é mais semelhante ao VV do que ao poxvírus Rússia. Os hospedeiros naturais do vírus são vá-
da varíola bovina. Além disso, o vírus Cantagalo rias espécies de roedores silvestres. Estes animais
é muito semelhante geneticamente ao VV anti- atuam como reservatórios do vírus, a partir dos
gamente utilizado em vacinas humanas contra quais pode ser transmitido para várias espécies
a varíola. Esses achados sugerem que este vírus domésticas e silvestres. As características clínicas
pode ter se originado do VV vacinal, que prova- e as doenças associadas são muito semelhantes às
velmente persistiu durante anos em alguma es- causadas pelo VV, embora os vírus sejam antige-
pécie de hospedeiro silvestre e, eventualmente, nicamente distintos. Em vacas leiteiras, as lesões
reemergiu, infectando bovinos e pessoas. estão geralmente confinadas aos tetos. Nos gatos,
Após esse evento, vários surtos de doen- a doença é mais facilmente reconhecida e afeta
ça semelhante, com caráter zoonótico, têm sido principalmente os animais que vivem em áreas
descritos em várias regiões do país, principal- rurais e são bons caçadores. Outro fato que indica
mente na região Sudeste. Além disso, todos os que os roedores se constituem nos hospedeiros
ortopoxvírus isolados desde 1963, no país, foram naturais do vírus é que a doença tem maior inci-
identificados como derivados do VV. A caracte- dência no outono, quando a população de roedo-
rização de alguns desses vírus isolados nos sur- res é maior. Nos gatos, os sinais clínicos iniciam
tos recentes reforça a hipótese da persistência do com pequenas pápulas na cabeça e membros an-
VV em hospedeiros silvestres no Brasil e a sua teriores, podendo ulcerar, seguido pela formação
reemergência como importante patógeno de bo- de crostas. Uma apresentação mais rara envolve
vinos. coriza, conjuntivite e pneumonia, provavelmente
advinda de contaminação bacteriana secundária
5.1.2 Vírus da varíola dos bubalinos ou imunodepressão causada pelo vírus da leuce-
mia felina (FeLV) e vírus da imunodeficiência fe-
O poxvírus dos búfalos (buffalopox) é causa- lina (FIV). Eventualmente os gatos podem trans-
do por um vírus tão semelhante ao VV que não é mitir a doença para o homem, que geralmente
claro se representa uma espécie viral distinta ou desenvolve uma única erupção maculopapular
não. Surtos dessa doença têm ocorrido nos búfa- na mão ou na face. A seguir, podem advir sinais
los-da-água (Bubalis bubalis) na Índia, Indonésia e sistêmicos, como náusea, febre e adenopatia. O
Egito. Como foi mencionado acima, vários surtos curso da doença é mais severo em crianças e, em-
causados pelo VV – ou vírus geneticamente mui- bora raro, pode resultar em morte. Vários surtos
to semelhantes – ocorreram no Brasil desde 1999, da doença em zoológicos são descritos na litera-
o que resultou em perdas econômicas e afetou tura, especialmente afetando os grandes felinos
a saúde dos fazendeiros que, provavelmente, se (chita, ocelote, lince, jaguar, puma, leão e pante-
infectaram por contato direto com seus bovinos ra), além de rinocerontes, elefantes e ocapis, com
durante a ordenha. as chitas apresentando uma alta taxa de mortali-
As lesões pustulares nas tetas e úbere de bú- dade.
falas e vacas produtoras de leite assemelham-se O diagnóstico pode ser confirmado por his-
àquelas causadas pelo vírus da varíola bovina. topatologia, ME ou isolamento do vírus. Doenças
Em eqüinos, a infecção resulta em uma apresen- causadas pelo VV, vírus da mamilite herpética
tação clínica semelhante à varíola eqüina ou der- (herpesvírus bovino tipo 2 – BoHV-2), devem ser
matite papular eqüina. O diagnóstico pode ser consideradas no diagnóstico diferencial da doen-
confirmado por histopatologia, ME ou por isola- ça em bovinos. As medidas profiláticas têm pou-
mento do vírus. co impacto no controle e prevenção da doença.

5.1.3 Vírus da varíola bovina 5.1.4 Vírus da varíola dos camelos

A varíola bovina (cowpox) ocorre princi- O vírus da varíola dos camelos (camelpox)
palmente na Europa e nas regiões adjacentes da causa uma doença generalizada severa que cursa
Poxviridae 499

com o desenvolvimento de um grande número de introdução do vírus em colônias de camundon-


lesões na pele. A forma mais severa ocorre prin- gos é através de soro de camundongo, líquido as-
cipalmente nos animais jovens, podendo causar cítico, tumores e tecidos. Algumas linhagens são
uma mortalidade de até 25%. Este vírus é distin- mais resistentes, e a apresentação clínica pode ser
guível dos outros ortopoxvírus através do perfil leve ou inaparente (C56BL/6, AKR), já outras são
gerado por restrição enzimática do genoma. A muito sensíveis (BALB/c, C3H, DBA).
doença tem importância nas regiões em que os A infecção pelo vírus da ectromelia tem sido
camelos são criados para transporte e produção extensivamente utilizada como modelo para o es-
de leite, como na África, Oriente Médio e sudoes- tudo da patogenia de infecções víricas sistêmicas.
te da Ásia. Após a penetração e replicação próxima ao local
Este vírus aparentemente não infecta huma- de entrada (geralmente a pele), onde a replica-
nos, apesar da freqüente exposição de pessoas ção produz uma pequena lesão papular, o vírus
aos animais infectados. Assim, a doença é apa- replica nos linfonodos regionais e produz uma
rentemente restrita aos camelos. Um parapoxví- viremia primária. Esta viremia permite ao vírus
rus (vírus de Ausdyk) também infecta camelos e atingir vários órgãos, entre eles o fígado e o baço,
causa um quadro clínico semelhante. onde replica e produz necrose. Essa replicação é
seguida de uma viremia secundária, pela qual o
5.1.5 Vírus da varíola dos macacos vírus atinge outros órgãos, inclusive a pele, pro-
duzindo as lesões máculo-papulares e vesiculares
Apesar de seu nome, os hospedeiros naturais características. Estas lesões são seguidas de pru-
desse vírus parecem ser os esquilos. Esse vírus é rido intenso e ulceração e se constituem na via
zoonótico e geralmente afeta pessoas que caçam de excreção do agente. Dentre os modelos de pa-
macacos e esquilos, para a sua alimentação, na togenia, o do vírus da ectromelia é um dos mais
África Central e Ocidental. Nos últimos anos, vá- clássicos, e muitas informações sobre a patogenia
rios casos e surtos localizados dessa doença têm das infecções víricas foram obtidas a partir desse
sido relatados em pessoas na África. A transmis- modelo.
são do vírus entre pessoas é incomum e, assim, A introdução desse vírus em uma colônia
parece ser improvável que a doença se estabeleça tem conseqüências devastadoras, desta forma, o
e se perpetue na população. É mais provável que diagnóstico deve ser feito rapidamente. A varío-
a doença continue a ocorrer esporadicamente em la dos camundongos pode ser diagnosticada por
pessoas que se expõem ao agente pelo contato histopatologia, sendo observados corpúsculos de
com os hospedeiros naturais. Os sinais clínicos inclusão citoplasmáticos eosinofílicos nas bordas
são semelhantes aos da varíola humana, e a en- das lesões de pele. Através de ME, podem ser ob-
fermidade pode ser prevenida utilizando-se imu- servados vírions em qualquer tecido infectado. O
nização com o VV. vírus também pode ser isolado em cultivos de cé-
lulas de embrião de camundongo e identificado
5.1.6 Vírus da ectromelia por técnicas imunológicas.
A prevenção e o controle são baseados na
O vírus da varíola dos camundongos (mou- quarentena e regras de importação de vírus, de
sepox), ou vírus da ectromelia, disseminou-se no camundongos e seus produtos que podem carre-
mundo todo através do transporte de camundon- ar o vírus. O monitoramento sorológico regular
gos de laboratório e seus produtos. Existem duas das colônias também deve ser feito, principal-
formas de apresentação clínica: uma fatal aguda, mente para diagnosticar as infecções subclínicas.
em que ocorre uma extensiva necrose do baço e
fígado, com a morte ocorrendo poucas horas após 5.1.7 Vírus Uasin Gishu
o início dos sinais; e a outra crônica, caracterizada
por lesões ulcerativas nos pés, cauda e focinho. A O vírus Uasin Gishu, vírus da varíola dos
transmissão ocorre por pequenas abrasões na pele cavalos, tem sido isolado somente no Leste da
e por via respiratória. Uma forma importante de África. Podem ser encontradas duas formas da
500 Capítulo 18

doença: uma em que as lesões vesiculares se de- 5.2.1.2 Patogenia e sinais clínicos
senvolvem e outra que apresenta lesões múlti-
plas na mucosa oral. Os sinais clínicos variam entre as raças e
apresentam variações de acordo com as regiões
5.2 Gênero Capripoxvirus geográficas de ocorrência da doença. Após apro-
ximadamente uma semana de incubação, duran-
5.2.1 Vírus da varíola ovina e caprina te a qual ocorre uma viremia, o vírus dissemina-
se para a pele, linfonodos, baço, rins e pulmões.
Dentre as doenças causadas pelos poxvírus, A replicação viral nesses tecidos resulta em sin-
a varíola dos ovinos (sheeppox) e a varíola dos tomatologia clínica, como febre, rinite, dispnéia,
caprinos (goatpox) estão entre as mais importan- edema de pálpebras e conjuntivite. Os animais
tes em medicina veterinária. Essas doenças são arqueiam o dorso e param de se alimentar. As le-
de notificação obrigatória na maioria dos países sões de pele iniciam por pequenas vesículas que
onde ocorrem, e o seu diagnóstico é essencial evoluem para pápulas, pústulas, necrose e for-
para o comércio e trânsito internacional de pe- mação de crostas. Essas lesões são mais abundan-
quenos ruminantes. tes nos lábios, língua, gengiva, narinas externas
e pele, principalmente nos locais com cobertura
escassa de lã. Lesões também podem ocorrer no
5.2.1.1 Epidemiologia trato digestivo, respiratório, fígado, rins e outros.
No caso da varíola caprina, a mortalidade pode
As varíolas ovina e caprina ocorrem no su- chegar a 50%, quando acomete raças nativas, e
doeste da Ásia, Índia e na maior parte da África, até 100% em raças européias. Em rebanhos sus-
embora a distribuição geográfica dos dois vírus ceptíveis de ovinos, a doença pode afetar mais
seja diferente. Essa distribuição geográfica distin- de 75% dos animais e causar uma mortalidade
ta sugere que essas doenças sejam causadas por de até 50%. Em cordeiros jovens, a mortalidade
vírus diferentes. Contudo, estes vírus não podem pode atingir 100%.
ser diferenciados através de sorologia e a análise
de restrição do genoma indica que são genetica-
mente muito semelhantes. As cepas de vírus da 5.2.1.3 Diagnóstico e controle
varíola dos ovinos parecem ser mais relacionadas
com o vírus da pele nodulosa (lumpy skin) do que Na maioria dos casos, o diagnóstico pode ser
com o vírus da varíola dos caprinos. realizado com bases nos achados clínicos. Difi-
Nos animais infectados, o vírus é excreta- culdades podem ser encontradas quando houver
do nas exsudações e descamações de lesões de a presença simultânea do vírus do ectima conta-
pele, além de secreções nasais e oculares durante gioso (orf), ou em rebanhos parcialmente imunes,
a fase aguda da doença. A infecção ocorre pela nos quais a doença pode ser branda. Fragmentos
inalação de aerossóis ou por feridas e abrasões na de pele ou tecidos podem ser obtidos por biópsia
pele, além da picada de insetos. A estabulação e para a confirmação do diagnóstico através de exa-
o confinamento dos animais facilitam esta forma mes histológicos, ME ou por isolamento viral em
de transmissão. células de ovinos ou caprinos. Em alguns países,
Após a recuperação clínica da doença, os existe um teste comercial de captura de antígeno
animais ficam imunes a reinfecções pelo mesmo para a detecção do vírus da varíola caprina. Para
vírus. Por isso, em áreas endêmicas, a doença a sorologia, podem ser utilizadas a soroneutrali-
generalizada e a mortalidade são raras. Já em re- zação (SN) e imunofluorescência indireta (IFI).
banhos livres da doença, a sua introdução pode Vírus atenuados e inativados têm sido utili-
resultar em surtos graves. Animais de todas as zados na formulação de vacinas para uso nas re-
idades são susceptíveis, embora os mais jovens giões onde essas doenças são endêmicas. A vaci-
sejam acometidos com maior severidade. nação deve ser repetida anualmente, e a resposta
Poxviridae 501

induzida pelas vacinas com vírus atenuados tem De um foco inicial, a doença pode disseminar-se
sido melhor, provavelmente porque a imunidade por longas distâncias. Os mais prováveis meios
mediada por células é a mais importante para a de manutenção do vírus entre as epidemias são
proteção. Esses vírus também têm sido testados os bovinos com infecção subclínica ou animais
como vetores para a confecção de vacinas contra silvestres, possivelmente alguns bubalinos. As
outras viroses de pequenos ruminantes. raças bovinas européias são mais susceptíveis do
que as zebuínas. A doença não apresenta morta-
5.2.2 Vírus da doença da pele nodulosa lidade considerável, mas pode trazer prejuízos
econômicos importantes devido ao longo tem-
A doença da pele nodulosa (lumpy skin dise- po em que causa condição debilitante, durante
ase, LSD) é uma enfermidade aguda ou subaguda a qual os animais se alimentam pouco e perdem
– ou mesmo cursa como infecção subclínica – de peso. A ocorrência periódica de surtos em vários
bovinos que se caracteriza por febre e formação países africanos reforça a necessidade de se ado-
de múltiplos nódulos firmes na pele, placas ne- tar medidas de combate à enfermidade.
cróticas nas mucosas e infartamento de linfono-
dos periféricos. A doença é clinicamente seme-
lhante à manifestação cutânea disseminada que
5.2.2.2 Patogenia e sinais clínicos
ocorre na infecção pelo BoHV-2, denominada
pseudo lumpy skin disease. No início da doença, os animais perdem o
O agente etiológico (lumpy skin disease virus, apetite e apresentam lacrimejamento e descarga
LSDV) é um poxvírus, originário provavelmente nasal. Na maioria dos animais afetados, ocorre
de caprinos, cujo protótipo e primeiro isolado foi um infartamento generalizado dos linfonodos
denominado vírus Neethling. Este agente é gené- superficiais. A doença é caracterizada por febre
tica e antigenicamente relacionado aos poxvírus bifásica, que é seguida pelo aparecimento de nó-
de ovinos e caprinos. Essa semelhança tem per- dulos na pele que, subseqüentemente, se tornam
mitido o uso do poxvírus de ovinos em vacinas necróticos. Essas lesões envolvem a derme e a
para o controle da LSD em bovinos em alguns epiderme. Nódulos também são observados na
países. mucosa da boca e narinas.
O LSDV replica em altos títulos em uma Algumas lesões cutâneas ou nas mucosas
variedade de células de cultivo, mas os isolados podem ser maiores e apresentarem uma região
de campo demoram a produzir efeito citopático central de tecido necrótico que, posteriormente,
após o seu isolamento. O vírus também pode ser perde a pele e resulta em úlceras profundas. Es-
multiplicado em embriões de pinto e na membra- sas úlceras podem levar vários meses para cica-
na cório-alantóide de ovos embrionados de gali- trizar. Vários nódulos podem coalescer e formar
nha. O vírus é muito estável sob condições am- grandes placas. As lesões cutâneas se resolvem
bientais, podendo manter a sua viabilidade em rapidamente ou persistem como grandes úlceras
crostas por até 30 dias. por até meses. Miíases ou infecções bacterianas
secundárias podem complicar a enfermidade.
5.2.2.1 Epidemiologia Os animais com infecções sistêmicas podem fi-
car muito debilitados e podem ocorrer abortos.
A LSD disseminou-se progressivamente A taxa de mortalidade é normalmente inferior a
durante o último século por toda a África, onde 5%, mas o desempenho produtivo prejudicado
segue causando surtos com grande freqüência. O dos animais infectados pode ocasionar grandes
agente foi responsabilizado por somente um surto perdas econômicas para os rebanhos atingidos.
fora desse continente, em Israel, em 1989. A prin- A imunidade adquirida após a recuperação
cipal forma de disseminação da doença é através da doença geralmente dura pelo resto da vida do
de picadas de insetos hematófagos. Por isso os animal. Bezerros filhos de mães imunes adqui-
surtos geralmente ocorrem em épocas de grande rem imunidade colostral, que confere boa prote-
abundância desses vetores (estações chuvosas). ção por, aproximadamente, seis meses.
502 Capítulo 18

5.2.2.3 Diagnóstico e controle 5.3 Gênero Suipoxvirus

A apresentação clínica da doença em ani- 5.3.1 Vírus da varíola suína


mais de zonas endêmicas é altamente sugestiva
da doença. Para a confirmação laboratorial, pode- A varíola suína (swinepox) é uma doença
se coletar material de lesões recentes e identificar aguda, porém leve, que afeta principalmente
inclusões intracitoplasmáticas pelo exame histo- suínos jovens e se caracteriza pela formação de
lógico. O material das crostas pode ser examina- pápulas, pústulas e crostas cutâneas. No passa-
do na ME ou inoculado em cultivos de células de do, manifestações clínicas semelhantes foram
testículo de cordeiro. A confirmação da identida- observadas também durante a infecção de suínos
de do agente isolado deve ser realizada por IFA. com o vírus vaccinia, utilizado para imunizar
Anticorpos específicos podem ser pesquisados pessoas contra a varíola. Após a erradicação da
por SN. varíola do mundo e a interrupção da vacinação
O diagnóstico diferencial deve conside- humana, essa doença tem sido atribuída somente
rar principalmente a infecção generalizada pelo ao poxvírus suíno.
BoHV-2 (pseudo lumpy skin disease) que, geral- O agente da varíola suína é o poxvírus suí-
mente, é mais leve, causa lesões mais superficiais no (swinepoxvirus), única espécie que compõe o
e apresenta um curso mais curto. A infecção pelo gênero Suipoxvirus. Esse vírus possui morfologia
BoHV-2 também se caracteriza pela presença de semelhante aos ortopoxvírus, como o vírus da
inclusões intranucleares, em contraste com as in- vaccinia, com o qual compartilha alguns deter-
clusões citoplasmáticas observadas na LSD. Ou- minantes antigênicos. Os vírions são altamente
tras doenças que cursam com lesões em mucosas, resistentes sob condições ambientais e podem
como a peste bovina, infecção pelo BVDV e febre resistir em escaras ou crostas por até um ano a
catarral maligna também devem ser considera- temperatura ambiente. Os vírus de campo não
das. replicam bem em cultivos celulares e a sua pro-
Como o vírus é disseminado principalmente pagação exige adaptação prévia aos cultivos. O
por insetos, medidas como quarentena e controle vírus não replica na membrana cório-alantóide
do trânsito de animais são geralmente pouco efe- de ovos embrionados. Assim como outros poxví-
tivas. Portanto, o controle baseia-se fundamen- rus de animais domésticos, esse vírus tem sido
talmente na vacinação. Assim, vírus atenuados utilizado como vetor no desenvolvimento de va-
– tanto o LSDV como o vírus da varíola ovina ou cinas para essa espécie.
caprina – têm sido utilizados na vacinação pro-
filática dos rebanhos. A imunização com o vírus 5.3.1.1 Epidemiologia
Neethling atenuado confere uma longa proteção
após uma única aplicação, mas a reação infla- O poxvírus suíno é específico dessa espécie,
matória no local da vacinação pode ser severa e e a infecção é distribuída mundialmente. Durante
levar à redução temporária na produção de leite a infecção aguda, o vírus é excretado pela saliva e
por vacas em lactação. Bezerros, filhos de vacas em secreções conjuntivais dos animais infectados
natural ou artificialmente imunizadas, não ne- e também está presente nos fluidos das lesões.
cessitam ser vacinados, mas aqueles nascidos de Crostas e escaras podem abrigar o vírus viável no
mães susceptíveis devem ser vacinados quando ambiente durante meses. A transmissão do vírus
da ocorrência de surtos. pode ocorrer por contato direto ou indireto en-
A vigilância sanitária com erradicação tem tre animais e também mecanicamente através de
sido utilizada em países vizinhos às áreas endê- piolhos (Hematopinus suis). Os piolhos infectados
micas, e os bovinos que são introduzidos nessas podem abrigar o vírus infeccioso por até dois me-
áreas devem ser previamente imunizados. ses. Outros insetos hematófagos também podem
Poxviridae 503

potencialmente transmitir o vírus mecanicamen- Não existem vacinas disponíveis para a en-
te. A transmissão transplacentária também pode fermidade, embora tentativas de imunização com
ocorrer e resulta na produção de lesões na pele, vírus adaptado em cultivo celular tenham surti-
língua e mucosa bucal de leitões recém-nascidos. do resultados promissores. O controle da doença
é geralmente obtido pela eliminação dos piolhos,
5.3.1.2 Patogenia e sinais clínicos associado com medidas de higiene e desinfecção
de ambientes e instalações.
O vírus possui um tropismo marcante por
células da epiderme e, em casos graves, pode 5.4 Gênero Molluscipoxvirus
também infectar células epiteliais do trato res-
piratório superior e digestivo. O período de in-
5.4.1 Vírus do Molluscum contagiosum
cubação da doença é de quatro a 14 dias, e é se-
guido de doença branda com lesões geralmente
A doença causada pelo vírus do Molluscum
restritas à pele. A doença afeta suínos de todas as
contagiosum é específica dos humanos, mas será
idades, embora os animais jovens estejam mais
abordada nesta seção por ser confundida com in-
predispostos. Febre baixa e breve pode preceder
fecções zoonóticas causadas por outros poxvírus.
o desenvolvimento de pápulas, que, em um ou
A doença ocorre em crianças em todos os con-
dois dias, tornam-se pústulas umbilicadas, que
tinentes, mas é mais comum em alguns países,
evoluem para crostas. As crostas normalmente
como o Congo e Nova Guiné. Fontes de contá-
caem por volta de uma semana, e a cicatrização
gio bastante comuns são as piscinas coletivas e
se completa em três semanas. O estágio vesicu-
ginásios de esporte, e as crianças se infectam pelo
lar geralmente não é observado. As lesões podem
contato direto com pequenas lesões nas mãos; a
ocorrer em qualquer local da superfície do corpo,
infecção de adultos ocorre freqüentemente pela
embora sejam mais abundantes no abdome, na
via sexual.
face interna das coxas e nas orelhas. A mortali-
A enfermidade é caracterizada por nódulos
dade é usualmente baixa, mas a morbidade em
bem delimitados, com 2 a 5 mm de diâmetro, li-
certos rebanhos pode ser muito alta e causar um
mitados à epiderme e que ocorrem em qualquer
sério retardo no crescimento da leitegada. Conta-
região do corpo, com exceção da palma das mãos
minação secundária das lesões por bactérias pode
e sola dos pés. Os nódulos não causam dor e po-
levar à formação de abscessos e, eventualmente,
dem levar vários meses até a recuperação com-
ocasionar certa mortalidade. Lesões extensas po-
pleta.
dem resultar do hábito dos animais se coçarem
em objetos ou anteparos. 5.5 Gênero Yatapoxvirus
Os suínos recuperados podem desenvolver
imunidade sólida, mesmo na ausência de anticor- 5.5.1 Vírus yabapox e tanapox
pos neutralizantes detectáveis, o que sugere que
a imunidade celular ou humoral local sejam mais Os vírus yabapox e tanapox infectam natu-
importantes para a proteção. ralmente humanos e macacos no Oeste da África.
O vírus yabapox causa tumores grandes e benig-
5.3.1.3 Diagnóstico e controle nos em áreas desprovidas de pêlos da face, nas
palmas da mão e pés e nos espaços interdigitais,
As lesões na pele, associadas à infestação de além das mucosas dos lábios, palato, narinas e si-
piolhos, são sugestivas da enfermidade, mas a nus de macacos, embora possa infectar humanos
confirmação laboratorial é importante para des- em contato com os macacos doentes.
cartar outras doenças vesiculares. O diagnóstico O vírus tanapox causa uma doença em hu-
definitivo pode ser obtido por IFA, ME de raspa- manos, provavelmente contraída pela picada de
dos das lesões ou pelo isolamento do agente em artrópodos, que adquirem o vírus de algum ani-
cultivo de células de suínos. mal reservatório. As lesões iniciam como pápulas,
504 Capítulo 18

que progridem para vesículas, geralmente sem o ca, cutânea ou ambas. A forma cutânea é a mais
aparecimento de pústulas. Também podem ocor- comum nos surtos. As aves afetadas geralmente
rer febre, dor de cabeça e prostração. apresentam poucos sinais sistêmicos, como de-
pressão, redução leve ou moderada do ganho
5.6 Gênero Avipoxvirus de peso e produção de ovos. As lesões evoluem
de pápulas para vesículas, pústulas e crostas,
5.6.1 Vírus da bouba aviária dependendo do momento da observação. As re-
giões desprovidas de penas são mais atingidas,
O vírus da varíola aviária também é muito principalmente a cabeça, pescoço, patas, pernas e
conhecido como vírus da bouba aviária. As es- ao redor da cloaca. Uma apresentação incomum
pécies virais classificadas dentro do gênero são das lesões em áreas emplumadas do corpo (dorso
específicas de aves e são antigenicamente rela- e coxas) teve grande repercussão econômica na
cionadas, embora possam ser diferenciadas pelo região Sul do Brasil nos anos 1990.
espectro de hospedeiros, por sorologia e pela A forma diftérica se caracteriza por lesões
formação diferencial de lesões em cultivos de cé- na parte superior do trato respiratório e digesti-
lulas e na membrana corioalantóide de ovos em- vo, que podem resultar em dispnéia, inapetência,
brionados. Os vários vírus deste gênero também descarga nasal e ocular. As lesões nas mucosas
apresentam patogenicidade diferente de acordo caracterizam-se por placas salientes de coloração
com as espécies de aves. Esses vírus têm sido iso- amarelada, principalmente na boca. Essas lesões
lados de todas as espécies de aves domésticas e geralmente acompanham as lesões cutâneas, mas
silvestres e têm recebido denominação relaciona- podem ocorrer isoladamente em alguns indiví-
da com os seus hospedeiros. duos.
Resposta imunológica humoral e celular
5.6.1.1 Epidemiologia pode ser detectada após a recuperação da infec-
ção, mas os anticorpos maternos não são capazes
Os avipoxvírus são distribuídos mundial- de proteger a progênie.
mente e as suas infecções têm sido descritas há
séculos. Criações de galinhas, perus e pombos 5.6.1.3 Diagnóstico e controle
podem sofrer perdas consideráveis em algumas
épocas do ano, geralmente relacionadas com a As lesões cutâneas e diftéricas podem ser
presença de um maior número de vetores trans- examinadas histologicamente e apresentam in-
missores do agente. O avipoxvírus de galinhas é clusões citoplasmáticas. O material coletado
altamente infeccioso para galinhas e perus, rara- pode também ser submetido ao isolamento viral.
mente para pombos e nada para os patos e caná- O isolamento pode ser realizado pela inoculação
rios. Já o poxvírus de perus é virulento para os do material em aves susceptíveis, por escarifica-
patos. ção da crista ou punção da membrana da asa ou
através de inoculação na membrana corio-alan-
5.6.1.2 Patogenia e sinais clínicos tóide de ovos embrionados de 9 a 12 dias. Em cul-
tivos de células de aves, o vírus pode não produ-
A transmissão do vírus pode ocorrer por zir efeito citopático evidente em uma inoculação
contato direto ou indireto, mas a transmissão inicial.
mecânica por insetos é geralmente a mais impor- O diagnóstico laboratorial é importante
tante. A transmissão mecânica por artrópodos é para diferenciá-la da laringotraqueíte infecciosa,
o provável mecanismo de transmissão e dissemi- micotoxicose T-2 e deficiência de biotina e ácido
nação dos diferentes avipoxvírus para as diver- pantotênico.
sas espécies de aves. Em regiões e épocas do ano mais propensas
O período de incubação da enfermidade va- à ocorrência da doença, os pintos devem ser vaci-
ria entre 4 e 10 dias para galinhas, perus e pom- nados já no primeiro dia de vida, por via subcutâ-
bos. A doença pode ocorrer numa forma diftéri- nea, no incubatório, ou in ovo no 18° dia de incu-
Poxviridae 505

bação. Para a imunização, podem ser utilizadas nalmente todos os anos devido ao aumento da
cepas virulentas de galinhas que são inoculadas população de artrópodes vetores e à presença de
no folículo da pena ou por escarificação da asa ou muitos coelhos jovens susceptíveis.
da perna. Os poxvírus de canários e de pombos
são naturalmente atenuados para galinhas e tam- 5.7.1.2 Patogenia e sinais clínicos
bém têm sido utilizados como vacina.
O controle da população de insetos nas A transmissão do agente pode ocorrer por
épocas problemáticas também pode ser muito secreções respiratórias, mas é mais comum atra-
eficiente para diminuir a disseminação da doen- vés de artrópodos, como mosquitos, moscas, car-
ça durante um surto. O tratamento dos animais rapatos, pulgas e piolhos. Esses artrópodos atuam
afetados com antibióticos também pode reduzir como vetores mecânicos. O vírus replica nos teci-
as infecções secundárias durante os surtos da do- dos próximos à picada do inseto e nos linfonodos
ença. regionais. A viremia que se segue está associada
às células, principalmente aos linfócitos. O ede-
5.7 Gênero Leporipoxvirus ma gelatinoso, que é mais evidente na cabeça e ao
redor da área anogenital, e a blefaroconjuntivite,
5.7.1 Vírus do mixoma dos coelhos com secreção ocular opalescente, dão aos animais
uma aparência leonina. Os coelhos infectados fi-
O vírus do mixoma é o agente da mixoma- cam febris e muito apáticos, alguns podendo mor-
tose, que é uma doença generalizada e altamente rer em menos de 48 horas. A maioria dos animais
fatal em coelhos europeus. A denominação da infectados, no entanto, morre em até 12 dias. A
doença se deve ao edema subcutâneo gelatinoso progressão e morte rápida pela doença são mais
que se desenvolve nos animais infectados. Em comuns com isolados da Califórnia. Nos coelhos
que sobrevivem por mais tempo, o edema sub-
coelhos selvagens das Américas, o vírus causa
cutâneo ocorre em todo o corpo dentro de 2 a 3
fibromas benignos. O vírus do mixoma foi o pri-
dias. A presença do vírus pode ativar a infecção
meiro vírus introduzido no meio ambiente com o
por Pasteurella multocida, resultando em secreção
objetivo de controlar uma população de animais,
nasal. Temperaturas baixas também podem au-
estratégia utilizada na Austrália para controlar a
mentar a severidade da doença. A mortalidade
população de coelhos silvestres.
que varia entre 25 e 90% é influenciada tanto pela
virulência da cepa de campo quanto pela resis-
5.7.1.1 Epidemiologia tência genética da população de coelhos.

Os hospedeiros naturais do vírus são as es-


pécies de coelhos das Américas, Sylvilagus brasi- 5.7.1.3 Diagnóstico e controle
liensis, na América do Sul, e S. bachmani na Amé-
rica do Norte. Nesses hospedeiros, o vírus causa
O diagnóstico de mixomatose em coelhos
um fibroma cutâneo benigno. Contudo, nos co-
europeus pode ser feito pelas manifestações clí-
elhos da Europa (Oryctolagus cuniculus), o vírus
nicas. O isolamento do vírus ou a detecção de um
causa uma doença generalizada que é geralmente
fatal. Na década de 1950, o vírus foi introduzido poxvírus indistinguível do VV no exsudato ou le-
na população de O. cuniculus da Europa, Chile sões confirma o diagnóstico. O isolamento pode
e Austrália para o controle biológico dessas po- ser feito por inoculação de coelhos, inoculação na
pulações. Num primeiro momento, mais de 99% membrana corioalantóide de ovos embrionados
da população de coelhos infectados morria, e a de galinha ou em cultivos de células de coelhos
doença tornou-se endêmica nessas regiões. Após ou galinhas.
um determinado período, foram detectadas ce- A proteção dos coelhos de laboratório ou de
pas de vírus atenuadas, assim como populações criações comerciais pode ser obtida utilizando-se
de coelhos resistentes. Nos locais onde a doença uma vacina viva com uma cepa do vírus do mi-
ainda se manifesta, as epidemias ocorrem sazo- xoma atenuado ou com o vírus do fibroma dos
506 Capítulo 18

coelhos, um vírus relacionado aos Leporipoxvirus. O OrfV se multiplica em cultivos primários


A redução das populações de artrópodes vetores ou linhagens celulares de ovinos, bovinos e hu-
ou o impedimento de sua entrada nos criatórios manos, mas não replica na membrana cório-alan-
também auxilia no controle da doença em áreas tóide de ovos embrionados. Isolados de campo
endêmicas. apresentam considerável variabilidade genética,
que pode ser evidenciada por análise de restri-
5.8 Gênero Parapoxvirus ção enzimática do genoma. No entanto, essa va-
riabilidade genética não se reflete em diferenças
Os três parapoxvírus mais importantes em antigênicas detectáveis por testes de SN, ou seja,
veterinária são: o vírus do ectima contagioso dos os diferentes isolados são antigenicamente rela-
ovinos (orf); o vírus da pseudovaríola bovina e cionados e apresentam reatividade sorológica
o vírus da estomatite papular bovina. Esses ví- cruzada.
rus também infectam várias espécies de animais
terrestres e aquáticos. As lesões causadas pelos 5.8.1.1 Epidemiologia
parapoxvírus tendem a ser localizadas e prolife-
rativas. As lesões causadas pelas três espécies vi-
O vírus ocorre em todas as regiões do mun-
rais são indistinguíveis e se iniciam com pápulas,
do onde existem criações de ovinos e caprinos e
que aumentam e se tornam granulosas e crosto-
é mantido nas populações por infecções persis-
sas, podendo persistir por várias semanas antes
tentes e também pela sua longa sobrevivência em
de regredir. Essas três espécies virais são poten-
crostas secas no ambiente. O vírus pode perma-
cialmente zoonóticas e podem afetar pessoas que
necer viável em crostas secas nas pastagens du-
possuem contato com os animais, como criado-
rante vários meses e até anos. A disseminação da
res, ordenhadores e veterinários. As lesões nas
doença pode ocorrer por contato direto ou indi-
pessoas se desenvolvem com maior freqüência
reto por fômites e, principalmente, por pastagens
nas mãos e são geralmente localizadas e autoli-
contaminadas. Além das pastagens, as instala-
mitantes.
ções, estábulos e utensílios podem abrigar o vírus
Os parapoxvírus possuem vírions com mor-
viável por longo tempo e servir de veículo para
fologia que difere dos outros gêneros de poxví-
a sua transmissão. Forragens abrasivas contami-
rus, apresentando proteínas tubulares organiza-
nadas com o vírus facilitam a instalação da infec-
das de forma cruzada na superfície do vírion (ver
ção e podem resultar em infecção disseminada.
Figura 18.2). Essa característica possui utilidade
Cordeiros também podem adquirir a infecção ao
para o seu diagnóstico, pois permite diferencia-
mamarem nas ovelhas com lesões nas tetas. Em
ção de outros poxvírus através da ME.
criações intensivas, a infecção se dissemina rapi-
damente, principalmente em confinamentos de
5.8.1 Vírus do ectima contagioso cordeiros para engorda.
A enfermidade afeta animais de todas as
O vírus do ectima contagioso, ou vírus da idades, mas é mais grave em cordeiros lactentes
orf (OrfV) é o agente etiológico do ectima conta- que perdem peso e podem até morrer de inanição
gioso dos ovinos e caprinos, também chamado por não se alimentarem devido às lesões nas co-
de boca sarnenta, dermatite pustular contagio- missuras orais. Condições deficientes de higiene,
sa de ovinos, estomatite pustular contagiosa, deficiência de vitamina A, estresse e outras con-
dermatite labial infecciosa e orf. A palavra orf é dições que causem imunodepressão predispõem
derivada de uma expressão inglesa antiga para à ocorrência de surtos severos. Infecções subclíni-
rugoso (rough). Em algumas regiões do Brasil, a cas provavelmente também ocorram.
doença em ovinos é denominada boqueira. O ecti- As taxas de morbidade após a introdução do
ma contagioso é uma enfermidade exantematosa agente em rebanhos livres podem atingir 100%,
vesicular e pustular localizada que afeta ovinos, mas a mortalidade é geralmente baixa e deve-se
caprinos e outros pequenos ruminantes. A enfer- principalmente a complicações secundárias e à
midade tem distribuição mundial. inanição em cordeiros jovens.
Poxviridae 507

O vírus também pode infectar espécies sil- 5.8.1.3 Diagnóstico


vestres que compartilham pastagens com capri-
nos e ovinos afetados e, ocasionalmente, cães e O diagnóstico presuntivo baseia-se nos da-
humanos envolvidos na criação dessas espécies dos clínicos e epidemiológicos. As lesões crosto-
podem também ser infectados. sas são típicas, inicialmente afetam poucos ani-
mais e rapidamente se disseminam para todos os
5.8.1.2 Patogenia e sinais clínicos animais jovens que nunca foram infectados ou
vacinados. Em rebanhos virgens, a enfermidade
O vírus geralmente penetra pela pele ou jun- se alastra e infecta animais de todas as idades. Ao
ção mucocutânea dos lábios e focinho, pelo con- exame microscópico, podem ser observadas célu-
tato direto entre animais ou pelo contato e lesões las em forma de balão e corpúsculos de inclusão
causadas por pastagens abrasivas. O período de do tipo B nas lesões epiteliais.
incubação varia entre dois e seis dias. A doença O diagnóstico clínico, aliado ao histórico e
é caracterizada por lesões nos lábios e focinho, informações epidemiológicas, é, geralmente, su-
mas pode afetar a boca e língua, principalmen- ficiente para definir a etiologia da doença. No en-
te em cordeiros jovens, além das áreas interdi- tanto, o vírus pode ser identificado por ME a partir
gitais, genitália e úbere. As pápulas e vesículas de crostas coletadas dos animais doentes. O vírus
progridem rapidamente para pústulas e poste- pode também ser isolado em células cutâneas ou
rior formação de crostas. As lesões crostosas são de testículo de embrião ovino. Na prática clínica,
salientes na pele e, freqüentemente, apresentam o diagnóstico é geralmente clínico, podendo ser
rachaduras e sangramento, podendo predispor acompanhado de confirmação por ME.
a contaminações secundárias e miíases. Traumas
leves também podem fazer as crostas caírem e as
lesões sangrarem. As lesões nos lábios levam à 5.8.1.4 Controle e profilaxia
redução da ingestão de pasto ou amamentação, o
que leva à perda progressiva de peso. As perdas Em áreas endêmicas, o controle baseia-se na
também podem decorrer do desenvolvimento de vacinação maciça dos rebanhos, utilizando-se o
infecções bacterianas e parasitárias (miíases) nas vírus virulento coletado de lesões ou multiplica-
lesões. Nos casos não complicados, o curso da do em cultivos celulares. No Brasil, a vacina dis-
doença dura alguns dias e é seguido da resolu- ponível foi produzida pela escarificação cutânea
ção das lesões. A duração da doença no rebanho, e inoculação do vírus nas lesões. A vacinação é
no entanto, pode se estender por semanas e até realizada pela deposição de gotas da vacina em
meses, pela infecção gradativa e seqüencial de escarificações da pele, produzidas com objetos
outros animais susceptíveis. pontiagudos (agulhas hipodérmicas) em áreas do
Na forma genital, as lesões podem ocorrer corpo que não resultem em lesões importantes e
no escroto, prepúcio e pênis ou na mucosa vulvar que não permitam a lambedura, como as axilas e
e no períneo. Lesões também ocorrem com freqü- as faces internas das coxas. A vacinação das ove-
ência no úbere e nas tetas, o que faz com que as lhas antes do período de nascimento dos cordei-
ovelhas evitem a mamada dos cordeiros. ros diminui o risco de uma epidemia.
A forma generalizada, que não é muito co- A ocorrência de infecções crônicas, a possi-
mum, é geralmente fatal e caracteriza-se pelo bilidade de ovinos previamente expostos se rein-
desenvolvimento de lesões típicas generalizadas fectarem e a longa permanência do vírus viável
na pele e nas mucosas da boca, faringe e esôfa- no ambiente tornam difícil a erradicação da do-
go. Uma pleuropneumonia supurativa, devido a ença uma vez estabelecida no rebanho.
contaminações bacterianas secundárias, termina Em casos de surtos, os animais afetados de-
agravando o quadro e é uma das principais res- vem ser separados dos demais e mantidos sob
ponsáveis pela mortalidade. observação para evitar complicações bacterianas
508 Capítulo 18

ou parasitárias. Tratamento tópico das lesões e das a condições inadequadas de higiene e manejo
administração de vitamina A, além de antibio- da ordenha.
ticoterapia, para evitar contaminações secundá- O período de incubação situa-se ao redor de
rias, também são indicados. Quando possível, seis dias, após o qual aparecem lesões eritema-
os animais não afetados devem ser mudados de tosas nas tetas. As lesões evoluem para pápulas
potreiro, evitando o pastoreio em pastagens alta- com um centro umbilicado e, posteriormente,
mente contaminadas. O fornecimento de alimen- para crostas abundantes, seguidas de descama-
to macio e palatável pode favorecer a continuida- ção. Vesículas e pústulas recobertas com crostas
de da alimentação e a recuperação dos animais também são comuns, resultando em crostas com
afetados. aspecto típico, com a forma de anel ou ferradura.
Rebanhos livres devem investir na preven- As crostas geralmente são descamadas em pou-
ção da introdução do agente, através de quaren- cos dias, mas podem também durar por semanas.
tena de animais eventualmente introduzidos na Contaminações bacterianas secundárias podem
propriedade. agravar o quadro da infecção aguda e retardar a
resolução, o que pode acarretar em queda impor-
5.8.2 Vírus da pseudovaríola bovina tante na produção de leite do rebanho. Lesões se-
melhantes podem ocorrer no focinho de bezerros
A pseudovaríola bovina (pseudocowpox) que estão mamando nas vacas afetadas. A imu-
ocorre em todo o mundo, mas possui pouca im- nidade gerada pela infecção tem curta duração, e
portância sanitária e econômica na maioria dos infecções recidivantes (mais comuns) ou crônicas
países onde ocorre. É uma doença branda e co- (ocasionais) podem ocorrer.
mum de bovinos, que afeta principalmente vacas O vírus pode ser transmitido e infectar hu-
em lactação. Na Inglaterra, a prevalência de reba- manos por contato direto, resultando no chama-
nhos que já apresentaram casos é alta; na África do nódulo do ordenhador (milker’s nodule). Além
do Sul, a doença tem sido implicada em perdas das lesões locais (mãos), a fase aguda da doença
importantes para rebanhos leiteiros, principal- em humanos pode incluir febre e infartamento
mente pela redução na produção de leite. Nes- dos linfonodos regionais. A enfermidade huma-
te país, a doença tem sido associada a condições na é geralmente leve, benigna e se resolve em
precárias de higiene e manejo de gado leiteiro. poucos dias.
O vírus da pseudovaríola (um parapoxvírus) O diagnóstico indicado é a microscopia ele-
é muito semelhante – e possivelmente trata-se da trônica sob coloração negativa de material cole-
mesma espécie de vírus – ao agente da estomatite tado a partir das lesões (vesículas ou crostas), em
papular bovina e apresenta alguma relação tam- que partículas víricas típicas podem ser visuali-
bém com o vírus do ectima contagioso dos ovi- zadas. O isolamento viral pode ser tentado, mas
nos. O vírus replica em células de cultivo deriva- geralmente requer vários dias. Testes sorológicos
das de bovinos e ovinos, mas não na membrana não são indicados para o diagnóstico e não têm
cório-alantóide de ovos embrionados. sido mais utilizados. O diagnóstico diferencial
O agente é geralmente introduzido nos reba- deve incluir a varíola bovina (cowpox), doença de
nhos pela introdução de animais infectados. Uma lumpy skin e mamilite herpética (BoHV-2).
vez introduzida, a infecção se dissemina lenta- O controle deve ser realizado mediante
mente entre os animais do rebanho leiteiro, por medidas de higiene adequadas de ordenha, que
contato direto ou indireto. A transmissão ocorre devem incluir o mergulho dos tetos em desin-
freqüentemente pelos bezerros, quando estão se fetantes apropriados. O isolamento dos animais
amamentando, ou por moscas, além dos equipa- afetados e o manejo separado da ordenha podem
mentos de ordenha e mãos do ordenhador. Como reduzir a circulação do vírus entre os animais.
foi mencionado, a transmissão do agente e a sua Não existem vacinas disponíveis contra essa en-
disseminação no rebanho estão diretamente liga- fermidade.
Poxviridae 509

5.8.3 Vírus da estomatite papular bovina Doenças que cursem com estomatite em bo-
vinos, como a infecção pelos vírus da febre aftosa
A estomatite papular bovina é uma doença (FMDV), da diarréia viral bovina (BVDV) e peste
de importância limitada em condições normais bovina (RPV) devem ser consideradas no diag-
de manejo de gado leiteiro. A enfermidade ocorre nóstico diferencial.
em todo o mundo e parece estar limitada à espé- O controle da doença é feito por medidas
cie bovina, embora os humanos possam ser even- de higiene adequadas para evitar a propagação
tualmente infectados. A incidência maior ocorre do agente. Não existem vacinas comerciais dis-
em bovinos com idade inferior a dois anos, po- poníveis. Recentemente, uma vacina heteróloga,
rém pode acometer animais de todas as idades. baseada no agente do ectima contagioso dos ovi-
Tem sido sugerido que o vírus possa estabelecer nos, foi desenvolvida, mas não há consenso com
infecções latentes e, assim, permanecer nos seus relação a sua eficácia.
hospedeiros por longo tempo. A doença se carac-
teriza pela produção de exantemas papulares no 6 Os poxvírus como vetores
focinho, lábios e gengivas, e é, geralmente, locali- de expressão
zada e benigna.
O parapoxvírus causador da enfermidade A primeira descrição do uso do VV, como
pode ser propagado em cultivos celulares de ori- vetor, ocorreu em 1982, e, desde então, os poxví-
gem humana, bovina e ovina, porém não replica rus têm se tornado vetores de expressão muito
em ovos embrionados de galinha ou em animais utilizados. A sua utilização pode ser feita com o
de laboratório. fim de estudar a biologia molecular dos poxvírus,
O vírus é excretado pelas secreções nasais e produzir e caracterizar a função de proteínas e,
orais, e a transmissão provavelmente ocorra por principalmente, na produção de vacinas replica-
contato direto ou indireto. O período de incuba- tivas. Várias características tornam os poxvírus
ção é geralmente de três a cinco dias. A doença recombinantes excelentes candidatos para esta
é caracterizada pelo desenvolvimento de lesões última finalidade: a) a estabilidade da vacina lio-
similares à pseudovaríola bovina nos lábios, pa- filizada; b) o seu baixo custo, facilidade de pro-
pilas bucais, coxim dental, palato mole e duro, dução e administração; c) a sua capacidade de
língua, focinho e narinas. Pápulas hiperêmicas, induzir resposta imune humoral e celular contra
com necrose na área central e anéis coloridos os antígenos cujos genes foram inseridos no ge-
concêntricos, são lesões características. A doen- noma; d) a sua utilização permite a discrimina-
ça é geralmente localizada e não há evidências ção da resposta vacinal da induzida pela infecção
de envolvimento sistêmico. A maioria dos casos natural, já que somente alguns antígenos do pa-
clínicos é observada na primavera e início do ve- tógeno de interesse são expressos; e) a possibili-
rão. A taxa de morbidade, após a introdução do dade de deletar grandes porções de seu genoma
agente em um rebanho susceptível, pode atingir e inserir vários genes exógenos, o que permite a
100%. O estresse ou outras situações de imuno- produção de vacinas multivalentes.
depressão parecem precipitar a enfermidade em Resumidamente, a estratégia de uso de pox-
animais susceptíveis. Por isso a doença pertence vírus como vetores de expressão consiste na in-
ao complexo de doenças associadas ao estresse trodução de genes heterólogos no genoma desses
e à aglomeração de animais (crowding syndrome vírus. A infecção dos poxvírus recombinantes in
complex). vitro (cultivos celulares) ou in vivo (em animais)
Embora o vírus possa ser isolado em culti- resulta na expressão das proteínas de interesse
vo celular, o diagnóstico laboratorial de eleição é cujos genes foram introduzidos no genoma. O
a ME em material obtido das crostas ou em ras- uso dessa estratégia em vacinas é muito interes-
pados das lesões. Testes sorológicos não são uti- sante, pois genes de proteínas de outros vírus de
lizados. interesse podem ser incorporados ao genoma dos
510 Capítulo 18

poxvírus e, assim, obtém-se uma vacina viral que demonstrou que os avipoxvírus poderiam ser-
expressa antígenos de diferentes vírus. vir de vetores eficazes e seguros de vacinas para
Como fator indesejável, deve-se conside- mamíferos. A sua multiplicação natural é restrita
rar que, dentro de um determinado gênero da às aves, contudo, a sua inoculação em células de
família Poxviridae, existe uma relação antigênica mamíferos resultou na expressão de genes inseri-
estreita que pode resultar em proteção cruzada dos no seu genoma e a inoculação em mamíferos
entre diferentes espécies de vírus. Dessa forma, a induziu uma imunidade protetora. Essa imuniza-
existência de imunidade contra o vírus selvagem ção na ausência de replicação produtiva eliminou
que deu origem ao vetor pode reduzir o sucesso a possibilidade de disseminação do vetor a par-
da vacinação com o vírus recombinante. Algu- tir do animal vacinado para os contatos ou meio
mas estratégias que utilizam diferentes combina- ambiente. Além disso, a utilização deste vetor em
ções de vetores e rotas de imunização têm sido espécies que não são reservatórios dos avipoxví-
utilizadas para evitar esse problema. rus torna improvável a ocorrência de recombina-
Para ser utilizados como vetores, as cepas ção que altere a patogenicidade do vetor. A outra
virais candidatas devem ser atenuadas de forma grande vantagem da utilização dos avipoxvírus
a não causar doença no hospedeiro. Essa atenua- como vetores é a possibilidade de aplicação em
ção tem sido obtida pela passagem sucessiva do animais com imunidade prévia contra o VV.
vírus em hospedeiros heterólogos, pela deleção Na última década, houve um grande número
de genes envolvidos na patogenicidade e pela in- de relatos da utilização de uma cepa de poxvírus
serção de genes que aumentem a resposta imune de canário (canaripox) atenuada recombinante em
ao vetor.
animais e humanos, ficando bem determinada a
Vários poxvírus, como o VV, podem infectar
sua segurança e eficácia na indução de proteção.
um grande número de espécies animais. Se isso
Uma vacina experimental contra o vírus da AIDS
representa uma vantagem, pois permite o seu uso
(HIV) foi produzida pela inserção do gene da
como vacina em várias espécies, pode também se
gp160 no genoma desse poxvírus. Várias vacinas
constituir em uma restrição. Dessa forma, deve
de uso veterinário, baseadas no poxvírus do ca-
ser determinado o risco da infecção e os seus pos-
nário, estão disponíveis comercialmente no Bra-
síveis efeitos em outras espécies que podem ser,
sil e em outros países. Dentre estas se incluem: a)
acidentalmente, infectadas após a liberação de
vacina contra o vírus da cinomose canina (CDV),
um poxvírus recombinante no meio ambiente ou
na qual o poxvírus vetor contém os genes das gli-
pela disseminação do vírus recombinante a partir
coproteínas H e F; b) vacina contra o vírus da leu-
de um animal vacinado.
cemia felina (FeLV), em que o vírus vetor contém
Vários vetores derivados dos poxvírus de
o gene da glicoproteína de superfície do FeLV; c)
suíno, ovino, caprino e parapoxvírus foram des-
critos e experimentalmente testados. A primeira vacina contra o vírus do Nilo Ocidental (WNV)
vacina de poxvírus recombinante utilizada foi o para uso em eqüinos, no qual o gene da principal
VV, contendo o gene da glicoproteína G do vírus glicoproteína de superfície do WNV foi inserido
da raiva (RabV). Este vetor foi construído a partir no genoma do vírus vetor. Essa estratégia é tão
da inserção do cDNA da gG do RabV no local do promissora e o desenvolvimento das vacinas é
gene da timidina quinase da cepa Copenhagen tão ágil, que se pode antecipar que o número de
do VV. Essa vacina foi utilizada para a imuniza- vacinas animais, utilizando o poxvírus do caná-
ção oral de raposas e outros carnívoros de vida rio como vetor, ampliar-se-á significativamente
livre contra a raiva, a partir de 1987, na Bélgica, nos próximos anos. Pode-se especular também
e propiciou o controle e até mesmo a erradicação que a utilização criteriosa de poxvírus recombi-
desta doença de vários países europeus. nantes, como vetores vacinais, propiciará a pre-
Um avanço importante na utilização dos pox- venção, erradicação e cura de algumas doenças
vírus como vetores vacinais foi obtido quando se que causam impacto na saúde animal.
Poxviridae 511

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ASFARVIRIDAE
Gustavo Delhon1 19
1 Introdução 515

2 Classificação 515

3 Propriedades dos vírions, estrutura e organização genômica 515

4 Replicação 517

4.1 Adsorção 517


4.2 Penetração 517

4.3 Expressão gênica 517


4.3.1 Transcrição 517
4.3.2 Síntese e modificação das proteínas 518

4.4 Replicação do DNA viral 518


4.5 Morfogênese 519

5 Vírus da peste suína africana 520

5.1 Epidemiologia 520

5.2 Patogenia, sinais clínicos e patologia 521


5.2.1 A infecção nos carrapatos 523

5.3 Imunidade 523


5.4 Diagnóstico 523
5.5 Controle e profilaxia 524

6 Bibliografia consultada 524

1
Tradução: Fernanda Silveira Flores Vogel
1 Introdução lia recentemente estabelecida: Asfarviridae (Asfar,
african swine virus e vírus relacionados). Como
A família Asfarviridae é constituída por ape- anteriormente citado, os vírus desta família apre-
nas uma espécie viral, o vírus da peste suína sentam características semelhantes às de outros
africana (ASFV), origem da sua denominação. vírus DNA grandes que replicam no citoplasma,
O ASFV é um vírus DNA envelopado, grande incluindo os membros das famílias Poxviridae, Iri-
e complexo, que compartilha vários aspectos da doviridae e Phycodnaviridae. A replicação desses ví-
estrutura do genoma e estratégia de replicação rus é relativamente independente da maquinaria
com os poxvírus. A replicação do ASFV ocorre de transcrição da célula hospedeira.
no citoplasma das células hospedeiras, em sítios A análise genômica por restrição enzimá-
perinucleares bem definidos, denominados fábri- tica permitiu a classificação do ASFV em cinco
cas de vírus. Esse vírus exibe uma regulação tem- tipos principais. Os vírus isolados nas Américas
poral da expressão gênica e apresenta a estrutu- e Europa pertencem ao mesmo grupo genético,
ra do genoma similar aos poxvírus, incluindo as enquanto os isolados africanos apresentam uma
seqüências repetidas invertidas terminais, uma variação maior, provavelmente pelo maior tempo
região central conservada e regiões variáveis nos de evolução e divergência genética. Os isolados
segmentos terminais do genoma. de campo do ASFV apresentam diferentes níveis
O ASFV é o agente etiológico da peste su- de virulência em suínos.
ína africana (ASF), uma enfermidade severa e
muito importante de suínos, principalmente no 3 Propriedades dos vírions, estrutura
continente africano. A ASF tem sido observada e organização genômica
desde os primórdios do século 20 no sul e no leste
da África e inicialmente era caracterizada pelos Os vírions do ASFV são envelopados e pos-
aspectos clínico-patológicos semelhantes aos da suem entre 175 e 215 nm de diâmetro. As partí-
peste suína clássica (CSF). No entanto, foi obser- culas víricas são constituídas por mais de 50 poli-
vado, posteriormente, que essas duas enfermi- peptídeos e apresentam uma estrutura complexa,
dades são muito diferentes. Na segunda metade mas regular, quando observados sob microsco-
do século 20, a ASF foi detectada no sul e oeste pia eletrônica (Figura 19.1). Os vírions possuem
da Europa e posteriormente em Cuba, Repúbli- simetria icosaédrica e apresentam várias cama-
ca Dominicana, Haiti e Brasil. Atualmente, a ASF das concêntricas, resultando em um diâmetro
está erradicada da maioria dos países, mas per- de aproximadamente 200 nm. O core (ou núcleo)
manece enzoótica na África subsaariana. possui 80 nm e é composto por uma estrutura nu-
Na África, o ASFV se mantém em ciclos sel- cleoprotéica eletrodensa envolta por uma cama-
váticos com infecção de suídeos selvagens e de da protéica espessa, chamada de capa do núcleo
carrapatos do gênero Ornithodoros. A capacidade ou matriz. Estima-se que um terço da massa pro-
de infectar carrapatos faz do ASFV o único arbo- téica dos vírions esteja presente na matriz. Envol-
vírus entre os vírus DNA. Os suídeos selvagens vendo esta estrutura central (core + matriz), exis-
infectados com o ASFV geralmente são assinto- te uma membrana lipídica dupla, originalmente
máticos e apresentam baixos níveis de viremia. denominada membrana interna. Essa membrana
Por outro lado, a infecção de suínos domésticos é provavelmente derivada de cisternas do retícu-
resulta em conseqüências diversas manifestações lo endoplasmático (RE). Externamente à mem-
clínicas, que vão desde infecções subclínicas até brana interna, está localizado o capsídeo, que é
doença altamente fatal. composto por múltiplas cópias da proteína estru-
tural p72 (também referida como p73). Essa es-
2 Classificação trutura contém um terço da massa protéica dos
vírions e determina a estrutura icosaédrica do
O ASFV é o único membro no gênero Asfivi- vírion. Os capsômeros do ASFV são arranjados
rus e também da família Asfarviridae, uma famí- de forma hexagonal, possuem 13 nm de diâmetro
516 Capítulo 19

A B
Envelope externo
Capsídeo
Membrana interna 1
Membrana interna 2
Núcleo ou core

Matriz ou capa do
núcleo

200 nm

Fonte: A) Dra Sharon Brookes, IAH, Pirbright, UK ( ICTVdB).

Figura 19.1. Vírions da família Asfarviridae. A) Fotografia de microscopia eletrônica de um vírion do ASFV; B)
Ilustração esquemática de um vírion e seus componentes.

e apresentam uma cavidade central. O número é codificada pela região mais conservada do ge-
de triangulação do ASFV tem sido estimado em noma. Entre essas, estão as proteínas de membra-
T=189 a T=127, sugerindo que entre 1.892 e 2.172 na e outras proteínas estruturais, além de proteí-
capsômeros formam o capsídeo. Revestindo ex- nas recentemente envolvidas nas diversas etapas
ternamente o capsídeo existe uma membrana de morfogênese das partículas víricas.
lipídica adquirida pelo brotamento do vírus na Outras proteínas do ASFV apresentam se-
membrana plasmática, mas que não é necessária qüências similares a proteínas ou enzimas celu-
para a infectividade viral. lares, incluindo aquelas que participam do meta-
O genoma do ASFV é constituído por uma bolismo de nucleotídeos, da replicação e reparo
molécula de DNA de fita dupla de aproximada- do DNA, da transcrição e da modificação de pro-
mente 190 kb, com regiões terminais repetidas teínas, e também as proteínas requeridas para
e invertidas que contêm estruturas secundárias atividades enzimáticas que estão presentes nos
(hairpin-loops) próximas às extremidades. Pró- vírions ou são induzidas em células infectadas.
ximo aos hairpins terminais são encontradas se- O ASFV também codifica proteínas que me-
qüências semelhantes àquelas envolvidas na re- deiam as interações vírus-célula hospedeira, de-
solução dos concatêmeros durante a replicação terminam a virulência e interferem em mecanis-
do genoma dos poxvírus. A região central de mos que favorecem a replicação viral na célula
125 kbp do genoma contém genes conservados hospedeira, incluindo homólogos dos inibidores
entre os diferentes isolados, enquanto as regiões de apoptose celulares (IAP), Bcl-2, IkB, proteínas
terminais são variáveis, possuindo genes com di- semelhantes à lecitina e proteínas CD2. Notavel-
ferentes composições e números de cópias entre mente, várias proteínas que influenciam na viru-
isolados. Nessas regiões estão presentes os genes lência e no espectro de hospedeiros estão entre as
pertencentes a famílias multigênicas, que são mais variáveis entre os isolados do ASFV.
importantes para a determinação do espectro de Os vírions do ASFV são estáveis sob condi-
hospedeiros e da virulência. ções ambientais, resistindo a amplas variações de
O genoma do ASFV codifica cerca de 150 temperatura e pH. O vírus preserva a viabilidade
proteínas, indicando a complexidade estrutural e após seis meses em embutidos, ou após anos em
biológica deste vírus. A maioria dessas proteínas carnes congeladas, indicando que os subprodu-
Asfarviridae 517

tos de suínos podem ser importantes meios de morfogênese viral, que se localizam próximo ao
disseminação de vírus. Os vírions intactos são centro de organização dos microtúbulos. De fato,
muito sensíveis a solventes lipídicos, detergen- a ruptura dos microtúbulos induzida por drogas
tes e agentes oxidantes, como o hipoclorito. Em inibe a síntese de DNA viral, o acúmulo e pro-
condições de laboratório, o armazenamento de teínas e a replicação do genoma, indicando que
tecidos infectados a -20ºC não é recomendado, o transporte ao longo dos microtúbulos é impor-
enquanto a -70ºC a infectividade é mantida por tante nas etapas iniciais da replicação do ASFV.
tempo indeterminado.
4.3 Expressão gênica
4 Replicação
4.3.1 Transcrição
O vírus é capaz de replicar em uma varieda-
de de células de origem suína e pode também ser Os vírions do ASFV contêm a RNA polime-
adaptado para multiplicar em linhagens celula- rase dependente de DNA, sugerindo que a trans-
res de outras espécies. Grande parte dos conheci- crição e síntese de RNAs mensageiros (mRNA) se
mentos sobre a biologia do ASFV foi adquirida a inicia imediatamente após a penetração, indepen-
partir de estudos sobre a sua replicação em culti- dente de enzimas e fatores celulares. A expressão
vos celulares. gênica do ASFV, semelhante a dos poxvírus, con-
siste de uma transcrição inicial de genes virais
4.1 Adsorção específicos e de uma fase tardia de transcrição.
Essa fase tardia é dependente de síntese protéica
Várias proteínas virais se ligam a compo- prévia e do início da replicação do DNA.
nentes da superfície da célula hospedeira, in- A expressão dos genes iniciais pode ser de-
cluindo a proteína conservada p12 (p061R), a tectada já duas horas após a infecção (pi), com
proteína estrutural p54, e a proteína de membra- o pico da síntese ocorrendo entre 4 e 8 horas pi.
na p30 (também chamada de p32 e de pCP204L). Os transcritos iniciais possuem uma pequena
Evidências sugerem a participação da p72 e p54 seqüência líder não-traduzida na região 5’ e pos-
na ligação do vírus com a membrana celular, e da suem extremidades 3’ distintas. A expressão dos
p30 na internalização do vírion. No entanto, anti- genes tardios é totalmente dependente da repli-
corpos neutralizantes contra essas proteínas não cação do DNA viral e atinge o pico entre 12 a 16
são suficientes para conferir proteção em camun- horas pi. Há evidências de que os transcritos tar-
dongos. Embora a identidade dos receptores que dios também contêm seqüências não-traduzidas
medeiam a adsorção e penetração do ASFV não na extremidade 5’ e terminam com seqüências de
seja conhecida, moléculas potencialmente envol- poli-timidina (poliT).
vidas no papel de receptor têm sido detectadas Uma classe intermediária de mRNAs com
na superfície de macrófagos suínos. cinética de transcrição distinta tem sido caracte-
rizada. Embora sejam dependentes da replicação
4.2 Penetração do DNA viral como os genes tardios, os trans-
critos intermediários utilizam sítios de iniciação
A internalização do ASFV nas células é in- diferentes e apresentam uma cinética diferente
dependente de temperatura e de energia, mas é de produção. Esses transcritos podem ser detec-
um processo dependente de redução do pH, o tados entre 4 e 6 horas após a infecção e atingem
que sugere o mecanismo de endocitose mediada expressão máxima ao redor de 6 a 8 horas pi, de-
por receptor. Neste caso, a fusão do envelope do crescendo durante o máximo da expressão dos
ASFV com a membrana celular ocorreria nos en- genes tardios. Similarmente, os genes intermedi-
dossomos. Tem sido sugerido que os núcleos dos ários do vírus vaccinia são transcritos a partir do
vírions seriam transportados no sentido retró- DNA viral recém-replicado e codificam fatores
grado ao longo dos microtúbulos até os sítios de de transcrição necessários à expressão dos genes
518 Capítulo 19

tardios. Fatores de ativação dos genes do ASFV maturação das proteínas. O ASFV codifica uma
ainda não foram identificados, mas alguns pro- proteína homóloga a enzima celular que conjuga
dutos possuem homologia com fatores de trans- proteínas com a ubiquitina celular (pI215L), dire-
crição do vírus vaccinia. cionando-as para a degradação.

4.3.2. Síntese e modificação das 4.4 Replicação do DNA viral


proteínas
A síntese de DNA viral em monócitos de
A produção das proteínas do ASFV inicia em suínos infectados in vitro inicia-se três a quatro
fases bem precoces do ciclo e segue a mesma ci- horas após a infecção e atinge níveis máximos
nética da transcrição, resultando inicialmente na ao redor de 5 horas pi. O ASFV codifica várias
síntese de proteínas não-estruturais e, mais tar- enzimas que estão envolvidas na replicação do
diamente, na produção das proteínas estruturais. genoma, incluindo uma topoisomerase de DNA,
As proteínas produzidas sofrem diferentes modi- helicase, polimerase, ligase e proteínas de asso-
ficações após a tradução. Aproximadamente 100 ciação com o DNA.
proteínas virais de 10 a 220 kDa podem ser detec- A replicação do genoma parece ocorrer em
tadas em células infectadas, e as proteínas tardias duas fases. Uma fase inicial, que ocorre no núcleo
correspondem a aproximadamente o dobro das e uma tardia e mais proeminente, que ocorre no
proteínas iniciais. Embora as proteínas estejam interior das fábricas virais. Em concordância com
preferencialmente localizadas nas fábricas virais, o papel do núcleo celular na replicação do DNA,
outros padrões de localização são observados, a replicação viral é marcadamente inibida em cé-
incluindo o nuclear, citoplasmático difuso e em lulas Vero enucleadas. No entanto, extratos cito-
membranas celulares. plasmáticos coletados 8 horas pi foram capazes
O ASFV codifica duas poliproteínas, a pp220 de suportar a síntese de DNA, indicando que o
(pCP2475L) e a pp62 (pCP530R) que sofrem cli- núcleo é requerido somente nas fases iniciais. Foi
vagem pela protease viral após a tradução e du- demonstrada a atividade de transporte citoplas-
rante a morfogênese dos vírions, originando as ma-núcleo de duas proteínas virais estruturais: a
proteínas estruturais maduras. A pp220 foi a p37 e a proteína de reparo do DNA.
primeira precursora de proteínas estruturais des- O mecanismo de replicação do genoma do
crita para os vírus DNA e apresenta 2475 amino- ASFV não está bem esclarecido. A presença de dí-
ácidos miristilados. Essa proliproteína sofre um meros formados pela ligação entre as seqüências
processamento temporalmente regulado origi- terminais do genoma sugere um mecanismo de
nando intermediários de 90 e 55 kDa, e as proteí- replicação via formação de concatâmeros, cujas
nas estruturais maduras p150, p37, p34 e p14. As unidades genômicas estão ligadas entre si. Após
duas poliproteínas são expressas tardiamente na a replicação, as moléculas de DNA resultantes,
infecção e seu processamento ocorre entre uma e presentes nas fábricas virais, se condensam em
três horas após a sua síntese. As proteínas resul- uma estrutura pró-nucleóide que é inserida em
tantes se constituem nos principais componentes partículas icosaédricas durante a maturação dos
da camada de revestimento externo do núcleo vírions.
dos vírions. Algumas proteínas codificadas pelo genoma
A proteína pS273R apresenta similaridade viral provavelmente medeiam funções que indi-
com proteases encontradas no vírus vaccinia e retamente aumentam ou asseguram a fidelidade
nos adenovírus, além de ser semelhante a protea- da replicação do genoma, incluindo aquelas en-
ses celulares. Esta enzima é uma protease de cis- volvidas no metabolismo de nucleotídeos e no re-
teína, responsável pela clivagem da p220, sendo paro no DNA. O aumento de atividade enzimá-
encapsidada nos vírions. O ASFV produz efeitos tica celular induzida pela replicação viral e/ou a
adicionais em nível de tradução ou após esta tra- presença de proteínas virais homólogas indicam
dução, afetando o direcionamento, estabilidade e que a timidina quinase, timidilato sintetase, ribo-
Asfarviridae 519

nucleotídeo sintetase e dUTPase virais propor- com a montagem da partícula viral e é essencial à
cionam um aumento significativo na quantidade morfogênese do núcleo ou core.
de desoxiribonucleotídeos disponíveis para a sín- A formação das fábricas virais envolve al-
tese de DNA. A dUTPase seria responsável por terações drásticas no citoplasma da célula hos-
minimizar a incorporação errada de deoxiuridina pedeira, incluindo o rearranjo de organelas, das
genotóxica ao genoma viral. Além disso, o vírus membranas e do citoesqueleto. A infecção pelo
codifica diferentes proteínas envolvidas no repa- ASFV induz a perda da cadeia do compartimen-
ro do DNA, que realizam a remoção de nucleotí- to de secreção tardio do trans Golgi. As mitocôn-
deos errados incorporados à cadeia nascente de drias migram e se acumulam próximas às fábricas
DNA. virais em um evento dependente dos microtúbu-
los, assumindo uma morfologia consistente com
4.5 Morfogênese um aumento da respiração e em sincronia com a
indução do estresse mitocondrial pelas proteínas
A replicação viral ocorre primariamente em virais, como a Hsp60. A cadeia de microtúbulos
fábricas virais que são inicialmente observadas às se desorganiza após o início da replicação viral
6-8 horas após a infecção. Entre 12 e 24 horas pi e formação das fábricas virais, resultado da re-
As fábricas virais contêm um acúmulo denso de distribuição das proteínas e perda funcional do
um material membranoso amorfo, e uma quanti- centrossomo. As fábricas virais lembram agresso-
dade crescente de capsídeos vazios imaturos e de mos, que são inclusões perinucleares que contêm
partículas virais maturas. acúmulos de proteínas celulares. Entre as seme-
Durante os estágios iniciais da morfogênese, lhanças dessas estruturas estão o recrutamento
a principal proteína estrutural, p72, é recrutada dos chaperones e de mitocôndrias, formação de
do citoplasma e se associa com membranas do RE. microtúbulos, rearranjo dos filamentos interme-
Estruturas membranosas laminares adotam uma diários e o colapso da vimentina.
forma poliédrica que progride para a formação Embora os vírions maduros intracelulares
do capsídeo na face convexa, e da capa do core na sejam infecciosos, eles são transportados para
superfície côncava da membrana. A observação a membrana plasmática onde são liberados por
de que as membranas precursoras dos vírions brotamento, formando os vírions extracelulares
apresentam duas camadas bilipídicas contíguas envelopados. A habilidade da proteína viral tar-
com a membrana do RE, além da presença de dia p14.5 em se ligar ao DNA e interagir com a
proteínas virais associadas a essa organela; e de p72 sugere um papel no encapsidamento do ge-
proteínas virais no lúmen do RE (pXP124L), nas noma. No entanto, a supressão da p14.5 indica
fábricas virais e em vírions purificados, sugerem uma função adicional dessa proteína, envolven-
que um colapso nas cisternas do RE permitiria do a movimentação de vírions intracelulares para
que as suas membranas formassem as membra- a membrana plasmática. De modo semelhante ao
nas internas do vírion. transporte dos vírions nos microtúbulos para as
A p54, uma proteína de ligação com a célula fábricas virais no início da infecção, tardiamen-
hospedeira e que se liga à dineína, é também crí- te os vírions recém-formados se alinham nos
tica para os eventos precoces envolvendo o recru- microtúbulos e, por transporte anterógrado, são
tamento dos precursores das membranas ao RE. transportados das fábricas virais para a membra-
Essa proteína é essencial para a replicação viral e na plasmática. Este transporte é dependente de
sua supressão inibe a morfogênese anteriormente quinesina, uma proteína motora convencional
à formação dos precursores do envelope. Conco- que é recrutada para as fábricas virais e para os
mitantemente à formação do capsídeo, a camada vírions citoplasmáticos. Os vírions do ASFV na
protéica do core se forma na face interna da mem- superfície celular também podem induzir a nu-
brana e compreeende principalmente produtos cleação da actina, similarmente ao vírus vaccinia,
da proteólise das poliproteínas p220 e p62. O pro- que utiliza caudas de actina para facilitar a disse-
cessamento das poliproteínas ocorre juntamente minação direta entre células.
520 Capítulo 19

5 Vírus da peste suína africana


Transmissão por
carrapatos
O ASFV é o agente etiológico da peste suína
africana (ASF), uma doença severa de suínos do-
mésticos e que afeta também suídeos silvestres,
nos quais produz infecção subclínica ou de seve- Infecção de
ridade moderada. Historicamente, a enfermida- suínos
domésticos Ciclo em criações
de tem sido restrita à África subsaariana, onde é domésticas
endêmica, mas já foi esporadicamente encontra-
da em países europeus e americanos. A doença
clássica em suínos domésticos é caracterizada
por hemorragias generalizadas, principalmente
Possível transmissão
em tecidos linfóides, e por altas taxas de mortali- sem a participação
de carrapatos
dade. O agente é mantido na natureza através de
Transmissão por
ciclos alternados de infecção em carrapatos e em carrapatos
suídeos selvagens.

Adulto
5.1 Epidemiologia persistentemente
infectado

Na África subsaariana, o ASFV é mantido


Infecção de
em um ciclo selvático entre os suídeos selvagens carrapatos
e os carrapatos do gênero Ornithodoros (Figu-
ra 19.2). Os warthogs (Potamochoerus aethiopicus)
são os principais hospedeiros naturais, mas o
vírus também foi demonstrado em populações Ciclo
de bushpigs (suínos selvagens, P. porcus) e javalis silvestre Transmissão
transovariana
(Sus scrofa ferus). Tentativas de reproduzir a in-
fecção em outras espécies animais não obtiveram
sucesso.
Na natureza, o vírus é encontrado em popu- Warthogs jovens
lações de carrapatos Ornithodoros sp., onde pode
persistir durante anos. Nos carrapatos, o vírus Inoculação
do vírus
pode ser transmitido pela via sexual e também
de forma vertical para a progênie, contribuindo
Fonte: adaptada de Plowright et al. (1994).
para a sua perpetuação na natureza. Os carra-
patos infectados se constituem no elo entre as Figura 19.2. Ciclo silvestre e doméstico do vírus da peste
suína africana (ASFV) na África.
populações de warthogs e os suínos domésticos,
podendo introduzir a infecção principalmente
cursa com níveis baixos de viremia. A maioria
em criações de suínos ao ar livre. Uma vez intro-
dos warthogs adultos em áreas enzoóticas são so-
duzido em criações domésticas, o vírus pode ser
ropositivos e, provavelmente, muitos deles são
disseminar entre os animais por contato direto e
indireto, sem a participação dos carrapatos. Em persistentemente infectados. Outras espécies de
suínos com a infecção aguda, o vírus é detecta- suídeos silvestres (bushpigs, javalis) raramente
do em todas as secreções e excreções, incluindo apresentam sinais clínicos da infecção e são mais
a secreção ocular, nasal, faríngea, genital, urina e resistentes à transmissão por contato direto e in-
fezes. A transmissão natural entre suínos prova- direto do que os suínos domésticos. No entanto,
velmente ocorre pela via oronasal. a duração da viremia nessas espécies pode se
Diferentemente dos suínos domésticos, a estender. Embora a replicação do ASFV in vitro
infecção de warthogs geralmente é subclínica e em leucócitos de suínos domésticos e de warthogs
Asfarviridae 521

seja similar, a replicação, disseminação e indução detectada em uma ocasião em Cuba (1971), onde
de apoptose em linfócitos in vivo são reduzidas a erradicação exigiu o sacrifício de 400.000 ani-
nos suídeos silvestres quando comparada com os mais. No final da década de 1970, o ressurgimento
suínos domésticos. da doença na Península Ibérica foi acompanhado
As taxas de morbidade e mortalidade da de surtos na República Dominicana, Haiti, Cuba
ASF em suínos domésticos podem atingir 100%. e Brasil. Esses surtos também foram prontamente
No entanto, vários fatores podem influenciar es- combatidos. Atualmente a doença se mantém en-
ses índices, incluindo a virulência da cepa viral. dêmica apenas na metade sul da África.
Após surtos de ASF, não é raro encontrar animais
que sobreviveram à infecção. Esses animais geral- 5.2 Patogenia, sinais clínicos
mente apresentam uma infecção crônica ou suba- e patologia
guda e sobrevivem. Os animais que sobrevivem à
infecção primária apresentam uma resposta imu- Quando os suínos são expostos pela via oro-
ne capaz de proteger contra a reinfecção frente ao nasal, o vírus replica inicialmente na mucosa fa-
vírus homólogo, mas podem permanecer suscep- ríngea, nas tonsilas e os linfonodos regionais, de
tíveis a cepas heterólogas. Animais portadores onde se dissemina sistemicamente pelo sangue.
são importantes na manutenção e disseminação O vírus infecta primariamente as células do sis-
do agente. Estudos sorológicos em áreas endêmi- tema fagocítico mononuclear, incluindo macró-
cas têm demonstrado índices de soropositividade fagos teciduais e linhagens específicas de células
de até 8% em suínos enviados ao abate. reticulares. Os tecidos infectados apresentam le-
Na natureza, o ASFV infecta carrapatos do sões extensas, principalmente quando infectados
gênero Ornithodoros sp. e pode ser isolado desses por cepas de alta virulência. Cepas de virulência
insetos até vários anos após a infecção. A infecção moderada também infectam esses tipos celula-
natural dos carrapatos pode ocorrer em todos os res, mas os graus de envolvimento tecidual e a
estádios de desenvolvimento, com eficiência de severidade das lesões são menores. A habilidade
infecção variando entre 0,3 a 1,7%. Os carrapatos do ASFV em replicar e induzir citopatologia nos
podem se infectar ao sugar sangue de suídeos vi- macrófagos in vivo parece ser crítico para a viru-
rêmicos ou por transmissão sexual, transovaria- lência do vírus.
na e transestadial. Os títulos virais em carrapatos Na patogenia da infecção pelo ASFV, a
infectados coletados de warthogs variam entre 104 apoptose ou morte celular programada parece
and 106 HAD50. A infecção em carrapatos é carac- desempenhar um papel importante. A infecção
terizada pelo estabelecimento de infecção persis- de suínos resulta em apoptose de macrófagos, de
tente, na qual a replicação viral ocorre em níveis megacariócitos e principalmente de linfócitos. A
altos em certos tecidos e órgãos. Os carrapatos apoptose dos linfócitos é significativa nos linfo-
infectados excretam o vírus tanto na saliva como nodos, no baço e no timo, e é a causa primária
nos fluidos coxais. Diferenças na taxa de infecção, da depleção de linfócitos e imunodeficiência que
na dose infecciosa e em infecções persistentes têm é característico da doença. Diferentemente dos
sido observadas de acordo com a cepa viral. macrófagos, os linfócitos não são susceptíveis à
A infecção pelo ASFV é endêmica na maioria infecção pelo ASFV. Isto sugere que um mecanis-
dos países da África subsaariana e foi ocasional- mo indireto, possivelmente envolvendo citoqui-
mente detectada em países europeus, do Caribe nas secretadas pelos macrófagos infectados, seja
e da América. O vírus foi introduzido na Euro- responsável pela apoptose dos linfócitos.
pa mais de uma vez, provavelmente pelo movi- As hemorragias, edemas e infusões de lí-
mento de animais ou de subprodutos. A partir da quidos nas cavidades corporais parecem estar
Península Ibérica, o vírus atingiu a França, Ilhas associadas com trombocitopenia, coagulopatia,
da Madeira, Sardenha e Malta, Bélgica e Holan- fibrinólise e disfribinogenemia, e também com
da. Em todos os casos, a infecção parece ter sido a perda da integridade do endotélio vascular. A
prontamente erradicada. A infecção foi também formação de complexos imunes e liberação de
522 Capítulo 19

prostaglandina E por macrófagos infectados po- sobrevivem à infecção. Em condições experimen-


dem ser responsáveis pela agregação plaquetária tais, a persistência viral é a seqüela observada em
e trombocitopenia. A fibrinólise e desfibrinoge- suínos domésticos que sobrevivem à infecção.
nemia parecem estar associadas com a liberação Nesses animais, o DNA viral pode ser detectado
de ativadores do plasminogênio por macrófagos por PCR nos monócitos até 500 dias após a infec-
ativados em resposta à infecção. As lesões ob- ção; no entanto, partículas víricas infectivas não
servadas em casos crônicos têm sido atribuídas são consistentemente isoladas dessas amostras.
a componentes auto-imunes, incluindo a deposi- A exemplo dos outros vírus DNA grandes,
ção de complexos imunes e indução de inflama- o AFV afeta e modula a resposta imunológica do
ção nos rins, pulmões e pele. hospedeiro. Os macrófagos infectados medeiam
Diferentes genes do ASFV e diferentes regi- alterações na resposta celular e, provavelmente,
ões gênicas estão associados com a patogenia e desempenham um papel importante na apoptose
a virulência da infecção em suínos domésticos, severa observada em tecidos linfóides. O ASFV
mas não afetam a replicação do vírus em macró- inibe a expressão de citoquinas pró-inflamatórias
fagos in vitro. Dois desses genes, o UK (DP96R) e como o TNF, IFN, e IL-8, enquanto induz a pro-
o 23-NL (DP71L ou 114L), estão localizados pró- dução de TGF pelos macrófagos infectados. No
ximos à região altamente variável do genoma e se entanto, um aumento da expressão do TNF tem
constituem em prováveis fatores de virulência e, sido descrita na infecção pelo ASFV in vitro e in
portanto, alvos para a manipulação genética para
vivo. Esse aumento pode possuir um papel central
a produção de mutantes vacinais.
na patogenia da infecção, incluindo alterações na
A infecção de suínos domésticos pode resul-
permeabilidade vascular, na coagulação e na in-
tar em diferentes formas clínicas, variando desde
dução de apoptose em linfócitos não infectados.
infecção subclínica até doença fatal, dependendo
Os achados hematológicos nos animais do-
de fatores virais e do hospedeiro. Na forma agu-
entes incluem leucopenia, acompanhada de lin-
da da doença, o período de incubação varia entre
fopenia absoluta, monocitopenia e neutropenia.
cinco e 15 dias. Os animais infectados apresen-
A leucopenia parece ser devida à destruição de
tam febre (41-42°C), anorexia, congestão, cianose
linfócitos, monócitos e neutrófilos pela replicação
da pele, aumento da freqüência cardíaca e respi-
viral. No entanto, a infecção de linfócitos ainda
ratória, descarga nasal, incoordenação, vômito e
não foi inequivocamente demonstrada. A trom-
finalmente coma e morte. Os animais infectados
bocitopenia se desenvolve em estágios avança-
com o ASFV geralmente morrem entre dois e nove
dias após a infecção. Os achados patológicos na dos, e os níveis de plaquetas podem ficar drasti-
infecção aguda incluem leucopenia, linfopenia de camente reduzidos.
linfócitos T e B, trombocitopenia, apoptose de cé- Os achados macroscópicos nos casos agudos
lulas mononucleares e de linfócitos, hemorragias e subagudos incluem cianose (azul-purpúrea) na
nos linfonodos, no fígado, nos rins, e nos tratos pele, principalmente no focinho, extremidades
respiratório e gastrintestinal, congestão da pele e das orelhas, cauda e extremidades dos mem-
de membranas serosas e grave edema pulmonar bros. Níveis variados de congestão, juntamente
interlobular. com petéquias e equimoses estão freqüentemente
A infecção subaguda dura aproximadamen- presentes na face lateral e inferior do pescoço, no
te três a quatro semanas, e os animais apresen- peito, abdome e membros.
tam febre remitente, perda de peso, pneumonia, Aumento de volume e hemorragias em lin-
dispnéia, insuficiência cardíaca e edema nas arti- fonodos superficiais e viscerais se constituem nos
culações. Hemorragias nos linfonodos e em ou- achados mais marcantes da forma aguda da do-
tros tecidos podem ser observados na necropsia, ença. As cavidades corporais geralmente contêm
mas não são tão freqüentes como nas infecções uma quantidade variável de líquido amarelado
agudas. ou sanguinolento, material fibrinoso e coágulos
A infecção persistente pelo ASFV tem sido sangüíneos. As serosas apresentam congestão,
descrita em warthogs e em suínos domésticos que petéquias ou equimoses. Hemorragias no peri-
Asfarviridae 523

cárdio e endocárdio também são freqüentemente Em suínos que sobrevivem à infecção obser-
observadas em casos agudos. Hemorragias difu- va-se imunidade sólida contra a cepa homóloga.
sas ou petéquias/equimoses também são encon- Animais que sobrevivem à infecção por cepas de
tradas em uma variedade de órgãos e tecidos, virulência moderada ou por variantes atenuadas
como a mucosa traqueal e faríngea, espaço pleu- desenvolvem uma resistência de longa duração
ral, estômago, rins, entre outros. ao desafio frente a vírus homólogos, mas rara-
As lesões na forma crônica diferem marca- mente frente a vírus heterólogos.
damente, sobretudo, em relação às hemorragias e
necrose do tecido linforreticular, que são achados
pouco freqüentes e menos proeminentes do que
5.4 Diagnóstico
nas formas aguda e subaguda.
O reconhecimento de surtos de ASF aguda
5.2.1 A infecção nos carrapatos não é difícil quando os achados clínico-patológi-
cos e epidemiológicos são analisados. No entanto,
Após a infecção experimental do Ornithodo- a dificuldade ocorre no diagnóstico de infecção
ros porcinus porcinus, uma replicação inicial ocor- subaguda, crônica e subclínica, principalmente
re nas células fagocíticas presentes no epitélio em países onde a enfermidade é endêmica em
do intestino. Aos 15 dias pi a replicação viral é suínos criados ao ar livre.
detectada em células não diferenciadas do trato Sempre que possível, o diagnóstico da ASF
digestivo. A disseminação da infecção do intes- deve ser confirmado por testes laboratoriais, e
tino para outros tecidos, incluindo as glândulas para isto uma gama de técnicas está disponível.
salivares e glândulas coxais, ocorre em duas a Nestes testes incluem-se métodos para detecção
três semanas após a infecção. Sítios secundários de vírus, antígenos e ácidos nucléicos virais, além
de replicação viral incluem os hemócitos (tipo I de anticorpos específicos. O teste de hemadsorção
e III), tecido conjuntivo, glândulas coxais, glân- (HAD) é um teste sensível e rotineiramente utili-
dulas salivares e tecido reprodutivo. Para que a zado para detectar o ASFV após inoculação em
infecção pelo ASFV no artrópode seja generali- cultivo celular. No entanto, nem todas as cepas
zada, a replicação nas células do intestino parece do ASFV apresentam atividade de hemadsorção.
ser de grande importância. Essa importância foi Essas cepas podem, então, ser identificadas pelo
demonstrada através da infecção dos carrapatos efeito citopático (ECP) seguido da detecção de
com a cepa patogênica Malawi Lil20/1, que não é antígenos virais por imunofluorescência. Isola-
capaz de replicar nas células intestinais ao infec- dos de campo do ASFV replicam bem em culti-
tar os carrapatos. vos de monócitos e macrófagos suínos, e podem
ser adaptados a replicar em células de linhagem,
5.3 Imunidade com as PK-15 e Vero.
Vários testes de ELISA têm sido desenvol-
A resposta humoral e celular são compo- vidos para a detecção de anticorpos específicos
nentes importantes da imunidade contra o ASFV. contra o ASFV e são particularmente úteis para
Anticorpos anti-ASFV são capazes de proteger o diagnóstico rápido e em grande escala. Recen-
os suínos de uma infecção grave e fatal. Embora temente, métodos baseados na reação da polime-
anticorpos neutralizantes direcionados às prote- rase em cadeia (PCR) e PCR em tempo real têm
ínas virais p30, p54 e p72 sejam encontrados em sido desenvolvidos, constituindo-se em métodos
animais convalescentes, estes não são suficientes sensíveis e específicos de detecção do agente,
para conferir proteção. Linfócitos T CD8+, que se mesmo em estágios pré-clínicos da infecção.
desenvolvem em seis a sete dias após a infecção, O diagnóstico diferencial deve considerar a
parecem desempenhar um importante papel na peste suína clássica, babesiose, tripanossomíase,
resposta imune protetora contra o ASFV. erisipela, pasteurelose, salmonelose e antrax.
524 Capítulo 19

5.5 Controle e profilaxia JOUVENET, N. et al. Transport of african swine fever virus
from assembly sites to the plasma membrane is dependent on
microtubules and conventional kinesin. Journal of Virology,
Atualmente não existem vacinas disponíveis v.78, p.7990-8001, 2004.
contra o ASFV e o controle da infecção baseia-se
KLEIBOEKER, S.B. et al. African swine fever virus infection in
em procedimentos de quarentena e abate dos ani-
the argasid host, Ornithodoros porcinus porcinus. Journal of
mais infectados. Tentativas de imunizar animais Virology, v.72, p.1711-1724, 1998.
com extratos de células infectadas, com o sobre-
KONNO, S.; TAYLOR, W.D.; DARDIRI, A.H. Acute African
nadante de leucócitos de suínos infectados e com
swine fever: proliferative phase in lymphoreticular tissue and
vírions inativados falharam na indução de uma the reticuloendothelial system. The Cornell Veterinarium, v.61,
resposta imune protetora. A imunização de suí- p.71-84, 1971.
nos com uma vacina atenuada por deleção de ge-
MISKIN, J.E. et al. A viral mechanism for inhibition of the cellular
nes de virulência conferiu proteção contra o vírus
phosphatase calcineurin. Science, v.281, p.562-565, 1998.
homólogo, mas não contra cepas heterólogas.
O controle da ASF em áreas de alto risco na MONTGOMERY, R.E. On a form of swine fever occurring in
British East Africa (Kenya Colony). Journal of Comparative
África é essencial e deve se concentrar em medi-
Pathology, v.34, p.159-191, 1921.
das que evitem o contato entre os suínos domés-
ticos e os reservatórios silvestres do vírus, junta- OURA, C.A.; POWELL, P.P.; PARKHOUSE, R.M. African swine
fever: a disease characterized by apoptosis. The Journal of
mente com procedimentos como vazio sanitário e
General Virology, v.79, p.1427-1438, 1998.
desinfecção de instalações e ambientes. Na África
do Sul e Quênia, essa política tem sido aplicada PICCONE, M.E. et al. African swine fever virus multigene family
com sucesso considerável. Outras medidas de 360 and 530 genes affect host interferon response. Journal of
Virology, v.78, p.1858-1864, 2004.
controle incluem a erradicação dos carrapatos e
o controle da movimentação de animais, e da im- PLOWRIGHT, W.; THOMSON, G.R.; NESER, J.A. African swine
portação e exportação de suínos e seus subpro- fever. In: COETZER, J.A.W.; THOMSON, G.R.; TUSTIN, R.C.
(eds.) Infectious diseases of livestock. Cape Town, South Africa:
dutos. Países livres devem concentrar esforços
Oxford, 1994. Cap.51, p.568-599.
para impedir a introdução do agente, através de
barreiras sanitárias que impeçam a entrada de SIMON-MATEO, C.; ANDRES, G.; VINUELA, E. Polyprotein
animais e subprodutos de áreas potencialmente processing in African swine fever virus: a novel gene expression
strategy for a DNA virus. The Embo Journal, v.12, p.2977-2987,
de risco.
1993.

6 Bibliografia consultada TULMAN, E.R.; ROCK, D.L. Novel virulence and host range
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proteins p54 and p30 are involved in two distinct steps of virus
attachment and both contribute to the antibody-mediated
protective immune response. Virology, v.243, p.461-471, 1998.

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by African swine fever virus. The EMBO Journal, v.11, p.361-
366, 1992.
CALICIVIRIDAE
John Neill1 20
1 Introdução 527

2 Histórico e classificação 527

3 Estrutura e propriedades dos vírions 528

3.1 Estrutura do genoma, expressão gênica e replicação 529

4 Calicivírus de importância em medicina veterinária 531

4.1. Calicivírus felino 531


4.1.1. Epidemiologia 531
4.1.2. Patogenia e sinais clínicos 531
4.1.3 Prevenção e controle 532

4.2 Vírus do exantema vesicular dos suínos 532

5 Outros calicivírus 533

5.1 Vírus dos leões marinhos de San Miguel 533


5.2 Lagovírus (vírus da doença hemorrágica dos coelhos) 533
5.3 Norovírus e sapovírus 534

6 Diagnóstico e controle 534

7 Bibliografia consultada 535

1
Tradução: Luiz Carlos Kreutz
1 Introdução exantema vesicular dos suínos (VES). Esse vírus,
até então desconhecido, foi denominado vírus do
A família Caliciviridae possui importantes exantema vesicular dos suínos (VESV). Devido a
patógenos de animais, incluindo o calicivírus similaridades físicas, o agente foi originalmente
felino (FCV), o vírus do exantema vesicular dos classificado como vírus da febre aftosa (FMDV).
suínos (VESV), o vírus dos leões marinhos de San No entanto, o VESV foi posteriormente reconhe-
Miguel (SMSV) e o vírus da doença hemorrági- cido como um novo agente viral, principalmente
ca dos coelhos (RHDV). Além disso, calicivírus porque os hospedeiros eram diferentes daqueles
também já foram isolados de cães, macacos, bovi- do FMDV. Em 1972, um calicivírus foi isolado
nos, martas, galinhas, répteis, anfíbios e insetos. de leões marinhos na ilha de San Miguel, Cali-
Geralmente, os calicivírus estão associados à do- fórnia, e denominado de San Miguel sea lion virus
enças do trato respiratório, doenças gastrintesti- (SMSV). O isolamento do SMSV foi realizado a
nais ou doenças sistêmicas. Em humanos, os cali- partir de fetos de leões marinhos abortados. O
civírus são importantes causas de gastrenterites, VESV e o SMSV são morfológica e imunologica-
principalmente em crianças e idosos. mente similares e compartilham características
Os calicivírus possuem um amplo espectro genéticas. Esses vírus causam doenças vesicula-
de hospedeiros e devido a similaridades de mor- res e compõem um genogrupo único.
fologia, dimensões e propriedades físicas, foram O calicivírus felino (FCV) foi isolado na dé-
originalmente classificados na família Picornavi- cada de 1950 de um surto de doença em felinos.
ridae. Possuem vírions pequenos, sem envelope, Inicialmente acreditava-se que a doença era cau-
e apresentam como genoma uma molécula de sada pelo vírus da panleucopenia felina (FPLV),
RNA linear de fita simples e polaridade positiva. um membro da família Parvoviridae. Observou-
Com o desenvolvimento das técnicas de biologia se, no entanto, que o vírus isolado produzia efei-
molecular, foi possível realizar uma análise mais to citopático com extrema rapidez em cultivos
precisa desses vírus, principalmente da seqüên- celulares de origem felina, o que não poderia ser
cia de nucleotídeos do genoma e das proteínas atribuído ao FPLV. O FCV está freqüentemente
codificadas. Com essas informações, percebeu-se associado com doença respiratória em felinos e
que os calicivírus não eram relacionados aos pi- é atualmente considerado um dos principais pa-
cornavírus, e assim foram classificados em uma tógenos dessa espécie. Os três calicivírus (VESV,
nova família, denominada Caliciviridae. SMSV e FCV) são classificados no gênero Vesivi-
A família Caliciviridae é composta por qua- rus.
tro gêneros: Vesivirus, Lagovirus, Norovirus e Sa- Em 1984, na China, observou-se uma doença
povirus. Os vesivírus e lagovírus infectam prin- hemorrágica em coelhos, da qual foi isolado um
cipalmente animais. Os norovírus e sapovírus agente viral denominado vírus da doença hemor-
infectam primariamente humanos, mas já foram rágica dos coelhos (RHDV). Desde então, a doen-
também encontrados em bovinos e suínos. Atual- ça tem sido detectada em outros países asiáticos e
mente, discute-se a possibilidade de que animais também na Europa. Em 1986, na Europa, isolou-
domésticos possam ser os reservatórios dos cali- se um vírus de lebres com doença hemorrágica,
civírus que infectam humanos. o qual foi denominado vírus da síndrome das
lebres marrons européias (EBHSV). Estudos re-
2 Histórico e classificação trospectivos em amostras de fígado preservadas
datam a existência do vírus pelo menos desde
Os calicivírus foram originalmente descri- 1976. Ambos os vírus causam doenças similares,
tos nos Estados Unidos, em meados da década porém diferem antigenicamente e também no es-
de 1930, associados com uma doença vesicular pectro de hospedeiros que infectam. O RHDV e o
contagiosa grave, posteriormente denominada EBHSV compõem o gênero Lagovirus.
528 Capítulo 20

Os calicivírus entéricos humanos foram des- 3 Estrutura e propriedades


critos pela primeira vez após análises por meio dos vírions
de imunoeletromicroscopia em amostras de fe-
zes obtidas de surtos de diarréia em crianças de Os calicivírus são vírions pequenos (27-40
escolas de Norwalk, Ohio, em 1968. Esse vírus, nm), icosaédricos, sem envelope, formados por
denominado de agente Norwalk, tem sido, desde 180 cópias idênticas de uma única proteína, ar-
então, membro de um grande grupo de caliciví- ranjadas em 90 dímeros, com a forma de arcos. A
rus causadores de gastrenterite em humanos. Es- associação dessas unidades forma 32 depressões
ses vírus gastrentéricos, denominados vírus pe- em forma de cálice na superfície dos vírions. A
quenos de morfologia arredondada (small round forma dessas depressões suscitou o termo cali-
structured virus = SRSV), não possuem as depres- civírus. Os vírions são relativamente resistentes
sões peculiares na forma de cálice observadas por ao calor e desinfetantes, éter e clorofórmio, mas
microscopia eletrônica nos calicivírus e, por isso, não resistem muito a condições de pH baixo (3
não foram classificados na família Caliciviridae. a 5). A densidade das partículas víricas varia en-
Um segundo grupo de vírus, os calicivírus hu- tre 1.33 e 1.41 g/cc. Outras características físicas
manos clássicos (HuCVs), que possuem as típicas e moleculares importantes dos calicivírus encon-
depressões em forma de cálice na superfície, cau- tram-se discriminadas na Tabela 20.1. A Figura
sam doenças entéricas idênticas aquelas causadas 20.1 apresenta uma micrografia eletrônica de co-
pelo SRSV. Os vírus originalmente classificados loração negativa de um calicivírus e um modelo
como SRSV compõem agora o gênero Norovirus e de reconstrução tridimensional de uma partícula
o HuCVs são classificados no gênero Sapovirus. do vírus Norwalk.

Tabela 20.1. Propriedades biológicas, estruturais e moleculares dos vírus pertencentes a família Caliciviridae.

Vesivirus Lagovirus Norovirus Sapovirus

Espectro de Amplo Coelhos, lebres Humanos, suínos, Humanos, bovinos,


hospedeiros camundongos suínos
Lesões vesiculares,
Hepatite, doença Hepatite, doença Hepatite, doença
Sinais clínicos abortos, infecção do
Hemorrágica hemorrágica hemorrágica
Trato respiratório
superior

Apenas o norovírus Apenas o calicivírus


Replicação em Sim Não
murino entérico suíno
1
cultivo celular

Morfologia típica de
calicivírus (ME) Sim Sim Não Sim

Extensão do genoma 7.7 - 8.3 kb2 7.35 7.65 7.4

Número de ORFs 3 2 3 2

Extensão da ORF1 2
(aminoácidos) 1763-1878 2345 1790 2281

Massa da proteína 2 4
60 58-60 58-60
73-78 ; 59-61
do capsídeo (kDa)

1 2 3 4
Apenas a cepa adaptada em cultivo; FCV-SMSV/VESV; Proteína precursora do capsídeo; Proteína do capsídeo madura
Caliciviridae 529

A B
B

Fonte: A) Dra C. Büchen-Osmond, ICTVdB; B) Dr B. V. Venkataran, Baylor College of Medicine.

Figura 20.1. Vírions da família Caliciviridae. A) Fotografia de microscopia eletrônica de coloração negativa de um
calicivírus típico; B) Modelo tridimensional de uma partícula do vírus Norwalk.

3.1 Estrutura do genoma, expressão tradução direta do RNA genômico. As proteínas


gênica e replicação não-estruturais incluem a replicase viral (polime-
rase de RNA dependente de RNA), protease de
O genoma dos calicivírus é constituído por cisteína e helicase de RNA. Algumas delas ainda
uma molécula de RNA de fita simples, linear, de não tiveram a sua função identificada. Estas pro-
polaridade positiva, cuja extensão varia entre 7.3 teínas apresentam seqüências específicas de ami-
e 8.3 kb, de acordo com o gênero (Tabela 20.1). noácidos também presentes nas proteínas com
O genoma possui uma pequena proteína cova- funções equivalentes dos picornavírus. A ORF-1
lentemente ligada na extremidade 5’ (5’ VPg) e é traduzida em uma poliproteína precursora, que
é poliadenilado em sua extremidade 3’ (Figura é posteriormente clivada pela protease nas prote-
20.2). No citoplasma das células infectadas, o ínas individuais.
genoma serve como RNA mensageiro (mRNA). Após a sua produção pela clivagem da po-
O RNA genômico possui três ORFs (seqüências liproteína, a replicase viral sintetiza uma cópia
abertas de leitura). A ORF-1, localizada na porção de RNA de sentido antigenômico (polaridade
5’, ocupa aproximadamente 65% da extensão do negativa). Esta molécula servirá de molde para
genoma. Esta ORF codifica as proteínas não-es- a síntese de um RNA mensageiro subgenômi-
truturais (além da VPg), que são produzidas pela co (mRNAsg) que será traduzido na proteína

ORF1
Vpg p32 P39 (NTPase) P30 P13 (VpG) P76 (Pro - pol) AAA(n)
P5.6 capsídeo

ORF2
ORF3

Figura 20.2. Estrutura e organização do genoma do calicivírus felino (FCV). A posição e massa molecular das proteínas
codificadas pelas ORFs estão indicadas.
530 Capítulo 20

do capsídeo. Em etapas tardias do ciclo, o DNA teína do capsídeo, e termina na extremidade 3’


complementar serve de molde para a síntese do do RNA antigenômico. Esse mRNAsg também
RNA genômico. A replicase viral é responsável é poliadenilado e contém a VPg ligada à porção
por todas essas etapas. 5’. Nos lagovírus e sapovírus, a ORF-2, que codi-
No terço 3’ do genoma, encontra-se a ORF- fica as proteínas não-estruturais, encontra-se na
2, que codifica a proteína do capsídeo. Esta ORF
mesma seqüência de leitura da ORF-2 que, codi-
não é traduzida diretamente a partir do RNA ge-
fica a proteína do capsídeo (Figura 20.3). Nesses
nômico. Ao contrário, a proteína do capsídeo é
vírus, acredita-se que a proteína do capsídeo seja
produzida pela tradução de um mRNAsg, que,
por sua vez, é produzido pela transcrição da có- clivada a partir da poliproteína não-estrutural,
pia de RNA de sentido antigenômico. A transcri- pela ação da protease de cisteína. Porém, esta
ção do mRNAsg inicia imediatamente antes do proteína também pode ser produzida a partir do
códon de iniciação da ORF, que codifica a pro- mRNAsg.

Vesivirus Genoma RNA 7.7 to 8.3 kb


VPg polyA
Proteínas não-estruturais
RNA subgenômico 2.4 to 2.7 kb
ORF1 VPg polyA
Proteína do capsídeo
ORF3
ORF2

Lagovirus Genoma RNA 7.35 kb


VPg polyA
Proteínas não-estruturais Proteína do capsídeo

ORF1 RNA subgenômico 2.1 kb


VPg polyA
Proteína do capsídeo
ORF2

Norovirus Genoma RNA 7.65 kb


VPg polyA
Proteínas não-estruturais

ORF1 RNA subgenômico ?


VPg polyA
Proteína do capsídeo
ORF2 ORF3

Sapovirus Genoma RNA 7.4 kb


VPg polyA
Proteínas não-estruturais Proteína do capsídeo

ORF1 RNA subgenômico ?


VPg polyA
Proteína do capsídeo
ORF2

Figura 20.3. Organização genômica dos vírus dos gêneros Vesivirus, Lagovirus, Norovirus e Sapovirus. A linha
contínua representa o RNA genômico com a proteína de ligação do genoma (VPg) na extremidade 5' e a cauda poliA na
extremidade 3'. Os RNAs mensageiros subgenômicos (tanto os já caracterizados como os prováveis) estão
demonstrados abaixo da região da qual eles são transcritos. Os retângulos abaixo do RNA genômico representam as
ORFs com a provável posição das respectivas proteínas. Nos lagovírus e sapovírus, a proteína do capsídeo pode ser
produzida tanto pela tradução direta do genoma e clivagem a partir da proteína não-estrutural como pela tradução de
um mRNAsg.
Caliciviridae 531

Uma pequena ORF adicional (ORF-3) está cruzada têm sido observadas entre cepas, porém
presente na porção extrema da região 3’ do RNA outras seqüências de aminoácidos são responsá-
genômico e é traduzida a partir do mRNAsg (ver veis pela reatividade cruzada.
Figuras 20.2 e 20.3). Essa ORF codifica uma peque-
na proteína básica, que é incluída em quantidade 4.1.1 Epidemiologia
pequena nos capsídeos dos vírions maduros. A
função dessa proteína parece estar relacionada A infecção pelo FCV parece estar ampla-
ao empacotamento do RNA genômico e estabili- mente difundida nas populações de felinos do-
zação da partícula viral. A ORF-3 parece ser tra- mésticos e também tem sido detectada em alguns
duzida após a tradução da ORF-2, utilizando um felídeos silvestres. A transmissão natural ocorre
mecanismo de terminação/reiniciação. por contato direto ou indireto por fômites conta-
Os calicivírus penetram por endocitose e minados ou por aerossóis. O vírus pode ser car-
replicam no citoplasma das células hospedeiras, reado mecanicamente entre animais pelo próprio
mediadas por receptores, e a penetração depen- homem. O FCV é prontamente transmitido por
de da acidificação dos endossomos. O VESV e animais durante a infecção aguda. No entan-
FCV apresentam uma replicação rápida e líti- to, a maior fonte de vírus parece ser os animais
ca em células de cultivo derivadas das espécies cronicamente infectados, que são portadores
homólogas. O FCV produz arredondamento e subclínicos da infecção. O estado de portador
desprendimento das células do tapete em células se desenvolve após a fase aguda da doença, e é
de linhagem de rim felino (CRFK). O VESV tam- importante na manutenção do FCV na população
bém replica em células de linhagem Vero. Dentre felina. Os gatos infectados cronicamente apresen-
os prováveis calicivírus recentemente isolados, tam o FCV nas tonsilas e faringe, onde o vírus
aqueles derivados de gastrenterite de suínos e replica em níveis baixos durante meses ou até
de doença vesicular genital de cães replicam bem anos. Essa replicação em baixos níveis nas ton-
em células de cultivo; os outros não são facilmen- silas e a constante disseminação ocorre mesmo
te cultiváveis. na presença de anticorpos protetores. O estresse
pode participar na recrudescência da infecção e
4 Calicivírus de importância aumento da excreção viral. O vírus é excretado
em medicina veterinária em secreções oro-nasais.
Recentemente, alguns estudos demonstra-
ram que calicivírus antigenicamente distintos do
4.1 Calicivírus felino vírus original pode ser recuperado de gatos com
infecção crônica. Isso demonstra que as mutações
O calcivírus felino (FCV) é um agente cos- produzidas durante a replicação, uma caracterís-
mopolita, e é considerado um patógeno impor- tica comum dos vírus RNA, é importante no es-
tante de felídeos. É comum em gatos domestica- tabelecimento e manutenção da infecção crônica.
dos, e já foi isolado de guepardos na Austrália,
e de diversas outras espécies de felinos em zoo- 4.1.2 Patogenia e sinais clínicos
lógicos. O agente também já foi isolado de casos
de glossite em cães. Até o presente, apenas um O vírus penetra principalmente pela via
único sorotipo foi identificado, isso provavel- oronasal e replica inicialmente na orofaringe. O
mente porque o anti-soro produzido contra uma período de incubação da enfermidade varia entre
cepa do FCV reage com todos os isolados. Essas dois e seis dias, e os animais infectados podem
reações sorológicas cruzadas devem-se principal- apresentar uma variedade de sinais clínicos. A
mente à presença de seqüências conservadas de infecção pode ser subclínica ou aguda, e, na maio-
aminoácidos na proteína do capsídeo, e que são ria das vezes, apresenta baixa morbidade e baixa
importantes para a ligação do vírus aos recep- mortalidade. No entanto, em abrigos ou colônias,
tores celulares. Algumas diferenças na proteção a morbidade pode ser alta após a introdução do
532 Capítulo 20

agente. As infecções mais severas são caracteriza- 4.2 Vírus do exantema vesicular dos
das por rinite, traqueíte e pneumonia, e produção suínos
de vesículas na cavidade oral, as quais evoluem
para ulcerações do epitélio. As lesões vesiculares A importância maior do VESV deve-se ao
são geralmente restritas às cavidades nasal e oral. fato de o agente produzir manifestações clínicas
O quadro clínico também apresenta febre, anore- confundíveis com a febre aftosa. Por isso, possui
xia e descarga ocular e nasal. Uma síndrome de importância estratégica e se constitui em doença
claudicação transitória pode também ser obser- de notificação obrigatória, devendo ser diferen-
vada em gatinhos e se caracteriza por dor mus- ciada de outras doenças vesiculares de suínos.
cular, edema das articulações (poliartrite) e lami- Já foram identificados 13 diferentes sorotipos,
nite. A infecção de fêmeas prenhes pode resultar classificados de A a M. Alguns desses sorotipos
em abortos. Nas infecções com cepas de FCV são indistinguíveis do vírus isolado de leões ma-
mais virulentas, a mortalidade pode atingir 30% rinhos (SMSV). Infecções naturais pelo VESV já
em gatos com idade inferior a 12 semanas, e está foram identificadas em suínos, eqüinos, caninos
geralmente associada com extensiva pneumonia e animais silvestres. Os mamíferos marinhos se
e consolidação pulmonar. Além disso, cepas al- constituem nos seus prováveis reservatórios. O
tamente virulentas têm sido descritas recente- VESV é considerado extinto das populações do-
mente, associadas com surtos caracterizados por mésticas de suínos, mas ainda parece existir em
icterícia, edema e alta mortalidade. O estado de mamíferos marinhos. Isto pode representar um
portador crônico pode se estabelecer em animais risco potencial de reintrodução do agente em
que se recuperam da infecção. criações de suínos.
O VESV se dissemina pelo contato direto
4.1.3 Prevenção e controle com animais infectados e também por via oral,
pela alimentação com restos de alimentos conten-
Existem atuamlente diversas vacinas para o do tecidos crus de animais infectados. O VESV
FCV, tanto monovalentes como associadas com foi identificado, pela primeira vez, no início da
o herpesvírus felino. Existem vacinas atenuadas década de 1930, em surtos amplamente disse-
para aplicação intranasal, intraconjuntival e in- minados e aparentemente sem relação entre si.
tramuscular. No entanto, sabe-se que a vacinação O único fator epidemiológico comum aos surtos
não previne a infecção. O número limitado de era o fato de ocorrerem em granjas que alimenta-
cepas de FCV incluídas nas vacinas pode não in- vam suínos com restos de alimentos não-cozidos,
duzir proteção cruzada contra todas as cepas que oriundos de restaurantes que serviam frutos do
circulam na população felina. Além disso, algu- mar. Surtos posteriores foram também associa-
mas cepas, como a F9, têm sido usadas por mui- dos com a alimentação de restos crus ou mal co-
tos anos e podem não ser antigenicamente rele- zidos de carne de suínos infectados. Esses surtos
vantes para a proteção contra isolados circulantes estavam limitados à Califórnia até o ano de 1951,
no momento, e que se encontram disseminadas quando um trem, carregado com carcaças frescas
na população felina. Gatos vacinados podem se de suínos da Califórnia, deixou resíduos no es-
infectar com cepas heterólogas; e, em alguns ca- tado de Wyoming, as quais foram subseqüente-
sos, podem disseminar o vírus infectante por um mente fornecidas a suínos. Esse fato deu início a
determinado tempo após uma infecção subclíni- uma epizootia que atingiu 42 estados e somente
ca. A utilização de vacinas vivas modificadas é terminou no final de 1956. As medidas tomadas
geralmente segura. Porém, é possível a produção para a erradicação da enfermidade incluíram
de sinais clínicos leves, particularmente em ga- a identificação e sacrifício dos animais doentes,
tinhos, logo após a primovacinação. Os animais quarentena e proibição da alimentação de suínos
devem ser vacinados a partir dos três meses de com restos crus de alimentos. Essa doença foi
idade, quando os níveis de anticorpos maternos declarada oficialmente erradicada dos EUA em
já se reduziram significativamente. 1959, após três anos consecutivos sem novos ca-
Caliciviridae 533

sos. Além dos EUA, a enfermidade já foi relatada As características clínicas da infecção pelo
na Islândia e no Havaí. SMSV são similares àquelas associadas com o
A infecção de suínos pelo VESV resulta em VESV. Mamíferos marinhos infectados com o
febre (40,5-41ºC), seguida da formação de vesí- SMSV apresentam formações vesiculares nas
culas nas regiões mais frias do corpo, como as partes mais frias do corpo, como as nadadeiras.
narinas, lábios, língua e mucosa oral. As vesí- A infecção pelo SMSV também tem sido associa-
culas geralmente se rompem após 48-72 horas, da com falhas reprodutivas e mortalidade neo-
deixando úlceras circulares. O rompimento das natal. A infecção de suínos com o SMSV causa
vesículas resulta no extravasamento do fluido uma doença clinicamente indistinguível daquela
para os tecidos vizinhos, principalmente a muco- causada pelo VESV.
sa oral e também o espaço interdigital, sola e a
banda coronária dos cascos. O aparecimento de
vesículas secundárias nos pés causa imensa dor, 5.2 Lagovírus (vírus da doença hemorrágica
e os suínos podem relutar e mesmo se recusar a dos coelhos)
caminhar até a recuperação. A morbidade nos
rebanhos afetados era geralmente alta e a mor-
O lagovírus RHDV foi inicialmente isolado
talidade geralmente baixa. No entanto, algumas
na China, em 1984, em um surto de doença de
cepas estavam associadas com maiores índices
coelhos importados da Alemanha. Outros surtos
maiores de mortalidade. Clinicamente, a enfer-
foram subseqüentemente relatados em outros
midade é muito semelhante à febre aftosa, porém países, e a sua etiologia foi inicialmente associa-
apresenta um curso mais brando e geralmente se da com carne de coelho importada da China. No
resolve em menos de duas semanas. entanto, o RHDV foi identificado na Europa em
coelhos domésticos ao mesmo tempo em que foi
5 Outros calicivírus detectado na população de coelhos silvestres, in-
dicando que esse vírus já se encontrava presen-
te no continente. No final da década de 1980, o
5.1 Vírus dos leões marinhos de San RHDV foi identificado no México, mas foi rapi-
Miguel damente erradicado pela eliminação dos animais
infectados. Por outro lado, um vírus isolado de
O vírus dos leões marinhos de San Miguel lebres marrons (EBHSV), que causa sinais seme-
(SMSV) já foi isolado de muitas espécies de cetá- lhantes ao RHDV, havia sido descrito anterior-
ceos e pinípedes (focas, leões marinhos, elefantes mente na Europa e poderia estar presente naque-
marinhos, lobos marinhos e morsas), e também le continente desde 1976.
de peixes marinhos. Anticorpos contra diversos Esses vírus se disseminam pela via oral, na-
sorotipos do SMSV e do VESV têm sido detecta- sal e transmissão parenteral. O vírus encontra-se
dos nessas espécies. Dessa forma, propôs-se que presente nas secreções dos animais infectados.
as populações de mamíferos marinhos possam Embora existam evidências consistentes, até o
servir de reservatórios, a partir das quais o SMVS presente, não se sabe, com certeza, se o EBHSV
e o VESV poderiam ser reintroduzidos nas espé- pode ser transmitido por insetos. Em um relato,
cies domésticas. De fato, o SMSV pode infectar os insetos foram incriminados como vetores de
animais, como os suínos e bovinos, e pode ser escape do vírus das ilhas Wardang, na costa da
propagado em cultivos celulares de primatas. Austrália, onde esse vírus foi testado como um
Outros vírus que pertencem ao gênero Vesivirus agente biológico para o controle de coelhos euro-
infectam primatas (Pan-1), bovinos (Bos-1), cetá- peus. A partir da ilha de Wardang, insetos con-
ceos (Tor-1) e répteis (Cro-1), e ilustram a diver- tendo o vírus podem ter sido transportados com
sidade de espécies que podem ser infectadas. Re- o vento até o continente, onde o vírus ocasionou
centemente, o SMSV causou uma infecção em um a infecção de coelhos em toda a Austrália. A dis-
laboratorista, adicionando assim os humanos em seminação do vírus causou a morte de 65 a 90%
seu espectro de hospedeiros. dos coelhos em algumas regiões.
534 Capítulo 20

A doença aguda causada pela infecção com sibilidade de transmissão entre espécies. A carac-
o RHDV em coelhos europeus é caracterizada terização molecular de calicivírus isolados de hu-
por anorexia e taquipnéia, convulsões e, ocasio- manos e animais tem demonstrado uma grande
nalmente, secreção nasal sanguinolenta. A febre similaridade. Recombinações genéticas já foram
é comum no início da infecção, porém, nos está- observadas nesses vírus e deram origem a novas
gios avançados, observa-se hipotermia. A infec- variantes.
ção experimental geralmente causa a morte em
48-72 horas. A maioria dos principais órgãos in- 6 Diagnóstico e controle
ternos é afetada: os pulmões, traquéia e rins apre-
sentam hemorragias, enquanto o baço e o fígado O diagnóstico da infecção causada pelo cali-
apresentam-se aumentados de volume e com co- civírus tem sido realizada pelo isolamento viral e
loração vermelho-escura. A morte dos animais por testes de soroneutralização (SN). O isolamen-
sobrevém a uma hepatite necrosante. Observa-se to permite a multiplicação do vírus em cultivos
também coagulação intravascular disseminada. de células susceptíveis, a partir de amostras clíni-
Coelhos com menos de quatro semanas de ida- cas. No entanto, o isolamento é restrito aos calici-
de não apresentam sinais clínicos da infecção e vírus que replicam em cultivos celulares, como o
geralmente sobrevivem. Lebres infectadas com o FCV, SMSV e VESV. Por outro lado, as infecções
EBHSV apresentam sinais clínicos semelhantes por todos os calicivírus podem ser diagnostica-
àqueles da infecção pelo RHDV. A patogenia da das utilizando a SN para pesquisar anticorpos no
infecção com o EBHSV, as manifestações clínicas soro de animais convalescentes. Testes de ELI-
e taxas de mortalidade são similares às observa- SA também têm sido utilizados para diagnosti-
das na infecção pelo RHDV. car sorologicamente as infecções por calicivírus
humanos e podem também ser adaptados para
5.3 Norovírus e sapovírus detectar antígenos virais em amostras clínicas. O
uso do teste evita a necessidade de se realizar o
Os calicivírus humanos são reconhecidos isolamento e/ou SN, que são mais demorados e
como importantes causas de gastrenterites, e a laboriosos.
principal forma de transmissão é a via fecal-oral. A utilização da microscopia eletrônica de
Os norovírus e sapovírus produzem sinais clíni- transmissão também tem sido utilizada extensi-
cos indistinguíveis; no entanto, há diferenças na vamente no diagnóstico das infecções por calici-
epidemiologia e imunologia. Os norovírus es- vírus. No entanto, essa técnica não é muito sen-
tão primariamente associados com doenças em sível e somente detecta amostras que possuam
crianças na idade escolar, além de adultos. Já os mais de um milhão de partículas virais por mi-
sapovírus infectam preferencialmente crianças lilitro. Além disso, é necessário que as amostras
mais novas e bebês. Os sapovírus induzem imu- sejam coletadas no pico da replicação viral, o que
nidade que pode prevenir reinfecções posterio- pode reduzir o tempo ideal de coleta para poucas
res, enquanto os norovírus induzem imunidade horas.
de curta duração, e os indivíduos podem ser rein- Com a caracterização molecular de diversas
fectados. cepas de calicivírus, testes de diagnóstico mais
Nos animais domésticos, os norovírus e os rápidos, sensíveis e baratos foram desenvolvidos.
sapovírus podem eventualmente causar gastren- Os testes mais notáveis são aqueles baseados na
terite severa, mas podem, também ser isolados reação em cadeia da polimerase (PCR). Primers
de animais clinicamente sadios. A gastrenterite é para a PCR de todos os gêneros de calicivírus,
caracterizada por um período relativamente cur- têm sido descritos e podem ser utilizados para o
to de diarréia (2 a 3 dias), letargia e anorexia. diagnóstico.
É possível que os animais domésticos de Com exceção do calicivírus felino, não exis-
produção sejam os reservatórios dos calicivírus tem vacinas disponíveis para o VESV ou para os
entéricos de humanos, existindo, portanto, a pos- outros calicivírus animais.
Caliciviridae 535

7 Bibliografia consultada KREUTZ, L.C.; JOHNSON, R.P.; SEAL, B.S. Phenotypic and
genotypic variation of feline calicivirus during persistent
infection in cats. Veterinary Microbiology, v.59, p.229-236,
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NEILL, J.D. Nucleotide sequence of a region of the feline calicivirus
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evidence for its expression from a single, functionally bicistronic, Research, v.17, p.145-60, 1990.
subgenomic mRNA. The Journal of General Virology, v.77,
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HURLEY, K.E. et al. An outbreak of virulent systemic feline of swine viruses constitute a single genotype within the
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KREUTZ, L.C.; SEAL, B.S. The pathway of feline calicivirus feline calicivirus vaccine. Veterinary Microbiology, v.117, p.14-
entry. Virus Research, v.35, p.63-70, 1995. 18, 2006.
PICORNAVIRIDAE
Elizabeth Rieder & Mário Celso S. Brum 21
1 Introdução 539

2 Classificação 540

3 Estrutura do vírion e do genoma 541

4 Replicação 543

5 Picornavírus de interesse veterinário 546

5.1 Vírus da febre aftosa 546


5.1.1 Situação da febre aftosa na América do Sul e Brasil 547
5.1.2 O agente 548
5.1.3 Epidemiologia 549
5.1.4 Patogenia, sinais clínicos e patologia 551
5.1.5 Imunidade 552
5.1.6 Diagnóstico 552
5.1.7 Controle e profilaxia 554
5.1.8 Vacinas 555
5.1.9 Perspectivas 556

5.2 Vírus da doença vesicular dos suínos 557


5.3 Enterovírus suíno tipo 1 558
5.4 Enterovírus suínos tipos 2-11 558
5.5 Enterovírus bovino 559
5.6 Rinovírus eqüino e bovino 559
5.7 Vírus da encefalomiocardite 559
5.8 Vírus da encefalomielite das aves 560

6 Bibliografia consultada 560


1 Introdução poliovírus em células de mamíferos cultivadas in
vitro, iniciando a era moderna dos cultivos celu-
A família Picornaviridae é uma das mais an- lares. Esta tecnologia levou ao desenvolvimento
tigas e variadas famílias virais, abrangendo mais de duas vacinas altamente eficazes para a pre-
de 200 vírus classificados em nove gêneros. Esses venção da poliomielite: a vacina inativada desen-
vírus têm sido muito utilizados como modelos volvida por Jonas Salk (1960) e a vacina atenuada
em pesquisas de diversos aspectos da Virologia. desenvolvida por Albert Sabin (1973). Em 1981, o
Os membros desta família – os picornavírus – são poliovírus tornou-se o primeiro vírus RNA a ter
vírus pequenos, icosaédricos, sem envelope e o seu genoma clonado e completamente seqüen-
possuem uma molécula de RNA linear de polari- ciado. Em 1985, a estrutura tridimensional dos
dade positiva como genoma. O nome da família é vírions de dois membros da família dos picorna-
derivado de pico (pequeno) e RNA, em referência vírus: o poliovírus tipo 1 e o rinovírus tipo 14, foi
ao genoma de ácido ribonucléico. A família abri- resolvida por cristalografia, abrindo perspectivas
ga importantes patógenos humanos e animais, para novas abordagens às terapias antivirais e
como o poliovírus humano (agente da poliomie- vacinologia. Em 2002, vírions infecciosos foram
lite ou paralisia infantil) e o vírus da febre aftosa produzidos a partir de cDNA sintetizado in vitro,
(foot and mouth disease virus, FMDV). utilizando deoxioligonucleotídeos complementa-
Em 1897, Loeffler e Frosch apresentaram res ao RNA do poliovírus.
a descoberta inovadora de um agente filtrável Os picornavírus têm sido isolados de várias
como causa da febre aftosa (foot and mouth dise- espécies de vertebrados, incluindo humanos, pri-
ase, FMD) e, em seguida, a primeira evidência matas não-humanos, cavalos, suínos, roedores e
de que uma doença animal poderia ser causada pássaros (Tabela 21.1). Os vírus pertencentes a
por um vírus. Em 1909, o poliovírus foi descrito esta família são responsáveis por enfermidades
como o agente etiológico da poliomielite humana importantes em humanos, incluindo o resfriado
por Landteiner e Popper. Enders e colaborado- (mais de 100 sorotipos de rinovírus), doenças
res, em 1949, foram os primeiros a multiplicar o do trato digestivo e do sistema nervoso central,

Tabela 21.1. Doenças causadas pelos principais picornavírus.

Vírus Doença Espécie

Poliovírus (PV) poliomielite (meningite) humanos

resfriado, diarréia infantil,


Coxsackie humanos
conjuntivite aguda

Hepatite A hepatite tipo A humanos e macacos

Echovírus doença respiratória, encefalite humanos

Rinovírus resfriado humanos, macacos

Febre aftosa (FMDV) febre aftosa bovinos, ovinos, caprinos, suínos

Rinovírus eqüino (EqRV) doença respiratória aguda eqüinos

Hepatite dos patos hepatite dos patos pato doméstico

Encefalomiocardite (EMCV) miocardite, encefalite suínos, roedores

Doença vesicular dos suínos doença vesicular dos suínos suínos


(SVDV)

Enterovírus bovino (BEV) associado com doença bovinos


entérica e respiratória
540 Capítulo 21

como meningites, encefalites e paralisia (vírus em nível de aminoácidos). Por exemplo, os ente-
Coxsackie, echovírus e poliovírus), doença he- rovírus humanos que apresentam 111 sorotipos
pática (vírus da hepatite A) e infecção cardíaca são divididos em quatro grupos genéticos (A, B,
(vírus Coxsackie). C e D).
Entre os picornavírus de interesse vete- Até recentemente, cada sorotipo de picor-
rinário estão o vírus da febre aftosa (FMDV), o navírus era designado como uma espécie viral
vírus da encefalomiocardite dos camundongos separada. A nova definição adota a seguinte re-
(EMCV), o enterovírus bovino (BEV) e o agente gra: “uma espécie de picornavírus é” uma clas-
da doença vesicular dos suínos (SVDV). O pro- se ou grupo taxonômico (polythetic) de sorotipos
tótipo da família é o poliovírus, agente etiológico relacionados filogeneticamente ou isolados que
da poliomielite em humanos. Esse vírus é o mais compartilham: a) uma limitada abrangência de
estudado em termos do ciclo replicativo, estru- hospedeiros e receptores celulares; b) um grau
tura do vírion, interação com receptores virais, significante de compatibilidade nos processos
estrutura e função das proteínas virais e com proteolíticos, replicação, montagem e recombina-
relação aos mecanismos de expressão gênica. O ção genética; c) mapas genômicos essencialmente
FMDV é um dos principais vírus de animais, pela idênticos. Logo, a classificação atual é baseada
grande repercussão sanitária e econômica da in- em diversos parâmetros, incluindo morfologia,
fecção, sobretudo, devido às barreiras impostas organização genômica, estratégias de replicação,
ao comércio internacional de animais e subpro- padrões de clivagem de proteínas e identidade
dutos oriundos de áreas endêmicas ou de risco. genética.
Com base nesses critérios, alguns enteroví-
rus foram reclassificados do gênero Enterovirus
2 Classificação para formar os gêneros Hepatovirus e Parechovi-
rus. Os enterovírus e hepatovírus, que infectam
os hospedeiros via trato digestivo, são altamente
Os picornavírus são atualmente subdividi- resistentes ao pH baixo do estômago e a enzimas
dos em nove gêneros: Enterovirus (vírus de suí- proteolíticas do trato digestivo. Por outro lado,
nos e símios), Cardiovirus (encefalomiocardite, os rinovírus e outros vírus que replicam no trato
EMCV e vírus de Theiler), Rhinovirus (rinovírus respiratório são lábeis em ambientes ácidos (Ta-
humano), Hepatovirus (vírus da hepatite A), Erbo- bela 21.2). A característica de instabilidade a pH
virus, Teschvirus (vírus da polioencephalomielite inferior a 7,0 do FMDV resulta em diferenças no
dos suínos), Aphtovirus (FMDV e vírus da rinite desnudamento durante a infecção de células de
eqüina) e Parechovirus (antigo echovírus 22 e 23). cultivo, comparado com outros picornavírus, e,
Curiosamente, os picornavírus de diferentes gê- provavelmente, também interfere em termos de
neros possuem homologia de nucleotídeos infe- especificidade tecidual e órgãos alvos nos hospe-
rior a 45% entre si (menos de 34% de similaridade deiros.

Tabela 21.2. Propriedades físico-químicas dos picornavírus.


Densidade Coeficiente de
Gênero Estabilidade ao pH Buoyant sedimentação

Aphthovirus Lábil, < 7 1,43 - 1,45 142 - 146S

Cardiovirus Estável, 3 - 9 1,34 160S

Enterovirus Estável, 3 - 9 1,34 160S

Hepatovirus Estável 1,34 160S

Rhinovirus Lábil, < 6 1,40 160S


Picornaviridae 541

3 Estrutura do vírion e do genoma infectado, portanto, possuem influência direta


no tropismo e patogenia viral. Além da determi-
As partículas víricas dos picornavírus são nação do host range in vitro e in vivo, esses sítios,
icosaédricas (25-30 nm de diâmetro), sem envelo- juntamente com outras regiões do capsídeo, são
pe e contêm uma molécula de RNA de fita simples altamente antigênicos e são alvos de anticorpos
e polaridade positiva como genoma. O capsídeo do hospedeiro. A variabilidade dessas regiões – e
possui uma superfície externa regular, é perfei- conseqüentemente a sua reatividade sorológica
tamente simétrico, e é composto por 60 unidades – determina a diferenciação dos vírus em soroti-
estruturais. Cada uma dessas unidades, denomi- pos e subtipos.
nadas protômero, é formada por uma cópia das O genoma dos picornavírus é uma molécu-
quatro proteínas estruturais: VP1, VP2, VP3 e VP4 la de RNA de fita simples, polaridade positiva e
(Figura 21.1). Essas proteínas são produzidas pela possui entre 7 e 8,5 kb (dependendo da espécie
clivagem enzimática de uma poliproteína precur- viral). O RNA genômico possui uma proteína
sora (P1). As proteínas são estáveis e protegem denominada VPg (3B) covalentemente ligada na
o genoma de ambientes hostis, proporcionando sua extremidade 5’, e uma cauda poliA na ex-
um meio de transmitir o genoma entre células e tremidade 3’ (Figura 21.2). Pelo fato de possuir
entre hospedeiros. Os vírions dessa família são polaridade positiva e poder ser traduzido direta-
resistentes ao éter, clorofórmio e álcool, porém a mente pelos ribossomos, o RNA genômico é in-
radiação iônica, o fenol e formaldeídos inativam feccioso quando introduzido artificialmente em
o vírus rapidamente. A estabilidade dos picorna- células permissivas.
vírus sob condições ambientais desempenha um O RNA genômico e os RNA mensageiros
papel importante na epidemiologia e nas formas (mRNAs) dos picornavírus não possuem cap
de controle das doenças a eles associadas. na extremidade 5’. Por isso, a sua tradução de-
A seqüência de aminoácidos que constituem pende do reconhecimento pelos ribossomos por
as proteínas estruturais, bem como a conformação meio de um mecanismo diferente dos mRNAs
e as relações entre elas formam estruturas onde celulares. Os RNAs virais são reconhecidos pelos
se localizam os receptores canyons nos poliovírus ribossomos através de uma estrutura secundária
e rinovírus e loops nos aftovírus. Essas seqüências localizada na região não-traduzida (untransla-
são determinantes do tipo celular que pode ser ted region – 5’UTR) denominada sítio interno de

A B

RNA

VP1
VP3
VP
4

VP2
VP1

VP2
VP3

Fonte: A) Dr Thomas Burrage, USDA, PIADC. B) Adaptada de Flint et al. (2000).

Figura 21.1. Partículas víricas da família Picornaviridae. A) Fotos de microscopia eletrônica de vírions do FMDV em coloração
negativa. B) Representação esquemática do vírion e seus componentes.
542 Capítulo 21

ORF
5' UTR 3' UTR
VPg L VP4 VP2 VP3 VP1 2A 2B 2C 3A 3B 3C 3D poly (A)

Tradução

Poliproteína

L P1 P2 P3

Clivagem
Proteínas estruturais Proteínas não-estruturais
Protease

L VP4 VP2 VP3 VP1 2A 2B 2C 3A 3B 3C 3D


(VPg)

– Replicação do genoma

– Alteração da transcrição, tradução


e processamento protéico celular

– Encapsidação do genoma

Figura 21.2. Organização do genoma do vírus da febre aftosa (FMDV), mostrando os componentes do RNA (linha), os
genes e os produtos primários da tradução (retângulos em branco) e os produtos finais da clivagem (retângulos em
cinza). A função das proteínas está resumida abaixo da figura.

entrada dos ribossomos (internal ribossomal entry ximadamente 350 bases), seguido por mais de
site – IRES). Próximo à extremidade 5’, existe uma 100 bases, contendo aproximadamente 90% de
longa região não-traduzida (5’UTR), que varia citosina, com um número pequeno de uracilas
entre 740-1.300 nt, precedendo o códon de inicia- (U) e adeninas (A) (poliC). O fragmento S e poliC
ção da única e longa seqüência aberta de leitura são seguidos por um segmento de RNA de mais
(open reading frame, ORF). A região 5’UTR possui de 700 nt, que pode formar estruturas secundá-
função na tradução, influi na virulência e, possi- rias altamente conservadas. Essas estruturas in-
velmente, desempenhe alguma função na morfo- cluem pseudoknots (PKs) repetidos em linha, um
gênese das partículas víricas. Próximo à extremi- elemento cis-acting envolvido na replicação do
dade 3’, existe outra região não-traduzida (50-100 RNA (cre) e uma estrutura relacionada com a ini-
bases, 3’UTR) que contém sítios importantes para ciação da tradução (IRES). O elemento IRES nos
a replicação do genoma e infecções produtivas aftovírus possui aproximadamente 450 nucleotí-
(Figura 21.2). deos e contêm duas regiões ricas em pirimidinas
A 5’UTR do FMDV apresenta mais de 1.300 imediatamente anteriores a cada códon de inicia-
nt de extensão e é muito maior do que aquelas ção alternativo. O fragmento S, a seqüência poliC
presentes no genoma dos enterovírus e polioví- e as estruturas PK ocupam as primeiras 600 bases
rus (740 bases) ou dos cardiovírus e EMCV (850 do genoma do FMDV, enquanto uma pequena
bases). A 5’UTR dos aftovírus contêm um seg- estrutura na forma de trevo, com cerca de 100 nu-
mento curto, conhecido como fragmento S (apro- cleotídeos (ou menos), é encontrada no genoma
Picornaviridae 543

dos enterovírus. Como esta estrutura em forma As proteínas não-estruturais estão envolvidas na
de trevo tem sido descrita relacionada à replica- replicação do genoma e no processamento da po-
ção do RNA de vários picornavírus, inclusive o liproteína.
poliovírus, provavelmente o fragmento S, poliC A clivagem inicial da poliproteína é execu-
e PKs dos aftovírus podem também apresentar tada pela proteinase 2Apro no sítio P1/P2. Nos
função na replicação do genoma do FMDV. aftovírus e cardiovírus, esta clivagem ocorre na
Os elementos IRES do genoma dos picor- junção P1 2A/2B pela a 2Apro e, no sítio P1/P2,
navírus são divididos em três grupos, de acordo pela Lpro. A maioria das outras clivagens é media-
com diferenças nas estruturas secundária e terci- da pela atividade da protease 3Cpro e seu precur-
ária altamente conservadas. O IRES do grupo 1 é sor 3CDpro.
encontrado no genoma dos enterovírus e rinoví-
rus; do grupo 2 é presente nos aftovírus e cardio- 4 Replicação
vírus, e os hepatovírus possuem o IRES do grupo
3. Dentro de cada grupo há um grau maior de A primeira etapa no ciclo replicativo dos
conservação das estruturas secundárias do que picornavírus é a interação dos vírions com os
da seqüência de nucleotídeos propriamente dita. receptores celulares. Os receptores são determi-
Todos os elementos IRES dos picornavírus apre- nantes do tropismo tecidual, tendo uma influên-
sentam uma região rica em pirimidinas próxima cia fundamental na patogenia da doença. Cada
ao códon de iniciação (Figura 21.3). grupo de vírus ou até mesmo cada vírus apresen-
ta um mecanismo de penetração único. Alguns
picornavírus (FMDV e rinovírus) são internali-
zados por endocitose, e a penetração do genoma
Seqüência
GNRA ocorre a partir da vesícula endocítica acidificada.
IV No poliovírus e, provavelmente, em alguns ou-
Rica em A-C
IRES tipo I
V tros, a penetração ocorre na membrana plasmá-
tica, sem a necessidade de internalização. Tem
sido proposto que a VP1 do poliovírus penetraria
II III VI
na membrana, formando poros através dos quais
I Região rica o genoma seria ejetado para o interior da célula.
em pirimidinas Essa atividade da VP1 é dependente de sua liga-
Região variável ção ao receptor, que provoca alterações na sua
estrutura. Nos vírus que são internalizados por
AUG Região
codificante
endocitose, o processo de internalização é acom-
panhado de uma série de alterações conformacio-
nais no capsídeo viral, levando ao desnudamento
Fonte: adaptada de Rueckert (1996).
e à liberação do genoma no citoplasma celular.
Figura 21.3. Estruturas secundárias do RNA genômico Durante as últimas duas décadas, várias
dos picornavírus que formam os IRES (sítios internos de
moléculas de superfície celular foram identifi-
entrada para os ribossomos). Um IRES do tipo I é
representado na figura. cadas como receptores para os picornavírus. A
maioria desses receptores pertence à superfamí-
O RNA genômico possui uma única e longa lia das imunoglobulinas (Ig), incluindo o VCAM-
ORF, cuja tradução resulta em uma poliproteína 1, ICAM-1, CAR e CD155 (receptor de polioví-
de, aproximadamente, 2.400 aminoácidos. Essa rus), e à superfamília das integrinas, como α2 1,
poliproteína é clivada à medida que vai sendo αv 1, αv 3, αv 6, αv 8 (parechovírus humano 1
produzida, originando os precursores das proteí- [hPEV1], echovírus 1, aftovríus e alguns entero-
nas estruturais e não-estruturais (ver Figura 21.2). vírus como o Coxsackie A9 [CAV9]). Outros re-
A poliproteína contém uma região que origina as ceptores, como os similares ao SCR (decay-accele-
proteínas do capsídeo (P1) e por duas regiões que ranting factor [DAF]) e moléculas LDL (VLDL-R),
originam as proteínas não-estruturais (P2 e P3). são também utilizados.
544 Capítulo 21

Nos vírions dos poliovírus e rinovírus, os A replicação do RNA ocorre após alguns ci-
sítios de ligação aos receptores são os canyons. clos de tradução e maturação das proteínas. A re-
Mutações nesses locais reduzem ou abolem a sua plicação ocorre em duas etapas, e é realizada pela
capacidade de se ligar à superfície celular. No polimerase RNA dependente de RNA (3Dpol), com
entanto, os capsídeos do FMDV e vírus Coxsa- o auxílio de proteínas virais e celulares. O RNA
ckie A9 não possuem depressões ou canyons pro- genômico é inicialmente transcrito em moléculas
eminentes. Esses vírus se ligam aos receptores complementares (sentido negativo), que são usa-
através de loops específicos, localizados na VP1. das como molde para a síntese de múltiplas có-
No FMDV, foi demonstrado que uma seqüência pias de RNA genômico. Dentre estes, alguns são
R-G-D (arginina – glicina – asparagina) é respon- traduzidos em proteína, enquanto outros serão
sável pela ligação às moléculas de integrinas que incluídos nas partículas virais (Figura 21.4).
servem de receptores. Mutações nesta seqüência Embora as etapas básicas da replicação se-
reduzem drasticamente ou previnem a ligação jam razoavelmente conhecidas, pouco se conhece
dos vírions aos receptores. O vírus Coxsackie A9 sobre os detalhes desses processos e sobre as fun-
também utiliza uma seqüência idêntica na VP1 ções das seqüências e estruturas cis-acting con-
para interagir com os receptores. Porém, muta- tidas no RNA dos picornavírus. Duas questões
ções nessa trinca de aminoácidos não impedem ainda não esclarecidas se referem à síntese da
que o vírus se ligue à superfície celular, sugerin- cadeia negativa e ao modo como a polimerase vi-
do a existência de outros receptores.
ral reconhece o RNA viral entre os outros mRNA
O ciclo de replicação dos picornavírus ocor-
poliadenilados celulares.
re integralmente no citoplasma das células hos-
Devido à ausência de atividade de correção
pedeiras (Figura 21.4). O RNA genômico serve
da polimerase 3Dpol, erros são freqüentemen-
como molde para a tradução e para a replicação,
te produzidos durante a replicação, resultando
resultando em uma interação complexa entre fa-
na incorporação de nucleotídeos incorretos. Em
tores de tradução do hospedeiro e de replicação
razão disso, cada novo genoma contém aproxi-
do RNA. Para isso, a tradução e síntese de RNA
madamente uma mutação. Logo, a população de
fita negativa (intermediário replicativo) dos po-
RNA viral consiste de quasispecies, uma coleção
liovírus são coordenadas pela interação de um
de membros geneticamente diferentes, que po-
complexo de fatores virais e celulares. Isso ocor-
dem se adaptar rapidamente a novos ambientes
re em pequenas vesículas, originadas a partir de
por seleção.
membranas celulares, nas quais as proteínas não-
As etapas finais do ciclo replicativo envol-
estruturais do vírus ficam associadas.
Após o desnudamento e liberação no cito- vem a montagem dos capsídeos e a maturação
plasma, o RNA viral é traduzido diretamente pe- dos vírions por clivagem da VP0 em VP2 e VP4.
los polirribossomos. O IRES forma uma estrutura Os mecanismos de montagem e maturação ain-
secundária complexa que serve de sítio de ligação da necessitam maior entendimento. Em termos
para os ribossomos, ou seja, o reconhecimento do gerais, os produtos da clivagem da região P1
RNA é independente de cap, ao contrário do que pela 3Cpro são organizados em uma estrutura
ocorre com os mRNAs celulares. A seguir, os ri- protômera, contendo uma cópia das proteínas
bossomos são direcionados ao códon de iniciação VP0 (VP2 e VP4), VP1 e VP3. Cinco protômeros
da tradução, sem a necessidade de escanear as podem formar pentâmeros, e doze pentâmeros
seqüências anteriores, como ocorre nos mRNAs formam o capsídeo. Partículas intermediárias
que possuem cap. A tradução da ORF resulta em têm sido identificadas em células infectadas por
uma poliproteína, que é rapidamente clivada nos picornavírus, incluindo protômeros, pentâmeros,
precursores P1, P2 e P3 e, em seguida, origina as partículas contendo RNA e com uma VP0 não cli-
proteínas individuais. As proteínas não-estrutu- vada e, ainda, partículas com a VP0 não-clivada
rais possuem papel importante na replicação do e sem o RNA (capsídeo vazio). O ciclo replicativo
genoma e em funções relacionadas. dos picornavírus está ilustrado na Figura 21.4.
Picornaviridae 545

Vpg

4 3 4
2 Precursores
Polimerase do capsídeo
Fatores auxiliares Vpg
(helicase, protease)

Complexo Procapsideo
6
AAA
AAA

replicativo AAA

AAA
AAA

AAA

5'
Núcleo
Progênie
viral
5'

5 RI
Replicação 7
do genoma

Figura 21.4. Ciclo replicativo dos picornavírus. 1) Ligação aos receptores; 2) Penetração; 3) Tradução do RNA
genômico; 4) Clivagem dos precursores protéicos; 5) Replicação do genoma, via produção de um RNA intermediário
(complementar); 6) Morfogênese; 7) Egresso por lise celular.

A competição dos RNA virais (sem cap) com ribossomos. Como foi visto, os RNAs dos picor-
os mRNA celulares (com cap), no momento da tra- navírus possuem a estrutura IRES, que permite
dução, resultaria em desvantagem para o vírus. que os ribossomos se liguem ao RNA e iniciem
No entanto, os picornavírus possuem um meca- a tradução. A tradução direcionada pelo IRES é
nismo pelo qual podem assegurar a tradução dos altamente eficiente e rápida, fazendo com que o
seus mRNA em detrimento da tradução dos mR- ciclo de replicação seja completado em poucas
NAs celulares. Uma protease viral cliva fatores horas (~3-5 horas) e com que uma célula infecta-
celulares necessários para a tradução dependente da possa produzir até 106 partículas víricas. Esse
de cap, que é o mecanismo utilizado pela célula mecanismo faz com que a infecção pelos picorna-
para traduzir os seus mRNAs. Nos poliovírus e vírus resulte em inibição da síntese protéica celu-
rinovírus, a clivagem do fator de iniciação da tra- lar. Já com duas horas de infecção, a tradução de
dução eIF4G pela protease 2Apro impede a forma- mRNA celulares está praticamente parada, sendo
ção do complexo de tradução na extremidade 5’ substituída pela tradução de mRNAs virais.
com cap. No FMDV, a clivagem é realizada pela Uma característica marcante dos picornaví-
protease L (líder). Assim, na impossibilidade de rus é a sua alta capacidade citolítica em células
realizar a tradução convencional, a maquinaria de cultivo. As alterações morfológicas das células
celular passa a traduzir mRNAs que possuem iniciam com arredondamento celular, aumento
outras estruturas para o reconhecimento pelos da refratilidade, retração, picnose nuclear, dege-
546 Capítulo 21

neração e desprendimento das células da mono- com brevidade. Para informações mais comple-
camada. Um pequeno número de partículas é su- tas, recomenda-se a literatura específica.
ficiente para formar um foco infeccioso no tapete
celular, que geralmente começa entre um e sete 5.1 Vírus da febre aftosa
dias após a infecção. Quando presente em gran-
des concentrações, os picornavírus podem cau- O primeiro registro descrevendo a febre af-
sar a lise completa da monocamada em poucas tosa (FMD) foi realizado por Fracastorius, na re-
horas. Alguns vírus necessitam um período de gião de Verona, Itália, em 1546. A demonstração
adaptação para produzirem os efeitos citopáticos do agente causal deve-se a Loeffler e Frosch, em
característicos. Nenhum cultivo celular é capaz 1897, que, pela primeira vez, demonstraram que
de suportar a replicação de todos os picornaví- uma doença animal poderia ser causada por um
rus. Geralmente, utilizam-se células de origem agente filtrável, ou seja, por um vírus. No princí-
humana ou de primatas não-humanos para os pio do século 19, a FMD encontrava-se dissemi-
vírus que infectam humanos; e células da espécie nada nos rebanhos bovinos da Europa, e isso es-
hospedeira para a propagação dos vírus de inte- timulou o início das investigações sobre o vírus.
resse veterinário. Juntamente com o poliovírus humano, o FMDV
Alguns animais de laboratório são susceptí- é um dos picornavírus mais estudados. Os traba-
veis à infecção pelos picornavírus e a sua infecção lhos iniciais objetivaram a caracterização de dife-
experimental consegue reproduzir alguns aspec- rentes isolados, identificação de sorotipos, repro-
tos da infecção. Alguns dos vírus dessa família dução da enfermidade em animais de laboratório
(poliovírus, Coxsackie e alguns enterovírus) po- e desenvolvimento de vacinas.
dem ser inoculados experimentalmente em pri- O FMDV é notável por sua transmissibilidade
matas não-humanos e camundongos. Os vírus de extremamente alta entre animais, como bovinos,
interesse veterinário, como o FMDV, podem ser ovinos, caprinos, suínos e outros biungulados
inoculados em espécies susceptíveis, como suínos selvagens; assim como por sua ampla distribuição
ou bovinos, e também em animais de laboratório, geográfica. A doença é caracterizada por alta
como as cobaias e os camundongos lactentes. morbidade, podendo causar mortalidade em
animais jovens e perdas produtivas severas em
5 Picornavírus de interesse adultos. As perdas diretas referem-se à queda na
veterinário produção, principalmente em bovinos leiteiros e
suínos. As perdas indiretas relacionam-se com a
A seguir serão descritas as principais enfer- restrição ao comércio internacional de animais
midades causadas pelos membros da família Pi- vivos e subprodutos, e com o impacto social,
cornaviridae que possuem interesse veterinário. A causado pelas ações de controle da infecção. A
enfermidade de maior destaque é a febre aftosa, situação epidemiológica do FMDV no mundo
seguida da doença vesicular dos suínos. A febre reflete o nível de desenvolvimento econômico
aftosa (FMD) é a enfermidade animal que possui de cada região. O vírus encontra-se erradicado
maior repercussão em nível mundial, devido a da Europa, América do Norte, Austrália e
sua alta infecciosidade e contagiosidade, perdas Nova Zelândia. Os países da América do Sul
na produtividade e prejuízos econômicos por apresentam surtos esporádicos, com maior
causa dos embargos comerciais. A doença vesi- ou menor freqüência, dependendo do país. A
cular dos suínos, por ser confundível com a febre infecção é endêmica na maioria dos países da
aftosa, também possui certa importância. Porém, África e Ásia (Tabela 21.3).
a sua ocorrência restrita a determinadas regiões A implementação de programas de vacina-
faz com tenha uma importância reduzida no ce- ção em massa contra o FMDV, após a Segunda
nário mundial. Os outros vírus possuem menor Guerra Mundial, resultou em sucesso na erradi-
importância clínica e, assim, serão abordados cação da doença da Europa Ocidental e região
Picornaviridae 547

Tabela 21.3. Distribuição mundial do vírus da febre


sobretudo, à sua semelhança clínica com a FMD e
aftosa. à necessidade de diagnóstico diferencial.
No início do mês de agosto de 2007, foi diag-
Região Sorotipo presente nosticado um surto de FMD na região de Surrey,
Inglaterra. A identificação da amostra viral recu-
Oceania Área livre perada dos bovinos afetados indicou a presença
América do Norte
do FMDV tipo O1 BFS. Essa amostra foi origi-
Área livre
nalmente isolada na epidemia de 1967 no Reino
América Central e Área livre Unido e, desde então, não havia sido mais identi-
Caribe
ficada circulando em qualquer região do mundo,
América do Sul A, O e C estando restrita ao uso laboratorial. As evidências
África SAT1, 2, 3, A, O, C
sugerem que esse surto originou-se de um esca-
pe acidental ou intencional do Instituto de Saúde
Ásia A, O, C, Ásia1 Animal (Institute of Animal Health, WHO/FAO)
em Pirbright, ou de uma companhia de produtos
veterinários que utiliza parte das instalações para
Sul da América do Sul. Alguns países ou regiões a produção de vacinas. Durante o mês de julho
nunca registraram a presença do agente (Aus- de 2007, essa amostra foi utilizada no laboratório
trália e Nova Zelândia), e outros conseguiram de Pirbright em testes de diagnóstico e na produ-
erradicar e se manter livres da enfermidade por ção de vacinas. Após a confirmação do surto, as
longos períodos de tempo. A FMD foi descrita, autoridades adotaram medidas severas de con-
pela última vez, em 1929, nos EUA; em 1952, trole e movimentação animal, com o objetivo de
no Canadá e, em 1954, no México. A vacinação conter o surto e evitar a disseminação para outras
massiva dos rebanhos bovinos na Europa e re- áreas do país.
gião Sul da América do Sul, durante muitos anos,
resultou no controle da enfermidade e, por fim, 5.1.1 Situação da febre aftosa
na virtual erradicação do vírus. Essa situação ge-
na América do Sul e Brasil
rou uma idéia de controle da enfermidade, e a
vacinação foi descontinuada. Após alguns anos
da interrupção dos programas de imunização, O primeiro registro da presença do FMDV
criou-se uma situação epidemiológica perigosa. no continente americano foi realizado, em 1870,
Populações bovinas completamente susceptí- nos Estados Unidos, e, posteriormente, na pro-
veis ao agente, deterioração dos serviços veteri- víncia de Buenos Aires, Argentina (1865, 1867 e
nários de emergência e falta de conscientização 1870), Uruguai (1870), Chile (1871) e, no Brasil,
dos produtores e público em geral, aliados com nos estados do Rio Grande Sul e Minas Gerais
o intenso movimento de pessoas e à abertura (1895). No início do século 20, a enfermidade dis-
de fronteiras comerciais entre países e regiões, seminou-se para outros estados brasileiros e para
proporcionou a disseminação do vírus entre re- outros países na América do Sul. Na década de
banhos e regiões, alterando consideravelmente o 1950, foi criada uma organização denominada
mapa da distribuição da doença no mundo nos PANAFTOSA, ligada à Organização Pan-Ameri-
últimos dez anos. Como exemplos, podem ser cana de Saúde, com o objetivo de coordenar as
citados os surtos de FMDV em Taiwan (1997), ações de controle, diagnóstico e prevenção da
Brasil (2000-2001), Argentina (2001), Uruguai FMD na América do Sul.
(2001), Reino Unido (2001) e Holanda (2001). Um Desde a década de 1950, quando os progra-
surto de FMD pode custar milhões de dólares em mas de controle do FMDV iniciaram, muitos pro-
perdas de produção e de animais, movimentação gressos foram obtidos. O primeiro país da Amé-
de animais e subprodutos, restrição a mercados rica do Sul a obter a condição de área livre do
consumidores e de exportação, afetando a estabi- FMDV sem vacinação, reconhecido pela OIE, foi
lidade e a economia da região. A importância de o Chile, em 1988, e, desde então, não tem regis-
outras doenças vesiculares em bovinos deve-se, trado a presença do agente. A decisão da União
548 Capítulo 21

Européia (EU) em interromper a vacinação no dade de desenvolver ações de prevenção e con-


princípio dos anos 1990 estimulou países como trole da enfermidade.
Argentina, Uruguai e região Sul do Brasil a in- Nos anos que se seguiram à obtenção da
tensificarem o combate à enfermidade para terem condição de zona livre de FMDV, a região sul
acesso ao mercado consumidor europeu. Como da América do Sul presenciou a reemergência
resultado de intensos programas de prevenção e do agente em diversos países ou estados (Tabela
controle, o Uruguai (em 1994), a Argentina e Pa- 21.4). Alguns países da América do Sul (Equa-
raguai (em 1997) e os estados brasileiros do Rio dor, Bolívia, Venezuela, Norte do Brasil, algumas
Grande do Sul e Santa Catarina (em 1998) obtive- regiões da Colômbia), onde a exploração bovina
ram da OIE a condição de áreas livres do FMDV com fins de exportação é inexpressiva, o comba-
com vacinação. Essa situação progrediu para vá- te à enfermidade não é prioritário, perpetuando
rios outros estados brasileiros nos anos seguin- áreas endêmicas ou de situação desconhecida.
tes, resultando em uma população de aproxima- Esforços governamentais têm sido feitos com o
damente 190 milhões de bovinos livres do vírus objetivo de conscientizar a região da gravidade
na região Sul da América do Sul. do problema e para que medidas de combate se-
O maior objetivo da região era a obtenção a jam adotadas por todos os países.
condição de área livre de FMDV sem vacinação,
situação que favoreceria a abertura de mercados
livres da enfermidade. O Uruguai interrompeu a
5.1.2 O agente
vacinação, em 1994, e obteve junto a OIE a condi-
ção de país livre sem vacinação em 1996. Seguin- O FMDV pertence ao gênero Aphthovirus,
do esse procedimento, a Argentina e o Paraguai apresentando sete sorotipos (A, O, C, SAT-1,
interromperam a vacinação em 1999, e os estados SAT-2, SAT-3 e Ásia 1). Cada tipo possui um am-
do Rio Grande do Sul e Santa Catarina em 2000. plo número de subtipos antigenicamente relacio-
A euforia com a possível erradicação do nados, porém diferenciáveis sorologicamente. Os
agente da região Sul da América do Sul foi se- tipos e sorotipos produzem doença clinicamente
guida de acontecimentos que possibilitaram a indistinguível, porém apresentam diferentes dis-
formação de uma imensa população bovina total- tribuições geográficas e situações epidemiológi-
mente susceptível. Alguns dos fatores que contri- cas. Por exemplo, os sorotipos SAT-1, SAT-2 e
buíram para essa situação foram: a) progressiva SAT-3 nunca se difundiram além do continente
perda da proteção de uma grande população em africano. Outro exemplo é o FMDV tipo C, que
um curto período de tempo; b) movimentação de permaneceu oculto durante muitos anos, sendo
um grande número de animais entre as regiões; quase considerado extinto, até que ressurgiu em
c) presença de áreas endêmicas em algumas re- um surto da região Amazônica do Brasil em 2004.
giões do continente; d) deficiência na prevenção Algumas variações de virulência entre sorotipos
sanitária; e) substancial redução da infra-estrutu- e subtipos podem ser observadas. Após a infec-
ra veterinária para ações de controle, prevenção, ção com um determinado sorotipo, o animal es-
diagnóstico e educação; f) subavaliação dos ris- tará protegido contra a infecção pelo mesmo so-
cos de reintrodução do vírus; g) prevalência dos rotipo, mas permanece susceptível à infecção por
interesses políticos e comerciais sobre os requeri- um sorotipo diferente. Ou seja, não há proteção
mentos sanitários; h) omissão nos cumprimentos cruzada entre os diferentes sorotipos, em razão
dos procedimentos e normas do Código Interna- das diferenças antigênicas entre eles. A diferença
cional de Saúde Animal da OIE, bem como falta antigênica entre subtipos dentro de um tipo pode
de transparência e veracidade na informação da ser acentuada em alguns casos, e os níveis de neu-
situação sanitária de alguns países. Ou seja, em tralização cruzada podem ser insuficientes para
um curto período de tempo, toda a infra-estrutu- conferir proteção. Essa situação pode resultar em
ra sanitária foi enfraquecida, perdendo a capaci- comprometimento da eficácia das vacinas.
Picornaviridae 549

Tabela 21.4. Surtos de febre aftosa diagnosticados na América do Sul e notificados à OIE durante os anos de 2000 a
2006.

País Estado/Província Espécie Sorotipo

Paraguai Bovinos FMDV A


Argentina Formosa Bovinos FMDV O
2000

Brasil Rio Grande do Sul Bovinos FMDV O


Colômbia Antiquóia Bovinos FMDV O
Uruguai Artigas Suínos e bovinos FMDV O

Argentina Buenos Aires Bovinos FMDV A


2001

Uruguai Soriano Bovinos FMDV A


Brasil Rio Grande do Sul Bovinos FMDV A
2002

Paraguai Canindé Bovinos FMDV O


Venezuela Bovinos FMDV O

Bolívia Chuquisaca Bovinos FMDV O


2003

Paraguai Boqueron Bovinos FMDV A e O


Bolívia La Paz Bovinos FMDV O
Argentina Salta Suínos e bovinos FMDV O

Peru Lima Bovinos FMDV O


2004

Brasil Pará Bovinos FMDV O


Colômbia Santander Bovinos FMDV A
Brasil Amazonas Bovinos FMDV C

Colômbia Bogotá Bovinos FMDV A


2005

Equador Manibi Bovinos FMDV O


Brasil Mato Grosso do Sul Bovinos FMDV O

Argentina Corrientes Bovinos FMDV A


Brasil M.Grosso do Sul e Bovinos FMDV O
2006

Paraná
Equador Esmeralda Bovinos ???
Brasil M. Grosso do Sul Bovinos FMDV O
Equador Pichincha Bovinos e búfalos FMDV O

5.1.3 Epidemiologia e veterinários), veículos, vestuário, equipamen-


tos, sobras de alimentos usados para alimentação
A transmissão do FMDV entre os animais de animais, principalmente suínos. A persistên-
pode ocorrer de várias formas. As principais são cia do vírus no meio ambiente está relacionada
a transmissão direta pelo contato de animais sus- com as condições ambientais. Embora o FMDV
ceptíveis com animais infectados e por contato seja sensível a influências ambientais, como pH
indireto, pelo contato dos animais com fômites abaixo de 6.5, radiação solar e dessecação, o vírus
ou subprodutos contaminados. A disseminação pode sobreviver por longos períodos sob baixas
ocorre pelo contato com secreções e excreções temperaturas e em locais com relativa umidade.
oriundas de animais infectados, transporte de Durante a infecção, o vírus é excretado nos
animais, em exposições, feiras, remates, entre tecidos e fluidos das lesões, na saliva, ar expira-
outras. A disseminação indireta pode ocorrer do, secreções nasais, sangue, leite, sêmen e urina.
por meio de pessoas (trabalhadores, produtores A excreção viral nas secreções e excreções inicia
550 Capítulo 21

geralmente 24 horas antes do aparecimento dos rém nunca foi comprovado o envolvimento do
sinais clínicos, diminuindo consideravelmen- FMDV como agente causal.
te até cinco a sete dias após o desenvolvimento O FMDV é excretado em grande quantidade
das lesões. Quando os sinais clínicos se tornam no ar expirado pelos animais, principalmente os
bem evidentes, a excreção viral já está reduzida. suínos. A transmissão por aerossóis pode ocorrer
A redução nos títulos de vírus excretados coin- e está diretamente relacionada com a quantidade
cide com o surgimento e aumento dos níveis de e concentração de aerossóis produzidos e com a
anticorpos neutralizantes. O pico da excreção em distância entre os animais. Condições ambientais
bovinos, suínos e ovinos pode ocorrer antes do como umidade, temperatura, ventos, pH do am-
aparecimento dos sinais clínicos. Os suínos são os biente e tamanho das partículas são determinan-
grandes disseminadores do vírus através de ae- tes neste tipo de transmissão. No surto do Reino
rossóis; os bovinos são bastante sensíveis a infec- Unido de 1967-1968, a associação dos dados epi-
ção pelo trato respiratório, e os ovinos podem ser demiológicos com as condições meteorológicas
considerados os eliminadores silenciosos, pois as indicou uma possível disseminação pelo vento.
lesões são muito discretas. No continente africano e em regiões tropicais,
Em bovinos, 10-30 gramas de material oriun- onde as condições meteorológicas são de calor
dos de uma vesícula da língua freqüentemente intenso e baixa umidade do ar, essa forma de dis-
contém mais de 1 bilhão de unidades infectantes seminação é improvável.
do vírus. Um bovino adulto pode facilmente ex- O real papel dos animais portadores ou car-
cretar mais de 1014 partículas virais por dia. Essa riers na epidemiologia da infecção não está total-
grande quantidade de vírus produzida e excre- mente definido. Vários registros de surtos que ini-
tada irá se disseminar no ambiente e aderir aos ciaram após a introdução de bovinos que haviam
equipamentos, materiais orgânicos e inorgânicos, se recuperado da infecção apontam para um pos-
ambiente, animais e pessoas, que servem de veí- sível envolvimento desses animais, porém ainda
culos para a transmissão do agente. falta a confirmação. Em circunstâncias normais,
Após a manipulação de animais doentes ou os animais portadores não excretam o vírus e este
no contato com secreções, excreções, manipula- não pode ser detectado no meio onde o animal
ção de equipamentos, utensílios e restos mortais vive. O risco de um animal portador iniciar um
de animais, o vírus pode permanecer nas roupas surto é muito baixo e deve ser diferenciado da
e sapatos das pessoas e, dessa forma, ser disse- introdução de animais com infecções subclínicas
minado para animais susceptíveis. Casos em que ou com lesões não-detectadas. Nesse último caso,
o homem (trabalhadores, produtores e veteri- os pequenos ruminantes podem possuir um pa-
nários) carreou mecanicamente o vírus já foram pel importante, pois as lesões nessas espécies são
bem descritos e caracterizados. A presença viral discretas e de difícil observação.
nas secreções oronasais de pessoas que mani- O animal portador é definido como sendo
pularam animais infectados pode ser observada um animal sem sinais clínicos, em que o vírus in-
por até 48 horas pós-exposição. A quantidade de feccioso pode ser recuperado das secreções orofa-
vírus reduz consideravelmente com o tempo, e ríngeas após um período de 28 dias pós-infecção.
nunca foi possível comprovar a transmissão do Esses animais podem ter sofrido infecções clíni-
vírus presente nessas secreções para animais. O cas ou subclínicas. A imunidade conferida pela
sucesso na transmissão do vírus presente nessas vacinação não impede o estabelecimento de uma
secreções estaria diretamente relacionado com a infecção subclínica e a conseqüente produção do
distância e com o tempo de exposição do animal. estado de portador. O estabelecimento da infec-
Na literatura, existem algumas descrições da in- ção persistente depende do sorotipo envolvido,
fecção de humanos com o FMDV. Geralmente e a duração depende da espécie envolvida e de
esses casos estão relacionados com pessoas que fatores individuais. Em bovinos, o período de
manipularam grandes concentrações do vírus e permanência pode variar de meses até um ano e
desenvolveram algum tipo de lesão clínica, po- facilmente atingir mais de 50% dos animais. Esse
Picornaviridae 551

período poder ser maior nos búfalos africanos 5.1.4 Patogenia, sinais clínicos
(Syncerus caffer), chegando até cinco anos, porém e patologia
a média é de um a três anos. Os búfalos asiáticos
domésticos (Buballus arnee) permanecem porta- A maioria das infecções pelo FMDV inicia
dores por vários meses. Nos pequenos ruminan- pela penetração do vírus pelas vias respirató-
tes, como ovelhas e cabras, a persistência é menos rias superiores, seguida de uma multiplicação
estudada, porém atinge uma parcela menor da inicial na mucosa da orofaringe. A seguir, o ví-
população e por um período não superior a seis rus pode se disseminar localmente e replicar nas
meses. Por razões desconhecidas, os suínos não vias aéreas inferiores, inclusive nos pulmões. O
permanecem portadores. vírus também pode penetrar através de soluções
A infecção natural pelo FMDV atinge várias de continuidade na pele do focinho, das patas e
espécies de animais da ordem Artiodactyla (biun- tetas. Após a replicação inicial, o vírus atinge a
gulados), incluindo vários cervídeos, antílopes, corrente sangüínea e distribui-se por todo o orga-
impalas, lhamas, gazelas, suínos selvagens e nismo do animal. O vírus pode replicar em vários
capivaras. Os sinais clínicos nessas espécies são tecidos e, geralmente, as lesões são observadas
mais discretos ou moderados, e o estado porta- nesses sítios de replicação, como cavidade orona-
dor pode se detectado, porém de maneira incon- sal, patas, coração, tetas e glândula mamária. O
sistente. Nos zoológicos, é comum a presença pico de infectividade ocorre nas horas anteriores
de animais susceptíveis ao FMDV e, por causa ao surgimento das lesões e se reduz considera-
da intensa movimentação de animais entre par- velmente nos três a quatro dias subseqüentes. As
ques zoológicos, a possibilidade da introdução lesões são geralmente severas e resultam em que-
deve ser considerada. O grande risco dos ani- da na performance do animal, podendo produzir
mais selvagens é a manutenção da infecção e a seqüelas que influenciam na produtividade futu-
transmissão do vírus para as criações domésticas ra. O vírus também é excretado em altos níveis
de ruminantes e suínos. Essa é uma preocupação em gotículas e aerossóis pela respiração e pelas
constante na África, onde animais da grande po- fezes, urina, leite e sêmen.
pulação de vida livre freqüentemente entram em Os bovinos são infectados principalmente
contato com criações comerciais. As normas da por inalação, freqüentemente a partir de suínos,
OIE, que estabelecem o comércio internacional que secretam grande quantidade de vírus por
de animais e produtos, não fazem distinção entre aerossóis respiratórios. Os suínos são infectados
animais domésticos e selvagens para considerar a principalmente por ingestão de alimentos conta-
situação epidemiológica do país ou região. minados. Em suínos, ovinos e caprinos, os sinais
A variabilidade genética do vírus (por volta clínicos são similares, porém mais suaves. Nessas
de oito substituições de nucleotídeos por ciclo de espécies, a claudicação é o sinal predominante.
replicação) tem sido utilizada na caracterização Em ovinos, a infecção pode se disseminar pelo
de isolados do FMDV, ao se determinar o padrão rebanho com sinais discretos ou mesmo assinto-
de distribuição geográfica durante um surto. mática. A febre aftosa não é considerada um pro-
Uma região de 200 nucleotídeos no gene da VP1 blema de saúde pública, embora alguns casos de
tem sido utilizada para comparações genômicas infecção humana já tenham sido documentados.
entre os isolados de FMDV. Diferenças inferio- A FMD é uma doença vesicular altamen-
res a 4% entre dois isolados indicam um origem te contagiosa e os sinais clínicos são atribuídos
comum recente, enquanto diferenças de 15% ou à replicação viral nos epitélios, o que resulta na
mais apontam para origens geográficas distintas formação de vesículas. Os sinais clínicos são pre-
ou surtos separados por muitos anos. Os isolados cedidos de viremia e um período de depressão,
com identidade superior a 85% são agrupados apatia, febre, laminite e anorexia. As lesões vesi-
como topotipos e tendem ser restritos quanto à culares podem ser observadas na cavidade oral,
distribuição geográfica. na língua, narinas, espaço interdigital, banda co-
552 Capítulo 21

ronária e nas tetas. Acompanhando o desenvol- A evolução genética do FMDV é bastante rá-
vimento das vesículas, salivação excessiva e des- pida devido às altas taxas de mutação. Isto resul-
carga nasal podem ser observadas. As vesículas ta em diversidade antigênica, o que pode ocasio-
podem variar de 0,5 a 1 cm de diâmetro e encon- nar falhas na proteção pelos anticorpos. Esse fato
tram-se preenchidas com um fluido que possui possui implicação direta na seleção de amostras
altas concentrações de vírus. As lesões progridem usadas para produção de antígenos vacinais, em
rapidamente, rompendo-se e formando áreas ul- que se deve utilizar variantes virais imunodomi-
ceradas e erodidas que rapidamente cicatrizam. nantes que são capazes de induzir proteção para
Antes da resolução completa das lesões pode um amplo número de variantes do mesmo soro-
ocorrer a infecção secundária, agravando ainda tipo.
mais o quadro. Como conseqüência das lesões, Os animais recém-nascidos que possuem
ocorre um comprometimento da funcionalidade imunidade passiva adquirida da mãe estão pro-
do órgão, o que explica a anorexia, dificuldade de tegidos da infecção. Essa imunidade é proporcio-
movimentação e amamentação. Seqüelas podem nal à condição imunológica da mãe e à quanti-
incluir deformidades e inclusive a perda comple- dade de colostro ingerido pelo recém-nascido. A
ta do casco. vida média da imunidade passiva para bovinos e
O período de incubação é de dois a 21 dias suínos é em torno de 21 dias, podendo ser detec-
(média de 3 a 8), mas o vírus é geralmente elimina- tada até os quatro ou cinco meses de idade. Esse
do do organismo antes dos sinais clínicos desapa- tipo de imunidade possui influência direta na
recerem. A morbidade pode atingir os 100%, mas resposta do animal à vacinação.
a mortalidade é muito baixa em animais adultos.
Em animais jovens, os índices de mortalidade são 5.1.6 Diagnóstico
freqüentemente altos, podendo ser atribuído à
capacidade do vírus de infectar o músculo cardí- A característica da alta infecciosidade do
aco. A lesão resultante no miocárdio é conhecida FMDV e as sérias implicações sanitárias da infec-
como coração tigrado. Além das lesões observa- ção exigem um diagnóstico urgente e preciso. A
das nos epitélios citados anteriormente, o vírus possibilidade de FMD deve ser considerada sem-
pode replicar e produzir lesões nos pilares do rú- pre que houver doença vesicular em ruminantes
men. Em bovinos leiteiros, freqüentemente ocor- ou suínos, devido ao fato de outros vírus produzi-
re uma queda na produção leiteira por causa das rem lesões similares. A apresentação clínica pode
lesões na pele do úbere e a replicação do vírus na auxiliar, porém não é suficiente para o diagnósti-
glândula mamária. Abortos podem ocorrer devi- co definitivo. Podem ocorrer infecções mistas, de
do às conseqüências sistêmicas da infecção e não variantes com virulência alterada ou, ainda, com
como resultado da infecção fetal. manifestações clínicas mascaradas pela imunida-
de parcial do rebanho. Por essas razões, a suspei-
5.1.5 Imunidade ta clínico-epidemiológica deve necessariamente
ser confirmada por testes laboratoriais.
A proteção imunológica conferida pela in- O diagnóstico da FMD é realizado pela de-
fecção natural ou pela vacinação é mediada por monstração do vírus ou de antígenos virais em
anticorpos neutralizantes. Existe uma forte cor- tecidos e fluidos de animais infectados. A inves-
relação entre níveis desses anticorpos e proteção. tigação sorológica pode ser empregada, porém
Não há evidências de que a imunidade celular em razão da dificuldade de diferenciação entre
desempenhe um papel relevante na proteção da resposta sorológica vacinal daquela induzida
infecção com o FMDV. A imunidade é específica pela infecção natural, não é recomendável para
para o sorotipo e subtipo com o qual o animal regiões endêmicas ou onde a vacinação é prati-
foi infectado ou vacinado, ou seja, a imunidade cada. Em casos suspeitos de FMD, a notificação
conferida contra um sorotipo não irá proteger o do serviço oficial veterinário é obrigatória e pre-
animal da infecção clínica com outro sorotipo. mente. A coleta, transporte e processamento da
Picornaviridae 553

amostra devem ser realizados por pessoal téc- ser utilizados. As linhagens celulares BHK-21 e
nico capacitado e em laboratórios de segurança IBRS-2 também são utilizadas para o isolamento,
credenciados. porém possuem menor sensibilidade. A confir-
Os materiais de eleição para o diagnóstico mação da presença viral e identificação do soroti-
da enfermidade incluem fragmentos do epitélio po presente em amostras que produziram efeito
e fluido coletado de vesículas não rompidas ou citopático são realizadas por testes de fixação do
recentemente rompidas. O material deve ser mis- complemento ou ELISA.
turado em partes iguais de meio de transporte Outra forma de isolamento viral é a ino-
contendo glicerol e meio fosfatado (0,04 M). No culação em camundongos lactentes (2-7 dias de
caso de falta de meio de transporte, meio essen- idade). Alguns isolados de campo necessitam de
cial mínimo ou PBS podem ser utilizados. Por mais de uma passagem antes para se tornarem
causa da fragilidade do vírus a variações de pH, adaptados a camundongos. O indicativo da pre-
recomenda-se manter um pH entre 7,2 e 7,6 na sença viral é a mortalidade dos animais inocula-
amostra. Em casos suspeitos de infecção subclí- dos após 48 horas; e a identificação do sorotipo é
nica ou com lesões discretas, pode-se coletar san- realizada pelos mesmos testes, utilizando-se uma
gue com anticoagulante e/ou soro. Na presença suspensão do músculo esquelético dos animais
da mortalidade de animais jovens, tecidos, como mortos. Em casos onde não é observado efeito ci-
o músculo cardíaco, tireóide e linfonodos, podem topático nos cultivos ou mortalidade nos camun-
ser coletados. Quando as lesões são discretas ou
dongos em 48 horas, a amostra deve ser conge-
suspeita-se de infecções subclínicas e convales-
lada, descongelada e inoculada novamente antes
centes, pode-se coletar sangue com anticoagu-
de ser considerada negativa.
lantes e fluido esofágico-faringeano (OP), com
As provas de fixação de complemento e ELI-
auxílio de coletores do tipo probang. O OP deve
SA de captura são utilizadas para a detecção de
possuir restos celulares e ser livre de sangue ou
antígenos virais. O teste de ELISA é o recomen-
líquido ruminal. Após a coleta, o líquido deve
dado pela OIE/FAO para a demonstração da
ser misturado com meio de transporte (0,08M so-
presença de antígenos virais e identificação do
lução de fosfato, 0.01% albumina sérica bovina,
sorotipo presente na amostra. O teste de ELISA
antibióticos, 0,002% vermelho de fenol e com pH
possui maior sensibilidade e especificidade, sen-
7,2). O material coletado deve ser acondicionado
do indicado na ausência do primeiro.
em um recipiente limpo e vedado para evitar o
O uso de testes para a detecção de anticor-
vazamento da amostra ou a penetração de con-
pos contra as proteínas não-estruturais deve ser
teúdo que possa alterar o pH, inativando o vírus.
O transporte deve ser realizado imediatamente realizado com cautela e fundamenta-se no fato de
após a coleta e sob refrigeração (4ºC ). Em situa- que somente animais infectados – e não aqueles
ções nas quais o intervalo entre a coleta e a che- vacinados – desenvolvem anticorpos contra essas
gada ao laboratório forem superiores a 24 horas, proteínas. De fato, os animais vacinados com va-
as amostras devem ser congeladas em nitrogênio cinas inativadas desenvolvem anticorpos apenas
líquido ou gelo seco. contra as proteínas estruturais, pois não ocorre
Os testes de rotina utilizados para o diagnós- replicação viral e as proteínas não-estruturais
tico da FMD são: isolamento viral, fixação de com- não são sintetizadas. No entanto, proteínas não-
plemento e ELISA de captura. Para o isolamento estruturais podem acidentalmente contaminar as
viral, uma fração do tecido deve ser macerada e vacinas durante a sua produção, resultando na
o sobrenadante inoculado em cultivo celular. Se indução de anticorpos nos animais vacinados.
o material coletado for o líquido vesicular, pode Esse problema é mais comum em animais que
ser inoculado diretamente. Os cultivos primários receberam múltiplas doses de vacinas. Por esta
de tireóide bovina são as células de eleição para o mesma razão, as vacinas devem ser purificadas
isolamento do FMDV, mas cultivos primários de para a remoção de todos os traços de proteínas
rim de bovino, suíno e cordeiros também podem não-estruturais.
554 Capítulo 21

Os testes para a detecção de anticorpos são verso e complexo. As medidas a serem adotadas
a soro-neutralização (SN), ELISA e VIAA (virus por uma região ou país devem ser baseadas na
infection-associated antigen). Os testes de SN e ELI- situação epidemiológica de cada caso. Além dis-
SA são utilizados e reconhecidos para certifica- so, vários fatores devem ser considerados para a
ção para comércio internacional. O teste de SN é escolha das melhores alternativas, destacando-se
específico para o vírus utilizado e requer de dois o impacto doméstico e externo nas exportações,
a três dias para a obtenção do resultado. Além a perda de produtividade animal, as conseqüên-
disso, existe a necessidade de um laboratório cias econômicas para a região, bem-estar animal,
equipado e seguro, pois este teste requer a mani- entre outras. Durante a ocorrência de um sur-
pulação de vírus vivo. O teste de ELISA é espe- to, é extremamente prudente avaliar as medidas
cífico, sensível e rápido (4-5 horas) e não envolve que estão sendo adotadas, para que o estudo do
manipulação de vírus. Testes de ELISA que de- risco de disseminação do vírus contemple as ne-
tectam anticorpos contra as proteínas 3D e 3ABC cessidades dos segmentos envolvidos. As expe-
foram desenvolvidos e apresentam sensibilidade riências de vários países e regiões indicam essa
e especificidade aceitáveis. O VIAA detecta anti- necessidade.
corpos contra proteína polimerase 3D, envolvida Em áreas livres naturais ou que erradicaram
na replicação viral. Dessa forma, o VIAA não é o agente, devem-se aplicar medidas preventivas
sorotipo específico e pode resultar em falsos-po- para evitar a introdução do vírus. Essas medidas
sitivos em animais que foram vacinados várias incluem barreiras sanitárias, restrição ao trânsito
vezes. Por isso, tem sido recomendada a sua de animais oriundos de áreas de risco, desinfec-
substituição pelo ELISA. O EITB (enzyme-linked ção, quarentena e vacinação (quando indicado).
immuno-electrotransfer blot), desenvolvido pelo Essas medidas devem ser aplicadas contínua e
PANAFTOSA, possui sensibilidade superior ao sistematicamente, sobretudo se existirem áre-
VIAA e é amplamente utilizado no programa de as de risco nas proximidades. A vigilância deve
controle da FMD no Brasil. também incluir a conscientização dos produto-
A detecção de animais portadores é realiza- res, manutenção da estrutura de diagnóstico, vi-
da através do isolamento viral do vírus presente gilância e combate.
no fluido esôfago-faríngeo. Esse material é sub- Em casos de surtos em áreas livres ou pa-
metido ao tratamento com TTE (trifluortricloro- raendêmicas, a primeira opção para erradicar o
etano) para dissociar os vírions dos anticorpos surto é a adoção do rifle sanitário, abatendo-se e
neutralizantes e de outras substâncias inibidoras. incinerando os animais infectados, os contatos e
A confirmação da presença e do tipo viral é rea- susceptíveis. Essa alternativa é a mais econômica
lizada através da inoculação em cultivo celular e e eficaz quando um pequeno número de animais
ELISA de captura. está envolvido e se for realizada de forma rápi-
Diversos testes de RT-PCR e PCR em tem- da. Outra vantagem do uso desse método é a ob-
po real foram desenvolvidos para a realização do tenção do certificado de zona livre em um curto
diagnóstico rápido da infecção. O PCR em tem- período de tempo. No entanto, em regiões onde
po real é de execução rápida, pode ser adaptado a densidade populacional é elevada e ocorre um
para utilização a campo, sendo capaz de detectar intenso movimento entre pessoas e animais, essa
e diferenciar os sete sorotipos possíveis. O foco alternativa pode ser problemática, sobretudo se
dos esforços no diagnóstico do FMDV envolve o o vírus já tiver sido disseminado. Outro aspecto
desenvolvimento de testes rápidos e que sejam que deve ser considerado é a infra-estrutura para
capazes de diferenciar a infecção ativa da respos- o sacrifício dos animais e destruição das carcaças,
ta à vacinação e também detectar os animais por- pois durante essas operações grandes quantida-
tadores. des de material infeccioso são geradas e podem
servir de fonte para disseminação. Uma desvan-
5.1.7 Controle e profilaxia tagem desse método de combate refere-se à eli-
minação de um número excessivo de animais,
O estabelecimento de uma estratégia univer- provavelmente muitos sem necessidade, o que
sal e definitiva para o controle da FMD é contro- repercute negativamente na sociedade.
Picornaviridae 555

Existem várias combinações possíveis de fermidade de áreas endêmicas e paraendêmicas.


medidas de combate a surtos. As vantagens e Essa alternativa pode ser usada em regiões endê-
desvantagens variam de acordo com a apresen- micas, para reduzir gradativamente a circulação
tação. Não existe um modelo de medidas que de- do vírus e a incidência da enfermidade, ou em
vam ser adotadas para todos os casos. A escolha ocasiões de surtos, para impedir a propagação do
de um modelo deve ser montada de acordo com vírus. A eficácia da vacinação em regiões endêmi-
a realidade da região envolvida. Porém, em todas cas está diretamente relacionada com a cobertura
as situações, a organização e rapidez das ações vacinal. Resultados promissores são obtidos com
irão contribuir para a redução da disseminação cobertura vacinal acima de 80% da população bo-
do vírus. vina. No entanto, esses níveis de cobertura são
Logo após a confirmação do diagnóstico, insuficientes para o objetivo de erradicação. O ob-
a propriedade (ou a região) deve ser interdita- jetivo da vacinação durante um surto é impedir a
da, evitando-se a saída de quaisquer animais ou disseminação do vírus para outras propriedades.
produtos que possam servir de veículos para a A imunidade conferida pela vacinação consegue
transmissão viral. Os animais afetados e os po- reduzir significativamente a quantidade de ví-
tencialmente em contato devem ser abatidos, e rus excretada por um animal após quatro a cinco
as carcaças incineradas ou enterradas com cober- dias da aplicação. A ocorrência de novos surtos
tura de cal. Outros ruminantes da propriedade irá diminuir gradativamente após a aplicação da
também devem ter o mesmo tratamento. Deve-se vacina, podendo resultar em prevenção de novos
ressaltar que o FMDV é extremamente infeccioso focos em 15 a 20 dias.
e as medidas devem ser drásticas e rígidas para As medidas de controle e erradicação de-
evitar a sua disseminação a partir do foco. A es- vem ser constantemente revistas e atualizadas,
tratégia pode exigir a vacinação perifocal, ou seja, de acordo com o surgimento de novas situações.
das propriedades vizinhas num raio de 3 km. Essa O monitoramento constante da situação epide-
imunização produz um “cinturão de imunidade” miológica mundial deve ser uma rotina e servir
ao redor do foco e dificulta a saída do vírus. Após de alerta. A manutenção de uma rede eficiente de
o abate e a destruição das carcaças, procede-se a vigilância, diagnóstico, controle e divulgação das
desinfecção das instalações e equipamentos. A ações deve ser prioridade em qualquer situação.
restrição ao movimento de animais pode seguir
até que se tenha segurança que não há mais risco 5.1.8 Vacinas
de disseminação. Esses procedimentos devem ser
seguidos de um vazio sanitário, que pode chegar As vacinas contra a FMD são produzidas
a três meses. Nesse período, a propriedade deve a partir de preparações de vírus cultivados em
permanecer completamente vazia de quaisquer cultivos celulares e inativados quimicamente. Es-
animais susceptíveis ao vírus. O vazio sanitário sas preparações são combinadas com adjuvantes
é seguido da introdução de animais sentinela, para potencializar a resposta imune. O processo
geralmente bovinos jovens soronegativos. Esses de produção é altamente tecnificado e desenvol-
animais são introduzidos para monitorar a pre- vido em laboratórios de segurança para evitar
sença residual do agente e são monitorados clí- escape de vírus. Diferentes testes para assegurar
nica e sorologicamente para a presença do vírus. a qualidade e determinar a massa antigênica, po-
Nos casos positivos, deve-se novamente realizar tência e inocuidade são realizados antes da libe-
a depopulação, desinfecção e vazio sanitário. ração de um lote de vacinas. Vacinas formuladas
Quando os sentinelas não apresentam sinais de com adjuvantes à base de hidróxido de alumínio,
infecção, doença ou soroconversão após um de- com ou sem saponina, são indicados somente
terminado período (60-90 dias), pode-se proceder para ruminantes. As vacinas com adjuvante ole-
a repopulação da propriedade. oso (dupla emulsão) podem ser utilizadas para
A vacinação é uma importante alternativa suínos e ruminantes. A capacidade imunogênica
para o controle da infecção e erradicação da en- entre os sorotipos é variável, ou seja, para o soro-
556 Capítulo 21

tipo O, é necessária uma massa antigênica maior seringa ou no momento da vacinação. Reações
do que para os sorotipos A, C e Ásia 1. As razões inflamatórias granulomatosas que persistem por
para essa diferença não são conhecidas. Em ter- algumas semanas têm sido freqüentemente rela-
mos gerais, a massa antigênica varia entre 1-10μg tadas após o uso de vacinas com adjuvante ole-
de partículas 146S para cada amostra presente na oso.
vacina. A imunidade induzida pela vacinação é ca-
Os componentes das vacinas devem refletir paz de proteger os animais da doença clínica e o
a situação epidemiológica de cada região e po- pico de produção de anticorpos é atingido após
dem variar de constituição conforme o caso e a quatro ou cinco semanas da aplicação. A segunda
espécie envolvida. As vacinas podem ser mono- dose deve ser aplicada 30 dias após a primeira
valentes, isto é, formuladas com somente um so- vacinação. Vacinações anuais são recomendadas
rotipo; ou multivalentes, sendo formuladas com para manter os níveis de imunidade do rebanho.
mais de um sorotipo (p. ex.: A, O e Ásia 1). Podem A resposta imune produzida pela vacinação não
também ser formuladas com várias amostras de é esterilizante, ou seja, os animais vacinados e de-
um mesmo sorotipo (p. ex.: A). A maioria das va- safiados com o vírus são infectados. No caso dos
cinas comercializadas no Brasil e na América do ruminantes, esses animais podem tornar-se por-
Sul são trivalentes, contendo amostras virais dos tadores. No entanto, nunca houve comprovação
sorotipos A24 Cruzeiro, O1 Campos e C3 Indaial. da transmissão do vírus entre animais portadores
Essas cepas são representativas dos vírus circu- e susceptíveis. Animais jovens respondem satis-
lantes na região e imunodominantes, ou seja, são fatoriamente à vacinação, porém, em razão da
capazes de conferir proteção contra possíveis va- imunidade materna interferir na resposta à va-
riantes. Existe uma constante necessidade de vi- cinação, recomenda-se vacinar somente animais
gilância sorológica dos isolados em surtos para com idade superior a dois meses.
certificar-se que as vacinas disponíveis são pró-
prias para os respectivos locais e para identificar
o eventual aparecimento de novas variantes. Os 5.1.9 Perspectivas
sorotipos A e O são os que apresentam um maior
número de variantes. A febre aftosa é responsável pelas maiores
A eficácia da vacinação é dependente de vá- restrições ao comércio internacional de animais
rios aspectos, dentre eles do armazenamento em e seus subprodutos. Quando um surto ocorre em
temperatura adequada. Vacinas conservadas en- um determinado país, seus parceiros comerciais
tre 3-8ºC são estáveis por até dois anos. A aplica- interrompem a importação de animais, produ-
ção deve ser realizada com os animais contidos, tos animais e freqüentemente de outros produ-
especialmente fêmeas gestantes. Vacinas com tos agrícolas. Tais circunstâncias resultam em
adjuvante aquoso devem ser aplicadas pela via perdas permanentes de mercado para os países
subcutânea, preferencialmente na região do pes- afetados. Muito tem sido realizado para melho-
coço ou porção cranial da escápula. O volume re- rar as vacinas e métodos de diagnósticos, assim
comendado varia entre 2-3 ml para bovinos e 1-2 como para o desenvolvimento de terapias para
ml para pequenos ruminantes. Os animais jovens conter a propagação viral. No entanto, nenhuma
devem receber a mesma dose dos adultos. As alternativa ainda está disponível comercialmen-
vacinas oleosas são administradas em bovinos e te, abrindo uma área interessante para pesquisa
suínos pela via intramuscular. Em bovinos, reco- e desenvolvimento. A febre aftosa é clinicamente
menda-se a região superior do pescoço, e, em suí- semelhante – e assim pode ser confundida – com
nos, a região posterior da orelha. Os constituintes a rinotraqueíte infecciosa bovina (IBR), língua
das vacinas são purificados, as reações no sítio de azul, mamilite herpética e peste bovina. Também
vacinação são discretas, e as reações anafiláticas é semelhante à estomatite vesicular, doença vesi-
são incomuns. Reações podem ocorrer devido a cular suína e exantema vesicular dos suínos. Por
problemas na aplicação e, geralmente, estão re- isso, testes rápidos e capazes de diferenciar entre
lacionadas com problemas de contaminação da essas enfermidades são necessários.
Picornaviridae 557

Alguns conceitos em relação ao FMDV e região, pois certamente serão os mais favorecidos
as medidas de controle são baseados em supo- com a abertura do comércio internacional.
sições ou em situações de épocas anteriores. O
papel dos animais portadores na epidemiologia 5.2 Vírus da doença vesicular dos suínos
da enfermidade nunca foi totalmente comprova-
do. Mesmo assim, formas de diferenciação entre A doença vesicular dos suínos (SVD) é uma
animais vacinados e portadores deve ser um dos enfermidade moderamente contagiosa e aguda,
focos de estudos futuros. O conceito de que as va- caracterizada por febre e produção de vesículas
cinas não possuem eficácia deve ser combatido. no focinho, boca, pés e tetas. A doença pode ser
As medidas de erradicação e eliminação dos ani- introduzida em uma granja por animais infecta-
mais infectados e contatos devem ser adotadas de dos, restos de alimentos ou dejetos contaminados.
acordo com a realidade da região e as conseqüên- Os suínos são os únicos hospedeiros naturais, e a
cias resultantes. Pelo menos, é muito discutível doença pode variar em gravidade, mas raramen-
descartar um grande número de animais e deses- te é fatal. Altos títulos virais estão presentes no
tabilizar uma região ou país inteiro somente para animal, nos seus fluidos corporais e excreções. Os
a manutenção da condição sanitária e comercial. sinais clínicos da SVD incluem ainda febre, perda
As diferentes formas como os surtos de 2001, no de apetite, dificuldade de locomoção (por causa
Reino Unido e Uruguai, foram combatidos servi- das vesículas nas patas). O desenvolvimento das
ram como um bom exemplo do potencial social e vesículas ocorre entre 2 e 11 dias após a infecção.
psicológico do impacto que se segue a uma epi- O pico da viremia ocorre 2 a 4 dias após a infec-
demia de FMD. O intenso comércio de animais ção e persiste por, aproximadamente, sete dias.
e seus subprodutos no mundo, muitas vezes ile- A recuperação ocorre normalmente em 1 a 3 se-
gal, a mobilidade cada vez maior das pessoas, manas, mas partículas virais infecciosas podem
redução na vacinação de rebanhos, a constante ser encontradas nas fezes por até três meses em
expansão de amostras do FMDV e a maior inte- animais portadores. O SVDV pode permanecer
ração das pessoas com a vida silvestre devem ser viável por mais de 30 dias sob refrigeração, com
considerados para a formulação de programas o pH entre 3,9-9,1.
de prevenção. No momento do surgimento de As lesões vesiculares em suínos são clinica-
um foco da enfermidade, vários aspectos devem mente indistinguíveis das causadas pelo FMDV,
ser considerados, e as ações devem ser tomadas pelo vírus da estomatite vesicular e vírus do
o mais breve possível. Com a evolução do surto, exantema vesicular; e suas características histo-
as medidas devem ser avaliadas constantemente, patológicas também são muito similares. As le-
levando em consideração todos os segmentos da sões vesiculares se desenvolvem na língua, lábios
sociedade envolvida ou possivelmente afetada e, e focinho, bandas coronárias e região posterior
se necessário, novas medidas devem ser conside- das patas, e iniciam como uma região hiperêmica
radas e implementadas. e que aumenta com o progresso da formação das
Na década passada, a América do Sul atin- vesículas. O epitélio da região plantar pode tor-
giu uma situação privilegiada em relação ao nar-se frouxo, podendo ocorrer a perda do casco.
controle. Porém, devido a diversos fatores, a er- As lesões na boca, nos lábios e focinho são menos
radicação não foi possível, e a região deparou-se freqüentes. As lesões freqüentemente sofrem in-
com a reemergência da FMD. Para avançar no fecções bacterianas secundárias.
controle e obter a erradicação da enfermidade da O primeiro relato de SVD foi descrito na Itá-
região, existe a necessidade de conscientização lia, em 1966, e o agente etiológico foi identificado
de todos os países, principalmente dos países em em 1968. Desde então, a doença tem sido espo-
que a produção bovina não é desenvolvida, para radicamente descrita na Europa, Japão, Hong
esforços direcionados ao combate aos focos. O Kong e Taiwan. Não há relatos da presença da
papel dos países produtores será de extrema im- SVD nas Américas. O vírus pertence ao gênero
portância, pois esses devem liderar, e até mesmo Enterovirus e é altamente relacionado com o vírus
financiar, os programas de combate à doença na Coxsackie B5 de humanos (CV-B5). Baseados na
558 Capítulo 21

similaridade de nucleotídeos, tem sido proposto varia entre 4 e 28 dias, e os sinais clínicos caracte-
que o SVDV foi introduzido na população suína rizam-se por febre, anorexia, depressão, evolução
pela transmissão do CV-B5 a partir de humanos. para sinais neurológicos como tremores e incor-
Os vírions são muito estáveis sob pH ácido, no denação, convulsões, coma e morte. A patogeni-
ambiente e resistem aos desinfetantes comuns. A cidade é influenciada pela amostra viral, idade e
viabilidade pode ser mantida após dessecação, condição imunológica dos animais. Em casos se-
congelamento, fermentação e processo de defu- veros, a mortalidade pode atingir até 75%, prin-
mação usado para preservar produtos suínos, cipalmente em animais jovens. A transmissão
podendo persistir no material contaminado por ocorre por contato com animais infectados ou por
longo período de tempo. objetos contaminados com o vírus. Após a pene-
Somente um sorotipo do SVDV foi descrito tração, o vírus replica no trato alimentar e linfo-
até o presente, e o vírus não apresenta reativida- nodos associados, disseminando-se por viremia,
de sorológica cruzada com outros picornavírus, onde atinge e infecta o sistema nervoso central.
incluindo os enterovírus suínos. O diagnóstico As lesões neurológicas incluem gliose, manguitos
da SVD baseia-se em testes laboratoriais, que são perivascular e degeneração neuronal. O diagnós-
absolutamente necessários para diferenciá-la da tico é realizado através do isolamento viral em
FMD. As amostras a serem enviadas ao labora- cultivo celular (primário ou linhagem) de origem
tório incluem sangue com anticoagulante para suína e demonstração do agente por imunofluo-
isolamento viral, soro, tecidos de lesões e líqui- rescência. O diagnóstico diferencial deve ser feito
dos vesiculares. O diagnóstico é realizado atra- de outras enfermidades que infectam o sistema
vés do isolamento viral em células de cultivo, nervoso central, como peste suína africana, peste
por fixação do complemento e ELISA de captura suína clássica, raiva entre outras. O controle pode
para a detecção de antígenos; ou através de SN, ser realizado pelo do uso de vacina inativadas ou
para a detecção de anticorpos. Os resultados dos atenuadas, além de medidas de isolamento, qua-
testes de ELISA e SN são disponíveis em um a rentena e desinfecção.
três dias. A caracterização da amostra, para usos
epidemiológicos, pode ser realizada por seqüen- 5.4 Enterovírus suínos tipos 2-11
ciamento de determinadas seqüências da VP1.
A microscopia eletrônica também pode ser utili- Os enterovírus suínos constituem um grupo
zada para a visualização de partículas víricas no de vírus (2-11) presentes em virtualmente todas as
material clínico. criações suínas. A sua identificação foi realizada
A prevenção deve ser direcionada, a fim de na década de 1960, na Europa Oriental. A grande
evitar a introdução do vírus em áreas e rebanhos maioria das infecções possui apresentação subclí-
livres, pelo estrito controle de animais importa- nica. Os enterovírus suínos são classificados no
dos de áreas infectadas e pela regulamentação do gênero Enterovirus da família Picornaviridae, e as
movimento de animais ou produtos de origem propriedades estruturais são semelhantes às des-
animal. O controle deve também incluir inspe- critas para o restante da família. A alta resistência
ção veterinária, testes sorológicos e certificação a variações de pH (2-9) – e também a temperaturas
de propriedades. O controle também deve contar abaixo de 15ºC – favorece a sua permanência por
com sistemas de detecção e diagnóstico rápidos, longo tempo no meio ambiente. A transmissão
vigilância sorológica e sistema de informação so- ocorre por contato direto ou indireto, entre ani-
bre a doença. Atualmente, não existem vacinas mais ou de animais com dejetos contaminados.
disponíveis contra o SVDV. Embora se acredite que a maioria das infecções
seja subclínica, em determinadas circunstâncias
5.3 Enterovírus suíno tipo 1 são observadas infecções clínicas. Nesses casos,
observam-se: doença entérica, respiratória, abor-
O enterovírus suíno-1 é o agente etiológico tos e outras falhas reprodutivas, além de doença
da polioencefalomielite suína ou doença de Tes- neurológica. Os enterovírus são facilmente isola-
chen. O período de incubação da enfermidade dos e cultivados em células de cultivo primárias
Picornaviridae 559

ou de linhagem de origem suína, como as IBRS-2 tógenos menores, sem muita importância clínica.
e PK-15. O diagnóstico somente deve ser buscado Existem dois rinovírus eqüinos (EqRV), 1 e 2, que
quando existe a suspeita clínica. A confirmação foram inicialmente classificados de acordo com
da presença do agente é realizada pelo isolamen- a sua estabilidade ao pH. O rinovírus eqüino 1
to em cultivo, seguido da detecção de antígenos é sensível ao pH ácido, característica semelhante
por imunofluorescência ou imunoperoxidase. A ao FMDV, o que fez com que fosse classificado no
sorologia e fixação do complemento são métodos gênero Aphtovirus. Curiosamente, os sinais clíni-
auxiliares na classificação em sorotipos e também cos em eqüinos lembram os sinais observados em
para demonstrar a ocorrência da infecção. Medi- bovinos com FMD. Além disso, alguns animais
das de prevenção e controle devem ser tomadas podem apresentar comprometimento sistêmico.
somente nos casos confirmados do envolvimento O rinovírus eqüino tipo 2 é resistente ao pH áci-
do enterovírus na etiologia da enfermidade. do, característica semelhante aos enterovírus. No
entanto, o seqüenciamento do genoma revelou
5.5 Enterovírus bovino semelhança com os cardiovírus. Até o presente,
o rinovírus eqüino 2 não foi associado com mani-
Um grande número de enterovírus tem sido festações clínicas.
isolado do trato digestivo, respiratório e repro- A infecção pelo rinovírus bovino (BoRV)
dutivo de bovinos. Alguns isolados são associa- geralmente cursa de forma subclínica ou sinais
dos com manifestações clínicas, como diarréia, respiratórios leves. Esses vírus estão classificados
doença respiratória e abortos. No entanto, ten- no gênero Rhinovirus e apresentam características
tativas de reproduzir essas manifestações pela estruturais e biológicas semelhantes aos outros
inoculação experimental de animais têm, geral- membros do gênero, incluindo a labilidade ao
mente, resultado infrutíferas. Isso dificulta o es- pH baixo. Em infecções clínicas, os sinais clíni-
tabelecimento da patogenia e da real importância cos apresentados são: febre, depressão, anorexia,
desses vírus. Sabe-se, porém, que são vírus am- lacrimejamento, conjuntivite, descarga nasal e
plamente difundidos na população bovina, pois dificuldade respiratória, nos casos graves. Pelo
um percentual altíssimo de animais e rebanhos fato de os sinais clínicos serem discretos ou ines-
possui sorologia positiva. Em alguns casos de do- pecíficos, o diagnóstico deve ser realizado pelo
ença respiratória, as lesões presentes podem ser isolamento do vírus em cultivo celular e detecção
confundidas com a FMD. As propriedades bio- dos antígenos por imunofluorescência.
lógicas dos enterovírus bovinos são as mesmas
descritas para outros membros no mesmo gêne- 5.7 Vírus da encefalomiocardite
ro. Em razão da facilidade de replicação desses
vírus em células de cultivo, a grande maioria dos O vírus da encefalomiocardite (EMCV) foi
isolados são achados acidentais ou isolados de identificado, em 1960, no Panamá e, desde en-
infecções subclínicas. A confirmação da identida- tão, tem sido descrito em vários locais, como os
de do agente pode ser realizada por ME ou por Estados Unidos, Europa, África e alguns países
técnicas de detecção de antígenos. Neutralização da América Central. A sua presença foi descrita
com anti-soro específico também é um método de no Brasil em 1985. O EMCV pertence ao gênero
identificação desse vírus, após o seu isolamento Cardiovirus, é resistente a solventes orgânicos e
em cultivo celular. às variações de pH, e possui atividade hemaglu-
tinante em eritrócitos de ratos, ovinos, cobaias e
5.6 Rinovírus eqüino e bovino eqüinos. O ECMV é considerado um vírus origi-
nalmente de roedores, porém é capaz de infectar
Os rinovírus constituem um grupo de vírus uma variedade de outros mamíferos, como chim-
que infectam várias espécies de mamíferos, in- panzés, macacos, elefantes, leões, esquilos, suí-
cluindo humanos, eqüinos e bovinos. Em bovinos nos, entre outros. Os roedores são considerados
e eqüinos, os rinovírus são considerados como pa- os principais reservatórios do vírus, dos quais o
560 Capítulo 21

vírus pode ser isolado, com freqüência, de fezes logo após a introdução do vírus no aviário, e es-
e urina. Assim, os principais veículos de trans- ses índices se reduzem com o estabelecimento
missão para suínos são o alimento e água conta- da infecção na criação. O diagnóstico é realizado
minados com fezes ou urina de roedores. Em su- através do isolamento viral a partir de macera-
ínos jovens, os sinais clínicos caracterizam-se por dos do cérebro de pintos doentes. O isolamento
anorexia, paralisia, dispnéia e morte súbita devi- pode ser feito pela inoculação via intracerebral
do à miocardite. Em animais recém-desmama- em pintos de um dia, o que reproduz a enfermi-
dos, a mortalidade pode se aproximar de 100%. dade neurológica em até 28 dias. Outra forma de
Em animais jovens e adultos, as infecções são isolamento viral é a inoculação no saco da gema
geralmente subclínicas. Fêmeas prenhes podem de ovos embrionados de 5-7 dias de incubação.
apresentar problemas reprodutivos como aborto, Após 12 dias, os embriões são necropsiados e a
reabsorção, natimortalidade, mumificação fetal presença de atrofia muscular da perna e morte
e nascimento de animais prematuros. As lesões embrionária é indicativa da presença do agente.
macro e microscópicas são auxiliares no diag- Pelo fato do AEV não produzir efeito citopático
nóstico. O diagnóstico do EMCV de animais que em células de cultivo, a técnica de isolamento não
morreram de miocardite ou em fêmeas com pro- é recomendada para o diagnóstico. A detecção de
blemas reprodutivos é realizado pelo isolamento anticorpos através de SN ou ELISA podem au-
viral em cultivo celulares ou em ovos embriona- xiliar no diagnóstico. O controle da enfermidade
dos. A confirmação do agente é realizada pela de- é realizado pela depopulação da granja ou pelo
tecção de antígenos virais nas células de cultivo uso de vacinas atenuadas ou inativadas.
por imunofluorescência. A presença de roedores
mortos na propriedade, sem causa aparente, se- 6 Bibliografia consultada
guida do isolamento viral a partir desses animais
pode confirmar o diagnóstico. As medidas de
AGOL, V.I.; PAUL, A.V.; WIMMER, E. Paradoxes of the
prevenção e controle da enfermidade devem ser replication of picornaviral genomes. Virus Research, v.62, p.129-
direcionadas para o combate de roedores. 147, 1999.

BARNETT, P.V. et al. Evidence that high potency foot-and-mouth


5.8 Vírus da encefalomielite das aves disease vaccine inhibits local virus replication and prevents the
“carrier” state in sheep. Vaccine, v.22, p.1221-1232, 2004.
O vírus da encefalomielite das aves (AEV)
BAXT, B.; RIEDER, E. Molecular aspects of foot-and-mouth
produz a enfermidade conhecida como encefa-
disease virus virulence and host range: role of host cell receptors
lomielite das aves (AE), que acomete principal- and viral factors interactions. In: SOBRINHO, F.; DOMINGO, E.
mente pintinhos com 1 a 4 semanas de idade. Já (eds). Foot-and-mouth disease: current perspectives. Norfolk,
em aves com idade superior a 28 dias, as infec- UK: Horizon Press, 2004. Cap.7, p.145-172.

ções são geralmente subclínicas. Perus, faisões BERGMANN, I.E. et al. Diagnosis of persistent aphthovirus
e codornas são também susceptíveis à infecção, infection and its differentiation from vaccination response in
que geralmente é subclínica ou com manifesta- cattle by use of enzyme-linked immunoelectrotransfer blot
ções clínicas leves. Existe somente um sorotipo analysis with bio-engineered nonstructural viral antigens.
American Journal of Veterinary Research, v.54, p.825-831,
do vírus, porém é observada uma variação de vi-
1993.
rulência entre os isolados de campo. A principal
forma de transmissão é transovariana, e as mani- CORREA MELO, E.; LOPEZ, A. Control of foot and mouth
disease: the experience of the Americas. Revue Scientifique et
festações clínicas são observadas em pintos com
Technique (International Office of Epizootics), v.21, p.695-698,
até quatro semanas de vida. A apresentação clíni- 2002.
ca da AE caracteriza-se por ataxia, incordenação,
tremores da cabeça e pescoço e morte. Em aves DAWE, P.S. et al. Natural transmission of foot-and-mouth
disease virus from African buffalo (Syncerus caffer) to cattle in a
adultas, os sinais são discretos, porém observa-se
wildlife area of Zimbabwe. The Veterinary Record, v.134, p.230-
queda na postura que pode chegar a 15%. Uma 232, 1994.
alta morbidade e mortalidade são observadas
Picornaviridae 561

DOEL, T.R. FMD vaccines. Virus Research, v.91, p.81-100, 2003. RIEDER, E.; WIMMER, E. Cellular receptors of Picornaviruses:
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diagnostic tests and vaccines. 3.ed. Paris, France: OIE, 1996.
Cap.2.1.1, p.47-56.
FLAVIVIRIDAE
Julia F. Ridpath & Eduardo Furtado Flores 22
1 Introdução 565

2 Características comuns aos membros da família Flaviviridae 565

2.1 O vírion e o genoma 565


2.2 O ciclo replicativo 566

3 Características que diferenciam os membros da família Flaviviridae 567

4 Classificação 568

4.1 Gênero Flavivirus 568


4.1.1 Vírus da Louping ill 570
4.1.2 Vírus Wesselbron 571
4.1.3 Vírus da encefalite japonesa 571
4.1.4 Vírus do Nilo Ocidental 572

4.2 Gênero Pestivirus 576


4.2.1 Vírus da peste suína clássica 579
4.2.2 Vírus da diarréia viral bovina 582
4.2.3 Vírus da doença da fronteira 589

4.3 Gênero Hepacivirus 589

5 Bibliografia consultada 590


1 Introdução ra (BDV), que infectam exclusivamente animais.
O vírus da hepatite C (HCV) é um patógeno ex-
A família Flaviviridae abriga vários vírus clusivamente de humanos, não é transmitido por
de importância em saúde humana e animal. Os insetos e se constitui no único membro do gênero
membros dessa família possuem vírions peque- Hepacivirus.
nos, envelopados, que contêm uma molécula de
RNA linear de polaridade positiva como genoma. 2 Características comuns aos
A família é dividida em três gêneros: Flavivirus membros da família Flaviviridae
(do latim flavus – amarelo), Pestivirus (do latim
pestis – peste) e Hepacivirus (do grego heptos – fí- Os membros da família Flaviviridae apresen-
gado). A família Flaviviridae foi estabelecida há tam várias características em comum, que servi-
poucos anos e abriga vários vírus anteriormen- ram de base para a sua classificação nessa família.
te classificados na família Togaviridae (flavivírus Essas características incluem a estrutura e morfo-
e pestivírus), além dos hepacivírus, que foram logia dos vírions, o tipo, estrutura e organização
identificados posteriormente. do genoma e os aspectos básicos da expressão
Os flavivírus (denominação dos membros gênica e replicação viral. Essas propriedades co-
do gênero Flavivirus) são transmitidos prima- muns, quando analisadas em conjunto, indicam
riamente por insetos. O protótipo desse gênero que esses vírus provavelmente derivam de um
(e da família) é o vírus da febre amarela (YFV), ancestral comum.
responsável por doença severa em humanos em
regiões tropicais/equatoriais. O YFV é mantido 2.1 O vírion e o genoma
na natureza por meio de infecções alternadas em
mamíferos silvestres e insetos e, ocasionalmente, Todos os membros da família possuem ví-
é transmitido a humanos. Os vírus do Nilo Oci- rions esféricos (40-60 nm de diâmetro) que con-
dental (WNV) e das encefalites japonesa (JEV) e têm um nucleocapsídeo icosaédrico revestido
Saint Louis (SLEV) são também vírus zoonóticos externamente por um envelope derivado das
de importância em sanidade animal. O vírus da membranas da célula hospedeira (Figura 22.1).
dengue possui grande importância como patóge- Em algumas espécies, os vírions possuem um
no humano. O gênero Pestivirus inclui o vírus da formato esférico, tendendo a hexagonal, pois o
peste suína clássica (CSFV), o vírus da diarréia vi- envelope está intimamente associado ao nucle-
ral bovina (BVDV) e o vírus da doença da frontei- ocapsídeo. A presença do envelope torna esses

A B

Proteínas do capsídeo

Genoma RNA

Membrana lipídica

Glicoproteína E

Glicoproteína M

Fonte: A) PHIL Library, CDC.

Figura 22.1. Morfologia e estrutura das partículas víricas da família Flaviviridae. A) Foto de microscopia eletrônica de
vírions do vírus do Nilo Ocidental (WNV); B) Ilustração esquemática de uma partícula vírica com os seus
componentes.
566 Capítulo 22

vírus susceptíveis à inativação por solventes or- 2.2 O ciclo replicativo


gânicos e detergentes. O envelope contém duas
(flavivírus e hepacivírus) ou três (pestivírus) gli- O esquema geral de replicação dos vírus
coproteínas virais inseridas. da família Flaviviridae está representado na Fi-
O genoma consiste de uma fita simples de gura 22.3. A replicação do genoma e a produção
RNA de polaridade positiva, com 9 a 12.3 kb. Esta da progênie viral ocorrem inteiramente no cito-
molécula de RNA apresenta duas regiões não- plasma da célula hospedeira. A penetração dos
traduzidas (UTRs) próximas às extremidades vírions nas células ocorre por endocitose, após
5’ e 3’ e possui uma única fase aberta de leitura a interação entre proteína(s) do envelope viral e
(ORF) (Figura 22.2). Durante o ciclo replicativo, receptores da membrana plasmática. Após a aci-
não ocorre a produção de RNA mensageiros sub- dificação dos endossomos, ocorre a fusão do en-
genômicos. As proteínas estruturais são codifica- velope com a membrana endossomal, o capsídeo
das no terço próximo à extremidade 5’; enquanto dissocia-se, e o genoma é liberado no citoplasma.
os genes das proteínas não-estruturais localizam- O RNA genômico de polaridade positiva é tradu-
se nos dois terços próximos à extremidade 3’. A zido em toda a sua extensão, originando uma po-
ORF é traduzida em uma longa poliproteína, que liproteína que é clivada em proteínas individuais
é clivada em proteínas individuais à medida que à medida que é sintetizada. A clivagem da po-
é produzida. A estrutura e organização genômica liproteína por proteases celulares e virais origi-
comparada dos vírus pertencentes aos três gêne- na as proteínas estruturais e não-estruturais. As
ros da família estão apresentados na Figura 22.2. proteínas não-estruturais auxiliam no processo

Gênero Flavivirus

11 Kb, 5' UTR cap

5' UTR 3' UTR


C Pre-M E NS1 NS2A NS2B NS 3 NS4A NS4B NS5

Gênero Pestivirus

12,3 Kb, 5' UTR IRES


5' UTR p7 3' UTR
pro rns
N C E E1 E2 NS2-3 NS4-A NS4-B NS5A NS5B

Gênero Hepacivirus

9,4 Kb, 5' UTR IRES


5' UTR 3' UTR
C E1 E2 NS2 N S3 NS4A NS4B NS5A NS5B

Proteínas não-estruturais
Proteínas estruturais
Proteína estrutural imunodominante

Figura 22.2. Estrutura e organização genômica comparada de vírus dos três gêneros da família Flaviviridae.
Flaviviridae 567

O vírion penetra na célula Genoma RNA


e é desnudo cadeia positiva

Replicação Tradução
RNA

RNA Poliproteína
cadeia negativa

Clivagem
Proteínas
pós-tradução
não-estruturais
Progênie RNA Proteínas
cadeia positiva estruturais

Progênie
viral

Figura 22.3. Representação esquemática do ciclo replicativo dos vírus da família Flaviviridae.

de clivagem desta poliproteína e atuam na repli- 3 Características que diferenciam os


cação do genoma. A replicação do genoma envol-
membros da família Flaviviridae
ve a síntese de uma molécula de RNA de sentido
antigenômico (polaridade negativa). Esse RNA
serve de molde para a síntese do RNAs de pola- Os gêneros da Flaviviridae diferem entre si
ridade positiva que servirão para mais etapas de na extensão do genoma, em alguns detalhes da
tradução e, posteriormente, serão encapsidados estrutura e organização genômica, no número e
como genoma da progênie viral. As proteínas es- função de produtos gênicos e em alguns aspectos
truturais são utilizadas na montagem e constru- biológicos. Várias dessas características são uti-
ção da progênie viral. A morfogênese das novas lizadas para a sua classificação em gêneros e es-
partículas virais ocorre na região perinuclear do pécies. As principais diferenças entre os gêneros
citoplasma, em associação com as membranas do estão apresentadas na Tabela 22.1. Os pestivírus
complexo de Golgi e do retículo endoplasmático codificam duas proteínas que não são encontra-
liso. As partículas recém-formadas aparecem em das nos outros gêneros: a proteína não-estrutu-
vacúolos no citoplasma e a sua liberação ocor- ral Npro, que é codificada pelo primeiro gene da
re pela fusão dessas vesículas com a membrana ORF, e a glicoproteína Erns. A Npro é uma protei-
plasmática. A ruptura da célula não parece ser nase cuja única função conhecida é se autoclivar
um pré-requisito para a liberação dos vírions. As da poliproteína logo após a sua síntese; a Erns (ou
conseqüências da replicação viral para a fisiologia E0) é uma glicoproteína associada ao envelope
e integridade das células variam de acordo com viral e pode também ser secretada das células
o vírus e com a célula hospedeira, e vão desde in- infectadas. Além disso, a Erns possui atividade ri-
fecções absolutamente inaparentes (flavivírus em bonuclease. Enquanto a maioria dos flavivírus e
células de mosquitos; BVDV não-citopático em hepacivírus são inativados sob pH baixo, os pes-
células de mamíferos) até lise e destruição celular tivírus podem ser diferenciados por resistirem à
(flavivírus em células de vertebrados; BVDV cito- inativação por pH baixo e por apresentarem certa
pático em linhagens celulares de bovinos). estabilidade em uma ampla faixa de pH.
568 Capítulo 22

Tabela 22.1. Características gerais dos três gêneros da família Flaviviridae.

Genoma Multiplicação Hospedeiros


Vetores
Gênero eficiente em Animais Animais artrópodes
Extensão 5' cultivo Humanos domésticos silvestres

Flavivirus 11kb 5' cap X X X X X

Pestivirus 12.5kb IRES X - X X -

Hepacivirus 9,6kb IRES - X - - -

4 Classificação – Flavivírus transmitidos por mosquitos:


vírus Aroa, dengue, Kedougou, Cacipacore,
De acordo com propriedades biológicas, encefalite japonesa (JEV), Koutango, encefalite
ecológicas e moleculares, os membros da Flavi- Murray Valley (MVEV), Nilo Ocidental (WNV),
viridae são divididos em três gêneros: Flavivirus, Yaounde, Kokobera, Ntaya, Bagaza, Ilhéus, Isra-
Pestivirus e Hepacivirus. A seguir, são descritas as el turkey, Tembuso, Zika, Banzi, Bouboui, Edhe
principais características dos vírus de cada gêne- Hill, Jugra, Saboya, Sepid, Uganda, Wesselbron e
ro. vírus da febre amarela (YFV);
– Flavivírus sem vetor artrópode conheci-
4.1 Gênero Flavivirus do: vírus Entebbe dos morcegos, Yokose, Modoc,
Apoi, Cowbone Ridga, Sal Vieja, San Perlita, Rio
São utilizados sete critérios para a classifica- Bravo, Bukalasa dos morcegos, Carey Island,
ção das espécies neste gênero, que serão descritas Dakar Bat, Montana Myotis, Phnom Pehn Bat.
a seguir.
– Características antigênicas
– Homologia de seqüências de
nucleotídeos ou de aminoácidos Todos os vírus do gênero Flavivirus são an-
tigenicamente relacionados entre si. No entanto,
As diferentes espécies de vírus classificados testes de neutralização viral têm sido utilizados
no gênero Flavivirus são mais divergentes entre si para identificar sorogrupos entre os vírus alta-
quando comparadas com a divergência existente mente relacionados. Com base na similaridade
entre os membros dos gêneros Pestivirus e Hepa- antigênica detectada nesses testes, a maioria dos
civirus. No entanto, as estruturas secundárias nas vírus do gênero tem sido classificada em um dos
regiões UTRs 5’ e 3’ do RNA genômico são con- oito sorogrupos: dois sem vetor conhecido (Mo-
servadas entre as espécies desse gênero. De acor- doc e Rio Bravo); dois transmitidos por carrapa-
do com essas características, os vírus do gênero tos (TBEV e Tyuleniy) e quatro transmitidos por
Flavivirus podem ser divididos em três grupos mosquitos (Uganda S, dengue, Ntaya e JEV). No
genômicos. Alguns desses vírus não apresentam entanto, alguns vírus, incluindo o protótipo da
vetores artrópodes conhecidos: família, o YFV, não se enquadram em nenhum
– Flavivírus transmitidos por carrapatos: desses sorogrupos.
vírus Gadget Gully, Kyasanur Forest, Langat,
Louping Ill, febre hemorrágica Omsk, Powassan, – Origem geográfica
Royal Farm, Tick-borne encephalitis (TBEV), Sea-
bird tick-borne, Kadam, Meaban, Saumarez Reef Enquanto os flavivírus, como gênero, apre-
e vírus Tyuleniy; sentam uma ampla distribuição geográfica, as es-
Flaviviridae 569

pécies virais são restritas a certas regiões. O YFV – Hospedeiros


é encontrado apenas em regiões tropicais e sub-
tropicais da África e da América do Sul. O vírus O espectro de hospedeiros dos flavivírus in-
da dengue é encontrado somente em áreas tropi- clui uma variedade de espécies de vertebrados e
cais da Ásia, Oceania, África, Austrália, América de artrópodes. Os artrópodes adquirem a infecção
do Sul e América do Norte. O JEV é restrito ao ao ingerir o sangue de um vertebrado infectado e
sudoeste da Ásia, enquanto o TBEV é encontrado são responsáveis pela manutenção desses vírus
na Europa e Norte da Ásia. A distribuição geo- na natureza (Figura 22.4). Os ciclos de transmis-
gráfica de uma determinada espécie de vírus está são natural serão discutidos posteriormente, nas
geralmente relacionada com a presença da espé- características ecológicas.
cie de vetor envolvida na transmissão. A origem
geográfica pode ser utilizada como um dos crité- – Apresentação clínica
rios para a classificação.
Os flavivírus variam amplamente no seu po-
– Vetores tencial patogênico. Mais de 50% produzem doen-
ça clínica em humanos e muitos são patogênicos
A maioria dos flavivírus (78%) é mantida, para diferentes espécies animais, como aves, su-
amplificada e disseminada mediante ciclos de ínos, eqüinos, caninos, grouse (espécie de ave do
transmissão natural que requerem artrópodes Hemisfério Norte) e musaranhos. Os flavivírus
hamatófagos que transmitem o vírus para os patogênicos podem ser divididos em três catego-
hospedeiros vertebrados (Figura 22.4). A necessi- rias maiores: aqueles que produzem infecção no
dade do vetor artrópode se dá, basicamente, em sistema nervoso central (SNC), acompanhada de
razão da ineficiência de transmissão direta entre meningoencefalite (WNV e SLEV); os associados
os hospedeiros vertebrados. Não há evidência do com febre, artralgia e eritemas (dengue), e aque-
desenvolvimento de doença nos hospedeiros in- les associados com febre hemorrágica (YFV).
vertebrados após a infecção, sugerindo que a in-
teração do vírus com o inseto é bem equilibrada. – Características ecológicas
Os vetores mais comumente utilizados pelos ví-
rus do gênero Flavivirus são os mosquitos (50%), A maioria dos flavivírus é mantida na natu-
seguidos pelos carrapatos (28%). reza por meio da replicação alternada em hospe-

Vertebrado humano
ou animal doméstico

Mosquito ou carrapato

Vertebrado silvestre

Pode não ocorrer ou é


insignificante para a disseminação

Figura 22.4. Ciclo de transmissão natural dos flavivírus. O vírus é mantido em ciclos alternados em aves, mamíferos
silvestres e mosquitos e apenas ocasionalmente é transmitido para o homem ou para animais domésticos.
570 Capítulo 22

deiros invertebrados (artrópodes hematófagos) e tes são facilmente estabelecidas. A indução de


em vertebrados (Figura 22.4). Como descrito an- citopatologia em algumas dessas células é uma
teriormente, os vetores invertebrados se infectam exceção. A infecção dos vetores artrópodes é ge-
ao ingerir o sangue de um vertebrado infectado. ralmente crônica e os insetos permanecem infec-
O vírus replica nos tecidos do vetor e, após al- tados por toda a vida.
guns dias, pode ser transmitido a outro hospedei-
ro vertebrado pela picada do inseto que inocula Flavivírus de importância veterinária
o agente juntamente com a saliva. Os principais
hospedeiros vertebrados, para a maioria dos fla- Historicamente, os vírus Louping ill, Wes-
vivírus, são diferentes espécies de pássaros ou de selbron (WBV) e da encefalite japonesa (JEV)
mamíferos silvestres. A infecção de humanos ou são considerados os mais importantes dentro do
de animais domésticos é tipicamente incidental e gênero Flavivirus do ponto de vista da medicina
não é necessária para a manutenção do vírus na veterinária. Mais recentemente, o WNV tem ex-
natureza. No entanto, esporadicamente, pode-se pandido a sua distribuição geográfica e tem sido
observar transmissão do agente entre humanos e associado com um número expressivo de casos
entre animais domésticos. A exceção é o vírus da em vertebrados. A Tabela 22.2 apresenta as prin-
dengue, que é mantido em populações humanas cipais características dos flavivírus de importân-
pela transmissão por mosquitos. cia veterinária.
Nos demais flavivírus, os níveis de viremia,
durante a infecção aguda em mamíferos domésti- 4.1.1 Vírus da Louping ill
cos, são geralmente baixos. No entanto, estes po-
dem representar uma fonte potencial de infecção O vírus da Louping ill causa uma encefalo-
para os humanos. Por exemplo, vacas, cabras e mielite que foi observada inicialmente em ovi-
ovelhas podem excretar o vírus pelo leite e este nos. Ocorre mais freqüentemente no verão e no
ser um veículo para a infecção de humanos. inverno e a sua denominação se dá pelo andar
A epidemiologia dos flavivírus é diferen- saltitante dos animais infectados. Embora origi-
te entre os diferentes gêneros e mesmo entre os nalmente isolado na Escócia e na Inglaterra, o ví-
membros de um mesmo gênero, e é bastante rus encontra-se amplamente distribuído no con-
complexa em alguns vírus. Ou seja, vários fatores tinente europeu. O ciclo de transmissão envolve
precisam estar presentes para que ocorra a infec- o carrapato Ixodes ricinus como vetor. Este vírus
ção em um indivíduo ou em um rebanho. Alguns pode infectar várias espécies de mamíferos, in-
flavivírus dependem de diferentes espécies de cluindo humanos, e os ovinos são os hospedeiros
hospedeiros vertebrados e invertebrados. Para principais.
outros, o ciclo de transmissão permanece não es- Os animais infectados se tornam virêmi-
clarecido. Enquanto muitos requerem artrópodes cos e desenvolvem uma resposta febril bifásica.
como vetores, 12% das espécies de flavivírus co- O segundo pico febril ocorre juntamente com o
nhecidas são agentes com potencial zoonótico e aparecimento dos sinais clínicos que incluem ata-
são transmitidas entre roedores e morcegos e não xia, hiperexcitabilidade, tremores e paralisia. As
se tem conhecimento de nenhum vetor artrópo- ovelhas que desenvolvem sinais nervosos dificil-
de. mente sobrevivem. Nas demais espécies, o de-
Os flavivírus replicam in vitro em uma va- senvolvimento dos sinais clínicos está geralmen-
riedade de células de mamíferos, de aves e de te associado com a idade, com o status nutricional
insetos. A replicação em células de vertebrados e com a ocorrência de infecções secundárias.
é, geralmente, acompanhada de citopatologia se- A confirmação do diagnóstico pode ser feita
vera e lise celular, embora alguns tipos celulares pelo isolamento viral a partir do SNC, por sorolo-
possam apresentar uma infecção persistente. Ao gia e pela histopatologia do encéfalo. O isolamen-
contrário, a infecção de células de mosquitos é to do vírus pode ser realizado em cultivo celular
geralmente não-citopática e infecções persisten- ou pela inoculação intracerebral em camundon-
Flaviviridae 571

Tabela 22.2. Vírus do gênero Flavivirus associados com enfermidades de importância veterinária.

Vírus Vetores Espécie afetada Apresentação clínica Ocorrência

Encefalite Encefalite, nascimento de


Mosquitos Eqüinos, suinos leitões fracos e inviáveis Ásia
japonesa (JEV)

Principalmente ovinos,
mas também humanos,
Louping ill Carrapatos bovinos, suínos, Encefalite Escócia, Irlanda do Norte
eqüinos, cervídeos e
red grouse cativos

Principalmente ovinos,
mas também humanos,
bovinos, caprinos, Abortos, hepatite,
Wesselsbron Mosquitos suínos, eqüinos, mulas, hemorragias, malformações África
(WBV) camelos, cobaias, congênitas
coelhos, cães e aves
silvestres
Principalmente pássaros,
mas também causa
doença importante em África, Europa, Estados
Nilo Ocidental
Mosquitos humanos e eqüinos. Encefalite, doença febril Unidos, México, norte da
(WNV)
Infecta + de 30 espécies América Central
de invertebrados e + de
150 espécies de aves.
Israel turkey
Mosquitos Perus Encefalite Israel
meningoencephalitis

Kunjin Mosquitos Eqüinos Encefalite Austrália

Murray Valley (MVEV) Mosquitos Eqüinos Encefalite Austrália

gos. O controle da enfermidade é baseado na dem ocasionalmente ser infectados e vacas pre-
imunização dos cordeiros, tratamento de ovelhas nhes podem apresentar aborto ou parir bezerros
para evitar a infestação pelos carrapatos vetores fracos e/ou inviáveis.
e controle ambiental para reduzir a população de O diagnóstico pode ser realizado pelo isola-
carrapatos. mento viral e por testes de soroneutralização (SN).
O isolamento viral é realizado pela inoculação
4.1.2 Vírus Wesselbron intracerebral em camundongos lactentes. Como
medida de controle, uma vacina viva modificada
O vírus Wesselbron (WBV) é encontrado no tem sido utilizada. No entanto, esta vacina não é
continente africano, é transmitido pelos mosqui- recomendada para uso em animais prenhes e sua
tos Aedes cavallus e Aedes ciculuteolus e apresenta eficácia é questionada. Por essas razões, as medi-
um amplo espectro de hospedeiros (Tabela 22.2). das de controle são basicamente direcionadas ao
A doença reprodutiva associada ao WBV pratica- controle dos mosquitos vetores.
mente só ocorre em ovinos e é caracterizada por
abortos e por morte neonatal. A infecção nas ove- 4.1.3 Vírus da encefalite japonesa
lhas é geralmente subclínica. Fetos abortados po-
dem apresentar artrogripose, hidroencefalia, po- O vírus da encefalite japonesa (JEV) utiliza
rencefalia e hipoplasia cerebelar. Malformações mosquitos como vetores para a sua transmissão
congênitas raramente são observadas. Infecção e encontra-se amplamente distribuído na Ásia,
aguda fatal em cordeiros pode cursar com ano- com recente expansão para o norte da Austrália.
rexia, letargia, fraqueza, depressão nos flancos e O JEV é antigenicamente relacionado com o SLEV
aumento da freqüência respiratória. A resposta e com o WNV. A encefalite japonesa é uma doen-
febril é geralmente bifásica, com o segundo pico ça de importância primária em humanos, embora
febril de maior duração (3-6 dias). Os bovinos po- o vírus possa acometer também eqüinos e causar
572 Capítulo 22

aborto em suínos. O ciclo biológico desse vírus mentaram, a infecção e a doença foram relatadas
envolve mosquitos do gênero Culex, pássaros e em várias espécies animais e em áreas até então
mamíferos. Na epidemiologia, a espécie suína aparentemente livres do agente. Nas últimas dé-
pode funcionar como a principal espécie ampli- cadas, epizootias da doença causada pelo WNV
ficadora do vírus. em eqüinos têm sido descritas em Marrocos (1996
A infecção em eqüinos produz enfermidade e 2003), Itália (1998), Israel (2000), Sul da França
com sinais clínicos moderados a fatais, depois de (2000, 2003, 2004), além de evidência sorológica
8 a 10 dias após a infecção. Os sinais neurológicos da circulação de vírus relacionados em vários ou-
são similares aos descritos nas demais encefalites tros países europeus, asiáticos e da Oceania.
e podem incluir: cegueira, ataxia, dificuldade de O marco histórico da doença do Nilo Oci-
deglutição, andar irregular, incoordenação, an- dental foi a sua introdução em Nova Iorque, em
dar em círculos, estupor e coma. A infecção em 1999, quando causou mortalidade em pássaros
suínos adultos é geralmente subclínica e o seu im- de vida livre e de zoológicos e provocou doença
pacto nessa espécie deve-se à transmissão trans- em 67 pessoas, provocando a morte de 21. A par-
placentária, cuja patogenia é muito semelhante à tir daí, o vírus se disseminou rapidamente por
da infecção pelos parvovírus. As conseqüências praticamente todos os estados norte-americanos,
da infecção transplacentária incluem aborto, mu- provocando infecção e doença em uma variedade
mificação fetal, nascimento de leitões com sinais de pássaros silvestres, mamíferos silvestres e do-
neurológicos e nascimento de animais aparente- mésticos (especialmente eqüinos) e também em
mente saudáveis. humanos. Até maio de 2007, a infecção foi relatada
em 24 mil pessoas (752 mortes) e causou doença
4.1.4 Vírus do Nilo Ocidental em mais de 25.000 eqüinos (mortalidade aproxi-
mada de 35-40%). Esses números provavelmente
O vírus do Nilo Ocidental (West Nile vi- ultrapassam em magnitude os números até então
rus, WNV) foi, inicialmente, identificado em relatados para a enfermidade, durante décadas,
uma mulher com quadro febril em uma pro- nas regiões de origem. Concomitantemente com a
víncia da Uganda, África, em 1937. A província sua difusão na direção oeste nos EUA, a infecção
era denominada West Nile (Nilo Ocidental), daí avançou na direção norte (Canadá) e está avan-
a denominação da doença e do agente. Nas dé- çando na direção sul (México, América Central
cadas seguintes, o WNV foi reconhecido como e Caribe). Nos últimos anos, evidências sorológi-
um dos arbovírus mais difundidos em pássaros, cas indicam a presença da infecção em eqüinos e
mosquitos e humanos, com distribuição em algu- muares na Colômbia (2004-2005), e o vírus já foi
mas regiões da África, no Oriente Médio, Europa identificado em casos de doença neurológica em
Mediterrânea, Índia, em algumas regiões da Ásia eqüinos na Argentina (2006).
e Austrália. A grande maioria das infecções hu- A rápida e explosiva disseminação do WNV,
manas nessas regiões, no entanto, era subclínica nos EUA, permitiu o conhecimento (ou o sur-
ou acompanhada de sinais clínicos leves. Surtos gimento) de padrões epidemiológicos até então
importantes em humanos ocorreram em Israel ignorados, como a notável amplitude de vetores
(1951-1954, 1957) e na África do Sul (1974). e hospedeiros vertebrados susceptíveis ao vírus,
Evidências sorológicas da infecção em eqüi- além do reconhecimento de novas formas de
nos datam de 1956 (Egito) e 1960 (Israel), e os pri- transmissão. Até o presente, a infecção natural ou
meiros relatos clínicos da doença nessa espécie experimental pelo WNV já foi demonstrada em
foram realizados no Egito, em 1963. Desde então, mais de 150 espécies de aves – passeriformes ou
surtos de doença febril e neurológica em eqüinos não – e em várias espécies de mamíferos domésti-
têm sido ocasionalmente descritos no Oriente cos e de vida livre, anfíbios e répteis, além de hu-
Médio, norte da África e em países europeus me- manos. Dentre as espécies de interesse veteriná-
diterrâneos. A partir da década de 1990, os relatos rio, os eqüinos apresentam importância peculiar,
de doença humana – muitas vezes severa – au- pois são muito susceptíveis à infecção natural e,
Flaviviridae 573

freqüentemente, desenvolvem um quadro severo sorológicos foi apresentada no início desta seção.
de encefalite. No entanto, a infecção também tem A rápida expansão da infecção nas Américas, so-
sido demonstrada em outros mamíferos e aves de bretudo na direção oeste e sul, sugere que novos
criação. casos clínicos ou evidências sorológicas prova-
velmente serão relatados nos próximos anos nas
4.1.4.1 O agente Américas Central e do Sul. As condições ecológi-
cas nessas regiões (clima, flora e fauna) são pro-
O WNV pertence ao complexo antigênico pícias para a introdução e manutenção do agente
do JEV e SLEV e apresenta reatividade soroló- em ambientes silvestres, com exposição ocasio-
gica cruzada com vários vírus desse complexo, nal de animais domésticos e humanos, como tem
o que dificulta o seu diagnóstico por métodos ocorrido nos EUA.
imunológicos. Os isolados do WNV podem ser A exemplo de outros flavivírus, o WNV é
divididos em duas linhagens genéticas: os vírus transmitido primariamente por insetos hemató-
da linhagem 1 circulam na América do Norte fagos – sobretudo mosquitos –, que adquirem o
(desde 1999), Europa, Ásia e Austrália; os vírus vírus ao realizarem o repasto sangüíneo em aves
da linhagem 2 têm sido isolados da África subsa- virêmicas, consideradas os reservatórios naturais
ariana e Madagascar. Os vírus da linhagem 1 po- do agente. Os insetos são capazes de transmitir
dem ser divididos em quatro clãs, que possuem o agente após um período de incubação intrín-
distribuição geográfica e virulência distintas; os seco, no qual o vírus replica em seus tecidos. Os
isolados norte-americanos pertencem ao clã B e principais vetores de transmissão do WNV são as
são altamente virulentos para camundongos, ao várias espécies de mosquitos do gênero Culex sp.,
contrário da maioria dos outros vírus das duas embora outros mosquitos possam também ter al-
linhagens. guma participação na transmissão. Dentre as de-
O WNV, introduzido nos Estados Unidos zenas de espécies de Culex, existem diferenças na
em 1999, possui uma alta homologia de nucle- eficiência de transmissão do agente. Nos Estados
otídeos (99,7%) com um vírus isolado de surtos Unidos, já foram identificadas aproximadamen-
em Israel poucos anos antes, o que indica a sua te 60 espécies de Culex capazes de transmitir o
provável origem. Esse vírus apresenta virulência WNV, porém menos de 10 são consideradas im-
para corvos americanos (Corvus brachyrynchos) e portantes na transmissão do vírus. Espécies de
para outras espécies de pássaros (pardais, pássa- Culex exclusivamente ornitofílicas transmitem o
ros cantores), o que o distingue de outros WNV vírus apenas entre aves. No entanto, algumas es-
que circulam na África e Austrália. Isolados ate- pécies realizam repasto tanto em aves como em
nuados do WNV, provavelmente descendentes mamíferos, podendo transmitir o vírus de aves
do vírus original introduzido nos EUA, têm sido virêmicas para mamíferos e humanos. Já foi de-
identificados em aves em alguns estados norte- monstrada a transmissão transovariana do vírus
americanos e na América Central. É provável que nos insetos, assim como a sua presença em fême-
esta variação genotípica e fenotípica se constitua as hibernando. Isto pode explicar a permanência
em um reflexo da adaptação gradativa do WNV do agente após o inverno em regiões temperadas
aos novos hospedeiros. Assim, diferenças geno- ou frias.
típicas e fenotípicas (virulência, preferência por Os hospedeiros naturais do WNV na natu-
vetores, adaptação a novos hospedeiros) pos- reza são aves silvestres de diferentes espécies. A
sivelmente serão identificadas em isolados do infecção natural já foi demonstrada em mais de
WNV das Américas nos próximos anos. 150 espécies de aves silvestres e domésticas em
todo o mundo. As aves apresentam uma grande
4.1.4.2 Epidemiologia variabilidade de susceptibilidade à infecção e do-
ença pelo WNV e também apresentam potencial
Um resumo da distribuição geográfica do distinto de transmissão. Assim, os corvídeos, pas-
WNV, com base em relatos clínicos, virológicos e seriformes (pássaros cantores, rabos-de-palha,
574 Capítulo 22

pardais), chadriiformes (aves de banhados), co- da em aves que ingeriram carcaças de pássaros
rujas e falconiformes desenvolvem níveis de vire- infectados; em crocodilos inadvertidamente ali-
mia suficientes para infectar uma grande parcela mentados com carcaças de eqüinos infectados; e
dos mosquitos que realizam o repasto sangüíneo. entre perus criados em condições intensivas, pro-
Pombos, pica-paus, gansos, marrecos e patos não vavelmente através de aerossóis. A transmissão
desenvolvem altos títulos de vírus no sangue e, por contato direto ou indireto com secreções e
assim, não infectam uma parcela significativa excreções de aves virêmicas foi demonstrada ex-
dos mosquitos. Corvídeos, gralhas e pardais são perimentalmente (entre aves e entre crocodilos) e
altamente infecciosos para mosquitos e também pode ocorrer sob determinadas condições na na-
apresentam mortalidade de aproximadamente tureza. Apesar dessas outras formas já terem sido
40% quando infectados. Os chadriiformes (aves demonstradas, a transmissão por mosquitos é a
pernaltas de regiões alagadiças) e anseriformes
mais importante e a principal responsável pela
(ganso doméstico) são altamente susceptíveis
circulação do vírus na natureza.
à infecção e enfermidade. Os psitacídeos e gali-
náceos são menos susceptíveis. O papel de aves
migratórias na disseminação do WNV ainda é 4.1.4.3 Patogenia, sinais clínicos
desconhecido, mas a rápida difusão do vírus nas e patologia
Américas aponta para uma provável participa-
ção dessas aves. Várias espécies de aves e mamíferos são
Os níveis de viremia desenvolvidos por susceptíveis à infecção natural pelo WNV, e a
eqüinos e humanos – além de outros mamíferos susceptibilidade de outras diversas espécies foi
– não são suficientes para infectar eficientemente demonstrada experimentalmente. Dentre as es-
os mosquitos e proporcionar a transmissão. As- pécies infectadas naturalmente que desenvolve-
sim, estas espécies não participam da transmis- ram a doença, podem ser citados crocodilos, al-
são do agente através de vetores. Outras formas pacas, cães, ovinos cervídeos e lobos. Sorologia
de transmissão, pouco freqüentes e de importân- positiva em níveis variáveis tem sido detectada
cia epidemiológica questionável, já foram descri- em ursos, canídeos silvestres, coelhos silvestres,
tas. Algumas espécies de rãs e répteis (crocodilos lêmures, camelos e primatas não-humanos cati-
jovens), além de hamsters, podem desenvolver vos, entre outros. De particular interesse foi um
níveis de viremia compatíveis com a transmissão surto ocorrido em uma criação comercial de,
através de mosquitos, mas o seu papel na trans- aproximadamente, 10.000 crocodilos, dos quais
missão natural do vírus é desconhecido. 1.250 morreram após um curso clínico com sinais
O caráter epidêmico e o grande número de
neurológicos. A infecção foi provavelmente in-
pessoas infectadas nos EUA permitiram o reco-
troduzida na criação em carcaças de eqüinos uti-
nhecimento de novas formas de transmissão até
lizadas para alimentar os crocodilos. Em ovinos,
então ignoradas. Assim, foi demonstrado que o
alpacas, cães e lobos, a enfermidade neurológica
WNV pode ser transmitido de mães virêmicas
também foi esporadicamente relatada. Várias ou-
para os fetos através da placenta e também para
tras espécies foram infectadas experimentalmen-
os recém-nascidos, pelo colostro e leite. O vírus
te com sucesso, o que estende consideravelmente
pode ser transmitido por transfusão sangüínea
e também por transplantes de órgãos. Essas for- o espectro de possíveis hospedeiros do WNV.
mas provavelmente não possuem importância Esta seção se concentrará na descrição da
epidemiológica em áreas endêmicas, mas devem enfermidade em eqüinos, aves e humanos, nos
ser consideradas em situações de epidemias. Há quais a infecção possui maior repercussão sanitá-
também relatos de infecção de técnicos de labora- ria e epidemiológica.
tório que, acidentalmente, se inocularam o agen- a) Eqüinos: os eqüinos são particularmen-
te durante a manipulação laboratorial. te susceptíveis à infecção pelo WNV e freqüen-
Em animais, a transmissão do WNV sem temente desenvolvem uma enfermidade aguda
o envolvimento de mosquitos foi demonstra- com comprometimento neurológico. Apesar de
Flaviviridae 575

sua alta susceptibilidade, os eqüinos não produ- (aves pernaltas de banhados) são as mais suscep-
zem níveis de viremia suficientes para infectar in- tíveis. Essas espécies desenvolvem altos níveis
setos e, assim, servir de amplificadores do vírus. de viremia e excretam grandes quantidades de
Ou seja, os eqüinos infectados não disseminam o vírus. Nas aves que desenvolvem a doença, os
vírus através de insetos hematófagos. Evidências sinais característicos incluem depressão, letar-
sorológicas indicam que a maioria das infecções gia, penas arrepiadas, além de sinais neurológi-
em eqüinos é assintomática ou leve, passando cos como: ataxia, paralisia, movimentos de pe-
despercebida por criadores e tratadores. Acre- dalagem, torcicolo, opistótono e incoordenação.
dita-se que apenas 15-20% das infecções resulte A morte geralmente sobrevém em menos de 24
em manifestações clínicas, após um período de horas. As taxas de mortalidade são geralmente
incubação de 3 a 14 dias. Após a replicação inicial elevadas. Em pardais e corvídeos, mais de 50%
nas proximidades do sítio de inoculação, o vírus dos animais que manifestam sinais clínicos vão a
alcança os linfonodos regionais e, subseqüente- óbito. Além da espécie, fatores como a idade das
mente, o sangue, através do qual invade o SNC aves e a cepa viral influenciam nas conseqüências
após atravessar a barreira hematoencefálica. No clínico-patológicas da infecção. Acredita-se que a
SNC, o vírus infecta e destrói neurônios e tam- infecção seja subclínica ou leve em grande parte
bém outras células, o que contribui para a sinto- das espécies de aves infectadas naturalmente;
matologia neurológica. A maioria das infecções c) Humanos: a exemplo dos eqüinos, apro-
não-fatais é seguida da erradicação do vírus do ximadamente 80% das infecções humanas pelo
organismo pelo sistema imunológico. WNV são subclínicas. Dentre os pacientes que
Os sinais clínicos variam entre os surtos e desenvolvem a doença, a grande maioria apre-
entre os animais afetados. Os sinais mais comu- senta uma doença aguda autolimitante, carac-
mente relatados são: anorexia, fraqueza, depres- terizada por hipertermia, cefaléia, fadiga, dores
são, incoordenação, ataxia e decúbito. Hiperter- musculares e fraqueza. Algumas pessoas apre-
mia nem sempre está presente. Bruxismo, andar sentam sinais gastrintestinais, pequenas manchas
em círculos, hiperexcitabilidade, pressionamento avermelhadas na pele e eritemas. Rigidez e dor
da cabeça contra anteparos e convulsões também no pescoço, dificuldade de concentração também
têm sido relatados. As taxas de letalidade em têm sido relatados e podem perdurar por sema-
eqüinos variam entre 25 e 45%. No surto ocorrido nas e até meses. A doença neuroinvasiva (me-
nos EUA, em torno de 1/3 dos animais morreu ningite, encefalite) ocorre em menos de 1% das
ou foi sacrificado devido à sua extrema condição. pessoas infectadas, e é mais comum em idosos e
Animais que sobrevivem 2-3 semanas após o apa- em pessoas imunocomprometidas. A severidade
recimento dos sinais geralmente se recuperam; da doença neurológica varia desde desorienta-
b) Aves: a infecção pelo WNV já foi de- ção leve até coma e morte. No surto ocorrido nos
tectada em mais de 150 espécies de aves domés- EUA, 9% das pessoas que apresentaram doença
ticas e silvestres. A susceptibilidade das aves à neuroinvasiva foram a óbito. Aproximadamente
infecção varia amplamente de acordo com a es- 10% dos pacientes que apresentam doença neuro-
pécie. Dentre as espécies domésticas, os gansos lógica desenvolvem paralisia flácida, semelhante
são os mais susceptíveis e, freqüentemente, de- à da poliomielite.
senvolvem doença neurológica quando infecta-
dos. Taxas de mortalidade de 25 a 40% têm sido 4.1.4.4 Diagnóstico
relatadas em infecções naturais, e de até 75% em
infecções experimentais. Por outro lado, galiná- Para o diagnóstico, amostras do encéfalo de-
ceos e psitacídeos estão entre as espécies menos vem ser utilizadas na tentativa de isolamento vi-
susceptíveis à infecção. Dentre as espécies silves- ral. Em aves, podem-se utilizar amostras de rim,
tres, os passeriformes (pássaros de várias espé- coração, cérebro e intestino. O isolamento viral
cies, entre os quais os pardais, rabos-de-palha, pode ser realizado em células Vero ou em célu-
pássaros cantores), corvídeos e charadriiformes las de rim de coelho (RK-13). Após a produção
576 Capítulo 22

de efeito citopático (ECP), a identidade do agente imunizar os animais. Em estudos experimentais,


pode ser confirmada por IFA ou IPX, ou, ainda, essa vacina foi capaz de proteger de viremia 100%
por neutralização com anti-soro específico. Para dos eqüinos desafiados 30 dias após a vacinação
a detecção de ácidos nucléicos virais em tecidos, e 90% daqueles desafiados um ano após a imu-
pode-se utilizar a técnica de RT-PCR; e o teste de nização, sendo que nenhum animal desenvolveu
imunoistoquímica para detecção de antígenos. sinais clínicos. Vacinas de DNA e também vaci-
Anticorpos podem ser detectados no soro de nas vivas recombinantes, utilizando a cepa vaci-
eqüinos através do teste ELISA, de HI e testes de nal 17D do vírus da febre amarela (YFV) como
redução de placa (PRA). Os métodos de HI e PRA vetor, têm sido desenvolvidas e testadas em ani-
são os mais utilizados para detecção de anticor- mais de laboratório. Vacinas para uso humano e
pos no soro de aves. Em alguns testes sorológi- em aves domésticas de importância econômica
cos, pode ocorrer reação cruzada com flavivírus também estão em desenvolvimento e podem ser
relacionados, como SLEV e JEV. licenciadas nos próximos anos.
Em eqüinos, o diagnóstico diferencial deve Além da vacinação, medidas de combate
considerar outras enfermidades que cursam com aos vetores e que visem minimizar a exposição
depressão e sinais neurológicos, como as encefa- de pessoas e animais aos insetos têm sido reco-
lites do leste, oeste e venezuelana, raiva e tripa- mendadas em áreas endêmicas. Além dessas me-
nosomíase. didas, o uso de inseticidas, larvicidas, repelentes
(para uso em eqüinos) e dispositivos para reduzir
4.1.4.5 Controle e profilaxia o acesso dos vetores, e de telas de proteção para
evitar o acesso de aves a instalações animais tem
A vacinação sistemática é o meio mais efeti- sido preconizado. Locais propícios para a repro-
vo de proteger eqüinos da infecção e doença em dução de mosquitos (depósitos de água) devem
áreas endêmicas. Nos EUA, já existem algumas ser investigados e combatidos. Lâmpadas que
vacinas licenciadas para uso em eqüinos, po- não atraem insetos devem ser preferencialmen-
rém ainda não existem vacinas comerciais para te utilizadas em estábulos, além do uso de telas
humanos ou aves. O aumento da importância nas aberturas. Deve-se também evitar o contato
da enfermidade, a partir de sua introdução e de quaisquer tipos de aves – sejam domésticas
disseminação na América do Norte, resultou na ou silvestres – com os eqüinos. Essas medidas re-
intensificação na pesquisa e desenvolvimento de duzem a probabilidade de contato dos animais
vacinas para proteger animais domésticos – es- domésticos com os vetores, mas não eliminam
pecialmente eqüinos e gansos – e também huma- totalmente o risco de transmissão.
nos. Além de proteger espécies economicamente Em áreas livres que apresentem o risco de
importantes da doença, a vacinação deve reduzir introdução do agente, o monitoramento sorológi-
os níveis de viremia e, assim, reduzir também as co de aves silvestres e também de eqüinos pode
oportunidades de transmissão por vetores. ser útil para detectar, de forma precoce, a even-
Até 2007, vacinas convencionais inativadas, tual introdução da infecção e, assim, desencadear
atenuadas e recombinantes haviam sido desen- a tomada de medidas pertinentes. Para isso, um
volvidas e testadas em eqüinos. Dessas, quatro já sistema ágil de coleta de amostras e de testes la-
foram disponibilizadas comercialmente nos EUA. boratoriais se faz necessário.
Em geral, as vacinas testadas conferem boa pro-
teção contra doença clínica e também reduzem 4.2 Gênero Pestivirus
os níveis de viremia. A vacina mais promissora,
no entanto, já disponível no comércio dos EUA e As espécies reconhecidas e em fase de reco-
em outros países, é uma vacina recombinante, na nhecimento que pertencem ao gênero Pestivirus
qual os genes que codificam as proteínas de enve- estão descritas no Tabela 22.3. O vírus da peste
lope do WNV foram introduzidas no genoma do suína clássica (CSFV) e o vírus da diarréia viral
poxvírus do canário, que é, então, utilizado para bovina (BVDV) são importantes patógenos de su-
Flaviviridae 577

ínos e bovinos, respectivamente, e estão presen- dos. Este critério de classificação é complicado,
tes em todos os continentes. O vírus da doença pois alguns pestivírus não são restritos a um úni-
da fronteira de ovinos (BDV) possui importância co hospedeiro. O BVDV, por exemplo, é capaz de
limitada. Outros pestivírus recentemente identi- infectar bovinos, ovinos e também suínos;
ficados aguardam classificação definitiva (Tabela b) características antigênicas e reatividade
22.3). sorológica cruzada: todos os pestivírus são anti-
genicamente relacionados. No entanto, os títulos
Tabela 22.3. Espécies de vírus classificadas no gênero de anticorpos neutralizantes no soro de animais
Pestivirus. previamente expostos são geralmente médios
a altos frente à espécie homóloga e baixos (ou
Espécie Abreviatura Hospedeiro
mesmo não reativos) frente às demais espécies;
Vírus da peste ou seja, a reatividade sorológica cruzada entre as
CSFV Suínos, ovinos?
suína clássica
espécies de pestivírus é baixa e pode ser bastan-
Vírus da diarréia Ruminantes domésticos
viral bovina tipo 1 BVDV- 1
e silvestres, suínos
te variável também entre diferentes isolados de
uma mesma espécie viral. Anticorpos monoclo-
Vírus da diarréia viral Ruminantes domésticos
BVDV- 2 nais (AcMs) podem ser utilizados para diferen-
bovina tipo 2 e silvestres, suínos
Vírus da doença da Ovinos, caprinos, ciar as espécies de pestivírus;
BDV cervídeos, suínos?
fronteira dos ovinos c) homologia entre as seqüências de nucle-
Espécies virais provisórias otídeos: a comparação entre as seqüências de
Vírus Giraffe Girafas nucleotídeos é o critério mais seguro para dife-
Vírus HoBi Bovinos?
renciar as espécies de pestivírus. A região 5’UTR
Vírus Pronghorn Antílope Pronghorn
é a mais comumente utilizada para a detecção e
caracterização de variações no genoma, uma vez
que apresenta segmentos altamente conservados,
Apenas três dos critérios utilizados para di- o que facilita a amplificação por PCR. No entanto,
ferenciar espécies do gênero Flavivirus são utili- como a região da Npro é única dos pestivírus, ela
zados para diferenciar os pestivírus: hospedeiro se constitui na região de eleição para a compara-
de origem, reatividade sorológica e homologia de ção e caracterização inicial de isolados. A análise
nucleotídeos do genoma. Os critérios ecológicos, filogenética das seqüências que codificam a Npro
espécie e distribuição geográfica dos vetores não revelou sete grupos genéticos principais dentro
são utilizados, pois esses vírus não são transmiti- do gênero Pestivirus (Figura 22.5). Quatro desses
dos por insetos. O critério da apresentação clínica ramos correspondem às quatro espécies conhe-
não é utilizado, pois variações das cepas dentro cidas: BVDV-1, BVDV-2, BDV e CSFV. Os três
das espécies podem afetar a apresentação clínica ramos restantes correspondem a um pestivírus
(p. ex.: existem cepas de alta e baixa virulência do isolado de girafa, de um isolado de antílope e um
CSFV). Além disso, a infecção por diferentes es- ramo composto por três vírus, sendo um isolado
pécies de pestivírus pode determinar quadros clí- brasileiro de soro fetal bovino, um isolado conta-
nicos semelhantes (p. ex.: malformações congêni- minante de cultivo celular e outro isolado brasi-
tas em ovinos podem ocorrer tanto pela infecção leiro de búfalo.
transplacentária pelo BDV como pelo BVDV). Além do genótipo, as cepas de pestivírus
Assim, a classificação das espécies dos pesti- podem ser agregadas em subgenótipos. Dois sub-
vírus utiliza três critérios: genótipos dentro do BVDV-1 (BVDV-1a e BVDV-
a) hospedeiro de origem: é o critério mais 1b) e do BVDV-2 (BVDV-2a e BVDV-2b) têm sido
problemático a ser estabelecido e pode não se descritos nas Américas do Norte e do Sul. Uma
constituir em um indicador definitivo para a di- diversidade maior é observada entre as cepas eu-
ferenciação. Os pestivírus foram originalmente ropéias nos sete diferentes subgenótipos reporta-
classificados como BVDV, CSFV e BDV, basea- dos. A importância prática da existência desses
dos na espécie hospedeira da qual foram isola- subgenótipos ainda precisa ser esclarecida.
578 Capítulo 22

Ramo do BDV

Ramo do CSFV Cepas típicas


de BDV
Isolado de
ovino Ovelha Chamois
Cepas de
CSFV Reindeer
típicas

HoBi
Girafa

Ramo do BVDV-2
Ramo do BVDV-1

Antílope
Pronghorn

Figura 22.5. Agrupamento filogenético de isolados de pestivírus com base na homologia de nucleotídeos do gene da
pro
proteína N .

A infecção pelos pestivírus, em geral, pode pestivírus: os vírus citopáticos (cp) e os não-ci-
resultar tanto em infecções agudas como em in- topáticos (ncp). Os vírus ncp constituem-se na
fecções persistentes. A infecção persistente é re- maioria dos isolados de campo e são capazes de
sultante da habilidade desses vírus em atravessar produzir infecções persistentes em fetos. Os vírus
a placenta e estabelecer infecção e imunotolerân-
cp se originam dos ncp por mutações e rearran-
cia no feto. A infecção transplacentária, segui-
jamentos genéticos. Embora as diferenças nos bi-
da do nascimento de animais persistentemente
infectados (PI), pode ocorrer nas infecções por ótipos tenham sido inicialmente observadas em
qualquer dos pestivírus. No entanto, os animais laboratório, posteriormente também foi demons-
PI do BVDV parecem desempenhar um papel trada a sua importância prática. Cepas de BVDV
mais importante na epidemiologia da infecção e ncp podem estabelecer infecções persistentes em
são considerados os mantenedores desse vírus na fetos infectados entre os dias 40 e 120 de gestação.
natureza. Esses animais nascem PI e, se forem superinfec-
tados com uma amostra de BVDV cp antigenica-
Biotipos dos pestivírus
mente semelhante, podem desenvolver a doença
Embora não sejam utilizados para diferen- das mucosas (DM), que é uma forma altamente
ciar as espécies, dois biotipos existem entre os fatal da infecção.
Flaviviridae 579

4.2.1 Vírus da peste suína clássica possui distribuição mundial. A CSF é endêmica
em grande parte da Ásia. Na África, os dados são
O vírus da peste suína clássica (CSFV) é um escassos, mas a doença já foi relatada em Mada-
patógeno importante de suídeos e causa doença gascar. O vírus foi erradicado dos EUA, Canadá,
severa tanto em suínos domésticos como silves- Nova Zelândia e Austrália. Os países escandina-
tres. Com exceção de alguns países de onde foi vos já o erradicaram de suas criações comerciais,
erradicada, a enfermidade possui ampla distri- mas a existência de uma numerosa população de
buição e, aproximadamente, 70 países repor- suídeos silvestres tem dificultado a erradicação
taram a ocorrência de surtos entre 1994 e 2005. definitiva daquele continente. Nesses países, a
A CSF é uma doença altamente contagiosa e de vacinação foi banida a partir da década de 1990,
difícil combate em áreas de alta concentração de mas o vírus tem sido esporadicamente reintrodu-
criações comerciais ou com população numero- zido a partir de outros países ou da população
sa de suídeos silvestres. Por isso é considerada de suídeos silvestres. Países da Europa Central
uma doença estratégica do ponto de vista sanitá- e Oriental têm seguido a orientação de controle
rio pela Organização Internacional de Epizootias sem vacinação, mas a infecção tem sido ocasio-
(OIE). nalmente detectada, principalmente nos países
Os pestivírus são antigenicamente relacio- menos desenvolvidos.
nados e um soro policlonal reage contra todos A infecção pelo CSFV tem permanecido
os membros do gênero, mas não com membros endêmica em vários países da América Central
de outros gêneros da Flaviviridae. No entanto, o e do Sul, embora a vacinação sistemática tenha
uso de MAbs específicos para a E2 e Erns permitiu reduzido drasticamente a sua ocorrência nas úl-
a identificação de até 21 subtipos antigênicos do timas décadas. Surtos têm ocorrido nos últimos
CSFV até o presente. anos em países do Caribe (Cuba e República Do-
Isolados antigenicamente distintos são en- minicana). O México segue com relativo suces-
contrados em regiões diferentes em épocas diver- so com um programa de erradicação, apesar de
sas. Por outro lado, o vírus apresenta uma taxa alguns tropeços periódicos. No Brasil, a infecção
de mutação relativamente baixa e os isolados era endêmica em várias regiões até a década de
obtidos de surtos subseqüentes em uma mesma 1980. Programas oficiais de controle/erradica-
região são muito semelhantes entre si. Por isso, ção que envolveram o uso maciço da vacina viva
a análise filogenética de isolados de campo tem modificada (cepa chinesa), obtiveram sucesso e
sido muito utilizada como suporte em estudos reduziram drasticamente a ocorrência da doen-
epidemiológicos e na identificação da origem de ça. Atualmente, a infecção está em vias de erradi-
isolados envolvidos em novos surtos. A análise cação, e o país pode ser dividido em duas áreas
filogenética de CSFV isolados de diferentes con- epidemiologicamente distintas: a) uma área livre
tinentes permitiu a identificação de três grupos da doença e que concentra mais de 80% do reba-
genéticos e de vários subgrupos dentro de cada nho nacional e as principais granjas e indústrias
grupo. Os isolados do grupo 3 ocorrem apenas na suinícolas (regiões Sul, Sudeste, Centro-Oeste e
Ásia; todos os vírus isolados na década de 1990 parte da região Nordeste); e b) uma região onde
em países europeus pertencem ao grupo 2 e são ainda ocorrem focos isolados da doença, porém
diferentes das cepas de referência. Os isolados do com baixa densidade suína e sem expressão co-
grupo 1 parecem circular predominantemente na mercial/industrial (parte da região Nordeste e
Rússia, embora já tenham sido identificados tam- região Norte). Entre 2002 e 2005, foram registra-
bém em Cuba. dos aproximadamente seis focos nessas áreas.
Em fevereiro de 2006, foi notificado um foco da
4.2.1.1 Epidemiologia enfermidade em uma criação não-comercial da
Paraíba. Focos recentes de peste suína clássica fo-
Afora os países que já erradicaram o CSFV e ram relatados na África do Sul (2005), Alemanha
aqueles que estão em vias de erradicação, o vírus (2006), Brasil (2006), Bolívia (2006), Guatemala
580 Capítulo 22

(2006), Croácia (2006), Equador (2007), Nicará- rais podem ser detectados no sangue periférico.
gua (2007) e Rússia (2007). Em todos esses casos, Apenas tardiamente após a infecção é que o vírus
a infecção ficou restrita a uma ou poucas proprie- invade o fígado, o pâncreas e os rins. O intervalo
dades e foi aparentemente controlada por ações de tempo entre a infecção das tonsilas e o apa-
imediatas de combate. recimento do vírus em órgãos parenquimatosos
O conhecimento da real situação da enfer- depende da virulência da cepa viral. Cepas al-
midade em muitos países é dificultado pela falta tamente virulentas podem ser detectadas nesses
de programas oficiais efetivos de vigilância, pela órgãos já aos seis dias após a infecção. Tanto em
existência de pressões político-econômicas, que infecções subclínicas como em infecções clínicas,
evitam a divulgação de dados, e pelo possível hemorragias múltiplas podem ser observadas.
efeito da vacinação em mascarar a circulação do Essas hemorragias são mais freqüentemente de-
agente e a ocorrência da doença. Por essas razões, tectadas nos linfonodos e nos rins, mas também
acredita-se que a incidência real da doença supe- podem ser observadas na bexiga, na pele, no cora-
re, em muito, os relatos oficiais. ção, na laringe e na mucosa intestinal. A freqüên-
A infecção pelo CSFV ocorre principalmen- cia e a extensão das hemorragias estão associadas
te por via oronasal, embora os animais possam com a virulência da cepa viral e com a destruição
também se infectar através de outras superfícies de células endoteliais dos capilares sangüíneos,
mucosas, da conjuntiva ou de abrasões da pele. com a trombocitopenia e com síntese anormal de
Embora a aerossolização seja mínima a partir das fibrinogênio.
excreções e secreções dos animais infectados, o Em rebanhos de cria infectados com cepas
vírus pode sobreviver em fômites e em ambien- de baixa virulência, índices reprodutivos baixos
tes contaminados por até duas semanas. Além podem ser o único sinal. Inversamente, a infec-
da transmissão direta e indireta entre animais, ção com cepas altamente virulentas pode deter-
produtos suínos frescos, congelados ou curtidos minar taxas de mortalidade próximas a 100%. Os
podem manter o vírus viável e servir de veículos sinais clínicos iniciais resultantes da infecção por
para a infecção pela via oral. Nesse sentido, a im- cepas de alta virulência incluem febre alta, fra-
portação de produtos suínos contaminados tem queza, anorexia e constipação seguida por diar-
sido responsabilizada pela introdução do agente réia. Um dos primeiros sinais da infecção clínica
em áreas livres. A transmissão indireta através de é conjuntivite com descarga ocular difusa. Vários
pessoas, de animais silvestres e de fômites pode dias depois, aparecem manchas avermelhadas no
ocorrer, embora o modo exato como o vírus se abdome e as orelhas podem apresentar coloração
dissemina entre criações ainda não seja conheci- púrpura.
do. A recuperação dos animais infectados com
cepas de alta virulência é difícil, e estes geralmen-
4.2.1.2 Patogenia e sinais clínicos te morrem uma a duas semanas após a infecção.
Convulsões podem ser observadas na fase final
A severidade e características da doença da doença. Embora os sinais clínicos geralmente
dependem da cepa e dose do vírus, da idade do apareçam dentro de 2 a 14 dias, em alguns casos,
animal e do status reprodutivo. O período de in- os animais só apresentam sintomatologia após
cubação é variável, mas geralmente varia entre 2 um período prolongado (superior a 30 dias).
e 14 dias. As tonsilas se constituem nos órgãos de Cepas de baixa virulência podem determinar
predileção após a exposição pela via oronasal. A infecções subclínicas ou leves. Os sinais clínicos,
partir das tonsilas, o vírus é drenado para os lin- quando presentes, podem incluir perda de apeti-
fonodos regionais e daí para outros tecidos linfói- te, sonolência, fraqueza, diarréia e febre. Leuco-
des, como a medula óssea e acúmulos linfóides penia é observada na grande maioria dos casos.
do trato digestivo (placas de Peyer). A replicação A resposta imune desenvolvida em resposta à in-
do CSFV nos tecidos linfóides permite que o ví- fecção nem sempre é efetiva para erradicar o vírus
rus atinja a circulação sangüínea e altos títulos vi- do organismo. Como conseqüência, os animais
Flaviviridae 581

podem ficar cronicamente infectados. Os sinais imunofluorescência (IFA) e ELISA. O isolamento


clínicos da infecção crônica incluem retardo do viral é geralmente realizado em células primá-
crescimento, perda de pêlos, febre, diarréia e per- rias ou de linhagem suína, incluindo as células
da de peso. Os sinais são intermitentes e podem PK-15. Como a maioria dos isolados não induz
persistir, com aumentos e reduções periódicos citopatologia, a identificação deve ser realizada
da severidade, por semanas ou meses. Animais pela detecção de antígenos (IFA ou imunopero-
cronicamente infectados são imunodeprimidos xidase, IPX), com o uso de anticorpos policlonais
e, conseqüentemente, são mais susceptíveis a in- ou monoclonais. A diferenciação do BVDV-1, do
fecções por outros patógenos. Esses animais ge- BVDV-2 e do BVD pode ser realizada através de
ralmente morrem em resultado da infecção pelo testes sorológicos, pela utilização de anticorpos
CSFV ou por causa de infecções secundárias. Em- monoclonais ou por RT-PCR diferencial.
bora a infecção crônica seja relativamente rara, é Nos últimos anos, as técnicas de ELISA e
muito importante na disseminação da infecção, RT-PCR têm conquistado espaço no diagnóstico
pois os animais infectados excretam o vírus de do CSFV. O ELISA é um teste rápido e simples,
forma contínua. pode ser utilizado para triagem de animais febris
A infecção de fêmeas prenhes freqüente- ou doentes e é aplicável para se testar um núme-
mente resulta em infecção fetal e pode levar a ro grande de amostras. A técnica de RT-PCR é
perdas reprodutivas. As conseqüências e a seve- mais complexa, mas pode ser útil por sua sensi-
ridade da infecção fetal dependem da virulência bilidade e rapidez, podendo ser empregada para
da cepa viral e da fase de gestação em que ocorre. o diagnóstico pré-clínico em estágios iniciais de
A infecção fetal pode resultar em abortos, nati- surtos. Recentemente, o PCR em tempo real reve-
mortos, nascimento de leitões fracos e inviáveis, lou a sua utilidade potencial no diagnóstico ini-
tremor ou malformações congênitas. Fetos infec- cial de surtos pelo CSFV.
tados intra-uterinamente também podem nascer
saudáveis, livres do vírus ou persistentemente 4.2.1.4 Profilaxia e controle
infectados (PI). Os animais PI apresentam vire-
mia persistente e geralmente morrem em alguns A enfermidade é altamente transmissível e
meses. de difícil controle em regiões de alta concentra-
ção de criações suínas e também em áreas que
4.2.1.3 Diagnóstico possuem populações de suídeos silvestres. A ali-
mentação de suínos com restos de alimentos per-
A maioria das amostras do CSFV circulantes manece sendo um importante fator para a intro-
possui baixa virulência, o que dificulta o diagnós- dução da infecção em áreas livres, pois o agente
tico clínico, principalmente em animais adultos. pode permanecer viável por vários dias em uma
Da mesma forma, a infecção pode apresentar um variedade de subprodutos suínos. Portanto, a
período de incubação de várias semanas – no proibição do uso de subprodutos suínos para
caso de rebanhos – o que requer vários ciclos de alimentação animal é imperativa no combate à
amplificação até se tornar clinicamente aparente. enfermidade nessas regiões. A restrição à movi-
Isso geralmente retarda o diagnóstico e a adoção mentação de animais em áreas de risco, medidas
de medidas de combate, e pode comprometer o gerais de biossegurança nos rebanhos e redução
sucesso dessas medidas. Por isso, um diagnóstico da concentração de rebanhos em áreas críticas
pré-clínico seria de enorme benefício para o com- são altamente recomendáveis e têm surtido bons
bate a essa enfermidade. resultados.
Pelo fato da CSF não apresentar sinais patog- A vacinação contra o CSFV possui uma
nomônicos, o diagnóstico da enfermidade deve longa história e remonta aos anos 1960, quando
ser confirmado pelo isolamento viral ou pela de- vacinas atenuadas altamente efetivas foram de-
tecção de antígenos virais no sangue ou nos teci- senvolvidas e utilizadas. O uso sistemático, con-
dos. Os testes de eleição para esta finalidade são a tínuo e maciço dessas vacinas em nível regional
582 Capítulo 22

e/ou nacional demonstrou eficiência em reduzir 4.2.2 Vírus da diarréia viral bovina
drasticamente a ocorrência da doença e a circu-
lação do vírus ao longo dos anos. Vários países A doença associada com o BVDV foi inicial-
realizaram tais procedimentos e conseguiram re- mente descrita por pesquisadores da Universida-
duzir significativamente a ocorrência e o impacto de de Cornell, em 1946, e se caracterizava como
econômico-sanitário da infecção nas últimas dé- uma enfermidade aguda transmissível marcada
cadas. A vacinação profilática maciça ainda é uti- por leucopenia severa, febre alta, depressão, diar-
lizada em vários países e pode representar uma réia, erosões no trato gastrintestinal e hemorra-
etapa de transição rumo ao controle sem vacina- gias. Cinco rebanhos foram afetados e apresen-
ção (acompanhado de identificação e remoção de taram taxas de morbidade entre 33 e 88% e de
infectados), como adotado por diversos países, mortalidade entre 4 e 8%. Posteriormente, outra
incluindo o Brasil. O controle sem vacinação, no forma da doença causada pelo BVDV foi iden-
entanto, só deve ser adotado quando a incidência tificada e denominada de doença das mucosas
atingir níveis baixos e a infecção se tornar espo- (DM). Esta forma apresentava algumas caracte-
rádica. rísticas clínico-patológicas da doença anterior-
Em países que erradicaram o CSFV, a vaci- mente descrita, mas se diferenciava por não ser
nação maciça foi banida. Nesses países, somente transmitida experimentalmente e por apresentar
permite-se a vacinação de emergência no caso de baixa morbidade e alta mortalidade. A etiologia
surtos, embora vários países europeus que expe- da DM permaneceu obscura até o reconhecimen-
rimentaram tais eventos não tenham recorrido a to de que apenas animais persistentemente infec-
essa medida. Vacinas com marcadores antigêni- tados (PI) desenvolviam essa forma da doença.
cos seriam de valor inestimável nesses casos. Ao longo de seis décadas, uma grande va-
Em casos de surtos, os casos confirmados riedade de manifestações clínicas foi associada
e os animais em contato devem ser sacrificados com a infecção por este agente. Essas manifes-
ou colocados em quarentena. A interdição da tações podem ser agrupadas em quatro formas
propriedade e de áreas vizinhas ao trânsito de principais: doença aguda leve (gastrentérica, res-
animais, subprodutos e possíveis veículos de piratória), doença aguda severa (gastrentérica,
transmissão têm sido adotados nessas situações. respiratória, hemorrágica), doença das mucosas
A vacinação perifocal ou regional de emergência (DM), BVD crônica (recentemente reconhecida
pode ser considerada, desde que permitida pela como uma forma da DM). Não obstante essa
legislação sanitária do país. variedade de apresentações clínicas, as maiores
Várias vacinas têm sido utilizadas ao longo conseqüências da infecção pelo BVDV parecem
dos anos no combate ao CSFV em áreas endêmi- estar relacionadas com as perdas reprodutivas
cas e esporádicas. Em países subdesenvolvidos que determina.
e em desenvolvimento, a vacina atenuada (cepa Os isolados de campo do BVDV apresentam
chinesa) possuiu papel fundamental no controle uma grande variabilidade antigênica, devido à
e eventual erradicação da infecção. Nos últimos presença de regiões hipervariáveis na glicopro-
anos, novas tecnologias têm sido desenvolvidas teína E2. De acordo com as características gené-
para a produção de vacinas mais efetivas e ade- ticas e antigênicas, os isolados podem ser dividi-
quadas aos programas de controle e erradicação. dos em dois grupos: BVDV-1 e BVDV-2. Os vírus
Essas vacinas incluem vetores virais, expressando pertencentes ao genótipo 1 abrangem a maioria
proteínas do envelope do CSFV (poxvírus, her- das cepas de referência e os vírus utilizados em
pesvírus, adenovírus), proteínas recombinantes, vacinas, além de muitos isolados com virulência
vacinas de subunidade (E2, Erns), peptídeos sin- baixa a moderada. Os vírus pertencentes ao ge-
téticos, vacinas de DNA, entre outras. A diferen- nótipo 2 foram inicialmente isolados de surtos
ciação entre animais vacinados e infectados com de BVDV aguda e doença hemorrágica no Cana-
o vírus de campo, assim como a possibilidade de dá em 1993-1994, mas incluem também isolados
vacinação oral de suídeos silvestres, constituem- de virulência baixa e moderada. Os isolados do
se em metas importantes no combate à infecção. BVDV-1 e BVDV-2 já foram divididos em sub-
Flaviviridae 583

grupos genéticos (BVDV-1a e 1b; BVDV-2a e 2b), é mais difícil devido à intensificação do processo
porém a relevância clínica e epidemiológica dessa produtivo e à grande população bovina e intensa
subdivisão ainda não está esclarecida. A reativi- movimentação de animais.
dade sorológica cruzada entre BVDV-1 e BVDV-2 A infecção pelo BVDV tem sido descrita no
é geralmente baixa, e isto apresenta implicações Brasil desde o final dos anos 1960. Vários rela-
importantes para o diagnóstico e eficácia de va- tos clínico-patológicos, virológicos e sorológicos
cinas. demonstram a ampla distribuição da infecção no
O BVDV infecta naturalmente uma varieda- rebanho bovino brasileiro. Os índices de soro-
de de ruminantes domésticos e silvestres, além positividade nos diversos estudos variam entre
de suínos; os bovinos são considerados os seus 18 e 84%. Vírus dos dois genótipos (BVDV-1 e
hospedeiros naturais. In vitro, o BVDV é capaz de BVDV-2) já foram identificados no país, e, apro-
replicar em uma variedade de células de cultivo ximadamente, dois terços pertencem ao genótipo
de várias espécies, inclusive de origem humana. 1. O BVDV já foi isolado de diversas origens, in-
Com base no efeito da replicação em cultivo cluindo soro fetal comercial, fetos abortados, ani-
celular, os isolados de BVDV podem ser dividi- mais PI, animais com DM, com doença respirató-
dos em citopáticos (cp) e não-citopáticos (ncp). ria, com doença gastrentérica, de rebanhos com
Os isolados ncp se constituem nos BVDV “verda- problemas reprodutivos. Sorologia positiva em
deiros” e são responsáveis pela maioria das infec- caprinos, bubalinos, javalis cativos e cervídeos
ções naturais e pelas infecções fetais persistentes. silvestres também já foi relatada no país.
Os isolados cp se constituem em uma minoria; Os bezerros PI se constituem nos principais
não são capazes de produzir infecções persisten- reservatórios e fontes de disseminação do vírus.
tes e são isolados quase que exclusivamente de Esses animais excretam o vírus continuamen-
animais com a DM. Os BVDV cp são gerados nos te em altos títulos em secreções (nasais, saliva,
animais PI a partir do vírus ncp original, através sêmen, leite) e excreções (urina, fezes – contêm
de mutações, recombinações, deleções ou rear- pouco vírus). Durante a infecção aguda, os ani-
ranjos genéticos que levam à expressão na pro- mais infectados também excretam o vírus, porém
teína NS3 como um polipeptídeo individual. Em em títulos inferiores e por menos tempo (3 a 10
contraste, os vírus ncp expressam apenas a pro- dias). O vírus é transmitido entre animais prin-
teína precursora NS23. Embora o papel da NS3 cipalmente por contato direto (focinho-focinho,
na citopatologia ainda não esteja esclarecido, essa coito, mucosa-mucosa) e indireto (focinho-secre-
proteína é considerada o marcador molecular dos ções/excreções, focinho-feto abortado/placenta,
BVDV cp. contato com secreções/excreções). Transmissão
iatrogênica (agulhas ou material cirúrgico con-
4.2.2.1 Epidemiologia taminado, luvas de palpação, tatuadores, apli-
cadores de brinco) e por sêmen contaminado,
O BVDV apresenta distribuição mundial e além de outros veículos também pode ocorrer.
praticamente todos os países que possuem bovi- A transmissão vertical aos embriões/fetos é uma
nocultura significativa já relataram a sua presen- conseqüência freqüente da infecção de vacas pre-
ça. A infecção pelo BVDV já foi descrita em várias nhes. O sêmen coletado de touros PI ou durante
espécies silvestres, porém a relevância epidemio- a infecção aguda também pode transmitir o vírus
lógica desses achados permanece incerta. Recen- a fêmeas pela inseminação artificial.
temente, os países escandinavos implementaram A introdução do vírus nos rebanhos pode
programas de erradicação. Com base no sucesso ocorrer por: a) introdução de animais PI; b) intro-
inicial desses programas, países como Alema- dução de fêmeas gestando fetos PI; c) introdução
nha, França, Estados Unidos e Rússia também de animais durante a infecção aguda; d) contato
iniciaram programas de erradicação do BVDV. entre animais de rebanhos vizinhos (essa última
No entanto, a erradicação do vírus desses países forma parece possuir importância limitada).
584 Capítulo 22

4.2.2.2 Patogenia e manifestações e mortalidade muito baixa ou nula. No entanto,


clínicas mortalidade considerável pode, ocasionalmente,
ocorrer em animais jovens, principalmente asso-
O epitélio do trato respiratório superior, ciada com o BVDV-2. A enfermidade pode aco-
orofaringe e o tecido linfóide regional parecem meter todas as categorias de animais, principal-
ser os sítios primários de replicação após a infec- mente bezerros maiores de seis meses.
ção pela via oro-nasal. As conseqüências e a seve- O BVDV é também imunossupressor, po-
ridade da infecção aguda pelo BVDV dependem dendo predispor os animais infectados a infec-
de uma série de fatores que incluem a cepa viral ções com outros agentes patogênicos. Assim, ca-
(e o biótipo), o status imunológico do animal, o sos de enfermidade entérica ou respiratória por
status reprodutivo e a ocorrência de infecções outros patógenos virais (herpesvírus bovino tipo
secundárias. Embora o primeiro relato de BVD 1 [BoHV-1]; vírus respiratório sincicial bovino
tenha sido de uma forma aguda severa, os casos [BRSV] e vírus da parainfluenza tipo 3 [bPI3v]) e
posteriormente relatados demonstraram que a bacterianos podem ser potencializados durante a
maioria das infecções agudas de animais imuno- infecção aguda pelo BVDV. Enfermidade respira-
competentes cursava sem manifestações clínicas tória crônica, associada com diferentes bactérias,
aparentes ou com sinais discretos. De acordo com e quadros persistentes de dermatite também têm
as conseqüências clínico-patológicas e epidemio- sido associados com a infecção pelo BVDV em
lógicas, pode-se dividir a infecção pelo BVDV bezerros confinados.
em duas categorias principais: infecção aguda de Até o final dos anos 1980, a importância
animais não-prenhes e infecção aguda de fêmeas maior do BVDV era atribuída às conseqüências
prenhes. da infecção transplacentária: perdas reproduti-
vas, produção de animais PI e DM. No entanto,
Infecção aguda de animais no final dos anos 1980, casos severos de BVDV
não-prenhes aguda se tornaram mais freqüentes. Casos des-
critos entre os anos de 1977 e 1987 revelaram
A maioria das infecções de animais imuno- que 10% dos casos de infecção clínica aguda pelo
competentes é assintomática, mas pode cursar BVD em animais adultos apresentavam trom-
com quadros febris leves, muitas vezes imper- bocitopenia. Um surto, em um rebanho leiteiro
ceptíveis. Alguns isolados de maior virulência no estado de Nova Iorque, resultou em 50% de
podem provocar um período febril curto, acom- morbidade e 20% de mortalidade. Esses animais
panhado por sialorréia, hiperemia e descarga na- apresentavam febre, diarréia sanguinolenta, he-
sal, tosse e diarréia. O período de incubação varia morragias e tempo de coagulação retardado. Esta
entre 3 e 7 dias e é seguido de hipertermia tran- forma de apresentação da infecção pelo BVDV
sitória e leucopenia. O vírus pode ser detectado foi posteriormente caracterizada como uma for-
no sangue entre 4 e 6 dias após a infecção e pode ma distinta de BVD, denominada de BVD aguda
persistir por até 15 dias. Sinais de infecção respi- hemorrágica (síndrome hemorrágica).
ratória também podem ser observados. Lesões ul- Surtos importantes dessa enfermidade fo-
cerativas na mucosa oral podem estar presentes. ram descritos no Canadá entre 1993 e 1994, re-
Nos casos de infecção aguda com comprometi- sultando na morte de aproximadamente 32 mil
mento respiratório e/ou digestivo, antígenos vi- animais (taxa de mortalidade de 22,4% entre be-
rais podem ser detectados por imunoistoquímica zerros). Em torno de 150 rebanhos de leite, 660 de
(IHC) nas tonsilas, linfonodos regionais, pulmões corte e 100 de vitelos foram afetados; e animais
e epitélio intestinal. O tecido linfóide (tonsilas, de diferentes faixas etárias foram afetados e mor-
linfonodos, tecido linfóide associado a mucosas, reram. As lesões encontradas eram similares às
placas de Peyer) se constitui em importante sítio observadas na DM. No entanto, dois importantes
de replicação viral. A enfermidade geralmente pontos diferenciam a infecção aguda hemorrágica
é autolimitante, cursando com morbidade alta pelo BVDV da DM: a presença de vírus citopático
Flaviviridae 585

e as taxas de morbidade e mortalidade. Enquanto Infecção aguda de fêmeas


a patogenia da DM exige necessariamente a pre- prenhes
sença de vírus dos dois biótipos (cp e ncp), a for-
ma severa de BVD aguda apresenta apenas um A infecção de fêmeas prenhes soronegativas
biótipo do vírus, geralmente ncp. Além disso, as é freqüentemente seguida de transmissão trans-
taxas de mortalidade na DM são de 100%, e a taxa placentária do vírus ao embrião ou feto. As con-
de morbidade é baixa (correspondente ao núme- seqüências da infecção do concepto dependem
ro de animais PI em um rebanho). Na forma se- do estágio de gestação em que ocorre a infecção,
vera de BVD aguda, as taxas de mortalidade são do biotipo (cp/ncp) e da cepa do vírus. Podem
baixas, porém a taxa de morbidade é alta. Geral- ocorrer reabsorção embrionária (com retorno ao
mente, entre 50 a 90% dos animais clinicamente cio em intervalos regulares ou irregulares), abor-
infectados se recuperam. tos, mumificação fetal, natimortos, nascimento
Os surtos de infecção aguda pelo BVDV es- de bezerros fracos e inviáveis, que morrem em
tão diretamente relacionados com a virulência da seguida ou apresentam crescimento retardado;
cepa envolvida. A disseminação de cepas de bai- ou o nascimento de animais PI. Em geral, abortos
xa virulência na população ocorre como resulta- em qualquer fase de gestação podem ser atribu-
do do contato direto com animais PI, o que limita ídos ao BVDV. Fetos infectados no terço final da
a disseminação desses vírus. Já a disseminação gestação freqüentemente nascem normais, livres
de vírus de alta virulência ocorre de forma seme- do vírus e soropositivos. As possíveis conse-
lhante ao CSFV, ou seja, a partir de animais com quências da infecção pelo BVDV estão ilustradas
a infecção aguda. na Figura 22.6.

BVDV

ncp ou cp

Soropositivo, livre do vírus

ncp

Bezerro PI

Natimortos
Malformações
ncp ou cp Bezerros PI
Infertilidade
Abortos

Atrofia da retina
cegueira
Embrião muito
susceptível Lesões no SNC
Bezerros saudáveis
soropositivos
Imunotolerância (PI)
Efeitos na
fertilização,
implantação Abortos

0 40 80 120 160 200 240 280


D I A S D E G E S TA Ç Ã O

Figura 22.6. Conseqüências da infecção de fêmeas bovinas prenhes pelo BVDV, de acordo com o biótipo do vírus e
com o estágio de gestação.
586 Capítulo 22

A ocorrência de malformações fetais é um de animais PI que sobrevivem até a idade adul-


achado muito comum em rebanhos infectados ta, podendo se tornar reprodutores e transmitir
e geralmente acontece quando a infecção ocorre o vírus para a progênie (fêmeas) ou pelo sêmen
entre os 100 e 150 dias de gestação. As malforma- (machos). Fêmeas PI que atingem a idade adulta
ções principais podem ser encontradas no siste- e ficam prenhes geralmente produzem bezerros
ma nervoso central (hipoplasia cerebelar, micro- PI.
cefalia, hidrocefalia, mielinização deficiente na
medula espinhal) e nos olhos (atrofia ou displasia
Etiopatogenia da doença das mucosas
da retina, catarata, microftalmia), podendo ob-
servar-se, ainda, aplasia tímica, braquignatismo,
retardo de crescimento e artrogripose. Em muitos A doença das mucosas (DM) é uma enfer-
rebanhos, as malformações são os primeiros e, al- midade gastrentérica fatal, desencadeada quan-
gumas vezes, os únicos achados que indicam a do um animal PI (portador de um BVDVncp) é
presença do vírus. superinfectado com um BVDV citopático (BVD-
Vcp) antigenicamente semelhante. O BVDVcp
Infecção persistente que determina o desenvolvimento da DM geral-
mente se origina do BVDVncp do próprio ani-
O estabelecimento da infecção persistente mal PI por mutações. Vários tipos de mutações,
ocorre quando o feto é infectado entre os 40 e 120 deleções e rearranjamentos genéticos têm sido
dias de gestação (Figura 22.6). Os fetos infectados identificados na geração de BVDVcp, todos esses
nesse período desenvolvem imunotolerância ao mecanismos resultam na expressão da proteína
vírus infectante e o seu organismo jamais conse- viral NS3. Outras fontes de vírus citopáticos que
gue erradicar o vírus. Esses animais tornam-se podem determinar a DM incluem vírus de vaci-
portadores permanentes e excretam o vírus con- nas vivas modificadas ou transmissão de vírus cp
tinuamente em secreções e excreções. Os bezer- a partir de outros animais PI. Nos animais que
ros que nascem PI são geralmente soronegativos. desenvolvem a DM, os dois vírus (ncp e cp) estão
Os fetos que são infectados após o 125º dia de presentes (Figura 22.7).
gestação são considerados imunocompetentes e A DM é invariavelmente fatal, ocorre prin-
podem desenvolver uma resposta imunológica cipalmente em animais com seis meses a dois
que, freqüentemente, resulta na erradicação do anos de idade e se caracteriza por febre, leuco-
agente. Os fetos congenitamente infectados po- penia, diarréia, inapetência, desidratação, lesões
dem apresentar alguns defeitos em decorrência erosivas nas narinas e na boca e morte dentro de
da infecção transplacentária ou podem nascer poucos dias. Na necropsia, erosões e ulcerações
aparentemente normais. Os animais PI podem podem ser encontradas no trato gastrintestinal,
apresentar crescimento retardado, malformações particularmente nas placas de Peyer. No esôfa-
congênitas ou ser aparentemente saudáveis. Al- go, essas lesões apresentam-se no sentido lon-
guns apresentam crescimento retardado e são gitudinal, com aspecto de “arranhão de gato”.
mais susceptíveis a infecções secundárias. Como As placas de Peyer apresentam-se edematosas,
descrito anteriormente, apenas cepas de BVDV hemorrágicas e necróticas. O conteúdo intestinal
não-citopáticas podem estabelecer infecções per- é escuro e aquoso e observa-se enterite catarral
sistentes. Animais persistentemente infectados ou hemorrágica. A histopatologia revela uma ne-
com o BVDV representam o maior reservatório crose extensiva dos tecidos linfóides, incluindo
do vírus na natureza e, por isso, são considera- as placas de Peyer, nos centros germinativos do
dos mantenedores do vírus na natureza. A maio- baço e linfonodos. Devido à proporção de animais
ria dos animais PI morre nos primeiros meses PI em um rebanho ser geralmente muito baixa, a
de vida, no entanto, alguns deles podem viver morbidade da DM também é baixa. A letalidade
até os dois anos ou mais. Existem vários relatos é próxima de 100%.
Flaviviridae 587

ncp

cp
Bezerro PI Doença das mucosas
BVDV ncp ncp + cp
5' UTR p7
3' UTR
pro rns
N C E E1 E2 NS2-3 NS4-A NS4-B NS5A NS5B

NS2-3 NS2-3

NS3

Não-citopático (ncp) Citopático (cp)

Figura 22.7. Etiopatogenia da doença das mucosas (DM). Em bezerros nascidos imunotolerantes e persistentemente
infectados com um BVDV ncp, mutantes cp podem ser gerados a partir de mutações do vírus original. A replicação do
par de vírus (ncp/cp) leva ao desenvolvimento da enfermidade, que apresenta curso fatal. A principal diferença
molecular entre os vírus ncp e cp é a expressão da proteína NS3 pelo vírus cp, enquanto o ncp expressa apenas o
precursor NS23.

Na DM crônica, menos comum, os sinais animais jovens. Bezerros fracos, com crescimento
clínicos são inespecíficos. Observa-se inapetên- retardado e predisposição a outras enfermidades
cia, perda de peso e apatia progressiva. A diar- devem ser considerados potencialmente suspei-
réia pode ser contínua ou intermitente. Algumas tos de serem PI.
vezes, ocorrem descarga nasal e descarga ocular O teste padrão de diagnóstico é o isolamen-
persistente. Áreas alopécicas e de hiperqueratini- to do agente em cultivos celulares seguido por
zação podem aparecer, geralmente no pescoço. identificação por IFA ou IPX, pois a maioria das
Lesões erosivas crônicas podem ser observadas amostras é não-citopática. Células de origem bo-
na mucosa oral e na pele. Laminite, necrose in- vina, particularmente as primárias, são muito
terdigital e deformação do casco podem também susceptíveis ao vírus. O sangue (especialmente
ocorrer. Esses animais podem sobreviver por os leucócitos) de animais infectados de forma
muitos meses e, geralmente, morrem após debili- aguda ou persistente é muito rico em vírus. Em
tação progressiva. geral, os títulos de vírus no sangue de animais
PI são muito maiores do que em animais com a
4.2.2.3 Diagnóstico infecção aguda.
Além do isolamento, antígenos virais podem
Deve-se suspeitar de infecção pelo BVDV ser demonstrados em tecidos (fetos abortados,
sempre que houver uma ocorrência de perdas placentomas, fragmentos de tecidos coletados na
embrionárias, abortos, malformações fetais, nas- necropsia) por IF e IPX. Um teste de ELISA de
cimento de animais fracos ou morte perinatal. captura de antígeno, destinado a detectar prote-
Além disso, casos de doença entérica e/ou respi- ínas virais no soro de animais PI, apresenta boa
ratória com componentes hemorrágicos (melena, especificidade e sensibilidade e pode ser realiza-
petéquias em mucosas, serosas etc.), erosões e ul- do para testar um grande número de amostras.
cerações no trato digestivo também são sugesti- Biópsias de pele (fragmentos de orelha) para a de-
vos dessa infecção. Essas manifestações ocorrem tecção de antígenos virais por IPX ou ELISA têm
principalmente, mas não exclusivamente, em sido popularizadas na América do Norte para a
588 Capítulo 22

triagem e detecção de animais PI. Isolamento do nuadas e inativadas. No Brasil, todas as vacinas
vírus ou detecção de RNA viral por PCR no leite para o BVDV disponíveis atualmente são inativa-
tem sido utilizado para identificar rebanhos lei- das, contendo adjuvante oleoso ou hidróxido de
teiros infectados. alumínio. Essas vacinas possuem também antíge-
O diagnóstico sorológico geralmente é reali- nos de outros agentes infecciosos como o BoHV-
zado pela técnica de SN ou ELISA. A identificação 1, bPI3v e BRSV e algumas contêm pasteurelas. A
de soropositividade de um animal indica apenas vacinação deve seguir o esquema indicado pelos
exposição prévia ao agente. Animais infectados fabricantes. Geralmente, os bezerros são vacina-
de forma aguda, soroconvertem 10-14 dias após dos aos 4 a 6 meses de idade e revacinados de
a infecção inicial. Nestes animais, a sorologia pa- 30 a 40 dias após. Alguns animais podem, ainda,
reada pode indicar a infecção. Animais PI geral- possuir anticorpos maternos nessa idade. Assim,
mente não apresentam anticorpos no soro, já que é recomendada uma revacinação aos 8 ou 12 me-
não são capazes de responder imunologicamente ses. Revacinações a cada 6 a 12 meses devem ser
ao vírus. Exames sorológicos de rebanhos, devi- realizadas para manutenção da imunidade. No
do à prática de vacinação, têm valor epidemioló- caso das fêmeas, recomenda-se revacinação pre-
gico limitado e servem unicamente para verificar viamente à temporada de monta (2 a 3 semanas
o status sorológico e a possível circulação do ví- antes da cobertura). Vacinas com vírus atenua-
rus no rebanho. do são disponíveis nos EUA e em outros países
Em termos de controle ou erradicação, o e apresentam maior eficácia, porém oferecem o
diagnóstico de BVDV deve ser focado na detecção risco de infecção fetal. As vacinas contra o BVDV,
dos animais PI. O isolamento viral e/ou detecção se corretamente utilizadas, podem conferir prote-
de antígenos no plasma e/ou em biópsias de ore- ção razoável contra a doença clínica, porém são
lha por ELISA/IPX são os métodos de eleição. geralmente pouco eficientes para induzir prote-
ção fetal.
4.2.2.4 Controle e profilaxia Vacinas produzidas com cepas de BVDV-1
em geral induzem proteção parcial ou incompleta
O controle da infecção pelo BVD pode ser efe- contra cepas de BVDV-2. No Brasil, a maioria das
tuado com ou sem o uso de vacinas, dependendo vacinas contém apenas vírus do genótipo 1, po-
do histórico do rebanho, do risco de introdução rém algumas vacinas recentemente importadas
do agente e de outros fatores epidemiológicos. O e outras em vias de produção incluem também
controle com vacinação é indicado para rebanhos vírus do genótipo 2. A tendência é que as vacinas
com alta rotatividade de animais, rebanhos com futuras contra o BVDV contenham os dois genó-
sorologia positiva, com histórico de doença clíni- tipos, além de representantes dos subgenótipos.
ca ou reprodutiva, e com confirmação virológica O controle sem vacinação é indicado para re-
de BVDV. Também é indicado para propriedades banhos fechados, sem o ingresso freqüente de
de terminação de novilhos, nas quais animais de animais e, conseqüentemente, de baixo risco. Re-
várias procedências são agrupados e mantidos banhos extensivos de gado de corte geralmente
em alta densidade por área. Rebanhos leiteiros, se enquadram nessa categoria. Esse tipo de con-
com introdução freqüente de animais e troca de trole é também indicado para rebanhos cujos pa-
reprodutores, também podem ser aconselhados râmetros reprodutivos e clínicos não registrem
a realizar a vacinação. Rebanhos que comerciali- eventos sugestivos da infecção pelo BVDV. Re-
zam reprodutores, mesmo que sejam negativos, banhos com sorologia negativa e cujo ingresso
podem vacinar os animais destinados à venda, o de animais seja raro ou eventual também não
que protege de eventual infecção nos rebanhos apresentam grande risco de introdução do agen-
de destino. te. Nesses casos, pode-se utilizar o controle sem
Nos Estados Unidos, existem dezenas de vacinação, que objetiva manter o status negativo
vacinas contra o BVDV, mono e polivalentes, ate- do rebanho. Para evitar a introdução da infecção,
Flaviviridae 589

deve-se recorrer a medidas básicas de biossegu- lhas prenhes, o vírus é capaz de atravessar a bar-
rança e testar, para vírus, todos os animais antes reira transplacentária e infectar o feto, resultando
de ingressarem na propriedade. Com essa medi- em abortamentos, nascimento de cordeiros fracos
da, é possível manter rebanhos livres da infecção, e inviáveis, além de malformações congênitas.
pois a principal forma de introdução da infecção Em animais que nascem a termo, as conse-
é por meio de animais infectados (na fase agu- qüências da infecção dependem da fase de ges-
da ou persistente). Bezerros (potencialmente PI) tação em que ocorreu a infecção. Quando a in-
e vacas prenhes soropositivas (potencialmente fecção ocorrer após os 80 dias de gestação, pode
carreando fetos PI) devem ser especialmente con- ocorrer o nascimento de cordeiros com cobertura
siderados, pois representam potenciais formas de escassa e anormal de lã, geralmente pequenos,
introdução do vírus nos rebanhos. Em rebanhos fracos e com graus variáveis de tremor. Outros
suspeitos de possuir animais PI ou com histórico cordeiros infectados pelo BDV podem apresentar
de casos clínicos suspeitos de BVDV, o controle anormalidades esqueléticas, como uma despro-
deve enfatizar a identificação e remoção desses porcionalidade dos membros anteriores, cabeças
animais. pequenas e ossos finos.
Nos países escandinavos, o programa de er- Similarmente ao BVDV em bovinos, os cor-
radicação tem por principal objetivo a identifica- deiros podem nascer persistentemente infectados
ção e a remoção dos animais PI. Nesses países, a com o BDV e excretar o vírus continuamente. No
vacinação não foi utilizada como parte do pro- entanto, sabe-se que cordeiros que nascem PI
grama de erradicação devido ao fato de que, com do BDV apresentam uma viabilidade reduzida
a vacinação, se perde o indicador sorológico da quando comparados aos bezerros PI do BVDV.
presença da infecção no rebanho. A incidência do A sua importância da epidemiologia da infecção
BVDV era relativamente baixa, o que encorajou a é incerta, mas provavelmente é menor do que no
implementação do programa de erradicação sem BVDV, devido à sua baixa viabilidade e pouco
a utilização da vacinação. Além disso, a importa- tempo de vida.
ção de animais, o transporte e a densidade eram O diagnóstico da infecção pelo BDV pode
relativamente baixos quando comparadas com ser realizado por isolamento viral ou por imu-
outros países. Em países em que a prevalência noistoquímica nos tecidos. Existem poucas vaci-
do BVDV é próxima ou acima de 50%, associada nas e kits de diagnóstico para o BDV disponíveis
com grande movimentação e importação de ani- no mercado mundial.
mais, programas de controle e erradicação prova-
velmente devem utilizar a vacinação do rebanho
4.3 Gênero Hepacivirus
além da identificação e eliminação dos animais
PI.
Até o momento só existe uma espécie reco-
4.2.3 Vírus da doença da fronteira nhecida dentro deste gênero (Tabela 22.4). No
entanto, existem seis grupos genéticos – chama-
A doença da fronteira (border disease, BD) é dos de clãs. As diferenças genéticas entre os clãs
uma doença reprodutiva de ovinos causada por são significativas (25 a 35% em nível de nucleo-
um pestivírus denominado BDV. Além dos ovi- tídeos). Esses clãs não são considerados espécies
nos, o BDV pode infectar naturalmente caprinos, diferentes até o presente, pois características de
bovinos e suínos. A infecção de ovelhas não pre- diferenciação taxonômica, como sorotipos ou di-
nhes é geralmente subclínica, mas pode cursar ferenças nos hospedeiros, que justificassem essa
com febre leve e leucopenia transitória. Em ove- classificação ainda não foram identificadas.
590 Capítulo 22

Tabela 22.4. Espécies virais do gênero Hepacivirus. BOLIN, S.R.; RIDPATH, J.F. Range of viral neutralizing activity
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TOGAVIRIDAE
Eduardo Furtado Flores 23
1 Introdução 595

2 Classificação 595

3 Estrutura do vírion e do genoma 597

4 Replicação 598

4.1 O ciclo replicativo 598

5 Epidemiologia 601

6 As encefalites eqüinas (ou encefalomielites eqüinas) 602

6.1 Encefalite eqüina venezuelana 602


6.1.1 O agente 603
6.1.2 Epidemiologia 603
6.1.3 Patogenia, sinais clínicos e patologia 606
6.1.4 Imunidade 607
6.1.5 Diagnóstico 608
6.1.6 Controle e profilaxia 608

6.2 Encefalite eqüina do leste 609


6.2.1 Epidemiologia 609
6.2.2 Patogenia e sinais clínicos 610
6.2.3 Diagnóstico 610
6.2.4 Controle e profilaxia 610

6.3 Encefalite eqüina do oeste 610


6.3.1 Epidemiologia 611
6.3.2 Patogenia e sinais clínicos 611
6.3.3 Diagnóstico 611
6.3.4 Controle e profilaxia 611

7 Bibliografia consultada 611


1 Introdução mente limitada, e é determinada pela existência
de condições ecológico-ambientais para a sobre-
vivência e atividade dos vetores. Para a maioria
A família Togaviridae abrange um grupo de dos alfavírus, as infecções de animais domésticos
vírus envelopados que possuem uma molécula e humanos constituem-se em eventos acidentais
de RNA de cadeia simples e polaridade positiva e possuem, portanto, importância epidemiológi-
como genoma. A denominação Toga deriva da ca limitada. Para poucos alfavírus, os ciclos de re-
aparência frouxa do envelope viral – lembrando plicação em espécies domésticas (eqüinos e aves)
a vestimenta romana –, observada nas primeiras podem contribuir para a sua amplificação e de-
imagens dos vírions obtidas por microscopia ele- sencadeamento de epizootias/epidemias.
trônica. No entanto, estudos posteriores demons- Além da estrutura e epidemiologia similar,
traram que o envelope desses vírus encontra-se os alfavírus são antigenicamente relacionados
intimamente associado ao nucleocapsídeo. Esta entre si e apresentam várias propriedades genéti-
família é composta por dois gêneros: Alfavirus e cas, moleculares e biológicas semelhantes.
Rubivirus. O gênero Alfavirus abriga vários pató- Este capítulo aborda inicialmente as caracte-
genos humanos e animais, cuja principal carac- rísticas gerais da família Togaviridae e a, seguir, as
terística em comum é a transmissão por vetores viroses associadas com os alfavírus de importân-
artrópodes. O gênero Rubivirus abriga apenas o cia veterinária.
vírus da rubéola, um patógeno exclusivo de hu-
manos e que não é transmitido por insetos. Clas- 2 Classificação
sicamente, a Togaviridae era uma família maior e
incluía os flavivírus, pestivírus e outros vírus até A família Togaviridae é composta por dois
então pouco caracterizados. Diferenças molecu- gêneros: Alfavirus e Rubivirus. O gênero Alfavi-
lares levaram os flavivírus (e os pestivírus) a se- rus abrange aproximadamente 30 espécies de
rem reclassificados na família Flaviviridae. vírus, alguns dos quais têm sido associados com
Os alfavírus são considerados arbovírus doença em animais domésticos (eqüinos e aves),
(arthropod borne virus) clássicos, juntamente com silvestres (aves e mamíferos) e ocasionalmente
os flavivírus e os buniavírus. Dentre os alfavírus humanos. Esses vírus possuem características es-
de interesse veterinário, destacam-se os vírus truturais e morfológicas em comum, são transmi-
das encefalites eqüinas do leste (EEEV), oeste tidos por insetos e apresentam uma considerável
(WEEV) e venezuelana (VEEV), além de outros relação antigênica. Grande parte da reatividade
arbovírus de encefalites de importância regional antigênica cruzada deve-se à similaridade da
em vários países. O protótipo da família é o vírus proteína do capsídeo. De acordo com o grau de
Sindbis (SIN), isolado inicialmente de mosquitos similaridade antigênica, os alfavírus podem ser
no Egito e, ocasionalmente, associado com infec- distribuídos nos seguintes grupos: o WEEV apre-
ções em humanos. Apesar da sua importância senta vários sorotipos, e o seu grupo inclui ainda
clínica limitada, contribuições inestimáveis sobre o vírus Highlands J e o SIN; o VEEV possui sete
a arquitetura da partícula viral, estrutura e fun- sorotipos (I a VII), e alguns variantes dentro do
ção das glicoproteínas do envelope e regulação sorotipo I (AB, C, D, E e F); o EEEV possui dois
da expressão gênica foram obtidas com estudos variantes antigênicos (sul e norte-americano); o
do SIN de outro alfavírus, o vírus Semliki Forest grupo antigênico do SFV inclui ainda os vírus
(SFV). Nos últimos anos, o SIN também tem sido Mayaro, Getah, Ross River, O’Nyong-Nyong e
testado como vetor para terapia gênica e vaci- Chikungunya. A reatividade sorológica cruzada
nas. é observada apenas entre vírus do mesmo gru-
Os alfavírus podem infectar naturalmen- po e não entre os gêneros. Apesar de sua relação
te várias espécies de aves, pequenos mamíferos antigênica, os membros do gênero Alfavirus apre-
e insetos, sendo mantidos na natureza graças a sentam diferenças antigênicas e moleculares, que
ciclos alternados nessas espécies. A distribuição podem ser detectadas por testes sorológicos e por
geográfica de cada espécie de alfavírus é geral- análise de seqüências genômicas.
596 Capítulo 23

Pouco se sabe sobre possíveis diferenças e dos dos rubivírus, e a sua transmissão não envol-
semelhanças no ciclo replicativo da maioria dos ve a participação de insetos.
alfavírus, embora seja evidente que cada mem- Na Tabela 23.1, estão relacionados os prin-
bro do gênero apresenta um potencial patogênico cipais alfavírus associados com enfermidades em
distinto. Grande parte dos conhecimentos sobre animais e humanos.
a estrutura e replicação desses vírus foi obtida a
O potencial zoonótico dos alfavírus tem sido
partir de estudos com os vírus protótipos SIN e
relatado principalmente para o EEEV, WEEV e
SFV.
VEEV. Também tem sido relatada doença febril,
O gênero Rubivirus possui apenas o vírus
da rubéola, que não apresenta relação antigênica acompanhada de eritema e artrite em humanos,
com os alfavírus. No entanto, algumas proprie- associada com os alfavírus Ross River (Austrália,
dades estruturais e biológicas indicam que esses Oceano Pacífico), SFV (África), Mayaro (Trinidad
dois gêneros evoluíram de um mesmo ancestral. e Tobago, América do Sul) e vírus do grupo do
Os humanos são os únicos hospedeiros conheci- Sindbis (África, Ásia e Austrália).

Tabela 23.1. Principais alfavírus de interesse médico e veterinário.

Hospedeiros Espécies Distribuição


Vírus Enfermidade Vetores
naturais afetadas

Eqüinos, aves Mosquitos EUA (costa leste e


Encefalite
Aves silvestres domésticas Doença febril, (Culiseta do Golfo do México),
de áreas (faisões, melanura, Aedes América Central e
eqüina do leste encefalite
pantanosas galinha, emas, sollicitans, Caribe, costa norte
(EEEV)
patos) A.vexans) da América do Sul

Encefalite Aves silvestres, Encefalite, Planícies centrais e


eqüina do oeste pequenos mamíferos Eqüinos doença febril Mosquitos (Culex ocidentais dos EUA e
(WEEV) tarsalis) Canadá

Roedores silvestres, América Central,


Encefalite eqüina Eqüídeos (eqüinos, Encefalite,
eqüinos (vírus Mosquitos (Culex norte/noroeste da
venezuelana asininos, burros) doença febril
epizoóticos) sp) América do Sul
(VEEV)
Pássaros,
Getah mamíferos Eqüinos Doença febril Mosquitos Sudeste Asiático

Pássaros, Doença febril,


Higlands J mamíferos (?) Eqüinos encefalite Mosquitos Américas

Doença febril, África, Índia,


Chikungunya Primatas,
Primatas exantema, Mosquitos Sudeste
(CHIK) humanos
artralgias Asiático

Doença febril, América do Sul,


Primatas,
Mayaro (May) Primatas exantema, Mosquitos Trinidad e Tobago
humanos
artralgias

Doença febril,
O’nyong-nyong exantema,
(ONN) Primatas Humanos Mosquitos Africa
artralgias

Doença febril,
Mamíferos Mamíferos, exantema, Austrália,
Ross River (RR) silvestres humanos Mosquitos Ilhas do Pacífico
artralgias

Doença febril, Norte da Europa,


Pássaros, exantema,
Sindbis (SIN) Pássaros humanos Mosquitos África, Ásia e
artralgias Austrália
Pássaros,
Semliki Forest humanos, Doença febril,
Pássaros Mosquitos África
(SFV) eqüinos rara encefalite
Togaviridae 597

3 Estrutura do vírion e do genoma e coeficiente de sedimentação 280S. São sensíveis


a solventes orgânicos, detergentes, irradiação e
Os vírions da família Togaviridae estão entre são relativamente instáveis sob condições am-
os vírus envelopados mais simples. Os vírions bientais. Aproximadamente 30% da massa total
são esféricos ou levemente pleomórficos, com di- dos vírions é composta por lipídios.
âmetro aproximado de 70 nm (Figura 23.1), com O genoma dos alfavírus é uma molécula de
um nucleocapsídeo isométrico, com aproxima- RNA de cadeia simples, linear, de polaridade po-
damente 40 nm de diâmetro, formado por 240 sitiva, com extensão de 9.7 (rubivírus) a 11.8 kb
cópias da proteína do capsídeo (C), arranjadas (alfavírus) (Figura 23.2). A extremidade 5’ pos-
em simetria icosaédrica. O nucleocapsídeo é re- sui uma estrutura cap e a extremidade 3’ é polia-
vestido externamente por um envelope lipídico, denilada. Pequenas seqüências não-traduzidas
intimamente associado, derivado da membra- são encontradas próximo às duas extremidades
na plasmática da célula hospedeira. O envelope e, provavelmente, possuem importância para a
apresenta 80 projeções externas (peplômeros), transcrição e replicação do genoma. As seqüên-
cada uma formada pela associação de três hete- cias traduzíveis (open reading frames, ORFs) estão
rodímeros das glicoproteínas E1 e E2. Uma das agrupadas em dois módulos: os genes das pro-
extremidades da E2 projeta-se internamente e teínas não-estruturais (nsPs) estão localizados
interage com o nucleocapsídeo. As três prote-
nos dois terços próximos à extremidade 5’ e são
ínas estruturais principais apresentam massas
expressos pela tradução direta do genoma. As
de 30-33 kDa (C), ∼50 kDa (E1) e ∼45 kDa (E2).
proteínas nsP1, nsP2, nsP3 e nsP4 são produzi-
Uma terceira glicoproteína de envelope (E3, ∼10
das pela clivagem da poliproteína precursora. Os
kDa) e uma proteína transmembrana pequena (6
genes que codificam as proteínas estruturais (C,
kDa) também foram identificadas nos alfavírus.
E1, E2, E3) fazem parte de uma ORF localizada
Além da função estrutural, as glicoproteínas do
na região próxima a extremidade 3’ do genoma.
envelope desempenham funções importantes no
início da replicação (ligação nos receptores, pene- Esses genes são expressos pela tradução de um
tração) e constituem-se em fatores de virulência RNA mensageiro (mRNA) subgenômico (26S),
em modelos animais. As glicoproteínas também que é produzido a partir da cópia de RNA de
possuem atividade hemaglutinante e são alvos sentido antigenômico. A tradução deste mRNA
de anticorpos neutralizantes. também resulta na produção de uma poliprote-
Os vírions possuem massa molecular 52x106; ína, cuja clivagem seqüencial resulta nas proteí-
densidade Buoyant 1.18-1.19 g/cm3-3 em sacarose nas estruturais.
598 Capítulo 23

mRNA 26S

Proteínas não-estruturais Proteínas estruturais


5' 3'
Cap NsP1 NsP2 NsP3 NsP4 C E3 E2 E1 A(n)

Síntese de Helicase Síntese de Polimerase/ Capsídeo


RNA (-) Protease RNA (+) replicase Glicoproteínas do
Capping envelope

Aproximadamente 12 kb

Fonte: adaptada de Schlesinger e Schlesinger (1996).

Figura 23.2. Estrutura e organização do genoma dos alfavírus. As prováveis funções dos produtos estão apresentadas
abaixo de cada gene.

4 Replicação com 10 e 74 kDa em células de neuroblastoma de


camundongos. Moléculas do complexo maior de
Os alfavírus replicam em uma variedade histocompatibilidade (MHC) têm sido identifi-
de linhagens celulares, incluindo células BHK- cadas como receptores para o SFV em células de
21 (baby hamster kidney cells), Vero (African green mamíferos.
monkey kidney), além de cultivos primários de A penetração do vírus envolve a interação
embriões de galinha (CEF) e de pato. A replicação inicial da proteína E2 e/ou E1 com os receptores
viral nessas células produz altos títulos de vírus na superfície celular, seguida de internalização
e é acompanhada de citopatologia severa e mor- dos vírions por endocitose. Anticorpos contra a
te celular. A replicação em células de mosquitos, E2 possuem atividade neutralizante, indicando a
por outro lado, geralmente não é acompanhada importância desta glicoproteína no processo de
de citopatologia ou alterações aparentes na fisio- ligação e/ou penetração. A penetração dos nu-
logia celular, a exemplo do que ocorre in vivo. A cleocapsídeos no citoplasma ocorre após a fusão
infecção natural em mosquitos é persistente, sem do envelope viral com a membrana dos endosso-
alterações evidentes na fisiologia do vetor. Célu- mos, o que ocorre sob pH baixo (pH 5 a 6). Clas-
las C6/36, derivadas de Aedes albopictus, também sicamente, foi demonstrado que a penetração
são rotineiramente utilizadas para amplificar os dos nucleocapsídeos no citoplasma ocorre após
alfavírus em laboratório. a fusão do envelope viral com a membrana dos
endossomos sob pH baixo (pH 5 a 6), o que classi-
4.1 O ciclo replicativo ficaria esses agentes como vírus ph-dependentes.
Recentemente foi demonstrado um mecanismo
Os alfavírus são capazes de infectar várias alternativo (ou adicional) de penetração do vírus
espécies in vivo e diferentes tipos de células in vi- SIN em células de mamíferos. Esse mecanismo
tro. Para isso, provavelmente são capazes de uti- envolveria a formação de estruturas semelhantes
lizar diferentes receptores para iniciar a infecção. a poros, pela proteína E1, na membrana plasmá-
Alternativamente, podem utilizar um único re- tica. Esses poros permitiriam a ejeção do genoma
ceptor, mas que esteja presente em todas as espé- diretamente no citoplasma, sem a penetração do
cies e células que infectam. O SIN parece utilizar nucleocapsídeo como um todo, a exemplo do que
receptores distintos em diferentes linhagens: o ocorre em alguns vírus sem envelope (poliovírus).
receptor de alta afinidade da laminina em células As alterações conformacionais na E1 necessárias
BHK-21 e em outras células de mamíferos; uma para a ocorrência desse processo necessitariam
proteína de 63 kDa em células de CEF e proteínas pH baixo, mas a penetração do genoma ocorreria
Togaviridae 599

a pH próximo do neutro. A fusão/penetração em ocorre mais tardiamente, ao contrário da cliva-


células de insetos parece não depender da acidi- gem da nsP4, que parece ocorrer imediatamente
ficação dos endossomos. O desnudamento pro- após a sua produção. No vírus SIN, a atividade
vavelmente ocorra pela interação das proteínas polimerase foi mapeada na nsP4, que possui uma
do nucleocapsídeo com os ribossomos da célula seqüência GDD presente em várias RNA poli-
hospedeira. No caso do mecanismo recentemente merases virais. Um complexo formado pela nsP4
descrito (formação de poros), o genoma já des- e por outras nsPs é responsável pela replicação
provido da maioria das proteínas do nucleocap- do genoma (complexo replicase), que ocorre via
sídeo seria ejetado no citosol. síntese de uma molécula de RNA de sentido an-
A primeira etapa após o desnudamento é a tigenômico (polaridade negativa). Esta molécula
tradução direta de parte do RNA genômico pelos serve inicialmente de molde para a transcrição
ribossomos. A tradução da ORF dos genes das dos mRNAs subgenômicos (26S). A nsP2 parece
proteínas não-estruturais (localizada nos dois atuar na regulação da síntese da cadeia negativa
terços do genoma próximos à extremidade 5’) re- de RNA e na iniciação da síntese do mRNA sub-
sulta na produção de uma poliproteína que é cli- genômico, além de possuir atividade de protease.
vada à medida que vai sendo produzida, dando A nsP1 possui atividade de metil-transferase.
origem às proteínas não-estruturais nsP1, nsP2, Os mRNAs subgenômicos (26S) são tradu-
nsP3 e nsP4 (Figura 23.3). Tem sido demonstra- zidos, originando uma poliproteína que é, então,
do que a clivagem do precursor nsP1-nsP2-nsP3 clivada, dando origem às proteínas estruturais

5’
Genoma 3’
Cap Genes proteínas não-estruturais Genes proteínas estruturais A (n)

Tradução

Poliproteína
Clivagem
Replicação
NSP1 NSP2 NSP3 NSP4

Transcrição
3’ 5’
RNA antigenômico (negativo)

Cap mRNA subgenômico A (n)

Tradução

Poliproteína

Clivagem
C Precursor
Processamento
co- e pós-tradução Clivagem
Precursor E1
Clivagem
E3 E2

Figura 23.3. Estratégia de expressão gênica e replicação do genoma dos alfavírus.


600 Capítulo 23

do capsídeo (pC) e às glicoproteínas do envelope sas cópias podem servir de molde para outros
E1 e E2 (e E3 em alguns vírus) (Figura 23.3). As ciclos de tradução e transcrição, e serão, eventu-
glicoproteínas são sintetizadas pelos ribossomos, almente, encapsidadas. O complexo replicase é
associados à membrana do retículo endoplas- responsável pela síntese do RNA antigenômico,
mático rugoso (RER). Após a sua síntese como dos mRNAs subgenômicos e das cópias genômi-
uma poliproteína precursora (E3-E2-E1), essas cas do RNA.
glicoproteínas sofrem extensivas modificações
A montagem dos nucleocapsídeos ocorre as-
pós-traducionais (glicosilação, acilação) no RER e
sociada com membranas no citoplasma, pela con-
no aparelho de Golgi. Parte dessas alterações e o
jugação do RNA genômico recém-formado com
processamento proteolítico final, que resulta nas
múltiplas cópias da proteína C. Os nucleocapsí-
glicoproteínas individuais, ocorre no interior de
vesículas durante o transporte para a membrana deos são transportados até a membrana plasmá-
plasmática, onde essas proteínas serão inseridas. tica, onde interagem com as caudas das glicopro-
O RNA antigenômico também serve de mol- teínas recém-inseridas e completam a maturação
de para a síntese de cópias com a sua extensão por brotamento. O ciclo replicativo ocorre intei-
total, que correspondem ao RNA genômico. Es- ramente no citoplasma (Figura 23.4).

1
11

H+ H+

10
3 8
9

6
5 7a

7b
4 10

Citoplasma Núcleo

Figura 23.4. Ilustração esquemática do ciclo replicativo dos alfavírus. 1) Ligação nos receptores celulares; 2)
Internalização por endocitose mediada por clatrina; 3) Penetração e desnudamento; 4) Tradução parcial do genoma e
produção das proteínas não-estruturais (nsPs); 5) Síntese do RNA antigenômico; 6) Transcrição da região das
proteínas estruturais e produção do mRNA subgenômico (26S); 7) Tradução do mRNA 26S produzindo as proteínas
do capsídeo (7a) e do envelope (7b). 8) Síntese do RNA genômico; 9) Morfogênese dos nucleocapsídeos; 10)
Togaviridae 601

Em células de vertebrados, a replicação dos brados e mosquitos. Os mosquitos se infectam


alfavírus é acompanhada por uma supressão na durante o repasto sangüíneo em hospedeiros vi-
síntese de macromoléculas celulares. Isso produz rêmicos. Após um período de replicação nos te-
distúrbios severos e irreversíveis na fisiologia, cidos do inseto, o agente é transmitido a outro
que resultam inevitavelmente na morte celular. hospedeiro pela inoculação de saliva contamina-
Em células de inseto, o brotamento e maturação da. O vírus, então, replica no hospedeiro, produ-
ocorrem em membranas internas, e não na mem- zindo viremia e, às vezes, enfermidade.
brana plasmática. Os vírions recém-formados são Os alfavírus apresentam um amplo espectro
transportados no interior de vesículas e liberados de hospedeiros in vivo e in vitro. Uma grande va-
no meio extracelular por exocitose, sem causar riedade de vertebrados (mamíferos e aves) e inse-
lise celular. tos é susceptível à infecção natural e experimental
A estratégia de expressão gênica e replica- por esses vírus. Os hospedeiros naturais dos alfa-
ção dos alfavírus e ciclo replicativo estão ilustra- vírus são as aves (várias espécies), pequenos ma-
dos nas Figuras 23.3 e 23.4, respectivamente. míferos (principalmente roedores e marsupiais)
A exemplo de outros vírus RNA, os alfavírus e primatas. Infecções naturais já foram relatadas
apresentam uma alta taxa de mutações e também em morcegos e em outros mamíferos pequenos.
estão propensos a recombinações no genoma. Es- Os eqüídeos também são freqüentemente infecta-
sas mutações e recombinações possuem impor- dos por várias espécies de alfavírus, embora o seu
tância na evolução desses vírus e algumas delas papel na epidemiologia da maioria deles perma-
têm sido associadas com alterações de patogeni- neça controverso. As conseqüências da infecção
cidade. Os VEEV epizoóticos, capazes de produ- natural nas espécies hospedeiras variam desde
zir altos níveis de viremia e infecção neurológica infecções subclínicas agudas ou crônicas (aves,
em eqüinos e humanos, surgem esporadicamente insetos) até enfermidades fatais. A capacidade
a partir de mutações no genoma dos vírus enzoó- de hospedeiros vertebrados servirem de fonte de
ticos. Evidências genéticas indicam que o WEEV infecção e participarem do ciclo de transmissão
surgiu por recombinação entre o EEEV e um ví- do agente depende dos níveis de viremia e da
rus semelhante ao SIN. preferência específica dos insetos hematófagos.
O ciclo natural dessas infecções geralmente não
5 Epidemiologia envolve humanos ou animais domésticos, que
são hospedeiros acidentais e não participam da
Os alfavírus são mantidos na natureza por transmissão e manutenção do agente na natureza
meio de ciclos alternados em hospedeiros verte- (Figura 23.5).

Hospedeiros Ciclo natural Hospedeiros


acidentais acidentais

Figura 23.5. História natural dos alfavírus. Várias espécies de aves silvestres são os hospedeiros naturais do vírus,
enquanto aves e mamíferos domésticos, além do homem, são hospedeiros acidentais.
602 Capítulo 23

As interações específicas entre os vírus, ve- eqüinos e milhares de pessoas nas Américas. Em
tores e hospedeiros vertebrados tendem a confi- contraste, a EEE e a WEE possuem importância
nar cada espécie de vírus a determinadas áreas predominantemente regional nos EUA (embora
geográficas ou nichos ecológicos. Essa delimita- essas viroses já tenham sido detectadas em ou-
ção geográfica, no entanto, não é absoluta e, oca- tros países, inclusive no Brasil) e o número de ca-
sionalmente, esses vírus podem ser encontrados sos (eqüinos e humanos) tem sido muito menor.
fora de seus nichos ecológicos naturais. Isso tem A ecologia dessas viroses tem vários aspectos em
ocorrido nas epizootias causadas pelo VEEV, que comum, porém difere em relação aos hospedei-
atingiram o México e Sul dos Estados Unidos; e ros naturais, vetores e participação dos eqüinos
também com o EEEV e WEEV, que têm sido fre- no ciclo de transmissão do vírus.
qüentemente identificados em regiões remotas As infecções pelos alfavírus das encefali-
da América Central e do Sul. Sobreposição de tes eqüinas têm sido detectadas no Brasil desde
áreas de ocorrência de mais de uma espécie de o início do século XX. O EEEV já foi isolado de
vírus também tem sido demonstrada para os ví- eqüinos nos estados de São Paulo, Pernambuco,
rus da VEE. Bahia, Minas Gerais e Rio de Janeiro; e o WEEV já
foi isolado de cavalos no estado do Rio de Janeiro.
6 As encefalites eqüinas A presença desses dois vírus na região Amazôni-
(ou encefalomielites eqüinas) ca foi demonstrada por sorologia e/ou por isola-
mento do agente de eqüinos, mosquitos, aves e
Vários alfavírus são associados com infecção mamíferos silvestres. A infecção pelo EEEV tem
e enfermidade do sistema nervoso central (SNC) sido demonstrada por exames sorológicos em
de eqüinos (ver Tabela 23.1). Na maioria dos ca- pessoas no Vale do Ribeira (SP), em aves e eqüi-
sos, esses animais são hospedeiros acidentais (ou nos do Pantanal (MS) e na Mata Atlântica (SP). O
terminais) e não participam do ciclo de transmis- VEEV também foi isolado de primatas na região
são desses vírus. Embora alguns alfavírus do Ve- Amazônica e de mosquitos e morcegos na região
lho Mundo possam causar encefalite, os alfavírus Sudeste do País. No final da década de 1990, o
das Américas é que estão mais freqüentemente VEEV foi associado a um surto de encefalite em
envolvidos em epizootias em eqüinos e são de- cavalos no Paraná. Outros estudos sorológicos
nominados genericamente de vírus das encefalites têm demonstrado a circulação desses e de ou-
eqüinas. Esse complexo de vírus abrange os vírus tros arbovírus em várias regiões do Brasil, prin-
das encefalites do Leste (EEEV), Oeste (WEEV) e cipalmente nas regiões Sudeste (Mata Atlântica),
venezuelana (VEEV). As infecções por esses vírus Centro-Oeste (Pantanal Mato-grossense) e Norte
possuem certa delimitação geográfica, sobretudo (Amazônia).
por condições ecológico-ambientais que propor- Pela sua importância e impacto em saúde
cionam interações do agente com seus hospedei- animal e pela sua abrangência, que atinge boa
ros naturais e insetos vetores. Não obstante, esses parte do território brasileiro, este capítulo abor-
vírus são freqüentemente detectados fora de suas dará, com mais detalhes, a encefalite eqüina ve-
regiões originais, o que demonstra que os limi- nezuelana (VEE). As encefalites oeste (WEE) e
tes geográficos de sua distribuição são tênues e leste (EEE) serão abordadas resumidamente no
relativos. final.
A abrangência geográfica dos vírus do com-
plexo VEEV é maior e compreende desde o Norte 6.1 Encefalite eqüina venezuelana
da Argentina até os EUA, com atividade viral no-
tadamente maior no Norte e Noroeste da Amé- Os agentes da encefalite eqüina venezuela-
rica do Sul, América Central e México. Nas úl- na (VEE) são os alfavírus mais importantes de
timas décadas, epizootias/epidemias associadas eqüinos e humanos das Américas. Surtos de do-
ao VEEV têm vitimado centenas de milhares de ença febril e encefalite têm sido freqüentemente
Togaviridae 603

descritos na América Latina nas últimas décadas, 6.1.1 O agente


envolvendo milhares de eqüinos e humanos. Os
primeiros casos da enfermidade foram descritos, O VEEV pertence a um grupo de alfavírus
em 1930, no Norte da América do Sul, e afetaram antigenicamente relacionados que compõe o com-
eqüinos, asininos e muares. Entre 1938 e 1973, plexo VEE. O complexo VEE abrange seis diferen-
vários surtos de proporções consideráveis ocor- tes subtipos e várias espécies e variantes (Tabela
reram a intervalos de aproximadamente 10 anos 23.2). Esses vírus são agrupados de acordo com
no Norte e Noroeste do Continente Sul-America- a sua relação antigênica, e cada grupo apresenta
no. Um surto de proporções maiores ocorreu na virulência e potencial epizoótico distintos. Den-
América Central e México entre 1969 e 1972, afe- tre esses, apenas os subtipos IAB e IC têm sido
tando e matando milhares de eqüídeos e centenas associados com epizootias/epidemias e utilizam
de pessoas. Um esforço internacional integrado eqüinos para a sua amplificação e disseminação
conseguiu controlar o surto em 1972. A ausência e, por isso, são denominados VEEV epizoóticos.
de relatos da doença na região, entre 1973 e 1992, Os outros sorotipos (ID e IE) e os demais vírus
levantou a suspeita de uma possível extinção dos do complexo VEE possuem ocorrência enzoótica
agentes. No entanto, vários casos foram descritos e são geralmente avirulentos para a espécie eqüi-
na última década, reacendendo as discussões so- na. Os vírus enzoóticos são mantidos por meio de
bre a enfermidade e colocando-a entre as princi- ciclos de infecção em pequenos mamíferos e in-
pais doenças emergentes de animais e humanos setos em florestas ou regiões pantanosas, são avi-
das Américas. rulentos para eqüinos e parecem não utilizar essa
Surtos de menores proporções, atingindo espécie para amplificação e manutenção.
eqüinos e humanos, foram descritos na Venezue- As características morfológico-estruturais e
la em 1992. No México, os eventos mais recentes o esquema geral de replicação do VEEV parecem
afetaram apenas eqüinos. Em 1993, foram relata- não diferir muito do que foi estabelecido para os
dos 125 casos, resultando em 63 mortes; em 1996, vírus protótipos SIN e SFV. O VEEV utiliza a pro-
32 eqüinos foram afetados e 12 morreram. Desde teína ligante da laminina como receptor celular,
então, casos esporádicos em cavalos têm sido des- mas passagens múltiplas em cultivo podem sele-
critos no México e em países da América Central, cionar mutantes da glicoproteína E2 capazes de
confirmando o caráter enzoótico da infecção. se ligar ao sulfato de heparina. O VEEV apresen-
O surto de maior proporção ocorreu em ta um estreito espectro de vetores susceptíveis,
1995 e atingiu entre 75.000 e 100.000 pessoas cada espécie de vírus sendo capaz de replicar em
(mais de 300 mortes) e milhares de eqüinos e uma ou poucas espécies de mosquitos.
muares na Venezuela e Colômbia. As medidas
de emergência incluíram a vacinação de mais de
100.000 eqüinos na Colômbia, combate aos veto- 6.1.2 Epidemiologia
res e restrição à movimentação de animais. Esse
esforço impediu a disseminação da infecção na A distribuição dos subtipos do complexo
direção sul. Nos anos de 1999, 2000 e 2003, pe- VEEV nas Américas, de acordo com os surtos
quenos focos localizados de VEE foram relatados ocorridos no último século, está apresentada na
em algumas regiões da Venezuela. Embora com Figura 23.6. Os vírus enzoóticos são mantidos
menor freqüência e proporções, casos esporádi- perenemente em ciclos silvestres silenciosos (sem
cos e inclusive surtos de VEE, têm sido descritos causar doença em espécies domésticas) nas flo-
em outros países da América do Sul. A história restas e regiões pantanosas da América Central
natural da enfermidade, incluindo a persistência e Norte-Noroeste da América do Sul. Os VEEV
do agente em reservatórios silvestres e a existên- epizoóticos têm sido associados com epizootias
cia de condições ecológico-epidemiológicas apro- periódicas em eqüinos, algumas vezes associadas
priadas indicam que tais eventos continuarão a com epidemias em humanos, principalmente no
ocorrer. Norte e Noroeste da América do Sul. As áreas
604 Capítulo 23

Tabela 23.2. Alfavírus do complexo VEEV, padrões de transmissão, espécies afetadas, vetores e distribuição

Espécie Padrão de Patógeno Distribuição


Subtipo Variante Vetor
(vírus) transmissão eqüino

Epizoótica Américas (Sul, Mosquitos mamiferofílicos


VEEV AB Sim

VEEV C Epizoótica Sim América do Sul Mosquitos mamiferofílicos

C.aikenii; C.vomerifer,
I VEEV D Enzoótica Não América do Sul e Central
C.pedroi,C. adamesi

VEEV E Enzoótica Variável América Central e México C.taeniopus

Mosso das Desconhecido


F Enzoótica ? Brasil
Pedras

II Everglades Enzoótica Não Sul da Flórida (EUA) C.cedecei

Mucambo A Enzoótica Não América do Sul C.portesi

Tonate B (Bijou Enzoótica ? América do Sul e do Norte Oecieus vicarius

III C
Mucambo (71D1252) Enzoótica ? Oeste do Peru Desconhecido

D
Mucambo (V407660) Enzoótica ? Oeste do Peru Desconhecido

IV Pixuna Enzoótica ? Brasil Desconhecido

V Cabassou Enzoótica ? Brasil Desconhecido

VI Rio Negro Enzoótica ? Norte da Argentina C. delpontei

Fonte: adaptado de Weaver et al. (2004)

de ocorrência de cada sorotipo são exclusivas e mosquitos. Os roedores parecem desempenhar


auto-excludentes e estendem-se desde o Norte da um papel preponderante como hospedeiros des-
Argentina até as Montanhas Rochosas nos EUA. ses vírus nas diversas regiões de ocorrência. Pe-
Uma exceção é a ocorrência concomitante de três quenos marsupiais e morcegos também têm sido
subtipos (IC, IIIC e IIID) na Floresta Amazônica sugeridos como possíveis hospedeiros. Embora
peruana. A especificidade das interações entre as as aves não possuam papel importante como re-
diferentes espécies de vírus, seus vetores e hos- servatórios, pássaros costeiros podem participar
pedeiros naturais, aliada à existência de barreiras da disseminação desses agentes. Os vírus enzoó-
naturais pode explicar a delimitação geográfica ticos geralmente não causam doença em eqüinos;
dessas viroses. No entanto, alguns subtipos ou no entanto, casos esporádicos de doença febril
variantes têm sido ocasionalmente identificados e, ocasionalmente, encefalites têm sido descritos
fora de seus nichos ecológicos originais. em humanos.
Pelo menos dez espécies de mosquitos po- A origem dos VEEV epizoóticos, associados
dem participar da epidemiologia e transmissão com surtos periódicos de encefalite em eqüinos
dos vírus da VEE, incluindo os gêneros Culex sp. e humanos, constituiu-se em um tema de inten-
e Aedes sp., e a eficiência de transmissão varia en- sas investigações durante décadas. As epizootias
tre as diferentes espécies de vetor e de vírus. Os ocorriam aproximadamente a cada dez anos, sem
hospedeiros naturais dos vírus do complexo VEE atividade viral detectável nos intervalos entre os
são pequenos mamíferos (principalmente roedo- surtos. Uma característica comum dessas epizoo-
res). Os vírus enzoóticos são mantidos na natu- tias era a participação de eqüinos na amplificação
reza por ciclos alternados nessas espécies e em do vírus. Embora humanos, ovinos, cães, roedo-
Togaviridae 605

res, morcegos e algumas espécies de aves sejam (VEEV epizoóticos), capazes de serem amplifi-
susceptíveis aos VEEV epizoóticos. Em todas cados e causarem doença grave em eqüinos (Fi-
as epidemias reportadas havia o envolvimento gura 23.7). O surgimento de VEEV epizoóticos a
preponderante de eqüinos. Evidências recentes partir de vacinas mal inativadas também parece
indicam que os VEEV epizoóticos surgem espo- ter contribuído para algumas epizootias. Recen-
radicamente a partir de mutações de VEEV en- temente foi demonstrado que os VEEV epizoóti-
zoóticos (principalmente do tipo ID), ou seja, os cos podem se manter na natureza por vários anos
VEEV enzoóticos, avirulentos e pouco capazes após o término das epizootias, embora o meca-
de serem amplificados em eqüinos seriam man- nismo de persistência ainda não tenha sido de-
tidos na natureza através de ciclos alternados em terminado. Infecções agudas ou persistentes em
pequenos mamíferos e insetos. Mutações esporá- outras espécies animais (bovinos, roedores) e a
dicas nesses vírus resultariam em variantes com utilização de outros artrópodes como vetores têm
espectro de hospedeiro e virulência alterados sido sugeridos para explicar essa persistência. A

1971 subtipo IAB

1925-38, 1941-3, 1949, 1959, 1968-9, 1973 subtipo IAB


1962-4, 1992-3, 1995 subtipo IC
1993, 1996
subtipo IE
1969-1972
subtipo IAB
1952, 1967-68 subtipo IAB

1925-1946, 1950, 1958, 1969,


1973 subtipo IAB

1942-1946
subtipo IAB

Fonte: adaptada de Weaver et al. (2004).

Figura 23.6. Ocorrência e distribuição de surtos associados com os diferentes subtipos do complexo VEEV nas
Américas.
606 Capítulo 23

Ciclo
Epizoótico
Ciclo
Enzoótico Mutação/
seleção

(-)

Figura 23.7. História natural e epidemiologia dos VEEV enzoóticos e epizoóticos.

transmissão vertical do vírus à progênie, através ocasionalmente, participar da transmissão me-


da infecção dos ovos, pode contribuir para a ma- cânica dos VEEV. Uma característica única que
nutenção do vírus na população de mosquitos. diferencia os VEEV dos outros alfavírus é a sua
Uma vez gerados por mutações dos vírus alta infectividade em aerossóis. Com isso, o vírus
enzoóticos, os VEEV epizoóticos podem utilizar poderia infectar hospedeiros por inalação. A im-
uma variedade de espécies de mosquitos para a portância dessa via de transmissão na epidemio-
sua disseminação. Devido à ampla e rápida dis- logia da infecção é desconhecida, porém parece
seminação que ocorre entre eqüinos e à proximi- ser limitada.
dade desses animais com humanos, as epizootias
estão freqüentemente associadas com epidemias 6.1.3 Patogenia, sinais clínicos
em pessoas. Esses episódios têm apresentado e patologia
dimensões variáveis – desde casos isolados até
dezenas de milhares de casos. Embora possível, Após a inoculação pela picada do mosqui-
a participação de humanos na amplificação e to vetor, o vírus replica em tecidos próximos ao
disseminação dos VEEV nas grandes epidemias local de inoculação e nos linfonodos regionais,
parece ser limitada, devido à exposição restrita produzindo uma viremia primária. A replica-
dos humanos aos mosquitos vetores. No entan- ção secundária ocorre em órgãos linfóides e em
to, o potencial de disseminação dos VEEV epi- tecidos musculares, resultando em uma viremia
zoóticos por mosquitos urbanos, como o Aedes secundária e eventual invasão do cérebro. O ví-
aegypti, não deve ser negligenciada. Uma grande rus também pode replicar no trato respiratório
epidemia que ocorreu nos arredores de Maracai- superior, pâncreas e fígado. A partir do sangue, o
bo (Venezuela) sugere que outros vetores e/ou vírus pode invadir o cérebro por transporte pas-
transmissão entre humanos possam ter partici- sivo através do endotélio vascular, replicação nas
pado da disseminação do agente. Outros inse- células endoteliais, infecção do plexo coróide e
tos (moscas, carrapatos e outros ácaros) podem, epêndima e/ou por transporte no interior de mo-
Togaviridae 607

nócitos e linfócitos. Em animais de laboratório, o leve do que os quadros associados com o EEEV e
VEEV parece utilizar vias nervosas para invadir WEEV. Os sinais iniciais de letargia, sonolência e
o encéfalo a partir da cavidade nasal ou de sítios confusão mental leve podem progredir para ver-
periféricos. tigens, ataxia, rigidez na nuca, paralisia e coma,
Diferentemente de outros alfavírus, os sítios em casos severos. Em epidemias com sorotipos
preferenciais de replicação do VEEV fora do SNC epizoóticos altamente neurovirulentos, quadros
são os órgãos linfóides. A replicação do VEEV de encefalite podem ser observados em 4 a 14%
está associada com depleção linfóide na medula das pessoas infectadas.
óssea e destruição de linfócitos nos linfonodos e A infecção de eqüinos com os VEEV epizo-
baço. Os quadros de encefalite são acompanha- óticos é seguida do aparecimento de sinais clíni-
dos por várias alterações histopatológicas que cos sistêmicos (hipertermia, depressão, taquicar-
incluem infiltração neutrofílica, degeneração dia, anorexia) entre o 2º e 5º dia pós-infecção. O
neuronal, vasculite necrosante e destruição de percentual de animais que evolui para a infecção
células de Purkinge. neurológica e morte é variável e parece estar di-
A patologia da infecção pelo VEEV tem sido retamente relacionado com o nível de viremia
estudada mais detalhadamente em animais de la- produzido. Os VEEV epizoóticos, geralmente,
boratório como hamsters, cobaias e camundongos. produzem altos títulos de viremia, o que parece
Após um período de viremia, o vírus é eliminado ser raro entre os vírus enzoóticos. Isso sugere que
do sangue e tecidos periféricos após 4 a 5 dias. a neurovirulência está associada com a capacida-
A depleção linfóide é geralmente passageira, e de do vírus de replicar em tecidos extraneurais e,
os órgãos linfóides afetados retornam à sua apa- a partir daí, invadir o cérebro.
rência e constituição quase normais após poucos A progressão da enfermidade sistêmica para
dias. O vírus pode ser detectado no cérebro entre a morte, sem a ocorrência de manifestações neu-
o 2º e 3º dia após a inoculação intranasal e parece rológicas, é relativamente freqüente. Nos animais
atingir o encéfalo através dos nervos olfatórios. que evoluem para a infecção neurológica, os si-
A invasão do encéfalo após inoculação periférica nais específicos geralmente são observados de 5
a 10 dias após a infecção. Esses animais podem
também parece ter a participação de vias nervo-
apresentar incoordenação motora, andar em cír-
sas. No encéfalo, os principais alvos do vírus são
culos, cegueira parcial, fotofobia, dificuldade de
os neurônios, e quadros de encefalite clássica,
deglutição, bruxismo e hiperexcitabilidade. Em
com manguitos perivasculares e infiltração linfo-
fases avançadas, podem ocorrer ataxia, parali-
citária, são freqüentes.
sia, decúbito e convulsões. Em infecções experi-
A infecção pelos vírus do complexo VEE
mentais, a morte ocorre aproximadamente sete
– tanto em eqüinos como em humanos – pode es-
dias após o início dos sinais clínicos. Em surtos
tar associada a uma variedade de manifestações,
naturais causados por VEEV epizoóticos, a taxa
indo desde infecções subclínicas até encefalite de
de letalidade pode atingir 50 a 70% dos animais
curso fatal. Os sorotipos enzoóticos (I-E, II, III e
acometidos. Os animais que se recuperam podem
IV) são avirulentos para eqüinos e, geralmente,
permanecer com seqüelas neurológicas. Outros
produzem níveis baixos de viremia, sem produ-
animais domésticos, como cães, caprinos, ovinos
zir sinais clínicos. Alguns VEEV enzoóticos po- e coelhos, também são freqüentemente afetados
dem ser virulentos para humanos. Os sorotipos durante as epizootias e podem desenvolver do-
epizoóticos (IAB e IC), geralmente, produzem al- ença febril e encefalite fatal.
tos títulos de viremia em eqüinos e são virulentos
para essa espécie e para humanos. 6.1.4 Imunidade
A infecção em humanos, geralmente, resul-
ta em doença febril com sinais clínicos sistêmi- A infecção natural pelo VEEV induz imuni-
cos (hipertermia, calafrios, letargia, cefaléia). O dade de longa duração, provavelmente por toda
envolvimento do sistema nervoso central (ence- a vida do animal. A proteção contra vírus heteró-
falite) ocorre apenas esporadicamente (menos de logos pode ocorrer e depende do grau de simila-
0,5% dos adultos e até 4% das crianças) e é mais ridade antigênica entre os vírus.
608 Capítulo 23

Durante a infecção aguda, o aparecimento O isolamento do vírus de animais doentes


de anticorpos neutralizantes coincide com o de- é difícil, pois a viremia é geralmente transitória.
saparecimento do vírus do sangue, indicando a Em animais que morrem ou são sacrificados, ten-
importância desses anticorpos na resolução da tativas de isolamento do vírus do cérebro podem
viremia e na recuperação da doença clínica. Em produzir bons resultados. Inoculação intracere-
exposições subseqüentes, os anticorpos neutra- bral em camundongos lactentes ou em células
lizantes parecem desempenhar um papel im- de cultivo (Vero, BHK-21) são os métodos mais
portante na prevenção e limitação da replicação utilizados em tentativas de isolamento do agen-
viral. Acredita-se que os linfócitos T citotóxicos te. Técnicas moleculares de detecção de ácidos
também desempenhem um papel importante, so- nucléicos virais (RT-PCR) ou proteínas (imunois-
bretudo, na resolução da infecção primária. toquímica) têm sido implementadas na rotina la-
boratorial e permitem a detecção do agente em
6.1.5 Diagnóstico fluidos corporais, em tecidos frescos ou fixados.
Em casos de isolamento positivo (efeito cito-
O diagnóstico da enfermidade em eqüinos pático nos cultivos, doença neurológica e morte
deve considerar os aspectos clínicos (doença sis- nos camundongos), o agente deve ser identifica-
têmica progressivamente grave, podendo estar do por técnicas imunológicas, utilizando-se anti-
associada com sinais neurológicos), epidemioló- corpos monoclonais ou policlonais específicos. A
gicos (histórico da doença na região, presença e diferenciação entre sorotipos é particularmente
exposição a mosquitos vetores, outros eqüinos importante para diferenciar-se entre os VEEV
afetados). Sinais típicos de encefalite em regiões enzoóticos e epizoóticos. Nesses casos, a diferen-
endêmicas devem ser considerados potencial- ciação pode ser realizada por testes de HI e SN
mente suspeitos de infecção pelo VEEV e investi- ou por seqüenciamento de regiões específicas do
gados. No entanto, quadros de encefalite bem ca- genoma.
racterizados nem sempre estão presentes, o que
pode confundir a suspeita inicial. Além disso, 6.1.6 Controle e profilaxia
animais infectados pelo VEEV também podem
morrer subitamente, sem manifestar sinais clíni- A medida mais eficiente para prevenir a
cos evidentes. ocorrência de casos de VEE em regiões endêmi-
A enfermidade causada pelo VEEV pode ser cas é a vacinação sistêmica de eqüinos. Progra-
confundida com outras doenças que produzem mas oficiais de vacinação com distribuição gra-
manifestações neurológicas, como as encefalites tuita de vacinas têm sido implementados durante
do oeste (WEE) e do leste (EEE), pelo vírus do e após os surtos na Venezuela, Colômbia e Mé-
Nilo Ocidental (WNV), peste eqüina, tétano, rai- xico. Esses programas têm sido eficientes para
va, meningite bacteriana e algumas intoxicações. limitar a circulação de vírus e a ocorrência da
Essas doenças devem ser consideradas para o doença. Infelizmente, esses programas não são
diagnóstico diferencial. mantidos por longo tempo após os surtos. Como
O diagnóstico definitivo requer a realização conseqüência, a imunidade da população se re-
de testes sorológicos e/ou isolamento e identifi- duz gradativamente e atinge níveis baixos em 5 a
cação do vírus e/ou de antígenos virais. O diag- 10 anos e também pela substituição gradativa dos
nóstico laboratorial mais empregado em eventos animais imunizados.
epidêmicos é a sorologia. Testes imunoenzimáti- A vacina viva modificada TC-83 tem sido
cos de captura (ELISA), para detectar imunoglo- amplamente utilizada em vários países da Amé-
bulinas da classe IgM específicas para o VEEV, rica Latina e produz imunidade rápida e dura-
são utilizados no diagnóstico da infecção aguda. doura. Essa vacina foi obtida por 83 passagens do
A confirmação pode ser realizada por testes de VEEV em células de coração suíno e é produzida
soro-neutralização (SN) ou inibição da hemaglu- no México, Venezuela e Colômbia. É utilizada
tinação (HI) com amostras pareadas de soro. para vacinar eqüinos durante surtos e também
Togaviridae 609

em períodos sem atividade viral detectável e tam- antigênicos norte e sul-americanas com base em
bém para vacinar técnicos de laboratório que tra- testes de HI.
balham com o agente. Uma versão multivalente
inativada da TC-83, contendo também antígenos
do EEEV e WEEV, tem sido utilizada nos EUA e 6.2.1 Epidemiologia
em alguns países da América do Sul. A imunida-
de induzida por essa vacina deixa a desejar e, por O vírus é mantido em áreas alagadiças de
isso, não é recomendada para regiões endêmicas. água salgada ou doce, próximas à região costeira,
Recentemente, uma vacina geneticamente mani- em ciclos que envolvem várias espécies de pás-
pulada (cepa 3526) foi desenvolvida e, provavel- saros silvestres e uma espécie principal de mos-
mente, irá substituir a TC-83, tanto para eqüinos quito, o Culiseta melanura. Esse mosquito se ali-
como para humanos. menta apenas em aves e não transmite o agente
A limitação do movimento de eqüinos du- a outros hospedeiros. As aves infectadas normal-
rante os surtos não tem sido efetiva no controle mente não desenvolvem enfermidade. O EEEV,
desses eventos, pois os animais são assintomá- geralmente, aparece nas populações de pássaros
ticos durante um a três dias após a infecção. O no final da primavera, é amplificado pela trans-
controle de mosquitos por inseticidas aplicados missão entre pássaros durante o verão e atinge
por via aérea foi utilizado em alguns surtos que níveis muito altos no final do verão e no início do
apresentam envolvimento humano. A prevenção outono. Em algumas regiões, como o sul do esta-
da infecção humana pode ser obtida evitando-se do de New Jersey, esse ciclo ocorre durante todo
a exposição aos mosquitos vetores e pelo uso de o ano. Em alguns anos, a infecção permanece res-
repelentes. Essas medidas são particularmente trita aos pássaros sem o envolvimento de eqüi-
importantes para pessoas que vivem ou traba- nos e humanos. No entanto, sob certas condições
lham nas proximidades de eqüinos em regiões climáticas, as populações de vetores e vírus po-
endêmicas com grande atividade dos vetores dem ser amplificadas de tal maneira que propor-
(várzeas, florestas) e durante os surtos. cionem condições para que o vírus escape de seu
nicho ecológico. Nessas situações, mosquitos que
6.2 Encefalite eqüina do leste se alimentam em aves e em mamíferos podem
adquirir o vírus ao se alimentar em aves duran-
O vírus da EEE é um dos membros do com- te a fase virêmica e transmiti-lo a outras espécies
plexo das encefalites eqüinas, antigenicamente (principalmente eqüinos e humanos).
relacionado, mas distinto do VEEV e WEEV. O Os mosquitos de várzeas de água doce, Co-
agente tem sido identificado no Norte da Améri- quilletidia perturbans, e de água salgada, Ochlero-
ca do Sul, Brasil, América Central e Caribe, mas tatus sollicitans, são os principais transmissores
a infecção ocorre, principalmente, em várzeas e do agente aos eqüinos, e parecem se constituir
regiões pantanosas próximas ao litoral do ocea- no elo de ligação entre o ciclo silvestre e os ani-
no Atlântico e Golfo do México no Sudeste dos mais domésticos. Os eventos de escape do vírus
de seu habitat e a transmissão a outras espécies
Estados Unidos. O EEEV já foi esporadicamen-
podem ocorrer em níveis baixos ao longo do ano,
te detectado em áreas continentais mais internas
mas são mais freqüentes e epidemiologicamente
dos Estados Unidos. O envolvimento humano é
importantes da segunda metade do verão até o
esporádico, com apenas 163 casos tendo sido re-
início do outono. Nessa época, casos de enfermi-
portados nos EUA desde 1964. Por outro lado, os dade em pessoas, eqüinos e em outras espécies
eqüinos e também criações de aves domésticas de animais domésticos ocorrem com maior fre-
(faisões e emas) têm sido freqüentemente afeta- qüência. A transmissão aos eqüinos ocorre exclu-
dos. Outras espécies domésticas, como cães, têm sivamente pela picada de mosquitos que haviam
sido esporadicamente afetadas. Os vírus da EEE previamente realizado repasto sangüíneo em
são tradicionalmente classificados em variantes aves virêmicas.
610 Capítulo 23

Além do envolvimento de eqüinos, surtos 6.2.3 Diagnóstico


do EEEV têm sido descritos em criações de fai-
sões, emas, frangos de corte, marrecos-de-pe- O diagnóstico clínico-epidemiológico deve
quim e de algumas aves silvestres ameaçadas de ser confirmado por testes laboratoriais. A detec-
extinção. A infecção é introduzida e transmitida ção de IgM na fase aguda por testes imunoenzi-
nessas criações por mosquitos vetores. Índices máticos é o método de eleição. Sorologia pareada
consideráveis de morbidade, mortalidade e pre- por SN ou HI também podem ser realizadas. O
juízos econômicos têm sido relatados. Por isso, isolamento do vírus do sangue é dificultado pela
vacinas de uso eqüino têm sido utilizadas para transitoriedade da viremia. Detecção de ácidos
minimizar o impacto econômico e ecológico des- nucléicos virais no sangue ou em tecidos (por
ses eventos. PCR) e de proteínas em cortes de tecidos conge-
lados ou parafinizados (por imunoistoquímica)
também têm sido utilizados.
6.2.2 Patogenia e sinais clínicos
6.2.4 Controle e profilaxia
A infecção em eqüinos pode cursar com
uma variedade de manifestações clínicas, que A vacinação de eqüinos nas áreas endêmi-
vão desde infecção inaparente, doença sistêmica cas é o método mais eficiente de controle. Vacinas
sem sinais neurológicos, até doença neurológica monovalentes, bivalentes (+WEEV) e trivalentes
e morte. O período de incubação é de, aproxi- (WEEV+VEEV) inativadas têm sido utilizadas
madamente, cinco dias, após o qual os animais nessas áreas. Não há vacinas para uso humano.
começam a apresentar hipertermia, depressão, A prevenção da infecção humana deve basear-se
anorexia, sonolência e fraqueza. A doença neu- na prevenção à exposição aos vetores e no uso de
rológica é mais pronunciada e severa do que nas repelentes nas áreas endêmicas.
infecções pelo WEEV e VEEV e cursa com dis-
túrbios visuais (cegueira parcial ou total), fotofo- 6.3 Encefalite eqüina do oeste
bia, bruxismo, disfagia, incoordenação motora,
pressionamento da cabeça contra anteparos, an- A WEE é causada por um alfavírus (WEEV)
dar em círculos, ataxia, paralisia, coma e morte. antigenicamente relacionado com o EEEV (84%
Irritabilidade e agressividade também podem de homologia de aminoácidos) e pertencente ao
ocorrer. A taxa de letalidade pode atingir 90%. mesmo grupo antigênico do SIN. O WEEV pare-
Os animais que se recuperam após um curso leve ce ter se originado de recombinação entre o VEEV
podem apresentar seqüelas neurológicas. A pa- e um vírus do grupo do Sindbis. Tanto o WEEV
tologia é similar às outras encefalites, porém sem como o EEEV apresentam uma alta freqüência
o envolvimento do sistema linforreticular, como de mutações e recombinações. A caracterização
observado na infecção pelo VEEV. genética do WEEV tem sugerido que esses vírus
Em humanos, a infecção pode causar uma se originam de isolados enzoóticos por mutações
variedade de manifestações. A maioria dos indi- e seleção. Os vírus enzoóticos são aparentemen-
víduos infectados não apresenta sinais clínicos; te avirulentos para eqüinos. A enfermidade foi,
uma parcela apresenta sinais inespecíficos (hi- inicialmente, descrita nos Estados Unidos em
pertermia, cefaléia, calafrios, faringite); e poucos 1930. Em 1941, uma epizootia/epidemia atingiu
demonstram envolvimento neurológico, com 300.000 eqüinos e mais de 3.000 pessoas. Desde
febre abrupta, cefaléias severas, vertigens, rigi- então, eventos epidêmicos de pequenas propor-
dez na nuca, coma e morte. Aproximadamente ções ou casos isolados têm sido ocasionalmente
a metade destes pacientes vai a óbito. É comum relatados. De 1964 até 2005, foram descritos 639
(aproximadamente 35%) a ocorrência de seqüelas casos em pessoas. A maioria dos casos envolveu
neurológicas permanentes nos indivíduos que pessoas que vivem ou adquiriram a infecção no
sobrevivem à doença neurológica. meio rural, habitat dos reservatórios naturais do
Togaviridae 611

agente. Embora já tenha sido detectada em ou- leves (hipertermia, cefaléia e sonolência); rara-
tros países das Américas, a infecção pelo WEEV mente ocorrem sinais neurológicos severos, ence-
ocorre principalmente nas planícies e vales do falite e coma. A doença é geralmente mais branda
Centro e Oeste dos EUA e Sul do Canadá. do que a associada com o EEEV, mas é geralmen-
te mais grave em crianças, podendo atingir índi-
6.3.1 Epidemiologia ces de fatalidade de até 10%.

A expansão da agricultura irrigada nas pla- 6.3.3 Diagnóstico


nícies e vales da região Central e Oeste dos EUA
e no Canadá criou condições que favoreceram a O diagnóstico clínico-epidemiológico deve
perpetuação do agente. O WEEV é mantido em ser confirmado por testes laboratoriais. Os mes-
ciclos alternados em pássaros e outras aves sil- mos procedimentos utilizados para o VEEV são
vestres (e também domésticas) e insetos. Os mos- recomendados para a confirmação laboratorial
quitos do gênero Culex sp. parecem ser os princi- da infecção pelo WEEV.
pais vetores, embora os A. melanimon e A. dorsalis
também sejam vetores eficientes. A agricultura 6.3.4 Controle e profilaxia
irrigada e as condições climáticas apropriadas
favorecem a ocorrência de superpopulações de A vacinação de eqüinos com uma vacina
Culex tarsalis e a conseqüente manutenção da in- multivalente inativada (VEEV, EEEV e WEEV)
fecção. Pássaros silvestres que se alimentam de constitui-se na base dos programas de controle
grãos nessas lavouras constituem-se nos reser- em áreas endêmicas. A vacinação é, geralmente,
vatórios naturais e amplificadores do vírus. O realizada antes do verão, em duas doses, com in-
ciclo natural do agente envolve principalmente tervalo de 14 a 21 dias, seguidas de revacinações
pássaros, mas pode envolver também pequenos anuais. Em áreas de atividade de vetores durante
mamíferos silvestres. Os eqüinos e humanos são o ano inteiro, os potros devem ser vacinados aos
hospedeiros acidentais e parecem não participar 3-6 meses de idade e revacinados anualmente.
do ciclo de transmissão do agente. A capacidade Não há vacinas disponíveis de uso humano. Me-
do WEEV em replicar em mosquitos a tempera- didas de controle/prevenção em áreas endêmi-
turas relativamente baixas permite a ocorrência cas incluem a prevenção à exposição aos vetores
da infecção desde o início do verão até início do e/ou uso de repelentes. A maior atividade dos
outono, e também em algumas regiões do Cana- vetores ocorre no crepúsculo e durante a noite.
dá.
7 Bibliografia consultada
6.3.2 Patogenia e sinais clínicos
BRUNO-LOBO, G.; BRUNO-LOBO, M.; TRAVASSOS, J.;
A infecção de eqüinos pelo WEEV pode
PINHEIRO, F.; PAZIN, I. P. Estudos sobre arbovírus. III.
variar desde subclínica até encefalite de curso Isolamento de vírus sorologicamente relacionado ao sub-grupo
fatal. O quadro de encefalite é geralmente mais Weaster – Sindbis de um caso de encefalomielite eqüina no Rio
freqüente e mais característico do que nas infec- de Janeiro. An. Microbiol. v.9, pt.A, p. 183-1, 1961.
ções pelo VEEV, mas geralmente menos severo
CALISHER, C. H.; KINNEY, R. M.; DE SOUZA LOPES, O.;
do que na infecção pelo EEEV. As manifestações TRENT, D. W.; MONATH, T. H.; FRANCY, D. B. Identification
clínicas são semelhantes. A patogenia e patolo- of a new Venezuelan equine encephalitis virus from Brazil. Am.
gia são similares ao VEEV e EEEV, porém sem o J. Trop. Med. Hyg. v.31, n. 6, p. 1260-1272, Nov. 1982.

envolvimento linforreticular e sistêmico (fígado, FARRAR, M.D.; MILLER, D.L.; BALDWIN, C.A.; STIVER,
baço e sistema respiratório) observado nas infec- S.L.;HALL, C.L. Eastern equine encephalitis in dogs. J.Vet.
ções pelo VEEV. Os índices de fatalidade podem Diagn.Invest. v. 17, n. 6, p. 614-617, 2005.
atingir entre 20 e 40% dos animais afetados. FERREIRA, I. B.; PEREIRA, L. E.; ROCCO, I. M.; MARTI, A. T.;
A infecção humana é acidental e geralmente SOUZA, L. T. M.; IVERSSON, L. B. Surveillance of arbovirus
cursa de forma subclínica ou com sinais clínicos infections in the atlantic forest region, state of São Paulo, Brazil. I:
612 Capítulo 23

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CORONAVIRIDAE
Luciane Teresinha Lovato & Renata Dezengrini 24
1 Introdução 615

2 Classificação 615

3 Estrutura do vírion e do genoma 615

4 Replicação 618

5 Coronavírus de interesse veterinário 620

5.1 Vírus da gastrenterite transmissível dos suínos 620


5.1.1 Epidemiologia 621
5.1.2 Patogenia, patologia e sinais clínicos 621
5.1.3 Imunidade 622
5.1.4 Diagnóstico 622
5.1.5 Prevenção e controle 623

5.2 Coronavírus respiratório dos suínos 623


5.3 Vírus da diarréia epidêmica dos suínos 623
5.4 Vírus da encefalomielite hemaglutinante dos suínos 623

5.5 Coronavírus felino e vírus da peritonite infecciosa dos felinos 624


5.5.1 Epidemiologia 624
5.5.2 Patogenia, patologia e sinais clínicos 625
5.5.3 Imunidade 625
5.5.4 Diagnóstico 626
5.5.5 Prevenção e controle 626

5.6 Coronavírus canino 626


5.6.1 Epidemiologia 627
5.6.2 Patogenia, patologia e sinais clínicos 627
5.6.3 Imunidade 628
5.6.4 Diagnóstico 628
5.6.5 Prevenção e controle 628

5.7 Coronavírus canino respiratório 629


5.8 Coronavírus bovino 629
5.8.1 Epidemiologia 630
5.8.2 Patogenia, patologia e sinais clínicos 630
5.8.3 Imunidade 631
5.8.4 Diagnóstico 631
5.8.5 Prevenção e controle 631

5.9 Vírus da bronquite infecciosa das galinhas 632


5.9.1 Epidemiologia 632
5.9.2 Patogenia, patologia e sinais clínicos 632
5.9.3 Imunidade 633
5.9.4 Diagnóstico 634
5.9.5 Prevenção e controle 634

5.10 Coronavírus dos perus 634

6 Torovírus de interesse veterinário 635


6.1 Vírus Berne eqüino 635
6.2 Vírus Breda bovino 635

7 Coronavírus humanos 636

8 Bibliografia consultada 636


1 Introdução 2 Classificação

Os vírus da família Coronaviridae estão clas-


A família Coronaviridae possui dois gêneros: sificados na ordem Nidovirales, juntamente com
o Coronavirus e o Torovirus. Os Coronavirus são as famílias Arteriviridae e Roniviridae. Esses vírus
vírus RNA envelopados, possuem o maior geno- apresentam diferenças morfológicas, mas são
ma conhecido entre os vírus RNA e estão envol- agrupados nessa ordem por possuírem uma es-
vidos principalmente em doenças respiratórias e tratégia única e comum de replicação. A expres-
digestivas de animais e humanos. Em algumas são gênica desses vírus ocorre pela transcrição
enfermidades específicas, outras manifestações, de vários mRNAs subgenômicos, sintetizados a
como a poliserosite, miocardite, hepatite, encefa- partir de um RNA intermediário de polaridade
lomielite, nefrite e imunopatologias, podem estar negativa.
associadas com patógenos desse gênero. O enve- Os coronavírus são subdivididos em três
lope desses vírus apresenta longas espículas que grupos (grupos I, II e III), de acordo com a sua
dão à partícula viral um aspecto típico de coroa, reatividade sorológica. Dentro desses grupos, os
derivando daí o nome da família. Outro aspecto vírus são classificados de acordo com o seu hos-
importante desses vírus é o complexo mecanis- pedeiro natural, com a seqüência de nucleotídeos
mo de replicação viral, que inclui a produção de e relações sorológicas. Na Tabela 24.1, são apre-
RNAs mensageiros (mRNA) subgenômicos. Essa sentados os vírus que compõem os gêneros Coro-
forma complexa de replicação resulta em uma navirus e Torovirus.
alta freqüência de recombinações. Por essa razão,
muitos desses vírus apresentam uma grande va-
3 Estrutura do vírion e do genoma
riação antigênica, com a existência de vários so-
rotipos circulantes.
Importantes doenças víricas de animais do- Os coronavírus possuem vírions envelopa-
mésticos, como a bronquite infecciosa das gali- dos e pleomórficos cujo diâmetro pode variar de
nhas, a gastrenterite transmissível dos suínos e a 80 a 120 nm, apresentando um diâmetro médio
peritonite infecciosa dos felinos têm como agen- de 100 nm. A aparência desses vírus, quando
te etiológico algum dos coronavírus. O interesse observados na microscopia eletrônica (ME), deu
por essa família aumentou recentemente devido origem ao nome da família. Os vírions possuem
à classificação de um novo coronavírus humano, geralmente uma forma esférica, com o envelope
o vírus da pneumonia asiática (SARS-COV). Os circundado por peplômeros ou projeções exter-
coronavírus humanos conhecidos antes do apa- nas de aproximadamente 20 nm de extensão, que
recimento do vírus da SARS eram pouco patogê- conferem à partícula uma aparência similar a
nicos e, principalmente, envolvidos em resfriados uma coroa. Essas projeções externas são forma-
comuns. No gênero Torovirus, estão classificados das pelas glicoproteínas S da superfície do enve-
apenas dois vírus que causam doença em ani- lope viral. Na Figura 24.1, apresenta-se uma foto
mais. Os patógenos animais desse gênero causam de ME e um esquema da estrutura dos vírions da
diarréia, sendo que o vírus Berne (BEV) infecta família Coronaviridae.
eqüinos e o vírus Breda (BRV) infecta bovinos. A glicoproteína S apresenta uma massa mo-
Neste capítulo, serão discutidos alguns aspectos lecular entre 150 e 180 kd e possui três domínios;
gerais da família Coronaviridae e das doenças de um domínio externo maior, que, em algumas es-
interesse veterinário com ênfase para os vírus do pécies, é dividido em dois domínios (S1 e S2); um
gênero Coronavirus. Alguns tópicos específicos domínio transmembrana e um pequeno domínio
abordados para os vírus do gênero Torovirus se- interno. Essa glicoproteína é responsável pela li-
rão mencionados no texto. gação dos vírions aos receptores celulares, induz
616 Capítulo 24

Tabela 24.1. Classificação dos coronavírus em grupos de acordo com a reatividade sorológica.

Grupo antigênico Vírus Hospedeiro Doença

TGEV Suíno Gastrenterite

PRCoV Suíno Respiratória, subclínica

PEDV Suíno Gastrenterite


I
FIPV Gatos Peritonite

FCoV Gatos Enterite, assintomática


Coronavirus

CCoV Cães Enterite

HCoV-229E Humanos Resfriado comum

HEV Suíno Encefalite, definhamento

BCoV Bovino Gastrenterite


II
TCoV Perus Enterite

MHV Camundongos Hepatite

HCoV-OC43 Humanos Resfriado comum

III IBV Galinhas Traqueobronquite, nefrite

BToV Bovinos Subclínica

BRV Bovinos Gastrenterite


Torovirus

EToV Eqüinos Subclínica

BEV Eqüinos Gastrenterite

HToV Humanos Gastrenterite

PToV Suínos Subclínica

A B

E
S

RNA
N

Fonte: A) PHIL Library, CDC.

Figura 24.1. Vírions da família Coronaviridae. A) Microscopia eletrônica de vírions do SARS-Co B) Ilustração
esquemática de um vírion com os seus componentes. M: proteína de membrana; E, S: glicoproteínas do envelope; N:
nucleoproteína.; RNA: genoma.
Coronaviridae 617

a fusão do envelope com a membrana plasmática O genoma dos coronavírus é uma molécula
e apresenta importantes sítios antigênicos que in- de RNA de cadeia simples e polaridade positiva.
duzem a produção de anticorpos neutralizantes e O RNA genômico pode ter de 27 a 32 kb, sendo
induzem a resposta imune celular. o maior genoma entre os vírus RNA. A extremi-
No envelope, também estão presentes vá- dade 5’ do genoma possui uma estrutura cap e a
rias cópias da proteína M, que é uma proteína de extremidade 3’ é poliadenilada, como ocorre nos
membrana que possui um pequeno domínio ex- mRNA celulares. Nas proximidades da região 5’
terno, um domínio com três passagens através da do genoma se localiza uma seqüência de 65 a 98
membrana e um grande domínio interno. A pro- nucleotídeos denominada líder, seguida de uma
teína M interage com o nucleocapsídeo, atua na seqüência de 200 a 400 nt, que não é traduzida.
morfogênese e brotamento dos vírions e forma o Próxima à extremidade 3’ e imediatamente an-
revestimento do núcleo (core) do vírion. Recente- terior à região poliadenilada está presente uma
mente foi identificada outra pequena proteína do região não-traduzida (UTR) de 200 a 500 nt. A
envelope, que também parece estar envolvida na estrutura e organização do genoma dos corona-
morfogênese dos vírions no final da replicação, vírus está ilustrada esquematicamente na Figura
denominada proteína E, sobre a qual pouca infor- 24.2.
mação está disponível. As proteínas virais não-estruturais são codi-
Alguns coronavírus apresentam ainda a pro- ficadas na região mais próxima da extremidade
teína hemaglutinina-esterase (HE). A HE possui 5’ do genoma, enquanto as proteínas estruturais
atividade de acetilesterase e é responsável pela são codificadas próximas à extremidade 3’. Os
clivagem do ácido siálico. Essa proteína parece dois terços iniciais do genoma correspondem ao
não ser essencial para a replicação dos vírus, mes- gene L e codificam a polimerase viral (polimerase
mo naqueles que a possuem na sua superfície. Por de RNA dependente de RNA – replicase). Essa
outro lado, a presença da HE pode influenciar a região possui duas seqüências abertas de leitura
patogenicidade dos vírus em animais. A HE in- (ORFs) sobrepostas, que são traduzidas em uma
duz hemaglutinação e hemadsorção e, provavel- poliproteína no início do ciclo replicativo. Em to-
mente, contribui nos processos de penetração e dos os coronavírus, a seqüência de genes no ge-
liberação do vírus das células infectadas. noma é 5’ Pol – S – E – M – N 3’. Entre esses genes

0kb 30kb

5' L RNA genômico Pol


S E M N
3'UTR
AAAAn

RNA antigenômico
3' 5'

S AAAAn

E AAAAn
RNAs mensageiros
subgenômicos M AAAAn

N AAAAn

(Fonte: adaptada de Knipe et al. (2001)

Figura 24.2. Ilustração esquemática do genoma dos coronavírus. L) líder; Pol) gene da replicase; S) gene da
glicoproteína; E) gene da glicoproteína; M) gene da proteína de membrana; N) gene da proteína do nucleocapsídeo. O
RNA de sentido antigenômico e os mRNAs subgenômicos produzidos durante o ciclo replicativo estão ilustrados
abaixo. A proteína traduzida a partir de cada um desses mRNAs está indicada.
618 Capítulo 24

podem ser encontradas outras ORFs que codifi- Os vírions dos coronavírus são facilmente
cam algumas proteínas não-estruturais e também inativados por solventes lipídicos, agentes oxi-
a proteína HE. A presença dessas ORFs, a sua ex- dantes, formaldeído, detergentes e desinfetantes
tensão, a forma de expressão e a distribuição po- comuns. Os vírions das diferentes espécies de co-
dem variar entre os coronavírus. ronavírus apresentam também uma grande sen-
O genoma dos coronavírus está associado sibilidade ao calor e estabilidade ao pH ácido, e
com múltiplas cópias de uma fosfoproteína viral alguns são estáveis a pH 3.0. Os vírions possuem
(N), formando um nucleocapsídeo helicoidal. A uma massa molecular de aproximadamente
proteína N possui um domínio de associação ao 400x106, densidade Buoyant de 1.15 – 1.19 g/cm3
RNA que facilita sua ligação ao genoma viral. em sucrose e 1.23 – 1.24 g/cm3 em CsCl.
Essa proteína associa-se também à proteína M
no processo de morfogênese das partículas vi-
4 Replicação
rais. Em alguns vírus, foi demonstrado que o nu-
cleocapsídeo helicoidal está envolvido por uma
A primeira etapa da replicação dos corona-
estrutura interna de, aproximadamente, 65 nm de
vírus é a ligação dos vírions, pela glicoproteína S,
diâmetro, que possui uma forma aparentemente
aos receptores na membrana celular. Esses recep-
esférica, possivelmente icosaédrica (Figura 24.1).
tores já foram identificados para alguns corona-
Os coronavírus, a exemplo de outros vírus
vírus, mas ainda são desconhecidos para outros.
RNA, sofrem mutações freqüentes no seu geno-
Os vírus da gastrenterite transmissível dos suí-
ma em função dos erros cometidos pela RNA
nos (TGEV), da peritonite infecciosa felina (FIPV)
polimerase. Vários mutantes ts (sensíveis à tem-
e, provavelmente, o coronavírus canino (CCoV)
peratura) do vírus da hepatite dos camundongos
utilizam a aminopeptidase N como receptor. A
(MHV) já foram identificados. Além disso, alguns
aminopeptidase N é uma metaloprotease associa-
coronavírus que causam doenças em animais fo-
da à membrana plasmática. Alguns vírus, como o
ram originados a partir de deleções no genoma
de vírus preexistentes. Este é o caso do coronaví- coronavírus bovino (BCoV), que possuem a pro-
rus respiratório dos suínos (PRCoV), que se ori- teína HE no envelope, podem, ainda, utilizar o
ginou a partir do TGEV por uma deleção no gene ácido siálico como receptor.
que codifica a proteína S. O surgimento de cepas A penetração dos vírions na célula hospe-
mais virulentas do coronavírus felino entérico deira pode ocorrer por duas vias possíveis. Pode
(FCoV), responsáveis pela peritonite infecciosa ocorrer após endocitose, pela fusão do envelope
felina (FIP), também parece estar relacionado viral com a membrana da vesícula endocítica na
com deleções do genoma. presença de um pH ácido para alguns coronaví-
A alta freqüência de recombinação é outro rus (Figura 24.3). Outros coronavírus não neces-
aspecto importante na genética dos coronavírus sitam do pH baixo para a fusão e, nesses casos,
que pode ter reflexos importantes na patogenia e a penetração ocorre pela fusão do envelope com
na epidemiologia desses vírus. Embora os coro- a membrana plasmática na superfície da célula.
navírus não possuam um genoma segmentado, a O desnudamento do genoma ocorre logo após a
alta freqüência de recombinação provavelmente penetração e envolve mecanismos ainda não to-
possa ser explicada pela complexidade da repli- talmente esclarecidos. Provavelmente necessita
cação, envolvendo etapas de transcrição descon- da participação de fatores celulares.
tínua. O mecanismo de recombinação entre cepas Assim que o genoma é liberado no citoplas-
de campo já deu origem a diferentes subtipos do ma, o gene 1 (pol) é traduzido em uma polipro-
vírus da bronquite infecciosa das galinhas (IBV) teína, para a produção da replicase viral e outras
e alguns isolados de FCoV parecem ter se origi- enzimas envolvidas com a replicação do RNA.
nado da recombinação entre o vírus felino e o Apesar dos coronavírus possuírem um genoma
CCoV. Uma freqüência de recombinação de 25% de sentido positivo que serve como mRNA, os
para todo o genoma foi observada no MHV, um demais genes não são sintetizados pela tradução
dos coronavírus mais estudados. direta do RNA genômico. A polimerase viral re-
Coronaviridae 619

cém-sintetizada utiliza o RNA genômico como zida, embora alguns mRNA possuam duas ou
modelo para fazer uma cópia de RNA interme- três ORFs. Na extremidade 5’ de todos os mRNA
diário de sentido negativo. A partir deste RNA subgenômicos, encontra-se a seqüência líder, que
negativo serão produzidas cópias de RNA de ex- é idêntica à seqüência que é encontrada na extre-
tensão genômica – que serão, posteriormente, in- midade 5’ do RNA genômico. A seqüência líder
cluídas nas partículas virais – e cópias de mRNA apresenta, na sua extremidade 3’, uma seqüência
de 7 a 18 nt, homóloga a uma seqüência encontra-
subgenômicos, que serão traduzidos nas demais
da entre os genes do RNA genômico, denomina-
proteínas estruturais e não-estruturais necessá-
da seqüência intergênica ou seqüência associada
rias para a produção da progênie viral.
à transcrição (TAS). A TAS do vírus da hepatite
O número de mRNA subgenômicos pode murina (MHV) possui a seqüência UCUAAAC
variar de cinco a sete, dependendo do vírus. A ex- e a extremidade 3’ da seqüência líder desse ví-
tensão desses mRNA também é variável. Apenas rus consiste em várias repetições da seqüência
a ORF mais próxima da extremidade 5’ é tradu- UCUAA.

12

11
2

AAAAA
Golgi

4 5

7b
6 AAAAA

AAAAA RER
AAAAA
10
8 AAAAA

AAAAA

9
7a
AAAAA
Núcleo

Figura 24.3. Ilustração simplificada do ciclo replicativo dos coronavírus. 1) Ligação aos receptores celulares;
2) Internalização por endocitose (nem todos); 3) Penetração por fusão do envelope com a membrana
endocítica; 4) Tradução da região 5’ do genoma e produção da polimerase; 5) Síntese da cópia antigenômica;
6) Síntese dos mRNAs subgenômicos; 7a e 7b) Tradução dos mRNAs subgenômicos nas proteínas
estruturais; 8) Síntese do RNA genômico; 9) Conjugação do RNA genômico com proteínas do nucleocapsídeo;
10) Brotamento do nucleocapsídeo no RER ou Golgi; 11) Transporte da progênie viral em vesículas até a
membrana plasmática; 12) Egresso por exocitose.
620 Capítulo 24

O mecanismo da síntese dos mRNA subge- mente, por proteínas celulares associadas. Ini-
nômicos ainda não foi esclarecido, mas há três hi- cialmente acreditava-se que a replicação do RNA
póteses para explicá-lo. A primeira hipótese de- genômico deveria ocorrer de forma contínua,
nomina-se “transcrição iniciada pela seqüência utilizando um RNA de cadeia negativa comple-
líder”. Nesse caso, ocorreria inicialmente a trans- to como modelo, em oposição aos mRNA sub-
crição da seqüência líder a partir da cópia nega- genômicos produzidos na transcrição. Contudo,
tiva do RNA. Este transcrito se ligaria a qualquer evidências recentes demonstram que a síntese do
seqüência intergênica e serviria como primer ou RNA genômico também parece ocorrer de forma
iniciador para a transcrição do mRNA a partir descontínua, envolvendo uma seqüência líder.
dessa seqüência intergênica. A morfogênese dos vírions inicia-se com
Outra hipótese seria a “transcrição descontí- a associação de múltiplas cópias da proteína N
nua durante a síntese do RNA de cadeia negati- com o genoma viral e a formação do nucleocap-
va”. Nesse modelo, a polimerase que está sinteti- sídeo helicoidal. Em seguida, o nucleocapsídeo
zando a cópia de RNA negativa a partir do RNA interage com a proteína M nas membranas do
genômico faria uma parada em uma seqüência RE ou no complexo de Golgi, levando à formação
intergênica e, em seguida, saltaria para a extre- do envoltório interno do nucleocapsídeo e ao seu
midade 3’ da seqüência líder do RNA genômico empacotamento nas partículas que brotarão para
copiando esta região. Esse processo resultaria na o interior desses compartimentos. Para a forma-
produção de um mRNA subgenômico negativo ção da partícula viral, a proteína E atua em con-
que serviria de modelo para cópias de RNA po- junto com a proteína M. Os vírions brotam a par-
sitivo. tir de uma estrutura especializada de membrana,
Evidências experimentais suportam essas localizada entre o RE e o complexo de Golgi. Os
duas hipóteses. Uma terceira hipótese também coronavírus se acumulam em vesículas, que são
tem sido descrita, embora seja menos provável, transportadas até a membrana plasmática, e são
na qual mRNA subgenômicos seriam incorpora- liberados por exocitose. Todas as etapas do ciclo
dos ao vírion juntamente com o RNA genômico. replicativo ocorrem no citoplasma. O ciclo repli-
Assim, os mRNA trazidos nos vírions serviriam cativo dos coronavírus está representado esque-
de modelo para a síntese de cópias negativas, que maticamente na Figura 24.3.
seriam, então, copiadas em novos mRNAs.
A tradução dos mRNA subgenômicos ocor- 5 Coronavírus de interesse
re em ribossomos associados à membrana dos veterinário
retículos endoplasmáticos (RE) ou livres no cito-
plasma. Após a tradução, as proteínas são pro- A seguir, serão abordadas as principais co-
cessadas de acordo com sua finalidade, podendo ronaviroses de animais, de acordo com a espécie
ser fosforiladas, glicosiladas e/ou clivadas. A tra- afetada.
dução das proteínas estruturais S, M e HE é reali-
zada por ribossomos na membrana do RE. Essas 5.1 Vírus da gastrenterite transmissível
proteínas são, posteriormente, glicosiladas e a dos suínos
proteína S é clivada em S1 e S2 em alguns corona-
vírus. A proteína N é traduzida por ribossomos O TGEV produz uma doença entérica alta-
livres no citoplasma e é fosforilada em seguida. mente contagiosa em leitões, descrita pela pri-
A proteína E passa por um processo de acilação meira vez, nos Estados Unidos, em 1946. Esse ví-
e localiza-se na região perinuclear de células in- rus pertence ao grupo I dos coronavírus e apenas
fectadas. um sorotipo do vírus foi identificado até o pre-
A replicação do RNA ocorre em complexos sente. O vírus apresenta relação antigênica com
de replicação associados com membranas intraci- o coronavírus canino (CCoV), vírus da peritonite
toplasmáticas. Aparentemente, esses complexos infecciosa felina (FIPV), coronavírus entérico fe-
são formados pelas proteínas virais e, possivel- lino (FCoV), coronavírus humano (HCoV), vírus
Coronaviridae 621

da diarréia epidêmica dos suínos (PEDV) e com o PCRV desenvolveriam imunidade cruzada con-
coronavírus respiratório dos suínos (PRCOV). tra o TGEV. De fato, experimentos realizados
Essas relações antigênicas resultam em rea- com a inoculação do PRCOV e posterior desafio
ções sorológicas cruzadas entre os vírus. No en- com o TGEV demonstraram que pode haver pro-
tanto, apesar da semelhança antigênica, foram teção cruzada entre esses vírus.
observadas várias diferenças na biologia dos ví- O TGEV é transmitido principalmente pela
rus, tanto in vitro como in vivo. O CCoV e o TGEV via fecal-oral, pelo contato direto entre animais
replicam em células de origem canina e felina, ou pela contaminação da ração, utensílios, ve-
entretanto o CCoV e o FIPV não replicam em cé- ículos ou pessoas. A transmissão por aerossóis
lulas suínas, nas quais o TGEV replica. A infecção ou por meio de pássaros contaminados também
experimental de leitões com o FIPV resultou em deve ser considerada. Ainda não está claro como
diarréia e lesões intestinais típicas de TGE, mas o vírus é mantido durante as estações quentes,
a infecção de leitões com o CCoV não provocou mas a ocorrência de infecções subclínicas em
manifestações na maioria dos casos, tendo sido algumas propriedades (na forma endêmica da
observado apenas uma atrofia leve das vilosida- doença), a existência de outros hospedeiros e a
des de alguns animais. existência do estado de portador na espécie suína
A partícula viral do TGEV difere um pouco têm sido consideradas.
dos demais coronavírus porque apresenta uma
estrutura de núcleo (core) interno de aproxima- 5.1.2 Patogenia, patologia e sinais
damente 65 nm, envolvendo o nucleocapsídeo clínicos
helicoidal. A forma dessa estrutura não é bem
definida, mas, aparentemente, é icosaédrica. No A patogenia da TGE é típica dos coronaví-
genoma do TGEV, além dos genes descritos ante- rus entéricos, cuja replicação restringe-se ao trato
riormente, estão presentes outros três genes que digestivo. O TGEV penetra pela via oral e é con-
codificam proteínas não-estruturais. Dois desses duzido até o intestino delgado (ID), resistindo ao
genes são denominados 3a e 3b e estão localiza- pH baixo e às enzimas proteolíticas do trato di-
dos entre os genes das proteínas S e M. O outro gestivo. O vírus replica nas células epiteliais das
gene recebeu o número sete e localiza-se entre o vilosidades do ID, provocando distúrbios funcio-
gene da proteína N e a região 3’UTR. nais e destruição dessas células. Esses distúrbios
resultam na redução da atividade enzimática no
5.1.1 Epidemiologia ID, na interrupção dos processos digestivos nor-
mais e no transporte de nutrientes e eletrólitos.
A TGE é uma doença prevalente no Hemis- Esses aspectos caracterizam a síndrome da má-
fério Norte, principalmente em áreas de produ- absorção que ocorre na doença. Ocorre também
ção suína intensiva dos Estados Unidos e em al- uma alteração no transporte de sódio no jejuno,
guns países da Europa. Nessas regiões, a doença tendo como conseqüência o acúmulo de líquido
ocorre de forma sazonal durante o inverno, o que e eletrólitos no lúmen intestinal, o que contribui
é atribuído à alta estabilidade do vírus em bai- para a produção da diarréia. Outra disfunção
xas temperaturas e à incidência solar reduzida. observada é o extravasamento de proteínas plas-
No Brasil, já houve o registro de ocorrência da máticas. A desidratação e acidose metabólica são
doença, mas esta não é comumente encontrada as mais prováveis causas da morte. A principal
na população suína brasileira. lesão observada no intestino é o achatamento ou
Nos últimos anos, foi observada uma redu- atrofia das vilosidades, que é evidente particular-
ção na incidência da TGE em países europeus, e mente no jejuno, mas pode estar presente também
os pesquisadores estão atribuindo essa redução no íleo e, com menor freqüência, no duodeno.
à circulação endêmica do PRCOV na população A TGE pode se manifestar nas formas epi-
suína. Os animais que entram em contato com o dêmica e endêmica. A forma epidêmica é mais
622 Capítulo 24

freqüentemente observada e caracteriza-se pela provaram que a neutralização do vírus ocorre no


propagação muito rápida da doença na proprie- lúmen do intestino pelos anticorpos adquiridos
dade, com alta mortalidade de leitões de até duas pela ingestão de colostro ou leite, evitando assim
semanas de idade. Isso contrasta com os sinais a infecção das células epiteliais. Essa forma de
leves e sem mortalidade observados em animais imunidade foi denominada “imunidade lactogê-
adultos. Os animais apresentam anorexia, letar- nica”. A presença de IgG sistêmica parece não ter
gia, diarréia, perda de peso e vômito. A infecção papel importante na proteção contra a doença.
em neonatos resulta em rápida desidratação e a A resposta imune celular provavelmente
taxa de mortalidade é de aproximadamente 100%. desempenhe um papel importante na imuni-
Essa taxa é reduzida com o aumento da idade dos dade ativa contra o TGEV. Apesar dos diversos
leitões, até as duas semanas. As fêmeas em lacta- estudos, o papel dos linfócitos T-auxiliares (Th)
ção podem apresentar febre, anorexia, agalaxia, e citotóxicos (Tc) foi pouco esclarecido. O envol-
diarréia e vômito, que pode estar associada com vimento de linfócitos Th na indução da prolife-
o contato com a prole infectada ou também com ração de linfócitos B e síntese de anticorpos foi
aspectos endócrinos específicos da fase de lacta- sugerido pela identificação de três epitopos para
ção. Essa forma da doença geralmente se resolve essas células na proteína viral N. Por outro lado,
em duas a três semanas na propriedade. observou-se um aumento no número de células
A forma endêmica da doença é menos fre- NK e Tc em leitões infectados com o TGEV, su-
qüente e se manifesta com sinais clínicos seme- gerindo a sua participação na resposta imune
lhantes, porém mais brandos do que os observa- contra esse vírus. Evidências da participação da
dos na forma epidêmica. Essa forma ocorre em imunidade celular através de linfócitos Th, Tc e
propriedades em que a infecção é mantida pela células NK foram também observadas em testes
introdução contínua de animais susceptíveis. A de uma vacina que possui um vetor baculovírus
taxa de mortalidade é baixa, atingindo 10 a 20% que expressa as proteínas S, N e M do TGEV.
dos animais. Nesse caso, os leitões geralmente
apresentam a doença entre os seis dias de idade 5.1.4 Diagnóstico
até duas semanas após o desmame. As fêmeas
lactantes não apresentam sinais clínicos e trans- O diagnóstico presuntivo deve basear-se nas
ferem imunidade aos leitões. manifestações clínicas e nos aspectos epidemioló-
gicos da doença. O diagnóstico definitivo necessi-
5.1.3 Imunidade ta a realização de testes laboratoriais de detecção
de vírus ou de antígenos virais. A imunofluores-
Anticorpos contra o TGEV podem ser de- cência (IFA), realizada em cortes de criostato ou
tectados no soro aos 14 dias após a infecção, per- em esfregaços de mucosa intestinal, é a técnica
sistindo por seis meses e, possivelmente, até por mais usual de diagnóstico. A imunoperoxidase
anos. Anticorpos das classes IgM, IgG e IgA estão (IPX) também tem sido utilizada em alguns ca-
presentes. Os animais que se recuperam são con- sos. O isolamento do vírus geralmente é um pro-
siderados protegidos contra o vírus, entretanto, cesso demorado e, muitas vezes, infrutífero, mas
em alguns casos, essa proteção pode ser incom- pode ser realizado em células de tireóide ou de
pleta. testículos suínos, nas quais a replicação viral re-
A proteção parece estar relacionada com a sulta na produção de efeito citopático. A detecção
presença de IgA no lúmen intestinal, o que foi de antígenos virais nas fezes também pode ser
comprovado pela observação de que leitões nas- realizada pelo uso de um ensaio imunoenzimáti-
cidos algumas semanas após um surto de TGE co (ELISA). A microscopia eletrônica (ME) não é
não eram afetados pelo vírus. Essa proteção se- recomendada para a detecção do TGEV, porque
ria conferida pelo contínuo suprimento de IgA não há como diferenciá-lo do PEDV. A sorologia
no colostro e no leite de fêmeas que sofreram a pareada (coleta de duas amostras de soro, uma
infecção recentemente. Estudos posteriores com- no início da infecção e outra 14 dias após) tam-
Coronaviridae 623

bém pode ser um auxílio ao diagnóstico. A detec- grande eficiência. Atualmente o vírus é endêmi-
ção de anticorpos pode ser feita pelas técnicas de co na Europa e em algumas regiões dos Estados
soroneutralização (SN) e ELISA. Unidos. Na grande maioria dos casos, os animais
são infectados e ocorre soroconversão logo após
5.1.5 Prevenção e controle o desmame. Em condições experimentais, a ino-
culação do vírus em leitões que não receberam o
colostro reproduziu a doença respiratória; no en-
O controle da doença deve enfatizar princi-
tanto, a infecção a campo parece ser geralmente
palmente a prevenção da introdução do agente
subclínica. O vírus se propaga através de aeros-
na propriedade. Isso pode ser obtido pela adoção
sóis e pode percorrer longas distâncias quando
de medidas como: adquirir animais somente de
transportado pelo vento. O controle da infecção
fontes sabidamente negativas e evitar a introdu-
é muito difícil pela sua facilidade de propagação
ção de material, equipamento ou pessoal prove-
e contágio, e não existem vacinas disponíveis.
niente de propriedades com a doença. Existem
Como a infecção por esse vírus não representa
algumas vacinas contendo o vírus atenuado ou
um grande problema sanitário e econômico, não
inativado disponíveis no comércio de outros pa-
existem maiores preocupações com o desenvolvi-
íses. O esquema mais utilizado nas regiões que
mento de vacinas ou com o seu controle.
apresentam a infecção é a vacinação das porcas
prenhes com a vacina atenuada algumas semanas
5.3 Vírus da diarréia epidêmica dos
antes do parto. No entanto, as vacinas utilizadas
suínos
até o presente têm sido pouco efetivas na preven-
ção da doença. Vacinas de subunidades e vacinas
A diarréia epidêmica dos suínos é uma do-
recombinantes em vetores virais estão em fase de
ença clinicamente semelhante à TGE, e os ani-
pesquisa e desenvolvimento.
mais infectados apresentam uma diarréia aquosa
Uma medida considerada efetiva para o como a principal manifestação clínica. Esta do-
controle é a exposição de porcas prenhes algu- ença tem sido descrita apenas na Europa e em
mas semanas antes do parto ao vírus encontrado alguns países da Ásia. Existe só um sorotipo do
nas fezes de animais infectados. Esse procedi- PEDV, incluído no grupo I dos coronavírus, que
mento é conhecido como “infecção controlada” e não apresenta relação antigênica com os demais
consiste na introdução oral de fezes ou porções coronavírus suínos ou de outras espécies. A úni-
intestinais de animais infectados nas porcas. Essa ca relação antigênica detectada até o presente
prática, quando aplicada, deve possuir o acom- foi com a proteína do nucleocapsídeo do FIPV.
panhamento de um médico veterinário. Animais de todas as idades podem desenvolver
a doença, e a taxa de mortalidade pode atingir
5.2 Coronavírus respiratório dos suínos até 50% em neonatos e em leitões com idade infe-
rior a três semanas. No entanto, em alguns casos,
pode chegar a 80%. A taxa de mortalidade mais
O coronavírus respiratório dos suínos
baixa e a lenta propagação da doença no rebanho
(PRCoV) foi inicialmente identificado em granjas
(semanas) são consideradas as principais diferen-
que não apresentavam histórico clínico de TGE,
ças epidemiológicas entre essa doença e a TGE.
mas os suínos testados apresentaram sorologia
Não existem vacinas ou estratégias de controle
positiva para o TGEV. O PRCoV apresenta apro-
específicas descritas para a doença.
ximadamente 96% de homologia com o TGEV
e também pertence ao grupo I dos coronavírus.
Essas características explicam a reação soroló- 5.4 Vírus da encefalomielite
gica cruzada entre esses vírus. Aparentemente, hemaglutinante dos suínos
o PRCoV evoluiu a partir do TGEV, por dele-
ções na região que codifica a glicoproteína S. O O vírus da encefalomielite hemaglutinante
PRCoV apresenta tropismo por células do siste- dos suínos (HEV) já foi descrito no Canadá, nos
ma respiratório, replicando nesses tecidos com Estados Unidos e em alguns países europeus e
624 Capítulo 24

asiáticos. Mesmo nos locais onde a presença da 5.5.1 Epidemiologia


infecção foi demonstrada, a ocorrência da doen-
ça parece ser baixa. O vírus apresenta apenas um Os coronavírus felinos infectam membros da
sorotipo, que é responsável pela produção de di- família Felidae, causando desde infecções subclí-
ferentes síndromes clínicas e pertence ao grupo nicas até a forma mais severa da doença, que é a
II dos coronavírus. A infecção pode resultar em peritonite infecciosa (FIP). A infecção pelo FCoV
encefalite aguda ou em uma síndrome de vômi- é muito comum em gatos domésticos, o que foi
to e definhamento (vomiting and wasting disease, demonstrado pela alta soropositividade na po-
VWD). No primeiro caso, além de anorexia e le- pulação felina de diversos países. Anticorpos
targia, são observados sinais neurológicos, tais contra o vírus foram detectados em 80 a 90% das
como: tremores musculares, paresia posterior amostras coletadas em gatis, e em 10 a 50% das
progressiva, hiperestesia, cegueira, coma e mor- amostras coletadas em residências que possuíam
te. A síndrome do vômito e definhamento ocorre um único gato, nos Estados Unidos e Europa. No
de forma crônica e caracteriza-se por anorexia, le- Brasil, são escassos os dados sobre a prevalência
targia, vômito, perda progressiva de peso e cons-
e distribuição do agente na população felina. Em
tipação. Ambas as manifestações são observadas
São Paulo, somente uma dentre 22 amostras de
apenas em leitões nascidos de mães sorologica-
soro e efusão pleural ou peritoneal de 10 gatos
mente negativas, quando são infectadas nas pri-
e um leão foi positiva por PCR. Em um estudo
meiras semanas de vida. A infecção ocorre pela
realizado nos arquivos do Departamento de Pa-
via nasal, por aerossóis ou por contato direto. Na
tologia da Universidade Federal de Santa Maria,
encefalomielite, o vírus replica na mucosa nasal e
foram diagnosticados 13 casos de PIF entre 638
daí se propaga para os nervos periféricos e para o
gatos necropsiados no período de 1970 a 2001.
encéfalo. Na síndrome do vômito e definhamen-
Os animais infectados excretam o vírus em
to, o vírus replica inicialmente na mucosa nasal e
altos títulos nas fezes, sendo a rota fecal-oral a
propaga-se para as tonsilas, trato respiratório su-
forma mais freqüente de transmissão. O RNA do
perior, encéfalo e estômago. Nas regiões em que
vírus já foi detectado em fezes de gatos saudá-
o agente está presente, a infecção ocorre de forma
endêmica e não existem vacinas disponíveis para veis, infectados natural ou experimentalmente
o seu controle. por períodos prolongados. Em alguns gatos, a
infecção é transitória e o vírus será erradicado do
organismo dentro de alguns meses após a infec-
5.5 Coronavírus felino e vírus
ção. Aproximadamente 13% dos gatos permane-
da peritonite infecciosa dos felinos
cem infectados cronicamente, como portadores
saudáveis, excretando o vírus por períodos pro-
O coronavírus felino (FCoV) pertence ao
longados, possivelmente por toda vida. Apenas 5
grupo I dos coronavírus e apresenta dois bióti-
pos, classificados pelas diferenças de patogenici- a 10% dos gatos soropositivos para o FCoV irão
dade. O biótipo mais freqüente é o coronavírus desenvolver a forma severa da doença.
felino entérico (FCoV), que causa diarréia leve em A presença do vírus já foi demonstrada em
gatos. O outro biótipo é o agente etiológico da pe- populações de felinos selvagens de vida livre ou
ritonite infecciosa felina (FIPV), uma doença de cativos. Em estudos realizados na África, 25%
curso fatal. Dois sorotipos de coronavírus felinos dos felídeos selvagens foram positivos para anti-
foram identificados, denominados coronavírus corpos no soro ou ácido nucléico viral nas fezes.
felino tipos I e II, de acordo com as característi- O guepardo, que é uma espécie em risco de extin-
cas antigênicas dos isolados de FCoV e FIPV. Os ção, é muito susceptível ao vírus, e animais des-
dois sorotipos possuem isolados de casos de FIP, sa espécie apresentam a forma clínica da doença
e a grande maioria dos coronavírus felinos tem com maior freqüência do que gatos domésticos.
sido classificada como sorotipo I, porém alguns Entre os gatos domésticos, foi observada
isolados de FIPV são encontrados no sorotipo II, uma incidência mais alta da FIP em animais de
que é composto, em sua maioria, por isolados en- raça pura quando comparados com as raças mis-
téricos. tas. A doença ocorre com maior freqüência em
Coronaviridae 625

animais entre os seis meses e cinco anos de idade, ma clássica, também chamada de efusiva ou úmi-
sendo mais comum em animais com menos de da; a forma seca ou não-efusiva ou a combinação
um ano. de ambas. Na forma efusiva, ocorre um aumen-
to progressivo do volume do abdome devido ao
acúmulo de líquido viscoso e amarelado na cavi-
5.5.2 Patogenia, patologia e sinais
dade abdominal (ascite). A quantidade de líqui-
clínicos
do é variável, podendo atingir até um litro.
A cavidade torácica também pode apresen-
O coronavírus felino entérico infecta as cé-
tar efusão pleural, que pode resultar em sinais de
lulas epiteliais das vilosidades intestinais, provo-
insuficiência respiratória. Icterícia pode estar pre-
cando a sua destruição, apresentando manifes-
sente se houver envolvimento do fígado. A forma
tações clínicas de diarréia e má-absorção. Após
seca da doença caracteriza-se pela presença de le-
a infecção inicial, com a apresentação ou não de
sões piogranulomatosas em um ou mais órgãos.
manifestações clínicas, o vírus permanece repli-
Os animais com essa forma da doença podem
cando no intestino e sendo excretado nas fezes. A
apresentar sinais de insuficiência hepática ou re-
habilidade do FIPV de replicar em macrófagos e
nal e doença pancreática. Distúrbios neurológicos
invadir os tecidos intestinais e o sangue foi consi-
derada a responsável pela diferença na patogenia e lesões oculares também têm sido descritos.
dos dois biótipos do vírus. Essa diferença foi ob-
servada em cultivos de macrófagos peritoneais, 5.5.3 Imunidade
nos quais os isolados virulentos infectaram um
número maior de macrófagos e produziram tí- Observações clínicas e experimentais de-
tulos mais altos quando comparados com os iso- monstraram que animais que apresentam anti-
lados avirulentos. Entretanto, tem sido demons- corpos contra o coronavírus felino desenvolvem
trada a presença do vírus no sangue de animais uma forma mais aguda e severa da doença quan-
que não desenvolveram a forma severa da doen- do reinfectados. Essa forma é conhecida como
ça, por longos períodos após a infecção inicial. A síndrome da morte súbita. Nesses animais, as ma-
presença do vírus no sangue e nos tecidos levaria nifestações clínicas e lesões surgem rapidamente
à replicação contínua, propiciando o surgimento e eles apresentam também um período menor de
de cepas mutantes com virulência aumentada. sobrevivência.
A mutação do FIPV é muito bem documentada O papel dos anticorpos preexistentes na
e consiste em uma deleção de aproximadamente patogenia da doença ainda não está totalmente
300 bp na extremidade 3’ do genoma. Essa mu- esclarecido, mas acredita-se que esses anticorpos
tação foi detectada em vários isolados de tecidos facilitariam a replicação do vírus e levariam a
de felinos que morreram da forma clínica da FIP uma severidade maior da doença. A replicação
e de gatos em que a doença foi induzida experi- mais eficiente do vírus estaria associada com
mentalmente. A hipótese mais aceita é a de que o uma maior capacidade de infectar macrófagos,
FIPV origina-se a partir de mutações do FCoV no por causa do fenômeno da ADE (antibody depen-
animal infectado. dent-enhancement), que consiste na facilitação da
A infecção pelo coronavírus pode produzir penetração viral em macrófagos em função da
enterite leve, mas a maioria dos casos de infecção presença dos anticorpos. Nesse caso, os comple-
experimental ou natural cursa sem manifesta- xos vírus-anticorpo seriam ligados por receptores
ções clínicas. Alguns animais infectados podem Fc de membrana do macrófago, o que facilitaria
desenvolver a forma severa da doença: a FIP, ca- a sua penetração nas células. Em outras palavras,
racterizada pela debilitação progressiva, que cul- ao invés de proteger, os anticorpos aumentariam
mina com a morte do animal. Os sinais iniciais a eficiência da penetração e replicação viral.
não permitem a diferenciação de outras doenças A manifestação ou não dos sinais clínicos
sistêmicas dos felinos e incluem perda de peso, da FIP estariam ligados à resposta imune celular.
anorexia, febre crônica, letargia e debilidade. A Animais que apresentam uma resposta imune
FIP pode ocorrer sob três formas distintas: a for- celular eficiente não desenvolvem a doença. Por
626 Capítulo 24

outro lado, animais que desenvolvem uma res- la por toda a vida, em razão da ampla dissemina-
posta imune celular parcial apresentam a forma ção do vírus.
não efusiva da doença. Os animais que não apre- O controle da doença pelo uso de vacinação
sentam resposta imune desenvolvem a forma é um ponto polêmico. Até o momento já foram
efusiva da doença. produzidas várias vacinas que falharam em con-
ferir proteção. Vacinas produzidas com vírus se-
5.5.4 Diagnóstico melhantes ao FCoV, como o coronavírus huma-
no, canino e suíno, foram testadas sem sucesso. O
O diagnóstico da FIP no animal vivo apre- maior problema para a produção de vacinas é o
senta dificuldades e deve basear-se mais na inves- possível papel dos anticorpos na exacerbação dos
tigação clínica do que em testes laboratoriais. A sinais clínicos (ADE). Este efeito foi observado em
detecção de anticorpos por IFA e ELISA tem sido testes vacinais realizados com o FCoV atenuado
amplamente aplicada mundialmente em labora- e também com um vírus vaccinia recombinante,
tórios de diagnóstico. São considerados positivos expressando a proteína S.
para o vírus os animais com títulos moderados A indução de uma forte resposta imune ce-
a altos. Entretanto, felinos que apresentam sinais lular parece ser o ponto crítico para a prevenção
clínicos podem ser soronegativos; assim como da doença. Vacinas com plasmídeos DNA ou ve-
animais que nunca apresentaram manifestações tores virais carreando genes que expressam pro-
clínicas podem ter títulos altos de anticorpos. teínas internas do vírus como a M (membrana)
Então, mesmo que o diagnóstico sorológico seja e a N (nucleocapsídeo) têm sido sugeridas para
amplamente utilizado, não deve ser considerado induzir preferencialmente resposta celular e, as-
definitivo. A apresentação de títulos altos de anti- sim, minimizar o risco de ADE.
corpos e de sinais clínicos compatíveis com a FIP Atualmente existe uma vacina comercial
pelo animal deve ser considerada importante. Se disponível. Esta vacina foi produzida com um ví-
o felino apresenta títulos baixos ou é soronegati- rus mutante ts e protegeu gatos contra a FIP; en-
vo, a FIP deve ficar no final da lista das suspeitas. tretanto, a sua eficácia e segurança seguem sendo
Até há pouco tempo, o diagnóstico definitivo só temas de debate.
era possível após a morte do animal, pela patolo-
gia e histopatologia. Atualmente é possível reali- 5.6 Coronavírus canino
zar o diagnóstico através de técnicas de biologia
molecular, e vários protocolos de RT-PCR já fo- O coronavírus canino (CCoV) está associado
ram descritos. com surtos esporádicos de enterite em cães. O ví-
rus foi isolado, pela primeira vez, na Alemanha,
5.5.5 Prevenção e controle em 1971, a partir das fezes de cães com enterite.
Desde então, esse agente tem sido amplamente
O controle e prevenção da infecção pelo detectado em cães clinicamente saudáveis ou em
FCoV são complicados pelo fato de o vírus estar cães que apresentam vômitos e diarréia severa.
amplamente disseminado na população felina. As características gerais de estrutura e do
Algumas recomendações foram elaboradas no ciclo de replicação do CCoV são semelhantes aos
II Simpósio de Coronavírus Felino e Peritonite descritos para a família Coronaviridae. O CCoV
Infecciosa Felina, realizado na Escócia, em 2002. pertence ao grupo I dos coronavírus e também é
Uma das medidas recomendadas é o isolamento propenso a recombinações no genoma. Os genes
de gatas prenhes duas a três semanas antes do das proteínas M e S, que possuem importantes
parto, com a subseqüente quarentena da gata e propriedades biológicas e imunológicas, são os
dos filhotes, e desmame dos filhotes com a idade principais locais de recombinação. Diferenças na
de quatro a seis semanas. O objetivo desse pro- seqüência de nucleotídeos desses genes indicam
cedimento seria, principalmente, o de retardar a a existência de uma diversidade genética entre
ocorrência da infecção, pois é muito difícil evitá- cepas de referência e isolados de campo. Alguns
Coronaviridae 627

autores sugerem a existência de dois genótipos: latrans Say), as hienas (Crocuta crocuta) e os lobos
o CCoV tipo I e o CCoV tipo II. Alguns isolados (Canis lupus). Além dos cães e outros canídeos,
altamente virulentos já foram identificados, as- gatos domésticos também podem ser infectados,
sociados com altos índices de mortalidade. Esses demonstrando soro-conversão, porém sem o de-
relatos demonstram a necessidade de se investi- senvolvimento de sinais clínicos.
gar as possíveis implicações dessas variações an-
tigênicas na eficácia das vacinas contra o CCoV. 5.6.2 Patogenia, patologia e sinais
5.6.1 Epidemiologia clínicos

Cães de todas as idades e raças são susceptí- A infecção dos cães ocorre pela via fecal-
veis à infecção pelo CCoV. No entanto, os filhotes oral. Após a ingestão, o CCoV atinge o intestino
são mais sensíveis e freqüentemente desenvol- delgado e replica nas células epiteliais das vilo-
vem sinais clínicos de enterite, além de apresen- sidades, e a sua excreção nas fezes se inicia entre
tarem índices maiores de mortalidade. A doença um e dois dias após a infecção. O vírus passa pelo
ocorre com maior freqüência em canis, abrigos e estômago, resistindo ao pH ácido, e, após a re-
locais onde há convívio entre os cães. O vírus é plicação no epitélio do duodeno, dissemina-se na
altamente contagioso e dissemina-se rapidamen- superfície intestinal até o íleo. Não foi demons-
te na população canina. trada a replicação do vírus no cólon. O vírus
A principal fonte do vírus são as fezes de pode se disseminar aos linfonodos mesentéricos
cães infectados, além de fômites contaminados, e, ocasionalmente, alcança o baço e o fígado. Os
e a infecção ocorre principalmente pela via oral. sinais clínicos se iniciam entre um e quatro dias
O vírus pode ser excretado nas fezes por até duas após a infecção.
semanas após a infecção, porém alguns estudos Como a mortalidade é geralmente baixa, as
demonstraram a eliminação por longos períodos necropsias não são freqüentes. Macroscopica-
(entre 37 e 180 dias). Cães sem manifestações clí- mente, o intestino delgado encontra-se dilatado,
nicas também podem excretar o vírus nas fezes o conteúdo é líquido e de coloração amarelada
por períodos prolongados. ou esverdeada. A mucosa intestinal encontra-se
Há evidências sorológicas de que o CCoV hiperêmica e, em alguns casos, hemorrágica. Os
apresenta distribuição mundial. Dados de preva- linfonodos mesentéricos podem estar edemacia-
lência são variáveis e alguns fatores que podem dos.
interferir nos resultados desses estudos são lis- Microscopicamente, a replicação viral resul-
tados a seguir: a) pequeno número de amostras ta em atrofia e fusão das vilosidades intestinais,
testadas; b) uso de diferentes técnicas de detecção depressão das criptas, achatamento das células
de anticorpos; c) presença de amostras de soro de epiteliais, aumento na celularidade da lâmina
cães vacinados; e d) maior importância da imuni- própria e aumento de células globosas.
dade local após a infecção natural. Os cães infectados podem apresentar sinais
Estudos de prevalência, realizados na Aus- leves a moderados de enterite. As manifestações
trália, demonstraram que 15,8% dos cães que mais freqüentemente observadas são: diarréia,
convivem com até outros dois cães no mesmo do- vômito, desidratação, perda de apetite, letargia,
micílio apresentavam anticorpos contra o CCoV; o que, ocasionalmente, levam os cães jovens à
enquanto 40,8% dos animais mantidos em canis morte. A infecção conjunta com outros vírus
eram soropositivos. Inquéritos sorológicos, re- (parvovírus, adenovírus ou vírus da cinomose),
alizados na Itália, detectaram 90,8% de animais bactérias ou parasitas geralmente produz uma
positivos; na Inglaterra, 76%; na Turquia, 74,3%; forma mais severa e até mesmo fatal da doença.
e, no Japão, 44,1%. No Sul do Brasil, um estudo O estresse é outro fator que pode agravar as ma-
com cães não-vacinados de Santa Maria detectou nifestações clínicas. Quando não ocorre agrava-
50,4% (412/817) amostras positivas. mento dos sinais, a recuperação clínica acontece
A infecção pelo CCoV também foi demons- após uma semana de infecção. Embora o CCoV
trada em outros animais, como os coiotes (Canis não seja freqüentemente associado com doença
628 Capítulo 24

respiratória em caninos, um estudo recente relata células primárias de rim, timo e membrana sino-
a presença de um coronavírus em cães com sinais vial canina. As células de linhagem de rim canino
respiratórios. O agente identificado nesses casos, A-72 são particularmente susceptíveis ao CCoV,
no entanto, provavelmente seja um novo corona- além de células de embrião e de linhagem de rim
vírus canino. felino (CRFK). O vírus produz efeito citopático
caracterizado pela formação de sincícios; a con-
firmação da identidade do agente é realizada por
5.6.3 Imunidade
IFA. Esta técnica também pode ser realizada em
criosecções de intestino. Existem kits baseados
A infecção pelo CCoV é restrita ao intestino em cromatografia para a detecção de antígenos
e geralmente não ocorre viremia. Portanto, os tí- do CCoV em fezes de cães.
tulos de anticorpos produzidos em resposta à in- As técnicas de RT-PCR e RT-PCR em tem-
fecção são geralmente baixos. Em inoculações ex- po real realizadas diretamente das fezes também
perimentais, a presença de IgM foi inicialmente têm sido utilizadas, principalmente em pesqui-
detectada no plasma três dias após a inoculação. sas. Testes de vacinas experimentais demonstra-
Já a IgG foi detectada entre o 4º e o 7º dia pós-ino- ram que essas técnicas detectam quantidades me-
culação. Anticorpos neutralizantes contra o vírus nores de vírus excretadas nas fezes, por períodos
podem ser detectados a partir de dez dias após a maiores, quando comparadas com o isolamento
infecção, e pequenas quantidades de IgG, IgM e viral.
IgA podem ser detectadas no duodeno. A sorologia é de pouca utilidade, em termos
A infecção natural e a vacinação com vacina de diagnóstico, por dois fatores: a) o coronavírus
viva atenuada pela via oronasal induzem altos está muito distribuído na população canina e a
níveis de IgA no intestino. Estas imunoglobulinas infecção, muitas vezes, é subclínica; b) a detecção
estão diretamente relacionadas com a proteção de anticorpos no soro não indica exposição recen-
contra a infecção pelo CCoV. Vacinas atenuadas, te ao vírus. A sorologia pareada poderia ser útil,
aplicadas pela via oral, conferem maior proteção, demonstrando soroconversão. Para a detecção de
pois a resposta imune mediada por IgA, associa- anticorpos no soro, são utilizadas as técnicas de
da à mucosa, previne a adsorção do CCoV às cé- SN, IPX e ELISA. Um kit de ELISA que detecta
lulas epiteliais das vilosidades intestinais. IgM está disponível comercialmente, para uso
A imunidade materna é capaz de proteger em clínicas e consultórios; a presença desta imu-
os neonatos por um período variável, que depen- noglobulina no soro indica infecção recente pelo
de do título de anticorpos que a mãe transfere aos CCoV.
filhotes. Há descrições de duração da imunidade
passiva por quatro a cinco semanas; no entan- 5.6.5 Prevenção e controle
to, os estudos a respeito da duração da resposta
imune ao CCoV são escassos. Para a prevenção da infecção e doença pelo
CCoV, deve-se evitar o contato de cães soronega-
5.6.4 Diagnóstico tivos com cães infectados. Condições de estresse,
causadas pela falta de sanidade, aglomeração,
A detecção do vírus nas fezes ou no intestino desmame e infecções concomitantes por parasi-
constitui-se na forma mais objetiva de diagnósti- tas e outros vírus favorecem o desenvolvimento
co, diferenciando-a da enterite por outros agentes, de enterite nos cães infectados. No meio ambien-
como o parvovírus, o rotavírus e os picornavírus. te, o vírus é facilmente inativado pelo calor e por
O diagnóstico laboratorial é freqüentemente re- solventes lipídicos. No entanto, em temperaturas
alizado por ME a partir das fezes. O isolamento baixas, pode manter-se infeccioso por longos pe-
do vírus não é muito utilizado, entretanto dife- ríodos. O CCoV é estável sob pH ácido, sobrevi-
rentes laboratórios obtiveram sucesso utilizando vendo a um extremo de pH 3.0.
Coronaviridae 629

O tratamento da enterite pelo CCoV é de Este coronavírus foi isolado de uma popu-
suporte e baseia-se na restituição do equilíbrio lação canina abrigada em um centro de recolhi-
hídrico-eletrolítico, além do controle de infecções mento de cães de rua na Inglaterra. Os animais
bacterianas e parasitárias concomitantes. apresentavam sinais clínicos semelhantes à tra-
Existem várias vacinas multivalentes que queobronquite infecciosa canina, também conhe-
possuem antígenos do CCoV inativados. No en- cida como “tosse dos canis”. No entanto, a do-
tanto, a eficácia dessas vacinas é questionável ença respiratória não foi controlada com vacinas
pela importância da imunidade local na mucosa comerciais contra essa síndrome, aplicadas pre-
intestinal, uma vez que vacinas inativadas não viamente ao diagnóstico laboratorial do surto.
induzem a produção de IgA local. Anticorpos A análise filogenética indicou que este ví-
no soro não são capazes de prevenir a infecção, rus, denominado coronavírus canino respiratório
apenas reduzem a gravidade da doença, e isto só (CRCV), apresenta uma grande homologia com
ocorre a partir de três semanas após a aplicação os coronavírus respiratórios de bovinos (BCoV,
das vacinas. A existência de diversidade anti- 98,8%) e humanos (HCoV-OC43, 98,4%), perten-
gênica entre cepas e isolados do CCoV também centes ao grupo II do gênero coronavírus, e peque-
compromete a eficácia das vacinas inativadas na homologia com o CCoV (cepa 1-71, 68,53%),
contra o CCoV. que é classificado no grupo I. Além disso, consta-
Vacinas vivas atenuadas já foram testadas, tou-se a presença do gene da hemaglutinina este-
e resultados promissores foram demonstrados rase (HE) na cepa respiratória; uma característica
através da aplicação oral em uma única dose. dos coronavírus pertencentes ao grupo II. Caso
Cães vacinados pela via oral apresentaram títu- esses dados sejam confirmados, este vírus deverá
los mais altos de IgA do que cães vacinados pela ser classificado dentro da família Coronaviridae,
via intramuscular. Após o desafio, os cães que re- como um coronavírus canino distinto do CCoV.
ceberam a vacina pela via oral não excretaram o Embora estudos de prevalência sejam es-
vírus nas fezes, enquanto os cães vacinados pela cassos, um trabalho recentemente publicado de-
via intramuscular excretaram o vírus por um pe- monstrou soropositividade de 17,8% (160/898)
ríodo médio de 10 dias. Em outro estudo seme- para o CRCV em cães no Japão. Um estudo re-
lhante, testando uma vacina inativada, aplicada trospectivo demonstrou que amostras de soro
pela via intramuscular, os animais excretaram o coletadas de cães, já em 1998, apresentavam anti-
vírus nas fezes por um tempo médio de 11 dias. corpos contra o vírus, sugerindo a existência pré-
Uma vacina atenuada foi licenciada, em 1983, nos via do CRCV em cães daquele país.
Estados Unidos, mas a comercialização foi proi-
bida logo em seguida devido ao grande número
5.8 Coronavírus bovino
de reações adversas. Essas reações foram obser-
vadas principalmente quando a vacina foi apli-
cada em conjunto com vacinas atenuadas para o O coronavírus bovino (BCoV) é um agente
parvovírus, vírus da cinomose e adenovírus. envolvido principalmente com diarréia em be-
zerros, mas também pode estar envolvido em
5.7 Coronavírus canino respiratório doença respiratória em bezerros e com diarréia
em bovinos adultos. Esse vírus está amplamente
Desde a década de 1970, descreve-se a exis- disseminado na população bovina e foi identifi-
tência do coronavírus canino (CCoV), associado cado, pela primeira vez, em casos de diarréia em
com doença entérica. Ao contrário de vários co- bezerros nos Estados Unidos, em 1973.
ronavírus de outras espécies, que são associados O BCoV possui uma morfologia típica dos
com sinais respiratórios. No entanto, relatos re- coronavírus, com diâmetro aproximado de 120
centes sugerem um coronavírus como agente nm, e apresenta a proteína hemaglutinina-estera-
etiológico de doença respiratória em cães. se (HE) no envelope, além das proteínas S, M e
630 Capítulo 24

E, sendo classificado como um coronavírus tipo 5.8.2 Patogenia, patologia e sinais


II. O genoma possui aproximadamente 32 kb e clínicos
a glicoproteína S do envelope é clivada em duas
subunidades: S1 e S2. A manifestação clínica mais comum da in-
fecção pelo BCoV é a diarréia em bezerros de três
5.8.1 Epidemiologia a 21 dias de idade, embora o vírus possa infec-
tar e causar doença animais com até três meses.
A infecção pelo BCoV resulta em alta mor- A doença é caracterizada pela presença de fezes
bidade e baixa mortalidade entre os animais in- líquidas no intestino, leite coagulado nas fezes,
fectados. As fezes são consideradas a maior fonte febre, debilidade, depressão e desidratação seve-
de vírus infeccioso, mas os animais infectados ra. O choque e a morte podem ocorrer caso não
podem excretar o vírus também nas secreções sejam adotadas medidas de controle e tratamento
nasais. de suporte.
O BCoV é endêmico na população bovina, Outra doença atribuída à infecção pelo BCoV
e anticorpos contra o vírus podem ser detecta- é a disenteria de inverno, que ocorre em regiões
dos em grande parte da população. Evidências frias, nas quais os animais são estabulados duran-
indicam que o vírus é mantido nos rebanhos em te o período de frio ou criados em confinamentos.
bezerros e vacas que apresentam infecção clínica Essa doença caracteriza-se por diarréia aguda, fé-
ou crônica. O estado de portador e infecção per- tida e, muitas vezes, sanguinolenta em animais
sistente também têm sido sugeridos, mas ainda jovens e adultos. Também se observa a redução
não foram comprovados. Infecções recorrentes na produção de leite, depressão e anorexia.
no mesmo animal também podem ocorrer. O BCoV tem sido isolado também de bezer-
Estudos epidemiológicos demonstraram a ros confinados que apresentam sinais de doença
presença desse vírus em vários países. O BCoV respiratória. No entanto, a participação do agente
foi detectado nas fezes de 28,1% dos animais tes- na produção de doença respiratória ainda não é
tados em um inquérito na Turquia. Na Coréia, o totalmente comprovada. A inoculação intranasal
BCoV foi detectado em 32 propriedades com ani- com as cepas virais de origem respiratória indu-
mais que apresentavam sinais clínicos da disen- ziu diarréia, mas não induziu sinais respiratórios.
teria de inverno. Nos Estados Unidos e no Cana- Por outro lado, a vacinação de bezerros contra o
dá, a presença do BCoV tem sido freqüentemente BCoV reduziu a prevalência de doença respira-
descrita nas secreções nasais e fezes de bovinos tória, sugerindo um papel do vírus na enfermi-
confinados que apresentam sinais de doença res- dade.
piratória. Anticorpos contra esse vírus foram de- O vírus penetra pela via oral e atinge o intes-
tectados em 89% das amostras de leite de 2.236 tino pela via digestiva, onde replica em enteróci-
propriedades testadas na Suécia. tos das vilosidades da porção distal do intestino
No Brasil, foram realizados poucos estu- delgado e também em uma pequena extensão do
dos de prevalência, mas a presença do vírus já cólon. A diarréia ocorre como conseqüência da
foi demonstrada no estado de São Paulo. Setenta má-absorção e distúrbios da atividade intestinal,
e duas amostras fecais de bezerros com diarréia provocados pela atrofia das vilosidades induzida
foram coletadas em várias propriedades, e 39% pela replicação viral. Ocorre uma rápida perda
delas foram positivas para o vírus. O BCoV tam- de água e eletrólitos, o metabolismo da glicose
bém foi detectado em amostras fecais de bovinos e da lactose podem ser alterados, ocorrendo hi-
adultos com diarréia durante o inverno, sugerin- poglicemia e acidose lática, podendo resultar em
do a ocorrência da forma de disenteria de inver- choque e morte.
no no rebanho brasileiro. Embora o número de Até o presente momento não foi possível
estudos seja reduzido, é provável que a infecção identificar diferenças sorológicas ou moleculares
esteja amplamente difundida no rebanho bovino definitivas entre as cepas que causam as manifes-
brasileiro, a exemplo do que ocorre em outros pa- tações entéricas daquelas associadas com sinais
íses. respiratórios.
Coronaviridae 631

Inoculações experimentais em vacas e be- da alta incidência da doença em bezerros a partir


zerros demonstraram que as mesmas cepas de do quinto dia de vida.
BCoV podem causar diarréia em terneiros e di-
senteria de inverno em animais adultos. Estudos 5.8.4 Diagnóstico
comparativos indicaram que os vírus isolados do
trato respiratório ou do intestino foram capazes A diarréia neonatal em bezerros é uma sín-
de replicar em ambos os tecidos de bezerros ino- drome de etiologia complexa com o possível en-
culados. A inoculação experimental com a cepa volvimento de coronavírus, rotavírus, bactérias
respiratória resultou em doença entérica em be- entéricas (E. coli e Salmonella spp.), protozoários
zerros privados de colostro. e parasitas. Esses agentes podem produzir a do-
Na necropsia, pode-se observar os intestinos ença isoladamente ou em conjunto. Na maioria
distendidos com fezes líquidas e moldadas por dos casos, as manifestações clínicas são muito
muco no cólon. Na histopatologia, observa-se semelhantes, o que dificulta a realização do diag-
atrofia severa das vilosidades do intestino del- nóstico diferencial com a determinação da causa
gado, com descamação do epitélio e substituição específica. Por essa razão, o diagnóstico etiológi-
das células epiteliais de absorção por células ima- co definitivo requer a realização de provas labo-
turas com morfologia cubóide. ratoriais.
A ME realizada nas fezes é a opção mais in-
dicada para a realização do diagnóstico. A IFA
5.8.3 Imunidade também pode ser aplicada para a pesquisa de
antígenos do vírus no intestino. O isolamento do
A resposta imune humoral de bovinos à in- vírus pode ser realizado em células primárias de
fecção pelo BCoV foi estudada em animais com a rim bovino ou em células da linhagem Vero. O
forma respiratória da doença e também pela ino- isolamento requer o tratamento prévio do inócu-
culação experimental em bezerros privados de lo com tripsina, para facilitar a penetração e repli-
colostro. Alguns dias após a infecção, são detec- cação viral. Os isolados de campo são difíceis de
tados anticorpos contra as proteínas estruturais isolar e, geralmente, requerem várias passagens
S, HE, N e M. Anticorpos com atividade neutra- para adaptação ao cultivo celular antes de pro-
lizante são direcionados contra as glicoproteínas duzirem efeito citopático. A técnica de RT-PCR
de superfície S e HE. Após a inoculação da cepa também tem sido utilizada para o diagnóstico do
respiratória, o final da excreção viral nas secre- BCoV.
ções nasais coincidiu com o aparecimento de
anticorpos neutralizantes, sugerindo um impor- 5.8.5 Prevenção e controle
tante papel desses anticorpos na erradicação da
infecção. O papel da imunidade celular na prote- A prevenção completa da infecção pelo
ção contra o BCoV é desconhecido. BCoV não é possível, mas boas condições de ma-
A neutralização do vírus no lúmen intesti- nejo e higiene podem reduzir as conseqüências
nal por IgA, parece ser a forma mais efetiva de da infecção. Atenção especial deve ser dispensa-
proteção contra a diarréia neonatal. Nesse caso, da para a sanidade durante o parto. Vacinas vi-
a imunidade passiva é de grande importância na vas modificadas estão disponíveis no mercado e
proteção dos bezerros nos primeiros dias de vida. a sua aplicação é recomendada, quando o BCoV
Imunoglobulinas das classes IgG1, IgG2 e IgA são está presente na propriedade, em vacas prenhes
detectadas no colostro de vacas com altos títulos e em recém-nascidos. A vacinação das vacas ob-
de anticorpos contra o BCoV. A queda na quanti- jetiva induzir altos títulos de anticorpos e, assim,
dade de anticorpos na transição de colostro para aumentar o nível de imunidade passiva transmi-
leite tem sido apontada como uma possível causa tida pelo colostro.
632 Capítulo 24

5.9 Vírus da bronquite infecciosa das As aves infectadas são as maiores fonte de
galinhas infecção e contaminação no meio ambiente. Após
a recuperação da doença clínica, algumas aves
A infecção pelo vírus da bronquite infecciosa permanecem persistentemente infectadas, excre-
das galinhas (IBV) foi descrita pela primeira vez tando o vírus por um longo período nas fezes e
no estado da Dakota do Norte, nos Estados Uni- em aerossóis. O local de persistência ainda não
dos, em 1931. Essa infecção pode manifestar-se foi definido, mas o tecido renal é um possível
por distúrbios respiratórios, reprodutivos e/ou candidato.
renais. O IBV é o vírus protótipo da família Co-
ronaviridae, pertence ao grupo III dos coronavírus 5.9.2 Patogenia, patologia e sinais
e, como outros membros dessa família, apresenta clínicos
uma grande variação nos antígenos de superfície,
o que implica na existência de vários sorotipos e O vírus replica inicialmente no trato respi-
subtipos. Essa característica biológica resulta em ratório, de onde se dissemina pelo sangue para
várias conseqüências, principalmente em relação vários órgãos. Além do trato respiratório, o vírus
a patogenia e epidemiologia desse vírus. tem sido isolado também dos ovidutos, rins e tra-
to intestinal. O vírus pode ser encontrado tam-
5.9.1 Epidemiologia bém na bursa de Fabricius, o que poderia explicar
os efeitos imunossupressivos do IBV.
O IBV está presente em todos os países que Os achados macroscópicos mais freqüen-
possuem avicultura comercial ou doméstica. Sur- temente observados são a presença de exsudato
tos da doença podem ocorrer mesmo em popula- seroso, catarral ou caseoso na traquéia, fossas na-
ções vacinadas. As cepas Massachussets (Mass) sais, brônquios e, eventualmente, nos sacos aére-
e Connecticut (Conn) são consideradas padrão os. Em aves de postura, o material fluido da gema
para o vírus, sendo, assim, utilizadas em várias pode ser encontrado na cavidade abdominal, em
vacinas. Em alguns países, vários sorotipos do ví- função do rompimento do ovo em formação e
rus estão circulando na população avícola, o que das lesões permanentes no oviduto. Quando a
dificulta o diagnóstico e controle. cepa possui nefrotropismo, os rins podem apre-
A galinha é considerada a principal e úni- sentar-se pálidos e edemaciados, com deposição
ca espécie naturalmente susceptível ao vírus e de uratos nos túbulos e ureteres.
que desenvolve a doença. Entretanto, isolados Microscopicamente podem ser observadas:
de coronavírus muito semelhantes ao IBV têm infiltração linfóide, hiperplasia, edema, descama-
sido associados com doença respiratória e renal ção e perda de cílios no epitélio respiratório. A in-
em criações comerciais de faisões. Os coronaví- tensidade das lesões pode variar de acordo com a
rus isolados de perus não produzem doença em virulência da cepa. No tecido renal, pode ser ob-
galinhas e vice-versa. servada nefrite intersticial aguda ou subaguda.
O IBV é transmitido principalmente por A forma respiratória da doença é a mais co-
aerossóis, mas as aves se infectam também pela mum e caracteriza-se por respiração ofegante,
ingestão de água e alimentos contaminados com associada com acúmulo de material caseoso na
material fecal. O vírus é muito contagioso e é en- siringe; tosse, estertores, espirro e descarga nasal
contrado em altos títulos na traquéia de aves do- em aves jovens. O consumo de água e alimento é
entes e nas fezes de aves em recuperação. O vírus reduzido e, como conseqüência, o ganho de peso
pode sobreviver por dias ou até semanas no meio também fica reduzido. Em aves com idade su-
ambiente, principalmente sob baixas temperatu- perior a seis semanas, os sinais são semelhantes,
ras. Os sinais clínicos se desenvolvem dentro de porém a descarga nasal é observada com menor
18 a 36 horas após o contato com as aves infecta- freqüência. Nessas aves, a infecção pode passar
das. A infecção é geralmente resolvida em apro- despercebida. Em aves de postura, são obser-
ximadamente 14 dias. vadas a queda na produção e da qualidade dos
Coronaviridae 633

ovos, além de sinais respiratórios. É comum a induzir proteção contra o vírus. Os principais
postura de ovos com casca mole, deformada ou determinantes antigênicos do IBV encontram-se
mesmo sem casca, devido às lesões produzidas em regiões das glicoproteínas S1 e S2. Peptídeos
nos ovidutos. Essas lesões podem ser produzi- recombinantes construídos com seqüências da S1
das de forma permanente em aves jovens e, neste e S2 induziram resposta imune humoral, celular
caso, o problema somente será detectado na épo- e proteção frente ao desafio; enquanto peptídeos
ca de postura. da proteína N não induziram proteção, apesar da
Algumas cepas do IBV apresentam um tro- indução de anticorpos e linfócitos T.
pismo maior pelo tecido renal, produzindo lesões O papel dos anticorpos na proteção é contro-
proeminentes nos rins. As aves infectadas por es- verso, uma vez que alguns pesquisadores encon-
sas cepas apresentam depressão, penas arrepia- traram boa correlação entre títulos de anticorpos
e proteção; enquanto outros não encontraram
das e aumento no consumo de água. A urolitíase
correlação alguma. Anticorpos das classes IgG
pode ser uma das conseqüências da infecção.
e IgA foram detectados na lágrima, em lavados
A taxa de mortalidade da doença respirató-
traqueais e no oviduto, e também nos conteúdos
ria é geralmente baixa e se deve, principalmente,
cecais e duodenais de aves inoculadas com o ví-
a complicações por infecções bacterianas secun-
rus. Estes anticorpos foram detectados já aos sete
dárias, principalmente por Escherichia coli. Em
dias após a inoculação.
alguns casos, foram observados edema facial, ae-
A proteção conferida pela imunização com
rosaculite e uma taxa de mortalidade um pouco a proteína recombinante S1 não foi correlaciona-
mais elevada. A infecção com cepas de patoge- da com títulos de anticorpos. Da mesma forma,
nicidade mista, que causam lesões na traquéia e altos níveis de anticorpos na secreção lacrimal
rins, pode induzir mortalidade de até 25%. não determinaram proteção contra o desafio vi-
Além das perdas por ganho de peso reduzi- ral. Por outro lado, a importância dos anticorpos
do e mortalidade, a infecção pelo IBV em frangos na resolução da infecção ficou demonstrada em
de corte leva ao aumento na condenação de car- experimentos que detectaram um aumento na se-
caças durante o abate. veridade da doença produzida pelo IBV em aves
bursectomizadas, quando comparadas com aves
normais. Reforçando esta hipótese, títulos altos
5.9.3 Imunidade de anticorpos neutralizantes na secreção nasal
desempenharam importante papel na proteção
Os mecanismos imunes, associados com a contra a reinfecção.
eliminação e proteção contra o IBV, ainda não es- Evidências para a participação da resposta
tão esclarecidos, mas os diferentes ramos da res- celular vieram da detecção de linfócitos Tc espe-
posta imune parecem estar envolvidos em maior cíficos para o IBV em secreções respiratórias de
ou menor grau. A resposta imune inata através aves infectadas. A importância dessas células na
do interferon (IFN) e a resposta imune adaptativa proteção contra o IBV ficou demonstrada pela
através de anticorpos e linfócitos T parecem de- transferência passiva de linfócitos Tc de aves in-
sempenhar um papel importante. fectadas para pintos, que foram posteriormente
O grande número de sorogrupos e sorotipos desafiados. Os pintos que receberam essas cé-
é um fator complicador na indução da proteção lulas ficaram parcialmente protegidos, apresen-
contra esse vírus. As aves naturalmente infecta- tando uma forma mais branda da doença. Esses
das ou vacinadas com o IBV estarão protegidas resultados indicam que, embora os Tc pareçam
contra o vírus homólogo, mas a proteção cruzada possuir um papel importante, este não é o único
contra cepas heterólogas é variável. mecanismo atuante na proteção contra o vírus.
Evidências indicam que a resposta imune A imunidade passiva transferida da galinha
protetora é induzida principalmente por antí- para o pinto confere alguma proteção contra vírus
genos da superfície do vírus. Estudos realiza- homólogo. Pintos com títulos altos de anticorpos
dos com as proteínas S1, N e M demonstraram foram eficientemente protegidos no primeiro dia
que apenas os epítopos de S1 foram capazes de de vida, mas não apresentaram a mesma prote-
634 Capítulo 24

ção aos sete dias de idade. Neste caso, a proteção sido cada vez mais utilizadas. Essas técnicas per-
apresentou uma correlação significativa com a mitem a obtenção de resultados mais acurados
presença de níveis altos de anticorpos no sistema quando se objetiva identificar diferentes cepas
respiratório, mas não no soro. do vírus.
Para a detecção de anticorpos contra o IBV,
5.9.4 Diagnóstico podem ser empregados os testes de inibição da
hemaglutinação (HI), SN, IDGA e ELISA. A so-
O diagnóstico laboratorial do IBV pode ser rologia é complicada pela grande quantidade de
realizado pelo isolamento e identificação do ví- sorotipos existentes que apresentam antígenos
rus. O material mais adequado para o isolamento específicos de grupo e específicos do sorotipo. A
viral é a traquéia, cujo material pode ser coletado técnica de ELISA é rotineiramente utilizada para
com o auxílio de suabes ou fragmentos de teci- monitoramentos e pesquisa e detecta antígenos
do durante o exame post-mortem. Fragmentos dos de grupo. A SN e HI são consideradas sorotipo-
rins e dos ovidutos também são indicados para específicas.
o isolamento, pois o vírus pode replicar nesses
tecidos. Suabes cloacais e tonsilas cecais também 5.9.5 Prevenção e controle
podem ser coletados.
O método mais utilizado para o isolamento O controle da bronquite infecciosa é realiza-
do vírus é a inoculação na cavidade alantóide de do pela vacinação, com vacinas atenuadas admi-
embriões de galinha com nove a onze dias. As al- nistradas na água, em aerossóis ou diretamente
terações produzidas pelo vírus são o nanismo e na conjuntiva. Vacinas inativadas de aplicação
congestão dos vasos sangüíneos, visíveis ao exa- individual também são utilizadas. Grande parte
me em ovoscópio. Em muitos casos, são necessá- das vacinas contém a cepa Massachussets, por
rias três a quatro passagens para se observar as ter sido este vírus inicialmente isolado de vários
lesões. Algumas cepas do vírus podem matar os países. Em alguns países, são incluídas cepas lo-
embriões em 48 a 72 horas. O isolamento através cais, por causa da grande variação antigênica do
de uma ou no máximo duas passagens de 24 ho- vírus.
ras em ovos embrionados, com posterior detec- As aves de corte são geralmente vacinadas
ção por RT-PCR, é uma estratégia que tem sido com um ou sete dias de idade e não recebem re-
bastante utilizada por vários laboratórios. forço. Para aves de postura, são recomendados
Outra forma de isolar o vírus é a inoculação diferentes protocolos de vacinação, com uma va-
em explantes de anel traqueal de pintos de um cinação inicial no pinto (um ou sete dias) e um
dia. Nesse caso, a presença do vírus será detec- ou mais reforços durante o período de postura.
tada pela ciliostase (parada do movimento ciliar) Não é recomendada a aplicação da primeira dose
que ocorre dois a três dias após a inoculação. A de vacina no pinto de um dia pela possibilidade
utilização de cultivos celulares não é recomenda- de interferência da imunidade passiva. Não obs-
da para o isolamento, porque é necessária uma tante, este é um procedimento freqüentemente
adaptação prévia dos vírus aos cultivos. A pro- utilizado.
pagação do IBV em cultivos celulares é utilizada
somente para a realização de técnicas sorológicas 5.10 Coronavírus dos perus
e pesquisas com cepas adaptadas.
A identificação do vírus pode ser realizada O coronavírus dos perus (turkey coronavirus
por IFA, IPX, ME ou imunodifusão em gel de – TCoV) é o agente etiológico da doença conheci-
ágar (IDGA). ELISA utilizando anticorpos mo- da como Bluecomb Disease (doença da crista azul),
noclonais pode ser aplicada para detectar o vírus sendo classificado como um coronavírus grupo
e também para determinar os sorotipos no flui- II. O TCoV foi inicialmente isolado em criatórios
do alantóide ou cultivos de traquéia. As técnicas do estado americano de Minessota, na década de
moleculares, como RT-PCR e nested-PCR, têm 1950. Posteriormente, o agente foi identificado
Coronaviridae 635

em várias regiões daquele país, no Canadá e na 6 Torovírus de interesse veterinário


Austrália. A doença caracteriza-se por uma en-
terite que cursa com diarréia, anorexia, depres- Os torovírus têm sido detectados em huma-
são e perda de peso. Perus de todas as idades são nos com gastrenterite (HToV) e em suínos (PToV),
susceptíveis, mas a doença é mais freqüente em além de bovinos e eqüinos. São conhecidos dois
peruzinhos com poucas semanas de vida. A mor- torovírus que infectam bovinos: o torovírus bo-
talidade é variável e depende de outros fatores, vino (BToV) e o vírus breda bovino (BRV); e dois
como a presença de infecções secundárias, condi- que infectam eqüinos: o torovírus eqüino (EToV)
ções climáticas e práticas de manejo. A transmis- e o vírus berne eqüino (BEV). Somente o BRV e
são do TCoV ocorre pela via fecal-oral, de forma o BEV produzem doença clínica em seus hospe-
direta ou por utensílios, alimentos, água e outros deiros. Anticorpos contra o BRV e o BEV já foram
veículos contaminados. A transmissão mecâni- detectados em vários outros mamíferos.
ca por cascudinhos dos aviários, aves silvestres, Estudos genéticos demonstraram a seme-
cães, roedores e moscas também tem sido espora- lhança dos torovírus com os outros membros da
dicamente descrita. Perus recuperados da infec- família Coronaviridae na estrutura, na organiza-
ção são resistentes à reinfecção pelo TCoV, e esta ção genômica e na estratégia de replicação, com
resistência parece estar associada com a presença a produção de mRNA subgenômicos. Os vírions
de IgA na mucosa intestinal. O diagnóstico do apresentam uma morfologia pleomórfica, com
TCoV pode ser realizado pela detecção do vírus um nucleocapsídeo tubular, e, quando exami-
nas fezes ou no intestino, pela microscopia ele- nados sob microscopia eletrônica, exibem uma
trônica ou por imunoistoquímica. Não há vacinas forma de rim ou de bacilo. Esses vírus possuem
disponíveis no mercado contra este vírus. um genoma RNA de sentido positivo com 25 a
Uma doença entérica nova de perus, que 30 kb.
cursa com altos índices de morbidade e morta-
lidade, vem sendo observada em criações in- 6.1 Vírus Berne eqüino
dustriais de perus em vários países, inclusive no
Brasil. Esta doença foi denominada de síndrome O vírus Berne eqüino (BEV) foi isolado e
da mortalidade por enterite em peruzinhos (poult identificado em Berna, na Suíça, em 1983, de ma-
enteritis-mortality syndrome – PEMS). Os sinais clí- terial proveniente de um eqüino com diarréia.
nicos são: diarréia, depressão severa, desidrata- Anticorpos contra o vírus foram posteriormente
ção, anorexia, imunossupressão e perda de peso. detectados em eqüinos de outros países da Eu-
A etiologia dessa doença não está totalmente ropa, mas ainda não houve descrição de outros
esclarecida; no entanto, acredita-se que o TCOV casos da doença. O vírus foi extensivamente estu-
possua um papel importante na sua etiologia. A dado e, pelas suas características, foi classificado
detecção de maior prevalência do vírus em áreas nesse gênero. Aparentemente, esse vírus possui
em que a doença ocorre, quando comparada com pouca importância como patógeno para a espé-
áreas indenes, sugerem essa associação. Além cie eqüina. O torovírus eqüino (EToV) pertence
disso, a co-infecção de perus de poucos dias de ao gênero torovírus, no entanto não é associado a
vida com o TCOV e a Escherichia coli reproduziu doença nessa espécie.
as manifestações clínicas observadas nos surtos
naturais. Por outro lado, a infecção apenas com o 6.2 Vírus Breda bovino
TCOV não induziu a doença e, em alguns casos
de doença natural, o vírus não pode ser isolado. O vírus Breda bovino (BRV) causa diarréia
Portanto, o papel do TCOV na PEMS ainda é uma e desidratação em bovinos naturalmente infecta-
questão controversa, embora as evidências indi- dos ou após a inoculação experimental. O vírus
quem alguma participação do agente na etiologia infecta células epiteliais dos intestinos delgado
dessa doença. e grosso de bezerros de até cinco a seis meses
636 Capítulo 24

de idade. A diarréia ocorre 24 a 72 horas após a O último caso foi descrito em abril de 2004. As
inoculação, juntamente com anorexia e depres- pessoas afetadas apresentavam febre, cefaléia,
são, que podem durar de três a cinco dias. O dispnéia e evidência radiológica de pneumonia.
vírus produz lesões nas células das vilosidades O vírus associado com essa doença era diferente
e criptas intestinais, causando necrose e exfolia- de todas as espécies de coronavírus conhecidas
ção dos enterócitos. O BRV não replica bem em até então. Estudos epidemiológicos e moleculares
cultivo celular e foi associado com enterite, pela demonstraram que o vírus teve origem em um
primeira vez, em 1982. O vírus já foi detectado animal silvestre e adaptou-se à espécie humana.
na Holanda, Alemanha, Suíça, Inglaterra, França, O hospedeiro natural do vírus ainda não foi de-
Itália, África do Sul, Costa Rica, Estados Unidos terminado, mas os candidatos mais prováveis são
e Canadá. Nos EUA, aproximadamente 90% do o masked palm civet cat e o racoon dog, ambas espé-
gado de leite é soropositivo. Na Holanda, 6,4% cies típicas da China. Foi também sugerido que
dos animais com diarréia eram positivos para o o gato civet teria servido somente de hospedeiro
BRV, enquanto apenas 1,7% de assintomáticos intermediário, no qual o vírus foi amplificado, e
foram positivos. Existem dois sorotipos do vírus, não como o reservatório original do vírus. Recen-
o BRV-1 e o BRV-2. Vacas assintomáticas prova- temente um coronavírus foi identificado em mor-
velmente servem de reservatórios do vírus. O cegos, com grande homologia com o da SARS,
torovírus bovino (BToV) é uma espécie de vírus sugerindo que essa possa ser a origem do vírus
distinta do BRV e tem sido detectado em secre- da SARS. A pneumonia asiática foi rapidamen-
ções nasais, embora não cause doença. te controlada graças ao trabalho desenvolvido
por uma rede de profissionais em todos os locais
7 Coronavírus humanos onde houve a ocorrência da infecção, interconec-
tados através da Organização Mundial de Saúde
Os coronavírus humanos (HCoV) são res- (OMS – WHO).
ponsáveis por 15-20% dos resfriados comuns
que afetam a população. As cepas HCoV-229E 8 Bibliografia consultada
e HCoV-OC43 são freqüentemente envolvidas,
embora exista uma variabilidade antigênica
ADDIE, D.D. et al. Secong international feline coronavirus/
muito grande entre os isolados desses vírus. Os
feline infectious peritonitis symposium. Recommendations from
surtos ocorrem principalmente no inverno, com
workshops of the second international feline coronavirus/feline
um período de incubação que varia entre dois e infectious peritonitis symposium. J. Feline Med. Surg., v.6, n.2,
quatro dias. Alguns dos sinais clínicos observa- p.125-130, 2004.
dos são: febre, dor de cabeça, dor de garganta,
ADDIE, D.D. et al. Persistence and transmission of natural type
descarga nasal e tosse. Os indivíduos infectados I feline coronavirus infection. J. Gen. Virol., v.84, n10, p.2735-
são suscetíveis a reinfecções com o mesmo vírus 2744, 2003.
ou com outro antigenicamente diferente. Esta se-
ANIMAS S.B. et al. Experimental infection with avian infectious
gunda infecção pode resultar em sintomatologia bronchitis virus (Kagoshima-34 strain) in chicks at different ages.
semelhante à primeira ou em uma forma mais J. Vet. Med. Sci., v.56, n.3, p.443-447, 1994.
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2002. O vírus disseminou-se, posteriormente, pela
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ARTERIVIRIDAE
Marcelo de Lima & Fernando Abel Osorio 25
1 Introdução 641

2 Classificação 641

3 Propriedades dos vírions, estrutura e organização genômica 641

4 Ciclo replicativo 643

4.1 Adsorção e penetração 643


4.2 Replicação do genoma 644
4.3 Produção de RNAs mensageiros subgenômicos 644
4.4 Tradução e processamento das proteínas 645
4.5 Morfogênese e egresso 645

5 Arterivírus de importância veterinária 646

5.1 Vírus da arterite eqüina 646


5.1.1 Epidemiologia 646
5.1.2 Patogenia e sinais clínicos 647
5.1.3 Patologia 648
5.1.4 Imunidade 648
5.1.5 Diagnóstico 648
5.1.6 Controle e profilaxia 649

5.2 Vírus da síndrome respiratória e reprodutiva dos suínos 649


5.2.1 Epidemiologia 650
5.2.2 Patogenia e sinais clínicos 651
5.2.3 Imunidade 652
5.2.4 Diagnóstico 652
5.2.5 Controle e profilaxia 653

6 Perspectivas 654

7 Bibliografia consultada 654


1 Introdução 2 Classificação
Durante a década de 1990, semelhanças na Ordem: Nidovirales
estrutura e morfologia dos vírions, na seqüência Família: Arteriviridae
de nucleotídeos e organização genômica, além Gênero: Arterivirus
de propriedades biológicas em comum, levaram Espécies: vírus da arterite eqüina (EAV), ví-
o vírus da arterite eqüina (EAV), o vírus eleva- rus da síndrome respiratória e reprodutiva dos
dor da lactato-desidrogenase (LDEV), o vírus da suínos (PRRSV), vírus elevador da lactato desi-
síndrome respiratória e reprodutiva dos suínos drogenase (LDEV), vírus da febre hemorrágica
(PRRSV) e o vírus da febre hemorrágica dos sí- dos símios (SHFV).
mios (SHFV) a serem agrupados em uma nova
família viral, a Arteriviridae. O nome da família
foi derivado da doença causada pelo EAV em 3 Propriedades dos vírions, estrutura
eqüinos. Acredita-se que exista uma ligação evo-
e organização genômica
lutiva entre os arterivírus e os membros da famí-
lia Coronaviridae, apesar de diferenças marcantes
estruturais, genômicas e biológicas. Essa relação Os membros da família Arteriviridae pos-
é decorrente de semelhanças existentes nos genes suem vírions relativamente pequenos (45-60 nm
que codificam as enzimas do complexo replicase de diâmetro), esféricos e com superfície aproxi-
e também devido à utilização de estratégias simi- madamente regular. Possuem um nucleocapsí-
lares de expressão gênica. deo possivelmente icosaédrico, com diâmetro
Os arterivírus compartilham diversas pro- entre 25 e 35 nm, envolto por um envelope lipo-
priedades biológicas e moleculares, são restritos protéico com pequenas projeções (Figura 25.1).
aos seus hospedeiros naturais e possuem a ca- Os vírions perdem a infectividade rapidamente
pacidade de causar infecções persistentes assin- quando expostos a temperaturas 4ºC e são ins-
tomáticas em hospedeiros susceptíveis (Tabela táveis em soluções com baixas concentrações de
25.1). Além disso, a produção de um grupo de detergentes não-iônicos ou com pH abaixo de 6
RNAs mensageiros subgenômicos (mRNAsg) ou acima de 7.5.
que, posteriormente, são traduzidos em proteí- O genoma consiste de uma molécula linear
nas estruturais, constitui-se em uma propriedade de RNA, fita simples, de sentido positivo, com
única dos arterivírus e coronavírus e serviu como aproximadamente 13-15 kb. A organização genô-
base para a criação da ordem Nidovirales (do la- mica é muito similar entre os membros da famí-
tim; nido = ninho). lia Arteriviridae. O RNA viral é infeccioso quando

Tabela 25.1. Doenças animais associadas com infecções por arterivírus.

Vírus Hospedeiro Conseqüências da infecção

Infecções persistentes em garanhões,


EAV Eqüinos
artrite, abortamentos, pneumonia em potros

Infecções subclínicas, enfermidade


PRRSV Suínos
respiratória e distúrbios reprodutivos

Infecções subclínicas em
LDEV Camundongos
colônias de camundongos

SHF Macacos Doença sistêmica, hemorragias e morte


642 Capítulo 25

introduzido artificialmente em células permissi- ORF1b possui um alto nível de conservação entre
vas, possui uma estrutura cap na extremidade 5’ todos os arterivírus. As outras ORFs, localizadas
e uma cauda de poli-A na extremidade 3’. na extremidade 3’ do genoma, codificam pro-
Uma representação esquemática da estrutu- teínas estruturais que permanecem associadas
ra e organização do genoma dos arterivírus está como componentes dos vírions. Essas proteínas
apresentada na Figura 25.2. As proteínas não-es- são produzidas pela tradução de um grupo de
truturais são traduzidas pela tradução das ORFs um grupo de RNA mensageiros subgenômicos
(open reading frames) 1a e 1b que abrangem cerca (mRNAsg), que, por sua vez, são produzidos
de 80% do genoma policistrônico dos arterivírus. pela transcrição da cópia de RNA de sentido an-
A ORF1a é extremamente variável, enquanto a tigenômico.
Arteriviridae 643

4 Ciclo replicativo efeito citopático durante a infecção de células de


cultivo caracteriza-se por arredondamento celu-
Os arterivírus replicam eficientemente em lar e desprendimento das células infectadas da
cultivos primários de macrófagos de seus hos- superfície dos frascos de cultivo. As principais
pedeiros naturais. O SHFV e o PRRSV replicam etapas do ciclo replicativo estão representadas na
também em células da linhagem MA-104 e suas Figura 25.3.
derivadas (MARC-145). Além disso, diversas
outras linhagens celulares são permissivas à re- 4.1 Adsorção e penetração
plicação do EAV. O ciclo de replicação é relati-
vamente curto e títulos superiores a 108 DICC50 A replicação dos arterivírus ocorre na região
(dose infectiva para 50% dos cultivos celulares) perinuclear do citoplasma das células hospedei-
são facilmente observados no sobrenadante de ras. In vivo, os principais alvos de replicação são
células infectadas com o EAV e com o SHFV. O células da linhagem macrofágica. In vitro, repli-

mudança de fase
de leitura
5’ 3’
1a 2 4 6
mRNA1
1b 3 5 7
tradução do genoma
M
GS GL GN
poliproteína replicase 1a

poliproteína replicase 1ab

processamento da replicase 2
mRNA 2

3
mRNA 3

proteínas não-estruturais
4
mRNA 4

5
mRNA 5
tradução dos 6
mRNA 6
mRNA subgenômicos
replicação do transcrição dos 7
mRNA 7
genoma mRNAs subgenômicos

RNA genômico proteínas estruturais

morfogênese
e egresso

Adaptado de Snijder & Meulenberg (2001).

Figura 25.3. Etapas da expressão gênica e replicação do genoma dos arterivírus (EAV). Após a penetração e
desnudamento, a primeira etapa é a tradução direta das ORFs 1a e 1b, resultando na produção de duas poliproteínas
(replicase 1a e replicase 1ab), que serão clivadas originando as enzimas do complexo replicase (proteínas NS). Essas
enzimas realizam a transcrição integral do genoma, originando uma cópia de sentido antigenômico (polaridade
negativa). Utilizando esta molécula como molde, o complexo replicase transcreve regiões próximas à extremidade 3',
resultando na produção de vários mRNAsg que codificam as proteínas estruturais. A transcrição integral da cópia
antigenômica resulta na produção de RNAs com a extensão genômica, que, juntamente com as proteínas estruturais,
irão participar da morfogênese da progênie viral. Note que para o EAV, os produtos das ORFs 2a e 2b denominam-se
proteínas E e GS, respectivamente, enquanto a ORF5 codifica a GL ou gp5.
644 Capítulo 25

cação produtiva em linhagens celulares não-sus- ção das moléculas de sentido antigenômico, pela
ceptíveis à infecção natural pode ser produzida produção dos mRNAsg e pela síntese das cópias
por transfecção do RNA genômico. A adsorção de sentido genômico. As enzimas do complexo
dos vírions à superfície das células hospedeiras replicase são produzidas em etapas iniciais do ci-
ocorre provavelmente pela interação da glico- clo, pela tradução direta das ORFs 1a e 1b.
proteína 5 (gp5) ou do dímero gp5/M com uma Com exceção de pequenas seqüências não-
proteína de 210 kDa, localizada na membrana traduzidas, localizadas próximas às extremida-
plasmática de macrófagos alveolares. Em células des 5’ (156 a 221 nucleotídeos) e 3’ (59 a 117 nt),
MARC-145, uma molécula de superfície, com ca- que provavelmente contêm sinais importantes
racterísticas similares à heparina, poderia servir para a replicação e tradução do genoma viral, as
de receptor para o PRRSV. A penetração do vírus demais regiões genômicas são codificantes.
na célula hospedeira ocorre por endocitose me-
diada por receptor, e a fusão do envelope com a 4.3 Produção de RNAs mensageiros
membrana plasmática é dependente da redução
subgenômicos
de pH que ocorre nos endossomos.
A expressão dos genes presentes no terço
4.2 Replicação do genoma 3’ do genoma ocorre pela tradução de um grupo
de RNA mensageiros subgenômicos (mRNAsg).
A replicação do genoma dos arterivírus Este mecanismo se constitui em uma caracterís-
ocorre integralmente no citoplasma e envolve a tica única do ciclo replicativo dos membros da
síntese de uma molécula de RNA de sentido an- ordem Nidovirales. Os mRNAsg são sintetizados
tigenômico (polaridade negativa). Essa molécula por um mecanismo de transcrição muito similar
serve de molde para a síntese de mRNAsg para a ao que foi proposto para os coronavírus. Os mo-
produção das proteínas estruturais e para a sín- delos propostos para a síntese de mRNAsg estão
tese de cópias de extensão e sentido genômico. apresentados na Figura 25.4. Todos os mRNAsg
O complexo replicase é responsável pela produ- possuem uma seqüência leader na extremidade 5’

A
genoma
(-) 3’
(+) 5’
(-) 3’ (+) 5’
(+) 5’
(+) 5’
mRNA subgenômico

B
( - ) 3’ (+) 5’
(+) 5’ (-) 3’
genoma ( - ) 3’
(+) 5’

(+) 5’
mRNA subgenômico

Adaptado de Snijder & Meulenberg (2001).

Figura 25.4. Modelos propostos para a síntese de RNAs mensageiros subgenômicos (mRNAsg). A) Transcrição a
partir da molécula de RNA antigenômico (sentido negativo); B) Transcrição a partir do RNA genômico (sentido
positivo), originando RNAsg subgenômicos que serviriam de molde para a síntese dos mRNAsg correspondentes.
Arteriviridae 645

– derivada da extremidade equivalente do geno- De um modo geral, os arterivírus possuem


ma viral – fusionada ao RNA mensageiro através seis ou sete proteínas componentes do envelo-
de um mecanismo de transcrição descontínua, pe viral. O genoma do SHFV pode conter uma
além de pequenas seqüências conservadas envol- duplicação ou inserção na extremidade proxi-
vidas na regulação da transcrição (TRS) na extre- mal 3’, resultando em ORFs adicionais que co-
midade 3’. Atualmente, evidências indicam que dificam outras glicoproteínas. As três principais
o modelo de transcrição mais consistente seria a proteínas estruturais, produtos das ORFs 5, 6 e
geração de mRNAsg, através de um mecanismo 7 (PRRSV, EAV e LDV), são codificadas a partir
de síntese descontínua a partir do RNA genômi- de mRNAsg transcritos a partir da região 3’ do
co. De acordo com este modelo, poderia ocorrer genoma. A proteína M (produto da ORF6) é uma
tanto a geração de mRNAsg de sentido negativo proteína integral de membrana, não glicosilada,
(síntese descontínua), como de RNA antigenômi- sendo a proteína estrutural mais conservada dos
co (síntese contínua). Em uma etapa subseqüente, arterivírus. Após a sua síntese, a proteína M acu-
os RNAsg de sentido negativo seriam transcritos mula-se no retículo endoplasmático das células
em moléculas de sentido positivo (mRNAsg), que infectadas, onde interage com a principal glico-
seriam, posteriormente, traduzidas em proteínas proteína do envelope viral (gp5), formando hete-
estruturais, enquanto o RNA antigenômico (sen- rodímeros. Estes heterodímeros irão se localizar
tido negativo) serviria de molde para a síntese de no envelope e são essenciais para a infectividade
RNA genômico. viral. A proteína N é pequena (12-15 kDa), intera-
ge com o RNA genômico durante a formação do
4.4 Tradução e processamento nucleocapsídeo e constitui aproximadamente 20
das proteínas a 40% da massa protéica dos vírions.
O produto das ORFs 2, 3 e 4 são proteínas
As proteínas que formam o complexo repli- integrais de membrana clássicas do tipo I e pos-
case são produzidas pela tradução direta do RNA suem uma importância relativamente menor em
genômico a partir das ORFs 1a e 1b (Figura 25.3). comparação com as outras proteínas estruturais.
A tradução da ORF1b envolve um mecanismo Além disso, não existe um consenso sobre a pre-
denominado -1 ribosomal frameshift, ou seja, em sença da gp3 como componente dos vírions em
um determinado ponto, ao final da tradução da cepas norte-americanas do PRRSV. Embora as
ORF1a, os ribossomos mudam de fase de leitura funções específicas de cada uma das proteínas
(voltam 1 nucleotídeo) e passam a traduzir a OR- estruturais dos arterivírus não tenham sido com-
F1b em uma diferente fase. A ORF1a é traduzida pletamente elucidadas, evidências indicam que,
em uma poliproteína que é, posteriormente, cliva- aparentemente, todas as proteínas exercem fun-
da, originando oito polipeptídeos não-estruturais ções essenciais para a replicação e produção de
(Nsp1 a Nsp8). No EAV, a Nsp1, Nsp2 e Nsp4 progênie viral viável.
possuem atividade proteolítica, sendo responsá-
veis pelo processamento de outras Nsps. Também 4.5 Morfogênese e egresso
foi demonstrada a presença de, pelo menos, uma
protease adicional para o LDEV e PRRSV e, pos- A primeira etapa da morfogênese envolve
sivelmente, duas para o SHFV. A clivagem prote- a associação do genoma RNA com múltiplas có-
olítica da poliproteína resultante da tradução da pias da proteína N, formando o nucleocapsídeo.
ORF1b resulta nos polipeptídeos Nsp10 a Nsp12. A etapa seguinte envolve a interação dos nu-
Um pequeno segmento N-terminal da Nsp9 é cleocapsídeos com as caudas das glicoproteínas
codificado por códons finais da ORF1a, enquan- do envelope e a conseqüente aquisição do enve-
to grande parte desta proteína é codificada pela lope. Os arterivírus adquirem o envelope pelo
proximal da ORF1b. As regiões com atividade de brotamento de nucleocapsídeos pré-formados
RNA polimerase e NTPase/RNA helicase – que para o interior do retículo endoplasmático liso
formam o complexo replicase – estão associadas ou do complexo de Golgi. Após a sua síntese, as
com a Nsp9 e Nsp10, respectivamente. proteínas estruturais que participam da forma-
646 Capítulo 25

ção do envelope viral encontram-se retidas em 5.1.1 Epidemiologia


membranas intracelulares. As partículas víricas,
formadas pelo brotamento dos nucleocapsídeos
O primeiro isolamento do EAV foi realizado,
em membranas do retículo endoplasmático ou
em 1953, nos Estados Unidos, a partir do pulmão
do Golgi, acumulam-se em vesículas intracelula-
de um feto abortado no estado de Ohio. A partir
res, no interior das quais são transportados até a
de então, a infecção tem sido detectada em popu-
membrana plasmática. A liberação da progênie
lações eqüinas de todo o mundo, demonstrando
viral para o espaço extracelular ocorre por exoci-
a ampla disseminação do agente. Nos últimos 10
tose, pela fusão dessas vesículas com a membra-
a 15 anos, tem sido observado um aumento no
na plasmática.
número de surtos de EVA nos Estados Unidos
e na Europa. O isolamento recente do vírus na
5 Arterivírus de importância Argentina e a detecção de sorologia positiva nos
veterinária estados de São Paulo (18,2%) e Rio Grande do Sul
(2,2%) confirmam a circulação do vírus na Amé-
rica do Sul. O aumento do comércio internacional
5.1 Vírus da arterite eqüina de animais e sêmen eqüino podem ter contribu-
ído para a disseminação do EAV na população
A arterite viral eqüina (EVA) é uma doença eqüina desses países.
infecto-contagiosa de eqüinos, causada por um A transmissão do EAV pode ocorrer por
membro da família Arteriviridae, denominado ví- secreções e excreções de animais infectados ou
rus da arterite eqüina (equine arteritis virus, EAV). ainda por aerossóis, fômites, água e alimentos
A denominação da doença se deve à característi- contaminados. A excreção do vírus nas secreções
ca inflamatória das lesões produzidas pelo vírus e excreções de animais na fase aguda da infecção
no endotélio dos vasos sangüíneos, especialmen- ocorre por um período curto, que geralmente não
te nas arteríolas. A infecção pelo EAV freqüente- excede 16 dias. A transmissão por aerossóis cons-
mente se manifesta de forma subclínica ou com titui-se na principal forma de disseminação do
sinais leves, mas também pode resultar em sinais EAV, tanto nas propriedades destinadas à repro-
respiratórios em eqüinos adultos, abortamento dução como em locais com grande aglomeração e
em éguas e em pneumonia intersticial em neona- contato entre os animais. Outra via importante de
tos. Apesar da existência de diferenças antigêni- transmissão do vírus é a venérea. Trata-se de uma
cas entre isolados de campo, apenas um sorotipo forma muito efetiva de transmissão, pois cerca de
do EAV é reconhecido. 85 a 100% das éguas cobertas por garanhões por-
A infecção pelo EAV pode ocasionar gran- tadores ou inseminadas com sêmen contamina-
des prejuízos econômicos para a eqüideocultura, do se infectam. A transmissão congênita também
tanto pelas perdas reprodutivas como pela redu- pode ocorrer, resultando em abortamento ou no
ção na performance de animais de esporte e com- nascimento de potros infectados. Nesses casos, os
petição. Os prejuízos geralmente se devem a: a) tecidos fetais e a placenta são considerados im-
surtos de aborto e/ou morte de potros neonatos; portantes fontes da infecção, pois contêm grande
b) redução no valor comercial de garanhões infec- quantidade de vírus.
tados e na demanda reprodutiva desses animais; A transmissão pelo sêmen possui grande
c) recusa do mercado internacional a garanhões importância epidemiológica. Estima-se que en-
e sêmen de garanhões portadores, e no caso de tre 30 e 60% dos garanhões infectados tornam-se
alguns países, de qualquer animal soropositivo; persistentemente infectados e excretam o vírus
e d) alterações nos programas de treinamento e por longos períodos. O vírus pode persistir no
redução ou cancelamento de corridas em casos garanhão por semanas, meses ou anos e, em al-
de surtos de EVA em hipódromos. guns casos, até por toda a vida. Entretanto, uma
Arteriviridae 647

porcentagem variável de garanhões portadores progesterona entre 6 e 48 horas que antecedem


erradica o vírus espontaneamente do seu trato o aborto. Esta redução, combinada com a libera-
reprodutivo. O estabelecimento e a manutenção ção local de prostaglandinas, pode levar ao des-
da persistência viral parecem ser dependentes colamento da membrana coriônica e expulsão do
de testosterona. Assim, machos castrados conse- feto.
guem erradicar completamente o agente dos teci- A maioria das infecções naturais pelo EAV
dos cerca de 2 a 3 semanas após a infecção. são subclínicas e passam, portanto, despercebi-
das. No entanto, alguns animais desenvolvem
5.1.2 Patogenia e sinais clínicos sinais clínicos, tais como: descarga nasal muco-
purulenta, lacrimejamento, conjuntivite, edema
A patogenia da infecção pelo EAV foi estu- palpebral, escrotal e da glândula mamária, e, em
dada com base na detecção de antígenos virais e quadros mais graves, edema pulmonar. Além
na distribuição das lesões produzidas pelo agen- disso, em alguns casos, podem ser evidenciados
te. A penetração do vírus geralmente ocorre pela sinais inespecíficos, como: tosse, apatia, anorexia,
via respiratória ou oral. Inicialmente o vírus re- diarréia e cólicas. Em geral, a severidade da EVA
plica no epitélio respiratório e em macrófagos al- é maior em animais jovens ou muito velhos; em
veolares. Após a replicação inicial, o vírus atinge animais debilitados e naqueles sob estresse físico
os linfonodos regionais, especialmente os bron- muito grande. É importante salientar que, com
quiais. Por volta do terceiro dia após a infecção, poucas exceções, a maioria dos animais afetados
o vírus replica nos linfonodos bronco-pulmo- se recupera espontaneamente da enfermidade.
nares, no endotélio dos vasos pulmonares e em Portanto, a mortalidade é muito baixa e, na maio-
monócitos circulantes, tendo acesso à circulação ria das vezes, ocorre somente em neonatos infec-
sangüínea, através da qual se dissemina pelo or- tados intra-uterinamente. Esses neonatos geral-
ganismo. Subseqüentemente, ocorre a replicação mente vão a óbito devido a quadros fulminantes
no endotélio de um grande número de vasos san- de pneumonia intersticial, que se manifestam en-
güíneos. Passados aproximadamente 10 dias de tre 48 e 96 horas após o nascimento.
infecção, a detecção de antígenos virais é bastan- Apesar da ocorrência de doença respirató-
te reduzida na maioria dos tecidos previamente ria, os maiores prejuízos causados pela infecção
afetados, com exceção da túnica média das arte- devem-se principalmente às perdas reproduti-
ríolas musculares. Aparentemente, o último sítio vas. Os abortamentos ocorrem geralmente por
de invasão viral é o epitélio tubular renal, onde causa de uma miometrite necrotizante grave, sem
o vírus pode persistir por um período adicional infecção fetal concomitante, mas com a presença
de duas semanas. As manifestações clínicas da de grande quantidade de vírus. Os abortamentos
enfermidade são decorrentes das lesões produzi- podem ocorrer com ou sem sinais respiratórios
das nos endotélios vasculares e do aumento da e/ou vasculares prévios. Geralmente os abortos
permeabilidade vascular, por causa da liberação ocorrem entre 7 a 14 dias após o início dos sinais
de citoquinas vasoativas e mediadores inflamató- clínicos, diferindo de abortamentos em fases tar-
rios. Além das alterações inflamatórias, os danos dias, como aqueles que ocorrem na rinopneumo-
ao endotélio podem induzir anóxia ou trombose. nite eqüina. As éguas que abortam parecem não
A patogenia da forma abortiva da enfermi- sofrer nenhum efeito adverso com relação à fer-
dade ainda não está completamente elucidada. tilidade.
Especula-se que o aborto ocorra devido a uma Em contraste, garanhões afetados pela EVA
miometrite provocada pela replicação viral. A podem passar por um período curto de redução
compressão dos vasos sangüíneos pelo edema de fertilidade. Acredita-se que este quadro transi-
endometrial e/ou alterações no tônus vascular tório deva-se ao aumento da temperatura testicu-
pela liberação de mediadores inflamatórios pro- lar, que é associado com a resposta inflamatória
movem uma redução no fluxo sangüíneo para o local. Além disso, os garanhões afetados freqüen-
feto. Além disso, há uma redução dos níveis de temente apresentam diminuição da libido, da
648 Capítulo 25

concentração e da motilidade espermática, além de éguas que abortaram incluem edema, infil-
de apresentarem patologia espermática elevada. tração de macrófagos e neutrófilos, presença de
Essas alterações podem persistir por períodos de grandes fagolisossomos contendo material den-
até 17 semanas. A persistência do vírus no trato so. O miométrio pode conter miócitos necróticos
reprodutivo de animais cronicamente infectados com aglomeração de ribossomos, macrófagos e
não parece provocar essas alterações e estes ani- edema. No trato reprodutivo do macho, as le-
mais são portadores assintomáticos do agente. sões são caracterizadas por vasculite necrosante
envolvendo os testículos, o epidídimo, os ductos
5.1.3 Patologia deferentes, as ampolas, a próstata, as glândulas
vesiculares e bulbouretrais.
Os isolados do EAV diferem na virulência,
na capacidade de induzir lesões e na severidade 5.1.4 Imunidade
das lesões. As lesões macroscópicas são o resulta-
do das alterações vasculares provocadas pela re- Infecções naturais ou experimentais com o
plicação viral. Edema, congestão e hemorragias EAV resultam em imunidade duradoura contra
do tecido subcutâneo nos linfonodos e vísceras reinfecções com diferentes cepas do vírus. An-
são os achados mais freqüentes. As cavidades ticorpos com atividade neutralizante podem ser
corporais podem conter quantidade moderada detectados entre 7 e 14 dias pós-infecção (dpi),
ou abundante de exsudato amarelado; e os pul- coincidindo com o desaparecimento do vírus da
mões, especialmente dos neonatos, encontram- circulação sangüínea. Altos títulos neutralizantes
se edemaciados e contêm grande quantidade de são geralmente detectados em animais com in-
líquido. Em alguns casos, áreas multifocais ou fecção persistente. A excreção viral pelo sêmen
difusas de coloração avermelhada podem ser ob- ocorre mesmo na presença de títulos altos de
servadas nos pulmões, por causa de congestão e anticorpos neutralizantes, indicando que a imu-
hemorragia. O endométrio de éguas que aborta- nidade humoral não é suficiente para prevenir a
ram pode se apresentar edemaciado, congesto e, replicação viral no trato reprodutivo dos machos.
algumas vezes, com hemorragias. Os potros nascidos de fêmeas imunes são prote-
As alterações histológicas são observadas gidos da doença clínica nas primeiras semanas de
em vários sistemas, porém a parede dos vasos são vida devido à transferência passiva de anticorpos
os locais mais afetados. As lesões mais brandas pelo colostro.
incluem edema vascular e perivascular, com hi-
pertrofia das células endoteliais. Nos casos mais 5.1.5 Diagnóstico
severos, observa-se vasculite e necrose fibrinóide
da túnica média, infiltrado linfocítico abundan- O diagnóstico da infecção pelo EAV pode
te, freqüente perda do endotélio e formação de ser realizado pela detecção direta do agente, de
trombos. Os pulmões podem apresentar pneu- antígenos ou do RNA viral em tecidos ou em se-
monia intersticial de grau leve a severo, carac- creções provenientes de animais infectados. A
terizada por infiltração alveolar de macrófagos, detecção de anticorpos específicos também pode
em menor número de neutrófilos e formação de ser utilizada. O isolamento do vírus pode ser re-
membrana hialina. Além disso, ocorre hipertrofia alizado em células das linhagens RK-13, Vero ou,
e hiperplasia dos pneumócitos, arterite e flebite ainda, em cultivos primários de células pulmona-
nos vasos pulmonares. res de eqüinos. As amostras a serem enviadas ao
As lesões renais, que podem ser severas, laboratório para o isolamento do vírus incluem
ocorrem em fases avançadas da infecção e se ca- suabes nasais e da nasofaringe ou amostras de
racterizam por necrose tubular, nefrite intersti- sangue com anticoagulante. Para aumentar a
cial, desorganização glomerular e hipercelulari- probabilidade de detecção do vírus, as amostras
dade. As lesões no epitélio do trato reprodutivo devem ser coletadas no início da fase febril. Em
Arteriviridae 649

casos de aborto, o isolamento viral pode ser ten- programas de vigilância e controle. Entretanto, é
tado a partir da placenta, dos fluidos fetais, pul- importante salientar que os garanhões podem ser
mões, fígado e tecidos linforreticulares do feto protegidos do estabelecimento da infecção per-
abortado. Além do isolamento do vírus, a detec- sistente pela vacinação, e que os testes de diag-
ção de antígenos pela técnica de imunohistoquí- nóstico disponíveis para a detecção do vírus no
mica e a caracterização das lesões vasculares por sêmen são capazes de detectar portadores com
exames histológicos também podem auxiliar na um alto grau de segurança.
confirmação da etiologia. Técnicas moleculares, A maioria das medidas de controle é direcio-
como a RT-PCR, também têm sido utilizadas para nada para prevenir ou restringir a disseminação
identificar a presença do vírus, especialmente em do EAV em criações de reprodutores na tentativa
amostras de sêmen. de minimizar os riscos de abortamentos, de mor-
A infecção pelo EAV é freqüentemente con- talidade neonatal e o estabelecimento da infecção
firmada sorologicamente pela demonstração de persistente nos garanhões. Tais medidas devem
aumento significativo (quatro vezes ou mais) nos priorizar a identificação dos animais portadores e
títulos de anticorpos contra o vírus. O teste de a vacinação dos reprodutores não-infectados. Os
microneutralização na presença de complemento garanhões identificados como portadores devem
é amplamente utilizado, sendo um método con- ser manejados separadamente para evitar a trans-
fiável na identificação da infecção causada pelo missão do vírus para outros animais. Outro fator
EAV. Outros testes, como ELISA, soroneutraliza- a ser considerado nos programas de controle é o
ção e imunodifusão, também podem ser utiliza- risco a introdução do agente em rebanhos pelo
dos para o diagnóstico sorológico da infecção. sêmen contaminado. Nesse sentido, recomenda-
As manifestações clínicas reprodutivas e se a utilização de sêmen proveniente de proprie-
respiratórias causadas pelo EAV devem ser di- dades sabidamente livres do agente. Alternativa-
ferenciadas daquelas causadas pelos herpesvírus mente, pode-se testar o sêmen para a presença do
eqüino (EHV-1 e 4), adenovírus eqüino e influen- EAV antes de ser utilizado.
za eqüina. Infecções bacterianas e causas não- Em virtude da importância econômica da
infecciosas de abortamento também devem ser eqüideocultura e da constante transferência in-
consideradas no diagnóstico diferencial. ternacional de animais e de sêmen, a Organização
Mundial de Saúde Animal (OIE) impõe algumas
5.1.6 Controle e profilaxia regulamentações ao comércio internacional de
eqüinos e sêmen eqüino, para prevenir a disse-
Vacinas para a arterite viral eqüina ainda minação do EAV entre países. Resumidamente,
não estão disponíveis no mercado nacional. Ape- as normas recomendam que todos os animais a
sar de a doença estar comprovadamente presen- serem comercializados e os doadores de sêmen
te no Brasil, a vacina só poderá ser registrada e devem possuir um certificado internacional ne-
comercializada quando a doença for oficialmen- gativo para o EAV e apregoa, ainda, a vacinação
te reconhecida pelas autoridades sanitárias. Nos regular desde os seis meses de idade.
Estados Unidos e Canadá, uma vacina atenuada
por passagens sucessivas em cultivo celular está 5.2 Vírus da síndrome respiratória e
disponível comercialmente, sendo recomenda- reprodutiva dos suínos
da para minimizar a difusão do vírus e as per-
das econômicas decorrentes da infecção. Vacinas No final da década de 1980, surtos de uma
inativadas também estão comercialmente dispo- doença até então desconhecida foram relatados
níveis em diversos países europeus. No entanto, simultaneamente em granjas de suínos nos esta-
apesar das atuais vacinas serem consideradas se- dos da Carolina do Norte, Indiana, Minessota e
guras e eficazes, a incapacidade de diferenciação Iowa, nos Estados Unidos. A síndrome consistia
sorológica entre animais vacinados e infectados em perdas reprodutivas, pneumonia pós-desma-
se constitui em um dos principais obstáculos aos me em leitões, retardo no crescimento e aumen-
650 Capítulo 25

to nas taxas de mortalidade. Surtos, com carac- cam que o PRRSV já circulava em populações
terísticas clínicas semelhantes, foram relatados suínas vários anos antes de a doença se tornar evi-
na Europa e Ásia no início da década de 1990. A dente e economicamente importante. Um estudo
enfermidade foi inicialmente denominada doença sorológico retrospectivo, em amostras coletadas
misteriosa dos suínos e síndrome respiratória e inferti- no final da década de 1970 e nos anos 1980, pro-
lidade suína. A etiologia viral foi definida em 1991, venientes do Canadá, Coréia, Japão e Alemanha,
e a doença ficou posteriormente conhecida como demonstrou a presença de anticorpos específicos
a síndrome respiratória e reprodutiva dos suínos contra o PRRSV. Alguns países europeus (Suécia,
(PRRS). Suíça, Noruega, Finlândia), além de Nova Zelân-
Atualmente, a infecção pelo PRRSV está dia, Austrália, Brasil, Argentina e algumas áreas
associada com perdas econômicas significativas do Caribe, são considerados livres da infecção.
para a suinocultura comercial de vários países. Uma análise genética de cepas de referência
Nos Estados Unidos, estima-se que a infecção isoladas nos Estados Unidos e Europa demons-
pelo PRRSV resulte em prejuízos anuais de 560 trou que a identidade de aminoácidos entre as
milhões de dólares à indústria suinícola. No Bra- seqüências analisadas é inferior a 60%. Com base
sil, um estudo sorológico e virológico, realizado nessas diferenças, os isolados de PRRSV foram
entre 2003 e 2005, não demonstrou a presença da divididos em dois genótipos: tipo I (europeu) e
infecção pelo PRRSV em granjas de suínos. No tipo II (norte-americano). De um modo geral, os
entanto, tendo em vista a importância da suino- isolados do genótipo I são restritos ao continen-
cultura brasileira no agronegócio nacional e in- te Europeu, enquanto os isolados do genótipo II
ternacional, é indispensável um monitoramento são encontrados nos Estados Unidos, Canadá,
constante dos rebanhos, assim como de animais e México e também em países asiáticos. Entretanto,
material genético introduzidos no país. isolados do genótipo II já foram identificados na
Europa, apresentando um alto grau de homolo-
gia com uma vacina atenuada norte-americana
5.2.1 Epidemiologia introduzida no continente em 1995. Por outro
lado, isolados do tipo I também já foram identi-
A origem do PRRSV ainda permanece in- ficados nos Estados Unidos, porém a sua origem
definida. Especula-se que esse vírus possa ter se ainda não foi determinada.
originado na Europa a partir do LDEV – um arte- Aparentemente, os suínos domésticos e sel-
rivírus de camundongos – e que suínos selvagens vagens são as únicas espécies naturalmente sus-
teriam servido como hospedeiros intermediários ceptíveis a infecção pelo PRRSV. Embora os suí-
antes de o vírus adquirir a capacidade de infec- nos não sejam igualmente susceptíveis por todas
tar suínos domésticos. Assim, o vírus teria sido as vias, a infecção pode ser estabelecida após ino-
transferido para a América do Norte pela impor- culação por via oral, intranasal, intramuscular,
tação desses animais em 1912. Essa hipótese po- intravaginal e intrauterina. Os animais infectados
deria explicar o longo período de evolução inde- excretam o vírus na saliva, em secreções nasais,
pendente do vírus nos dois continentes e estaria urina, sêmen e, possivelmente, pelas fezes. A ex-
de acordo com o momento de divergência gené- creção pode ocorrer simultaneamente por dife-
tica a partir de um ancestral comum, estimado ter rentes vias em baixos níveis ou, ainda, de forma
ocorrido ao redor de 1880. Entretanto, apesar de intermitente. A difusão da enfermidade através
diversos estudos investigando a origem do PRR- da inseminação artificial é de grande interesse
SV, ainda não existem explicações satisfatórias epidemiológico, pois o vírus pode ser detectado
para a emergência quase simultânea do vírus na no sêmen de machos infectados mesmo na pre-
América do Norte e Europa. senca de anticorpos neutralizantes e na ausência
Atualmente, acredita-se que a infecção pelo de viremia. Excreção viral em secreções mamárias
PRRSV seja endêmica na maioria dos países pro- de fêmeas gestantes foi também demonstrada em
dutores de suínos. Evidências sorológicas indi- estudos experimentais. Além disso, também exis-
Arteriviridae 651

te a possibilidade de transmissão do vírus através tos ocorre por um período mais curto quando
de fômites, vetores mecânicos etc. comparado com a infecção em animais jovens.
O período que segue a exposição de animais
susceptíveis ao PRRSV é caracterizado por repli- 5.2.2 Patogenia e sinais clínicos
cação viral abundante em macrófagos alveolares
e teciduais. Em fases tardias da infecção, é fre- Após a penetração, a replicação viral ocorre
qüente a ocorrência de persistência viral, carac- primariamente em macrófagos locais, de onde o
terizada por níveis baixos de replicação, princi- vírus se dissemina e atinge órgãos linfóides, pul-
palmente em tecidos linfóides. Já foi possível se mões e, menos consistentemente, outros tecidos.
isolar o vírus de tecidos de animais experimen- A viremia é geralmente detectável 24 horas pi, e
talmente infectados aos 157 dpi e demonstrar a o vírus atinge títulos máximos no sangue, nos lin-
presença de RNA viral em tonsilas aos 257 dpi. fonodos e pulmões entre os dias 7 e 14 pi.
Dessa forma, animais com infecções persistentes As manifestações da PRRS podem variar
assintomáticas podem se constituir em fontes de desde infecções subclínicas até a ocorrência de al-
infecção para outros animais. Eventualmente o tas taxas de mortalidade nos rebanhos afetados.
vírus parece ser completamente erradicado pelo A ocorrência e severidade da doença clínica de-
sistema imunológico do animal persistentemente pendem de vários fatores, tais como a cepa viral e
infectado e, na maioria dos casos, isso pode levar suscetibilidade do hospedeiro, além de infecções
vários meses. concomitantes e/ou secundárias. É freqüente a
Já foi demonstrada a presença de vírus ou ocorrência de infecções mistas com o circovírus
de RNA viral vários meses após a infecção. Os suino tipo 2 (PCV-2), cujas lesões resultantes são
estudos que investigaram a viremia (apesar de muito semelhantes. A associação entre PRRSV
e PCV-2 também pode resultar em pneumonia
diferenças entre cepas do tipo europeu e norte-
viral mais severa, decorrente da infecção pelo
americano ou entre cepas/isolados do mesmo
PRRSV, além de uma replicação mais eficiente e,
genótipo) demonstraram viremia detectável até
conseqüentemente, lesões mais graves associa-
quatro semanas pi em animais infectados. No
das ao PCV-2.
entanto, após esse período, as amostras podem
Sinais freqüentemente observados incluem
continuar sendo positivas por PCR. Além disso,
anorexia, letargia, hiperemia cutânea e cianose
a detecção de animais carreadores pode ser pro-
das extremidades. Infecções pós-natais, com ce-
blemática. Um estudo demonstrou que 54/191
pas virulentas, geralmente resultam em aumento
suabes da orofaringe de fêmeas de um rebanho
de volume dos linfonodos e em pneumonia in-
foram positivas por PCR. No entanto, todas as
tersticial, que podem ocorrer em suínos de todas
amostras de soro dos mesmos animais foram ne-
as idades. O parênquima afetado apresenta-se
gativas por PCR e isolamento viral. Em um outro
ligeiramente firme e mosqueado, com colora-
estudo similar, foi isolado o vírus de 4/11 amos- ção acinzentada e aspecto úmido. Lesões mais
tras positivas por PCR, demonstrando que repli- severas podem estar difusamente distribuídas.
cação viral pode ocorrer na ausência de viremia, Microscopicamente, o septo alveolar encontra-se
uma vez que 11/11 das amostras de soro foram expandido por infiltração de macrófagos, linfó-
negativas por PCR e isolamento. citos e plasmócitos e pode estar demarcado por
Na grande maioria dos casos, a infecção pneumócitos tipo II hiperplásicos. Macrófagos
aguda em machos é clinicamente inaparente. necróticos, debris celulares e quantidade abun-
Nesses animais, a viremia normalmente está pre- dante de fluido seroso podem ser encontrados
sente em 100% dos animais nos primeiros 10 dias nos alvéolos pulmonares. A distribuição e severi-
pi sendo, no entanto, detectável até 3-4 semanas dade das lesões variam de acordo com a virulên-
pi. A presença de vírus no sêmen já foi detectada cia da cepa. Deve-se levar em consideração que
até 92 dpi. essas lesões não são patognomônicas, pois outras
Resultados de diferentes estudos ainda su- infecções virais e/ou bacterianas podem produ-
gerem que a infecção persistente em suínos adul- zir lesões similares.
652 Capítulo 25

A infecção de fêmeas em idade reprodu- capsídeo (N) é geralmente observada e tem sido
tiva ou em gestação pode resultar em abortamen- utilizada para o diagnóstico da infecção.
tos, retornos ao cio, natimortalidade e fetos par- Anticorpos com atividade neutralizante,
cialmente ou totalmente mumificados. Machos geralmente em baixos títulos, são detectáveis so-
infectados apresentam perda de libido e redu- mente cerca de 3 a 4 semanas após a infecção. A
ção na qualidade do sêmen devido a defeitos no detecção de viremia, mesmo na presença desses
acrossoma e um decréscimo na motilidade esper- anticorpos, é um indicativo de que os níveis in-
mática. Embora os sinais clínicos variem ampla- duzidos podem não ser suficientes para contro-
mente em freqüência e severidade, a infecção de lar a replicação viral. Além disso, concentrações
neonatos freqüentemente resulta em sinais respi- baixas de anticorpos neutralizantes podem estar
ratórios graves e elevadas taxas de mortalidade. associadas com uma exacerbação da infecção,
Na maioria das infecções causadas por possivelmente através de um mecanismo conhe-
PRRSV, os sinais clínicos associados a perdas re- cido como antibody-dependent enhancement (ADE).
produtivas não são específicos para uma deter- Diferentes proteínas do PRRSV podem induzir
minada fase de gestação. Inicialmente, as perdas níveis variados de resposta imune celular, que
reprodutivas foram associadas com abortamen- pode ser detectada entre a segunda e oitava se-
tos em fases tardias. No entanto, em estudos sub- manas após a infecção.
seqüentes, foram observados abortamentos nas Os mecanismos responsáveis pela persis-
diferentes fases de gestação, tanto em surtos da tência do PRRSV ainda não estão completamente
doença como em condições experimentais. elucidados. No entanto, a incapacidade do siste-
ma imunológico do hospedeiro em desenvolver
5.2.3 Imunidade uma resposta imune efetiva contra o vírus parece
ser um dos principais fatores responsáveis pela
Diversos estudos em animais têm demons- persistência viral em animais convalescentes.
trado uma produção reduzida de interferon alfa Além disso, um retardo significativo na produção
e citoquinas inflamatórias em resposta à infecção de interferon gama, bem como na produção de
pelo PRRSV. Essa resposta inata de magnitude anticorpos neutralizantes tem sido observados.
fraca poderia ser um dos fatores responsáveis Esses eventos podem ser um reflexo de mecanis-
pelo aumento da ocorrência de infecções secun- mos virais de evasão do sistema imunológico.
dárias concomitantes.
A resposta imune humoral desempenha um 5.2.4 Diagnóstico
importante papel na prevenção de reinfecções e
na redução da excreção viral por animais infec- A suspeita de infecção pelo PRRSV deve ser
tados. A transferência passiva de anticorpos pelo considerada em rebanhos suínos que apresentem
colostro também confere completa proteção aos problemas reprodutivos e doença respiratória
leitões nas primeiras semanas de vida. Níveis em animais de qualquer idade. Como outras in-
altos de proteção são geralmente observados fecções víricas e bacterianas podem causar ma-
contra reinfecções com cepas homólogas, porém nifestações clínico-patológicas semelhantes, o
proteção apenas parcial é obtida frente a cepas diagnóstico requer necessariamente a realização
heterólogas. Imunoglobulinas específicas da clas- de testes laboratoriais.
se IgM podem ser detectadas entre 5 e 7 dias após Em casos de doença clínica ou perdas repro-
a infecção (dpi), e IgG entre os dias 7 e 10 pi. An- dutivas (abortos, natimortalidade etc.), o método
ticorpos contra as proteínas estruturais e também diagnósitco mais indicado é o isolamento do ví-
contra algumas proteínas não-estruturais (princi- rus a partir de tecidos ou secreções de animais
palmente Nsp2) já foram detectados no soro de afetados. O isolamento pode ser realizado a partir
animais convalescentes. Uma resposta humoral do soro ou de tecidos (pulmões, tonsilas e linfo-
de grande magnitude contra a proteína do nucleo- nodos), pela inoculação do material suspeito em
Arteriviridae 653

macrófagos alveolares cultivados in vitro ou em nóstico definitivo requer a detecção do agente, de


células MARC-145. Não obstante, a inoculação antígenos virais ou de anticorpos específicos para
de homogenados de tecidos suspeitos em suínos o PRRSV nos animais infectados.
jovens (bioensaio) consiste no método mais sensí-
vel para a detecção do PRRSV nesses materiais. O
PRRSV produz efeito citopático característico em 5.2.5 Controle e profilaxia
células de cultivo, e a identidade do agente pode
ser comprovada por imunofluorescência (IFA) ou Medidas básicas de profilaxia devem ser
por neutralização com soro imune específico. tomadas no sentido de prevenir a introdução do
A técnica de PCR em tempo real também agente em propriedades ou áreas livres e tam-
tem sido usada rotineiramente para o diagnós- bém de evitar a reintrodução de novas cepas em
tico direto da infecção, possibilitando a identifi- rebanhos já infectados. É importante lembrar-se
cação de quantidades mínimas de RNA viral em de que animais infectados e sêmen contaminado
amostras clínicas. constituem-se nas principais fontes de infecção.
Em condições experimentais, a IFA em teci- Porém, outros fatores, como insetos, água, ração,
dos e/ou órgãos pode ser usada. No entanto, não proximidade das granjas, movimento e transpor-
é rotineiramente usada para o diagnóstico. te de animais, são epidemiologicamente impor-
Testes sorológicos são rotineiramente utili- tantes e devem ser considerados em programas
zados para o monitoramento de rebanhos e po- de controle. Assim, medidas gerais de biossegu-
dem também ser úteis para diagnosticar eventos rança são essenciais para a profilaxia e controle
de doença, pelo teste de soros pareados. Atual- da enfermidade.
mente, um teste comercial de ELISA tem sido Nos Estados Unidos, várias estratégias,
amplamente utilizado para o diagnóstico soroló- como a depopulação parcial ou completa de gran-
gico das infecções causadas pelo PRRSV. A téc- jas, identificação e remoção de animais infectados
nica possui alta sensibilidade e especificidade, e manejo preventivo de rebanhos fechados, tem
sendo possível a detecção de anticorpos especí- sido utilizadas visando ao controle e erradicação
ficos contra a proteína N já aos 7-10 dias pós-in- da infecção.
fecção (dpi). A detecção de anticorpos através da Vacinas atenuadas e inativadas estão co-
técnica de soroneutralização (SN) também tem mercialmente disponíveis nos Estados Unidos e
sido utilizada. Entretanto, é importante ressal- na Europa. Em geral, essas vacinas induzem imu-
tar que anticorpos com atividade neutralizante nidade protetora satisfatória contra o vírus ho-
somente são detectáveis apenas em fases tardias mólogo, mas produzem níveis variáveis de pro-
da infecção (30-60 dpi), fazendo com que o teste teção contra vírus heterólogos. Além da eficácia
seja utilizado, sobretudo com outras finalidades. discutível, as vacinas atenuadas apresentam um
Os resultados de sorologia devem ser cuidadosa- problema de segurança. A persistência do vírus
mente analisados, uma vez que testes sorológi- vacinal em animais imunizados, em níveis seme-
cos convencionais não são capazes de diferenciar lhantes aos de amostras virulentas, e transmissão
anticorpos vacinais daqueles produzidos em res- a animais soronegativos já foram demonstrados.
posta a infecções naturais. Também se observou a transmissão do vírus
Informações acerca do histórico clínico-epi- vacinal pelo sêmen, bem como a ocorrência de
demiológico do rebanho, dados de produção, infecções congênitas. Vacinas diferenciais, isto
sinais clínicos, além de lesões macro e microscó- é, que permitam a distinção da resposta vacinal
picas, podem auxiliar no diagnóstico da enfer- daquela induzida pela infecção natural também
midade. O diagnóstico diferencial deve incluir não se encontram disponíveis. Esses dados de-
outras enfermidades, como circovirose, parvovi- monstram a evidente necessidade da elaboração
rose, doença de Aujeszky, influenza, peste suína de uma nova geração de vacinas para serem uti-
clássica, encefalomielite hemaglutinante e lep- lizadas no controle, profilaxia e eventual erradi-
tospirose. Devido à possibilidade de infecções cação da enfermidade, principalmente em países
secundárias com outros vírus e bactérias, o diag- onde a infecção é endêmica.
654 Capítulo 25

Apesar da ausência de atividade viral e so- CASTILLO-OLIVARES, J. et al. Generation of a candidate live
marker vaccine for equine arteritis virus by deletion of the major
rologia positiva em suínos domésticos no Brasil,
virus neutralization domain. Journal of Virology, v.77, p.8470-
uma legislação estabelece critérios em relação 8480, 2003.
à importação e exportação de animais, além de
transporte, coleta de material para diagnóstico, CIACCI-ZANELLA, J.R. et al. Lack of evidence of porcine
reproductive and respiratory syndrome virus (PRRSV) infection
quarentena e testes de diagnóstico, a fim de man-
in domestic swine in Brazil. Ciência Rural, v.34, p.449-445,
ter o rebanho suíno nacional livre da infecção 2004.
pelo PRRSV.
COLLINS, J.E. et al. Isolation of swine infertility and respiratory
syndrome virus (isolate ATCC VR-2332) in North America and
6 Perspectivas experimental reproduction of the disease in gnotobiotic pigs.
Journal of Veterinary Diagnostic Investigation, v.4, p.117-126,
Apesar dos esforços direcionados ao contro- 1992.
le e profilaxia das infecções causadas pelo PRRSV
DEA, S. et al. Current knowledge on the structural proteins of
desde a sua identificação no início dos anos 1990, porcine reproductive and respiratory syndrome (PRRS) virus:
o vírus ainda continua a causar perdas econômi- comparison of the North American and European isolates.
cas significativas para suinocultura mundial. A Archives of Virology, v.145, p.659-688, 2000.

dificuldade na obtenção de vacinas mais eficazes DEL PIERO, F. Equine viral arteritis. Veterinary Pathology, v.37,
e seguras demonstra que muitos aspectos relacio- p.287-296, 2000.
nados com a biologia dos arterivírus ainda não
DELLPUTE, P.L.; NAUWYNCK, H.J. Porcine arterivirus
estão completamente elucidados. Nesse sentido, infection of alveolar macrophages is mediated by sialic acid on
um grande avanço foi alcançado com a obtenção the virus. Journal of Virology, v.78, p.8094-8101, 2004.
de clones infecciosos para o EAV e PRRSV, por
DIEL, D. et al. Prevalência de anticorpos para os vírus da
meio da tecnologia de genética reversa. Com o
influenza, arterite viral e herpesvírus em eqüinos das regiões
uso dessa metodologia, tem sido possível a re- norte e noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, Brasil. Ciência
alização de modificações predefinidas no geno- Rural, v.36, p.1467-1473, 2006.
ma viral (deleções, inserções e/ou substituições
GOYAL, S.M. Porcine reproductive and respiratory syndrome.
de nucleotídeos), possibilitando, assim, estudos Journal of Veterinary Diagnostic Investigation, v.5, p.656-664,
dos mecanismos moleculares relacionados com 1993.
replicação, patogenia, persistência e imunidade.
HANADA, K. et al. The origin and evolution of porcine
Além disso, a tecnologia de genética reversa per-
reproductive and respiratory syndrome viruses. Molecular
mite, ainda, a manipulação genômica, visando Biology and Evolution, v.22, p.1024-1031, 2005.
ao desenvolvimento de cepas vacinais atenuadas
LARA, M.C.C.S.H. et al. Prevalência de anticorpos antivírus da
ou com alterações em proteínas virais para serem
arterite dos eqüinos em cavalos criados no estado de São Paulo.
utilizadas na profilaxia e controle das infecções Arquivo Brasileiro de Medicina Veterinária e Zootecnia, v.54,
causadas pelos arterivírus. p.223-227, 2002.

7 Bibliografia consultada LOPEZ, O.J.; OSORIO, F.A. Role of neutralizing antibodies in


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26
PARAMYXOVIRIDAE
Clarice Weis Arns, Fernando R. Spilki
& Renata Servan de Almeida1
n

1 Introdução 659

2 Classificação 659

2.1 Paramyxovirinae 659


2.2 Pneumovirinae 659

3 Replicação 659

4 Propriedades físico-químicas 659

5 Estrutura dos vírions 661

6 O genoma 664

7 O ciclo replicativo 664

8 Paramixovírus de interesse veterinário 666

8.1 Vírus respiratório sincicial bovino 667


8.1.1 Epidemiologia 667
8.1.2 Patogenia, sinais clínicos e patologia 668
8.1.3 Imunidade 669
8.1.4 Diagnóstico 670
8.1.5 Controle e profilaxia 670

8.2 Vírus da parainfluenza bovina tipo 3 670


8.2.1 Epidemiologia 671
8.2.2 Patogenia, sinais clínicos e patologia 671
8.2.3 Imunidade 672
8.2.4 Diagnóstico 672
8.2.5 Controle e profilaxia 672

8.3 Vírus da peste bovina 672


8.4 Vírus da peste dos pequenos ruminantes 673

1
Renata Dezengrini foi a responsável pelas seções “Peste Bovina” e “Vírus da Peste dos Pequenos Ruminantes”.
8.5 Vírus da cinomose 674
8.5.1 Epidemiologia 674
8.5.2 Patogenia, sinais clínicos e patologia 675
8.5.3 Imunidade 676
8.5.4 Diagnóstico 676
8.5.5 Controle e profilaxia 677

8.6 Vírus da parainfluenza canina tipo 2 678


8.6.1 Epidemiologia 678
8.6.2 Patogenia, sinais clínicos e patologia 678
8.6.3 Imunidade 679
8.6.4 Diagnóstico 679
8.6.5 Prevenção e controle 679

8.7 Metapneumovírus aviários 679


8.7.1 Epidemiologia 680
8.7.2 Patogenia, sinais clínicos e patologia 680
8.7.3 Imunidade 681
8.7.4 Diagnóstico 682
8.7.5 Controle e profilaxia 682

8.8 Vírus da doença de Newcastle 683


8.8.1 O agente 683
8.8.2 Histórico e epidemiologia 683
8.8.3 Patogenia, sinais clínicos e patologia 684
8.8.4 Diagnóstico 685
8.8.5 Controle e profilaxia 686

9 Bibliografia consultada 686


1 Introdução – Avulavirus: vírus da doença de Newcastle;
– Virus TPMV-like: vírus Tupaia.
Os vírus da família Paramyxoviridae incluem
importantes patógenos do trato respiratório de 2.2 Pneumovirinae
animais e humanos. A família é formada por
vírus envelopados, em sua maioria esféricos, com Esta subfamília possui dois gêneros:
projeções glicoprotéicas de superfície. Os vírions – Pneumovirus: vírus respiratório sincicial
possuem um nucleocapsídeo helicoidal que en- humano;
volve o genoma de RNA fita simples e polarida- – Metapneumovirus: vírus da rinotraqueíte
de negativa. Os paramixovírus são responsáveis dos perus.
por algumas doenças de grande relevância em
Medicina Veterinária, tanto por sua prevalên- 3 Replicação
cia como pelo impacto econômico na produção
animal. Dentre os paramixovírus de importância Os paramixovírus podem infectar uma am-
veterinária, destacam-se aqueles amplamente co- pla gama de hospedeiros, tanto naturalmente
nhecidos, como o vírus respiratório sincicial bovi- quanto sob condições experimentais, e a infecção
no (BRSV), o vírus da parainfluenza bovina tipo é assintomática em muitas espécies. No entanto,
3 (bPIV-3), o vírus da cinomose canina (CDV), o as infecções de relevância clínica são restritas a
vírus da peste bovina (Rinderpest virus, RPV) e o algumas delas.
vírus da doença de Newcastle (NDV). A família A replicação desses vírus in vitro ocorre em
agrega ainda outros vírus recentemente identifi- vários tipos de células primárias e de linhagem,
cados, muito importantes devido ao seu potencial principalmente de origem pulmonar e renal, ho-
zoonótico, como os vírus Hendra e Nipah. Esta mólogas à espécie de origem do vírus. É neces-
família também abrange alguns vírus de grande sária a adaptação dos paramixovírus ao cultivo
importância para a saúde humana, como o vírus por várias passagens. A infecção por esses vírus
respiratório sincicial humano (HRSV) e o vírus é citolítica, e uma característica é a fusão entre
do sarampo (MV), dentre outros. células, formando células gigantes multinuclea-
das (sincícios). A replicação ocorre no citoplasma
2 Classificação das células hospedeiras, porém os morbilivírus
podem produzir inclusões intranucleares acido-
A família Paramyxoviridae é classificada na fílicas. Os vírus da parainfluenza e alguns morbi-
ordem Mononegavirales, que inclui ainda as fa- livírus possuem, ainda, a propriedade de hemad-
mílias Rhabdoviridae e Filoviridae. Na família Pa- sorção.
ramyxoviridae, estão incluídas duas subfamílias:
Paramyxovirinae e Pneumovirinae. A classificação 4 Propriedades físico-químicas
taxonômica atual dessa família está apresentada
na Tabela 26.1. Os paramixovírus são sensíveis a pH ácido e
ao aquecimento a 56ºC por 30 minutos. A exposi-
2.1 Paramyxovirinae ção a solventes lipídicos, detergentes não-iônicos,
formaldeído e agentes oxidantes destrói a infecti-
Esta subfamília possui seis gêneros, listados vidade viral. Os vírions são extremamente lábeis,
abaixo, juntamente com o vírus protótipo de cada mas permanecem viáveis a temperaturas de -50ºC
gênero: ou menos por muitos meses, porém episódios de
– Respirovirus: vírus Sendai; congelamento e descongelamento podem inati-
– Morbillivirus: vírus do sarampo; var a infectividade. Os vírions apresentam uma
– Rubulavirus: vírus da caxumba; densidade de 1,18 a 1,23 g/mL, determinada por
– Henipavirus: vírus Hendra; centrifugação em gradiente de sacarose.
660 Capítulo 26

Tabela 26.1. Classificação dos membros da família Paramyxoviridae e seus respectivos hospedeiros. Os hospedeiros
naturais estão em negrito, e os secundários estão entre parênteses.

Subfamília Gênero Espécie Hospedeiros

Vírus da parainfluenza bovinos (e ovinos)


bovina 3 (bPIV-3)

Vírus Sendai (SeV) ou camundongos (suínos,


vírus da parainfluenza ratos, hamsters e cobaias)
Respirovirus murina 1

Vírus símio tipo 10 (SV-10) primatas

Paramixovírus do salmão Salmões


do Atlântico

Vírus da parainfluenza humanos (outros primatas,


humana 1 e 3 (hPIV-1 e 3) hamsters, cobaias, furões, ratos
cauda de algodão)
caninos (leões, furões,
Vírus da cinomose (CDV)
guaxinins, pandas, entre outros)

Vírus da peste bovina (RPV) bovinos (ovinos, caprinos e


suínos)
Paramyxovirinae

Vírus da peste dos pequenos ovinos, caprinos (alguns


ruminantes (PPRV) ruminantes selvagens)
Morbillivirus

Vírus da peste das focas (PDV) espécies de foca

espécies de baleias,
Morbilivírus dos cetáceos (CeMV)
golfinhos e focas

Vírus do sarampo (MV) humanos

Vírus da parainfluenza suína suínos

Rubulavírus suíno (PoRV) ou vírus


suínos
La-Piedad-Michoacan-Mexico
Rubulavirus

Vírus da parainfluenza simia 5 e primatas (caninos, felinos,


41 (SV-5 e 41) suínos, hamsters, cobaias)

Vírus da caxumba (MuV) humanos

Vírus da parainfluenza humana 2,


humanos
4a e 4b (HPIV-2, 4a e 4b)

Vírus Mapuera (MPRV) morcegos (Sturnira kikium)

Yucaipa vírus galinhas


Paramyxoviridae 661

Tabela 26.1. Continuação

Subfamília Gênero Espécie Hospedeiro

Vírus Hendra (HeV) morcegos (eqüinos, humanos)


Henipavirus
Vírus Nipah morcegos (suínos, humanos,
caninos e felinos)
Paramyxoviridae

Vírus da doença de Newcastle galinhas, patos, gansos, perus, aves


(NDV) ou paramixovírus 1 silvestres e aquáticas, humanos
aviário (APMV-1)
Avulavirus
Paramixovírus aviários 2 a 9
galinhas, perus, aves silvestres
(APMV-2 a 9)

Vírus TPMV-like Vírus Tupaia (TPMV) Tupaia belangeri

Vírus respiratório sincicial bovinos (ovinos)


bovino (BRSV)

Vírus respiratório sincicial ovino


Pneumovirus (ORSV) ovinos (bovinos)
Pneumovirinae

Vírus da pneumonia murina camundongos


(MPV)

Vírus respiratório sincicial humanos


humano (hRSV)

Vírus da rinotraqueíte dos perus


galinhas e perus
(TRTV) ou pneumovírus aviário
Metapneumovirus
(PVA)
Metapneumovírus humano humanos
(hMPV)

5 Estrutura dos vírions membrana plasmática celular durante o processo


de penetração. A Figura 26.1 apresenta uma foto-
Os paramixovírus possuem uma arquite- grafia de ME e uma representação esquemática
tura complexa, que consiste basicamente de um de um vírion dessa família.
envelope lipoprotéico, um nucleocapsídeo e uma O nucleocapsídeo possui simetria helicoidal,
proteína matriz. As partículas víricas são envelo- apresenta entre 13 e 18 nm de diâmetro por 600 a
padas, aproximadamente esféricas ou pleomór- 1.000 nm de extensão. O nucleocapsídeo é forma-
ficas, com 150 a 300 nm de diâmetro. Partículas do por um complexo formado pelo genoma RNA,
filamentosas são relativamente freqüentes e po- conjugado com aproximadamente 2.500 cópias
dem ter entre 1.000 e 10.000 nm de extensão. Nos da proteína N (ou NP), ao qual estão associadas
vírions intactos, a única estrutura visível por mi- 300 cópias da proteína P e 50 moléculas da prote-
croscopia eletrônica (ME) é o envelope, com 7 a ína L. O complexo ribonucleoproteína (RNA +N)
15 nm de espessura, recoberto por projeções de 8 se constitui no substrato para a síntese de RNA
a 20 nm de extensão, constituídas pelas glicopro- durante a transcrição e replicação do genoma, ou
teínas de superfície. Os paramixovírus contêm seja, esses mecanismos ocorrem no genoma reco-
duas glicoproteínas de envelope; alguns rubula- berto pelas proteínas N. Além das glicoproteínas
vírus, e todos os pneumovírus contêm uma ter- do envelope e das proteínas do nucleocapsídeo,
ceira proteína integral de membrana. Uma delas os vírions contêm múltiplas cópias da proteína
(HN, H ou G, dependendo do gênero) está envol- matriz (M) que preenchem o espaço entre o nu-
vida na ligação aos receptores, e a glicoproteína F cleocapsídeo e o envelope (Figura 26.1). As pro-
é responsável pela fusão do envelope viral com a teínas codificadas pelos paramixovírus e as suas
662 Capítulo 26

A
A B Glicoproteína F

Glicoproteína
(HN,H ou G)

Proteína SH

Camada lipídica

Proteína M

RNA
Nucleo- Proteína N
capsídeo Proteína P

Proteína L

Fonte: A) Dra. Linda Stannard,www.uct.ac.za.

Figura 26.1. Vírions da família Paramyxoviridae. A) Fotografia de microscopia eletrônica de um paramixovírus


humano. Nota-se o nucleocapsídeo helicoidal enovelado no interior da partícula; B) Ilustração esquemática de uma
partícula vírica e seus componentes.
principais atividades biológicas estão apresenta- A glicoproteína de fusão (F) é responsável
das a seguir. pela fusão do envelope viral com a membrana
A glicoproteína H, HN ou G (dependendo celular, permitindo a penetração do nucleocapsí-
do vírus) é responsável pela adsorção dos vírions deo na célula hospedeira, que é sintetizada como
à superfície das células hospedeiras. Essas glico- um precursor (F0), que se torna ativo pela cliva-
proteínas estão localizadas no envelope viral e gem em F1 e F2. Esta clivagem é essencial para
projetam-se externamente como espículas a partir a infectividade dos paramixovírus e exerce um
da superfície dos vírions. Cada espécie de vírus papel determinante na patogenicidade viral. A
contém uma delas (H, HN ou G). A glicoproteína clivagem ocorre nos estágios finais do ciclo repli-
H (respirovírus e morbilivírus) possui a ativida- cativo, no interior de vesículas do complexo de
de de hemaglutinação. Essa atividade é utilizada Golgi, durante o transporte das proteínas virais
na identificação de isolados e também em diag- para a membrana plasmática. Cepas que clivam
nóstico. A glicoproteína HN (rubulovírus) apre- a F0 com mais eficiência tendem a ser mais vi-
senta atividade hemaglutinante e de neuramini- rulentas, em contraste com cepas deficientes na
dase. Esta última refere-se à capacidade de clivar clivagem. Uma das características dos membros
o receptor celular (ácido siálico), prevenindo que da família Paramyxoviridae é o não requerimento
partículas virais se liguem em células já infecta- de pH baixo para a atividade fusogênica, ou seja,
das ou fiquem retidas na membrana celular du- a fusão do envelope com a membrana plasmática
rante o egresso de vírions recém-formados. Para e a conseqüente penetração do nucleocapsídeo
muitos paramixovírus, a co-expressão de HN (H ocorre na superfície celular, em pH neutro. Por
para morbilivírus), juntamente com a proteína F, isso são chamados vírus pH independentes.
é necessária para a formação de sincícios, suge- A proteína M é a mais abundante dos ví-
rindo que as glicoproteínas HN ou H possuem rions, preenchendo o espaço entre o nucleocap-
participação na atividade fusogênica. Para os pa- sídeo e o envelope. A sua função ainda não foi
ramixovírus que não possuem as glicoproteínas completamente elucidada, mas sabe-se que essa
HN ou H, a ligação aos receptores pode ser reali- proteína exerce um importante papel na intera-
zada pela glicoproteína G, porém acredita-se que ção entre o nucleocapsídeo viral e a membrana
esta proteína não seja essencial para essa função. da célula hospedeira durante o processo de mor-
Nesses vírus, a proteína F pode participar da li- fogênese, maturação e brotamento dos vírions.
gação dos vírions aos receptores. Portanto, a proteína M é considerada essencial na
Paramyxoviridae 663

morfogênese viral, interagindo simultaneamente P-carboxi (localizado na porção C-terminal da


com as caudas citoplasmáticas das glicoproteí- proteína), é relativamente conservado entre os
nas inseridas na membrana (F, HN ou G) e com membros da subfamília Paramyxovirinae. Um me-
o nucleocapsídeo. Essas interações induzem o canismo, conhecido como edição de RNA (RNA
brotamento das novas partículas na superfície da editing), permite que várias proteínas diferentes
célula hospedeira. sejam produzidas a partir do gene P. Uma prote-
A proteína N (ou NP) é abundante nos ví- ína não-estrutural menor, chamada V, é produ-
rions e se associa intimamente ao genoma viral, zida pelo mesmo RNA mensageiro (mRNA) por
formando o nucleocapsídeo, sendo responsável todos os membros da subfamília Paramyxovirinae.
pela proteção do genoma contra a digestão por Os gêneros Respirovirus e Morbillivirus produzem
nucleases. Essa proteína permanece associada uma proteína não-estrutural adicional, deno-
com o genoma mesmo durante a transcrição e minada C, a partir de uma segunda fase aberta
replicação. Além da N, as proteínas P-L também de leitura (ORF) do mRNA do gene P. Proteí-
estão associadas com o genoma durante esses nas adicionais, denominadas W (respirovírus,
processos. A proteína N também participa da henipavírus e morbilivírus), D (respirovírus), I
morfogênese das novas partículas virais, pela (rubulavírus) entre outras, podem ser formadas
interação com a proteína M. A concentração in- pela edição do mRNA do gene P, pela adição de
tracelular de proteína N parece ser o principal fa- 1 ou 2 nucleotídeos (nt), alterando a fase de lei-
tor que controla a transição entre transcrição (no tura do mRNA e resultando em uma seqüência
início da infecção) e replicação do genoma (em diferente de aminoácidos. Essas proteínas, embo-
etapas tardias do ciclo replicativo). Aproximada- ra não essenciais à replicação viral, auxiliam na
mente 80% da seqüência da proteína N são muito sobrevivência do vírus in vitro e são importantes
conservadas entre os paramixovírus. determinantes da virulência. A proteína P, junta-
A proteína L é a menos abundante dos ví- mente com a proteína N, parece estar envolvida
rions (~50 cópias por vírion) e representa a subu- na mudança do processo de transcrição (síntese
nidade catalítica da RNA polimerase dependente de mRNA) para o de replicação (síntese de RNA
de RNA (RdRp). A seqüência de nucleotídeos do genômico a partir de RNA antigenômico). Uma
gene da proteína L é muito conservada entre os regulação da síntese do RNA genômico viral tam-
membros de uma mesma subfamília, o que não bém é exercida pela proteína C. As proteínas V,
se observa entre vírus de subfamílias diferentes. W e C também possuem participação na evasão
Existem cinco seqüências curtas localizadas pró- da resposta imune inata pelo vírus. Juntamente
ximo ao centro do gene que apresentam uma alta com a proteína N, a proteína P forma agregados
homologia, também com RNA polimerases de citoplasmáticos conhecidos como corpúsculos de
outras famílias virais. Essas seqüências parecem inclusão nas células infectadas.
codificar domínios protéicos que são essenciais O gene M2 contém duas ORFs, que codifi-
para a atividade da RpRd. A proteína L exerce cam dois polipeptídeos, denominados M2-1 e
a sua atividade somente quando é formado um M2-2. Ambos estão associados ao complexo do
complexo com a proteína P e ambas são necessá- nucleocapsídeo dos pneumovírus e metapneu-
rias para a atividade de polimerização do RNA a movírus e parecem não possuir homólogos em
partir de moldes de RNA conjugados com a pro- outros vírus RNA de polaridade negativa não-
teína N. segmentados. A proteína M2-1 está envolvida na
A proteína P é um componente essencial elongação da transcrição e participa da indução
do complexo replicase. Embora toda a ativida- da resposta inflamatória do hospedeiro e exacer-
de catalítica da transcriptase viral seja atribuída bação dos sinais clínicos da infecção viral. A pro-
à proteína L, esta somente se liga ao complexo teína M2-2 não é essencial para a multiplicação
RNA:N (denominado ribonucleoproteína; RNP) do vírus em cultivo celular, porém, a sua deleção
na presença da proteína P. O sítio de ligação da provoca uma redução na eficiência de replicação.
proteína P ao complexo RNA:N, chamado de É provável que também possua participação na
664 Capítulo 26

mudança de replicação para morfogênese viral, A organização genômica e o número de ge-


que precedem o egresso dos vírions. nes dos paramixovírus variam de acordo com
A proteína SH (ou A) é uma proteína inte- a subfamília, com pequenas variações também
gral de membrana com a porção C-terminal, lo- dentro dos gêneros. Em geral, os genomas pos-
calizada na região extracelular. Apesar de ser ex- suem entre seis e dez genes (Figura 26.2). Os ví-
pressa na superficie da célula hospedeira, baixos rus da subfamília Paramyxovirinae possuem seis
níveis da proteína SH são detectados nos vírions. (NP, P/C/V, M, F, H e L) ou sete genes (o vírus
A SH pode apresentar-se sob diversas formas, de- da caxumba possui um gene adicional, o SH). Os
pendendo de seu estado de glicosilação. Embora vírus da subfamília Pneumovirinae possuem dez
a sua função ainda não tenha sido totalmente es- (vírus respiratório sincicial, vírus da pneumonia
clarecida e não seja uma proteína absolutamente murina) ou oito genes (pneumovírus aviário). A
essencial às funções de adsorção, infectividade e maioria dos mRNA contém apenas uma ORF e
montagem das partículas virais, parece aumentar é traduzida em uma proteína, porém, em alguns
a eficiência de fusão promovida pela proteína F, vírus, os mRNA possuem mais de uma ORF, re-
contribuindo para a formação de sincícios. Essa sultando na produção de mais de um produto.
proteína não é essencial para a multiplicação viral Os mRNA dos diferentes genes são transcritos
em cultivo celular, porém a deleção de seu gene individualmente a partir do RNA genômico.
resulta em redução substancial nessas atividades. Cada gene contém sinais para o início e término
Existem indícios também de sua participação na da transcrição, presentes nas regiões intergêni-
evasão à resposta imune do hospedeiro. cas, que possuem entre 1 e 56 nt.
Os vírus respiratórios sinciciais são os
únicos paramixovírus que possuem dois ge-
7 O ciclo replicativo
nes que codificam as proteínas não-estruturais
(NS), precedendo o gene da nucleoproteína. A
proteína NS1 atua como um potente inibidor da Os paramixovírus são agrupados na classe
transcrição e replicação do RNA viral. Esta pro- V, conforme a classificação de Baltimore (1971)
com relação às estratégias de replicação. De for-
teína também pode interagir com as proteínas M
ma similar aos outros vírus dessa classe, todos
e P, porém ainda não foi definido o significado
os processos relacionados com a replicação viral
biológico dessa interação. A NS2 é uma proteína
ocorrem no citoplasma da célula hospedeira. Em
não-essencial para a replicação do vírus in vitro.
cultivos celulares, o ciclo replicativo geralmente
Ambas participam da evasão viral a respostas
se completa em 14 a 30 horas, mas pode ter du-
celulares antivirais induzidas pela produção de
ração inferior. Cepas virulentas do NDV podem
interferons α e .
completar o ciclo replicativo em aproximada-
mente 10 horas.
6 O genoma Os vírions ligam-se a receptores celulares
específicos (CD46 e CD150 para o vírus do sa-
O genoma dos paramixovírus é constituído rampo, provavelmente glicosaminoglicanos ou
por uma molécula de RNA linear de fita simples, moléculas semelhantes a heparina para os pneu-
polaridade negativa, com 15 a 19 quilobases (kb). movírus, ácido siálico para os demais) e pene-
Por possuir polaridade negativa, o genoma des- tram na célula por fusão do envelope viral com
nudo não é infeccioso quando introduzido em a membrana plasmática na superfície celular,
células permissivas. Os vírions podem conter, em condições de pH neutro. Para que a proteí-
ocasionalmente, uma cópia simples de RNA de na precursora F0 exerça sua função fusogênica, é
polaridade positiva (RNA antigenômico). O ge- necessária a sua prévia clivagem em F1 e F2 por
noma contém seqüências não-codificantes na ex- proteases celulares. Células infectadas podem se
tremidade 3’ (chamada leader), com aproximada- fusionar, formando sincícios ou células gigantes
mente 50 nt, e, na extremidade 5’, com 50 a 160 nt multinucleadas características, que podem pro-
(Figura 26.2). Essas regiões são importantes para duzir necrose tecidual in vivo. Uma vez no cito-
a transcrição e replicação do genoma. plasma, o nucleocapsídeo (RNA:N) é transcrito
Paramyxoviridae 665

Gênero Morbillivirus vírus do sarampo


NP P/C/V M F H L 5’
3'
Paramyxovirinae

Gênero Respirovirus vírus da parainfluenza 3

NP P/C/V M F HN L
Subfamília

3' 5’

Gênero Rubulavirus vírus da caxumba

NP P/V M F SH HN L
3' 5’

Gênero Pneumovirus vírus respiratório sincicial

L
NS1 NS2 N P M SH G F M2
3' 5’
Pneumovirinae

Gênero Pneumovirus vírus da pneumonia murina


Subfamília

NS1 NS2 N P M SH G F M2 L
3' 5’

Gênero Metapneumovirus pneumovírus aviário


N P M F M2 SH G L
3' 5’

Figura 26.2. Estrutura e organização genômica dos vírus da família Paramyxoviridae. As linhas finas representam o
RNA genômico; os retângulos representam os genes individuais. M) proteína da matriz; H) hemaglutinina; F)
proteína de fusão; L) polimerase; NP) nucleoproteína; HN) hemaglutinina-neuraminidase; P) fosfoproteína; C/V)
produtos do gene P; SH) proteína pequena hidrofóbica; G) glicoproteína do envelope; NS1 e NS2) proteínas não-
estruturais; M2) proteína associada ao envelope.

progressivamente a partir da extremidade 3’ pelo cópias de RNA de sentido antigenômico (polari-


complexo polimerase viral (proteínas L e P). dade positiva). As proteínas N e P parecem de-
A transcrição dos genes dos vírus RNA de sempenhar um papel importante nessa transição
polaridade negativa não-segmentados ocorre entre transcrição e replicação, fazendo com que
de forma individual, ou seja, cada gene possui o complexo replicase não reconheça os sinais de
sinais para a iniciação e término da transcrição. terminação existentes nas regiões intergênicas e
Com isso, cada gene é transcrito e resulta em um realize a transcrição integral do genoma e síntese
mRNA individual. Os mRNAs contêm 5’ cap na da cópia antigenômica (RNA +). Esta cópia an-
extremidade e são poliadenilados, sendo traduzi- tigenômica serve de molde para a produção de
dos em proteínas pelos ribossomos celulares. As moléculas de RNA de sentido genômico (RNA -).
etapas de transcrição e tradução prosseguem até À medida que são sintetizadas, as moléculas de
que ocorra o acúmulo das proteínas virais no cito- RNA de sentido negativo se associam com molé-
plasma das células infectadas. Em um determina- culas da proteína N, formando nucleocapsídeos
do momento, por mecanismos ainda não identi- helicoidais flexíveis que, posteriormente, se asso-
ficados, o complexo polimerase cessa a produção ciam com as proteínas P e L. A montagem dos
de mRNAs individuais e passa a transcrever nucleocapsídeos ocorre concomitantemente com
o genoma em toda a sua extensão, produzindo a síntese do RNA antigenômico e genômico, e os
666 Capítulo 26

RE Golgi
2 Tradução
1
A ED
HN 6
A 6
(-) G
A SH
3 Transcrição 4

A A A A A A
4 Tradução

N P L C V M

(+)
7
Síntese RNA
5 genômico

8
(-)

Figura 26.3. Ilustração esquemática do ciclo replicativo da familia Paramyxoviridae. 1) Ligação aos receptores; 2)
Penetração por fusão do envelope viral com a membrana plasmática; 3) Transcrição dos mRNA pelo complexo
polimerase; 4) Tradução das proteínas virais pelos ribossomos celulares; 5) Síntese de RNA antigenômico e
replicação do RNA genômico pelo complexo polimerase; 6) Processamento e transporte das proteínas do envelope e
inserção na membrana plasmática; 7) Morfogênese; 8) Egresso.

RNAs virais somente são encontrados como nu- plasmática, onde se associariam com as caudas
cleocapsídeos no interior da célula. citoplasmáticas das glicoproteínas ali inseridas.
A primeira etapa da morfogênese envolve Os nucleocapsídeos, então, interagiriam – atra-
a associação entre as proteínas N e o genoma, vés da proteína N – com as moléculas da proteína
seguido da adição do complexo L-P. A segunda M, resultando na sua protusão e brotamento na
etapa da montagem ocorre na membrana plas- membrana plasmática e no egresso dos vírions.
mática. As glicoproteínas HN (ou as equivalentes A Figura 26.3 representa um esquema do ciclo re-
nos outros vírus) e F (também a SH) produzidas plicativo dos paramixovírus.
no retículo endoplasmático (RE) e modificadas no
complexo de Golgi são transportadas em vesícu-
8 Paramixovírus de interesse
las trans-Golgi até a membrana plasmática, onde
são inseridas. Durante este transporte, a prote- veterinário
ína precursora F0 é clivada em F1 e F2, evento
essencial para a infectividade da progênie viral. As duas subfamílias dos paramixovírus
As etapas seguintes da morfogênese são pouco abrigam vírus associados com doenças importan-
conhecidas. Acredita-se que múltiplas cópias da tes em animais. Esses vírus e as doenças que eles
proteína M sejam transportadas até a membrana causam serão abordados a seguir.
Paramyxoviridae 667

8.1 Vírus respiratório sincicial bovino lopados e com dimensões variáveis. As partículas
esféricas medem entre 80 e 350 nm de diâmetro, e
Os vírus respiratórios sinciciais (RSV) foram as partículas filamentosas medem entre 60 e 100
descritos, pela primeira vez, em 1955, durante nm. Os vírions são muito sensíveis a pH ácido
um episódio de doença respiratória em chimpan- e são facilmente inativados pelo aquecimento a
zés de um laboratório em Washington (USA). O 56ºC por 30 minutos. A exposição a dietiléter,
agente viral isolado nessa ocasião e, inicialmente, clorofórmio e outros solventes apolares também
denominado chimpanzee coryza agent, foi, poste- destrói a infectividade viral. O vírus é extrema-
riormente, renomeado como respiratory syncytial mente lábil sob condições ambientais com tempe-
virus (RSV), baseado no seu efeito citopático ca- ratura elevada, mas permanece estável sob tem-
racterístico em cultivo celular. Diversos estudos peraturas de -50ºC ou menos por muitos meses.
subseqüentes levaram ao estabelecimento da im- Episódios de congelamento e descongelamento
portância do RSV como agente de doença respi- também são deletérios para a infectividade viral.
ratória em crianças no mundo inteiro, e o agente O genoma do BRSV possui aproximada-
passou a ser conhecido com vírus respiratório mente 15.000 nt, que codificam 10 polipeptídeos.
sincicial humano (human respiratory syncytial vi- As duas principais glicoproteínas do envelope
rus, HRSV). Mais de uma década após, um vírus são: a proteína G (responsável pela ligação aos
estreitamente relacionado ao HRSV foi isolado de receptores celulares) e a proteína F (responsável
bovinos em um episódio de doença respiratória pela fusão e penetração do vírus na célula e pela
severa na Suíça e no Japão, sendo denominado formação de sincícios). Outra proteína de su-
vírus respiratório sincicial bovino (bovine respira- perfície é a proteína hidrofóbica pequena (small
tory syncytial virus, BRSV). hydrophobic protein, SH). A estrutura e função das
Atualmente, o BRSV possui distribuição proteínas M, N, fosfoproteína P, proteínas M2 e L
mundial e está associado com doença respirató- parecem ser semelhantes às descritas para o res-
ria severa em bovinos jovens, caracterizada por tante da família.
bronquiolite e pneumonia intersticial. É um dos As diferenças antigênicas entre os isolados
agentes envolvidos no complexo respiratório de BRSV, detectadas pelo uso de anticorpos mo-
bovino, responsável por grandes perdas econô- noclonais, levaram à classificação antigênica des-
micas, principalmente em bezerros com idade sas amostras em subgrupos, denominados A, AB
inferior a um ano. Outros agentes virais, como o (ou intermediário) e B. No entanto, alguns isola-
herpesvírus bovino tipo 1 (BoHV-1), vírus da pa- dos não se enquadram em nenhum desses gru-
rainfluenza bovina (bPI-3) e vírus da diarréia vi- pos. As implicações práticas dessa diversidade
ral bovina (BVDV), e bacterianos (Pasteurella sp.) quanto à patogenicidade e imunoprofilaxia ainda
também são freqüentemente associados com este não foram devidamente estudadas.
complexo respiratório.
O BRSV pertence à família Paramyxoviridae, 8.1.1 Epidemiologia
subfamília Pneumovirinae, gênero Pneumovirus,
e possui relação antigênica com o HRSV e com O BRSV possui distribuição mundial, mas
os vírus respiratórios sinciciais ovino e caprino uma estimativa precisa da ocorrência da infecção
(ORSV e CRSV). O BRSV possui várias similari- é difícil, uma vez que outros patógenos virais e
dades com o HRSV, especialmente no que se refe- bacterianos podem estar envolvidos nos casos de
re à estrutura e morfologia dos vírions, organiza- doença respiratória. A dificuldade de isolamento
ção genômica e propriedades antigênicas. do agente também dificulta o diagnóstico, bem
Os membros da subfamília Pneumovirinae como a ocorrência de infecções subclínicas. Em
diferem dos demais paramixovírus pela ausência regiões endêmicas, surtos de doença respiratória
das proteínas neuraminidase e hemaglutinina no ocorrem, muitas vezes, esporadicamente, envol-
envelope viral; em certas dimensões das proje- vendo apenas grupos de animais mais suscetí-
ções de superfície e no diâmetro do nucleocapsí- veis. Em surtos naturais, a doença clínica é rara-
deo. Os vírions do BRSV são pleomórficos, enve- mente observada em animais com idade inferior
668 Capítulo 26

a duas semanas, sendo mais severa em bezerros sugere que o BRSV pode causar doença sem a
entre um e cinco meses de idade. A doença é in- ocorrência de fatores ambientais predisponentes.
comum entre animais com idade superior a nove A morbidade da infecção pode atingir 80 a
meses, mas pode, ocasionalmente, ocorrer em 100% dos animais. No entanto, a taxa de mortali-
animais adultos. dade raramente excede 5 a 10%, dependendo das
No Brasil, o vírus foi detectado pela primei- condições sanitárias do rebanho.
ra vez por Gonçalves et al. (1993), em amostras de
pulmões de bezerros do estado do Rio Grande do 8.1.2 Patogenia, sinais clínicos
Sul (RS). O isolamento e a identificação viral fo- e patologia
ram realizados por Arns et al. (2003), a partir de
amostras de secreções naso-traqueais de animais Embora a patogenia das infecções pelo BRSV
com sinais respiratórios procedentes do RS. Em não tenha sido totalmente esclarecida, diversas
um estudo mais abrangente, foram isoladas e ca- evidências indicam a importante participação de
racterizadas cinco amostras do BRSV oriundas de mecanismos imunomediados. A infecção pelo
rebanhos leiteiros e de corte dos estados do RS e BRSV aumenta a aderência e colonização bacte-
Minas Gerais. Todas as amostras analisadas per- riana e altera os mecanismos específicos e inespe-
tencem ao subgrupo B. cíficos de defesa do trato respiratório. Por essas
Embora a forma de transmissão do BRSV razões, estima-se que muitas pneumonias bacte-
durante a infecção natural não seja completamen- rianas se desenvolvam após infecções virais.
te definida, sugere-se que seja necessário o conta- Após a penetração pela via respiratória,
to próximo entre animais. Dados experimentais o BRSV replica nas células epiteliais da mucosa
demonstraram que a transmissão por aerossóis nasal, faringe, traquéia e pulmões. O vírus apa-
pode ocorrer a curtas distâncias. Animais expos- rentemente não produz viremia e raramente foi
tos experimentalmente a aerossóis contendo o ví- detectado fora do sistema respiratório. Antígenos
rus e após inoculação intratraqueal apresentam virais podem ser detectados na mucosa da naso-
lesões muito semelhantes às observadas a campo, faringe dois dias após infecção experimental, bem
o que sugere que a inoculação por aerossol simu- como nos linfonodos traqueobronquiais. As célu-
le a forma natural da infecção. las pulmonares somente aparecem infectadas en-
Em climas temperados, a maioria dos surtos tre 4 e 13 dias após a infecção. As células epiteliais
associados ao BRSV ocorre no início do inverno, dos bronquíolos são as primeiras a serem infecta-
embora episódios severos da doença já tenham das, seguidas pelas células alveolares. Antígenos
sido relatados no verão. Não se sabe como o virais podem também ser detectados em macró-
BRSV se mantém entre os surtos, e é possível que fagos alveolares, embora o papel dessas células
o vírus permaneça circulante em baixos níveis na patogenia seja controverso. É provável que
entre os animais soropositivos. O reaparecimen- pelo menos um subgrupo de macrófagos alveo-
to do vírus em rebanhos fechados pode também lares possam ser permissivos à replicação viral
ser explicado pela persistência do agente em e, portanto, possam contribuir para a patogênese
animais infectados, uma vez que a aplicação de da infecção. Além disso, os macrófagos ativados
corticosteróides em animais soropositivos resul- liberam citocinas que potencialmente contribuem
ta em um aumento de quatro vezes nos títulos para as lesões. O pico de excreção viral em secre-
de anticorpos. Alterações climáticas podem au- ções nasais ou pulmonares e em células pulmo-
mentar a incidência da infecção, principalmente nares ocorre entre quatro e oito dias após a infec-
o clima úmido e a presença de vento, assim como ção. Em bovinos infectados experimentalmente,
fatores que afetam a atividade mucociliar, como o vírus foi isolado de secreções nasais 24 horas
níveis elevados de amônia no ambiente. Embora pós-infecção, e o RNA viral foi detectado em se-
boas condições e manejo adequado dos animais creções nasais pela reação em cadeia da polime-
reduzam a incidência de infecções pelo BRSV, re- rase acoplado à transcrição reversa (RT-PCR) até
banhos em excelentes condições nesses aspectos 17 dias pós-infecção. O vírus pode ser detectado
também podem apresentar surtos severos. Isto em células oriundas de lavado pulmonar aos dois
Paramyxoviridae 669

dias após a infecção. Nos tecidos traqueais, o ví- da camada muscular peribronquiolar e focos
rus foi detectado precocemente às 24 horas após de metaplasia escamosa do epitélio bronquial e
a infecção, foi isolado no dia quatro e continuou bronquiolar. São observadas ainda alterações in-
sendo detectado além dos 10 dias subseqüentes. flamatórias mononucleares com áreas focais de
Os sinais clínicos após a infecção natural in- infiltrado eosinofílico. Bronquite, peribronquite e
cluem pirexia (>39,5ºC), descarga nasal, tosse, ta- bronquiolite são igualmente achados histológicos
quipnéia, respiração bucal e abdominal, enfisema característicos após a infecção natural pelo BRSV.
pulmonar e subcutâneo e ocasionalmente morte. Outras importantes alterações histopatológicas
Infecções bacterianas secundárias, especialmente incluem o espessamento da parede alveolar, pro-
por Pasteurella multocida, Streptococcus pneumoniae liferação do epitélio bronquiolar com perda de
e Mycoplasma bovis, são freqüentemente detecta- cílios, epitelização alveolar, formação de mem-
das em surtos de BRSV. Quando não ocorrem branas hialinas, edema e exsudato nos espaços
infecções bacterianas secundárias, os animais se alveolares, bronquiais e bronquiolares, colapso
recuperam em duas a três semanas após a infec- de alvéolos, infiltração de neutrófilos, linfócitos
ção. e eosinófilos.
Os achados de necropsia incluem pneumo-
nia intersticial multifocal, enfisema alveolar dis-
8.1.3 Imunidade
seminado com focos de atelectasia, e enfisema in-
tersticial em graus moderados. Uma característica
A proteína F é considerada a mais imunogê-
marcante da doença é o espessamento dos septos
nica do BRSV, superando a proteína G na indu-
interlobulares. Pequenas franjas conjuntivas são
ção de anticorpos neutralizantes e na imunidade
evidenciadas nos bordos do pulmão e dão um
mediada por linfócitos T citotóxicos. A proteína F
aspecto fosco a essas regiões. Alguns relatos des-
ainda induz a produção de anticorpos inibidores
crevem uma hipertrofia marcante do miocárdio
da fusão, que estão relacionados com proteção
do ventrículo direito.
frente à infecção. A imunização de animais com
As mucosas da cavidade nasal, traquéia e
as proteínas F, G e N expressas separadamente
brônquios dos animais infectados podem apre-
no vírus vaccinia conferiu proteção contra o de-
sentar-se hiperêmicas, especialmente nos estágios
safio com o BRSV. Um estudo realizado em ani-
iniciais da infecção. O septo interlobular muitas
mais experimentalmente infectados demonstrou
vezes aparece espessado, devido ao edema pro-
que a imunidade humoral contra a proteína F é
nunciado causado por obstrução dos brônquios,
mais duradoura e de maior intensidade do que
que pode levar à dispnéia severa. As porções a induzida pela proteína G. Anticorpos contra as
dorsal e crânio-dorsal dos pulmões podem se proteínas P, M e M2 também estão presentes em
apresentar normais em muitos casos, mas podem infecções naturais.
também estar marcadamente distendidas, devido Os anticorpos maternos contra as proteínas
ao edema e enfisema intersticial e alveolar seve- F, G e N presentes no soro de bezerros não con-
ros. Os linfonodos regionais do trato respiratório ferem proteção frente à infecção pelo BRSV, mas
podem estar aumentados e edematosos. podem reduzir a severidade da doença. Esses
No exame histopatológico, é possível se ob- anticorpos causam um decréscimo na replicação
servar células sinciciais em grande quantidade, viral nos pulmões após o desafio. A sua presença
localizadas principalmente nos bordos dos ló- ainda suprime a resposta imune humoral local e
bulos pulmonares, nos alvéolos, bronquíolos e, sistêmica à infecção. Desse modo, a vacinação de
por vezes, em vasos linfáticos. As células sinci- animais jovens pode ser prejudicada pela presen-
ciais apresentam um número variável de núcleos ça de anticorpos maternos.
dispostos centralmente. Há presença de enfisema Estudos em bovinos têm demonstrado que
alveolar crônico com bordos de septos alveola- a infecção pelo BRSV induz uma resposta imu-
res rompidos em forma de clava, por vezes in- nológica predominantemente de linfócitos T au-
tercalados com áreas de atelectasia, hipertrofia xiliares do tipo Th2, que são caracterizadas pela
670 Capítulo 26

produção de interleucinas (IL) 4 e 10. Estas IL controle do trânsito de animais e na utilização de


estimulam a produção de anticorpos, incluindo vacinas.
a classe IgE, que, por sua vez, estimulam o re- Existe uma grande carência de vacinas pro-
crutamento de eosinófilos para o parênquima tetoras contra o BRSV. Vacinas apropriadas de-
pulmonar. O quadro de intensa bronquiolite evi- vem ser capazes de conferir proteção mesmo na
denciado nas infecções pelo BRSV pode ser par- presença de anticorpos maternais, proteger con-
cialmente explicado pela resposta eosinofílica. tra todos os subtipos e prevenir as manifestações
clínicas. Várias vacinas inativadas e atenuadas
8.1.4 Diagnóstico estão disponíveis comercialmente. No entanto, o
desafio experimental e a campo têm demonstra-
O diagnóstico da infecção pelo BRSV deve do resultados inconclusivos quanto à sua eficácia.
se basear na detecção de antígenos virais em Recentemente, uma vacina, utilizando o BoHV-1
amostras clínicas, além da sorologia. Os métodos como vetor para a proteína G do BRSV, reduziu
de escolha para a detecção de antígenos do BRSV os sinais clínicos e a excreção viral após o desafio.
em amostras de pulmão são as técnicas de imu- A proteína G, como antígeno alvo de uma vacina
nofluorescência (IFA) e imunoperoxidase (IPX). de DNA, também apresentou sucesso frente ao
O exame de secreções nasais pode se constituir desafio.
em uma alternativa para o diagnóstico no animal O desenvolvimento de vacinas contra as in-
vivo. O lavado broncoalveolar pode ser mais in- fecções pelo BRSV e HRSV foi, em parte, prejudi-
dicado do que os suabes nasais para a demons- cado por um fato inusitado ocorrido na década
tração de antígenos. de 1960. O uso de uma vacina contra o HRSV,
A fragilidade dos vírions do BRSV torna o inativada pela formalina, exacerbou a enfermi-
isolamento em cultivo celular trabalhoso e fre- dade induzida pelo vírus de campo e causou
qüentemente infrutífero, requerendo repetidas mortes em um grande número de crianças. A
passagens até o aparecimento de efeito citopático. interação com a formalina provocou alterações
Cuidados especiais na conservação de amostras, conformacionais nos antígenos vacinais, levando
incluindo a coleta estéril, manutenção dos espé- à formação de imunocomplexos que resultaram
cimes sob refrigeração (evitar o congelamento a no desencadeamento de uma reação de hipersen-
-20ºC) e envio imediato ao laboratório aumentam sibilidade do tipo III.
as chances de isolamento do vírus. Também é re- Além desses problemas, a imunidade de
comendável a coleta de suabes nasais ou lavados curta duração, conferida após a infecção natural,
broncoalveolares de diferentes animais do reba- deixa dúvidas sobre a durabilidade da proteção
nho. Em casos de necropsia, a coleta de áreas pul- conferida pelas vacinas. Outra exigência de difícil
monares adjacentes às áreas mais afetadas e de resolução é a necessidade de que a vacina induza
áreas com aspecto saudável também aumentam imunidade protetora contra as diferentes varian-
a probabilidade de detecção do vírus. tes antigênicas encontradas a campo.
Para o diagnóstico sorológico, as técnicas
de ensaio imunoenzimático (ELISA) e soroneu- 8.2 Vírus da parainfluenza bovina tipo 3
tralização (SN) têm sido amplamente utilizadas.
O diagnóstico também pode ser realizado pela O bPIV-3 é um membro da família Para-
detecção do RNA viral em amostras clínicas por myxoviridae, subfamília Paramyxovirinae, gênero
RT-PCR. Respirovirus, responsável por infecções respirató-
rias em bovinos e ovinos. O vírus foi isolado pela
8.1.5 Controle e profilaxia primeira vez nos EUA, em 1959, a partir de se-
creções nasais de bovinos com sinais clínicos do
O controle da enfermidade depende de co- quadro denominado “febre do transporte”.
nhecimentos sobre a prevalência e epidemiologia Os vírions possuem sete proteínas, codifica-
do vírus. Os programas de controle são basea- das pelo genoma RNA de fita simples e polarida-
dos em melhorias de manejo, biossegurança, no de negativa, constituído por, aproximadamente,
Paramyxoviridae 671

15.000 nt. A glicoproteína HN (hemaglutinina- infecção, atuando como disseminadores do vírus


neuraminidase) está envolvida na ligação aos para os bovinos.
receptores e egresso do vírus, conferindo-lhe a A doença é caracterizada por baixa morbida-
propriedade de aglutinar hemácias de bovinos, de; a mortalidade é rara. Taxas mais altas de mor-
cobaias, suínos, humanos e aves. A proteína F bidade e mortalidade podem ocorrer em casos de
está envolvida na penetração e transmissão do co-infecções com agentes virais ou bacterianos. A
vírus entre células. As proteínas HN e F estão as- faixa etária mais afetada é a de dois a seis meses
sociadas com a patogenia da infecção e são res- de idade, acompanhando o declínio da imunida-
ponsáveis pela formação de sincícios em células de passiva. No entanto, já foram relatados casos
de cultivo, o que constitui o efeito citopático do em animais mais jovens.
vírus. Essas proteínas são importantes para a in-
dução de anticorpos neutralizantes e inibidores 8.2.2 Patogenia, sinais clínicos
da hemaglutinação. Além de bovinos, o vírus e patologia
pode infectar naturalmente outras espécies, in-
cluindo cães, eqüinos, macacos e humanos. Após a penetração pelas vias aéreas supe-
O bPIV-3 é estreitamente relacionado com o riores, o vírus replica no epitélio nasal, faríngeo
vírus da parainfluenza humana tipo 3 (HPIV-3), e traqueal. Durante a infecção do trato respira-
apresentando semelhanças genéticas e antigêni- tório inferior, o vírus pode infectar pneumócitos
cas importantes. Estudos de proteção demons- do tipo II, causando lesões nos alvéolos pulmo-
traram aproximadamente 25% de neutralização nares.
cruzada entre esses vírus. Em infecções naturais, os sinais clínicos mais
freqüentemente observados são: dispnéia, tosse,
8.2.1 Epidemiologia descarga nasal serosa ou mucopurulenta, lacri-
mejamento, conjuntivite, inapetência e tempera-
A distribuição do bPIV-3 é mundial e a pre- tura elevada. Esses sinais são típicos da febre do
valência de anticorpos específicos é alta na po- transporte. Em bezerros infectados experimen-
pulação bovina. No Brasil, a infecção é endêmica talmente, a doença é caracterizada por febre, hi-
com altas taxas de soropositividade nos rebanhos. pertermia, lacrimejamento, descarga nasal serosa
Estudos realizados no RS indicam uma prevalên- abundante, depressão, dispnéia e tosse. Muitos
cia de anticorpos superior a 80% em gado de lei- animais apresentam sinais brandos, recuperan-
te e corte, demonstrando a ampla disseminação do-se em poucos dias, porém a infecção pode re-
do agente. Apesar das evidências sorológicas da sultar em pneumonia intersticial, afetando geral-
presença do vírus no Brasil, raramente tem sido mente os lobos pulmonares anteriores. Sons de
relatado o isolamento do agente. O vírus foi iso- crepitação em lobos pulmonares diafragmáticos
lado de um animal com doença respiratória no podem ser auscultados em casos mais graves,
RS e de um surto de abortos em bovinos no esta- com presença de enfisema. A doença geralmente
do de Goiás. A prevalência alta da infecção, as- evolui para a cura espontânea. No entanto, um
sociada aos raros relatos de doença respiratória tratamento de suporte para possíveis infecções
nos rebanhos, sugere que a maioria das infecções secundárias, incluindo antibióticos, pode ser ne-
é inaparente. cessário em casos mais graves. O aborto é uma
A disseminação do vírus no rebanho ocor- conseqüência esporádica da infecção em vacas
re aparentemente por contato direto e indireto. gestantes.
Fatores predisponentes para a infecção incluem Os achados de necropsia incluem pneumo-
o estresse (vacinação, desmame, transporte), nia exsudativa, que atinge preferencialmente as
excesso de lotação e ventilação inadequada, es- porções craniais e ventrais dos lobos pulmonares.
pecialmente em rebanhos leiteiros estabulados. Bronquite e bronquiolite com infiltrado plasmo-
Os ovinos também são susceptíveis à infecção e, citário estão presentes ao exame histopatológico.
possivelmente, participam da epidemiologia da Hiperplasia e necrose do epitélio bronquiolar
672 Capítulo 26

também podem ser observadas. A infecção pro- 8.2.5 Controle e profilaxia


vavelmente induz uma imunossupressão loca-
lizada, o que favorece a instalação de infecções
A prevenção da enfermidade deve se base-
bacterianas secundárias.
ar em medidas de higiene, manejo, controle do
trânsito de animais, quarentena e vacinação. Va-
8.2.3 Imunidade
cinas vivas e inativadas estão disponíveis para o
controle das infecções pelo bPIV-3. Essas vacinas
Anticorpos com atividade neutralizante,
geralmente contêm outros agentes virais e bac-
especialmente da classe IgG2, e anticorpos inibi-
terianos associados com doença respiratória em
dores da hemaglutinação são detectáveis no soro
bovinos. A relação custo-benefício do seu uso
de animais convalescentes. A proteção contra o
em situações epidemiológicas em que a doença
aparecimento de sinais clínicos induzidos por
é rara, como no Brasil, deve ser considerada. Ati-
reinfecções pelo bPIV-3 está associada com altos
vidades de manejo que evitem a superlotação,
títulos de anticorpos neutralizantes e presença de
cuidados com mudanças bruscas de temperatura
resposta imune celular de memória. A imunida-
e administração adequada de colostro podem au-
de de mucosas, especialmente aquela mediada
xiliar na prevenção da doença.
por IgA, parece ser importante na proteção con-
tra reinfecções. No entanto, a imunidade é geral-
mente passageira, e os animais podem se tornar 8.3 Vírus da peste bovina
susceptíveis à reinfecção após alguns meses.
A peste bovina (rinderpest) foi descrita
8.2.4 Diagnóstico pela primeira vez na Ásia, no século IV. A doença
é causada por um Morbillivirus que, nos séculos
O bPIV-3 deve ser considerado em casos de XVIII, XIX e XX, causou epidemias devastado-
doença respiratória em bovinos jovens. A suspei- ras na Europa e na África subsaariana. Um surto
ta clínica deve ser confirmada por testes labora- ocorrido, em 1920, na Europa, motivou a criação
toriais. O diagnóstico laboratorial baseia-se no da OIE (Office International des Epizooties) em Pa-
isolamento do vírus em cultivo celular, a partir ris. Casos da doença foram relatados em regiões
de secreções nasais de animais doentes. O vírus da África, do Oriente e da Ásia, no entanto está
pode ser recuperado de secreção nasal de 7 a 9 em processo de erradicação nesses locais. Acre-
dias pós-infecção. O vírus produz citomegalia, dita-se que outros morbilivírus, como o CDV e o
arredondamento celular e formação de sincícios vírus do sarampo, tenham se originado a partir
em células primárias ou de linhagem bovina, do vírus da peste bovina há mais de 5.000 anos.
efeito característico dos membros da família Pa- Os vírions são sensíveis a maioria dos desinfetan-
ramyxoviridae. tes (fenol, hidróxido de sódio, solventes lipídicos,
A identificação do vírus pode ser realizada entre outros), mantêm a viabilidade por longos
por IFA de células inoculadas com o material períodos em tecidos congelados e são estáveis
suspeito. O método clássico de identificação é a sob pH 4 a 10.
hemaglutinação (HA) com eritrócitos de cobaias, Esse vírus pode infectar todas as espécies
seguida de inibição da hemaglutinação (HI) com da ordem Artiodactyla, incluindo ovinos, capri-
anti-soro específico. Outro método clássico de nos, suínos, cervídeos, camelos, antílope africa-
diagnóstico é a reação de hemadsorção em culti- no, hipopótamos e outros animais selvagens. Os
vo celular. As técnicas moleculares (RT-PCR) têm bovinos e búfalos estão envolvidos com maior
sido utilizadas para a detecção do agente e seus freqüência nos surtos da doença febril e fatal, mas
produtos. A sorologia pareada também pode au- a doença é menos severa nas outras espécies. Em
xiliar o diagnóstico da infecção aguda. As técni- suínos, a infecção pode ser assintomática e, em
cas de eleição para a sorologia são a HI com eri- áreas endêmicas, pode-se observar doença mais
trócitos de cobaias, a SN e ELISA. branda em bovinos e búfalos. A morbidade em
Paramyxoviridae 673

populações susceptíveis é de aproximadamente dução do agente. Quarentena, o abate de animais


100%, e a mortalidade pode atingir 90 a 100%. suspeitos e proibição da importação de produtos
A transmissão do vírus dá-se pela ingestão de origem animal não-cozidos de áreas de risco
e/ou contato com água e alimentos contamina- são as medidas adotadas em áreas livres. A peste
dos com excreções e secreções de animais infec- bovina é uma doença de notificação obrigatória,
tados. O agente penetra no hospedeiro provavel- segundo a OIE. Vacinas atenuadas são aplicadas
mente pela via oral e/ou nasal. Dois dias antes de em animais nas áreas em que a doença é endê-
apresentar sinais clínicos, os animais já excretam mica, e a imunidade pode permanecer por vários
o vírus em grande quantidade. O vírus replica anos.
inicialmente em linfonodos faríngeos, mandibu-
lares e tonsilas, disseminando-se pelo organismo 8.4 Vírus da peste dos pequenos
por viremia. Após um período de incubação de ruminantes
três a cinco dias, os animais apresentam hiper-
termia. A fase de lesões nas mucosas ocorre em A peste dos pequenos ruminantes (pest dês
seguida, com inflamação e erosões na mucosa petit ruminants) é uma doença sistêmica e conta-
dos tratos digestivo e respiratório, descarga nasal giosa de ovinos e caprinos, clinicamente seme-
mucopurulenta e diarréia aquosa, às vezes, com lhante à peste bovina. A doença é causada por
sangue. São observados, ainda, arqueamento do um Morbillivirus (PPRV) relacionado antigenica-
posterior e rápida perda de peso, leucopenia e mente com o vírus da peste bovina. No entanto,
imunossupressão. Fêmeas prenhes podem abor- ao contrário da peste bovina, grande parte das
tar. Durante a necropsia, observa-se necrose das infecções por este vírus é subclínica. A infecção
placas de Peyer, congestão e hemorragias no epi- tem sido descrita no oeste da África, na Península
télio intestinal, aumento e edema nos linfonodos Arábica, Oriente Médio e na Índia. Além dos ovi-
e erosões nas mucosas oral e nasal. nos e caprinos, espécies de ungulados selvagens
O diagnóstico laboratorial pode ser reali- e uma espécie de cervídeo (Odocoileus virginia-
zado a partir de urina, sangue, secreções nasais, nus) são susceptíveis ao vírus. Os bovinos e suí-
orais e fezes coletadas de animais doentes; ou de nos geralmente desenvolvem infecções inaparen-
linfonodos e baço coletados de animais recente- tes. Em áreas endêmicas, a peste dos pequenos
mente mortos. Em áreas endêmicas, o diagnósti- ruminantes é uma importante causa de impacto
co freqüentemente é realizado pelos sinais clíni- econômico.
cos severos. A transmissão do vírus ocorre por contato
O isolamento e identificação do vírus po- direto ou indireto com excreções e secreções de
dem ser realizados pela inoculação do material animais infectados, pelas vias oral e/ou nasal.
suspeito em células primárias ou de linhagem de Durante um período de incubação de três a dez
origem bovina, ovina, suína e também em células dias, o vírus replica nos linfonodos regionais e
Vero. A inoculação de ovos embrionados ou de produz viremia. Na viremia, que dura dois ou
animais de laboratório (coelhos, camundongos e três dias, o vírus se dissemina para o baço, me-
cobaias) também pode ser realizada. A detecção dula óssea, trato gastrintestinal e respiratório,
de antígenos por IFA, IPX, imunoeletroforese ou além dos tecidos linfóides. Os sinais clínicos in-
imunodifusão em gel de ágar (IDGA) também é cluem hipertermia, anorexia, letargia, gengivite,
indicada. A detecção do RNA viral por RT-PCR estomatite, conjuntivite, diarréia e desidratação.
representa uma alternativa rápida e sensível de Abortos podem ocorrer em fêmeas prenhes.
diagnóstico. Técnicas sorológicas (ELISA, SN) Broncopneumonia, com infecções secundárias,
podem ser empregadas no soro de animais que também pode ser observada. Na necropsia, ob-
sobreviveram por um período suficiente para serva-se estomatite erosiva necrosante na mu-
produzir anticorpos. cosa oral, conjuntivite catarral profusa, áreas de
Em países livres, a prevenção e o controle necrose na mucosa nasal, erosões e hemorragias
da doença são direcionados para evitar a intro- no intestino, necrose e ulceração nas placas de
674 Capítulo 26

Peyer, congestão e aumento de volume no baço e também apresentam variações de patogenicida-


nos linfonodos. Vulvovaginite erosiva, pleurite e de e virulência nos hospedeiros.
hidrotórax também têm sido descritos.
O diagnóstico laboratorial da infecção pode 8.5.1 Epidemiologia
ser realizado a partir de secreções (oral, nasal e
ocular), sangue, linfonodos mesentéricos, baço, A infecção pelo CDV é enzoótica no mun-
pulmões e linfonodos bronquiais. Para a detec- do inteiro, com a doença ocorrendo com maior
ção de antígenos virais, utilizam-se as técnicas freqüência em cães jovens não-vacinados. Falhas
de IDGA, imunoeletroforese, IFA, ELISA e IPX. vacinais, associadas com esquemas de vacinação
O isolamento viral pode ser realizado em células inadequados ou mesmo com vacinas comerciais
primárias de rim bovino e na linhagem Vero. A de baixa qualidade, podem resultar na ocorrência
detecção de partículas virais por ME e a ampli- de doença mesmo em cães vacinados. Em outros
ficação de RNA por RT-PCR também podem ser países a situação é semelhante. Países desenvol-
utilizadas, além de testes sorológicos como a SN, vidos que reduziram a incidência da doença pela
ELISA e IDGA. vacinação massiva ainda apresentam surtos es-
Algumas vacinas têm sido utilizadas para porádicos de cinomose.
limitar a disseminação da infecção. O controle é O contato direto com as secreções nasais,
baseado em medidas para impedir a introdução orais e urina de animais infectados se constitui na
de animais infectados em áreas livres. principal forma de transmissão do CDV. A disse-
minação do vírus a curtas distâncias por aeros-
8.5 Vírus da cinomose sóis também parece ocorrer com certa freqüência.
A transmissão por fômites e no ambiente nosoco-
A infecção pelo vírus da cinomose (CDV) mial também tem sido descrita. Após a infecção,
ocorre em canídeos domésticos e selvagens, além os animais excretam o vírus nos fluidos corporais
de outros mamíferos das famílias Felidae, Muste- por períodos prolongados.
lidae, Procyonidae e Viverridae. Porém, a sua maior Grande parcela dos cães infectados não de-
importância na rotina veterinária está relaciona- senvolve a forma clínica da infecção. Entretanto,
da com as manifestações clínicas em cães domés- existem amostras de CDV com vários níveis de
ticos. O CDV é um membro do gênero Morbillivi- patogenicidade. Este fato, associado com fatores
rus e é antigenicamente relacionado com o vírus do hospedeiro, como idade, status imunológico e
do sarampo, com o vírus da peste dos pequenos infecções secundárias, podem influenciar na ma-
ruminantes e com o vírus da peste bovina, estes nifestação das diferentes formas clínicas da do-
dois últimos ainda não relatados no Brasil. A ci- ença.
nomose apresenta sinais clínicos sistêmicos, que Outro aspecto importante da biologia do
podem ser acompanhados de sinais neurológi- CDV é a gama crescente de espécies de mamíferos
cos. que se infectam naturalmente. Os danos ecológi-
Os vírions do CDV possuem as proteínas F cos associados com essas infecções puderam ser
e H no envelope, e a proteína H é a responsável observados nos surtos de cinomose com elevadas
pelo tropismo do vírus no organismo, possuindo taxas de mortalidade em leões e hienas no Par-
função importante na sua neuroinvasividade. O que Nacional do Serengueti (Tanzânia, continen-
envelope lipoprotéico viral é facilmente destruí- te africano). A infecção pelo CDV é fatal também
do por desinfetantes, e o vírus é muito sensível às para outros animais domésticos, como os furões.
condições ambientais de temperatura e radiação A infecção de gatos domésticos parece não ser
solar. patogênica, embora o CDV possa causar doença
Somente um sorotipo do CDV tem sido des- grave em grandes felinos selvagens. O controle
crito, porém tem sido demonstrado que os iso- desse vírus se torna difícil pelo grande número
lados de campo apresentam uma variabilidade de espécies selvagens que podem ser infectadas,
antigênica considerável. Os isolados do CDV incluindo animais da família Canidae (lobos, ra-
Paramyxoviridae 675

posas, coiotes, dingo e chacal), Procyonidae (mão- monstram que, inicialmente, a infecção pelo CDV
pelada, coati e panda), Mustelidae (ferret, marta, promove uma disfunção metabólica nas células
texugo, cangambá e lontra), Viverridae (civet) e que produzem a mielina. No entanto, durante a
da família Felidae (leopardo, leões, tigres e gue- inflamação crônica, as lesões são decorrentes do
pardos). Surtos de enfermidade com alta mortali- processo inflamatório, com a destruição dessas
dade em focas e outros mamíferos marinhos têm células por macrófagos e por anticorpos.
sido descritos no mar Mediterrâneo e atribuídos A infecção do sistema reticuloendotelial e
ao CDV e a outros vírus relacionados. de linfonodos é caracterizada pela hiperplasia
e formação de células gigantes multinucleadas
nesses órgãos. No SNC, ocorre encefalite não-
8.5.2 Patogenia, sinais clínicos
supurativa. No sistema respiratório, pode ser
e patologia observada pneumonia intersticial. A detecção de
corpúsculos de inclusão eosinofílicos intracito-
Após a inalação das partículas víricas, o plasmáticos e intranucleares, denominados cor-
CDV replica no epitélio e em macrófagos do trato púsculos de Lenz, pode ser realizada nos tecidos
respiratório superior e, a seguir, alcança os linfo- em que ocorreu a replicação viral. Essas inclusões
nodos regionais. Em um período de até uma se- são detectadas com maior freqüência em células
mana após a infecção, o vírus é carreado por lin- sangüíneas, astrócitos, neurônios e no epitélio da
fócitos e se dissemina pelos órgãos linfóides. Essa bexiga, associadas com desmielinização e altera-
fase é denominada viremia primária, e é respon-
sável pelo primeiro pico febril. A progressão da
infecção depende da resposta imune do animal. A
maioria dos cães desenvolve uma resposta imune
celular e humoral eficaz e não manifesta sinais clí-
nicos da doença. Os cães infectados que não con-
seguem montar uma resposta eficiente acabam
por apresentar a doença em diferentes níveis de
gravidade, em até três semanas após a infecção.
Nestes animais, o vírus é carreado por linfócitos
e monócitos, produzindo a viremia secundária
(segundo pico de febre) e se disseminando para a
pele e para os tratos digestivo, respiratório, uro-
genital e sistema nervoso. As manifestações clí-
nicas apresentam correlação com os órgãos e/ou Fonte: adaptada do site: www.bakerinstitute.vet.cornell.edu.
tecidos afetados. A patogenia da infecção pelo
CDV está ilustrada na Figura 26.4. Figura 26.4. Patogenia da cinomose canina. O CDV
Células mononucleares carreiam o CDV penetra geralmente pela via oronasal e replica
inicialmente nos epitélios e em macrófagos das vias
para o SNC, por diferentes vias: através da bar- aéreas superiores, faringe e tonsilas. A replicação
reira hematoencefálica, pelo fluido cefalorraqui- primária é seguida de viremia que permite a
diano e/ou pelo epêndima dos ventrículos. A disseminação sistêmica do vírus e infecção de uma
variedade de linfonodos e acúmulos linfóides, levando a
grande variedade de sinais neurológicos da cino- um quadro de imunossupressão. Em cães que não
mose está relacionada com as lesões multifocais conseguem montar uma resposta imune eficiente, o
no SNC. Os sítios de predileção do vírus são: a vírus produz uma viremia secundária, dissemina-se e
replica em vários tecidos, incluindo células epiteliais da
substância branca do cerebelo, periventricular e pele, dos tratos digestivo, respiratório e urinário, no
ao redor do quarto ventrículo, a medula óssea sistema nervoso central (SNC) e no sistema retículo-
e a via óptica. Geralmente, a desmielinização é endotelial. Esses animais podem apresentar uma
variedade de manifestações clínicas, relacionadas com
a lesão predominante, decorrente da replicação os órgãos e tecidos afetados. A incapacidade de erradicar
viral na substância branca. Alguns estudos de- o vírus pode resultar em persistência viral no SNC.
676 Capítulo 26

ções em astrócitos no sistema nervoso. Infiltrado das células que produzem o esmalte e é deno-
mononuclear perivascular pode ser observado minada hiperplasia de esmalte. A infecção de
na substância cinzenta do SNC. Na necropsia, o cadelas prenhes pode resultar em transmissão
cérebro apresenta malácia e, ao exame microscó- transplacentária do vírus, podendo causar abor-
pico, o cerebelo e porções mais basais do encéfalo tos, natimortos, nascimento de filhotes fracos e
apresentam lesões de necrose; raramente o córtex imunossuprimidos.
é atingido.
A forma aguda da doença é mais comum em 8.5.3 Imunidade
animais com idade entre quatro e seis meses, pela
perda da imunidade passiva. Observa-se apa- A sobrevivência do animal depende funda-
tia, secreção nasal e ocular serosa a seromucosa mentalmente do desenvolvimento de uma res-
e imunossupressão. A infecção na pele produz posta imune celular efetiva. A resposta imune
pústulas abdominais e, no tegumento, resulta em humoral também é importante, pois cães com
hiperqueratose do focinho e das almofadas plan- títulos medianos de anticorpos (entre 16 e 64)
tares, causada pela infecção das células basais do parecem estar protegidos contra a doença aguda.
epitélio. A replicação viral no sistema respirató- Títulos de anticorpos inferiores a 16 não prote-
rio inferior, quando associada com infecções bac- gem os cães, porém interferem com o sucesso da
terianas secundárias, pode causar pneumonia in- vacinação. A imunidade passiva declina entre a
tersticial. Conjuntivite purulenta é outro achado 8a e 14a semanas de vida dos filhotes, deixando-
freqüente. Diarréia com fezes amolecidas é ob- os susceptíveis à infecção. Antes disso, a imuni-
servada pela infecção do trato digestório. A do- dade passiva pode comprometer o sucesso da
ença hiperaguda se manifesta com sinais graves vacinação, pela inativação do vírus vacinal pelos
de ataxia e alterações do comportamento em cães anticorpos. Diferenças antigênicas entre isolados
jovens, sendo associada com a vacinação com pa- de campo e cepas vacinais têm sido implicadas
tógenos imunossupressores, como o parvovírus como causa de falhas vacinais. Essas falhas resul-
canino (CPV-2), ou mesmo pela reversão da vaci- tam na ocorrência de cinomose mesmo em cães
na atenuada à virulência. vacinados.
O CDV pode produzir uma infecção grave
do SNC, caracterizada por encefalite e desmieli-
nização. Essa patologia pode estar associada ou 8.5.4 Diagnóstico
não com as manifestações sistêmicas e caracteri-
za-se por inflamação da substância cinzenta no A ocorrência de lesões cutâneas e doença
cérebro e cerebelo. Além da forma aguda, uma respiratória em cães jovens, associadas ou não
forma crônica progressiva da enfermidade é re- com sinais neurológicos, são sugestivos de cino-
conhecida em cães adultos (três a oito anos de mose. Uma linfopenia pode estar presente no he-
idade). Nestes casos, as alterações são restritas ao mograma de animais doentes.
SNC. Os sinais neurológicos, também presentes O diagnóstico laboratorial pode ser realizado
na forma aguda, incluem hipersalivação, mioclo- pela detecção de antígenos do CDV em esfrega-
nias, tremores, incoordenação, diminuição dos ços de células da conjuntiva ou de fossas nasais,
reflexos pupilares, paresia do posterior, que pode na capa flogística e no sedimento urinário pelas
evoluir para tetraplegia. Outros sinais mais gra- técnicas de IFA e IPX ou, ainda, pela detecção do
ves podem ocorrer, incluindo epilepsia, delírio genoma viral nessas amostras por RT-PCR.
e vocalizações, estupor e coma. Outra forma de O isolamento viral não é muito utiliza-
apresentação da cinomose é a encefalite do cão do para o diagnóstico, pois o CDV necessita de
velho, que geralmente acomete cães com idade adaptação aos cultivos celulares por várias pas-
superior a oito anos. sagens. O vírus replica em células primárias e
Manchas marrom-escuras circundando o de linhagem de origem canina, como a MDCK, e
esmalte dos dentes de animais infectados ainda de furões (ferrets). Outras células susceptíveis in-
filhotes também são achados relativamente fre- cluem a linhagem Vero e fibroblastos de embrião
qüentes. Essa alteração é resultante da infecção de galinha.
Paramyxoviridae 677

Partículas virais podem ser detectadas nas geral, as vacinas inativadas não induzem res-
fezes por microscopia eletrônica. O diagnóstico posta satisfatória; porém novos testes realizados
post-mortem pode incluir as técnicas descritas aci- com adjuvantes têm surtido resultados promis-
ma, para a detecção de antígenos virais nos teci- sores. Vacinas vivas, contendo o vírus atenuado
dos, e ainda a histopatologia. do sarampo, são utilizadas com relativo sucesso
O diagnóstico sorológico em um único teste em países da Europa. Essas vacinas não sofrem
não possui significado clínico. Este apenas terá a interferência da imunidade passiva. Vacinas
importância se realizado em amostras pareadas com vírus vivo modificado e vacinas recombi-
de soro. Kits de ELISA, para detecção de IgM, têm nantes, utilizando um poxvírus aviário como
sido utilizados em clínicas, e o resultado positivo vetor do DNA complementar (cDNA) dos genes
é indicativo de infecção presente ou recente. das proteínas H e F do CDV, estão disponíveis
comercialmente (Figura 26.5). Recomenda-se a
8.5.5 Controle e profilaxia primovacinação aos 60 dias de idade, três refor-
ços mensais e revacinação anual. Para filhotes
A vacinação com cepas atenuadas do CDV, oriundos de mães sabidamente não-imunizadas
em formulações mono ou polivalentes, é a estra- e também em situações de risco (canis, colônias,
tégia mais utilizada no combate a cinomose. Em pet shops), pode-se antecipar a primovacinação. O

Vírus da cinomose (CDV) Poxvírus do canário

F
Síntese
de cDNA
H F Genes da
proteínas cDNA
HeF 3

Y H

Y Y
Y

Multiplicação
Y Y YY Y
Y
|
||
||
||
||
||
||
||
||
||
||
||
||
||

Imunização

Figura 26.5. Vacina recombinante contra o vírus da cinomose (CDV). Os genes das glicoproteínas H e F são
sintetizados como cDNA e inseridos no genoma do poxvírus do canário. Este vírus vetor é amplificado em cultivo
celular e, então, utilizado para imunizar os cães, nos quais expressa as proteínas heterólogas. Os cães imunizados
desenvolvem resposta imunológica contra as proteínas do vírus vetor e contra as glicoproteínas H e F, conferindo
proteção contra o CDV.
678 Capítulo 26

sucesso das vacinas disponíveis depende da va- xumba. O CPIV-2 possui relação antigênica com
riabilidade antigênica existente entre isolados do o vírus dos símios tipo 5 (SV-5) e com o HPIV-2.
CDV, além da qualidade dos imunógenos e da Em associação com outros agentes, como a Bor-
resposta dos indivíduos vacinados. detella bronchiseptica, o adenovírus canino tipo 2
A indução de encefalite após a vacinação (CAV-2), o herpesvírus canino (CHV-1), o reoví-
com as vacinas vivas disponíveis está associada rus canino (CRV) e o Mycoplasma sp., o CPIV-2
com a imunossupressão. Os sinais neurológicos tem sido envolvido na etiologia da doença co-
geralmente ocorrem entre 7 e 14 dias após a ad- nhecida como traqueobronquite infecciosa canina ou
ministração da vacina, porém o grau de imunos- tosse dos canis. O CPIV-2 foi isolado pela primei-
supressão e a presença de outras infecções podem ra vez, em 1967, nos Estados Unidos, a partir de
agravar o quadro, tornando-o sistêmico. Deve-se amostras clínicas de cães com essa doença.
evitar a vacinação de fêmeas lactantes em contato
com seus filhotes não-imunizados, especialmen- 8.6.1 Epidemiologia
te aquelas sem histórico de vacinação. Deve-se
também evitar o contato de filhotes com outros Estima-se que 70% dos cães urbanos possu-
cães até a segunda imunização. Alguns estudos am anticorpos contra o CPIV-2. Esse vírus, assim
têm demonstrado que as revacinações poderiam como os outros agentes da traqueobronquite in-
ser realizadas em intervalos maiores que um ano, fecciosa canina, dissemina-se por via aérea e pelo
pois os cães vacinados apresentam títulos dura- contato direto ou indireto. A transmissão ocorre
douros contra o vírus homólogo. principalmente em ambientes de convívio entre
As pessoas envolvidas nos cuidados am- cães, com superpopulação e estresse. Reinfecções
bulatoriais com animais doentes devem utilizar com ou sem sinais clínicos podem ocorrer com
medidas de proteção (luvas descartáveis, esteri- freqüência.
lização e descarte de fômites, higiene pessoal e A infecção apresenta distribuição mundial.
do ambiente com desinfetantes), associadas com Não existem dados publicados sobre a prevalên-
o isolamento dos animais, prevenindo a dissemi- cia de anticorpos ou isolamento do vírus no Bra-
nação da enfermidade no ambiente residencial e sil. No entanto, doença com sinais clínicos seme-
nosocomial. lhantes aos da tosse dos canis são freqüentes na
Diversos protocolos terapêuticos, incluindo rotina clínica, principalmente no inverno e afe-
a suplementação com vitamina B, aplicação de tando cães com idade entre seis meses e um ano.
corticosteróides, soro hiperimune, drogas antivi-
rais e outros medicamentos têm sido utilizados 8.6.2 Patogenia, sinais clínicos
para minimizar os efeitos da infecção neurológi- e patologia
ca. Porém, nenhum desses protocolos demons-
trou eficiência comprovada sobre o desfecho da Após a transmissão, o vírus replica no epi-
enfermidade. A cinomose permanece sendo uma télio da nasofaringe e se dissemina pelo trato
doença de prognóstico desfavorável, com altas respiratório, infectando o epitélio pseudo-estra-
taxas de mortalidade, dependendo da cepa viral tificado da traquéia, onde se desencadeia um
e da idade dos cães. Muitos animais que se recu- processo inflamatório. Nesse período, entre um
peram da doença aguda permanecem com seqüe- e seis dias após a infecção, iniciam os sinais clíni-
las neurológicas graves. cos. Os sinais mais freqüentes incluem tosse seca
e ruidosa, engasgos, letargia, apatia, conjuntivite
8.6 Vírus da parainfluenza canina tipo 2 e tonsilite. A recuperação geralmente ocorre en-
tre 7 e 14 dias.
O vírus da parainfluenza canina tipo 2 Em casos mais severos, pode ocorrer hiper-
(CPIV-2) é um membro da família Paramyxoviri- termia, apatia e perda do apetite, com pneumo-
dae, subfamília Paramyxovirinae, classificado no nia e tosse produtiva, decorrentes de infecções
gênero Rubulavirus, assim como o vírus da ca- bacterianas secundárias. Na presença de infecção
Paramyxoviridae 679

secundária por Bordetella sp., o quadro clínico Vacinas vivas e inativadas contra o CPIV-2
pode persistir por até 30 dias. e outros agentes da tosse dos canis são comercia-
A encefalite pelo CPIV-2 em caninos e ou- lizadas, para aplicação intranasal e parenteral,
tros animais, tais como ferrets, é geralmente des- respectivamente. As vacinas atenuadas conferem
considerada na prática clínica. No entanto, exis- imunidade de mucosas, porém o cão pode apre-
tem evidências do envolvimento deste agente em sentar sinais clínicos brandos da doença após a
doença com sinais neurológicos indistinguíveis vacinação. A primovacinação deve ser realizada
aos da cinomose. aos 60 dias de idade, seguida por três reforços
mensais. Uma dose anual de reforço é recomen-
8.6.3 Imunidade
dada. A vacinação não previne a infecção nem
A infecção induz a rápida produção de anti- os sinais clínicos, mas a doença em animais va-
corpos neutralizantes e inibidores da hemagluti- cinados é geralmente mais branda. A ventilação
nação. Imunidade humoral de mucosas (mediada adequada de canis, higienização adequada e a
por IgA secretória), além da celular, são impor- prevenção de superpopulação são importantes
tantes para minimizar os sinais da infecção pelo na prevenção da disseminação da infecção.
CPIV-2, protegendo contra novas exposições ao
agente. 8.7 Metapneumovírus aviários

8.6.4 Diagnóstico Os metapneumovírus aviários (AmPVs),


como o pneumovírus aviário (APV) e o vírus da
O diagnóstico clínico baseia-se nos sinais clí- rinotraqueíte dos perus (turkey rhinotracheitis vi-
nicos e deve ser confirmado por exames comple- rus, TRV) estão associados com infecções agudas
mentares, como a radiografia torácica (espessa- do trato respiratório superior de perus e com do-
mento da traquéia e de brônquios), hemograma ença respiratória e a síndrome da cabeça inchada
e bioquímica sérica. em galinhas.
O APV, que anteriormente era classificado
O diagnóstico laboratorial específico pode
no gênero Pneumovirus, foi reclassificado dentro
ser realizado pelo isolamento do vírus a partir
do gênero Metapneumovirus por apresentar o ge-
de secreções de animais doentes em células de li-
noma com oito genes organizados em uma ordem
nhagem caninas. A presença de antígenos virais
diferente dos outros 10 gêneros de pneumovírus
em secreções nasais pode ser evidenciada pela
de mamíferos. Esses vírus não apresentam ativi-
técnica de IFA. Como a traqueobronquite é uma
dade hemaglutinante e de neuraminidase, sendo
doença multicausal, deve-se também investigar a
incapazes de aglutinar eritrócitos de mamíferos e
presença de outros agentes concomitantes, deter-
aves. São sensíveis ao éter, clorofórmio e são ina-
minando-se ainda o prognóstico da doença. tivados a 56ºC por 30 minutos.
As glicoproteínas F e G do APV são as mais
imunogênicas. A glicoproteína G é a proteína
8.6.5 Prevenção e controle
mais variável dos vírions, e estudos da sua se-
qüência em diferentes isolados evidenciam a
O uso de antiinflamatórios não-esteroidais existência de subgrupos distintos. As proteínas
e xaropes auxiliam na recuperação do animal. A N e F são essenciais para a replicação do vírus
administração de antibióticos eficazes contra Bor- e são altamente conservadas entre os diferentes
detella spp., tais como sulfas e quinolonas, mini- isolados e entre os diferentes subgrupos de PVA.
mizam as infecções secundárias. Outras medidas Inicialmente, acreditava-se que havia apenas um
de suporte, como alimentação adequada, repou- sorotipo de PVA, contendo dois subgrupos (A e
so e evitar a exposição ao frio também são impor- B) que podiam ser diferenciados pela análise da
tantes na recuperação. seqüência de nucleotídeos ou por anticorpos mo-
680 Capítulo 26

noclonais. Posteriormente foram identificados res ambientais favoráveis. Em condições de baixa


quatro subgrupos distintos (A, B, C e D), sendo umidade, má ventilação, calor intenso e poeira,
os tipos A e B os mais prevalentes. O subgrupo a disseminação da doença entre galinhas criadas
C foi identificado apenas nos Estados Unidos da em cama é rápida (cerca de 24 horas). No caso
América; e o subgrupo D surgiu isoladamente em de aves criadas em gaiolas, em boxes ou galpões
um surto de rinotraqueíte em perus na França. separados, a disseminação da doença pode ser
Os primeiros relatos da doença causada lenta (cerca de 1 a 2 semanas).
pelo APV em produções avícolas datam do final As aves mais susceptíveis são os perus jo-
dos anos 70, na África do Sul, associados com ri- vens e as matrizes pesadas, principalmente na
notraqueíte em perus. Esse quadro, popularmen- primeira semana de produção, seguido de fran-
te conhecido na África do Sul como Dikkop (cara gos de corte e poedeiras. O curso da SHS em gali-
inchada), foi denominado posteriormente de sín- nhas varia de cinco a dez dias, sendo no máximo
drome da cabeça inchada (SHS). de seis semanas, com morbidade extremamente
No início da década de 1980, a ocorrência variável (1% a 90%). A morbidade e mortalida-
concomitante de um surto de doença respiratória de variam de acordo com a presença e o tipo de
em perus e de SHS em galinhas de propriedades agente secundário, sistema de criação, manejo e
próximas levou a suspeita de que a rinotraqueíte condições ambientais. No caso de frangos de cor-
dos perus e a SHS possuíam a mesma etiologia. te, dependendo do agente secundário, a mortali-
O APV possui distribuição mundial e surtos e dade pode atingir 20% do plantel. Já entre matri-
sorologia positiva já foram relatados em vários zes, a mortalidade varia de 1 a 5% e se restringe
países, tanto em perus como em galinhas de corte àquelas que apresentam a cara inchada.
e poedeiras. Em perus, o período de incubação é de apro-
ximadamente três a cinco dias. A disseminação
8.7.1 Epidemiologia do APV em plantéis de perus ocorre de forma rá-
pida, sendo que, em 24 a 48 horas, todo o plantel
A origem do APV ainda é obscura, embora pode estar contaminado, e poucos animais são
os primeiros relatos da doença na África do Sul poupados da infecção. A infecção pode durar de
sugiram que o vírus possa ser um patógeno natu- sete a dez dias, observando-se um abrandamen-
ral de aves silvestres daquele país. to gradativo dos sinais clínicos. A rinotraqueíte
Estudos realizados no Brasil, em 1992, indica- dos perus apresenta-se de forma aguda e muito
ram uma prevalência de 65-70%. Estudos poste- contagiosa. A morbidade em perus é elevada, po-
riores detectaram anticorpos para o APV em fran- dendo chegar a 100%. A mortalidade é variável,
gos de corte, matrizes e poedeiras nas regiões Sul, dependendo da presença de infecções bacteria-
Sudeste e Nordeste, demonstrando a ampla distri- nas secundárias.
buição da infecção no país. O isolamento do APV
foi realizado a partir de perus e galinhas comer- 8.7.2 Patogenia, sinais clínicos
ciais com sinais respiratórios; e os isolados foram e patologia
identificados como pertencentes ao subgrupo A.
As perdas econômicas devido a SHS em O vírus replica inicialmente nas células epi-
frangos de corte situam-se em torno de 1 a 3% teliais ciliadas que revestem a mucosa dos con-
em condições favoráveis; e de 20 a 30% quando dutos nasais, laringe e traquéia. Com a infecção,
ocorrem complicações respiratórias ou infecções as células perdem a atividade ciliar. Em perus,
bacterianas secundárias. podem-se observar inclusões citoplasmáticas eo-
A transmissão do APV ocorre por contato sinofílicas nessas células.
direto e indireto entre aves, por aerossóis e atra- O vírus já está presente no trato respirató-
vés de ração, água e cama contaminados. A trans- rio entre quatro e seis dias antes do aparecimen-
missão é geralmente associada ao contato íntimo to dos sinais clínicos. O APV alcança o oviduto
com superfícies contaminadas bem como a fato- através da corrente circulatória, após a replicação
Paramyxoviridae 681

primária no trato respiratório, e replica no epité- cretos, tumefação periocular e redução de apetite.
lio do trato reprodutivo. Os sinais clínicos prova- O quadro evolui para um hiperemia da conjunti-
velmente são reflexos dos danos provocados pela va, com edema da glândula lacrimal. Após 12 a 24
multiplicação do vírus no epitélio ciliado, tanto horas, as aves apresentam um edema subcutâneo
na traquéia como no trato reprodutivo. na cabeça, que se inicia ao redor dos olhos, aumen-
Acredita-se que a maioria das infecções seja tando sobre toda a cabeça e descendo para o tecido
assintomática ou restrita a sinais clínicos leves submandibular e nuca. Após 72 horas, os animais
(aumento de secreções e espirros devido a um apresentam sinais neurológicos caracterizados por
processo de hiperplasia glandular). Isto se deve apatia, leve torcicolo e movimentos repentinos na
ao fato de que, em condições normais, há uma re- cabeça. Esse quadro pode se agravar durante os
posição eficiente das células que revestem as mu- dias subseqüentes, podendo ocorrer dificuldades
cosas. Fatores que comprometem a habilidade de motoras.
reparação epitelial ou que contribuem para um Em matrizes, os primeiros sinais são falhas
aumento da atividade secretória, como o estresse, respiratórias brandas, rinite e conjuntivite, segui-
poeira, concentração de gases ambientais, depri- das por incoordenação motora, torcicolo e opistó-
mem as defesas locais ou o sistema BALT (tecido tono, edema facial uni e bilateral atingindo toda a
linfóide associado aos brônquios), permitindo a cabeça. Durante os primeiros estádios da doença,
instalação de agentes bacterianos secundários. as galinhas arranham a face com o pé, o que leva
Isto leva a um processo inflamatório intenso, ao aparecimento de um prurido localizado.
principalmente nos condutos naso-lacrimais, nos A queda na produção de ovos também tem
quais se observa secreção muco-catarral, lacrime- sido associada com a SHS. As aves mais susceptí-
jamento e blefarite. A persistência de colonização veis são os perus jovens e matrizes pesadas, prin-
bacteriana leva ao acometimento do tecido sub- cipalmente na primeira semana de produção. Do
cutâneo da região submandibular do tecido ós- ponto de vista clínico, a doença pode se manifes-
seo do crânio e, ao final, à afecção das meninges, tar sob as formas aguda e subaguda, acometendo
que é a fase que caracteriza a SHS. geralmente o trato respiratório superior, princi-
As principais alterações histopatológicas palmente os cornetos nasais e traquéia. Na forma
demonstram inicialmente uma injúria do epité- aguda inicial, as aves apresentam uma prostração
lio respiratório, com redução da atividade ciliar, profunda, aspecto comatoso ou estado de apatia
e, finalmente, uma perda progressiva dos cílios, (as aves ficam paradas durante 3 a 5 horas sem
congestionamento subepitelial e hiperplasia das ingerir alimentos ou água), indo a óbito por ina-
células epiteliais. Nas células ciliadas, são obser- nição ou desidratação.
vados corpúsculos citoplasmáticos acidófilos.
Freqüentemente são observadas celulite, perios- 8.7.3 Imunidade
tite e osteomielite dos ossos da cabeça. Em mui-
tos casos, ocorrem também otite externa e interna Tanto as infecções naturais como experi-
e meningite. mentais induzem a formação de anticorpos, de-
No cérebro, observam-se gliose, hiperemia, tectáveis aproximadamente três semanas após a
concentração perivascular de leucócitos e em me- inoculação/infecção. Os anticorpos neutralizan-
nor grau, hemorragias. Alterações degenerativas tes alcançam seu nível máximo em cinco a seis
podem ser observadas somente nas células de semanas pós-infecção. Anticorpos são detectados
Purkinje do cerebelo. Também são observados em várias categorias de animais, sem associação
hiperemia renal e glomerulonefrite. As aves in- com doença clínica, reforçando a hipótese de que
fectadas apresentam uma degeneração marcante a maioria das infecções são subclínicas.
dos folículos ovarianos mais desenvolvidos e dos A exposição do trato respiratório a patóge-
óvulos maduros. nos resulta na produção de anticorpos locais das
Os sinais clínicos iniciais em frangos de corte classes IgA e IgG, que são responsáveis pela neu-
incluem corrimento nasal, tosse ou espirros dis- tralização do agente. Os anticorpos podem ser
682 Capítulo 26

detectados a partir de cinco dias após o apare- pacidade de detectar pequenas quantidades de
cimento dos sinais clínicos, pelo uso de técnicas vírus, sem a necessidade de testes preliminares
como o ELISA, SN e a imunofluorescência indi- ou confirmatórios. Por ser altamente específica,
reta (IFI). Em infecção experimental de pintos a reação em cadeia da polimerase (PCR) não é
livres de patógenos específicos (specific pathogen afetada pela presença de outros patógenos. Essa
free, SPF) foi possível detectar anticorpos a partir técnica pode ser de suma importância para a ca-
do 15o dia pós-inoculação, e os níveis persistiram racterização molecular de isolados virais e em es-
até quatro semanas. A ativação do sistema imune tudos epidemiológicos. As técnicas de RT-PCR,
local e a produção de anticorpos circulantes são nested-PCR e PCR em tempo real apresentam
mecanismos importantes para a proteção após o uma sensibilidade pelo menos 100 vezes maior
desafio viral, mas a imunidade celular apresenta do que o isolamento viral.
uma importância maior na defesa contra o APV. O material para o diagnóstico (traquéia,
pulmão, cabeça e ou swab naso-traqueal) deve ser
8.7.4 Diagnóstico enviado refrigerado, o mais rápido possível para
o laboratório, não sendo necessário o pré-conge-
O quadro clínico pode apresentar variações, lamento.
dependendo das condições ambientais e das in-
fecções secundárias, e não existem sinais patog- 8.7.5 Controle e profilaxia
nomônicos. Portanto, é necessário que seja reali-
zado o diagnóstico laboratorial. As boas práticas de manejo e biossegurança
A confirmação da infecção pelo APV depen- são fundamentais para o controle de surtos cau-
de da demonstração do vírus ou antígenos virais; sados pelo APV, especialmente em perus. Fato-
ou de anticorpos específicos no soro. Métodos so- res, como: o sistema de criação, idade das aves,
rológicos, como a SN, IFA e ELISA, são os méto- infecções bacterianas ou virais secundárias, má
dos de escolha para diagnóstico da infecção. ventilação, contaminação ambiental, poeira, alta
Em geral, o vírus é mais dificilmente isolado densidade populacional e oscilações de tempe-
de frangos do que de perus. Acredita-se que este ratura, devem ser observados para o controle e
fato possa se dar em razão do curto tempo de re- prevenção dessas enfermidades.
plicação do agente nos tecidos alvo, não estando Uma boa ventilação e troca de cama favore-
mais presente por ocasião do aparecimento dos cem a redução dos níveis de amônia. A amônia
sinais clínicos. O isolamento viral raramente é pode contribuir para a replicação rápida do ví-
bem-sucedido em aves com sinais clínicos seve- rus, pois pode propiciar injúria no epitélio ciliar,
ros, provavelmente devido a infecções secundá- facilitando a replicação e disseminação do vírus
rias. A replicação viral nos tecidos alvo também para outros tecidos.
pode não estar no pico no momento da coleta. As vacinas inicialmente foram desenvolvi-
O isolamento pode ser realizado em cultivos das para uso em perus, mas também provaram
primários de embrião de galinha, em ovos em- ser úteis no controle da infecção pelo APV em ga-
brionados, em cultivos de anel de traquéia (TOC) linhas. Os programas de vacinação têm sido roti-
e em linhagens celulares (principalmente Vero e neiramente utilizados em países onde o APV está
CER [chicken embryo related]). As células inocula- presente em criações de perus e galinhas. A práti-
das apresentam efeito citopático (ECP) com for- ca de vacinação de aves comerciais tem auxiliado
mação de sincícios. Nos anéis de traquéia, é ob- na redução das perdas econômicas por minimi-
servada uma ciliostase (redução dos movimentos zar a doença clínica, mortalidade e as perdas por
ciliares). O sucesso do isolamento viral depende queda na postura.
da quantidade de partículas virais viáveis pre- Vacinas com o vírus atenuado ou inati-
sentes na amostra enviada ao laboratório e da vado quimicamente têm sido utilizadas. Vacinas
utilização de técnicas adequadas. com o vírus vivo atenuado dos subtipos A e/ou
O uso da RT-PCR na detecção do APV em B têm sido aplicadas em perus e em galinhas, iso-
perus e galinhas apresenta como vantagem a ca- ladamente ou combinada com outras vacinas. A
Paramyxoviridae 683

recomendação de um programa de vacinação de- desinfetantes contendo formol e/ou fenol, porém
pende de cada empresa e da situação particular podem sobreviver por longos períodos a tempe-
de cada granja. Entretanto, de modo geral, reco- ratura ambiente, especialmente nas fezes.
menda-se a primovacinação com vacinas vivas A variação antigênica do NDV pode ser
atenuadas, para estimular clones de células de detectada pelos testes de HI. Uma das variações
memória, obtendo, assim, uma resposta mais efe- mais notáveis tem ocorrido no vírus responsável
tiva. A revacinação deve ser realizada com uma pela panzootia em pombos. Este vírus, citado
vacina inativada. Embora a vacina não proteja como “pigeon APMV-1 (PPMV-1)”, é diferente
completamente os animais, os sinais respirató- do vírus padrão nos testes de HI, mas não difere
rios serão mais brandos em caso de infecção. substancialmente dos vírus utilizados nas vaci-
nas convencionais não-protetoras. Nos últimos
8.8 Vírus da doença de Newcastle anos, as amplas variações antigênicas e genéticas
do vírus evidenciaram a grande dificuldade em
A doença de Newcastle (ND) é uma impor- compreender a epidemiologia da ND.
tante doença de aves causada pelo paramixovírus Os isolados do NDV são classificados de
aviário sorotipo 1 (APMV-1), também conhecido acordo com a sua patogenicidade. As amostras
como vírus da doença de Newcastle (NDV). Pela velogênicas apresentam alta virulência; as amos-
sua importância sanitária estratégica, a ocorrên- tras mesogênicas possuem virulência moderada e
cia de um surto da ND pode resultar na interrup- as lentogênicas são pouco ou nada virulentas. Os
ção da exportação regional ou nacional da carne métodos disponíveis para essa classificação per-
de frango, causando grandes perdas econômicas mitem a distinção entre amostras com diferença
para a região ou país afetado. Várias espécies de acentuada no potencial patogênico, porém podem
aves silvestres e domésticas podem servir de re- produzir resultados discrepantes com amostras
servatórios do NDV e parecem se constituir em de virulência semelhante. As amostras de NDV
fontes dos diferentes tipos de vírus que, freqüen- usadas em vacinas atenuadas são lentogênicas e
temente, são encontrados nas outras espécies. apresentam variações individuais de virulência
A ND é um dos principais problemas sanitá- para o trato respiratório da galinha.
rios da avicultura industrial. É uma enfermidade
viral aguda, altamente contagiosa, que acomete 8.8.2 Histórico e epidemiologia
aves comerciais e outras espécies aviárias, produ-
zindo sinais respiratórios freqüentemente acom- Os primeiros surtos da ND ocorreram em
panhados de manifestações nervosas, diarréia e aves domésticas no ano de 1926, em Java, na In-
edema da cabeça. As manifestações clínicas e a donésia, e em Newcastle-upon-Tyne na Inglater-
mortalidade variam de acordo com a virulência ra (1927). Entretanto, relatos mais antigos indi-
da amostra viral envolvida. cam que esta doença já ocorria na Europa pelo
menos desde 1912. No Brasil, a primeira descri-
ção da doença foi realizada em 1953, quando foi
8.8.1 O agente realizado o isolamento da amostra M33 na cidade
de Macapá, Amapá. A origem do surto foi prova-
O NDV pertence ao gênero Avulavirus, espé- velmente a importação de carcaças congeladas de
cie paramixovírus aviário sorotipo 1 (APMV-1). frango dos Estados Unidos. A partir desta data, a
No gênero Avulavirus, existem ainda outros oito doença passou a ser relatada em todo o território
sorotipos virais designados de 2 a 9. Os vírions nacional, ocasionando graves perdas econômicas
do NDV são pleomórficos e, muitas vezes, esfé- para a avicultura do país.
ricos, com o diâmetro de aproximadamente 180 Desde 2002, o Ministério da Agricultura e a
nm. O NDV é inativado após três horas a 56ºC Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVI-
ou 30 minutos a 60°C, e por ação de pH ácido. Os SA) vêm realizando inquéritos epidemiológicos
vírions são sensíveis ao éter e são inativados por sistemáticos em aves silvestres e migratórias, nos
684 Capítulo 26

quais foram isoladas amostras altamente pato- (psitacídeos e aves selvagens) parecem possuir o
gênicas do NDV nas regiões Norte, Nordeste e potencial de portadoras, podendo excretar cepas
Sul. No pantanal mato-grossense, foram isoladas virulentas do NDV. Os mamíferos podem atuar
amostras patogênicas de NDV de diferentes aves como vetores mecânicos do vírus. Além de poder
silvestres, muitas delas vivendo em estrito conta- carrear mecanicamente o agente, o homem pode
to com aves domésticas e comerciais. apresentar a doença sob a forma de conjuntivite
Após cinco anos sem registros de focos, o branda.
Brasil voltou a registrar surtos da ND em criações A principal via de transmissão do vírus é por
comerciais, em 2006, no Rio Grande do Sul. A contato direto ou indireto, por aerossóis ou por
eventual ocorrência da doença no país acarreta a transmissão aérea; por pessoas, equipamentos,
imediata suspensão das exportações de produtos água e vacinas contaminadas. O vírus é excreta-
avícolas, com graves prejuízos para a avicultura do durante a fase de incubação, na fase clínica e
nacional. No Brasil, a ND é controlada pela vaci- na convalescença da doença e está presente no ar
nação, mas existem áreas declaradas livres, nas expirado, nas secreções respiratórias, nas fezes,
quais a vacinação não é mais praticada. Surtos da nos ovos e em vários tecidos das aves doentes.
ND são notificados esporadicamente no Brasil,
principalmente em criações domésticas de fundo 8.8.3 Patogenia, sinais clínicos
de quintal ou em galinhas criadas de forma semi- e patologia
intensiva e não comercial.
A ND é endêmica em muitos países, mas A patogenia da infecção pelo NDV pode ser
é muito difícil de se avaliar a sua real prevalên- dividida de acordo com a virulência da amostra
cia no mundo. Em alguns países onde a doença viral envolvida e com os sinais clínicos. Os ví-
ocorre, não há dados sobre a sua distribuição e rus patogênicos produzem a forma lentogênica,
abrangência, nem se ocorre somente em criações que se caracteriza por infecção subclínica ou si-
domésticas ou também em criações comerciais. nais respiratórios moderados; a forma mesogênica
Mesmo em aves com finalidade comercial, a esti- apresenta sinais respiratórios e ocasionalmente
mativa da distribuição geográfica do NDV torna- neurológicos; e a forma velogênica é a forma mais
se confusa devido ao uso de vacinas vivas, con- severa e está associada com mortalidade elevada.
tendo cepas virais consideradas virulentas em Esta forma é dividida em neurotrópica (sinais res-
outros países. Mesmo em países livres da doença piratórios e neurológicos) e viscerotrópica (lesões
por muito tempo, o monitoramento sistemático hemorrágicas no intestino). Portanto, as cepas do
ocasionalmente revela infecções com sinais leves, NDV que são realmente importantes do ponto de
provocadas por amostras não-virulentas, propa- vista clínico-patológico e epidemiológico são as
gadas presumivelmente por aves silvestres. A velogênicas viscerotrópicas e/ou neurotrópicas.
forma altamente patogênica da ND representa A patogenia desse vírus está associada com o seu
um problema sério para a avicultura comercial, tropismo pelos diferentes tecidos do hospedeiro
tanto por ser considerada uma doença enzoótica e com a virulência da cepa.
em vários países, quanto por ser a causa de epi- A base molecular da virulência do NDV é
zootias freqüentes na África, Ásia, América Cen- determinada principalmente pela seqüência de
tral e em regiões da América do Sul. Na Europa, aminoácidos no sítio de clivagem da glicoprote-
a ocorrência da doença parece ser esporádica, a ína F, e pela presença de proteases celulares ne-
despeito dos programas de vacinação. cessárias para a ativação do precursor (F0) desta
Aves domésticas e silvestres são susceptí- proteína. A proteína F é sintetizada como uma
veis ao NDV, as galinhas (Gallus gallus) estão en- precursora (F0), que é clivada em F1 e F2 por pro-
tre as mais susceptíveis e as aves aquáticas estão teases celulares. Essa clivagem é necessária para
entre as menos suscetíveis. O NDV já foi isola- a infectividade dos vírions e ocorre com mais efi-
do em mais de 241 espécies, abrangendo 27 das ciência em moléculas de F0 que possuem vários
50 ordens de aves existentes. Algumas espécies aminoácidos básicos no sítio de clivagem. Cepas
Paramyxoviridae 685

virais contendo esta característica podem ter a edema. Lesões macroscópicas no sistema nervoso
sua F0 clivada em uma variedade de tecidos e, central são pouco freqüentes mesmo em aves que
por isso, são mais virulentas. Ao contrário, nos ví- desenvolvem sinais neurológicos. Quando ocor-
rus lentogênicos, a clivagem ocorre somente com rem, essas alterações são de uma encefalomielite
a protease reconhecendo uma simples arginina não-purulenta.
(protease do tipo tripsina). Por isso os vírus len- Surtos com amostras velogênicas viscero-
togênicos estão restritos a determinados tecidos trópicas iniciam com apatia, sinais respiratórios e
do hospedeiro, nos quais enzimas tipo tripsina debilidade, finalizando com prostração e morte.
estão presentes, como no trato digestivo e respi- Edema na cabeça e ao redor dos olhos podem ser
ratório. Já, os vírus patogênicos, podem replicar observados, e a mortalidade pode atingir 100%
em uma variedade de tecidos e órgãos, resultan- em aves não-vacinadas. Aves acometidas por ví-
do em infecção sistêmica. rus velogênicos neutrotrópicos apresentam do-
Os sinais clínicos observados na ND não ença respiratória severa acompanhada de sinais
são patognomônicos, e a infecção pode variar de neurológicos. Dessa forma, a infecção pelo NDV
subclínica até doença com mortalidade de 100%. em aves domésticas varia desde inaparente até
Em termos gerais, a doença é caracterizada por formas mais severas, sendo as últimas caracteri-
depressão, anorexia, diarréia, prostração, edema zadas por sinais respiratórios, digestivos e neu-
de cabeça e barbela; sinais neurológicos como pa- rológicos. A produção de ovos reduz-se drastica-
ralisia, tremores, torcicolo e opistótono; além de mente em aves adultas, podendo estender-se por
sinais respiratórios como tosse e espirros. Aves semanas. A morbidade pode chegar a 100%, mas
de postura podem apresentar redução da produ- a mortalidade atinge até 50% em aves adultas
ção de ovos. e até 90% em aves jovens. Amostras de patoge-
Os variantes virulentos do NDV podem re- nicidade média geralmente causam doença res-
plicar em aves vacinadas, mas os sinais clínicos piratória, com rara ocorrência de envolvimento
são bastante reduzidos, de acordo com o nível de neurológico. Nesses casos, a mortalidade é geral-
anticorpos presentes. mente baixa, exceto em aves muito susceptíveis
Da mesma forma, nenhuma lesão macro ou ou com infecções concomitantes.
microscópica pode ser considerada patognomô-
nica para todas as formas da ND. As carcaças de 8.8.4 Diagnóstico
aves que morrem em conseqüência da doença por
cepas virulentas estão geralmente desidratadas, e O caráter estratégico do NDV, determinado
as lesões macroscópicas variam com o vírus. Os pela OIE, requer um diagnóstico rápido e conclu-
vírus virulentos panzoóticos da ND produzem sivo da enfermidade. Em casos suspeitos e visan-
lesões hemorrágicas no trato intestinal. Alguns do reduzir o risco de disseminação e difusão do
autores têm relatado lesões no pró-ventrículo, vírus, recomenda-se a realização de necropsia por
enquanto outros relatam um envolvimento mais um profissional no próprio local, com colheita e
proeminente do duodeno, jejuno e íleo. remessa de material para o laboratório oficial. O
Em casos de envolvimento respiratório, as material a ser enviado deve incluir fezes, suabes
lesões estão geralmente presentes no trato respi- traqueais ou cloacais e tecidos de animais necrop-
ratório e os achados incluem congestão e lesões siados, devendo-se eleger aqueles com alterações
hemorrágicas, além de aerossaculite. As lesões in- aparentes. Esse material deve ser conservado re-
flamatórias mais freqüentes na traquéia incluem frigerado se o processamento for realizado den-
tumefação da mucosa, hiperemia, edema e infil- tro de 48 horas, ou congelado se a realização dos
trado de linfócitos; e a sua intensidade está as- testes for demorar mais.
sociada com a virulência das amostras. As lesões O diagnóstico definitivo da infecção é obtido
microscópicas não têm significado diagnóstico. pelo isolamento e identificação do vírus em ovos
Na maioria dos tecidos e órgãos afetados, obser- embrionados a partir de suabes traqueais ou clo-
vam-se: hiperemia, necrose, infiltrado celular e acais, ou de macerados de órgãos. Ovos SPF com
686 Capítulo 26

embriões de nove dias são inoculados com 0,1 mL outras doenças, seja prontamente identificada e
da suspensão na cavidade alantóide e, após cinco controlada.
a sete dias, o líquido é colhido e testado pela téc- A vacinação contra a ND protege as aves das
nica de HA com eritrócitos de galinha. O agente conseqüências clínicas da doença, mas não impe-
hemaglutinante detectado é, então, identificado de a replicação e excreção viral. Dessa forma, o
por HI com anti-soro específico, que ainda permi- controle efetivo da infecção deve incluir também
te diferenciá-lo da influenza aviária. Esse método boas práticas de manejo e medidas de biossegu-
demonstra a presença do agente, mas não indica ridade.
se o vírus é patogênico ou não. A ocorrência de focos da doença exige o
O diagnóstico completo da doença requer a isolamento completo das propriedades afetadas,
determinação da virulência do vírus, que pode limpeza e desinfecção das instalações, controle
ser obtida pelo seqüenciamento de genes ou por de tráfego humano, entre outras medidas.
testes in vivo. Dentre os testes in vivo, recomenda- Atualmente, as empresas brasileiras, na
se o que determina o índice de patogenicidade maioria das regiões, utilizam a vacinação siste-
intracerebral (IPIC). Este teste se baseia na inocu- mática contra a ND. Os esquemas de vacinação
lação do líquido alantóide fresco no cérebro de 10 utilizados em reprodutoras e em aves de postu-
pintinhos SPF de um dia. Cada ave é examinada ra são variados e dependem de cada empresa.
a intervalos de 24 horas, durante oito dias, e clas- Geralmente são aplicadas vacinas atenuadas na
sificada em diferentes graus: zero (se normal), 1 recria, seguido de uma revacinação com uma va-
(se doente) e 2 (se morta). Os vírus mais virulen- cina inativada algumas semanas antes da transfe-
tos chegam à CPI máxima de 2.0, enquanto os ví- rência para a produção. Algumas empresas ainda
rus lentogênicos resultam em valores próximos realizam um reforço com vacinas atenuadas du-
a zero. rante a fase de produção (40ª, 50ª e 60ª semanas).
Além do isolamento em ovo embrionado, o Em relação à vacinação em frangos de corte, não
diagnóstico da infecção pelo NDV pode ser rea- existe um consenso entre as empresas avícolas.
lizado por RT-PCR a partir de RNA extraído das As amostras lentogênicas utilizadas na for-
amostras clínicas enviadas para o laboratório. mulação vacinal no Brasil são a La Sota (LS), Uls-
Várias viroses aviárias devem ser conside- ter (UL) e VG-GA (VG). As amostras vacinais são
radas no diagnóstico diferencial: como cólera, preparadas em ovos embrionados de galinhas
influenza, metaneumovírus, vírus da bronquite SPF. A aplicação das vacinas atenuadas pode ser
infecciosa; vírus da laringotraqueíte aviária, en- feita por instilação nasal ou ocular, com o auxí-
tre outras. Doenças de origem bacteriana a serem lio de um conta-gotas, ou pela via oral através da
consideradas incluem a micoplasmose, psitacose, água de bebida. Pintos de sete a 10 dias de idade
pasteurelose, entre outras. recebem 100 μL em uma das narinas ou no olho;
ou duas gotas, uma em cada narina ou olho.
8.8.5 Controle e profilaxia Como medida de reforço, recomenda-se revaci-
nar as aves periodicamente, com intervalos de
A avicultura industrial investe considerável três a quatro meses. A vacina produz imunidade
esforço na prevenção da ND pelo uso sistemático somente após 21 dias, e a duração da imunidade
de vacinas, biosseguridade e aplicação de legis- varia de acordo com a idade das aves e o número
lação específica. Apesar disso, a doença continua
de vacinações.
se constituindo em uma ameaça concreta para
a avicultura, pois várias espécies animais não-
vacinadas podem servir de reservatórios para o 9 Bibliografia consultada
agente. Por isso, é necessário um monitoramen-
to sistemático e contínuo para avaliar a condição ALEXANDER, D.J. Newcastle disease and other avian
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15 mar. 2007.
27
RHABDOVIRIDAE
Luis L. Rodriguez1, Paulo Michel Roehe,
Helena Batista & Gael Kurath1

1 Introdução 691

2 Classificação e taxonomia 691

3 Estrutura do vírion e do genoma 692

4 O ciclo replicativo 693

5 Rabdovírus de interesse veterinário 695

5.1 Vírus da estomatite vesicular 695


5.1.1 Epidemiologia 696
5.1.2 Patogenia e sinais clínicos 699
5.1.3 Imunidade 699
5.1.4 Diagnóstico 700
5.1.5 Controle e profilaxia 700

5.2 Vírus da raiva e lissavírus relacionados 700


5.2.1 O agente 701
5.2.2 Estrutura do vírion 702
5.2.3 Replicação viral 703
5.2.4 Variações antigênicas 704
5.2.5 Epidemiologia 705
5.2.6 Patogenia, sinais clínicos e patologia 708
5.2.7 Diagnóstico 709
5.2.8 Prevenção e controle 711
5.2.9 Tratamento 711

5.3 Rabdovírus de peixes 713


5.3.1 Histórico e classificação 713
5.3.2 Epidemiologia 714
5.3.3 Patogenia, sinais clínicos e patologia 715
5.3.4 Imunidade 716
5.3.5 Diagnóstico 717
5.3.6 Controle e profilaxia 717

6 Bibliografia consultada 718

1
Seção geral da família e VSV (LLR); raiva (PMR e HB); rabdovírus de peixes (GK). Tradução da parte geral, VSV
e rabdovírus de peixes: Renata Dezengrini.
1 Introdução animais, como o Australian bat lyssavirus e o vírus
Chandipura, um vírus reemergente causador de
A família Rhabdoviridae (ordem Mononegavi- encefalite em crianças na Índia. Outros rabdoví-
rales) abriga vírus que infectam uma grande va- rus provavelmente serão descobertos no futuro,
riedade de espécies, incluindo artrópodes, plan- adicionando-se, assim, mais patógenos nesta im-
tas e vertebrados. Dentre os vírus de vertebrados, portante família viral.
existem rabdovírus que infectam mamíferos, Este capítulo abordará as características ge-
aves e peixes. A família possui alguns vírus de rais da família Rhabdoviridae, a sua taxonomia,
grande importância para a saúde humana e ani- estrutura e organização genômica e estratégia
mal. O vírus da raiva (RabV) causa uma das do- de replicação. Além disso, serão abordadas com
enças mais temidas e fatais de todos os tempos, e mais detalhes as doenças por rabdovírus mais
o vírus da estomatite vesicular (VSV) está asso- relevantes para a medicina veterinária: a raiva, a
ciado com surtos de repercussão econômica im- estomatite vesicular e as produzidas por rabdo-
portante em eqüinos e em animais de produção. vírus de peixes.
Os primeiros relatos da raiva ocorreram há mais
de 2.700 anos, quando já era descrita como uma 2 Classificação e taxonomia
doença grave, caracterizada por hipersalivação,
alterações no comportamento e morte inevitável. Os rabdovírus são classificados em seis gê-
A raiva tem também um impacto importante em neros e dois deles contêm apenas vírus de plantas
medicina veterinária, tanto pela sua ocorrência (Tabela 27.1). Como os outros membros da ordem
urbana em cães, como pela sua ocorrência em Mononegavirales, os rabdovírus possuem como
espécies silvestres, como o mão-pelada (Procyon genoma uma molécula de RNA linear de senti-
cancryvorus), esquilos, canídeos silvestres, mor- do negativo, que possui pelo menos cinco genes,
cegos, mangostas (Cynictis penicillata), os quais
representam um risco iminente de infecção para
humanos. Os morcegos hematófagos, como o
Desmodus rotundus, também carreiam o vírus da Ephemerovirus
BEFV
raiva, podendo transmiti-lo a animais domésti-
cos e, ocasionalmente, para humanos. Em certas
Chandipura
regiões, é relativamente freqüente a ocorrência
de casos esporádicos ou de surtos de proporções
Isfahan
variáveis em animais de criação, principalmente
em bovinos. Outra doença relevante em medici-
COCV
na veterinária é a estomatite vesicular (VS), que
afeta os bovinos, suínos e eqüinos. Em bovinos VSAV
e suínos, a VS apresenta características clínicas
muito semelhantes à febre aftosa (FMD). Por- IN98COE
tanto, os surtos de VS resultam em significativas Vesiculovirus
perdas econômicas conseqüentes da interdição e NJ95COB
quarentena, até que se proceda ao diagnóstico di-
SVCV
ferencial para descartar a FMD.
Devido à sua ampla distribuição na nature- Lyssavirus
za e à capacidade de infectar várias espécies de Raiva

mamíferos, peixes e plantas, existem muitos ra-


bdovírus com potencial patogênico ainda desco-
Figura 27.1. Relação filogenética entre os vírus
nhecido. Alguns rabdovírus têm sido identifica- pertencentes aos três gêneros da família Rhabdoviridae
dos como patógenos emergentes em humanos e associados com doenças em mamíferos.
692 Capítulo 27

Tabela 27.1. Classificação taxonômica dos membros da família Rhabdoviridae, com espécies hospedeiras e doenças
de importância veterinária.

Espécie/tipo Doença de importância


Gênero Hospedeiro(s)
veterinária

Vírus da estomatite Mamíferos, peixes, Estomatite vesicular, viremia


Vesiculovirus primaveril das carpas etc.
vesicular (VSV) insetos
Raiva, lissavírus dos morcegos
Lyssavirus Vírus da raiva (RabV) Mamíferos, insetos
australianos.

Ephemerovirus Vírus da febre efêmera Mamíferos, insetos Febre efêmera de bovinos,


dos bovinos (BEFV) doença do rio Adelaide.

Vírus da necrose
Necrose hematopoiética,
Novirhabdovirus hematopoiética Peixes
septicemia hemorrágica.
(IHNV)

Vírus da necrose
Cytorhabdovirus
amarela da alface Plantas Nenhuma.

Nucleorhabdovirus Vírus do tomate anão Plantas Nenhuma.

na ordem 3’-N-P-M-G-L-5’. Cada gene é flanque- projétil. Uma membrana lipídica derivada da cé-
ado por seqüências conservadas de iniciação e lula hospedeira, contendo trímeros da glicopro-
terminação da transcrição, compostas de aproxi- teína de superfície (G), forma o envelope viral.
madamente 10 nucleotídeos (nt). A organização O genoma dos rabdovírus consiste de uma
genômica, a estrutura e morfologia dos vírions, molécula de RNA de fita simples linear de pola-
juntamente com a estratégia de replicação e as re- ridade negativa, com 11.000 a 15.000 nt (Figura
lações sorológicas se constituem nas bases para 27.2C). A organização do genoma e a ordem dos
a sua classificação. A Figura 27.1 apresenta a re- genes são muito conservadas. O genoma possui
lação filogenética entre os vírus dos três gêneros uma pequena seqüência leader não-traduzida com
40 a 50 nt na extremidade 3’, seguida por um sinal
que infectam mamíferos. A Tabela 27.1 apresenta
conservado de iniciação da transcrição; e pelos
a classificação taxonômica resumida da família.
genes N, P, M, G e L. Esses genes são separados
por regiões intergênicas conservadas. Próximo a
3 Estrutura do vírion e do genoma
extremidade 5’ existe uma seqüência trailer de 40
a 50 nt, parcialmente complementar à região 3’
As partículas dos rabdovírus possuem um
leader. As regiões leader, trailer e as seqüências
formato de bastão (do grego, rhabdus = bastão),
intergênicas possuem funções importantes na re-
com dimensões entre 100 e 430 nm de extensão gulação da transcrição e replicação viral. Alguns
por 40 a 100 nm de diâmetro (Figura 27.2A, B). Os rabdovírus possuem genes adicionais, como al-
vírions são compostos por uma estrutura helical guns vírus de plantas, que possuem um gene ex-
interna (ribonucleoproteína, RNP), que contém o tra entre os genes P e M; e alguns rabdovírus de
genoma. A proteína do nucleocapsídeo (N), a fos- peixes possuem genes adicionais entre duas regi-
foproteína (P) e a polimerase viral (L) envolvem ões do genoma, P-M e G-L. Alguns vesiculovírus
o RNA genômico e constituem o ribonucleocap- e lissavírus codificam ainda algumas proteínas
sídeo. A proteína da matriz (M) está associada não-estruturais, pequenas e básicas, em uma se-
intimamente com a RNP, constituindo-se na base gunda seqüência aberta de leitura (ORF) do gene
estrutural que confere aos vírions o formato de da proteína P.
Rhabdoviridae 693

A B

Glicoproteína (G)

Proteína
matriz (M)

Fosfoproteína (P)
Ribonucleocapsídeo
(RNP)

RNA

Polimerase (L)
C Nucleoproteína (N)
leader trailer

3’ N P M G L 5’

kb
0 1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11

Fonte:- A) Dr David Sander, ICTVdB.

Figura 27.2. Estrutura dos vírions e do genoma dos membros da família Rhabdoviridae. A) Fotografia de microscopia
eletrônica do vírus da estomatite vesicular, VSV; B) Estrutura de uma partícula vírica e seus componentes; C)
Estrutura e organização do genoma.

A infectividade dos rabdovírus é razoavel- tores na superfície celular (fosfatidil-serina, por


mente estável sob condições ambientais, espe- exemplo). Essa interação resulta na adsorção e
cialmente sob pH alcalino. No entanto, os vírions penetração dos vírions por endocitose (Figura
são termolábeis e sensíveis à radiação solar e ul- 27.3). No interior da vesícula endocítica, sob pH
travioleta (UV). Na prática, o VSV pode ser facil- ácido, a proteína G promove a fusão do envelope
mente inativado por desinfetantes baseados em viral com a membrana do endossomo. O comple-
detergentes. xo ribonucleoproteína (RNA+N+L+P) é liberado
no citoplasma e a fita simples de RNA negativo
é transcrita pelo complexo polimerase que está
4 O ciclo replicativo presente no vírion. As proteínas do nucleocapsí-
deo devem estar intimamente associadas com o
O ciclo replicativo descrito a seguir baseia- RNA para que ocorra a transcrição e a replicação.
se no vírus da estomatite vesicular (VSV), o pro- O complexo polimerase ativo requer a associação
tótipo da família. O ciclo inicia com a interação de três unidades da fosfoproteína (P) com uma
da glicoproteína G do envelope viral com recep- unidade da proteína L (large).
694 Capítulo 27

11
1 10
2

9
3

7 8

L
N G
5
P
6

M Núcleo

Citoplasma

Figura 27.3. Ilustração esquemática do ciclo replicativo do vírus da estomatite vesicular (VSV), protótipo da família
Rhabdoviridae. Após a ligação aos receptores específicos (1), os vírions são internalizados por endocitose (2), que é
seguida de fusão do envelope com a membrana endossomal, sob pH baixo, e da liberação do nucleocapsídeo no
citosol (3). Segue-se a transcrição individual dos genes (4) e tradução (5), resultando na produção das proteínas virais
N, P, M, G e L (6). A polimerase viral (L), com a participação da proteína P, realiza a síntese da molécula de RNA
complementar (7) e, a seguir, a síntese de cópias genômicas (8), que permanecem associadas com as proteínas que
compõem a ribonucleoproteína (RNP). Os nucleocapsídeos (RNA+proteínas) recém-formados são transportados até
a membrana plasmática (9), onde interagem com a proteína M e com as caudas da glicoproteína G (10), resultando no
brotamento e egresso da progênie viral (11).

A transcrição do genoma dos rabdovírus é uma exceção, pois codifica duas proteínas básicas
regulada por um mecanismo simples e eficiente, pequenas em uma segunda ORF (Figura 27.3).
em que o nível de expressão de cada gene é deter- Seqüências conservadas das regiões intergênicas
minado pela sua distância em relação ao promo- contêm sinais para a terminação da transcrição,
tor único, localizado próximo à extremidade 3’. adição de cap e poliadenilação. Uma seqüência de
Esse mecanismo é denominado de atenuação da 40 a 50 nt na extremidade 3’ é transcrita, mas não
transcrição, e o gradiente de produção de trans- recebe cap ou poli-A. Esse transcrito, denomina-
critos será na ordem N>P>M>G>L. Portanto, a do RNA leader, é produzido em grande quantida-
proteína do nucleocapsídeo (N) é a proteína mais de e é transportado para o núcleo da célula, onde
abundante e a polimerase (L) é a menos abundan- inibe a transcrição dos genes celulares.
te. Cada RNA mensageiro (mRNA) é monocistrô- O transcrito leader é seguido pelo mRNA da
nico (codifica apenas uma proteína) e possui uma proteína N, que recebe o cap pelo complexo poli-
estrutura cap na extremidade 5’ e uma cauda poli- merase do vírion. Na extremidade final do gene
A na extremidade 3’. O gene P de alguns vírus é N e de todos os cinco genes, encontra-se a seqüên-
Rhabdoviridae 695

cia 5’-AGUUUUUUUCAUA -3’, que sinaliza o las Vero são utilizadas para isolamento do vírus.
final da transcrição e a poliadenilação do mRNA. Células de origem aviária, como células de em-
A cauda poli-A é, provavelmente, sintetizada brião de galinha, também são susceptíveis e pro-
pela polimerase viral, que utiliza a seqüência de duzem altos títulos do VSV. Este vírus também
sete bases Uracil como molde para iniciar a poli- replica em cultivos de células de peixes e répteis.
merização da seqüência de Adeninas. A síntese Da mesma forma, o vírus é capaz de replicar em
dos quatro mRNA subseqüentes ocorre de forma várias linhagens celulares derivadas de insetos,
idêntica. como do Aedes aegypti. Em geral, a replicação na
A tradução dos mRNA está associada com o maioria das células de insetos é não-citolítica,
processo de transcrição, e a quantidade de cada contrastando com a replicação rápida e altamente
proteína reflete a abundância relativa de cada lítica observada em células de mamíferos.
mRNA. Após a tradução das proteínas virais pe-
los ribossomos, o complexo polimerase realiza a 5 Rabdovírus de interesse veterinário
transição do modo de transcrição para o modo
de replicação do genoma, sintetizando cadeias Este capítulo descreve em maiores detalhes
completas do RNA com sentido positivo. Essas três grupos de rabdovírus que são relevantes para
cópias de RNA conjugam-se com a proteína N a saúde animal: o vírus da estomatite vesicular
e servem de molde para a síntese de cópias de (VSV), o vírus da raiva e lissavírus relacionados,
RNA de sentido genômico. além dos rabdovírus que infectam peixes.
Os mecanismos envolvidos na troca da
transcrição para a replicação não estão completa- 5.1 Vírus da estomatite vesicular
mente elucidados, mas a quantidade de proteína
N parece desempenhar uma função importante. A estomatite vesicular (VS) é uma enfer-
Após a síntese de cópias negativas do RNA, es- midade caracterizada pelo desenvolvimento
sas podem servir para transcrição e replicação ou de lesões vesiculares na boca, língua, tetos e na
podem, ainda, ser encapsidadas nas partículas banda coronária dos cascos de bovinos, eqüinos
virais, pela interação da proteína N com a pro- e suínos. O vírus da estomatite vesicular (VSV)
teína da matriz (M). O brotamento na membrana encontra-se amplamente distribuído nas Améri-
plasmática é mediado pela interação da M com a cas. Em bovinos e suínos, a doença é clinicamente
glicoproteína G (gG). A gG é sintetizada no retí-
indistinguível da febre aftosa, uma das doenças
culo endoplasmático, transportada pelo comple-
animais de maior importância econômica. Por
xo de Golgi e inserida na membrana plasmática
isso, os surtos de VS resultam em perdas vulto-
na forma de trímeros. Após a inserção, esses trí-
sas, principalmente pelas quarentenas exigidas
meros interagem com os ribonucleocapsídeos re-
até que se realize o diagnóstico laboratorial e se
cém-formados para formar vírions maduros, que
descarte a febre aftosa.
brotam da superfície celular adquirindo o enve-
As primeiras descrições de doença vesicu-
lope lipoprotéico. A Figura 3 apresenta de forma
lar em eqüinos (provavelmente a VS) ocorreram
esquemática e simplificada o ciclo replicativo do
no século XIX, no sudeste dos EUA e na Améri-
VSV.
ca Central. Em 1862, foi relatada a ocorrência de
In vitro, o VSV replica em uma variedade
uma doença vesicular e febril em eqüinos do exér-
de células primárias e de linhagem de várias es-
pécies animais, incluindo invertebrados e ver- cito americano durante a guerra civil. A primeira
tebrados. A maioria das linhagens celulares de grande epizootia de VS, descrita em detalhes nos
mamíferos suporta a replicação do VSV, mas a EUA, ocorreu em 1916, acometendo um grande
susceptibilidade varia amplamente entre diferen- número de eqüinos, mulas e bovinos. Epizootias
tes linhagens. de VS continuaram a ocorrer no Sudoeste dos
Em geral, as células BHK-21 são utilizadas EUA, com intervalos de aproximadamente 10
para se obter altos títulos virais, enquanto as célu- anos. Porém o agente etiológico foi descrito pela
696 Capítulo 27

primeira vez em Indiana, em 1926, recebendo o


nome de vírus da estomatite vesicular de Indiana
IN3 ALAGOAS

VSIV-3
(VSIV). No ano seguinte, um agente sorologica-
IN3 MINAS GERAIS
mente relacionado ao VSIV foi isolado de bovi-
IN3 ESPINOSA
nos em Nova Jersey, sendo denominado vírus da IN3 ANEGRAS
estomatite vesicular de Nova Jersey (VSNJV). Es-
tudos subseqüentes demonstraram que esses ví- IN2 SCAT970
rus são sorologicamente distintos, sendo, assim, In2 PARANÁ
IN2 SCAT969

VSIV-2
classificados em sorotipos separados.
IN2 RANCHARIA

IN2 SALTO
5.1.1 Epidemiologia IN2 MAIPU

IN2 COCAL

– Distribuição geográfica IN-1

VSIV
IN198COE

IN 85CLB
O VSIV e o VSNJV são endêmicos do Nor-
IN194GUB
te e Oeste da América do Sul (Bolívia, Colômbia,
IN2 MARABÁ
Equador, Peru e Venezuela), na América Central

VSNJV
até o Sul do México, com surtos descritos nessas NJ88CRB
NJ89GAS
regiões praticamente a cada ano. A maioria dos
NJ95NME
surtos (80%) é causada pelo VSNJV, mas o VSIV
Piry PMG
circula nessas áreas e, ocasionalmente, os dois so- Raiva
rotipos podem ser encontrados simultaneamen- 100 substituições

te. No Norte do México e Sul dos EUA, a ocor-


rência da VS é esporádica, com surtos descritos
Figura 27.4. Relação filogenética entre diferentes
no sudoeste americano a intervalos de oito a 10 isolados e tipos do VSV obtidos de diferentes locais nas
anos, com duração de um a dois anos. No Brasil, Américas.
esses dois vírus não foram detectados, mas surtos
de estomatite vesicular têm sido descritos e são
causados por vírus relacionados sorologicamen-
– Espectro de hospedeiros e ciclo
te ao VSIV. Esses vírus foram classificados como natural
Indiana 2 (VSIV-2), com o protótipo vírus Cocal
(COCV); e Indiana 3 (VSIV-3), que possui como Como outros vesiculovírus, o VSV pode
protótipo a cepa Alagoas (VSAV). A maioria dos infectar várias espécies de hospedeiros, incluin-
casos no Brasil é causada pelo VSIV-3, enquanto do insetos, pássaros e mamíferos. Existem evi-
o VSIV-2 ocorre apenas esporadicamente, e mais dências sorológicas da infecção de mamíferos
ao Sul do País. O VSIV-2 tem sido descrito oca- silvestres, como os ratos-de-algodão (Sigmodon
sionalmente na Argentina, onde o último surto ssp), ratos-de-arroz (Oryzomis ssp) e camundon-
foi relatado em 1986. A Figura 27.4 apresenta a gos-de-campo (Peromyscus ssp e Reithrodontomys
relação filogenética entre diferentes isolados e ssp); além de mamíferos como morcegos (várias
tipos do VSV obtidos de diferentes localizações espécies), macacos (Alloata palliatta); veados-da–
geográficas. cauda-branca (Odocoileus virginianus) e suínos
Rhabdoviridae 697

selvagens (Sus scrofa). A infecção de animais sil- como: camundongos, suínos, bovinos e eqüinos.
vestres parece ser assintomática, no entanto, le- No entanto, ao contrário dos outros arbovírus, o
sões vesiculares pequenas têm sido descritas em VSV parece não produzir viremia em seus hospe-
suínos selvagens. Em contraste, animais domés- deiros naturais (suínos, bovinos, cavalos, veados
ticos, como os bovinos (Bos taurus e Bos indicus), e suínos selvagens) após infecção experimental.
eqüídeos (cavalos, mulas e burros), suínos, oca- Recentemente foi demonstrado que pode ocorrer
sionalmente camelídeos (Lama glama), ovinos e transmissão do VSV entre moscas infectadas e
caprinos infectados, freqüentemente apresentam não-infectadas ao se alimentarem em um mesmo
sinais clínicos. A ocorrência de doença vesicular animal não-virêmico. Esse mecanismo poderia
em eqüinos é um importante achado para a sua explicar a transmissão do VSV durante os surtos,
diferenciação de febre aftosa. mesmo na ausência de hospedeiros mamíferos
Existem evidências consistentes de que o virêmicos. Uma ilustração simplificada da histó-
VSV é um arbovírus, ou seja, que é transmitido ria natural do VSV com os prováveis hospedeiros
por insetos. Várias espécies de insetos podem ser naturais e acidentais está apresentada na Figura
infectados pelos VSVs, e essa infecção tem sido 27.5.
detectada especialmente durante os surtos. Três
espécies de insetos: as moscas-de-areia (Lutzomyia – Ocorrência em áreas endêmicas
ssp), as moscas-pretas (Simulium sp) e os perni-
longos (Culicoides sp) são considerados vetores Em áreas endêmicas, localizadas em regi-
biológicos do vírus, pois são capazes de replicar ões tropicais e subtropicais das Américas, os in-
e transmitir o VSV a espécies susceptíveis, tais tervalos entre os surtos são inferiores a um ano.

Hospedeiros naturais?
?

Espécies naturalmente infectadas


– Cervídeos
– Suínos silvestres
– Pássaros ?
– Lagartos
– Roedores
– Morcegos – Bovinos, suínos, eqüinos (sem viremia)

Hospedeiros terminais?

Figura 27.5. Provável ciclo natural do vírus da estomatite vesicular (VSV).


698 Capítulo 27

Vários estudos realizados em áreas endêmicas Oeste dos EUA, com grandes epizootias a cada
da Costa Rica demonstram que o pico dos sinais 10 anos. Destacam-se as de 1916, 1925, 1937, 1945,
clínicos ocorre nas estações chuvosas ou secas, 1956, 1965, 1972, 1982, 1995 e 2004, algumas des-
dependendo da zona ecológica. Os casos clíni- sas se estendendo por até dois anos. Os surtos tí-
cos ocorreram com maior freqüência em vacas picos iniciam no Sudoeste dos EUA, nos estados
em lactação, causados pelo VSNJV (90%) e pelo do Texas, Arizona ou Novo México na primavera
VSIV (10%). A maioria dos animais adultos, prin- (abril a maio), progredindo na direção norte, se-
cipalmente aqueles que desenvolveram a doen- guindo rios e vales, atingindo estados do Noroes-
ça clínica, apresentou títulos altos de anticorpos te, como Utah, Colorado, Wyoming, Nebraska e
neutralizantes contra o VSNJV (93%) e contra o Montana no verão (agosto) e desaparecendo com
VSIV (25%). Não foram detectadas evidências de as primeiras geadas (outubro a novembro). Esse
mutações que alterassem o perfil antigênico da padrão de ocorrência, aliado à presença do vírus
glicoproteína viral, embora alguns animais afeta- em insetos hematófagos, como as moscas-pretas
dos possuíssem altos títulos de anticorpos neu- (Simulium sp) e pernilongos (Culicoides sp), suge-
tralizantes contra o vírus homólogo previamente re que as picadas de insetos são a principal forma
aos sinais clínicos. de transmissão.
Nessas áreas endêmicas, muitos animais No entanto, em 1982, um surto de grandes
tornam-se soropositivos durante os períodos de proporções, no Oeste dos EUA, persistiu durante
atividade viral sem manifestarem sinais clínicos os meses de inverno até 1983. Esse surto foi as-
da doença. Por isso, acredita-se que a circulação sociado com a movimentação de animais infec-
do vírus nessas áreas pode ocorrer na completa tados para leilões, demonstrando a necessidade
ausência de sinais clínicos nos animais de cria- de estabelecimento de quarentenas em eventos
ção. Animais silvestres, como veados, primatas, futuros. A exemplo do restante das Américas, a
suínos, morcegos e pássaros residentes nessas maioria dos surtos nos EUA tem sido associada
áreas, freqüentemente possuem anticorpos neu- com o VSNJV. No entanto, o VSIV ressurgiu, em
tralizantes contra o VSV, porém o papel desses 1997, após 30 anos de aparente ausência.
animais no ciclo natural do vírus ainda não foi
esclarecido. – Epidemiologia molecular
Uma endemia da infecção pelo VSV ocorre
na ilha inabitada de Ossabaw, na costa da Ge- Os surtos de VS em áreas endêmicas são es-
órgia, USA. Nessa ilha não existem bovinos ou tacionais e ocorrem virtualmente todos os anos.
eqüinos, mas uma grande população de suínos A análise filogenética dos vírus associados com
silvestres, que possui anticorpos contra o VSV e esses eventos demonstrou que várias linhagens
que, ocasionalmente, apresenta lesões vesiculares virais causam surtos simultaneamente, em dife-
típicas de VS. Estudos entomológicos demonstra- rentes regiões endêmicas. Ao contrário, as epi-
ram que moscas-da-areia que habitam essa área zootias em áreas não-endêmicas são causadas
carreiam o mesmo VSNJV que infecta os suínos geralmente por uma única linhagem viral, com
silvestres. Além disso, a época de soroconversão pouca ou nenhuma variação genética ao longo
desses animais ao vírus geralmente coincide com do surto, e cada surto é, geralmente, causado
os picos populacionais desses insetos. por uma linhagem diferente. Esses padrões de
ocorrência sugerem que os surtos em áreas não-
– Ocorrência em áreas não-endêmicas endêmicas resultam da introdução de linhagens
virais únicas a partir de áreas endêmicas, que se
Em áreas não-endêmicas, surtos da doença disseminam durante o surto e se tornam poste-
ocorrem em ciclos de um a dois anos com inter- riormente extintas.
valos de oito a dez anos. A ocorrência não-endê- O VSV é muito variável e a sua diversidade
mica da VS mais bem caracterizada acontece no genética pode ser observada entre os isolados de
Rhabdoviridae 699

campo em toda a sua distribuição geográfica. O são, febre, laminite e salivação excessiva são fre-
gene mais conservado é o da proteína do nucleo- qüentemente observadas antes da formação das
capsídeo (N), enquanto o mais divergente é o da vesículas. Em vacas leiteiras, a produção de leite
fosfoproteína (P), com 40 e 70% de divergência pode reduzir significativamente ou até mesmo
de nucleotídeos entre sorotipos, respectivamen- cessar. Em gado de corte com lesões graves na
te. A evolução do VSV na natureza parece ser re- boca, a perda de peso pode atingir 140 quilos. A
lacionada com a sua localização geográfica, pois mastite é uma conseqüência comum da infecção,
diferentes grupos genéticos do vírus estão asso- devido à retenção de leite (pela dor durante a or-
ciados com diferentes regiões. Existem evidên- denha) e por infecção bacteriana secundária. Na
cias de que fatores ecológicos presentes nesses maioria dos casos, há remissão das lesões dentro
locais influenciam a evolução do vírus. Em áreas de sete a dez dias.
endêmicas, algumas linhagens do VSV parecem Durante um surto ocorrido no estado do Co-
ser mantidas por longos períodos de tempo em lorado, EUA, em 1982, foram estudados 13 reba-
zonas ecológicas específicas. Apesar da presença nhos leiteiros, nos quais foram afetados 378 de
de altos títulos de anticorpos neutralizantes nas um total de 2.400 animais. As lesões foram assim
populações que vivem em áreas endêmicas, alte- distribuídas: somente lesões orais (263 animais ou
rações antigênicas relevantes (antigenic drift) não 69,3%); lesões somente nos tetos (87 animais ou
têm sido relatadas para o VSV. 23%); lesões orais e nos tetos (22 animais ou 5,8%)
e lesões apenas nos cascos (7 animais; 1,9%).
5.1.2 Patogenia e sinais clínicos Em humanos, a infecção pelo VSV é seme-
lhante à gripe, com um período de incubação de
Em animais de criação, a maioria das infec- 24 a 48 horas. Na maioria dos casos, há letargia,
ções naturais pelo VSV parecem ser assintomá- mialgia, cefaléia, fotofobia e sintomas de resfria-
ticas, pois grande parte dos animais apresenta do. A recuperação clínica ocorre dentro de uma a
soroconversão sem manifestar sinais de doença. duas semanas. Em áreas endêmicas, uma parcela
Estudos epidemiológicos têm demonstrado que da população rural pode apresentar anticorpos
o estado fisiológico (ex. gestação, lactação, ida- contra o vírus sem manifestar sinais clínicos com-
de) pode influenciar o desenvolvimento de sinais patíveis com a doença.
clínicos. Nesse caso, os fatores do hospedeiro Alguns estudos têm identificado genes virais
provavelmente determinariam as conseqüências determinantes de virulência in vitro e in vivo. Por
clínicas da infecção. A transmissão pela picada exemplo, a proteína M parece modular a resposta
de insetos parece resultar em doença mais grave imune inata em células infectadas e tem sido as-
quando comparada com a transmissão iatrogê- sociada com o aumento da virulência de isolados
nica. As glândulas salivares dos insetos contêm em camundongos de laboratório. Os sorotipos
substâncias que regulam negativamente a res- VSNJV e VSIV apresentam diferenças importan-
posta imune do hospedeiro, principalmente a tes de virulência; o tipo Indiana produz doença
resposta inata. Além disso, extratos de glândulas mais grave e se dissemina com maior rapidez por
salivares de insetos potencializam a multiplica- contato entre suínos, e a gG parece ser um impor-
ção viral em cultivos celulares e em camundon- tante determinante da virulência.
gos inoculados.
A VS em bovinos, eqüinos e suínos é carac- 5.1.3 Imunidade
terizada por lesões vesiculares na boca (língua,
lábios, gengivas), nos tetos e epitélio da banda Três principais componentes da resposta
coronária dos cascos, que surgem dois a quatro imune atuam na proteção contra o VSV: a imu-
dias após a inoculação do vírus. Os bovinos e nidade não-específica ou inata (interferon e óxi-
eqüinos raramente apresentam lesões em mais do nítrico, por exemplo), a imunidade humoral
de um local, enquanto os suínos freqüentemente (anticorpos) e a imunidade celular (linfócitos ci-
desenvolvem vesículas em vários sítios. Depres- totóxicos). O interferon parece desempenhar um
700 Capítulo 27

papel importante na sobrevivência de camun- PCR em tempo real. Amostras de epitélio e flui-
dongos inoculados com o VSV. Aliado ao fato de do vesicular são as indicadas para o diagnóstico.
que a proteína de matriz inibe a ação do inter- Alternativamente, quando as lesões vesiculares
feron, esses dados sugerem que essa substância estão ulceradas ou erosivas, pode-se coletar sua-
represente um importante mecanismo de defesa bes. O meio de transporte deve conter pH neutro,
contra a infecção viral. Anticorpos neutralizantes enviando-se as amostras em gelo, evitando-se
contra a glicoproteína do VSV são produzidos ra- congelá-las.
pidamente e em altos títulos após a infecção na-
tural ou experimental e, provavelmente, desem- 5.1.5 Controle e profilaxia
penhem um papel importante na proteção contra
o VSV. O mecanismo exato da proteção conferida Em rebanhos ou áreas de ocorrência da VS, a
pelos anticorpos não está completamente eluci- interdição e quarentena devem ser estabelecidas
dado, pois complexos de vírus e anticorpos man- para evitar a disseminação da infecção. Nos reba-
têm a capacidade de ligação à célula-alvo, porém nhos atingidos, as medidas profiláticas incluem o
não são infecciosos. A maioria dos bovinos, eqüi- controle de insetos, limpeza e desinfecção dos re-
nos e suínos de regiões endêmicas possui anticor- cipientes de alimentos e água, equipamentos de
pos neutralizantes anti-VSV. No entanto, parece ordenha e utensílios que podem veicular o vírus
que a presença de anticorpos neutralizantes não é entre os animais. Como a escarificação da pele
suficiente para prevenir a doença clínica. A repli- parece ter influência na penetração do vírus, pas-
cação viral, que ocorre predominantemente nos tagens altas e feno grosseiro devem ser evitados.
epitélios, poderia ser uma explicação para esse Várias vacinas inativadas, contendo os dois
fato. sorotipos (NJ e IN1), têm sido utilizadas na Amé-
Experimentos em bovinos e suínos têm de- rica Central e do Sul. Apesar da eficácia dessas
monstrado a proliferação de células mononucle- vacinas não ter sido testada, as vacinas bivalen-
ares do sangue periférico em resposta a antígenos tes, contendo adjuvante oleoso, aplicadas a cada
do VSV. Essa resposta pode ser detectada três se- seis meses, têm reduzido significativamente a
manas após a inoculação em suínos ou pós-vaci- incidência da doença. Outros imunógenos, como
nação em bovinos; e pode durar até seis meses. vacinas de subunidade e vacinas com o vírus vac-
No entanto, o papel da resposta imune celular cinia como vetor da glicoproteína G, têm apresen-
na proteção contra o VSV é questionável, pois os tado sucesso limitado em triagens laboratoriais,
animais de laboratório, desprovidos de resposta porém não têm sido testadas a campo.
citotóxica direta ou indireta, mas capazes de mon-
tar resposta humoral, sobrevivem à infecção. 5.2 Vírus da raiva e lissavírus
relacionados
5.1.4 Diagnóstico
A raiva, palavra derivada do sânscrito, que
O diagnóstico diferencial é extremamente significa “fazer violência”, é uma das doenças
importante, principalmente para distinguir a VS mais documentadas na história. A doença já era
da febre aftosa. Os métodos de diagnóstico utili- reconhecida há pelo menos 4.000 anos, e muitos
zados incluem o isolamento viral, a detecção de dos primeiros registros relacionavam a infecção a
antígenos por ELISA, a fixação do complemento mitos e crenças religiosas. Na obra Ilíada, Home-
e a imunofluorescência (IFA). Além desses, a de- ro referiu-se provavelmente à raiva quando men-
tecção de anticorpos por soroneutralização (SN) cionou que Sirius, a estrela mais brilhante do cão
e determinação de IgM por ELISA são também da constelação de Orion, exercia uma influência
utilizados. A detecção de IgM em níveis altos in- maligna sobre a saúde das pessoas. Demócrito re-
dica infecção recente. Outros métodos de detec- gistrou pela primeira vez a raiva canina, cerca de
ção viral incluem a RT-PCR (transcrição reversa 500 anos a.C. Aristóteles mencionou a “loucura
e reação da polimerase em cadeia), além do RT- dos cães”, mas acreditava que a enfermidade não
Rhabdoviridae 701

fosse transmitida ao homem. A infecciosidade da pre detectados em animais infectados pelo vírus
saliva de cães raivosos foi documentada pelo es- da raiva. Na verdade, o dr. Negri acreditava que
critor romano Cardanus. Este e outros escritores as inclusões fossem o agente causador da raiva,
romanos descreveram o material infeccioso pre- que ele imaginava tratar-se de um protozoário.
sente na saliva como um “veneno”, cuja palavra Ele descreveu o achado de inclusões redondas ou
correspondente em latim é “vírus”; porém, o con- ovais, que denominou Negri body, ou corpúscu-
ceito contemporâneo do termo “vírus” vai muito los de Negri, com tamanho variando entre 0.25 a
além do sentido em que foi utilizado naqueles 27 μm, encontradas freqüentemente nas células
tempos. Somente no século 19 foi demonstrado piramidais dos cornos de Amon e nas células de
que a raiva era uma doença contagiosa, quando Purkinje do cerebelo, podendo ser encontradas
Zinke (1804) provou que a saliva de um cão infec- em células da medula e outros gânglios nervosos.
tado, colocada sobre uma ferida aberta de um cão As inclusões podem ser visualizadas por colora-
normal, era capaz de transmitir a doença. ções de Mann, Giemsa ou pelo método de Seller,
As descobertas de Louis Pasteur represen- onde aparecem com uma coloração carmim ou
taram um marco importante em vários aspectos magenta, contendo em seu interior grânulos mais
da microbiologia, especialmente para o estudo da escuros, basofílicos. A identificação desses cor-
raiva. Entre 1881 e 1885 ele desenvolveu o méto- púsculos foi, por muitos anos, até o advento da
do de passagens do vírus da raiva em coelhos, imunofluorescência, a principal ferramenta utili-
originando o que foi denominado “vírus fixo”, zada no diagnóstico rápido da raiva. A partir dos
ou seja, uma amostra que, quando inoculada, anos 1960, a imunofluorescência direta tornou-se,
apresentava um período de incubação “fixo” (7-8 em função de sua grande sensibilidade e especifi-
dias) e causava morte dos coelhos ao 11º-12º dia. cidade, o principal método de diagnóstico rápido
Essa amostra foi a base para que Pasteur e seus de raiva, assim permanecendo até o presente.
colaboradores desenvolvessem a primeira vacina
contra a raiva. Para tanto, buscando inativar o 5.2.1 O agente
agente pelo calor brando, Pasteur mantinha me-
dulas de coelhos dessecando em estufa a 37ºC. O vírus da raiva (RabV) pertence a ordem
Após 9 a 10 dias de incubação, a patogenicidade Mononegavirales, a qual compreende todos os
do agente era reduzida. vírus que possuem genoma formado por uma
Pasteur elaborou, então, um esquema de va- única molécula de RNA, de polaridade negativa
cinação, no qual o cão a ser vacinado era inocu- (ICTVdB, 2007). Dentro dessa ordem, o RabV é
lado com suspensões de tecido gradativamente classificado na família Rhabdoviridae, no gênero
menos dessecadas. A série de injeções iniciava Lyssavirus (ICTVdB, 2007), juntamente com ou-
com suspensões de medulas dessecadas por 9- tros vírus denominados “vírus relacionados à
10 dias e, assim, progressivamente com material raiva”, os quais apresentam semelhanças antigê-
dessecado por 8, 7, 6, 5, 4, 3 e 2 dias. Esse proce- nicas com o RabV. Posteriormente, pelo uso de
dimento foi, em 1885, aplicado no menino Joseph métodos de análise filogenética, o gênero Lyssa-
Meister, que sobreviveu a uma agressão de um virus foi subdividido em seis genótipos distin-
cão raivoso (o menino apresentava mordidas em tos, sendo o RabV classificado como genótipo 1
várias partes do corpo, inclusive na cabeça). Os e protótipo do gênero. Os demais lissavírus são
procedimentos criados por Pasteur foram adota- classificados em outros seis genótipos distintos.
dos por muitos anos e, apesar das inúmeras mo- Os genótipos 5 e 6, correspondentes aos lissaví-
dificações ao longo dos anos, serviram de base rus de morcegos europeus, foram subdivididos
para muitos processos de atenuação e vacinação em subtipos. Além desses, outros quatro novos
ainda hoje amplamente utilizados. genótipos foram propostos, representados pelos
Em 1903, Adelchi Negri descreveu os cor- vírus Aravan, Khujand, Irkut e West Caucasian,
púsculos de inclusão intracitoplasmáticos carac- todos isolados de morcegos. Os membros do gê-
terísticos em neurônios, os quais eram quase sem- nero Lyssavirus estão listados na Tabela 27.2. Em
702 Capítulo 27

Tabela 27.2. Membros do gênero Lyssavirus: classificação genotípica e distribuição geográfica.

Genótipo Nomenclatura Distribuição geográfica

Genótipo 1 Vírus da raiva (RabV) Mundial

Genótipo 2 Lagos bat África

Genótipo 3 Mokola África

Genótipo 4 Duvenhage África

Genótipo 5 Lissavírus europeu de morcegos 1 (EBL) 1) Europa

Genótipo 6 Lissavírus europeu de morcegos 2 (EBL) 2) Europa

Genótipo 7 Lissavírus australiano de morcegos (ABL) Austrália

Arayan
Novos genótipos Khujand
propostos Ásia Central
Irkut
West Caucasian
(Morcegos)

relação à patogenicidade e imunogenicidade, o roplóides, são utilizadas. As células de linhagem


gênero foi subdividido em dois filogrupos: o fi- de rim de hamster BHK-21 (de baby hamster kid-
logrupo I compreende todos os vírus que causam ney) são freqüentemente utilizadas para o cultivo
encefalites fatais semelhantes à raiva em huma- do RabV com diversas finalidades, sendo usadas
nos; o filogrupo II é formado pelos vírus Mokola inclusive para a produção de vacinas para ani-
e “Lagos bat”, que são menos patogênicos para mais. As células de rim de macaco-verde africano
humanos, embora o Mokola já tenha sido detec- (VERO) e as linhas de células diplóides humanas
tado em casos de encefalite. WI-38 e MRC-5 são usadas para produção de va-
O RabV é envelopado e, como tal, sensível cinas para uso humano. As células de linhagem
a detergentes e solventes lipídicos. Sua resistên- derivadas de neuroblastomas têm sido freqüen-
cia fora do hospedeiro é baixa, e rapidamente temente utilizadas para diagnóstico e isolamento
inativado a temperaturas altas, sendo destruído de amostras de campo. Uma linhagem de glio-
a 50ºC durante 15 minutos. É sensível ao desse- ma de rato, denominada C6, tem sido utilizada
camento, luz solar, radiação ultravioleta, hipo- por pesquisadores brasileiros. O RabV não causa
clorito de sódio, soda cáustica a 2%, solventes de efeito citopático quando cultivado em células in
gorduras (éter, clorofórmio) e formalina. O vírus vitro, o que torna necessário algum tipo de teste
se mantém estável por longos períodos a 4ºC, po- complementar para o acompanhamento da evo-
rém se conservado a -20ºC em tecidos mergulha- lução da infecção nas células. Isso geralmente é
dos em glicerina tamponada (pH 7,2-7,6), o vírus feito por testes que dependem de anticorpos li-
se mantém por vários anos. A -70ºC ou tempera- gados a substâncias fluorescentes ou a enzimas,
turas mais baixas, o vírus se mantém viável inde- como a peroxidase.
finidamente.
A multiplicação do RabV em cultivos celula- 5.2.2 Estrutura do vírion
res representou um grande avanço nas pesquisas
e no desenvolvimento de vacinas. Uma grande Os vírions apresentam a forma característica
variedade de cultivos de células neurais e não- da família, que lembra um projétil de revólver,
neurais, incluindo pelo menos duas dezenas de com cerca de 75 nm de diâmetro e comprimen-
cultivos primários e outras tantas linhagens hete- to entre 100 e 300 nm. A partícula apresenta-se
Rhabdoviridae 703

como um denso cilindro formado pelo genoma ação de ribonucleases. A N desempenha outras
disposto em formato de mola e envolto em uma atividades importantes: é fundamental na regu-
proteína denominada nucleoproteína (N). Este lação da transcrição do RNA viral, participando
conjunto forma, junto com moléculas de outras ativamente na encapsidação de novas moléculas
três proteínas estruturais (P, M e L), o nucleocap- de RNA genômico sintetizadas e no transporte
sídeo, que apresenta simetria helicoidal. O nucle- axoplásmico intraneuronal.
ocapsídeo, por sua vez, é envolto em um envelo- A proteína L (2128 aminoácidos, 190 KDa),
pe, que deriva das membranas celulares. Nesse é uma subunidade da RNA polimerase viral, que
envelope, estão inseridos trímeros de moléculas é complementada com P e N para formar o com-
da glicoproteína G, que atravessa o envelope e plexo que transcreve o genoma. Além dessa ati-
projeta suas espículas para a parte externa do ví- vidade, a L detém ainda várias outras atividades
rion. enzimáticas, como a formação do cap, metilação,
O genoma viral é uma cadeia de RNA de poliadenilação e atividade de proteína quinase,
fita simples, com um tamanho aproximado de 12 além de estar envolvida na inicialização da cadeia
kb e com uma massa molecular de 4,6 x 106 kDa. de RNA. A proteína L é ativada pela interação
O genoma codifica cinco proteínas, na seguinte com P (298 aminoácidos, 35-40 KDa). Esta, por
ordem: a nucleoproteína (N), a fosfoproteína (P, sua vez, é a menos conservada entre os lissavírus.
previamente denominada M1), a proteína da ma- A proteína P liga-se à dineína intracitoplasmática
triz (M, previamente denominada M2), a glico- e está envolvida no transporte axonal do vírus.
proteína (G) e a RNA polimerase dependente de A proteína M (203 aminoácidos, 22-25 KDa), por
RNA (L). O gene conta ainda com duas regiões sua vez, preenche o espaço entre o ribonucleo-
intergênicas não-codificantes, situadas entre os capsídeo e o envelope, e promove a montagem
genes que codificam M e G e entre os genes que das partículas, aproximando membranas, RNP e
codificam G e L. Esta última foi previamente cha- G, exercendo um papel ativo no brotamento dos
ma da pseudogene, mas trata-se de uma região novos vírions.
não-codificante, indicativa de relações evolutivas
com outros vírus de genoma de RNA não-seg- 5.2.3 Replicação viral
mentado de polaridade negativa, como os mem-
bros da família Paramyxoviridae. A adsorção do vírus à célula hospedeira é
A glicoproteína G (525 aminoácidos, 65-70 mediada pelos trímeros da gG, que interagem
kDa) é responsável pela adsorção do vírus à cé- com os receptores celulares e promovem a fusão
lula hospedeira e pela fusão do envelope viral à e internalização dos vírions. Não é descrito um
membrana citoplasmática, além de participar do receptor específico para o RabV e, possivelmente,
processo de brotamento de novos vírions. Além diferentes receptores são utilizados em diferentes
disso, a gG é a maior responsável pela indução células para ocorrer a penetração do vírus. Alguns
de anticorpos neutralizantes, principalmente por estudos evidenciaram a adsorção aos receptores
sua porção externa do envelope, denominada de acetilcolina; outros observaram que oligossa-
domínio antigênico ou ectodomínio. A gG tam- carídeos e lipoproteínas, como o ácido siálico de
bém é capaz de estimular, em conjunto com as gangliosídeos, podem também ter participação na
proteínas N e P, células T auxiliares e citotóxicas, adsorção. As moléculas de adesão neurais (neural
gerando uma resposta imune celular. Alguns sí- cell adhesion molecules ou NCAM), assim como a
tios de G são relacionados com a patogenicidade proteína denominada “receptor de neurotrofinas
de amostras de vírus. A proteína N (450 amino- p75” (p75NTR) foram também apontadas como
ácidos, 58-62 kDa) também é capaz de induzir possíveis receptores para o RabV. Após a adsor-
anticorpos neutralizantes, apresentando ainda ção à célula hospedeira, o vírion penetra na célula
epítopos importantes para o reconhecimento de por fagocitose, sendo englobado por uma vesícu-
linfócitos T. A proteína N é a mais conservada la formada pela membrana celular. Essas vesícu-
dentre as proteínas dos lissavírus, está intima- las são ricas em uma proteína denominada clatri-
mente associada ao RNA viral, protegendo-o da na. Eventualmente, a vesícula contendo o vírion
704 Capítulo 27

funde-se com lisossomos, liberando a RNP no ci- produz lise das células infectadas; em cultivos
toplasma celular e permitindo que seja iniciado o in vitro, as células infectadas podem permanecer
processo de transcrição e replicação viral. por longos períodos viáveis e liberando novos ví-
Uma vez no interior da célula, o genoma rions por brotamento.
de polaridade negativa é inicialmente transcrito
e ocorre a produção de proteínas. Para tanto, a 5.2.4 Variações antigênicas
RNA polimerase viral transcreve o genoma em
um RNA líder e cinco mRNAs, todos os cinco O RabV tem sido considerado como um
com cap e poli-adenilados, tal como os mRNA vírus bastante estável. Algumas das amostras
celulares. A transcrição diminui sua eficiência em de vírus vacinais ainda hoje utilizadas são deri-
cerca de 30% nas junções dos genes N-NS, NS- vadas do vírus isolado por Pasteur no final do
M e M-G, resultando em um efeito cumulativo século XIX. Uma amostra do RabV de Pasteur
na expressão gênica, ou seja, a expressão é mais foi submetida a 3.080 passagens em coelhos até
eficiente na extremidade 3’ do genoma. Como 1953, e foram evidenciadas poucas alterações em
descrito anteriormente, esse processo é denomi- sua patogenicidade. Não obstante, essa estabili-
nado atenuação da transcrição. Os mensageiros dade não é absoluta. Os métodos então disponí-
são traduzidos nas proteínas N, P, M, G e L em veis – baseados essencialmente na inoculação de
ribossomos livres no citoplasma. A proteína G, animais de experimentação – eram muito pouco
que requer glicosilação, recebe carboidratos no sensíveis para a detecção de variações mais sutis.
retículo endoplasmático rugoso e é transportada Apesar disso, já na década de 1950, os estudos
via complexo de Golgi para a membrana citoplás- de Fuenzalida e Palácios (1955) apontavam para
mátiica. A replicação do genoma viral ocorre so- diferenças antigênicas significativas entre amos-
mente após a tradução dos mRNAs. A proporção tras do RabV. Nos anos 1980, com a aplicação de
entre a quantidade de RNA e da proteína N no anticorpos monoclonais (AcMs) para o estudo do
interior do citoplasma regula o processo de troca RabV, as variações antigênicas tornaram-se mais
do processo de transcrição para replicação. O pri- evidentes. Esses estudos revelaram que amos-
meiro passo na replicação é a síntese de cópias de tras de vírus originárias de diferentes espécies
polaridade positiva (ou antigenômica) de todo o hospedeiras naturais apresentavam “variantes”
genoma viral. Para que estas sejam geradas, os si- com características antigênicas particulares, su-
nais de transcrição representados por códons de gerindo a ocorrência de adaptações de amostras
parada e continuação de leitura são ignorados; do vírus a um determinado hospedeiro. Essas va-
a RNA polimerase reconhece a extremidade 3’ e riantes são bastante estáveis, pois a passagem de
sintetiza uma cópia complementar com a exten- amostras em um hospedeiro terminal não modi-
são do genoma. Essas cópias positivas servirão fica suas características antigênicas (por exemplo,
de molde para a síntese de novos genomas (de amostras de RabV isoladas de bovino geralmente
polaridade negativa) que irão fazer parte dos no- apresentam perfil de amostras isoladas em mor-
vos vírions. cegos hematófagos).
Durante a montagem, um complexo forma- A caracterização antigênica de amostras do
do pelas proteínas N, P e L promove a encapsida- RabV é realizada por testes de imunofluorescên-
ção dos novos genomas. A proteína M envolve a cia indireta, nos quais a reatividade dessas amos-
RNP; esse complexo vai para uma área da mem- tras (multiplicadas em camundongos ou cultivos
brana citoplasmática (ou vesículas membranosas celulares) é determinada frente a painéis de AcMs
internas) e M inicia o “enovelamento” da partí- contra antígenos da proteína N. No Brasil, dois
cula, conferindo-lhe o formato de “mola”, que painéis de AcMs têm sido utilizados. Um deles é
caracteriza a disposição helicoidal da RNP. A se- constituído por oito AcMs preparados contra di-
guir, as partículas ligam-se à membrana celular versas amostras de RabV, fornecido pelo Center
em regiões onde foram inseridos trímeros da gG, for Disease Control and Prevention (CDC), Atlanta,
originando o envelope viral. Esse processo não USA, e preestabelecido pela OPAS para o estu-
Rhabdoviridae 705

do de amostras isoladas nas Américas. Com esse de outras espécies. Os hospedeiros naturais são
painel, foram identificadas, no Brasil, as varian- os principais vetores da infecção, sendo capazes
tes 2 (principalmente em cães, com perfil típico de transmitir o vírus entre indivíduos da mesma
de amostras de raiva urbana), 3 (identificada em espécie e também a outras espécies envolvidas.
morcegos Desmodus rotundus), 4 (de morcegos in- Essas, quando eventualmente infectadas, geral-
setívoros Tadarida brasiliensis), 5 (de morcegos he- mente são “hospedeiros finais” ou “terminais”
matófagos da Venezuela, isolada de uma raposa da infecção, pois o ciclo é terminado por ocasião
ou cachorro-do-mato Cerdocyon thous no Brasil) da morte do hospedeiro, usualmente sem haver
e 6 (isolada de um morcego insetívoro Lasiurus chance para nova transmissão.
cinereus), além de algumas amostras com perfis
atípicos que não puderam ser enquadradas nes- – Ciclos da raiva
sa classificação. O outro painel é composto por
14 AcMs anti-N preparados contra antígenos de Na natureza, o RabV é mantido por ciclos
diferentes lissavírus (Labos bat, Mokola, Duve- ocasionalmente inter-relacionados, denominados
nhage e Danish bat), por King (1991), no Central ciclos urbano e silvestre, aéreo e rural. Ciclo “ur-
Veterinary Laboratory (hoje denominado Central bano” refere-se à raiva em cães e gatos domés-
Veterinary Agency), Weybridge, Grã-Bretanha. O ticos; ciclo aéreo refere-se à raiva em morcegos,
mesmo foi ampliado pela inclusão de outros dois sendo os demais ciclos denominados ciclos “ter-
AcMs preparados no Brasil contra antígenos da restres”. Ciclo “rural” refere-se à raiva dos herbí-
amostra CVS de RabV. Quatro AcMs desse pai- voros, que envolve principalmente os bovinos e
nel permitiram a diferenciação entre variantes de eqüinos, e na qual o principal vetor é o morcego
morcegos hematófagos, morcegos não-hematófa- hematófago. O termo “silvestre” refere-se à raiva
gos, cães, e um outro grupo incluindo uma amos- associada a espécies silvestres, e pode englobar o
tra de cão, um isolado de um caso humano e uma ciclo aéreo. O ciclo urbano tem sido controlado
amostra padrão do RabV, denominada “PV”. por meio de vacinação de animais de companhia
Estudos sobre variantes antigênicas têm sido de várias regiões do Brasil. Porém os ciclos silves-
complementados por análises genômicas, possi- tre e rural ocorrem em diversas regiões. No ciclo
bilitando a identificação de variantes genotípicas silvestre, o vírus pode utilizar diferentes espécies
do RabV. Esses estudos têm conduzido a uma como reservatório, que podem variar em função
profunda reavaliação do conhecimento a respei- da fauna da região geográfica considerada. As-
to da epidemiologia da infecção e da distribuição sim, na Europa, o principal reservatório natural
do vírus na natureza. do vírus em seu ciclo silvestre é a raposa-verme-
lha (Vulpes vulpes); na América do Norte, são as
5.2.5 Epidemiologia raposas-vermelhas, os gambás (Mephitis mephitis)
e guaxinins (Procyon lotor), que são também hos-
O RabV está presente em todos os conti- pedeiros naturais do vírus. Na América Latina,
nentes, com exceção da Austrália e Antártica. os morcegos hematófagos Desmodus rotundus são
Alguns países (Inglaterra, Irlanda, Japão e países os principais hospedeiros silvestres do vírus (Ta-
escandinavos) obtiveram sucesso na erradicação bela 27.3). Em função de seus hábitos alimenta-
da doença. Já os lissavírus de outros genótipos, res, os morcegos hematófagos são os principais
apresentam distribuição geográfica bem mais li- transmissores da infecção a bovinos. Não obstan-
mitada (Tabela 27.2). Até o presente, nas Améri- te, na indisponibilidade de bovinos para sua ali-
cas, todas as amostras do gênero Lyssavirus isola- mentação, os morcegos D. rotundus podem atacar
das pertencem ao genótipo 1, que compreende a outras espécies na busca de alimento, inclusive
totalidade das amostras “clássicas” do vírus. humanos. Em um episódio, morcegos hemató-
O hospedeiro natural ou reservatório natural fagos foram responsáveis por uma epidemia de
é a espécie na qual o vírus é capaz de se perpetu- raiva humana, entre pessoas com o costume de
ar sem a necessidade da sua reintrodução a partir dormir ao ar livre em redes, tornando-se presas
706 Capítulo 27

Tabela 27.3. Principais reservatórios da raiva silvestre e te para permitir que o animal infectado transmita
distribuição geográfica. a infecção a outros hospedeiros em sua comuni-
dade, antes de sua morte.
Região Reservatórios
A maioria das infecções pelo vírus da raiva
Europa Raposa vermelha ocorre por transmissão percutânea, através da
(Vulpes vulpes)
mordedura de animais infectados. A transmis-
Estados Unidos Coiote (Canis latrans), texugo
(Meles meles), guaxinim (Procyon são por via aérea pode ocorrer raramente, mas
lotor.), gambá (Mephitis mephitis)
não tem significância epidemiológica para o ciclo
América Latina Morcego hematófago (Desmodus
rotundus), raposa (Dusicyon
da infecção. O contato com ferimentos abertos e
vetulus), jaritatacas (Conepatus sp.), membranas mucosas pode, ocasionalmente, le-
guaxinins (Procyon cancrivorous),
sagüis (Calithrix sp.), diversas var à transmissão do vírus, assim como procedi-
espécies de morcegos não-hemató-
fagos e canídeos selvagens mentos médicos, como transplantes de córneas e
outros órgãos (transmissão iatrogênica). Foram
fáceis para morcegos hematófagos. As duas ou- relatados casos de raiva humana na Europa e
tras espécies de morcegos hematófagos conheci- EUA, onde a infecção ocorreu pelo transplante
das, Diphylla ecaudata e Diaemus youngi, alimen- de órgãos sólidos (rins, pulmões, fígado e pân-
tam-se geralmente de sangue de aves, embora D. creas) provenientes de doadores com encefalite
ecaudata já tenha sido observado alimentando-se de origem desconhecida. Esse fato salienta a im-
de sangue humano. Ambas as espécies podem ser portância da inclusão de testes específicos para o
contaminadas pelo RabV, mas a sua participação diagnóstico de raiva em potenciais doadores de
na manutenção da infecção no ciclo silvestre da órgãos, particularmente se apresentaram sinais
raiva não é significativa. de comprometimento neurológico.
A epidemiologia da raiva vem sendo exami-
nada, e animais soropositivos de várias espécies, 5.2.5.1 Situação da raiva no Brasil
sem a presença de sinais clínicos, têm sido iden-
tificados. Esses estudos têm incluído mangostas, – Raiva urbana
morcegos hematófagos e insetívoros, guaxinins,
gambás, raposas, hienas, chacais e cães selvagens A raiva, no Brasil, apresenta-se em níveis
e domésticos na Etiópia. distintos nas diferentes regiões do país. Na re-
Sílvio Torres e Queiroz de Lima (1936) e Pa- gião Sul, a raiva urbana tem sido controlada. Os
wan (1936) já haviam registrado a possibilidade últimos casos em humanos nos estados do Rio
de morcegos hematófagos tornarem-se portado- Grande do Sul e Santa Catarina ocorreram em
res da infecção; porém, em função dos métodos 1981. No Paraná, o último caso humano foi re-
disponíveis à época, as evidências apresentadas gistrado em 1987. Porém, casos de raiva urbana
deixaram margem a dúvidas. Não obstante, mais associados com outras fontes de transmissão têm
recentemente, na Etiópia, isolou-se repetidamen- ocorrido na região Sul ocasionalmente. Em 2001,
te vírus infeccioso de cães assintomáticos, assim no Rio Grande do Sul, um felino foi infectado por
como na Nigéria, adicionando ainda mais evidên- uma variante de origem de morcegos não-hema-
cias à possibilidade de ocorrência de infecções tófagos. Em 2007, um caso de raiva foi relatado
não-fatais. O RNA viral foi detectado em hienas em um cão infectado com uma variante freqüen-
na África, sugerindo a ocorrência de amostras de temente detectada em morcegos insetívoros. Não
baixa patogenicidade nesta espécie. Assim, ape- obstante, apesar desses episódios isolados de
sar de ainda não estar completamente esclareci- contaminação com amostras originárias de ou-
da a interação do vírus com seus hospedeiros, tros hospedeiros naturais, as variantes do RabV
em algumas espécies animais, o vírus é capaz de que tem como hospedeiro natural o cão, não têm
perpetuar-se, seja por causar infecções não-fatais, sido detectadas em populações caninas na região
seja por manter-se no hospedeiro tempo suficien- Sul.
Rhabdoviridae 707

As demais regiões do país ainda apresentam Em 2004 e 2005, os casos notificados de raiva hu-
casos de raiva urbana, porém o número está em mana transmitida por morcegos hematófagos
declínio. Ocorreu um decréscimo nos casos noti- apresentaram um incremento importante em de-
ficados de raiva entre caninos e felinos no Brasil corrência de surtos ocorridos na região Amazô-
entre 1997-2006 (Tabela 27.4). Até 2003, os cães nica, e esses morcegos tornaram-se os principais
eram os principais vetores da raiva para humanos,
transmissores da infecção a humanos. Como con-
porém, a partir deste ano, os casos em humanos
seqüência, em 2005, observou-se o maior número
causados por cães foram suplantados pelas in-
de casos de raiva humana registrados no decênio.
fecções transmitidas por morcegos (Tabela 27.5).
Observa-se no período uma significativa redução Dos 80 casos notificados no triênio 2004-2006,
dos casos de raiva urbana provocados por cães e morcegos hematófagos foram implicados em 66
gatos. Até 2003, os cães foram responsáveis pela (82,5%) ao passo que cães estiveram envolvidos
transmissão de 119 (84%) de 141 casos humanos. somente em 12 episódios (15%).

Tabela 27.4. Casos notificados de raiva em animais no Brasil no decênio 1997-2006 (não computados os registros de
raiva bovina)

1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006

Caninos 945 1746 970 761 657 617 289 104 93 97

Gatos 65 165 93 69 27 67 21 10 10 7

Morcegos
0 0 4 8 72 12 11 19 60 50
hematófagos
Morcegos
0 0 0 20 27 2 8 30 136 25
não-hemat.
Morcegos
0 0 6 2 2 55 94 38 0 0
não-ident.
Animais
36 36 37 61 144 89 155 124 251 208
Silvestres

Tabela 27.5. Casos de raiva em humanos e espécie de animal transmissor no Brasil (1997-2006)

Espécie
transmissora 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 TOTAL

Bovino - - - - - - - 1 - 1 2

Cão 17 19 21 24 18 6 14 5 1 6 131

Gato 3 2 - 1 1 - - 1 - - 8

Morcegos
- - - - - 3 3 22 42 2 72
hematófagos
Morcegos não- - - - - - - - - - - -
hematófagos
Morcegos espécie - 4 2 - - - - - - - 6
indeterminada
Guaxinim - - - - - - - - -
1 1
(Procyon sp.)

Macaco - 3 - 1 2 - - - 1 - 7
708 Capítulo 27

– Raiva em morcegos e animais ovinos e caprinos representam uma parcela sig-


silvestres terrestres nificativa dos casos de raiva em herbívoros.

A notificação dos casos de raiva em mor- 5.2.6 Patogenia, sinais clínicos


cegos aumentou significativamente nos últimos e patologia
anos, no período de 1997-2006 (Tabelas 27.4 e
27.5). Aumentaram ainda os registros de casos O período de incubação da raiva é muito va-
em animais silvestres terrestres nesse período. riável após infecções naturais. Muitos fatores po-
Particularmente preocupantes são os registros de dem estar associados a um período de incubação
casos em morcegos não-hematófagos, pois sua mais ou menos prolongado, tais como a amostra
adaptação ao ambiente urbano pode dar margem de vírus envolvida, o local da mordedura (quan-
a infecções humanas. Apesar disso, até o presente to mais próximo do sistema nervoso central, mais
ainda não foi registrado no Brasil nenhum caso rápido o transporte do vírus), a carga viral inocu-
de raiva humana transmitida por morcegos não- lada, a suscetibilidade da espécie exposta e imu-
hematófagos (Tabela 27.5). nidade do animal agredido. Geralmente, o perío-
do de incubação é de 14 dias a 12 semanas, porém
– Raiva dos herbívoros períodos superiores a um ano já foram relatados.
No hospedeiro infectado, o vírus pode repli-
Além dos problemas causados à saúde pú- car nas células musculares, próximas ao local da
blica, a raiva traz sérios prejuízos econômicos à inoculação, antes de invadir o sistema nervoso
pecuária nacional, e tem sido responsável, nos central (SNC). Esta multiplicação é importante
últimos dez anos, por mais de 23.000 casos notifi- para a posterior invasão do SNC, porém, ocasio-
cados em herbívoros. Salienta-se que a subnotifi- nalmente, pode ocorrer o transporte direto do ví-
cação de casos de raiva em herbívoros é uma re- rus sem a replicação prévia no local de entrada.
alidade, de forma que é praticamente impossível O vírus pode utilizar uma combinação de siste-
determinar o número preciso de perdas associa- mas para atingir o SNC, envolvendo o fluxo axo-
das à doença. Os casos notificados de raiva dos plásmico retrógrado (provavelmente utilizando
herbívoros no Brasil no decênio 1997-2006, repor- o sistema motor celular envolvendo a dineína,
tados aos órgãos oficiais, são apresentados na Ta- passagem célula-célula via junções sinápticas e
bela 27.6. Na região Sudeste, ocorreu um aumen- passagem direta do vírus através de conexões in-
to nos casos de raiva notificados em herbívoros, tercelulares). No SNC, o vírus replica e se disse-
provavelmente em função de uma maior eficácia mina via nervos periféricos, de forma centrífuga,
na notificação. Na região Nordeste, os casos em para os tecidos não-neurais do organismo. An-

Tabela 27.6. Casos de raiva dos herbívoros notificados no Brasil, por região, no decênio 1997-2006.

Regiões 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 TOTAL

Norte 68 74 61 2676 235 346 662 185 138 nd* 4445

Nordeste 406 269 374 302 198 226 226 257 309 nd 2567

Sul 48 81 52 77 60 193 140 147 158 nd 956

Sudeste 2335 2360 2666 2835 1324 1201 863 512 500 nd 14596

Nordeste 406 269 374 302 198 226 226 257 309 nd 2567

Centro-Oeste 94 240 254 409 697 824 761 725 806 nd 4810

TOTAL 2951 3024 3407 6299 2514 2790 2652 1826 1911 961** 27374

nd* : não disponível, ** total de casos registrados em 2006 (SIEPI, 2007).


Rhabdoviridae 709

tígenos podem ser detectados em praticamente riável, apresentando como desfecho a morte. A
todos os tecidos de animais infectados. O vírus constatação de morcegos soropositivos sem si-
replica nas glândulas salivares, e a excreção pela nais clínicos aparentes sugere que deve haver ou-
saliva é o principal mecanismo de disseminação e tros tipos de interação vírus-hospedeiro que não
perpetuação do mesmo na natureza, permitindo conduzam invariavelmente a morte. Entretanto,
a inoculação pela barreira cutânea e a introdução a ocorrência de portadores ou infecções subclíni-
do RabV nos tecidos do novo hospedeiro após a cas em quirópteros é, ainda, questão de debate.
mordedura. O período de incubação da raiva em morcegos
A apresentação clínica da raiva pode ser mui- é extremamente mutável, variando de semanas
to variável, pois os sinais de comprometimento a períodos maiores que um ano. Os principais
neurológico podem se apresentar de forma dis- sinais da doença em morcegos hematófagos são:
tinta. As apresentações clássicas da doença são as atividade alimentar diurna, hiperexcitabilidade
formas furiosa e/ou paralítica. A forma furiosa é e agressividade, incoordenação motora, tremo-
mais freqüente em caninos, que apresentam alte- res musculares, paralisia e morte. Nos morcegos
rações de comportamento como inquietação (hi- não-hematófagos, ocorre geralmente paralisia
perexcitabilidade, agressividade), fotofobia, sali- sem agressividade e excitabilidade, e os espéci-
vação, insônia e ocasionalmente febre. Na forma mes são encontrados em locais não-habituais.
paralítica, o animal apresenta dificuldade de de- Nestas espécies, em infecções experimentais, o
glutição, pela paralisia muscular; podendo haver período de incubação pode variar entre duas a
alteração do tom de voz do animal. Com o pro- 25 semanas.
gresso da doença, os membros posteriores tam- O exame histopatológico do encéfalo de ani-
bém podem ficar paralisados. Ocorre a evolução mais que morrem devido à infecção pelo RabV
do quadro em quatro a cinco dias, com desfecho revela meningite e encefalomielite não-supurati-
fatal. A paralisia do maxilar inferior promove a va. Podem ainda ser detectados os corpúsculos de
impossibilidade de deglutição, e a salivação típi- Negri, considerados patognomônicos da infecção.
ca da forma paralítica da doença. Pode-se obser- As alterações patológicas são mais facilmente ob-
var ainda um aumento do limiar de sensibilidade servadas quando os tecidos são colhidos após a
a tranqüilizantes e sedativos e, se anestesiados, morte do animal em conseqüência da infecção. Se
os cães podem apresentar alucinações e convul- o animal for sacrificado em estágios precoces da
sões no período pós-anestésico. A morte súbita enfermidade, as lesões e os corpúsculos de Negri
do animal também é relatada, sem que ocorra a podem não ser evidentes. As secções do encéfalo
manifestação de qualquer sinal clínico. mais indicadas para o exame histopatológico in-
Em bovinos, a forma paralítica é a apresenta- cluem os cornos de Amon, córtex cerebral, tronco
ção mais comum. A paralisia aguda, progressiva, cerebral, cerebelo e medula espinhal.
flácida, manifestada inicialmente nos membros
posteriores, é o sinal mais aparente. Podem ocor-
rer ainda sinais indicativos de comprometimento 5.2.7 Diagnóstico
dos nervos lombares e sacrais, como constipação,
tenesmo, parafimose em machos e gotejamento O diagnóstico da raiva não deve ser basea-
de urina. Em eqüinos, é relatada a lesão no lo- do apenas em observações clínicas, especialmen-
cal de inoculação do vírus; hiperexcitabilidade e te porque outras enfermidades podem originar
paralisia da faringe, esôfago e dos membros pos- sinais semelhantes. Paralelamente ao exame
teriores. clínico, é fundamental a análise da situação epi-
Durante vários anos, acreditou-se que a in- demiológica, a história da infecção na região, a
fecção com o RabV em morcegos era freqüente- presença de possíveis vetores contaminados e a
mente subclínica. Entretanto, na década de 1980, possibilidade da introdução de animais oriundos
foi evidenciado que os morcegos, assim como de áreas endêmicas. A associação desses dados
outros mamíferos, desenvolvem sinais clínicos permitirá um diagnóstico presuntivo, que deve
típicos da raiva, com período de incubação va- ser confirmado por testes laboratoriais.
710 Capítulo 27

– Diagnóstico virológico inoculação. A confirmação da causa mortis é feita


através de nova IFD no tecido encefálico dos ca-
O tecido de eleição para o diagnóstico de mundongos inoculados. Para reduzir a utilização
raiva é o encéfalo dos animais suspeitos. Em de animais, há uma tendência para a substituição
eqüinos, além do encéfalo, recomenda-se enviar da inoculação de camundongos pela inoculação
ao laboratório fragmentos de medula. As regiões em cultivos celulares. Diversas linhagens celula-
do encéfalo, preferencialmente submetidas para res são suscetíveis ao RabV, sendo as células de
diagnóstico, incluem porções do cerebelo, cór- origem de rim de hamster (baby hamster kidney,
tex e circunvoluções do hipocampo (ou cornos BHK) e células de linhagens de neuroblastoma
de Amon). Animais pequenos (p. ex.: morcegos, (NA ou N2A) as mais utilizadas para fins de
gambás, sagüis) devem ser remetidos inteiros ao diagnóstico.
laboratório. A cabeça do animal suspeito também Métodos moleculares vêm conquistando es-
pode ser remetida ao laboratório. As amostras paço no diagnóstico e caracterização do RabV. A
deverão ser remetidas sob refrigeração. Em locais maioria deles baseia-se na transcrição reversa de
em que não há condições de manter o espécime determinado segmento do genoma viral, segui-
refrigerado, recomenda-se a imersão de fragmen- da de amplificação pela reação da polimerase em
tos de tecido em Líquido de Vallée (glicerina 50% cadeia (RT-PCR). Os amplicons podem ter sua
tamponada com tampão fosfato: KH2PO4 1,80 g; especificidade confirmada com a aplicação de
K2H2PO4 2,30 g; glicerina neutra, 50%; H2O q.s.p. sondas. Os fragmentos de DNA assim gerados
1000 mL; pH 7,4-7,8). Nesse líquido, o vírus pode (amplicons) podem ser clivados com enzimas de
ser detectado se mantido por alguns dias. restrição, clonados ou, ainda, seqüenciados para
O diagnóstico de raiva na primeira metade estudos mais detalhados, como a caracterização
do século 20 baseou-se fundamentalmente na genômica das amostras isoladas.
pesquisa das inclusões ou corpúsculos de Negri
no encéfalo de animais infectados. Essa prova – Diagnóstico sorológico
apresenta sensibilidade e especificidade baixas,
pois as inclusões são detectadas em média em 60 O diagnóstico sorológico, ou seja, baseado
a 70% (amplitude de 40 a 90%) dos casos positi- na identificação de anticorpos específicos anti-
vos. A variação na sensibilidade para a detecção RabV, pode ser utilizado com vários objetivos.
de inclusões também ocorre em relação à espécie, Freqüentemente tem sido empregado para ava-
como para os eqüinos, em que a eficácia da detec- liar a capacidade imunogênica de vacinas anti-rá-
ção de corpúsculos de Negri é menor. bicas, bem como para avaliar o status sorológico
Em 1958, a técnica de imunofluorescência de populações submetidas à vacinação. A eleva-
direta (IFD) foi adaptada para a detecção de antí- ção dos títulos de anticorpos no líquido cefalor-
genos do RabV. A IFD é realizada em impressões raquidiano é considerada diagnóstica em casos
de tecido fresco sobre lâminas de microscopia e suspeitos e é muito utilizada para o diagnóstico
permite a obtenção do resultado em poucas ho- intra vitam em humanos. Testes sorológicos igual-
ras. A IFD chega a atingir sensibilidade e especifi- mente têm sido utilizados para buscar evidências
cidade próximas a 100% em relação à inoculação de circulação do vírus em populações não-vaci-
em camundongos. Essas qualidades, aliadas à nadas. Assim, entre muitas aplicações, os testes
rapidez na obtenção dos resultados, tornaram a sorológicos têm também contribuído para que
IFD a técnica de eleição para o diagnóstico rápi- muitos dos conceitos sobre a epidemiologia da
do de raiva. Para assegurar sua precisão, a IFD é raiva sejam reavaliados.
acompanhada por um teste de confirmação bio- A técnica de eleição para a detecção de an-
lógica, no qual o material suspeito é inoculado ticorpos contra o RabV é a soro-neutralização
por via intracerebral em camundongos lactentes. (SN). Nessa prova, uma quantidade determinada
Os camundongos inoculados desenvolvem sinais de vírus é homogeneizada com diluições do soro
neurológicos e morrem entre 8 e 23 dias após a a ser testado. Se este possuir anticorpos especí-
Rhabdoviridae 711

ficos, o vírus será neutralizado. Para evidenciar peitos de raiva canina em um número equivalen-
a multiplicação viral, camundongos ou cultivos te a 0,2% da população canina total do município,
celulares são inoculados com as misturas vírus/ permitindo, assim, uma avaliação da manutenção
diluições de soro. A SN é utilizada também para do status de área indene.
verificar os títulos de anticorpos neutralizantes A raiva dos herbívoros é controlada pela
em humanos submetidos à vacinação pré-exposi- vacinação de animais em áreas endêmicas e pelo
ção. Por comparação com um soro de referência, controle das populações de morcegos hematófa-
é possível determinar quantas unidades interna- gos. Para a vacinação, utiliza-se vacinas inativa-
cionais (UI) de anticorpos neutralizantes uma de- das, que representam atualmente 95% das vacinas
terminada amostra de soro apresenta. para bovinos comercializadas no Brasil (estimati-
Outra prova sorológica similar bastante uti- va de mais de 100 milhões de doses/ano).
lizada é o teste rápido de inibição de focos fluo- Para o controle das populações de morcegos
rescentes (RFFIT, de rapid fluorescent focus inhibi- hematófagos, são geralmente empregados méto-
tion test). Nessa prova, a neutralização do vírus dos baseados na aplicação tópica de uma pasta
pelo soro é revelada pelo bloqueio da reação de contendo uma substância anticoagulante, em
um conjugado fluorescente (igual ao utilizado na morcegos capturados e, posteriormente, libera-
prova de IFD descrita acima). dos para retornar a sua colônia. Como morcegos
Ensaios imunoenzimáticos do tipo ELISA têm o hábito de higienização pela lambedura mú-
também tem sido empregados na detecção de an- tua, o anticoagulante aplicado pode levar à eli-
ticorpos contra o RabV. Entretanto, esses testes minação de vários indivíduos da mesma colônia.
freqüentemente apresentam problemas de espe- Outros métodos incluem a aplicação de pastas
cificidade. com anticoagulante em bovinos, em feridas de
Além dos mencionados acima, uma grande mordeduras de morcegos, por via intramuscular
variedade de testes sorológicos foi ou vem sen- ou intraruminal, porém não são rotineiramente
do avaliada para a detecção de anticorpos contra utilizados. O controle da raiva em quirópteros
o RabV, incluindo a contra-imunoeletroforese, a em regiões sinantrópicas tem se tornado alvo da
inibição da imunoperoxidase e a citometria de preocupação dos órgãos de vigilância sanitária.
fluxo. Entretanto, até o presente, nenhum deles As estratégias propostas para o combate à raiva
foi capaz de suplantar em eficácia a SN, que per- em quirópteros urbanos foram recentemente dis-
manece como teste sorológico de eleição. cutidas no II Seminário de Manejo de Quirópte-
ros em Áreas Urbanas, em São Paulo. Dentre as
várias propostas elaboradas, destacam-se as se-
5.2.8 Prevenção e controle
guintes, que pretendem promover: a) a interação
entre órgãos de vigilância e de controle ambien-
A prevenção da raiva baseia-se na vacinação
tal; b) pesquisa em quirópteros; c) capacitação
de hospedeiros e no controle de reservatórios. As
para o trabalho com morcegos; d) formação de
principais medidas de controle do ciclo urbano
uma rede de laboratórios regionais habilitados à
da raiva são a vacinação de caninos e felinos e a
prática com quirópteros; e) incrementar estudos
captura e eliminação de cães errantes. O número
sobre a quiropterofauna; e f) conscientização da
de casos de raiva canina no país tem diminuído
população sobre o problema.
significativamente, o que aumenta a importân-
cia das ações de vigilância epidemiológica, a fim
de prevenir a reintrodução da doença, pois estes 5.2.9 Tratamento
animais constituem uma das principais fontes de
vírus para humanos. Caso sejam identificados – Em humanos
novos focos, o controle desses tem sido baseado
na vacinação em massa, focal e perifocal, com O tratamento da raiva apresenta uma pecu-
vacinas inativadas. Em municípios onde a raiva liaridade: a vacinação, na maioria dos casos, não
está controlada, o serviço de vigilância deve ser é aplicada preventivamente (com exceção de pro-
mantido, o que inclui o exame anual de casos sus- fissionais de risco) e sim terapeuticamente. Isso
712 Capítulo 27

é possível em função da lenta evolução da infec- A Organização Mundial de Saúde recomen-


ção, ou seja, pelo período de incubação prolon- da que o tratamento mais eficaz contra a raiva
gado, que permite que o hospedeiro desenvolva é lavar e enxaguar a ferida ou ponto de contato
uma resposta imune protetora quando vacinado com bastante água e sabão e, após, colocar etanol,
após a exposição ao RabV. Conforme a gravidade tintura ou solução aquosa de iodo sobre o feri-
da lesão e o histórico do animal agressor, diferen- mento. A vacina contra a raiva deve ser aplica-
tes medidas devem ser tomadas com o intuito de da em caso de exposições de nível 2 ou 3. Soro
que a pessoa exposta não desenvolva a doença anti-rábico (imunoglobulina anti-rábica) deve ser
(Tabela 27.7). administrado a todos aqueles que sofreram expo-

Tabela 27.7. Indicações para o tratamento anti-rábico no homem. Recomendações da Organização Mundial da Saúde

Condição do animal agressor


Natureza da Tratamento recomendado
exposição No momento Durante um período de (além do tratamento local)
da agressão 10 dias de observação

Sem lesão, contato Agressivo ____ Nenhum.


indireto

Lambedura

a) sem lesão cutânea Agressivo ____ Nenhum.

b) com pele esfolada ou Sadio Sinais clínicos de raiva Iniciar a vacinação aos primeiros
arranhada, ou com ou diagnóstico de raiva sinais de raiva no animal.
mucosas intactas confirmado

Sinais clínicos Sadio Iniciar a vacinação imediatamente,


de raiva suspender o tratamento caso o
animal estiver sadio cinco dias após
a exposição.

Agressivo, fugido, ____ Iniciar a vacinação imediatamente.


ou não se conhece

Mordeduras

a) superficiais a) Sadio Sinais clínicos de Iniciar a vacinação aos primeiros


raiva ou diagnóstico sinais de raiva no animal agressor.
de raiva comprovado

b) Sinais clínicos de Sadio Iniciar a vacinação imediatamente,


raiva suspender o tratamento caso o
animal estiver sadio cinco dias após
a exposição.

c) Agressivo, fugiu, foi ____ Iniciar a vacinação imediatamente.


morto ou não se
conhece

d) Silvestre ____ Soro, imediatamente seguido de


vacinação.

b) graves (múltiplas ou A) Sadio Soro, deve-se injetar no mínimo 40


na face, cabeça, unidades internacionais por kg de
pescoço ou dedo) peso corporal em dose única.

Sinais clínicos de
b) Sinais clínicos de raiva ou diagnóstico Também pode ser infiltrado 5 ml de
raiva soro no tecido afetado, seguido de
de raiva comprovado completa limpeza do ferimento.
Imediatamente iniciar a vacinação ao
primeiro sinal clínico de raiva no
c) Raivoso, fugiu foi animal agressor.
morto ou não se
conhece
Soro, imediatamente seguido de
vacinação. A vacina pode ser
interrompida se o animal estiver
d) Silvestre normal cinco dias após a exposição.
Rhabdoviridae 713

sição de nível 3, assim como para exposições de de tratamento pós-exposição, porém desenvol-
nível 2 em pacientes imunodeprimidos. O fecha- vendo uma resposta imune específica. O prog-
mento da ferida (sutura) deve ser evitado, mas, nóstico, neste caso, é reservado, pois somente um
se necessário, deve-se administrar soro anti-rábi- dos demais cinco pacientes que se recuperaram
co previamente, além de tratamento para tétano da raiva sem tratamento pós-exposição não apre-
e outros antimicrobianos que possam ser neces- sentou seqüelas.
sários. Em caso de exposição a animais suspeitos,
deve-se buscar imediatamente identificar, captu- – Tratamento de animais suspeitos
rar ou matar o animal envolvido. No caso de uma
exposição de nível 3, o tratamento pós-exposição O tratamento de animais suspeitos de raiva
deve ser iniciado imediatamente, podendo ser é contra-indicado em função do risco que repre-
interrompido se o animal for um cão ou gato e sentam para a transmissão do vírus a humanos.
permanecer sadio após 10 dias de observação. Animais suspeitos de raiva devem ser isolados e
Amostras de tecidos devem ser coletadas dos mantidos em observação em local seguro por um
animais mortos e enviados ao laboratório compe- período prolongado.
tente para diagnóstico.
Os gastos orçados para tratamento anti-rá- 5.3 Rabdovírus de peixes
bico nos países da América Latina – excluindo o
Brasil – foram da ordem de 11 a 22 milhões de Dentre as doenças víricas mais importantes
dólares. No Brasil, somente em 2004, foram gas- de peixes, várias são causadas por membros da
tos cerca de 28 milhões de dólares em vacinas de família Rhabdoviridae. A comissão de doenças de
animais de estimação e humanas, soro anti-rábi- peixes da OIE (Office International des Èpizooties)
co, diagnóstico, pessoal, treinamento de pessoal e lista três espécies de rabdovírus de notificação
campanhas de vacinação de cães. Nessas estima- obrigatória, que exigem comunicação em 24 ho-
tivas, não foram computados os dados referentes ras após a confirmação do diagnóstico. Essas es-
à raiva bovina que, segundo levantamento reali- pécies incluem o vírus da necrose hematopoiética
zado em 1985, foi responsável por perdas estima- infecciosa (IHNV), vírus da septicemia hemorrá-
das em 100.000 cabeças de gado, com um custo gica (VHSV) e vírus da viremia primaveril das
de 30 milhões de dólares. carpas (SVCV). Esses vírus causam infecções agu-
Uma paciente se recuperou após o desenvol- das com alta mortalidade em peixes encontrados
vimento dos sinais clínicos de raiva em Wiscon- na natureza ou em criatórios. Outros rabdovírus
sin, EUA, cerca de um mês após ter sido mordida de peixes incluem o Rhabdovirus hirame (HIRRV)
por um morcego não-hematófago. Não havia a e outros que têm sido isolados de infecções crô-
suspeita inicial de raiva, a paciente não recebeu nicas ou assintomáticas. Neste capítulo, são revi-
nenhum tipo de tratamento específico pós-expo- sadas as quatro espécies de rabdovírus de peixes
sição, porém desenvolveu títulos crescentes de mais estudadas e relevantes, ilustrando aspectos
anticorpos no soro e líquido cefalorraquidiano; importantes sobre os rabdovírus como patógenos
em nenhum momento foi isolado vírus nem foi veterinários em ecossistemas aquáticos.
possível identificar a presença genoma viral por
métodos moleculares. O tratamento da paciente 5.3.1 Histórico e classificação
consistiu em terapia de suporte e medidas neu-
roprotetivas, com a indução de coma e respiração A primeira descrição de uma doença severa,
forçada. Ribavirina foi administrada por via in- chamada de infectious dropsy of carp, foi publicada
travenosa. Durante sete dias de coma induzido, a em 1930, porém surtos de doença semelhante ha-
paciente apresentou um aumento gradativo nos viam sido descritos no início do século em carpas
títulos de anticorpos anti-rábicos, embora sem cultivadas em lagoas e, possivelmente, a infec-
confirmação virológica. Acredita-se que este seja ção já ocorria em 1727. Pesquisas realizadas nos
o sexto caso humano de recuperação da raiva anos 1980 demonstraram que o agente etiológico
sem que o paciente tenha recebido nenhum tipo dessa enfermidade é o SVCV. Epidemias em sal-
714 Capítulo 27

monídeos, cuja etiologia é atualmente atribuída Tabela 27.8. Principais rabdovírus de peixes com a sua
ao IHNV e VHSV, foram descritas inicialmente distribuição geográfica e espécies susceptíveis
entre 1940 e 1950. Porém, especula-se que epide-
Gênero Novirhabdovirus
mias da doença produzida por esses agentes já
ocorriam no início do século. Devido à contínua Vírus Local Hospedeiros
ocorrência e importância econômica dessas epi- IHNV América do Norte, Vários gêneros da
demias, o SVCV, IHNV e VHSV têm sido estuda- Europa e Ásia família Salmonidae
dos em nível biológico e molecular. Já o HIRRV VHSV América do Norte, Salmonidae (trutas)
foi descrito inicialmente em 1984, e muito pouco Europa e Japão Gadidae (bacalhaus)
Clupeidae (arengues)
se conhece sobre esse vírus. O estabelecimento Esocidae (lúcios)
de linhagens celulares de tecidos de peixes que Pluronectidae
amplificam eficientemente esses vírus, a partir de
HIRRV Japão Plecoglossidae (ayus)
1960, permitiu avanços importantes, facilitando a
Pleuronectidae
pesquisa em Virologia de peixes nos últimos 50 Bothidae (flounders)
anos. Vírus semelhantes aos do gênero Vesiculovirus
Taxonomicamente, os rabdovírus de peixes
SVCV Localdo
Vírus e vírus América Hospedeiros
Cyprinidae (carpas)
são classificados em um de dois grupos antigêni-
emergentes Norte, Europa Esocidae (lúcios)
cos, baseados nas propriedades das proteínas e semelhantes e Ásia Salmonidae (trutas)
em análises filogenéticas de seqüências de genes. aos vesiculo- Percidae (perches)
vírus
O gênero Novirhabdovirus abriga o IHNV, o VHSV
e o HIRRV, além de outros rabdovírus de peixes e na Europa nos anos 80 pelo transporte de ovas
menos caracterizados. O segundo grupo inclui o e de alevinos infectados. Essa transferência inter-
SVCV e vários rabdovírus emergentes de peixes continental permitiu o estabelecimento da infec-
que são muito relacionados aos rabdovírus de ção pelo IHNV como endêmica e epidêmica no
mamíferos, e pertencem ao gênero Vesiculovirus. Japão, na Europa e América do Norte.
O VHSV foi originalmente descrito como
5.3.2 Epidemiologia um patógeno de trutas arco-íris de água fresca
(Oncorhynchus mykiss) em criações do oeste eu-
– Distribuição geográfica e espectro de ropeu, porém, após os anos 1990, esse vírus tem
hospedeiros sido descrito em uma ampla variedade de espé-
cies de peixes marinhos nos oceanos Atlântico
Como grupo, os rabdovírus de peixes pos- Norte e Pacífico Norte. Um pequeno número de
suem uma ampla distribuição geográfica e uma casos também tem sido descrito em criatórios de
ampla gama de hospedeiros (Tabela 27.8). A in- peixes no Japão. Ao longo do século 20, o SVCV
fecção por esses vírus é descrita na maioria dos foi descrito somente em peixes ciprinídeos, como
países em que a criação de peixes é realizada em carpas cultivadas (Cyprinus carpio) na Europa,
larga escala, incluindo a Ásia, Europa, América Ásia e em vários outros países da Europa Orien-
do Norte, Rússia e Austrália. Atualmente existem tal. Em 2002, o primeiro diagnóstico confirma-
poucas evidências da presença dos rabdovírus em do de infecção pelo SVCV na América do Norte
peixes nas Américas Central e do Sul e na África. ocorreu em uma fazenda de peixes koi. Essa do-
No entanto, o desenvolvimento das criações de ença foi descrita posteriormente em vários esta-
peixes nessas regiões provavelmente será acom- dos dos EUA. O momento e a rota de introdução
panhado do surgimento ou relato desses agentes. do SVCV na América do Norte não são conhe-
Historicamente, a infecção pelo IHNV era limita- cidos, porém é possível que tenha ocorrido pelo
da aos salmonídeos, incluindo espécies de truta comércio de peixes ornamentais. A distribuição
e salmão do pacífico, encontradas na costa oeste do HIRRV é restrita ao Japão, sendo descrito em
da América do Norte. Porém, esse vírus foi in- peixes achatados, como o linguado-oliva (Parali-
troduzido acidentalmente no Japão nos anos 60 chthys olivaceous) e o ayu (Plecoglossus altivelis).
Rhabdoviridae 715

– Ciclo natural de infecção fil das proteínas virais, reações sorológicas com


anticorpos monoclonais e policlonais e por tipi-
Os surtos de doenças pelos rabdovírus são ficação genética. A análise filogenética e tipifica-
mais graves em peixes jovens, e a maioria das es- ção genética parcial das seqüências dos genes G e
pécies hospedeiras torna-se mais resistente à do- N do IHNV, VHSV e SVCV permitiu a definição
ença clínica com a idade. Porém, peixes maiores de genogrupos distintos dentro de cada espécie.
e inclusive adultos em desova podem ser infecta- Em concordância com estudos anteriores, essas
dos e atuar como carreadores do vírus. Os rabdo- análises demonstram que a relação entre os isola-
vírus de peixes podem ser transmitidos horizon- dos é correlacionada com a origem geográfica. O
talmente entre peixes, pela água contaminada; e IHNV possui três genogrupos, cada um com uma
verticalmente, dos adultos para a progênie, com distribuição geográfica diferente na Costa Oeste
o vírus associado às ovas. A importância relati- dos EUA. Esses genogrupos possuem, ainda, al-
va dessas duas vias de transmissão permanece guma correlação com a espécie hospedeira entre
obscura, mas acredita-se que a transmissão verti- os salmonídeos. O VHSV possui três genogrupos
cal seja rara, e que a transmissão horizontal pela principais na Europa e um quarto na América do
água seja a principal forma de disseminação dos Norte, existindo alguma correlação entre os ge-
vírus. nogrupos e a origem marinha ou de água doce
Surtos de doença ocorrem com maior fre- dos seus hospedeiros. Tanto o IHNV quanto o
qüência em criatórios do que em peixes de vida VHSV demonstram evidências de evolução viral
livre, provavelmente pela densidade elevada, o específica dentro da piscicultura intensiva.
que favorece uma maior eficiência de transmis- A análise de vários isolados de SVCV permi-
são. No entanto, alguns surtos de infecção pelo tiu a formação de quatro subgrupos, e a análise
IHNV, VHSV e SVCV têm sido descritos em po- conjunta com outros rabdovírus de peixes seme-
pulações de vida livre. Os peixes que sobrevivem lhantes aos vesiculovírus demonstrou a existência
à infecção podem ser carreadores do vírus por de três outros subgrupos, correlacionados com
longos períodos ou erradicar o agente do orga- a localização geográfica e a espécie hospedeira.
nismo. Para o VHSV, a existência de um grande Para cada uma dessas espécies de vírus, a alta re-
número de reservatórios (peixes marinhos), tem solução conferida pelo seqüenciamento de genes
sido documentada, porém, até então, não foram permitiu a criação de marcadores genéticos, que
descritos possíveis reservatórios e vetores para podem ser utilizados para a investigação de traje-
os outros rabdovírus de peixes. tórias migratórias, a fonte do vírus em surtos e o
A temperatura é um importante fator para a seu padrão de evolução ao longo do tempo.
ocorrência de surtos. Os surtos da infecção pelo
SVCV possuem sazonalidade, ocorrendo ge- 5.3.3 Patogenia, sinais clínicos
ralmente quando a temperatura da água atinge e patologia
entre 10 e 16°C na primavera, não ocorrendo em
temperaturas acima de 18°C. As epidemias cau- As doenças causadas pelos rabdovírus de
sadas pelo IHNV e pelo VHSV ocorrem em tem- peixes são caracterizadas por septicemia hemor-
peraturas mais frias, entre 10 e 12°C, não ocor- rágica aguda, com degeneração tecidual e necro-
rendo acima de 15°C. Partículas víricas livres na se em vários órgãos. O vírus penetra no peixe
água podem persistir viáveis por dias a semanas, pelas brânquias, pele ou cavidade oral, replica de
com maior viabilidade sob temperaturas baixas e forma transitória nas células endoteliais e atinge
alta salinidade. a circulação sangüínea, disseminando-se pelo or-
ganismo. Exames histopatológicos demonstram
– Epidemiologia molecular lesões extensivas e necrose em órgãos hemato-
poiéticos, incluindo os rins, o fígado, baço e, com
Variações entre isolados dos rabdovírus de menor freqüência, o coração. A necrose dos rins
peixes têm sido caracterizadas com base no per- produz insuficiência, perda da regulação osmóti-
716 Capítulo 27

ca e freqüentemente morte. Durante a infecção, o à falta de anticorpos marcadores e linhagens ce-


vírus é excretado pela urina e pelo material fecal lulares necessários para a investigação da imuni-
na água circundante. Além disso, o VHSV pode dade celular. Após a exposição aos rabdovírus, a
ser também excretado por úlceras de pele. primeira linha de defesa do organismo é a imu-
Os sinais clínicos da doença aguda podem nidade inata, envolvendo o interferon (IFN) e ge-
incluir o escurecimento da pele, exoftalmia, peté- nes induzidos pelo IFN, análogos aos conhecidos
quias na pele da base das nadadeiras, edema ab- em mamíferos. Sabe-se, desde os anos 1970, que a
dominal e fezes mucóides de coloração clara. Po- infecção pelo VHSV em peixes estimula a síntese
rém, muitos peixes morrem sem a apresentação de IFN, que apresenta um pico três dias após a
de sinais externos visíveis e, por isso, freqüente- infecção, e esse IFN possui uma ampla atividade
mente, a primeira indicação de uma epidemia é antiviral. Os peixes possuem, ainda, outros com-
o aumento súbito na mortalidade de peixes. Os ponentes da imunidade inata, incluindo o com-
sinais internos incluem anemia, edema, hemor- plemento, receptores toll e genes induzidos por
ragias petequiais disseminadas nos órgãos, no vírus que são específicos de peixes. Esses genes
tecido adiposo e na musculatura. Os peixes infec- são induzidos rapidamente após a infecção viral
tados podem apresentar letargia e anorexia, com- ou vacinação. A secreção mucosa de peixes pos-
portamento natatório anormal e incapacidade de sui atividade antiviral natural, que pode ser evi-
manter a posição vertical do seu eixo menor. A denciada previamente à indução de anticorpos.
forma aguda da doença é observada com maior O desenvolvimento de níveis detectáveis de
freqüência em filhotes (alevinos); os peixes maio- anticorpos séricos e de mucosas ocorre após três
res podem apresentar a infecção crônica sem si- a dez semanas, e o pico ocorre em alguns meses.
nais aparentes ou mortalidade. A infecção pelo O tempo para o desenvolvimento é influenciado
IHNV e pelo VHSV apresenta ainda uma forma pela temperatura, com o desenvolvimento mais
nervosa, quando a infecção atinge o encéfalo e rápido em temperaturas mais altas. Os peixes
causa um comportamento errático hiperativo. geralmente possuem um subtipo principal de
Em infecções experimentais, a mortalidade imunoglobulina e o soro contém mais anticorpos
inicia aproximadamente cinco a sete dias após a ligantes do que neutralizantes. A neutralização
exposição à água contaminada, persistindo por viral necessita de componentes do sistema com-
três a quatro semanas. A ocorrência, duração e plemento; anticorpos específicos para a glicopro-
severidade dos surtos de doença dependem da teína G demonstraram ser necessários e suficien-
combinação de fatores virais, do hospedeiro e do tes para uma imunidade protetora.
ambiente, incluindo a temperatura, a idade e o A importância dos anticorpos neutralizantes
tamanho dos peixes, a densidade e o nível de es- para a imunidade contra os rabdovírus de peixes
tresse. As infecções por rabdovírus podem pre- tem sido demonstrada pela transferência passiva
dispor os peixes a infecções bacterianas secundá- de soro de peixes convalescentes para peixes sus-
rias, que podem contribuir para a morbidade e ceptíveis e soronegativos, conferindo imunidade
mortalidade. frente ao desafio com doses letais de vírus. Peixes
sobreviventes de epidemias de infecções por rhab-
5.3.4 Imunidade dovírus desenvolvem imunidade protetora con-
tra a exposição subseqüente, possuindo títulos de
A resposta imunológica dos peixes contra anticorpos específicos que declinam lentamente
as infecções por rabdovírus envolve mecanismos com o tempo. A temperatura ambiental possui
inespecíficos e, subseqüentemente, a resposta função importante na interação entre os rabdo-
imune adaptiva, com o desenvolvimento de an- vírus de peixes e os hospedeiros. A ocorrência
ticorpos neutralizantes. Existem indicações ainda de epidemias dessas infecções em temperaturas
do envolvimento de resposta imune celular, no baixas se deve, em parte, à supressão da resposta
entanto, a função potencial de linfócitos citotóxi- imune, enquanto o contrário acontece em tempe-
cos não é conhecida. Isso se deve principalmente raturas mais elevadas, nas quais o sistema imune
Rhabdoviridae 717

é estimulado e a mesma infecção viral pode ser de anticorpos no soro incluem a neutralização vi-
controlada pelo hospedeiro. ral (dependente de complemento) e ELISA.

5.3.5 Diagnóstico
5.3.6 Controle e profilaxia
O diagnóstico das infecções pelos rabdoví-
rus de peixes deve iniciar com a coleta de amos- Até o presente não existe tratamento para
tras clínicas para os exames virológicos de rotina. as infecções causadas pelos rabdovírus de pei-
Os tecidos para a coleta dependem do tamanho xes. A prevenção deve se basear na aplicação de
do peixe: para alevinos e peixes pequenos, coleta- medidas rígidas de biossegurança nos criatórios,
se todo o animal, enquanto para peixes adultos, evitando a introdução do agente. Essas medidas
coleta-se os rins, baço e fluido reprodutivo, prin- incluem o uso de ovas ou estoques de peixes cer-
cipalmente. Pode-se fazer um pool de amostras de tificados como livres de patógenos, e a criação de
até cinco peixes ou, ainda, examinar-se amostras peixes jovens em água livre de contaminação por
individuais. Essas amostras devem ser transpor- vírus, como água de poços, água tratada com luz
tadas a 4°C em gelo, não-congeladas, e devem ultravioleta, clorada/desclorada ou tratada com
ser processadas em 48 a 72 horas. Diluições de ozônio. Os rabdovírus de peixes são inativados
homogeneizados de tecidos, sêmen ou fluido por esses tratamentos e também por compostos
ovariano são inoculadas em monocamadas de contendo iodo (iodóforos) ou hipoclorito (alve-
linhagens celulares susceptíveis, e o vírus é de- jante). Soluções de iodóforos são utilizadas com
tectado pelo efeito citopático característico após freqüência em fazendas de peixes e em incubató-
dois a cinco dias, podendo levar duas semanas. O rios para desinfetar redes, equipamentos, botas,
IHNV, o VHSV e o HIRRV são incubados a 15°C, luvas e outros. A desinfecção de ovas de peixes
e o SVCV é incubado entre 22 e 25°C. com iodóforos (100 mg.Lt-1) é efetiva, inativando
O efeito citopático é característico de cada aproximadamente 99,98% do IHNV. Portanto,
um dos vírus e resulta na formação de agregados a desinfecção de ovas com iodo é uma prática
em forma de cachos de uva por células arredon- padrão e que, se aplicada de forma apropriada,
dadas, formação de placas e, eventualmente, a apresenta sucesso na eliminação da transmissão
destruição da monocamada. Após a detecção do vertical em estabelecimentos de cultura de pei-
efeito citopático, a identificação do agente pode xes.
ser realizada por neutralização com soro poli- Outras práticas, tais como: evitar a mistura
clonal ou monoclonal específico. Esse método é de ovas de várias fêmeas durante a postura e a
confiável, sensível e preciso, porém é demorado, distribuição de estoques de peixes em pequenas
necessitando de duas a oito semanas para o diag- lagoas, não mantendo todos em uma mesma la-
nóstico final. Para a identificação rápida, méto- goa, são alternativas que evitam perdas em larga
dos alternativos, como a IFA, PCR ou RT-PCR, escala devido a epidemias. A seleção de peixes
têm sido utilizados. Outros métodos de detecção resistentes aos rabdovírus tem sido conduzida
e identificação dos rhabdovírus incluem testes com algum progresso, demonstrando que exis-
sorológicos, como ELISA, immunoblots, imuno- tem bases genéticas de resistência à infecção. Fi-
histoquímica (IHQ) e RT-PCR, em tecidos incluí- nalmente, em escala global, o reconhecimento da
dos em parafina. disseminação acidental dos rabdovírus de peixes
Para o IHNV, VHSV e SVCV, o exame de para outros continentes, no século passado, per-
vários isolados por métodos sorológicos tem de- mitiu a aceitação de regulamentações internacio-
monstrado que cada espécie é constituída por um nais, requerendo a inspeção sanitária dos peixes
sorotipo único, portanto, anticorpos policlonais para prevenir o transporte de patógenos através
podem detectar todos os isolados na maioria dos de peixes cultivados. Porém o transporte de pei-
métodos. A detecção de anticorpos específicos no xes ornamentais permanece sem regulamentação
soro também pode ser útil como um indicativo de e representa uma importante fonte para a disse-
exposição prévia ao vírus. Técnicas para detecção minação desses vírus.
718 Capítulo 27

Atualmente não existe nenhuma vacina co- BAER, G.M. Rabies in Nonhematophagous bats In: ___. The
natural history of rabies. 2. ed. Boca Raton, FL: CRC Press, 1975.
mercial para uso em larga escala na prevenção da
p.79-97.
infecção pelos rabdovírus de peixes. No entanto,
o desenvolvimento de vacinas de DNA tem se BALL, L.A.; WHITE, C.N. Order of transcription of genes of
demonstrado rápido e promissor. Vacinas tra- vesicular stomatitis virus. Proceedings of the National Academy
of Science of the United States of America, v.73, p.442-446,
dicionais atenuadas ou inativadas têm sido tes-
1976.
tadas por décadas para esses vírus. Vacinas efi-
cazes foram desenvolvidas, porém o seu uso foi BETTS, A.M. et al. Emerging vesiculo-type virus infections of
freshwater fish in Europe. Diseases of Aquatic Organisms, v.57,
limitado pelo custo, eficácia inconsistente ou pela
p.201-212, 2003.
incerteza quanto à segurança.
Com a aplicação da biologia molecular, va- BINGHAM, J. Canine Rabies Ecology in Southern Africa.
cinas de subunidades protéicas e de peptídeos Emerging Infectious Diseases, v.11, p.1337-1342, 2005.

foram desenvolvidas, mas a eficácia foi incon- BOOTLAND, L.M.; LEONG, J.C. Infectious hematopoietic
sistente, impedindo a comercialização em larga necrosis virus. In: WOO, P.T.K.; BRUNO, D.W. (eds). Fish
escala. Em 1995, a primeira descrição de uma diseases and disorders: Volume 3: Viral, bacterial and fungal
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vacina de DNA, expressando a glicoproteína G
do IHNV, abriu novas perspectivas para a vaci- BOURHY, H.; KISSI, B.; TORDO, N. Taxonomy and evolutionary
nologia de vírus de peixes. Desde então, vacinas studies on lyssavirues with special reference to Africa.
Onderstepoort Journal of Veterinary Research, v.60, p.277-282,
de DNA contra o IHNV, o VHSV e o HIRRV têm
1993.
demonstrado ser excepcionalmente eficazes, ga-
rantindo proteção de 80 a 100% dos peixes contra CHARLTON, K.M. The pathogenesis of rabies and other
o desafio com doses letais sob várias condições lyssaviral infections: recent studies. In. RUPPRECHT, C.E.;
DIETZSCHOLD, B.; KOPROWSKI, H. (eds). Lyssaviruses.
ambientais. Essas vacinas consistem de plasmí-
Berlin: Springer-Verlag, 1994. p.95-119.
deos, moléculas simples de DNA circular, que
contêm somente um gene viral, portanto, são se- CUNHA, E.M. et al. Isolation of rabies virus in Artibeus
fimbriatus bat in State of Sao Paulo, Revista de Saúde Pública,
guras e estáveis, além de eficazes. Uma vacina de
v.39, p.683-684, 2005.
DNA contra o IHNV foi licenciada, em 2005, no
Canadá, e outros países devem liberar o comércio EINER-JENSEN, K. et al. Evolution of the fish rhabdovirus
à medida que esta vacina encontre maior aceita- viral hemorrhagic septicaemia virus. The Journal of General
Virology, v.85, p.1167-1179, 2004.
ção. Limitações atuais à aplicação dessas vacinas
na aqüicultura são os requerimentos regulatórios FAUQUET, C.M. et al. (eds). Virus Taxonomy VIIIth Report
de licenciamento e a necessidade do desenvolvi- of the International Committee on Taxonomy of Viruses. San
Diego, CA: Academic Press, 2005. 1162p.
mento de métodos mais eficientes de introdução
do DNA nos animais. Além das vacinas de DNA, FAUQUET, C.M.; FARGETTE, D. International Committee on
tem ressurgido o interesse em melhoria das vaci- Taxonomy of Viruses and the 3,142 unassigned species. Virology
Journal, v.2, p.64, 2005.
nas inativadas.
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2004.
28
ORTHOMYXOVIRIDAE
Eduardo Furtado Flores, Luciane T. Lovato,
Mariana Sá e Silva, Renata Dezengrini & Diego G. Diel

1 Introdução 723

2 Classificação 724

3 Estrutura dos vírions 725

3.1 Propriedades gerais 725

3.2 O envelope 725


3.2.1 O genoma 725
3.3 Os nucleocapídeos 727
3.3.1 O genoma 727

4 Replicação 728

4.1 Adsorção e penetração 729


4.2 Transcrição 729
4.3 Replicação do genoma 731
4.4 Morfogênese e egresso 731

5 Genética dos vírus da influenza 733

6 Infecções de importância em veterinária causadas por ortomixovírus 735

6.1 Influenza eqüina 735


6.1.1 Epidemiologia 735
6.1.2 Patogenia, patologia e sinais clínicos 736
6.1.3 Imunidade 737
6.1.4 Diagnóstico 737
6.1.5 Profilaxia e controle 738

6.2 Influenza suína 738


6.2.1 Características do vírus 739
6.2.2 Epidemiologia 739
6.2.3 Patogenia, sinais clínicos e patologia 740
6.2.4 Imunidade 741
6.2.5 Diagnóstico 741
6.2.6 Profilaxia e controle 742
6.3 Influenza aviária 742
6.3.1 Características do vírus 742
6.3.2 Epidemiologia 743
6.3.3 Patogenia, sinais clínicos e patologia 744
6.3.4 Imunidade 744
6.3.5 Diagnóstico 745
6.3.6 Controle e profilaxia 746

6.4 Influenza em aves silvestres 748


6.5 Vírus da influenza H5N1 749

6.6 Influenza em cães, felinos e outros mamíferos 750


6.6.1 Epidemiologia 751
6.6.2 Patogenia, sinais clínicos e patologia 751
6.6.3 Diagnóstico 752
6.6.4 Controle e prevenção 752

7 Bibliografia consultada 753


1 Introdução mite ao vírus persistir indefinidamente na popu-
lação, através de mutações e seleção de variantes,
A família Orthomyxoviridae abriga impor- que não são neutralizadas pelos anticorpos pro-
tantes patógenos humanos e animais, associados duzidos pelo hospedeiro. A grande variabilidade
essencialmente com infecções respiratórias. A antigênica, principalmente dos vírus humanos,
denominação da família deriva do latim e refle- constitui-se em um obstáculo quase intransponí-
te uma importante característica biológica desses vel para a produção de vacinas permanentes e de
vírus, pois myxo significa muco, e ortho significa uso universal.
verdadeiro. Ou seja, são os verdadeiros vírus do Os hospedeiros naturais dos vírus da in-
muco, em uma referência à sua propriedade de fluenza são aves aquáticas e migratórias de vá-
penetrar através do muco e infectar células do rias espécies. Nesses animais, o vírus replica no
epitélio respiratório. Essa denominação foi utili- intestino sem produzir sinais clínicos e é excre-
zada para diferenciá-los de outra família de vírus tado em altos títulos nas fezes. Curiosamente, o
associados com infecções respiratórias, a Para- vírus se mantém muito estável geneticamente
myxoviridae. Essas famílias compartilham algu- nesses hospedeiros, provavelmente por ausên-
mas propriedades biológicas, mas são diferentes cia de pressão imunológica seletiva. No entanto,
do ponto de vista estrutural e genético. a ocorrência ocasional de ressortimento de seg-
Os ortomixovírus causam as infecções res- mentos genômicos entre cepas diferentes – ou de
piratórias de pessoas e animais conhecidas como outras mutações – pode resultar em alterações
gripe ou influenza. Assim, são conhecidos como marcantes no fenótipo viral, com o surgimento de
vírus da influenza ou vírus da gripe. A influenza variantes capazes de infectar humanos e outros
é a principal doença respiratória humana e um mamíferos. Após a sua transferência para novos
dos principais problemas de saúde pública no hospedeiros, esses vírus geralmente apresentam
mundo inteiro, além de ser uma importante causa uma rápida evolução genética através de muta-
de perdas econômicas em animais de produção. ções. Esses variantes podem também apresentar
Historicamente os vírus da influenza têm sido virulência aumentada para os seus hospedeiros
envolvidos em epidemias de grandes proporções naturais e para aves domésticas.
que ceifaram a vida de milhões de pessoas. Pela Acredita-se que os vírus da influenza que
sua constante evolução genética e antigênica, es- infectam humanos e animais domésticos prova-
ses vírus são considerados uma das principais velmente se originaram de ancestrais oriundos
ameaças à saúde pública mundial. de aves aquáticas e migratórias, em um passado
Os vírions dos ortomixovírus são grandes, recente ou remoto. Ou seja, os vírus da gripe são
pleomórficos, com envelope e contêm sete ou oito potencialmente zoonóticos, ao contrário do que
moléculas de RNA de polaridade negativa como era historicamente considerado. Por essa razão,
genoma. A natureza segmentada do genoma pro- considera-se que as aves aquáticas se constituem
porciona condições para a ocorrência de recom- em um imenso reservatório de vírus da influen-
binações do tipo ressortimento. Nesses eventos, za, podendo transmiti-los a pessoas, mamíferos e
ocorre a redistribuição de segmentos genômicos aves domésticas. Um exemplo recente foi o sur-
entre duas cepas virais originando outro vírus, gimento de variantes aviárias do genótipo H5N1
com genótipo e fenótipo mistos. Esse mecanismo altamente patogênicas para humanos e para ou-
genético permite aos vírus da influenza evoluir tros mamíferos. Outro exemplo da habilidade
rapidamente, e tem sido responsabilizado pelo desses vírus de cruzar a barreira de espécies é o
surgimento de cepas altamente virulentas as- vírus H3N8, que foi transmitido de eqüinos para
sociadas com doença severa e alta mortalidade, cães, nos quais produz doença severa.
principalmente em humanos. Após a adaptação aos seus novos hospedei-
Outra característica marcante dos vírus da ros, os vírus se tornam relativamente espécie-es-
influenza é a alta variabilidade antigênica das gli- pecíficos e apresentam uma capacidade restrita
coproteínas de superfície. Essa variabilidade per- de infectar espécies heterólogas. Essa barreira in-
724 Capítulo 28

terespécies, no entanto, parece ser tênue e tempo- segmentos genômicos e apenas uma glicoproteí-
rária, e os vírus podem, ocasionalmente, evoluir e na multifuncional no envelope (HEF);
se tornar capazes de cruzar a barreira de espécies – Thogotovirus: abrange vírus encontrados
e infectar outros hospedeiros. Esses exemplos em carrapatos, sem envolvimento com doença
ilustram a contínua evolução desses agentes, o em vertebrados até o presente.
que torna a sua biologia e epidemiologia fasci- Os vírus dos gêneros A, B e C podem ser di-
nantes, ao mesmo tempo em que impõe barreiras ferenciados entre si de acordo com as proprieda-
enormes para o seu controle. des antigênicas das proteínas do nucleocapsídeo
Este capítulo abordará as características ge- (NP) e da matriz (M1). Os vírus da influenza A
rais da família e os vírus de interesse veteriná- apresentam uma grande variabilidade antigênica
rio. Grande parte dos conhecimentos adquiridos e podem ser classificados em subtipos de acordo
sobre essa família foi obtida de estudos com os com a reatividade sorológica das glicoproteínas
vírus da influenza A humana. Por isso, a parte HA e NA.
geral deste capítulo utilizará informações obtidas Até o presente, já foram identificados 16
a partir desses estudos. Ao final do capítulo, será diferentes tipos de HA e nove tipos de NA, que
abordada, resumidamente, a infecção pelo vírus permitem a formação de centenas de possíveis
H5N1, que adquiriu virulência mesmo para as subtipos H/N. No entanto, apenas alguns sub-
aves e, ocasionalmente, é transmitido para pesso- tipos já foram reconhecidos como patogênicos
as, quando causa doença severa e freqüentemen- para cada espécie. Dentre esses, destacam-se os
te fatal. A possibilidade da disseminação desse tipos H1N1, H2N2 e H3N2 em humanos; H7N7 e
vírus na população humana representa um risco H3N8 em eqüinos; H1N1 e H3N2 em suínos. As
real para a saúde pública mundial. aves aquáticas abrigam um repertório inumerá-
vel de possíveis combinações H/N. Os subtipos
2 Classificação H5N2 e H7N1 são os principais vírus encontra-
dos nos surtos de doença em aves domésticas.
De acordo com o ICTV (Comitê Internacio- Recentemente, alguns vírus do subtipo aviário
nal para a Taxonomia de Vírus), a família Or- H5N1 se tornaram virulentos, inclusive para al-
thomyxoviridae é dividida em quatro gêneros: gumas espécies de aves silvestres. Esses vírus
– Influenza A: abriga vírus que infectam foram transmitidos para aves domésticas e para
uma variedade de espécies de aves, de mamífe- humanos, causando centenas de mortes, princi-
ros e humanos. São os principais componentes palmente na Ásia. Esse vírus também foi trans-
desta família, pela sua distribuição e importância mitido para outros animais domésticos, como
sanitária. Possuem oito segmentos genômicos e felinos. Vírus aviários dos subtipos H9N2 (Chi-
duas glicoproteínas principais de superfície: HA na e Hong Kong, 1999) e H7N7 (Holanda, 2003)
(hemaglutinina) e NA (neuraminidase). Essas também foram recentemente transmitidos para
glicoproteínas apresentam uma notável variabi- humanos e aves domésticas, porém com conse-
lidade antigênica; qüências menos graves.
– Influenza B: vírus que infectam apenas A nomenclatura dos isolados e cepas dos ví-
humanos. Também possuem oito segmentos ge- rus da influenza segue um padrão universal, con-
nômicos e duas glicoproteínas principais (HA e siderando o tipo de vírus (A, B e C), hospedeiro
NA). Essas glicoproteínas, no entanto, apresen- de origem (quando não for de humanos), origem
tam pouca variabilidade antigênica quando com- geográfica, número da cepa, ano de isolamen-
paradas com o gênero anterior; to e o subtipo da HA e NA (entre parênteses).
– Influenza C: abriga vírus que tradicional- Exemplos: influenzavírus A/Hong Kong/1/68
mente só eram identificados em humanos, porém (H3N2) – vírus isolado de humanos durante a
a infecção natural já foi demonstrada também em pandemia de 1968; ou influenzavírus suíno A/
suínos. Esses vírus raramente estão associados swine/Iowa/15/30 (H1N1) – cepa de referência
com doença nos seus hospedeiros. Possuem sete do vírus da influenza suína.
Orthomyxoviridae 725

3 Estrutura dos vírions uma aparência de cogumelo. As glicoproteínas


HA e NA são típicas proteínas integrais de mem-
3.1 Propriedades gerais brana, apresentando uma região externa grande,
uma região transmembrana hidrofóbica e uma
Os ortomixovírus apresentam vírions gran- pequena cauda interna. A orientação dessas gli-
des, envelopados e pleomórficos. As partículas coproteínas, no entanto, é inversa: a HA apresen-
víricas podem apresentar formas esféricas com ta a extremidade amino orientada para o exterior,
contorno pouco regular (80-120 nm de diâmetro), enquanto a NA possui essa extremidade orienta-
formas filamentosas (20-50 x 200-300 nm) ou for- da para o interior do vírion. Outro componente
ma de rim (Figura 28.1). Os vírions obtidos após do envelope é a proteína com atividade de canal
múltiplas passagens em ovos embrionados ou em de íons (M2), que está presente em um número
cultivo celular apresentam uma morfologia mais pequeno de cópias (Figura 28.1).
homogênea e medem entre 80 e 120 nm; enquan- A HA é uma proteína multifuncional, res-
to os isolados recentes apresentam um polimor- ponsável pela ligação dos vírions aos receptores
fismo marcante. Os vírions são sensíveis a tempe- celulares (ácido siálico) e pela fusão do envelo-
raturas elevadas, apresentando curta viabilidade pe com a membrana endossomal, permitindo a
em condições ambientais. A infectividade é ina- penetração dos nucleocapsídeos no citoplasma.
tivada em 30 minutos a 56ºC ou sob pH 3; e são Possui, ainda, a propriedade de aglutinar eritró-
sensíveis a solventes lipídicos (éter/clorofórmio) citos de animais (atividade hemaglutinante) e
e detergentes. contém os principais epitopos que são alvos de
anticorpos neutralizantes. Essa variabilidade an-
3.2 O envelope tigênica, juntamente com a variação observada
na NA, é responsável pela habilidade do vírus
O envelope lipídico apresenta aproximada- persistir na população apesar da resposta imu-
mente 500 projeções (espículas) de 10 a 14 nm, nológica montada pelos hospedeiros. A variabi-
formadas pelas glicoproteínas HA e NA. As pro- lidade antigênica da HA é também utilizada para
jeções são formadas por homotrímeros da HA e classificar os isolados de campo em subtipos, ou
homotetrâmeros da NA, na proporção de 4:1 ou seja, os subtipos são definidos de acordo com a
5:1. As projeções formadas pela HA são mais lon- reatividade da sua HA com anti-soro específico
gas do que as formadas pela NA, que apresentam de cada subtipo.
726 Capítulo 28

A HA é sintetizada como um polipeptídeo A NA se organiza em tetrâmeros e está pre-


único (HA0), que é clivado durante o transporte sente no envelope em menor abundância do que
das glicoproteínas para a membrana plasmática a HA. A neuraminidase se constitui na segunda
no final do ciclo replicativo. Essa clivagem, que é proteína responsável pela classificação do vírus
essencial para a infectividade dos vírions, origina em subtipos. Essa proteína também possui uma
dois polipeptídeos (HA1 e HA2), que permane- região alongada (haste), cuja extremidade está
cem unidos por pontes dissulfeto, formando a associada com a membrana, e uma região globu-
proteína funcional HA. Nessa molécula, a HA1 lar que é responsável pela sua atividade biológica
abrange a região globular externa, que possui os (Figura 28.2). A NA é responsável pela clivagem
sítios de ligação aos receptores e os principais do ácido siálico das glicoproteínas celulares, mas
epitopos alvos de anticorpos neutralizantes (Fi- o significado biológico dessa atividade no ciclo
gura 28.2). As variações nesses epitopos são as replicativo do vírus ainda não é bem conhecido.
responsáveis pela grande variabilidade antigêni- Essa atividade poderia facilitar a penetração dos
ca do vírus da influenza A. A HA2 possui a forma vírions através da camada de muco presente so-
de haste e localiza-se logo abaixo da HA1. Esse bre a mucosa respiratória até alcançar o epitélio.
polipeptídeo apresenta uma região transmem- Também tem sido sugerido que essa atividade
brana e uma região intermediária, que contém o é importante para a liberação dos vírions da su-
peptídeo fusogênico. Esse peptídeo é responsável perfície celular durante o egresso, sem a qual os
pela fusão do envelope com a membrana celular. vírions ficariam agregados na membrana. A NA
A fusão do envelope viral com a membrana do também contém determinantes antigênicos sujei-
endossomo se constitui em uma etapa essencial tos a variações freqüentes, o que contribui para a
para a penetração do vírus na célula e é prece- variabilidade antigênica desses vírus.
dida por alterações conformacionais drásticas na A M2 é uma proteína integral de membra-
HA, induzidas pelo pH baixo nos endossomos. na presente em poucas cópias no envelope viral.
Orthomyxoviridae 727

Essa proteína está presente em arranjos tetra- 3.3 Os nucleocapsídeos


méricos que ultrapassam toda a espessura da
membrana, formando uma espécie de canal que No interior dos vírions, são encontrados oito
permite a comunicação entre os compartimentos nucleocapsídeos, que se apresentam como bas-
interno e externo (Figura 28.2). De fato, a M2 fun- tões helicoidais flexíveis, provavelmente flexio-
ciona como um canal de íons que possui um pa- nados e enrolados sobre si mesmos (ver Figura
pel importante em duas etapas distintas do ciclo, 28.1). Cada nucleocapsídeo contém um segmento
durante a penetração e, posteriormente, duran- de RNA conjugado com múltiplas cópias da pro-
te a maturação dos vírions. A primeira função é teína NP (uma molécula da NP para cada 20 nu-
exercida durante a internalização dos vírions, no cleotídeos, nt). O complexo RNA + NP é denomi-
interior de endossomos acidificados. A estrutura nado ribonucleoproteína (RNP) e é relativamente
da M2 se abre e permite a penetração de íons H+ estável, permanecendo razoavelmente associado
para o interior dos vírions. A acidificação interna durante os processos de transcrição e replicação
do pH favorece a dissociação dos ribonucleocap- do genoma. Associadas às RNPs encontram-se
sídeos da proteína da matriz, facilitando, assim, três proteínas menos abundantes (30-60 cópias
o desnudamento. A segunda atividade da M2 por vírion), que são componentes do complexo
ocorre na fase final do ciclo, durante o transporte polimerase (transcriptase/replicase). Esse com-
das glicoproteínas em vesículas do aparelho de plexo é formado por três proteínas principais:
Golgi para a membrana plasmática, onde ocorre- PB1 (polimerase básica 1); PB2 (polimerase básica
rá o brotamento dos nucleocapsídeos. Nessa eta- 2) e PA (polimerase ácida).
pa, o canal formado pela M2 (que está inserida
na membrana das vesículas) se abre e permite a 3.3.1 O genoma
saída de íons H+ das vesículas para o citoplasma.
Assim, o pH no interior dessas vesículas se man- O genoma dos vírus da influenza A é consti-
tém alto, prevenindo a ocorrência prematura das tuído por oito moléculas lineares de RNA de sen-
alterações conformacionais da HA. tido negativo, numerados de 1 a 8. Os segmentos
A M1 é o componente mais abundante dos 1 a 6 codificam uma proteína cada; os segmentos
vírions, apresentando aproximadamente 3.000 7 e 8 codificam duas proteínas cada. Os segmen-
cópias por vírion. A camada formada por essa tos genômicos apresentam a mesma organização
proteína está intimamente associada com a face geral: possuem um gene na região central, flan-
interna do envelope e medeia as interações entre queado por seqüências não-codificantes altamen-
o envelope e os nucleocapsídeos. A M1 desempe- te conservadas nas extremidades 3’ (12 nt) e 5’
nha um papel estrutural importante, conferindo (13 nt) (Figura 28.3). Essas seqüências são parcial-
certa rigidez à estrutura dos vírions e também é mente complementares e permitem a formação
importante durante o processo de morfogênese. das estruturas que lembram cabos de panela (pa-

RNA genômico (-)


Gene
3’-UCGCUUUCGUCC GGAACAAAGAUGA-5’

12 nucleotídeos 13 nucleotídeos

Figura 28.3. Organização dos segmentos de RNA que compõem o genoma dos vírus da influenza A (família
Orthomyxoviridae).
728 Capítulo 28

Tabela 28.1. Organização do genoma e produtos codificados pelo vírus da influenza A (família Orthomyxoviridae).

Segmento Gene (ORF) Proteína/função

Polimerase básica 2 – componente do


PB2 = 2277nt complexo replicase. Reconhece e
1 cliva oligonucleotídeos de mRNA celulares.

PB1 = 2271nt Polimerase básica 1 – componente do


2 complexo replicase. Possui atividade de
de polimerase. É a replicase viral.

PA = 2148nt Polimerase ácida – componente


3 do complexo replicase. Função
desconhecida.

HA = 1698nt Hemaglutinina – principal glicoproteína do


4 envelope. Media a ligação aos receptores e
fusão/penetração. Altamente variável.

NP = 1494nt Nucleoproteína – conjugada com o genoma,


5 forma o nucleocapsídeo. Muito abundante.

NA = 1362nt Neuraminidase – glicoproteína do envelope.


6 Cliva a ligação com o ácido siálico.

M1 – proteína da matriz. Proteína mais abundante


dos vírions. Media a interação entre o envelope e
7 M1=756nt ?=27
os nucleocapsídeos. Participa da morfogênese.
M2=291nt M2 – proteína integral do envelope. Canal de
íons. Essencial para o desnudamento.

NS1 = 690 NS1 – proteína não-estrutural. Inibe o splicing


de mRNA celulares.
8
NS2 = 363nt
NS2 – proteína não-estrutural. Interage
com a M1. Envolvida com a exportação de
RNPs do núcleo.

nhandles) durante a transcrição e replicação. As noma ocorre no núcleo da célula hospedeira. Os


regiões terminais também possuem sinais para o nucleocapsídeos contêm as enzimas necessárias
início da transcrição e replicação. Cada segmen- para a transcrição e replicação do genoma (com-
to genômico encontra-se recoberto por múltiplas plexo polimerase PA+PB1+PB2). No entanto, o
cópias da proteína NP e está associado com algu- vírus necessita subtrair componentes celulares
mas cópias das proteínas que formam o comple- (oligonucleotídeos com cap) para a produção de
xo transcriptase/replicase. seus RNA mensageiros (mRNA). Durante o ci-
Os segmentos genômicos dos vírus da in- clo, as proteínas não-estruturais (PA+PB1+PB2)
fluenza, com os respectivos genes e as prováveis e algumas estruturais (NP, M1), produzidas no
funções de seus produtos, estão apresentados na citoplasma, são importadas para o núcleo, onde
Tabela 28.1. participam de ciclos adicionais de transcrição e
replicação e, tardiamente, participam da forma-
4 Replicação ção dos nucleocapsídeos.
Os vírus da influenza se multiplicam com
Os ortomixovírus se constituem em exce- eficiência em embriões de galinha e podem ser
ções entre os vírus RNA, pois a replicação do ge- adaptados a replicar em fibroblastos de pinto e
Orthomyxoviridae 729

em linhagens celulares de mamíferos (p. ex.: cé- Durante o trânsito, as vesículas são acidificadas
lulas MDCK, de origem canina). A replicação em gradativamente pela ação de ATPases, que bom-
cultivo celular, principalmente de isolados recen- beiam prótons H+ para o seu interior. Através
tes, pode não produzir efeito citopático evidente. das aberturas mediadas pela M2, os prótons H+
Assim, o vírus pode ser detectado e quantifica- penetram também no interior dos vírions. A aci-
do no sobrenadante dos cultivos (ou no líquido dificação dos endossomos resulta em dois efeitos
amniótico dos ovos embrionados) pela técnica de para a penetração do vírus. Primeiro: provoca
hemaglutinação (HA); e pode ser identificado/ alterações conformacionais na HA, que resultam
tipificado por inibição de hemaglutinação (HI) na exposição do peptídeo fusogênico e fusão do
com um soro tipo – ou subtipo – específico. envelope com a membrana endocítica. Segundo:
o pH baixo no interior dos vírions facilita a dis-
4.1 Adsorção e penetração sociação entre as RNPs e a proteína M1, promo-
vendo o desnudamento parcial e permitindo a
Os vírus da influenza utilizam moléculas de liberação das RNPs no interior do citoplasma. A
ácido siálico (AS) como receptores. Essas molé- droga amantadina – utilizada como terapêutico
culas estão presentes em uma variedade de glico- antiviral – inibe a ação da M2, resultando em pe-
proteínas e glicolipídios de membrana. A ligação netração e desnudamento ineficientes do vírus.
dos vírions a estes componentes é mediada pela Drogas que previnem a acidificação dos endosso-
glicoproteína HA. A ligação química que mantém mos (monensina, cloroquina, cloreto de amônio)
o AS associado às glicoproteínas pode ser de dois também previnem a penetração dos vírus da in-
tipos principais: α2,3 e α2,6. O tipo de ligação do fluenza em células de cultivo.
AS é responsável pela especificidade de espécie Uma vez dissociados da M1 e liberados no
e de tropismo tecidual dos vírus da influenza. A interior do citoplasma, as RNPs são transporta-
HA de alguns vírus somente é capaz de se ligar das para o núcleo, onde penetram ativamente pe-
ao AS na ligação α2,3, enquanto outros se ligam los poros nucleares. As proteínas que compõem
a moléculas com a conformação α2,6. A traquéia o complexo RNP contêm sinais de localização
humana contém AS predominantemente com li- nuclear que promovem a sua importação para o
gação do tipo α2,6, enquanto o intestino das aves núcleo celular.
contém ligações do tipo α2,3. Já o trato respira-
tório dos suínos possui o AS com os dois tipos 4.2 Transcrição
de ligação: α2,3 e 2,6. A especificidade da HA
por ligações α2,3 ou α2,6 é um fator fundamen- A transcrição dos RNA genômicos é reali-
tal para a capacidade desses vírus infectar a sua zada pelo complexo transcriptase/replicase, que
espécie hospedeira e outras espécies. Assim, os está associado com as RNPs, e cada proteína deste
vírus aviários que adquirem a capacidade de se complexo desempenha funções diferentes. A PB1
ligar ao AS na conformação α2,6 podem infectar possui atividade endonuclease, necessária para
humanos. Já os suínos podem ser ocasionalmen- a subtração de oligonucleotídeos celulares que
te infectados com vírus aviários e humanos, pois servem de primers para o início da transcrição. A
possuem o AS com os dois tipos de ligação. PB2 possui atividade polimerase e se constitui na
A ligação de uma única molécula de HA a replicase viral, realizando as funções de transcri-
uma molécula de AS é de baixa afinidade e, as- ção e replicação do genoma. A função exata da
sim, são requeridas múltiplas (dezenas ou cente- PA não é conhecida, mas esta proteína é um com-
nas) interações simultâneas para permitir a ad- ponente essencial do complexo.
sorção e posterior penetração dos vírions. A transcrição se inicia logo após a penetração
Imediatamente após a adsorção, os vírions das RNPs no núcleo, e cada segmento genômico
são internalizados por endocitose mediada por é transcrito individualmente, originando mRNA
clatrina e se localizam em vesículas endocíticas com cap e poliA. A transcrição é precedida pela
que se dirigem para o interior do citoplasma. clivagem e subtração de segmentos de mRNAs
730 Capítulo 28

celulares. Os oligonucleotídeos subtraídos cor- não são, portanto, exatamente complementares


respondem aos primeiros 8 a 13 nt dos mRNA e aos RNAs genômicos: possuem uma extensão de
possuem cap na extremidade 5’. Essa atividade é 8 a 13 nt em sua região 5’ e não possuem os 15-22
atribuída à PB1, que possui atividade endonucle- nt terminais, sendo substituídos por uma cauda
ase, ou seja, essa enzima literalmente furta seg- poliA (Figura 28.4).
mentos de mRNAs celulares para benefício do Os transcritos produzidos a partir dos seg-
vírus. Os oligonucleotídeos subtraídos pareiam mentos 7 e 8 sofrem processamento por splicing e
com uma pequena seqüência próxima a extremi- originam mRNAs que são traduzidos em mais de
dade 3’ do RNA genômico e servem de primers uma proteína. No segmento 7, são gerados três
para o início da transcrição. Como resultado da mRNAs: um codifica a proteína M1 (dois terços
polimerização a partir da extremidade 3’ desses anteriores do mRNA), outro codifica a proteína
primers, os mRNA virais sintetizados possuem a M2 (terço final do gene) e um terceiro contém
estrutura cap, que é necessária para a sua tradu- uma ORF de 27 nt cuja tradução é incerta. O seg-
ção. mento 8 origina um transcrito que resulta em
A transcrição termina 15 a 22 nt antes da ex- dois mRNAs após o splicing: um codifica a pro-
tremidade 5’ de cada segmento, e é seguida pela teína não-estrutural NS1 e o outro é traduzido na
adição de uma cauda de poliA. Os mRNAs virais proteína NS2 (ver Tabela 28.1).

Tradução
B. mRNA

Cap-5’---------GAGCGAAAGCAGG AAA(n)-3’
8-13nt
15-22nt

Transcrição (1)

8-13nt
Cap-5’---------GA
3’-UCGCUUUCGUCC GGAACAAAGAUGA-5’

A. RNA genômico (-)


2 Replicação 3

5’-AGCGAAAGCAGG CCUUGUUUCUACU-3’

C. RNA antigenômico (+)

Figura 28.4. Estrutura dos RNAs produzidos durante a replicação do vírus da influenza. (A) RNA genômico (vRNA);
(B) mRNA; (C) RNA antigenômico. A transcrição para a síntese de mRNA utiliza nucleotídeos com cap subtraídos dos
mRNA celulares (1). Os mRNA apresentam uma extensão de 8-13 nt (com cap) em relação ao vRNA e os 15-22
nucleotídeos terminais são substituídos por uma cauda poliA. A primeira etapa da replicação do genoma envolve a
síntese do RNA de sentido antigenômico que é exatamente complementar ao vRNA (2). A segunda etapa da
replicação envolve a síntese do vRNA a partir do RNA antigenômico (3). Note que os mRNAs diferem dos RNA
antigenômicos, pela presença de 8-13 nt adicionais com cap e cauda poliA.
Orthomyxoviridae 731

4.3 Replicação do genoma constituir no envoltório externo dos vírions. O


processo de morfogênese depende da síntese e
A replicação dos RNA genômicos (vRNA) direcionamento específicos das diferentes prote-
ocorre em duas etapas: síntese do RNA antige- ínas virais. As proteínas NP, PA, PB1 e PB2 são
nômico ou complementar e síntese de vRNA produzidas em ribossomos livres no citoplasma
utilizando o RNA antigenômico como molde. e importadas para o núcleo. Em fases iniciais do
A síntese do RNA antigenômico não envolve a ciclo, essas proteínas participam da transcrição e
subtração de oligonucleotídeos de mRNA celu- replicação. Em fases tardias, associam-se com o
lares; inicia-se exatamente na extremidade 3’ do RNA genômico, formando as RNPs, que são ex-
genoma e termina exatamente na extremidade 5’. portadas para o citoplasma e transportadas para
Dessa forma, os RNAs antigenômicos são exata- a membrana plasmática. A M1 se conjuga com as
mente complementares aos vRNAs (Figura 28.4). RNPs e participa da sua exportação para o cito-
Os dois tipos de transcrição observados du- plasma e também é transportada para a face in-
rante a replicação desses vírus, ou seja, a trans- terna da membrana plasmática. As glicoproteínas
crição dependente dos oligonucleotídeos com HA e NA e a proteína M2 são produzidas em ri-
cap (para a produção de mRNA) e a transcrição bossomos associados ao retículo endoplasmático
independente de primer (para a produção de (RE). Durante a sua síntese, essas proteínas ficam
RNA antigenômico) parecem envolver comple- inseridas na membrana do RE, com as regiões ex-
xos transcriptase/replicase diferentes. A antiter- ternas orientadas para o lúmen. Nesta organela,
minação, que permite ao complexo transcriptase as proteínas sofrem modificações pós-tradução
seguir transcrevendo até o final do segmento – e (mais notavelmente glicosilação) e são transpor-
produzir a cópia antigenômica completa – parece tadas até o aparelho de Golgi, onde sofrem pro-
ser dependente do acúmulo da proteína NP. Des- cessamentos adicionais. As glicoproteínas são
sa forma, o acúmulo desta proteína e alterações transportadas até a membrana plasmática em ve-
específicas na composição do complexo polime- sículas derivadas do aparelho de Golgi. Durante
rase seriam os responsáveis pela transição entre o transporte, a molécula precursora da HA (HA0)
transcrição e replicação. Essa transição ocorre em sofre clivagem proteolítica, originando a HA1 e
fases avançadas do ciclo e culmina com a produ- HA2. Esses dois polipeptídeos permanecem uni-
ção dos RNAs genômicos (também chamados de dos por pontes dissulfeto e formam a estrutura
madura da HA. Nessa etapa, a M2 impede a aci-
vRNAs) para serem incorporados nos vírions.
dificação excessiva dessas vesículas, permitindo
Em todas as etapas da replicação, os RNAs
a saída de prótons H+ para o citoplasma. Isso
de sentido antigenômico e genômico são rapi-
evita que a HA sofra precocemente as alterações
damente conjugados com múltiplas cópias da
conformacionais necessárias à infectividade viral.
proteína NP. As RNPs, contendo os RNA antige-
Acredita-se que a trimerização das moléculas de
nômicos, permanecem no núcleo para servirem
HA e a tetramerização da NA ocorram durante
de molde para a síntese de mais cópias de RNA
o transporte ou imediatamente após a fusão das
genômico. Em contraste, as RNPs que contêm os vesículas com a membrana celular.
RNA genômicos são eficientemente exportadas As vesículas contendo as glicoproteínas e a
para o citoplasma, principalmente em fases tar- M2, eventualmente, fusionam com a membrana
dias do ciclo. e, assim, as proteínas virais do envelope tornam-
se inseridas na membrana plasmática. Tem sido
4.4 Morfogênese e egresso observado que os trímeros de HA se distribuem
uniformemente, em determinadas áreas da su-
Os ortomixovírus completam a sua morfo- perfície celular, enquanto os tetrâmeros da NA e
gênese e são liberados das células hospedeiras M2 se concentram em determinados locais.
pelo brotamento dos nucleocapsídeos na mem- O brotamento inicia com a interação das
brana plasmática. Nesse processo, o envelope RNPs com as caudas das glicoproteínas, prova-
que contém as glicoproteínas virais passa a se velmente mediado pela proteína M1 que reveste
732 Capítulo 28

internamente a membrana nesses locais ou está acaso. Assim, se oito segmentos forem incorpora-
associada com as RNPs. A seguir, os complexos dos em cada novo vírion, um em cada 400 vírions
contendo as oito RNPs se inserem na membrana, conteria o conjunto completo de segmentos. Este
adquirindo o envelope e sendo liberados da célu- número situa-se dentro da relação entre o total
la hospedeira. Acredita-se que a atividade neura- de partículas e o número de partículas infeccio-
minidase da NA impeça que os vírions egressos sas observada em preparações do vírus, ou seja,
fiquem aderidos à membrana, devido à ligação uma proporção muito grande de partículas pro-
da HA com moléculas de ácido siálico. duzidas não é infecciosa, provavelmente por não
A produção de partículas víricas infecciosas conter o conjunto completo de RNAs genômicos.
depende da inclusão de, pelo menos, uma cópia Por outro lado, evidências indicam que pode ha-
de cada RNA genômico por vírion. É possível ver algum tipo de seleção que favorece a inclu-
que o empacotamento dos segmentos genômicos são consistente de alguns segmentos genômicos,
ocorra ao acaso, sem qualquer tipo de seleção. principalmente o segmento 1. Neste caso, o em-
Partículas víricas, contendo mais ou menos de pacotamento dos segmentos não seria totalmente
oito segmentos, podem facilmente ser detecta- ao acaso. O ciclo replicativo dos ortomixovírus
das, o que é compatível com o empacotamento ao está ilustrado esquematicamente na Figura 28.5.
Orthomyxoviridae 733

5 Genética dos vírus da influenza

Em seus hospedeiros naturais – as aves aquá-


ticas e migratórias – os vírus da influenza são ge-
neticamente estáveis e apresentam taxas mínimas
de mutação e evolução ao longo do tempo. Isso
indica uma relação ancestral e reflete uma perfei-
ta adaptação do vírus com os seus hospedeiros.
No entanto, quando são transmitidos para outras
espécies (mamíferos ou aves), esses vírus iniciam
um processo de rápida evolução genética, sobre-
tudo devido a mutações em ponto nos genes que
codificam as glicoproteínas de superfície.
A evolução dos vírus da influenza deve-se a
dois mecanismos genéticos principais: mutações
em ponto e ressortimento. As mutações em ponto
surgem ao acaso durante a replicação do genoma
e devem-se à baixa fidelidade da polimerase vi-
ral, que introduz nucleotídeos incorretos durante
a síntese das novas moléculas de RNA. Quando
ocorrem nos genes das glicoproteínas HA e NA,
essas mutações podem resultar em alterações dos
sítios reconhecidos por anticorpos neutralizantes.
Isso representa uma vantagem evolutiva para os
vírus mutantes, que podem escapar da neutrali-
zação e serem transmitidos a novos hospedeiros.
As alterações antigênicas nas glicoproteínas de
superfície (principalmente a HA), causadas pelo
acúmulo gradual de mutações em ponto, são de-
nominadas antigenic drift. Essas alterações são
responsáveis pelos variantes que surgem conti-
nuamente e que permitem ao vírus da influenza Figura 28.6. Ilustração demonstrando o ressortimento
humana se perpetuar na população, apesar da entre dois vírus da influenza. No exemplo, um suíno é
infectado simultaneamente com um vírus aviário e outro
resposta imunológica dos hospedeiros. Esse tipo humano. A co-infecção resulta no ressortimento entre
de evolução parece ser mais freqüente e efetivo esses dois vírus, com o qual o vírus de humano adquire o
gene da hemaglutinina (HA) do vírus aviário. Esse
nos vírus da influenza A.
recombinante possui propriedades antigênicas e
A natureza segmentada do genoma desses patogênicas diferentes dos dois vírus parentais, e pode,
vírus permite a produção ocasional de recombi- potencialmente, infectar aves domésticas e selvagens, e
também humanos. Os suínos se constituem na principal
nantes que possuem segmentos de dois vírus pa- espécie em que ocorrem esses eventos, pois podem ser
rentais. Esse tipo de recombinação, denominada infectados tanto por vírus de mamíferos como aviários.
ressortimento, pode ocorrer em infecções mistas
por vírus de um mesmo tipo (A, B ou C), e não
entre vírus de tipos diferentes (Figura 28.6). O Os recombinantes podem resultar do res-
ressortimento permite uma evolução rápida des- sortimento entre vírus da mesma espécie ou
ses vírus e tem sido associado com variantes res- de espécies diferentes. O surgimento de vírus
ponsáveis por pandemias de grandes dimensões recombinantes que possuem as glicoproteínas
em humanos, como as de 1957 e 1968. HA e/ou NA adquiridas de um vírus de outra
734 Capítulo 28

espécie apresenta especial interesse, pois altera espécie suína é mais propensa a abrigar eventos
drasticamente as características antigênicas do de ressortimento entre vírus aviários e de mamí-
vírus, evento denominado antigenic shift. O res- feros, pois possui o AS nas conformações α2,3 e
sortimento entre vírus da influenza tem sido res- α2,6, utilizadas por vírus de aves e de mamíferos,
ponsabilizado pelo surgimento de novas cepas, respectivamente.
altamente patogênicas e capazes de produzir epi- Confirmando essa hipótese, recombinantes
demias de grandes proporções, pois as popula- derivados de ressortimento entre vírus aviários
ções afetadas não possuem imunidade contra os e humanos em suínos foram, subseqüentemen-
novos tipos de HA e NA presentes nesses novos te, isolados de crianças na Holanda. Além disso,
vírus. Nas epidemias de 1957 e 1968, um vírus vírus contendo segmentos genômicos de vírus
aviário realizou ressortimento com um vírus hu- aviários, humanos e suínos têm sido isolados de
mano preexistente, gerando um terceiro vírus, suínos nos Estados Unidos desde 1998. Outros
responsável pelas epidemias (ver Figura 28.7). A exemplos de ressortimento em infecções naturais

Gripe Espanhola Influenza Asiática Influenza Hong-Kong Nova Influenza


1918 1957 1968 Pandêmica

Influenza H1N1 Influenza H2N2 Influenza H3N2 Vírus aviário (?)

ou

H1N1 humano H2N2 aviário Vírus aviário H3N2 humano

H2N2 humano H3 aviário


Transmissão do vírus aviário
H1N1 para humanos
Ressortimento Ressortimento

Ressortimento

?
Os oito segmentos Novos HA, NA e PB1 Novos HA e PB1 Oito segmentos
se originaram de aviários + cinco aviários + cinco novos ou mais
um vírus aviário segmentos de RNA segmentos de RNA uma derivação do
do vírus de 1918 do vírus de 1918 vírus de 1918

Adaptado de Webster et al. (2006)

Figura 28.7. Mecanismos responsáveis pelo surgimento de vírus pandêmicos da influenza A em humanos. O vírus
que causou a gripe espanhola de 1918 (H1N1) era um vírus aviário que se adaptou a humanos (continha os oito
segmentos genômicos de vírus aviário). Os vírus associados com as pandemias de 1957 e 1968 foram originados pelo
ressortimento entre os vírus humanos então circulantes (H1N1 e H2N2, respectivamente) e vírus aviários. Antecipa-
se que cepas capazes de causar grandes epidemias podem ser originadas por qualquer destes mecanismos. O vírus
H5N1 é um dos candidatos a causar uma pandemia em humanos, caso adquira a capacidade de ser transmitido entre
pessoas.
Orthomyxoviridae 735

incluem um vírus suíno H1N1, que foi isolado de enfermidade tem sido alvo de intensos estudos
pessoas, e um H3N2, também suíno, isolado de nas últimas décadas. Os maiores avanços nos co-
perus nos EUA. nhecimentos sobre a influenza eqüina incluem o
Independentemente de ressortimento, vírus reconhecimento de uma contínua variação anti-
de determinadas espécies podem, ocasionalmen- gênica do subtipo A/equi/2 (H3N8), a emergên-
te, adaptar-se, infectar e se tornar patogênicos cia de um novo vírus H3N8 a partir de um pool
para outras espécies animais. Exemplos desses de genes de vírus aviários na China, e a recen-
eventos são abundantes na literatura. O vírus que te ocorrência da infecção cruzada de cães com o
causou a gripe espanhola, em 1918, originou-se subtipo H3N8 nos Estados Unidos.
de aves, e todos os segmentos genômicos tiveram O vírus da influenza eqüina (EIV) é clas-
origem em um vírus aviário (Figura 28.7). Esse sificado no gênero influenzavirus A, juntamente
vírus foi inicialmente transmitido para humanos com os influenzavírus que infectam humanos,
ou suínos, e depois se disseminou na população suínos e aves. Os influenzavírus do tipo A são
humana. Vírus da influenza A de suínos freqüen- divididos em subtipos de acordo com diferenças
temente são transmitidos para humanos, com antigênicas nas glicoproteínas do envelope, HA
conseqüências que variam desde infecções sub- e NA. Nesse sentido, dois subtipos do EIV foram
clínicas até doença fatal. Desde 1974, pelo menos identificados como causadores da enfermidade
dez desses eventos foram bem documentados em eqüinos, o subtipo H7N7 ou equi-1; e o sub-
nos Estados Unidos, Europa e Nova Zelândia. Da tipo H3N8 ou equi-2. O subtipo H3N8 tem sido
mesma forma, vírus humanos podem ser trans- identificado em todos os surtos recentes, enquan-
mitidos para suínos, podendo disseminar-se, to o H7N7 foi descrito, pela última vez, em 1979.
proporcionando condições para a ocorrência de Mutações em ponto nos genes das glicoproteínas
ressortimento com vírus dessa espécie. Recente- HA e NA do subtipo H3N8 permitem ao vírus es-
mente, os casos de infecção de cães com o H3N8 capar da vigilância imunológica do hospedeiro e,
eqüino e de diversas espécies com o H5N1 avi- conseqüentemente, disseminar-se na população.
ário demonstram que a barreira entre espécies
pode ser ultrapassada, mesmo sem a ocorrência 6.1.1 Epidemiologia
de ressortimento entre diferentes vírus. Em re-
sumo, os vírus da influenza A apresentam uma Os EIVs se constituem nos principais agentes
especificidade de hospedeiro relativa e podem, de doença respiratória em eqüinos em vários paí-
ocasionalmente, via ressortimento ou mutações ses. A enfermidade passou a ser diferenciada das
em determinados genes, adaptar-se e ser trans- demais viroses respiratórias de eqüídeos a partir
mitidos a outras espécies. de 1956, quando o vírus A/equi/Prague/1/56
(H7N7) foi isolado, pela primeira vez, durante
6 Infecções de importância em uma epizootia na Europa Central. Posteriormen-
te, em 1963, um segundo vírus foi isolado nos Es-
veterinária causadas por ortomixovírus
tados Unidos e foi classificado como H3N8 (A/
equi/Miami/2/63). Desde então, vários surtos
6.1 Influenza eqüina relacionados ao EIV, principalmente ao subtipo
H3N8, têm sido descritos em cavalos, mulas e as-
A influenza ou gripe eqüina é uma enfer- nos em diversas regiões, com exceção de alguns
midade que afeta as vias aéreas superiores dos países, como Austrália, Nova Zelândia e Islândia,
eqüinos e se caracteriza pela disseminação rápida que permanecem livres da enfermidade.
entre animais susceptíveis. A doença ocorre ge- As evidências dos casos de influenza eqüi-
ralmente sob a forma de epizootia. A gripe eqüi- na, nos últimos 20 anos, indicam que o subtipo
na trata-se de uma das enfermidades respirató- H7N7 está presente na população em níveis mui-
rias mais importantes dessa espécie devido aos to baixos ou pode até mesmo ter sido extinto. No
prejuízos econômicos causados, principalmente entanto, a maioria dos países continua inserindo
em animais de competição. Por essas razões, a este subtipo na formulação das vacinas, uma vez
736 Capítulo 28

que variantes antigênicas do vírus poderiam oca- evidências da disseminação da infecção pelo EIV
sionar epizootias de grandes proporções. no rebanho eqüino brasileiro incluem o isola-
A introdução e o uso extensivo de vacinas mento e a detecção de anticorpos contra o vírus.
inativadas na América do Norte e na Europa, no O EIV já foi isolado de eqüinos com doença res-
final da década de 1960, reduziram a morbidade piratória em vários estados brasileiros, incluindo
e severidade da doença. Entretanto, a infecção São Paulo, Rio de Janeiro, Mato Grosso do Sul
não foi controlada com sucesso. Quando uma e Rio Grande do Sul. A caracterização desses
nova variante antigênica é originada, epizootias isolados demonstrou que todos pertencem ao
graves ocorrem e são caracterizadas pela rápida subtipo Equi-2 ou H3N8. Além de isolamentos,
disseminação e por surtos explosivos, envolven- evidências sorológicas da infecção confirmam a
do até 98% dos animais susceptíveis expostos. ampla disseminação do agente no rebanho eqüi-
Eqüinos de todas as idades são susceptíveis no brasileiro. Estudos sorológicos realizados no
à infecção pelo EIV, principalmente aqueles que Rio Grande do Sul, no Pará e no Rio de Janeiro
não tenham sofrido exposição prévia ao agente demonstram prevalências de 65,7, 35,79 e 42,06%,
ou que não tenham sido vacinados. No entanto, respectivamente. Além disso, um estudo soroló-
a enfermidade tem maior prevalência em ani- gico, realizado com amostras provenientes das
mais com idade inferior a dois anos. Além disso, regiões Norte, Nordeste, Sudeste e Sul, demons-
a enfermidade aparece com maior freqüência em trou altos índices de soropositividade em todas
animais que são transportados por longas distân- as regiões amostradas.
cias ou confinados em locais pouco ventilados. O
transporte e a aglomeração dos animais em locais 6.1.2 Patogenia, patologia e
escuros, com pouca ventilação, favorecem a ocor- sinais clínicos
rência da enfermidade.
A enfermidade caracteriza-se pela alta mor- A infecção natural pelo EIV ocorre pela ina-
bidade e baixa mortalidade. A transmissão do lação de partículas víricas presentes em aerossóis,
vírus ocorre pelo contato direto ou indireto en- por contato direto ou indireto. A maioria das par-
tre animais ou por meio de aerossóis contendo tículas inaladas deposita-se sobre a camada de
partículas víricas infecciosas. Eqüinos em fase muco que recobre as vias aéreas superiores. No
de convalescença continuam excretando o vírus entanto, algumas partículas conseguem penetrar
nas secreções nasais por um período de até 10 mais profundamente e atingem as vias aéreas in-
dias. As epizootias surgem quando um ou mais feriores. A infecção das células do epitélio ciliar
animais em fase subclínica (ou de incubação) ou e a replicação viral nessas células levam à sua
convalescente são introduzidos em uma popula- destruição e conseqüente liberação de partículas
ção susceptível. A severidade do surto depende víricas infecciosas. A progênie viral se dissemi-
das características antigênicas do vírus circulante na pelo trato respiratório superior, incluindo os
e do estado imunológico da população no mo- seios nasais, a nasofaringe, a faringe e a traquéia.
mento da exposição. A superfície epitelial dessas regiões torna-se des-
Os surtos de influenza podem ocorrer em camada e sem cílios. Conseqüentemente, alguns
qualquer época do ano, mas são mais comuns no receptores são estimulados, causando a hiperse-
outono, inverno e primavera, devido à mistura, creção das glândulas serosas presentes na sub-
confinamento e concentração de animais jovens mucosa, prejudicando a função de proteção do
para treinamentos, exposições ou para a venda. epitélio muco-ciliar. Essas alterações permitem
O estresse induzido por essas atividades pode a invasão por patógenos oportunistas, como o
aumentar a susceptibilidade à infecção, bem Streptococcus zooepidemicus ou Pasteurella spp, e,
como, freqüentemente, propicia ambientes escu- conseqüentemente, a complicação da enfermida-
ros e pouco ventilados que favorecem a transmis- de.
são do vírus. A infecção das células do epitélio respiratório
A enfermidade encontra-se amplamente leva à hiperemia, edema, necrose, descamação e
disseminada na população eqüina do Brasil. As erosões focais no epitélio. Além disso, ocorre pro-
Orthomyxoviridae 737

dução de um exsudato rico em proteínas nas vias Tem sido demonstrado que a infecção pelo
aéreas e nos alvéolos. A interrupção da proteção EIV induz resposta celular por linfócitos T cito-
muco-ciliar resulta em falha nos mecanismos de tóxicos (CTL) e resposta humoral no trato respi-
limpeza e, conseqüentemente, no acúmulo de se- ratório de forma semelhante à observada na in-
creções. A função macrofágica alveolar também fluenza humana.
fica prejudicada. A regeneração do epitélio respi-
ratório leva pelo menos três semanas, mesmo na 6.1.4 Diagnóstico
ausência de infecções bacterianas secundárias.
A severidade e a duração dos sinais clínicos Surtos de doença respiratória em eqüinos
dependem da dose e virulência da cepa viral, das podem ser causados por vários agentes infeccio-
condições ambientais e de manejo, e das defesas sos, incluindo o vírus da arterite, os herpesvírus,
do hospedeiro, principalmente da imunidade rinovírus, adenovírus, além de bactérias como
prévia. O período de incubação geralmente é de Streptococcus equi, S. zooepidemicus ou S. pneumo-
um a três dias, podendo variar de 18 horas a sete niae. O diagnóstico presuntivo da influenza eqüi-
dias. O aparecimento dos sinais é súbito, sendo na, com base nos sinais clínicos e na rápida dis-
a hipertermia (39,1-41,7ºC) o primeiro sinal clí- seminação, deve ser confirmado pelo isolamento
nico a ser evidenciado. Essa febre pode ser bifá- do vírus ou por de testes sorológicos.
sica, com duração de um a cinco dias em casos Tradicionalmente, a confirmação laborato-
não-complicados. A fase febril freqüentemente rial de uma suspeita clínica de influenza tem sido
é acompanhada por letargia, fraqueza, anorexia, realizada pelo isolamento do vírus a partir de
secreção nasal serosa e tosse seca. Além disso, são secreções nasais ou por testes sorológicos. Atual-
descritos secreção lacrimal, aumento de volume mente existe uma ampla variedade de testes labo-
dos linfonodos da cabeça, edema dos membros, ratoriais de detecção de antígenos, ácido nucléico
laminite e pneumonia. Animais com infecções e células infectadas, que permitem a obtenção do
não-complicadas geralmente recuperam-se em diagnóstico mais rapidamente. O isolamento do
duas a três semanas. A recuperação dos animais EIV é realizado pela inoculação das amostras de
está diretamente relacionada com o grau de con- secreção nasal na cavidade alantóide ou amnióti-
taminação secundária e com o tipo de repouso ao ca de ovos embrionados de galinha. O vírus pode
qual o animal é submetido durante a enfermida- ser adaptado para replicar em cultivos de células,
incluindo de origem canina (MDCK), mas o isola-
de.
mento inicial geralmente é feito em ovos embio-
nados. Nos ovos inoculados, a presença do vírus
6.1.3 Imunidade
é demonstrada pela prova de hemaglutinação,
utilizando-se eritrócitos de galinha. Para a confir-
Uma característica importante do EIV é au-
sência de proteção cruzada entre os dois subtipos, mação da etiologia e caracterização do vírus iso-
H7N7 e H3N8. Essa característica torna necessá- lado, realiza-se a prova de HI, utilizando-se um
ria a inclusão dos dois subtipos na formulação de soro imune específico.
vacinas. A duração da imunidade protetora con- Testes imunoenzimáticos (ELISA) de captu-
ferida pela vacinação é de três a quatro meses, de- ra têm sido utilizados no diagnóstico da influen-
pendendo do histórico prévio de vacinação e da za humana e estão sendo padronizados para a
dose do desafio. No entanto, mesmo animais que detecção rápida de antígenos do vírus A/equi/2
tenham sido regular e recentemente vacinados em suabes nasais de animais suspeitos. A técnica
podem se infectar e excretar o vírus. As variações de IFA também tem sido empregada para a de-
antigênicas dos vírus de campo podem reduzir a tecção de antígenos do EIV em células do trato
qualidade e a durabilidade da imunidade confe- respiratório, obtidas por raspado nasal ou lava-
rida pela infecção natural ou pela vacinação, pois do traqueal. Além desses métodos de detecção
anticorpos cruzados neutralizam o vírus menos de antígenos, a reação em cadeia da polimerase
eficientemente do que anticorpos contra o vírus (PCR) também vem sendo utilizada para a detec-
homólogo. ção do ácido nucléico viral.
738 Capítulo 28

Os métodos sorológicos também são mui- Os programas de vacinação para a influen-


to usados para a confirmação do diagnóstico de za eqüina consistem em uma primeira vacinação,
influenza. No entanto, a necessidade de coleta seguida por uma segunda dose com três a seis
de soro pareado com intervalos de 14 a 21 dias, semanas de intervalo. Além disso, são necessá-
constitui-se em uma das principais limitações rios reforços semestrais ou anuais, dependendo
para a sua utilização. Os testes utilizados para a das recomendações do fabricante. Os surtos de
detecção de anticorpos contra o EIV incluem a HI, influenza eqüina não são sazonais, como na in-
fixação do complemento (CF), soro neutralização fluenza humana, mas são freqüentemente associa-
(SN) e ELISA. O teste de HI é o teste padrão para dos a feiras e competições. Por isso, a revacinação
a detecção de anticorpos contra o EIV e permite dos animais antes desses eventos é recomenda-
a diferenciação entre os dois subtipos do vírus, da. As éguas gestantes devem ser vacinadas um
uma vez que os anticorpos inibidores da hema- mês antes do parto, e os potros deverão receber
glutinação são específicos para cada subtipo do a primeira dose da vacina após o decréscimo da
vírus. imunidade colostral, por volta dos quatro a seis
meses de idade.
6.1.5 Profilaxia e controle Novas tecnologias estão sendo desenvolvi-
das para resolver o problema da curta duração da
A natureza altamente infecciosa e contagiosa imunidade conferida pelas vacinas inativadas. Na
do EIV requer a realização de quarentena de todos Europa, vacinas contendo complexos imunoesti-
os animais com sinais respiratórios por pelo me- mulantes (ISCOMs) foram desenvolvidas, mas,
nos sete semanas para prevenir uma maior disse- após quatro anos de uso e testes a campo, não
minação da infecção. Particular atenção deve ser foi demonstrada a sua superioridade em relação
dada aos potros e animais jovens, que devem ser às vacinas convencionais. Vacinas vivas atenua-
mantidos afastados dos animais doentes. Além das, algumas obtidas por recombinação genética,
disso, é necessário que os equipamentos utiliza- também estão em fase de pesquisa e testes.
dos para a manipulação dos animais doentes não
sejam utilizados nos animais sadios. Os tratado- 6.2 Influenza suína
res e veterinários devem realizar o tratamento e
a manipulação dos animais doentes após terem A influenza suína (swine influenza, SI) é uma
manejado os animais sadios, evitando o contato enfermidade respiratória, infecciosa e aguda, cau-
com os eqüinos saudáveis após terem entrado em sada pelo vírus da influenza suíno tipo A (SIV).
contato com os animais doentes. Os sinais clínicos característicos são: tosse, disp-
A prevenção também pode ser feita pela néia, febre, anorexia e prostração, seguidos de rá-
vacinação com vacinas inativadas. No entanto, a pida recuperação. A gravidade da infecção varia
imunidade conferida é de curta duração e refor- de acordo com a cepa viral, idade do animal, con-
ços freqüentes são necessários. Alguns estudos dição imunológica e presença de infecções con-
demonstram que, no mínimo, 70% de uma po- comitantes. Os sinais clínicos e lesões geralmente
pulação precisa ser vacinada para que epidemias apresentam rápida regressão, mas casos de pneu-
da enfermidade sejam prevenidas. Tipicamente, monia fatal podem ocorrer ocasionalmente.
a geração de vacinas que está disponível atual- A primeira descrição da doença data de
mente consiste de vacinas com vírus inativado, 1918, no Meio-Oeste dos Estados Unidos, na
contendo adjuvantes para potencializar a imuno- mesma época em que ocorria a maior pandemia
genicidade. Usualmente a mistura de vírus inclui de influenza humana, responsável pela morte
uma cepa viral do subtipo equi-1 (H7N7) e outra de mais de 20 milhões de pessoas. A doença em
do subtipo equi-2 (H3N8). A razão para incluir suínos apresentava muitas semelhanças clínicas
múltiplas cepas na formulação das vacinas é a e patológicas com a influenza humana. O iso-
possibilidade de mutações nas cepas circulantes, lamento do agente foi realizado em 1930 e, nos
resultando em variantes antigênicas. anos seguintes, foram realizados vários estudos
Orthomyxoviridae 739

sobre imunidade, transmissão, hospedeiros, rela- como α2,6, e, por isso, podem potencialmente ser
ções antigênicas com os outros vírus da influen- infectados por vírus aviários e humanos. Por essa
za, formas de manutenção na natureza, entre ou- característica, a espécie suína é considerada o “re-
tros. Até 1975 existiam poucos relatos da doença cipiente de ressortimento” entre vírus aviários e
em outros países além dos Estados Unidos, mas a de mamíferos.
partir dessa época, vários casos de doença clínica
e rebanhos com sorologia positiva foram descri- 6.2.2 Epidemiologia
tos em diferentes países.
O isolamento do vírus H1N1 (A/swine/
6.2.1 Características do vírus Iowa/15/30) e estudos sorológicos retrospec-
tivos em humanos sugerem que o vírus de suí-
Os suínos são susceptíveis à infecção com nos é antigenicamente semelhante ao vírus de
diferentes variantes do SIV, incluindo os vírus humanos, responsável pela pandemia de 1918.
H1N1, clássicos de influenza suína circulantes Estudos recentes indicam que esse vírus se origi-
nos Estados Unidos desde o início do século XX. nou de um vírus aviário, pois todos os seus oito
A espécie suína também é susceptível ao H1N1 segmentos genômicos são muito semelhantes aos
recombinante (ressortante), que contém glicopro- encontrados em vírus de aves. A dúvida que per-
teínas de superfície do vírus clássico e proteínas manece é a de quais hospedeiros foram infecta-
internas de vírus mais recentes como o H3N2 ou dos primeiro: suínos ou humanos? Desde 1918 o
H1N2. Outros subtipos isolados de suínos in- agente permanece circulante na população suína
cluem o H1N7 e H9N2. e é responsável por doença em rebanhos suínos
A imunidade contra o H1N1 não protege na América do Norte.
contra o H3N2 e características antigênicas do O vírus circula na população suína ao lon-
H1N1 clássico e das variantes de H1N1 de aves go do ano, mas os surtos são mais freqüentes no
indicam que esses vírus permanecem conserva- final do outono e inverno. O aparecimento da
dos desde sua introdução na população suína. Os doença está associado principalmente com a mo-
H3N2 são vírus menos estáveis, e isolados mais vimentação de animais e introdução de animais
recentes apresentaram algumas variações antigê- nos rebanhos. A principal forma de transmissão
nicas quando comparados ao protótipo. O gene é a direta, pela via nasofaríngea, por contato com
da HA do SIV não apresenta muita variação an- secreções nasais de animais na fase febril da in-
tigênica e uma das hipóteses para esse fato é a fecção. Em regiões com alta densidade de suínos,
falta de pressão de seleção, já que existem sempre a disseminação aerógena pode ser importante,
muitos suínos sem imunidade prévia ao agente especialmente nas populações sem imunidade. A
na população susceptível. morbidade pode chegar a 100%, mas a mortalida-
A região globular da HA do vírus é respon- de é baixa (1% ou menos).
sável pela ligação aos receptores celulares AS ou O H1N1 clássico é o subtipo mais comumen-
acetil-neuramínico. O tipo de ligação do AS com a te identificado e estima-se que 25% da população
galactose na molécula de glicolipídio difere entre de suínos do mundo possua sorologia positiva
os hospedeiros dos vírus da influenza, e o tipo de para este agente. Nos Estados Unidos, 30% dos
ligação é o maior determinante de especificidade suínos apresentam sorologia positiva para o sub-
desses vírus. Em aves, o AS está ligado à cadeia tipo H1N1 e, na região Centro-Norte daquele
de açúcar na posição α2,3, e os vírus isolados de país, 51% dos suínos são positivos. Na Bélgica,
aves possuem uma HA com alta afinidade para entre 2001 e 2003, foram identificadas matrizes
este tipo de ligação. Na traquéia de humanos, a com anticorpos para dois (48%) ou três subtipos
ligação encontrada é do tipo α2,6, e os vírus que virais (31%) de influenza suína. Outros subtipos
infectam humanos têm preferência por esse tipo já relatados em suínos incluem o H9N2, H1N2
de ligação. Os suínos possuem, em seu trato res- (derivado de vírus de aves), H1N7 (derivado de
piratório, moléculas de AS tanto em ligação α2,3 vírus de humanos e eqüinos) e H4N6. O H1N1
740 Capítulo 28

foi isolado de suínos no Japão em 1978; na Fran- em células de suínos, por isso a recombinação
ça, em 1987 e 1988, e na Grã-Bretanha, em 1994. pode ocorrer nas células da traquéia de suínos.
O H3N1 e H1N7 foram isolados na Grã-Bretanha Com a replicação contínua em suínos, alguns
em 1990. No Brasil, até o momento, não existem subtipos aviários podem passar a reconhecer os
casos confirmados de influenza suína. receptores de células humanas. Uma recente des-
A infecção de suínos com o H3N2 de huma- coberta demonstrou que não apenas os suínos,
nos também tem sido demonstrada. O vírus A/ mas também os humanos possuem células com
Hong Kong/68 foi isolado de suínos no Taiwan, os dois diferentes tipos de ligação (α2,3 e α2,6).
logo após seu aparecimento na população huma- A ligação α2,6 está presente no trato respiratório
na. superior; e a α2,3, no trato respiratório inferior.
A origem dos isolados de suínos difere entre Essa nova descoberta sugere que a transmissão
os continentes. O H1N1, predominante na Euro- direta de vírus da influenza de aves para huma-
pa, teve origem em vírus de aves e foi introduzido nos pode ocorrer sem a utilização do suíno como
por patos selvagens na população suína em 1979. intermediário do ressortimento genético.
As diferenças entre os vírus têm implicações prá- Vários fatores podem potencialmente limi-
ticas para a realização do diagnóstico e controle, tar a transmissão do SIV de uma espécie para
e, portanto, as cepas utilizadas para diagnóstico outra, mas esses fatores não são completamente
na Europa e nos Estados Unidos são diferentes. conhecidos. As barreiras impostas pela prefe-
Em geral, os vírus de influenza de suínos rência de receptores específicos são importantes,
não infectam humanos. No entanto, já foram re- entretanto os mecanismos virais ainda são pouco
latados alguns casos de infecção de pessoas que conhecidos.
trabalhavam diretamente com esses animais. Já
foram descritos aproximadamente 14 episódios 6.2.3 Patogenia, sinais clínicos
de influenza por vírus suínos em humanos, com e patologia
seis mortes por pneumonia. A maioria dos casos
foi de pessoas que se infectaram após contato Os animais se infectam pela inalação de ae-
próximo com suínos. Em 1976, durante um sur- rossóis ou pelo contato direto ou indireto com
to em Nova Jersey, EUA, 500 pessoas adoeceram animais ou secreções contaminadas. A infecção
com o vírus H1N1, o mesmo identificado em su- geralmente é limitada ao trato respiratório e vi-
ínos na época. No entanto, nunca foi realmente remia é raramente detectada. A replicação viral
provado que os suínos serviram de fonte de vírus já foi demonstrada na mucosa nasal, tonsilas, tra-
para humanos. Anticorpos contra o SIV foram quéia, linfonodos traqueobronquiais e pulmões.
identificados em diversos países, em pessoas que Células positivas para antígenos virais são encon-
mantinham contato próximo com suínos, mas a tradas no epitélio bronquial após duas horas de
ocorrência de doença clínica não é freqüente. Em infecção, e, após 16 horas, podem ser observadas
um surto em Wisconsin, EUA, em 1988, foram grandes áreas infectadas no epitélio bronquial.
identificados casos de humanos infectados e evi- Antígenos virais também podem ser detectados
dências sorológicas da transmissão de pacientes nos septos alveolares após quatro horas de infec-
para funcionários da área de saúde que tiveram ção, e, após 24 horas, aparecem numerosos focos
em contato com as pessoas infectadas. de infecção nas células dos alvéolos e ductos.
Como os suínos são susceptíveis tanto aos Pouco se sabe sobre a patogenia da influen-
vírus aviários quanto aos vírus humanos, estão za suína, mas estudos sugerem que a produção
freqüentemente envolvidos na transmissão inte- de citocinas, como o fator de necrose tumoral α
respécies. Os vírus da influenza aviária não repli- (TNF-α), interferon-α (IFN-α), e as interleucinas
cam de forma eficiente em células de humanos 1 e 6 (IL-1 e IL-6) contribuam para os efeitos in-
e primatas, e os vírus de humanos não replicam flamatórios observados nos pulmões. Os sinais
bem em células de aves. Entretanto, os vírus de de febre, anorexia e de inflamação pulmonar são
aves e de humanos replicam de forma eficiente mais evidentes após 24 horas de infecção, perío-
Orthomyxoviridae 741

do que coincide com o pico de replicação viral e As alterações histológicas mais freqüentes
produção de citocinas. são degeneração e necrose das células epiteliais
Estudos de hibridização in-situ demonstram dos brônquios e bronquíolos, que podem estar
que o vírus H1N2 pode ser detectado nos mes- preenchidos por exsudato. Também pode ocor-
mos tecidos que apresentam lesões. Os pulmões rer hiperemia e dilatação dos capilares, com in-
são, provavelmente, os principais sítios de repli- filtrado inflamatório linfoistioplasmocitário in-
cação do SIV. O RNA viral pode ser detectado tersticial. Essas lesões são mais acentuadas com
nas células epiteliais dos brônquios, bronquíolos, a variante H1N1.
pneumócitos e macrófagos alveolares e intersti-
ciais, e a distribuição varia com o curso e fase da 6.2.4 Imunidade
infecção.
A detecção do H1N2 no epitélio dos brôn- Níveis elevados de anticorpos têm sido de-
quios e bronquíolos sugere que as células epite- tectados até seis meses após a infecção. A relação
liais desses locais representem os sítios iniciais entre a quantidade de anticorpos no soro ou nas
de infecção, e que a replicação viral induz lesão vias respiratórias e a resistência à infecção não é
nesses tecidos, impedindo a ação dos mecanis- bem estabelecida, ocorrendo muitas variações in-
mos de defesa muco-ciliar. A associação de pa- dividuais dos suínos após a exposição.
tógenos, como o vírus da síndrome reprodutiva Os anticorpos maternos contra o vírus per-
e respiratória dos suínos (PRRSV), Micoplasma sistem por dois a quatro meses, variando de acor-
hyopneumoniae, Haemophilus spp e Pasteurella mul- do com o nível inicial. Suínos lactentes com anti-
tocida, produz doença respiratória associada com corpos maternos podem se infectar e excretar o
alta mortalidade. vírus, mas a gravidade dos sinais clínicos e a taxa
Os sinais clínicos observados na influenza de excreção viral são inversamente proporcionais
suína incluem anorexia, prostração e febre. Tam- ao nível de anticorpos maternos.
bém são observados animais com dispnéia e he- Após a queda na taxa de anticorpos ma-
sitação em se movimentar. A movimentação dos ternos, os suínos podem se infectar novamente,
animais pode ser acompanhada de tosse grave. eliminar o vírus e apresentar sinais clínicos da
A perda de peso pode ser elevada, mas a morta- doença.
lidade geralmente é baixa, exceto em casos de in-
fecções concomitantes. Os animais se recuperam
6.2.5 Diagnóstico
após cinco a sete dias, e os sinais clínicos geral-
mente desaparecem de forma súbita.
Além dos sinais clínicos típicos, podem ocor- Surtos de doença respiratória aguda em suí-
rer infecções subclínicas. Fatores como imunida- nos, envolvendo um número elevado de animais,
de, idade, pressão de infecção, infecções intercor- devem ser necessariamente investigados para
rentes e condições climáticas podem determinar influenza. O diagnóstico definitivo requer o iso-
a severidade clínica da infecção. Não existem lamento e identificação do vírus ou detecção de
evidências de diferentes graus de virulência em anticorpos específicos contra o SIV.
infecções com diferentes subtipos virais. O isolamento viral pode ser realizado a
As lesões macroscópicas da forma não-com- partir de suabes, coletados do muco nasal ou do
plicada da doença são geralmente de pneumonia muco da faringe. A fase ideal para a coleta dos
viral. As alterações geralmente são limitadas aos suabes é o período febril, pela maior possibili-
lobos apical e cardíaco dos pulmões, entretanto, dade de detecção do vírus. Os suabes devem ser
em casos graves, mais de 50% dos pulmões po- acondicionados em tubos e enviados ao labora-
dem ser afetados. Pode ser evidenciado edema tório no máximo 48 horas após a coleta, em meio
interlobular, e as vias aéreas podem estar preen- de transporte apropriado. O vírus também pode
chidas por exsudato fibrinoso tingido de sangue. ser isolado do pulmão de animais que morreram
Pode, ainda, ocorrer aumento de volume dos lin- ou foram submetidos à eutanásia na fase aguda
fonodos mediastínicos e bronquiais. da doença.
742 Capítulo 28

Ovos de galinha embrionados com 10 dias 6.3 Influenza aviária


são muito utilizados para o isolamento de in-
fluenza tipo A. O vírus geralmente não mata o O primeiro relato da influenza aviária data
embrião, e o líquido alantóide deve ser coletado de 1878, na Itália, mas o vírus só foi identifica-
após 72 horas de incubação e testado para a pre- do em 1955. As manifestações clínicas induzidas
sença de atividade hemaglutinante com eritróci- pela infecção são principalmente respiratórias e
tos de galinha. O subtipo pode ser identificado gastrintestinais. No entanto, o vírus pode produ-
pela técnica de HI. zir desde infecção assintomática até uma enfermi-
Podem ainda ser utilizadas a imunofluo- dade sistêmica ou neurológica, que pode resultar
rescência direta (IFD) para tecidos pulmonares, em taxas de mortalidade de até 100%. No início,
imunofluorescência indireta (IFI) em células do apenas surtos da forma severa da doença eram
epitélio nasal, imunoistoquímica em tecido fixa- registrados, mas, posteriormente, observou-se
dos (IHQ), ELISA e reação em cadeia da polime- que poderia ocorrer uma forma mais leve da do-
rase acoplado à transcrição reversa (RT-PCR) em ença causada pelo mesmo vírus.
tecidos e/ou células descamativas do epitélio. Atualmente sabe-se que existem cepas com
Testes sorológicos para diagnóstico de infec- dois graus distintos de patogenicidade. As cepas
ção pelo SIV consistem em sorologia pareada pela conhecidas como influenza aviária altamente
técnica de HI, com uma coleta durante a fase agu- patogênicas (IAAP) são responsáveis pela for-
da e a segunda três a quatro semanas após, para ma severa da doença, que é importante na avi-
investigar o aumento do nível de anticorpos. cultura comercial de todo o mundo. Os vírus de
patogenicidade média (IAMP) causam infecções
6.2.6 Profilaxia e controle que variam desde assintomáticas até doença res-
piratória e gastrentérica. Na literatura científica,
Não existe tratamento específico para a do- os IAMP são freqüentemente denominados como
ença. Recomenda-se manter os animais em local de baixa patogenicidade. No entanto, neste capí-
limpo e seco e não os transportar durante a fase tulo, será utilizado o termo oficialmente utilizado
aguda da enfermidade. Expectorantes e antimi- pela OIE, isto é, influenza aviária de patogenici-
crobianos podem ser utilizados para a prevenção dade média.
de infecções bacterianas secundárias. As medi- Os vírus da influenza aviária são agentes
das de biossegurança auxiliam na prevenção da infecciosos de grande interesse também para a
introdução do SIV na população suína. Como saúde pública por originarem vírus de alta viru-
a transmissão do vírus pode ocorrer entre dife- lência para humanos. A seguir, serão descritos al-
rentes espécies, as medidas de biossegurança in- guns aspectos relacionados com vírus da influen-
cluem evitar o contato com outras espécies, espe- za aviária e da enfermidade em aves.
cialmente aves.
Existe uma grande variação na resposta de
anticorpos e na proteção de suínos após a vaci- 6.3.1 Características do vírus
nação. Existem vacinas inativadas com os vírus
H1N1 e H3N2 nos Estados Unidos e Europa, O vírus da influenza das aves pertence ao
onde a vacinação contra o SIV é uma prática co- gênero Influenza A. Como os demais vírus desse
mum. Os suínos devem ser vacinados após os gênero, possuem vírions pleomórficos, envelopa-
10 meses de idade, pois, nos primeiros meses de dos e RNA segmentado como material genético.
vida, pode ocorrer a interferência de anticorpos As diferenças estruturais observadas entre as ce-
maternos, caso a matriz tenha sido vacinada ou pas de alta e média patogenicidade estão concen-
infectada previamente. tradas principalmente na HA. As cepas de alta
Orthomyxoviridae 743

patogenicidade apresentam um número maior dos com o surgimento de cepas de alta patogeni-
de aminoácidos básicos na região de clivagem da cidade, enquanto os demais subtipos são isolados
HA0 em HA1 e HA2. Outra diferença que pode de surtos da doença causados por cepas de mé-
ter conseqüências na patogenicidade das cepas dia patogenicidade. No entanto, deve-se ressal-
é a ausência de sítios de glicosilação de aminoá- tar que os subtipos H5 e H7 podem também estar
cidos, que são geralmente encontrados nessa re- envolvidos em surtos de média patogenicidade.
gião em cepas de patogenicidade média. Alguns surtos causados por vírus desses dois
subtipos foram inicialmente de média patogeni-
6.3.2 Epidemiologia cidade e, após a circulação por algum tempo na
população, o vírus sofreu modificações genéticas
Os vírus da influenza aviária que infectam e passou a apresentar alta patogenicidade.
aves domésticas são, em grande parte, remota- Vinte e quatro surtos da forma altamente
mente originários de aves silvestres. O vírus já patogênica da doença foram descritos desde 1959
foi detectado em 100 espécies, pertencentes a 26 em todo o mundo, sendo que 11 tiveram, como
diferentes famílias e pelo menos 12 ordens. As agente etiológico, um vírus do subtipo H5, e 13
aves silvestres aquáticas classificadas na família foram causados por um subtipo H7.
Anatidae, ordem Anseriformes, são citadas como os Dentre os vírus de média patogenicidade,
principais reservatórios do vírus na natureza. A o H9N2 merece consideração especial por estar
transmissão provavelmente ocorra pela transfe- circulando de forma endêmica em vários países
rência do vírus presente em fezes contaminadas desde a metade dos anos 1990. Entre os anos de
1994 e 2004, este vírus foi detectado na Alema-
das aves silvestres para aves domésticas, meca-
nha, Itália, Irlanda, África do Sul, Estados Unidos
nicamente, através de outros animais, humanos,
e Coréia. Recentemente surtos de influenza pelo
alimentos ou água. Outras fontes de infecção são
H9N2 foram descritos em galinhas no Oriente
suínos infectados, aves de estimação ou aves do-
Médio, envolvendo o Irã, Arábia Saudita, Israel,
mésticas endemicamente infectadas.
Jordânia, Kuwait, Líbia, Líbano, Iraque e outros
O vírus é excretado em grandes quantida-
países da Ásia, como China, Coréia e Paquistão.
des nas fezes e nas secreções respiratórias das
As cepas do vírus da influenza que circu-
aves infectadas durante o período clínico e por
lam entre aves silvestres são de média patogeni-
um tempo variável após a recuperação. Em ga-
cidade. A transformação de uma cepa de média
linhas, este período pode se estender por até 36 patogenicidade em cepa de alta patogenicidade
dias após a infecção. parece ocorrer nas aves domésticas logo após a
A transmissão horizontal é a forma mais co- sua introdução a partir de espécies silvestres. Os
mum de transmissão, ocorrendo de aves infecta- mecanismos que induzem esta transformação são
das para aves susceptíveis através de fômites ou complexos e não totalmente esclarecidos, mas es-
por via aerógena. O contato com equipamentos, tão ligados a alterações observadas na HA após
roupas ou sapatos contaminados com fezes tam- a aquisição de múltiplos aminoácidos básicos e
bém são importantes fontes de infecção. A trans- perda de sítios de glicosilação. Eventos de mu-
missão por via aerógena ocorre entre animais da tação ou recombinação parecem estar associados
mesma criação ou, possivelmente, entre aviários com essas modificações e, possivelmente, mais
próximos, embora esta via não seja considerada a de um mecanismo possa contribuir para esta al-
mais importante. teração de patogenicidade.
Os 16 subtipos de HA e os nove subtipos No Brasil, não há registro recente de diag-
de neuraminidase (NA) já foram identificados nóstico clínico ou laboratorial da influenza em
em aves silvestres ou domésticas em diferentes aves comerciais. O subtipo H3 foi recentemente
combinações. Os isolados mais recentes que cau- isolado de aves silvestres nos estados do Amazo-
saram doença em aves domésticas foram: H5N2, nas e Rio Grande do Norte, entretanto não exis-
H7N1, H7N3, H7N7, H9N2 e H5N1. Até o mo- tem evidências de transmissão desse vírus para
mento, apenas os subtipos H5 e H7 estão associa- aves domésticas.
744 Capítulo 28

6.3.3 Patogenia, sinais clínicos edema da cabeça e pescoço, necrose na crista e


e patologia barbela, hemorragias e focos de necrose em múl-
tiplos órgãos viscerais são freqüentemente des-
A patogenia da influenza aviária é mais co- critos. Aves que apresentam a forma superaguda
nhecida em aves de produção, como galinhas e da doença podem morrer mesmo antes de apre-
perus. A influenza das aves é conhecida como ti- sentar lesões.
picamente de manifestações clínicas respiratórias A infecção de aves domésticas com cepas de
e gastrintestinais. Entretanto, os sinais clínicos baixa virulência pode causar desde infecções as-
podem variar amplamente, dependendo da cepa sintomáticas, até manifestações severas de doen-
infectante. A patogenicidade de cada isolado do ça, afetando os tratos respiratório, intestinal e uri-
vírus da influenza também pode variar de acordo nário. Nas aves doentes, pode-se observar tosse,
com a espécie infectada. Já foram descritos isola- espirro, estertores, lacrimação excessiva, queda
dos de campo que não causaram doença em gali- na produção de ovos, perda do apetite e diarréia.
nhas, mas causaram doença grave em perus. Os sinais clínicos podem ser mais severos se hou-
A infecção ocorre por inalação ou ingestão de ver infecção secundária com outros vírus ou bac-
material contaminado, e o período de incubação térias. As cepas de alta virulência (HPAI) podem
é de um a três dias. Após a penetração, a replica- causar morte de galinhas e perus sem outras ma-
ção das cepas de média patogenicidade é restrita nifestações clínicas. Nas aves que sobrevivem por
às células dos tratos respiratório e intestinal. As algum tempo, podem ser observados diferentes
lesões causadas pelo vírus podem facilitar infec- quadros clínicos. Entre esses, pode-se citar a per-
ções bacterianas secundárias. Esta predisposição da do apetite, a queda de postura, espirros, tosse,
pode estar ligada a uma depressão nas funções estertores, diarréia, distúrbios de origem nervosa
dos macrófagos, induzida pela replicação viral. (como tremores da cabeça e pescoço), torcicolo e
As aves afetadas manifestam lesões inflamatórias opistótono, edema da cabeça e pescoço e cianose
no trato respiratório, principalmente nos seios da pele nas regiões sem penas.
nasais, edema e congestão na mucosa traqueal
com exsudato seroso ou caseoso e, eventualmen-
6.3.4 Imunidade
te, hemorragias. Pode ocorrer também aero-sacu-
O principal mecanismo efetor envolvido na
lite e, se houver infecção bacteriana secundária, o
proteção das aves contra o vírus da influenza é
quadro pode evoluir para uma broncopneumo-
nia fibrinopurulenta. Outras lesões possíveis in- representado pelos anticorpos neutralizantes. Os
cluem enterite, lesões inflamatórias nos ovidutos anticorpos são produzidos contra várias proteí-
e regressão dos ovários. nas estruturais e não-estruturais, mas apenas os
A infecção por cepas altamente patogênicas anticorpos contra as proteínas externas do vírus,
cursa com a disseminação sistêmica do vírus e HA, NA e M2 possuem atividade neutralizante.
sua replicação em vários órgãos, com conseqüen- A resposta humoral de aves contra o vírus da in-
te aparecimento de lesões disseminadas. A pre- fluenza ocorre de forma similar ao que ocorre com
sença de múltiplos resíduos básicos na região da outros vírus nesta espécie e com o mesmo vírus
clivagem da HA das cepas altamente patogênicas em outras espécies. Aproximadamente cinco dias
permite que a clivagem seja realizada por enzi- após a infecção, pode-se detectar anticorpos es-
mas encontradas em vários tecidos. Isso facilita pecíficos da classe IgM no soro e, posteriormente,
a propagação dessas cepas por diversos órgãos e ocorre o aparecimento de IgG (IgY). A resposta
tecidos, enquanto a enzima necessária para a cli- humoral ocorre também nas mucosas, mas pouco
vagem da HA nas cepas de média patogenicida- tem sido estudado sobre este mecanismo.
de somente é encontrada nos tratos respiratório O principal alvo da resposta imune humo-
e intestinal. ral é a HA, em cuja estrutura foram identifica-
As lesões causadas pelas cepas altamente dos pelo menos cinco determinantes antigênicos
patogênicas podem apresentar variações, mas neutralizantes. Uma boa resposta de anticorpos
Orthomyxoviridae 745

contra a HA parece ser suficiente para a proteção com as cepas altamente patogênicas. Nesses ca-
contra a doença, embora a presença simultânea sos, traquéia, pulmão, sacos aéreos, intestino,
de anticorpos contra a HA e NA aparentemente rim, fígado, coração, sangue, baço e cérebro são
induz uma melhor proteção. A infecção ou vaci- os órgãos de eleição.
nação com um subtipo de HA ou NA induz neu- A inoculação do material suspeito em ovos
tralização de outros vírus do mesmo subtipo, mas embrionados de galinha, com posterior identi-
não induzem neutralização ou proteção contra ficação por técnicas sorológicas, é o método de
outros subtipos. Portanto, a proteção é específi- diagnóstico mais comumente utilizado. Com
ca para o subtipo. Anticorpos produzidos contra este objetivo, embriões de nove a onze dias de
a nucleoproteína (NP) e a proteína M1 também incubação são inoculados na cavidade alantóide.
podem ser detectados no soro de aves vacinadas Setenta e duas horas após a inoculação, os ovos
ou infectadas. Esses anticorpos são utilizados em embrionados são resfriados a 4°C por algumas
testes diagnósticos para a determinação do tipo horas. O líquido alantóide é coletado, e a presen-
de vírus influenza, mas, por serem direcionados ça do vírus nesse material é determinada pela de-
contra proteínas internas, não parecem possuir tecção de atividade hemaglutinante pelo teste de
papel importante na proteção contra o vírus. hemaglutinação (HA).
Informações sobre a resposta imune celular Após a determinação da atividade hemaglu-
contra o vírus da influenza em aves são raras. tinante, o vírus deve ser identificado com relação
Apesar disso, evidências indiretas demonstram ao seu tipo e subtipo. A identificação do tipo viral
que este ramo da resposta imune também parti- (A, B, C) pode ser realizada através do teste de
cipa na proteção contra o vírus. A transferência imunodifusão ou ELISA, ou, ainda, pela detecção
de linfócitos T CD8+ de galinhas inoculadas com de antígenos virais na membrana cório-alantóide
o vírus H9N2 e desafiadas com o H5N1 protegeu do embrião, através das técnicas de IFA ou IPX.
os animais contra o desafio, indicando que a res- Para a realização desses testes, são utilizados an-
posta imune celular é importante. ticorpos direcionados para a proteína matriz (M)
ou nucleoproteína (NP).
A identificação do vírus em subtipos é rea-
6.3.5 Diagnóstico lizada pelas técnicas de inibição da hemaglutina-
ção (HI) ou inibição da neuraminidase (NI) com a
O diagnóstico definitivo de influenza aviária utilização de anticorpos específicos para cada um
é obrigatoriamente realizado por um laboratório dos tipos de HA e NA.
de referência do Ministério da Agricultura ou ór- Testes sorológicos podem ser também utili-
gão equivalente em cada país. No Brasil, existem zados para a detecção de anticorpos no soro de
vários laboratórios oficiais do Ministério habilita- aves que foram potencialmente infectadas. Nesse
dos para realizar o diagnóstico. caso, os testes são aplicados em programas de vi-
O diagnóstico laboratorial é realizado pela gilância e determinação de prevalência do vírus
detecção direta do vírus ou pelo isolamento e em populações específicas, e não como diagnós-
identificação viral a partir do material enviado tico de surtos. Nesses casos, os testes recomenda-
para o laboratório. As amostras preferenciais para dos são a imunodifusão, ELISA, HI e NI.
o diagnóstico são secreções traqueais e cloacais Recentemente, a técnica de transcrição re-
coletadas com o auxílio de suabes. Os suabes de- versa acoplada à reação de polimerase em cadeia
vem ser transportados em meio estéril, acrescido (RT-PCR) tem sido utilizada para a detecção do
de antibióticos. As amostras podem ser conser- genoma viral em amostras clínicas.
vadas a 4°C se processadas em até 48 horas após A presença do vírus da influenza tipo A
a coleta. Após esse período, é recomendado que pode ser confirmada utilizando-se oligonucleo-
as amostras sejam estocadas a -70°C. As vísceras tídeos nucleoproteína ou matriz-específicos. A
de animais mortos também devem ser coletadas, presença dos subtipos H5 e H7 também pode
principalmente se houver a suspeita de infecção ser confirmada através de oligonucleotídeos H5-
746 Capítulo 28

ou H7 específicos. Por meio dessa técnica e com aves domésticas e, segundo, evitar a propaga-
posterior seqüenciamento dos fragmentos ampli- ção do vírus entre aves domésticas caso ocorra a
ficados, é possível diferenciar as cepas de alta e introdução da infecção. De acordo com as reco-
média patogenicidade. A presença de múltiplos mendações técnicas, o controle deve ser realizado
aminoácidos básicos na região de clivagem da principalmente pelo uso de medidas rigorosas de
HA caracteriza as cepas de alta patogenicidade. biossegurança.
Após o isolamento, os isolados identificados As aves infectadas excretam grande quanti-
como vírus da influenza devem ser testados para dade de vírus pelas fezes e secreções respirató-
a determinação da sua patogenicidade. A patoge- rias. A transmissão ocorre principalmente pela
nicidade é determinada de acordo com protoco- exposição ao material orgânico contaminado, em
los utilizados internacionalmente e descritos pela equipamentos, água, alimento, cama, veículos,
OIE. Os isolados virais serão considerados de alta roupas e calçados de pessoas que estão em conta-
virulência se: a) induzirem a morte em 75% de to com os animais. A primeira etapa para evitar a
oito aves com idade entre 4-8 semanas; b) induzi- transmissão do vírus é evitar o transporte de aves
rem a morte de 75% das aves, mas forem dos infectadas e de material orgânico potencialmente
subtipos H5 ou H7 e apresentarem os múltiplos contaminado. Em caso de surtos, a interdição da
aminoácidos básicos na região de clivagem da propriedade contaminada é um procedimento
hemaglutinina; e c) induzirem a morte de uma a compulsório.
cinco aves e replicarem em cultivo celular sem a Especialistas chamam a atenção para a rápi-
adição de tripsina. da adoção de medidas de controle de focos cau-
sados por vírus de média patogenicidade como
6.3.6 Controle e profilaxia um dos procedimentos mais importantes para
evitar o surgimento de cepas de alta patogenici-
As medidas de controle e profilaxia adota-
dade. Como já mencionado, quanto maior for a
das frente a surtos de influenza aviária variam
circulação do vírus na população avícola, maio-
de acordo com a legislação de cada país. Medi-
res serão as chances de ocorrerem alterações na
das diferenciadas também podem ser aplicadas
patogenicidade desses vírus.
considerando-se a patogenicidade da cepa in-
A vacinação contra a influenza aviária tem
fectante. Os procedimentos frente a surtos com
sido realizada em situações específicas em alguns
cepas de média ou alta patogenicidade podem
países, mas a sua aplicação ainda é um ponto
ser distintos. Nos países que enfrentaram essa
muito polêmico. O maior argumento contra a va-
situação em períodos recentes, o direcionamento
cinação é comum a outras doenças de animais, ou
geral tem sido a eliminação das aves infectadas e
seja, a impossibilidade de diferenciação entre ani-
também de outras aves em contato. No entanto,
mais vacinados e animais infectados pelo vírus
em alguns casos, optou-se pelo controle pelo uso
de campo. Outro forte argumento contra a vaci-
de vacinação emergencial. A Organização Inter-
nação de aves é o de que algumas vacinas prote-
nacional de Epizootias (OIE), Organização das
gem contra os sinais clínicos, mas não protegem
Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação
contra a infecção e excreção viral. Neste caso, os
(FAO) e Organização Mundial da Saúde (OMS
vírus poderiam seguir circulando e propiciar o
– WHO) apresentam medidas de prevenção e
surgimento de cepas altamente patogênicas.
controle da influenza aviária internacionalmente
A proteção vacinal contra o vírus da influen-
nos seus respectivos endereços eletrônicos.
za é específica para o subtipo, e qualquer subtipo
Estudos epidemiológicos têm demonstrado
que as principais fontes do vírus para as aves do- pode infectar as aves. Como seria muito difícil
mésticas são as aves silvestres e, num segundo prever o subtipo que irá infectar determinada po-
momento, as próprias aves domésticas. Portanto, pulação avícola, a escolha do subtipo a ser incluí-
os pontos principais a serem observados para o do na vacina é mais um problema que restringe o
controle dessa enfermidade são: primeiro, evitar uso da vacinação. Existe uma porção significativa
a transmissão do vírus de aves silvestres para da comunidade técnico-científica que é totalmen-
Orthomyxoviridae 747

te contra a vacinação de aves, seja pelo risco que Até agora, o único sistema que permite a de-
isto poderia representar para humanos, como tecção do vírus de campo na população vacinada
pela dificuldade de controle dessas medidas. que resulta na erradicação baseia-se na vacinação
O uso de vacinação tem sido considera- heteróloga e é conhecido como DIVA (differentia-
do como uma alternativa sob duas condições: a ting infected from vaccinated animals). Esse sistema
vacinação profilática e vacinação emergencial. foi desenvolvido para os programas de erradica-
Segundo alguns especialistas, a vacinação pro- ção das diferentes cepas de vírus de média pa-
filática poderia ser realizada em áreas que apre- togenicidade do subtipo H7. A vacina utilizada
sentam alto risco de infecção pelos subtipos H5 contém o vírus com a mesma HA, porém com
e H7 ou, então, em regiões que estão sob risco uma NA diferente, como o vírus de campo. Essa
de infecção com um subtipo conhecido. Em to- estratégia de vacinação permite a detecção dos
dos os casos, a vacinação deve ser considerada anticorpos da neuraminidase específicos contra
como um instrumento a mais a ser aplicado em o vírus de campo. Por exemplo, se a cepa do ví-
conjunto com medidas de biossegurança e com rus de campo em circulação é um H7N1, a vacina
o monitoramento da evolução da infecção. Para utilizada deverá ser um H7N3 ou uma das outras
erradicar o vírus da influenza, o sistema de vaci- sete combinações possíveis de NA. O monitora-
nação deve permitir a detecção do vírus de cam- mento sorológico baseado na proteína N3 confir-
po em um lote vacinado, caso ele esteja presente. mará que o lote foi vacinado, e o baseado na pro-
Isso pode ser atingido utilizando-se tanto vacinas teína N1 confirmará que a ave foi infectada com o
inativadas convencionais quanto vacinas recom- vírus de campo. As aves que formam vacinadas e
binantes. As vacinas inativadas, com o mesmo depois infectadas também são detectadas.
subtipo do vírus de campo, permitem a detecção A vacinação contra o vírus da influenza aviá-
do vírus de campo através da introdução de aves ria já foi utilizada em países diferentes com suces-
sentinelas, não-vacinadas, dentro do lote vacina- so variável. Vacinas inativadas e recombinantes
do. Estas aves são testadas regularmente para a foram usadas no México, na Itália, no Paquistão
detecção de uma eventual soroconversão, o que e nos EUA para controlar o vírus da influenza de
indicaria a circulação do vírus de campo naque- média patogenicidade. Antes do surto causado
la população. Esse sistema é aplicável no campo, pelo vírus de alta patogenicidade H5N1 na Ásia
mas é um pouco impraticável, uma vez que as sudeste, algumas tentativas foram relatadas para
aves sentinelas devem ser marcadas e facilmente controlar surtos causados por vírus de alta pato-
reconhecidas. Esse método foi utilizado na Itália genicidade através da vacinação: surto por H5N2
e é utilizado, atualmente, na vigilância da popu- no México (1994); H7N1 na Itália (2000), H7N3 no
lação de gansos vacinados e de patos na França. Paquistão (2003).
Um sistema um pouco mais encorajador é As práticas inadequadas de biossegurança
baseado na detecção de anticorpos anti-NS1, que ou de vacinação podem conduzir à transmissão
foi recentemente desenvolvido e pode ser utiliza- viral entre lotes e a seleção de variantes que exi-
do com todas as vacinas inativadas. Esse sistema bem a antigenic drift. Os vírus H5N2 circulantes
é baseado no fato de que a proteína NS1 é sin- no México apresentaram antigenic drift resultan-
tetizada apenas durante a replicação viral ativa do uma baixa identidade com as cepas vacinais.
e, por isso, raramente presente em vacinas inati- O uso intenso de vacinas no México resultou na
vadas. As aves vacinadas com essas vacinas irão emergência de variantes antigênicas, que esca-
desenvolver anticorpos apenas depois da expo- pam da resposta imune induzida pela vacina. O
sição ao vírus de campo. Testes em campo estão México tem vacinado as aves comerciais desde o
em andamento em diferentes circunstâncias, e surto de alta patogenicidade, em 1994, sem nunca
os resultados precisam ser validados antes desse aplicar o princípio DIVA. Embora nenhum vírus
sistema ser recomendado. de alta patogenicidade tenha sido relatado desde
748 Capítulo 28

o início da campanha de vacinação, os vírus de Isso indica que o vírus atingiu um equilíbrio com
média patogenicidade continuam em circulação. o seu hospedeiro natural.
Por outro lado, em Hong Kong, diversas campa- Os patos, gansos e cisnes estão classificados
nhas de vacinação foram realizadas após o surto dentro da ordem Anseriforme, enquanto gaivotas,
de H5N1 (1997), conseguindo diminuir significa- andorinhas-do-mar e aves pernaltas estão classi-
tivamente a ocorrência do vírus da influenza. A ficados na ordem Chradriiforme. Outras aves sil-
vacinação sistemática das aves importadas, as- vestres das quais o vírus já foi isolado são: faisões
sim como outras medidas de biossegurança, são e perdizes (Galliformes), falcões (Falconiformes),
importantes para evitar novos surtos. garças e íbis (Ciconiiformes), tentilhões e weaver-
No Brasil, a influenza aviária é uma doença birds (Passeriformes), cormorão (Pelicaniformes),
considerada exótica, e o procedimento determi- pombos (Columbiformes), pica-paus (Piciformes),
nado pelo Ministério da Agricultura, no caso de mergulhões (Podicipediformes). A infecção pelo ví-
focos, é a erradicação do vírus pela destruição rus da influenza já foi descrita também em algu-
das aves infectadas. Os casos suspeitos da doença mas espécies silvestres que são criadas como ani-
devem ser comunicados aos órgãos de vigilância mais de estimação, como os papagaios, cacatuas
oficiais (Inspetorias Veterinárias), que enviarão e periquitos (Psitaciformes). Além disso, espécies
médicos veterinários para realizar a coleta de silvestres, atualmente criadas como animais de
material de animais suspeitos. Esse material será produção, como emas (Rheiformes) e avestruzes
enviado para um laboratório credenciado pelo (Struthioniformes), também podem ser infectadas
Ministério para realizar o diagnóstico (LARA naturalmente.
– Campinas; EMBRAPA Suínos e Aves). No caso O primeiro caso de isolamento do vírus da
da confirmação do resultado positivo, serão to- influenza de aves silvestres foi realizado na Áfri-
madas as medidas descritas no manual do Pro- ca do Sul, no ano de 1961. Nesse caso, uma cepa
grama Nacional de Sanidade Avícola (Disponível de alta virulência causou doença e morte em um
em: http://www.agricultura.gov.br/). grande número de andorinhas-do-mar naquele
país. Apesar deste isolamento inicial, as evidên-
6.4 Influenza em aves silvestres cias sugerem que cepas de alta patogenicidade
não circulam geralmente entre as aves silvestres,
Aparentemente as aves silvestres, principal- uma vez que os demais isolamentos realizados a
mente as aquáticas e migratórias, são os princi- partir de aves silvestres resultaram na detecção
pais reservatórios dos vírus da influenza aviária das cepas de patogenicidade média. Com a exce-
circulantes no mundo. Cepas de média patoge- ção de alguns casos, em que provavelmente aves
nicidade já foram isoladas de, aproximadamente, silvestres se infectaram a partir de aves domés-
100 espécies de aves. Nessas espécies, vírus com ticas, as cepas altamente patogênicas somente
os 16 tipos de HA e com os nove possíveis tipos foram novamente detectadas causando doença
de NA circulam em aparente equilíbrio com os em aves silvestres no ano de 2002, em gansos na
seus hospedeiros. As aves aquáticas pertencentes China (cepa H5N1 que atualmente está causan-
às ordens Anseriforme e Chradriiforme represen- do epidemia na Eurásia). Além de ser patogênica
tam o maior reservatório natural desses vírus. para aves domésticas, humanos e outras espécies
O vírus já foi isolado também de aves terrestres, de mamíferos, o vírus H5N1 também são patogê-
mas essas espécies parecem não possuir um pa- nicos para algumas espécies silvestres.
pel maior na manutenção do vírus na natureza. Várias espécies de aves das quais o vírus
Na maioria dos casos, o vírus influenza infecta H5N1 foi isolado pertencem a espécies que rea-
e se perpetua nessas espécies sem causar doen- lizam longas migrações em diferentes épocas do
ça, ou seja, produz infecções predominantemente ano, principalmente no período de inverno, nas
subclínicas. Outro aspecto interessante na infec- regiões localizadas no Hemisfério Norte. As ro-
ção pelo vírus da influenza nessas espécies é que tas de migração podem diferir entre as espécies,
o vírus permanece geneticamente estável, com compreendendo desde curtos movimentos lo-
poucas mutações, por longos períodos de tempo. cais até migrações intercontinentais. Essas rotas
Orthomyxoviridae 749

migratórias não estão totalmente elucidadas, e ressortimento ao infectar células de outro mamí-
um dos aspectos preocupantes é a possibilidade fero (geralmente suíno), concomitantemente com
de pontos comuns de parada existentes para as vírus de origem humana nas pandemias de 1957
espécies, o que permitiria um contato entre um e 1968. Estudos recentes de Biologia Molecular
grande número de aves da mesma e de diferen- indicam que a pandemia de influenza de 1918,
tes espécies. Este contato poderia facilitar ao ví- conhecida como gripe espanhola, foi causada por
rus ser carreado a regiões novas onde ainda não um vírus aviário que teria sofrido algumas muta-
circula. ções e se adaptado ao organismo humano, sem o
Estudos realizados em patos silvestres no processo de ressortimento.
Canadá demonstraram que a perpetuação do ví- Até 1997, não havia evidência de que vírus
rus influenza nessas aves relaciona-se com a pas- do subtipo H5 poderiam infectar e causar doença
sagem do vírus de aves adultas para aves jovens grave em pessoas. Até então, apenas três casos de
em lagos, antes da migração. Um dos aspectos transmissão direta de vírus aviários para huma-
relevantes é a grande quantidade de vírus que é nos haviam sido relatados, todos eles envolvendo
excretado nas fezes das aves. Essas fezes conta- vírus do subtipo H7. Por isso, não se considerava
minam principalmente a água de lagos e lagoas, que os vírus da influenza aviária poderiam repre-
onde um grande número dessas aves permanece, sentar risco à saúde pública. Acreditava-se que a
facilitando a transmissão pela rota fecal/oral ou diferença de especificidade de receptores para os
fecal/cloacal na superfície da água. Ficou deter- vírus aviários e humanos se constituía em uma
minado que o vírus permanece viável por um pe- eficiente barreira que limitava a transmissão de
ríodo de 4 dias a 22°C e pelo período de 30 dias vírus entre aves e pessoas. Este conceito sofreu
a 0°C. uma mudança drástica com o surgimento dos ví-
rus H5N1, que foram transmitidos diretamente
6.5 Vírus da influenza H5N1 de aves para humanos, em 1997, em Hong Kong,
resultando na morte de seis das 18 pessoas infec-
A grande maioria dos vírus da influenza A tadas.
que circulam nas populações silvestres de aves A origem desses vírus ocorreu poucos anos
aquáticas e migratórias é apatogênica e permane- antes, quando surgiram os primeiros vírus des-
ce razoavelmente estável geneticamente ao longo se subtipo que foram capazes de, inicialmente,
do tempo nessas espécies. Mesmo os subtipos H5 causar doença e mortalidade em gansos e, pos-
e H7 eram considerados benignos para os seus teriormente, serem transmitidos a humanos. Es-
hospedeiros naturais até há pouco tempo. No en- ses vírus de gansos adquiriram segmentos genô-
tanto, a transmissão desses vírus para outros hos- micos de proteínas internas e não-estruturais de
pedeiros – mamíferos ou aves domésticas, por vírus de perdizes, e o gene da NA de um vírus
exemplo – é seguida de rápida evolução genética de marrecos/patos e, posteriormente, dissemi-
e freqüentemente por aumento na patogenicida- naram-se nos mercados de aves em Hong Kong.
de e virulência. A erradicação de toda a população de galinhas
O vírus da influenza aviária pode, ocasio- domésticas de Hong Kong foi capaz de conter a
nalmente, tornar-se patogênico para humanos epidemia.
mediante dois mecanismos genéticos principais: No entanto, outros vírus resultantes de res-
ressortimento, que se caracteriza pela troca de sortimento continuaram a ser gerados e dissemi-
segmentos genômicos (genes) entre dois vírus nados a partir das populações de gansos e mar-
durante uma infecção mista, ou através de muta- recos/patos silvestres, contendo a mesma H5 e
ções nos diferentes genes internos que permitam diferentes combinações de genes/proteínas inter-
a infecção de células humanas. As grandes pan- nas. Os vírus H5N1 continuaram a evoluir e, em
demias de influenza humana, ocorridas no século 2002, um subtipo único, denominado genótipo Z,
XX, tiveram o envolvimento de vírus de origem foi responsável por grande mortalidade de aves
avícola (ver Figura 28.7). Esses vírus sofreram aquáticas domésticas e silvestres em Hong Kong.
750 Capítulo 28

Este vírus continuou a circular de forma endê- Até início de 2007, apesar das centenas de ca-
mica no Sul da China, principalmente em patos sos humanos registrados e dos freqüentes regis-
e marrecos domésticos. No final de 2003 e início tros de doença causada por vírus H5N1 em aves
de 2004, foram relatados surtos de infecções pelo silvestres e domésticas de vários países asiáticos,
H5N1 simultaneamente em vários países asiáti- África, Oriente Médio e Europa Oriental, não ha-
cos. O vírus foi detectado no Vietnã, Tailândia, via evidência de transmissão do vírus entre pes-
Indonésia, Camboja, Laos, Coréia, Japão e Chi- soas. Ou seja, os casos de infecção humana foram
na. Os surtos foram aparentemente controlados, originados da exposição direta ou indireta de
mas, em agosto de 2004, o vírus foi detectado na pessoas a aves infectadas. Isto explicava porque
Malásia. os casos humanos se restringiam a poucas pesso-
Vários estudos moleculares do vírus H5N1 as, geralmente membros de uma mesma família.
foram realizados no período de 2000-2004 de iso- A capacidade dos vírus aviários serem transmi-
lados humanos e de aves nos países asiáticos. O tidos entre pessoas e de replicar eficientemente
seqüenciamento desses isolados demonstrou que no trato respiratório de humanos está associada
uma série de ressortimentos, envolvendo o vírus com duas proteínas e funções principais: HA e
inicialmente detectado em gansos, deu origem a PB2. Alterações na HA permitem ao vírus se ligar
um genótipo de H5N1 dominante (genótipo Z) em receptores que contêm ácido siálico com liga-
entre galinhas e perus. A evolução do vírus H5N1 ção α2,6, que estão presentes no epitélio do trato
potencializou sua virulência e sua expansão en- respiratório superior e, assim, iniciar a infecção.
tre hospedeiros susceptíveis. Foi observado um Mutações específicas na PB2 (E para K na posição
aumento da virulência para espécies silvestres e 627) aumentam a capacidade do vírus replicar
também uma maior letalidade em camundongos em células de mamíferos e conferem uma vanta-
e furões infectados experimentalmente. O vírus gem para a replicação sob as temperaturas mais
tornou-se infeccioso para mamíferos, causando baixas do trato respiratório superior. Essas duas
mortes e sendo transmitido entre felinos selva- alterações são provavelmente necessárias, porém
gens como tigres e leopardos, e também entre insuficientes para a geração de vírus H5N1 pan-
gatos domésticos. dêmicos.
Surtos do H5N1 foram relatados em aves A grande preocupação de autoridades sani-
migratórias na China e na Mongólia em 2005, tárias de todo o mundo é a de que este vírus even-
e o vírus foi detectado principalmente em aves tualmente adquira a capacidade de ser transmiti-
oriundas do Lago Qinghai, localizado no Oeste do entre pessoas – como ocorre com os vírus da
da China. A propagação do vírus através dessas influenza A humanos – podendo, então, dissemi-
aves para outras regiões a oeste e sul é considera- nar-se rapidamente na população humana e cau-
da uma possibilidade. Nesse mesmo ano, o vírus sar uma pandemia mundial. Esta preocupação
foi isolado de cisnes na Croácia e, posteriormen- reveste-se de especial significado pela severidade
te, em 2006, no Irã, Azerbaijão, Casaquistão, Ge- da doença causada pelo H5N1 em humanos.
órgia e em outros 20 países europeus.
O vírus propagou-se da Ásia para a Euro-
6.6 Influenza em cães, felinos e outros
pa e África, causando a enfermidade e levando à
destruição de mais de 200 milhões de aves em vá- mamíferos
rios países. Até abril de 2007, a presença do H5N1
já havia sido relatada em quarenta países desses A constante evolução do vírus da influen-
três continentes. Ainda de acordo com o relato da za, por mutações, deleções e ressortimento, tem
Organização Mundial de Saúde (OMS–WHO) de permitido a adaptação a novos hospedeiros e a
abril de 2007, 291 já foram infectadas pelo H5N1 produção de doença severa em animais e huma-
e ocorreram 172 óbitos com comprovação labora- nos. A primeira descrição da infecção pelo vírus
torial da etiologia. da influenza em cães (H3N2) data de 1975-1976,
Orthomyxoviridae 751

sem a produção de sinais clínicos severos. Porém, demonstrou 160 cães e oito gatos soropositivos
em 2005, foi relatada a infecção de cães pelo vírus para o H5N1, indicando que esses animais foram
da influenza eqüina H3N8, ocorrendo casos fa- infectados naturalmente. Um caso fatal de H5N1
tais da doença nos EUA. Em felinos domésticos, a em um cão que ingeriu a carcaça de um pato in-
infecção experimental com o H3N2 de humanos, fectado na Tailândia foi relatado em 2006. As mu-
H7N3 de perus e H7N7 de focas (Phoc vitulina) foi tações e ressortimentos são comuns nos vírus da
demonstrada nos anos 1970 e 1980, observando- influenza tipo A, alertando para a possível trans-
se somente hipertermia e excreção de vírus. No missão entre espécies.
entanto, entre 2003 e 2007, foram relatados casos Além do H5N1, os cães são susceptíveis à
de infecção pelo H5N1 em felinos domésticos e infecção pelos vírus H3N2 de humanos e o H3N8
selvagens, resultando em mortalidade. de eqüinos. Crawford et al. (2005) demonstraram
Até há pouco tempo acreditava-se que os a ocorrência de doença respiratória aguda seve-
cães e gatos eram resistentes à doença causada ra em cães de corrida da raça greyhound na Fló-
pelos vírus da influenza tipo A. Porém, felídeos rida, EUA. Estudos retrospectivos com amostras
e canídeos têm sido, repetidas vezes, demonstra- de soro coletadas de cães de corrida entre 2000
dos susceptíveis à infecção com esses vírus. e 2003 demonstraram que a infecção já ocorria
naquele período. Amostras de soro coletadas de
cães em hospitais veterinários e canis em outras
6.6.1 Epidemiologia
regiões do país comprovaram a disseminação do
agente, a expansão geográfica e a persistência
As primeiras descrições de infecção pelo do vírus durante anos nessa espécie. A eficien-
H5N1 em gatos domésticos foram realizadas na te transmissão e adaptação do vírus aos cães su-
Tailândia, Alemanha, Áustria, China, Iraque e In- gerem que este agente pode se tornar enzoótico
donésia, durante surtos de influenza aviária. Fe- nessa espécie.
linos selvagens também são susceptíveis à infec- A infecção pelos vírus da influenza tipo A
ção. Dois tigres (Panthera tigris) e dois leopardos em canídeos e felídeos pode ocorrer por contato
(P. pardus) morreram após contraírem a infecção direto com aves infectadas ou, ainda, por conta-
por ingestão de carne crua de aves contaminadas. to indireto com uma fonte comum, contaminada
Em um zoológico da Tailândia, 147 tigres morre- com fezes de aves (H5N1), ou com secreção nasal
ram ou foram abatidos após apresentarem sinais de eqüinos (H3N8). A transmissão por carne crua
clínicos de influenza, e foi possível demonstrar a de aves é relatada principalmente para felinos.
transmissão horizontal do vírus entre os tigres. Nos felinos infectados, o H5N1 é encontrado na
Em 2005, três gatos civets morreram no Vietnã saliva, urina e/ou fezes.
após a infecção com o H5N1. Furões também são A evidência de infecção pelos vírus da in-
susceptíveis à infecção experimental e podem fluenza tipo A em animais domésticos, que pos-
servir de modelo para estudos com o H5N1. Es- suem amplo contato com humanos, é motivo de
tes animais desenvolvem sinais clínicos de infec- preocupação para a saúde pública, pela possibi-
ção respiratória e excretam o vírus em secreções lidade desses animais servirem como uma fonte
nasais. O H3N2 também pode replicar em furões, adicional de vírus, permitindo a transmissão a
porém apresenta menor patogenicidade. Felinos outros mamíferos e aumentando o risco de uma
e furões podem transmitir horizontalmente o pandemia de influenza humana.
H5N1. Essas espécies são criadas como animais
domésticos e possuem contato direto com pesso-
as, podendo servir como uma fonte eventual de
6.6.2 Patogenia, sinais clínicos
vírus para humanos. e patologia
A infecção pelo H5N1 possui importância
pelas taxas elevadas de mortalidade e letalidade O período de incubação que se segue à in-
em animais, além de possuir potencial zoonótico. fecção geralmente é curto, entre dois e cinco dias
Um estudo sorológico, realizado em Bangkok, em cães, tigres e gatos domésticos. As vias de in-
752 Capítulo 28

fecção são os tratos respiratório e digestório, e a Os cães que morrem após a infecção aguda
replicação inicial ocorre nos pneumócitos tipo II pelo H3N8 apresentam traqueíte, bronquite e
nos alvéolos pulmonares. Eventualmente, o vírus bronquiolite, infiltrado de células inflamatórias
atinge os rins, fígado, coração, encéfalo, intestino e broncopneumonia supurativa. Um cão infec-
grosso, glândula adrenal, baço e pâncreas de fe- tado pelo H5N1 apresentava congestão e edema
linos, o que demonstra a ocorrência de viremia. pulmonar, congestão no baço, fígado e rins; e, na
A excreção de vírus inicia no terceiro dia após a microscopia pneumonia intersticial, infiltrado de
infecção e permanece por mais de sete dias nos células inflamatórias, necrose hepática, nefrite e
animais que sobrevivem. As mortes geralmente degeneração tubular.
devem-se à hemorragia e necrose multifocal em
diferentes órgãos, associada com lesões pulmo- 6.6.3 Diagnóstico
nares.
Os sinais clínicos relatados em gatos e tigres A suspeita clínica de infecção pelo vírus da
após a infecção com o H5N1 são de hipertermia, influenza pode ser confirmada pela inoculação
de secreções nasais, orofaríngeas, amostras fe-
depressão, protusão da terceira pálpebra, con-
cais ou suspensões de tecidos suspeitos em célu-
juntivite, dificuldade respiratória, descarga nasal
las MDCK ou, ainda, no saco alantóide de ovos
serosanguinolenta e icterícia em casos de hemor-
embrionados de 10 dias. Clinicamente, a infecção
ragia difusa. Sinais neurológicos, incluindo con-
em cães é muito semelhante aos sinais observa-
vulsões e ataxia, são consistentes com lesões no
dos na tosse dos canis, porém a ocorrência de
encéfalo. A morte ocorre dois dias após o início
hemorragias e sinais mais severos pode diferen-
dos sinais em casos severos, porém infecções sub-
ciar a etiologia da doença. Felinos com influenza
clínicas também são relatadas. As infecções por apresentam sinais semelhantes aos apresentados
outros vírus da influenza tipo A em gatos produz na síndrome do trato respiratório superior.
hipertermia e sinais brandos de infecção respira- A confirmação laboratorial da infecção pelos
tória, com excreção de vírus pela secreção nasal. vírus da influenza pode ser realizada por IHQ,
Cães infectados com o H3N8 podem apre- hemaglutinação associada com HI e RT-PCR em
sentar doença respiratória aguda, caracterizada tempo real. Testes sorológicos como HI e soro-
por sinais brandos, como hipertermia e tosse por neutralização (SN) também podem ser utiliza-
10 a 14 dias, ou morte hiperaguda associada com dos.
hemorragias no trato respiratório. A taxa de mor-
talidade foi de 36% em um surto de H3N8 em cães
6.6.4 Controle e prevenção
de corrida nos EUA. Já o H5N1 pode ser detecta-
do em amostras de pulmão, fígado e rins de cães
A principal forma de prevenir a doença é
infectados, demonstrando que esse vírus pode se
evitar o contato de cães e gatos com aves e fe-
disseminar sistemicamente nessa espécie.
zes de animais contaminados (no caso do H5N1)
Na necropsia, tigres e gatos domésticos in-
ou com eqüinos e/ou utensílios e instalações (no
fectados com o H5N1 apresentam congestão e
caso do H3N8), nas regiões onde ocorrem surtos
hemorragias petequiais nos pulmões, exsudato
de influenza aviária ou eqüina. A Organização
serosanguinolento na traquéia e nos brônquios,
Mundial para Alimentos e Agricultura (FAO)
efusão pleural, congestão no encéfalo, conjun-
organizou uma série de recomendações para os
tivite, congestão renal e hemorragia intestinal. proprietários de animais de companhia em áreas
Microscopicamente, observam-se meningoence- onde ocorrem surtos de gripe aviária. Em zooló-
falite não-supurativa, gliose, vasculite e conges- gicos, felinos selvagens devem ser alimentados
tão no encéfalo, necrose multifocal no fígado, tu- com carne de aves sabidamente negativas para
bulonefrite, depleção linfóide no baço, edema e o vírus. Outros animais selvagens e marinhos,
hemorragia severa nos pulmões e outros órgãos. mustelídeos, suínos e gatos civets também podem
Há, ainda, perda do epitélio alveolar e bronquio- ser infectados pelo H5N1 e servir como fonte de
lar com infiltrado de células inflamatórias. transmissão.
Orthomyxoviridae 753

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BUNYAVIRIDAE
Fernanda S. F. Vogel1 29
1 Introdução 757

2 Classificação 757

3 Estrutura do vírion e do genoma 757

4 Replicação 759

4.1 O ciclo replicativo 759


4.2 Expressão gênica e replicação do genoma 760

5 Biologia e patogenia 762

6 Buniavírus de interesse veterinário 762

6.1 Vírus da febre do vale Rift 762


6.1.1 Epidemiologia 762
6.1.2 Patogenia e sinais clínicos 764
6.1.3 Diagnóstico 765
6.1.4 Tratamento 765
6.1.5 Controle e profilaxia 765

6.2 Vírus da doença de Akabane 765


6.3 Hantavírus 767
6.4 Vírus da doença das ovelhas de Nairobi 769
6.5 Febre hemorrágica da Criméia-Congo 770

7 Bibliografia consultada 771

1
Mariana Sá e Silva colaborou com a seção 6.2 (Hantavírus), e Eduardo Furtado Flores com as seções 6.4 (Doença
das ovelhas de Nairobi) e 6.5 (Febre hemorrágica da Criméia-Congo).
1 Introdução 2 Classificação

A família Bunyaviridae contém o maior nú- A família Bunyaviridae compreende mais de


mero de vírus animais, abrigando centenas de es- 300 vírus agrupados em cinco gêneros: Ortho-
pécies virais isoladas principalmente de insetos. bunyavirus, Phlebovirus, Hantavirus, Nairovirus e
Os vírions são grandes, envelopados e possuem Tospovirus. Vários membros dessa família estão
como genoma três moléculas de RNA de polari- associados com doenças hemorrágicas severas,
dade negativa. A maioria desses vírus foi isolada como o vírus da febre do vale Rift (Phlebovirus),
de insetos ou de animais silvestres, sem estarem vírus da febre hemorrágica da Criméia-Congo
necessariamente associados com doença. Alguns (Crimean-Congo hemorrhagic fever virus, um Nai-
buniavírus causam doença severa em humanos e rovirus), Hantaan, Sin Nombre e outros vírus re-
vários deles são zoonóticos. Dos cinco gêneros da lacionados (Hantavirus) e, mais recentemente, a
família, apenas os membros do gênero Hantavirus Garissa, cujo agente identificado é o vírus Ngari
não são transmitidos por insetos, os demais são (Orthobunyavirus). O gênero Tospovirus abriga so-
arbovírus. Este gênero abriga o hantavírus, um mente vírus de plantas. Cada gênero da família
vírus zoonótico cujos hospedeiros naturais são Bunyaviridae inclui múltiplos sorotipos. Com ex-
roedores silvestres. Em humanos, a hantavirose ceção dos hantavírus, os vírus dos outros quatro
se manifesta sob duas formas, por apresentar ca- gêneros são arbovírus, ou seja, são transmitidos
racterísticas epidemiológicas e clínicas distintas. por vetores (mosquitos, flebótomos ou carrapa-
No sudeste asiático, a doença é endêmica e ma- tos). Os hantavírus infectam naturalmente roedo-
nifesta-se primariamente por insuficiência renal res silvestres e são transmitidos por contato direto
aguda, com alta morbidade e baixa mortalidade. ou indireto, ou, ainda, pela inalação de aerossóis
Nas Américas, a doença apresenta ocorrência es- oriundos das excreções destes animais.
porádica e se manifesta por insuficiência respira-
tória aguda, com altos índices de letalidade. 3 Estrutura do vírion e do genoma
No Brasil, já foram isoladas dezenas de ví-
rus da família Bunyaviridae. Do ponto de vista Os vírions dessa família são, aproximada-
clínico e epidemiológico, o mais importante é o mente, esféricos e envelopados, com 80 a 120 nm
vírus Oropouche, que está associado com epi- de diâmetro. A superfície do envelope possui
demias na região amazônica. Esse vírus infecta projeções de 5 a 10 nm, formadas pelas glicopro-
primariamente humanos e, nessa região, o núme- teínas G1 e G2. O interior dos vírions contém três
ro de casos notificados é superado somente pela nucleocapsídeos de simetria helicoidal, cada um
dengue, reforçando a sua importância. A enfer- deles composto por um segmento de RNA conju-
midade é conhecida como febre do Oropouche e gado com proteínas (proteína N + polimerase L)
é caracterizada por febre, cefaléia, mialgias, ar- (Figura 29.1). A composição química dos vírus foi
tralgias, anorexia, tonturas, calafrios e fotofobia. estimada em 2% de RNA, 58% de proteínas, 33%
Menos freqüentemente, a infecção pode cursar de lipídios e 7% de carboidratos.
com sinais neurológicos. Este vírus se mantém na Os buniavírus possuem um genoma seg-
natureza através de dois ciclos: um urbano e ou- mentado, composto por três moléculas de RNA
tro silvestre. Embora no Brasil o mais importante de fita simples e polaridade negativa. Em dois
vírus dessa família seja o Oropouche, deve-se sa- gêneros (Phlebovirus e Tospovirus), um desses
lientar que, para os animais, o mais importante e segmentos possui a estratégia ambissense de ex-
patogênico membro da Bunyaviridae é o vírus da pressão. A extensão dos três segmentos varia en-
febre do vale Rift (RVFV), agente restrito pratica- tre os diferentes gêneros. Os dois segmentos de
mente ao continente africano. polaridade negativa são denominados L (large =
758 Capítulo 29

grande), com 6.875 nucleotídeos (nt) e M (medium cimento para a polimerase viral (replicase) nos
= médio), com 4.458 nt (estes números se referem processos de transcrição e replicação.
ao vírus bunyawera). O terceiro segmento, ambis- Os vírions contêm algumas cópias da repli-
sense em alguns gêneros, é denominado S (small = case viral (polimerase de RNA dependente de
pequeno) e possui 961 nt. Seqüências de nucleo- RNA), denominada L, que possui massa de 240 a
tídeos complementares entre si estão localizadas 260 kDa e é codificada pelo segmento genômico
nas extremidades 5’ e 3’ dos RNA genômicos. de mesmo nome (L). As proteínas estruturais dos
Essa complementaridade permite o pareamento vírions são a ribonucleoproteína N (26,5 kDa), co-
entre bases e a formação de ligações estáveis não dificada no segmento S, e as glicoproteínas G1 e
covalentes, conferindo a esses segmentos a topo- G2 do envelope, codificadas no segmento M. Os
logia circular (Figura 29.1). Deve-se ressaltar que RNAs genômicos estão associados com múltiplas
esses segmentos não são contínuos – e, portanto, cópias da proteína N e com algumas cópias da
não se constituem em genomas verdadeiramente proteína L (RNA polimerase viral). As molécu-
circulares – apenas adotam essa topologia pelo las da proteína L interagem com as extremidades
pareamento das extremidades. Seqüências loca- dos segmentos de RNA genômicos e com as mo-
lizadas próximas às extremidades dos RNA ge- léculas da proteína N que recobrem o genoma,
nômicos também servem como sítios de reconhe- formando os nucleocapsídeos (Figura 29.1).

A B
G1+G2
Membrana
L lipídica
Nucleocapsídeos
M RNA
N
P
S

C Segmento L
3’- L (polimerase) - 5’

Segmento M
3’- G1/G2 G1/G2 - 5’

Segmento S NS
3’- N - 5’

Fonte: A) Dra Linda Stannard; www.uct.ac.za

Figura 29.1. Vírions e genoma da família Bunyaviridae. A) Fotografia de microscopia eletrônica de vírus do gênero
Phlebovirus (vírus da febre do Vale Rift); B) Representação esquemática de uma partícula vírica e seus componentes;
C) Estrutura do genoma. Segmentos L (grande); M (médio) e S (pequeno). No diagrama, está representada a
organização genômica de um phlebovírus.
Bunyaviridae 759

4 Replicação estão presentes no citoplasma da célula infectada


duas horas após a infecção. Algumas proteínas
As centenas de vírus da família Bunyaviri- sofrem modificações após a tradução. A tradu-
dae apresentam várias propriedades biológicas ção dos mRNAs do segmento M é realizada em
em comum; porém, por constituírem uma popu- ribossomos associados ao retículo endoplasmáti-
lação heterogênea, também apresentam muitas co rugoso (RER). A poliproteína codificada pelo
propriedades diferentes. Com exceção dos han- segmento M (precursora das glicoproteínas) é cli-
tavírus, os vírus dos outros gêneros são capazes vada, originando a G1 e G2 que, a seguir, serão
de replicar tanto em células de vertebrados (ou glicosiladas e modificadas no aparelho de Golgi.
plantas, no caso dos tospovírus) como de artró- Posteriormente, a transcrição completa
podes. Os efeitos da replicação nas células hospe- do genoma irá resultar na produção de RNAs
deiras variam com o vírus e com o tipo de célula. de sentido antigenômico, denominados cRNA
Em geral, a replicação em células de mamíferos (RNA complementar). Esses cRNAs não contêm
(e plantas) é citolítica; enquanto a replicação em cap e, portanto, não podem ser traduzidos. Os
células de artrópodes, geralmente, resulta em ci- RNAs servem apenas de molde para a síntese de
topatologia discreta ou ausente. cópias de RNA genômico. Todos esses processos
são realizados pelo complexo replicase (RNA po-
limerase viral + enzimas auxiliares). Etapas adi-
4.1 O ciclo replicativo cionais de transcrição e tradução ocorrem após a
replicação do genoma, amplificando a quantida-
A infecção se inicia pela ligação dos vírions de de RNA e proteínas virais. Durante o processo
com receptores na membrana celular por meio das de replicação, tanto as moléculas de cRNA como
glicoproteínas G1/G2. Nesse processo, a G1 pa- o RNA genômico permanecem associadas com
rece desempenhar um papel mais importante em múltiplas cópias da proteína N.
células de vertebrados; e a glicoproteína G2, nas A morfogênese dos vírions ocorre em eta-
células de artrópodes. Após a ligação, os vírions pas: inicialmente os RNAs genômicos recém-sin-
são internalizados por endocitose e se localizam tetizados são conjugados com cópias múltiplas
no interior de vesículas endocíticas. A fusão e pe- da proteína N, formando os nucleocapsídeos, aos
netração dependem de pH ácido, que determina quais se juntam algumas cópias da proteína L (po-
alterações conformacionais na G1 e/ou G2, fusão limerase). A próxima etapa envolve a interação
do envelope com a membrana endocítica e libera- dos nucleocapsídeos com as caudas citoplasmáti-
ção dos nucleocapsídeos no citoplasma. Durante cas das glicoproteínas, que estão localizadas nas
a transcrição e replicação, os segmentos de RNA membranas do aparelho de Golgi. Essa interação
genômicos nunca são completamente desnudos, resulta no brotamento dos nucleocapsídeos para
permanecendo associados com múltiplas cópias o lúmen do Golgi, processo pelo qual os vírions
da proteína N. adquirem o envelope. Os vírions já formados são
A primeira etapa após o desnudamento par- transportados no interior de vesículas do trans-
cial do genoma envolve a transcrição dos seg- Golgi até a membrana plasmática, onde são libe-
mentos genômicos de RNA negativo, originando rados para o meio extracelular por exocitose, sem
os RNA mensageiros (mRNA) que irão ser tradu- a necessidade de lise celular. No ciclo replicativo
zidos em proteínas. Estes mRNA contêm 5’ cap e de alguns buniavírus, os vírions podem realizar o
parecem não ser poliadenilados. A tradução dos brotamento diretamente na membrana plasmáti-
mRNAs dos segmentos L e S ocorre em ribosso- ca. O ciclo replicativo dos buniavírus está ilustra-
mos livres. As proteínas N e NSs dos Phlebovirus do de forma esquemática na Figura 29.2.
760 Capítulo 29

1
11

10

5a
3

5b
L

7
Golgi
4 M
9
S 6

5c 8

RER

Núcleo

Figura 29.2. Ciclo replicativo dos buniavírus. 1) Ligação aos receptores celulares; 2) Internalização por endocitose,
seguida de penetração por fusão do envelope com a membrana endocítica; 3) Desnudamento; 4) Transcrição dos
segmentos de polaridade negativa e produção de mRNAs; 5a) Tradução dos mRNAs e produção de proteínas
envolvidas na replicação do genoma e de proteínas estruturais (5b, 5c); 6) Replicação do genoma; 7) Formação dos
nucleocapsídeos; 8) Transporte das glicoproteínas do envelope para o aparelho de Golgi; 9) Brotamento dos
nucleocapsídeos para o interior do Golgi; 10) Transporte dos vírions em vesículas para a superfície celular; 11)
Egresso por exocitose.

4.2 Expressão gênica e replicação do a polimerase/replicase altera o modo de síntese e


genoma produz uma cópia de cRNA que não possui cap.
Essas moléculas servem de molde para a replica-
Os segmentos L de todos os gêneros e M ção, resultando na síntese de cópias de RNA com
(com exceção dos tospovírus) possuem sentido o sentido genômico (Figura 29.3A).
negativo, e a sua expressão e replicação segue os A estratégia de expressão do segmento S
princípios gerais dos vírus RNA de polaridade (ambissense) apresenta diferenças importantes
negativa (Figura 29.3A). A polimerase viral trans- em relação à expressão dos outros segmentos e
creve o segmento de RNA genômico, produzindo do restante da família (Figura 29.3B). Nos phle-
um mRNA com cap que será traduzido em pro- bovírus, a ORF (open reading frame) do gene da
teína. A extremidade 5’ dos mRNAs é formada nucleoproteína N está localizada na metade do
por segmentos de mRNAs com cap subtraídos segmento S, próxima à extremidade 3’, e o gene
de mRNAs celulares, a exemplo do que ocorre da proteína NSs está localizado na outra metade.
com os ortomixovírus. Em etapas subseqüentes, Esta proteína não-estrutural NSs (7,4 kDa) pos-
Bunyaviridae 761

sui função pouco conhecida. A primeira etapa é proteína (N) no sentido do mRNA de sentido po-
a transcrição da primeira metade do gene, origi- sitivo clássico; e a proteína NSs é codificada por
nando um mRNA que codifica a proteína N. Este um RNA com o sentido do genoma. Essa estra-
mRNA será traduzido em proteína. A seguir, este tégia ambissense é observada no segmento S dos
segmento genômico é replicado em toda a sua phlebovírus e tospovírus e no segmento M dos
extensão pela RNA polimerase, originando um tospovírus. Neste último caso, os genes das pro-
RNA de sentido antigenômico (sentido positivo). teínas G1 e G2 estão localizados na metade 3’ do
Este RNA possui duas funções: a) serve de molde genoma e as proteínas são codificadas pela estra-
para a síntese de uma cópia de RNA de sentido tégia usual dos vírus RNA de sentido negativo
genômico (replicação) e b) a metade próxima à (semelhante à proteína N do segmento S). O gene
extremidade 5’ é transcrita, originando um RNA da proteína Nsm está localizado na região pró-
que corresponde ao gene da proteína NS. Por ser xima à extremidade 5’ do genoma e é expresso
transcrito a partir de um RNA de sentido posi- a partir de um RNA complementar, produzido
tivo (antigenômico), esse RNA possui o mesmo pela transcrição da região correspondente do
sentido do genoma (sentido negativo). No entan- RNA antigenômico. Os arenavírus também uti-
to, este RNA serve de mRNA e é traduzido na lizam a estratégia ambissense para expressar as
proteína NS, ou seja, o segmento S codifica uma suas proteínas.

A B
Proteína NSs
RNA complementar (+)
5’- - 3’
Tradução
mRNA
Replicação
RNA genômico (-) 3’- -5'
3’- - 5’
cRNA (+) Transcrição (3)
Transcrição
N
mRNA (+) 5’- - 3’
5’ - 3’ NSs
Replicação (2)
Tradução
RNA genômico
N NSs
3’- - 5’
Proteínas
Transcrição (1)
mRNA N
5’- - 3’
Tradução

Proteína N

Figura 29.3. Estratégia de expressão gênica e replicação do genoma dos membros da família Bunyaviridae. A)
Estratégia de expressão do segmento L nos membros dos quatro gêneros; e do segmento M para os membros dos
gêneros Bunyavirus, Hantavirus, Nairovirus e Phlebovirus; B) Estratégia ambissense de expressão gênica, que ocorre
no segmento M dos tospovírus e no segmento S dos tospovírus e phlebovírus. No diagrama, está representada a
expressão do segmento S dos phlebovírus.
762 Capítulo 29

5 Biologia e patogenia animais de produção podem levar a importantes


perdas econômicas. O vírus (Rift Valley fever vi-
Os buniavírus utilizam uma ampla varieda- rus, RVFV) é transmitido para os mamíferos pela
de de hospedeiros, incluindo diferentes espécies picada de insetos e, por isso, é considerado um
de mamíferos (e plantas no caso dos tospovírus) e arbovírus. A infecção nos ruminantes é caracteri-
gêneros de artrópodes. Uma vez que os buniaví- zada por altas taxas de abortos, alta mortalidade
rus replicam em insetos, pode ocorrer a transmis- em neonatos e hepatite necrótica. Essa enfermi-
são transovariana nesses vetores, o que permite a dade é também conhecida como hepatite enzoó-
manutenção do agente durante estações frias. tica de ovinos e caprinos.
A patogenia dos buniavírus é variada, uma O agente etiológico foi isolado inicialmente,
vez que existem diferentes grupos de vírus den- em 1931, de uma ovelha infectada no vale Rift,
tro da mesma família, mas geralmente a inocu- do Quênia, daí a sua denominação. O RVFV
lação do agente pela picada do inseto vetor de- pertence ao gênero Phlebovirus. Aparentemente,
termina uma viremia transiente, e a replicação os isolados de campo não apresentam variações
e amplificação do vírus ocorre nos órgãos-alvo, antigênicas marcantes, e a detecção de diferenças
que varia conforme os diferentes buniavírus. A entre isolados pode exigir a análise genética. O
patogenicidade e virulência também variam de vírus é sensível a desinfetantes, solventes lipídi-
acordo com o vírus. As infecções de vertebrados cos e a pH baixo. Sob pH neutro ou levemente
pelos buniavírus variam em severidade, incluin- alcalino, e na presença de proteínas (no soro, por
do desde infecções inaparentes até doenças seve- exemplo), o vírus preserva a infectividade duran-
ras e mesmo fatais. te várias semanas. Em aerossóis, a vida média de
infectividade é de, aproximadamente, 90 minutos
6 Buniavírus de interesse veterinário a 25°C. Embora a principal forma de transmissão
seja através de picadas de insetos, pessoas já fo-
Embora vários membros da família Bunyavi- ram infectadas por aerossóis produzidos durante
ridae sejam capazes de infectar e causar doença em o abate, pela manipulação de fetos abortados, du-
hospedeiros vertebrados, a infecção de animais rante necropsias e procedimentos laboratoriais.
domésticos é, na maioria das vezes, acidental e
não possui importância na manutenção desses 6.1.1 Epidemiologia
vírus na natureza. Alguns buniavírus possuem
importância apenas regional e não serão tratados O RVFV apresenta algumas peculiaridades
neste texto. A seguir, serão apresentadas as doen- epidemiológicas que favorecem a sua manuten-
ças causadas por dois vírus que possuem alguma ção e disseminação na natureza. Esse vírus pode
repercussão como patógenos animais: o vírus da ser transmitido por diferentes gêneros de mosqui-
febre do vale Rift (RVFV) e o vírus Akabane. O tos e também por flebotomídeos, além de ser um
RVFV é um vírus zoonótico, o que não tem sido vírus RNA e, como tal, é propenso a altas taxas
relatado para o Akabane até o presente. Ao final, de mutação. As mutações podem ter repercussão
será apresentado o hantavírus, um vírus zoonóti- antigênica pequena (drifts) ou grande (shifts) e
co de roedores silvestres que tem sido associado podem determinar um fenótipo de variabilidade
com doença humana de grande importância em antigênica e, assim, representar uma estratégia
vários continentes. de evasão do sistema imune.
A febre do vale Rift (RVF) é uma zoonose
6.1 Vírus da febre do vale Rift viral de grande importância na África. Esta enfer-
midade permaneceu restrita ao sul do Saara até
A febre do vale Rift (RVF) é uma enfermi- 1977, quando um grande surto ocorreu no Egito.
dade que afeta primariamente ruminantes, mas Um dos fatores incriminados como responsável
também afeta humanos, podendo ser severa pela disseminação do agente foi a fonte de água
nessas espécies. A morbidade e mortalidade em abundante nos canais construídos para grandes
Bunyaviridae 763

represas. Embora a doença estivesse restrita ape- Culex, Eretmapoites e Mansonia. Na América do
nas ao continente africano, em 2000, o vírus se Norte, foi demonstrado que os gêneros Aedes,
disseminou pela Península Arábica, produzindo Anopheles e Culex são capazes de transmitir o
dois surtos simultâneos na Arábia Saudita e no RVFV experimentalmente. Também foi demons-
Iêmen. trado que o Cullex pipiens, um importante inseto
Historicamente, os surtos de RVF ocorrem existente no Egito e que se alimenta preferencial-
em diferentes regiões da África em intervalos mente de animais febris, pode transmitir o vírus,
de 5 a 15 anos. O longo intervalo de ocorrência o que aumenta a probabilidade de transmissão
desses eventos provavelmente deve-se à redução do agente.
gradativa na susceptibilidade da população com Os casos clínicos são observados apenas
o decorrer do tempo. Por muitos anos, o reserva- quando existem condições propícias à presença
tório do vírus durante os períodos interepidêmi- dos vetores, aliado com a presença de hospedei-
cos foi desconhecido. Esse desconhecimento per- ros susceptíveis. Os surtos da enfermidade no
durou até que pesquisadores descobriram que vale Rift, no Quênia, apresentam uma associação
ovos do mosquito Aedes lineatopinnis, presentes estreita com a variabilidade climática interanual
no solo dos dambos, continham o RVFV. Os dam- observada nessa região.
bos são depressões no solo que alternam períodos A susceptibilidade à infecção está relaciona-
de plenitude hídrica em épocas de chuvas, com da com a raça, idade e com o status imunitário do
períodos de ausência de água em épocas de seca. animal. Os ovinos e os bovinos são as espécies
Quando essas depressões se enchem de água, os preferencialmente infectadas pelo RVFV e são
ovos eclodem, e as larvas infectadas se tornam considerados os grandes amplificadores dos ví-
mosquitos que contêm e podem transmitir o ví- rus. A doença severa é mais freqüentemente ob-
rus. Por isso, esses dambos são considerados os servada em animais jovens, em ovelhas exóticas
reservatórios de mosquitos (e do vírus). e em certas raças cruzadas de bovinos. Os cor-
Ao realizarem o repasto sangüíneo em ru- deiros e os bezerros são altamente susceptíveis, e
minantes, os mosquitos inoculam o vírus, que é, altas taxas de mortalidade são observadas nesses
posteriormente, amplificado no animal. Esse ani- animais. Os humanos são altamente susceptíveis
mal serve, então, de fonte de infecção para veto- a infecção pelo RVFV, e o vírus é transmitido
res de diferentes gêneros, que contribuem para para pessoas por meio de insetos e de aerossóis.
uma rápida disseminação do agente. Se a área Embora os humanos não sejam a espécie hospe-
que possui os mosquitos infectados apresenta deira natural, a viremia produzida é suficiente
animais susceptíveis, é provável a ocorrência de para transmitir o vírus aos vetores. Assim, os hu-
casos clínicos. Por outro lado, em muitas regiões manos podem se constituir em potenciais disse-
da África, a presença dos mosquitos e do vírus minadores da infecção em áreas livres.
é enzoótica e, assim, casos clínicos dificilmente Surtos de RVF estão geralmente associa-
são observados. Nessas regiões, a circulação do dos com chuvas, que favorecem a multiplicação
vírus tem sido monitorada pelo uso de animais dos insetos vetores. Chuvas localizadas são su-
sentinelas. ficientes para criar condições necessárias ao de-
Nos vetores, o vírus é transmitido pela via senvolvimento de um surto. A transmissão tran-
transovariana entre gerações. Uma característica sovariana do vírus em mosquitos infectados e a
peculiar é que o vírus pode permanecer “latente” amplificação do vírus em vertebrados asseguram
nos ovos dos mosquitos durante estações secas a manutenção da epidemia.
(períodos interepizoóticos). Quando os ovos in- Embora os ovinos e bovinos sejam as espé-
fectados pela via transovariana eclodirem, darão cies de animais domésticos mais freqüentemente
origem aos mosquitos transmissores do RVFV. afetadas, o RVFV pode infectar uma variedade
Na África, os principais vetores do RVFV de espécies, com conseqüências clínico-patológi-
são os mosquitos dos gêneros Aedes, Anopheles, cas variáveis (Tabela 29.1).
764 Capítulo 29

Tabela 29.1. Espectro e hospedeiros e conseqüências da infecção de diferentes espécies animais pelo RVFV.

Doença severa Doença severa,


Mortalidade Infecção Refratários
abortos viremia,
ap. 100% mortalidade
viremia à infecção
abortos
Cordeiros Ovelhas Macacos Eqüinos Cobaios

Bezerros Bovinos Camelos Gatos Coelhos

Cabritos Cabras Ratos Cães Suínos

Filhotes de cão Búfalos Esquilos Macacos Tartarugas

Filhotes de gato Humanos Sapos/rãs

Camundongos Galinhas

Hamsters Canários

Camundongos silvestres Pombas

Periquitos

6.1.2 Patogenia e sinais clínicos Em ovelhas prenhes, os sinais mais comumente


observados são os abortos. A taxa de mortalida-
de entre as ovelhas que abortam pode chegar a
A infecção pelo RVFV em animais não-pre- 20-30%.
nhes é freqüentemente inaparente. Surtos de abor- Os bezerros infectados pelo RVFV apre-
to e de mortalidade neonatal são freqüentemente sentam febre (40-41°C) e ficam apáticos. A taxa
observados quando o vírus infecta animais pre- de mortalidade pode chegar a 70%. Os bovinos
nhes. Em animais idosos, pode-se observar hepa- adultos desenvolvem febre, sialorréia, anorexia
tite, e a evolução da enfermidade freqüentemente e fraqueza. Alguns animais podem apresentar
resulta em morte. Em humanos, a infecção pode diarréia fétida. Nessa faixa etária, a taxa de mor-
causar encefalite, cegueira, febre hemorrágica. A talidade raramente excede 10%. Em vacas pre-
taxa de mortalidade pode chegar a 10%. nhes, o sinal mais evidente da infecção também
O período de incubação em animais recém- é o aborto.
nascidos é de, aproximadamente, 12 horas. Em Em humanos, os sintomas são semelhantes à
animais adultos, o período de incubação pode gripe, com febre (37,8-40ºC), cefaléia, dores mus-
ser de mais de três dias. Em humanos, o período culares, fraqueza, náuseas e fotofobia. A maioria
entre a infecção e o início dos sinais clínicos é de das pessoas se recupera em 4 a 7 dias. No entan-
4 a 6 dias. to, em algumas pessoas são observadas compli-
Os sinais clínicos da infecção dependem cações, como síndrome hemorrágica, icterícia e
da espécie infectada, assim como de condições hematemese, melena e petéquias nas mucosas.
fisiológicas, como a idade e gestação. Cordeiros Em 2 a 4 dias após a infecção, essas pessoas se
podem apresentar hipertermia entre 40 e 42ºC, tornam febris e geralmente morrem. Alguns in-
acompanhada de anorexia. A taxa de mortali- divíduos desenvolvem uma forma clínica de me-
dade em cordeiros de até uma semana de idade ningoencefalite. Outro sinal de complicação que
pode ser superior a 90%. Em cordeiros com mais pode ser observado é uma retinopatia, que pode
de uma semana, a taxa de mortalidade situa-se ao ser detectada de 5 a 15 dias após o pico febril. Es-
redor de 20%. Ovinos adultos desenvolvem febre sas pessoas freqüentemente irão apresentar defi-
(40-41ºC) com descarga nasal mucopurulenta. ciências visuais.
Bunyaviridae 765

6.1.3 Diagnóstico fecção. A movimentação de animais dessas áreas


para áreas livres durante os períodos de ativida-
Em áreas endêmicas ou de risco, deve-se de dos vetores deve ser restringida para preve-
suspeitar de RVF quando são observados os se- nir epizootias. O controle dos vetores em áreas
guintes eventos: a) altas taxas de aborto em ove- epizoóticas seria uma medida lógica, mas possui
lhas e vacas (pode atingir 100%); b) altas taxas pouca praticidade para áreas muito extensas. Du-
de mortalidade em cordeiros e em bezerros com rante as epizootias, todos os animais domésticos
menos de sete dias de idade; c) fetos abortados e susceptíveis devem ser vacinados para prevenir
neonatos com lesões no fígado; d) enfermidade a amplificação do vírus e a conseqüente reinfec-
semelhante à gripe em humanos, particularmente ção dos vetores.
naqueles com contato com animais; e) ocorrência As vacinas disponíveis comercialmente
de enfermidade durante período de ocorrência apresentam problemas de segurança e de eficá-
dos vetores; e) disseminação rápida. cia. As vacinas atenuadas têm produzido abortos
O diagnóstico da infecção é baseado na de- ou efeitos teratogênicos em fetos, além de não
tecção de antígenos virais e na pesquisa de anti- conferirem boa proteção adequada. Esses vírus
corpos em exames histopatológicos. Deve-se ter o vacinais são também patogênicos para humanos.
máximo cuidado na manipulação das amostras, As vacinas inativadas são seguras, mas não
uma vez que o RVFV pode infectar humanos e conferem proteção adequada. Recentemente, um
casos de infecção humana adquirida durante ne- mutante atenuado, produzido por passagem em
cropsias e procedimentos laboratoriais já foram células Vero, está sendo testado para utilização
descritos. Amostras de vírus para o isolamento em humanos. Esse vírus vacinal já foi testado em
podem ser coletadas de fetos abortados ou de ovinos e bovinos, e não causou efeitos adversos
animais febris. As amostras a serem coletadas em cordeiros recém-nascidos, em bezerros e em
incluem o fígado, baço, sangue, cérebro e soro. animais prenhes. Quando o vírus atenuado é ino-
Essas amostras podem ser submetidas ao isola- culado em fetos de bovinos através de laparos-
mento viral, a RT-PCR por extenso ou, ainda, à copia, esses fetos continuam o desenvolvimento
imunoistoquímica. Para a confirmação sorológi- normal e nascem soropositivos.
ca da enfermidade, pode-se realizar a sorologia As vacinas atenuadas induzem a formação
pareada, pelo uso do teste de soroneutralização de anticorpos neutralizantes de maior magnitude
(SN). Para pesquisa de anticorpos, a técnica de e duração do que aqueles induzidos por vacinas
ELISA pode ser utilizada, tanto para detecção de inativadas. Tanto as pessoas como os animais
IgM como de IgG. imunizados com vacinas inativadas necessitam
de revacinações anuais para a manutenção dos
6.1.4 Tratamento títulos de anticorpos. Títulos de anticorpos neu-
tralizantes de magnitude superior a 20 são consi-
Não existe tratamento para a RVF. No en- derados protetores.
tanto, estudos em macacos e em outros animais
têm demonstrado que a ribavirina é uma droga 6.2 Vírus da doença de Akabane
antiviral promissora para utilização futura em
humanos. Outros estudos sugerem que o interfe- A Akabane é uma doença vírica de rumi-
ron, imunomoduladores e plasma sangüíneo de nantes que determina importantes perdas econô-
fase convalescente podem auxiliar no tratamento micas em rebanhos reprodutores. As infecções,
de pacientes com a RVF. que são geralmente subclínicas em animais adul-
tos, podem resultar em perdas reprodutivas gra-
6.1.5 Controle e profilaxia ves quando ocorrem em fêmeas prenhes. Essas
perdas incluem abortos, nascimento de bezerros
Em áreas enzoóticas, a vacinação é o único fracos e inviáveis, além de malformações con-
método de prevenir as perdas causadas pela in- gênitas. O agente da doença Akabane é um ar-
766 Capítulo 29

bovírus pertencente ao grupo Simbu, do gênero A infecção de ruminantes adultos é geral-


Orthobunyavirus (vírus Akabane, AkV). Todos os mente subclínica. A viremia que se segue à in-
isolados do AkV apresentam alguma reativida- fecção geralmente ocorre entre os dias um e seis
de sorológica cruzada, de forma que não existem e persiste por um a nove dias. Os sinais da in-
diferentes sorotipos. Outros vírus relacionados fecção são observados apenas quando animais
com o vírus Akabane – Aino, Peaton, Tinaroo e prenhes são infectados. Nestes, são observados
Douglas – também estão associados com perdas sinais de doença reprodutiva, tais como: abortos,
reprodutivas. Nos EUA, uma síndrome similar nascimento de bezerros fracos e inviáveis, mal-
em ruminantes é causada pelo vírus do vale Ca- formações congênitas e distocias. O achado mais
chê, outro buniavírus, mas que não pertence ao freqüente e que mais chama a atenção é o nas-
grupo Simbu. cimento de animais com malformações. Os fetos
A doença de Akabane é comum nos trópicos infectados durante o primeiro trimestre de gesta-
e subtrópicos entre as latitudes 35ºN e 35ºS. É en- ção geralmente são viçosos e alertas, mas não ca-
dêmica no Norte da Austrália e surtos ocasionais minham. Embora alguns possam se desenvolver
ocorrem no Sul desse país quando existem condi- com assistência, são incoordenados, apresentam
ções para o vírus se disseminar. A enfermidade ataxia e podem apresentar paralisia em um ou
ocorre também no Japão, na Coréia, em Israel, no mais membros. Atrofia muscular, exoftalmia, ro-
Zimbabwe e em outros países da África. Evidên- tação de membro, produção excessiva de lágrima
cias sorológicas da infecção têm sido encontradas
são alguns dos sinais que podem ser observados.
em vários países da África, Ásia e em várias re-
Os fetos infectados no segundo terço gestacional
giões da Austrália.
normalmente apresentam artrogripose. As arti-
O vetor artrópode do AkV ainda não foi
culações são rígidas e não fazem flexão, e os mús-
definitivamente identificado, mas evidências
culos podem estar atrofiados. Torcicolo, escoliose
epidemiológicas indicam que o vírus seja disse-
e cifose também são freqüentemente observados.
minado por mosquitos. O vírus já foi isolado de
Alguns recém-nascidos podem apresentar anor-
várias espécies de mosquitos: Aedes vexans, Culex
malidades neurológicas além da artrogripose.
e Culicoides oxystoma no Japão; Anopheles funestus
Os animais nascidos muito fracos geralmente
no Quênia; Culicoides milnei e Culicoides imicola na
foram infectados tardiamente na gestação. Es-
África; Culicoides brevitarsis e Culicoides wadei na
tes animais podem se manter de pé e caminhar,
Austrália. O principal vetor parece ser o Culicoi-
mas apresentam anormalidades comportamen-
des brevitarsis. O vírus Akabane não é transmitido
tais como: reflexo de sucção fraco ou ausente,
por contato, nem por tecidos infectados, por ex-
sudatos ou por fômites. Além disso, o vírus pare- depressão, torpor, hiperexcitabilidade periódica,
ce produzir uma infecção aguda em ruminantes, surdez, nistagmo, incoordenação e cegueira. De-
sem a geração do estado de portador. formidades no crânio são freqüentes. A maioria
O AkV é capaz de infectar naturalmente dos animais que nascem assim morrem ou são
várias espécies de ruminantes, mas as perdas re- sacrificados pouco tempo após o nascimento. Em
produtivas são observadas apenas em bovinos, animais que nascem com sinais mais leves, estes
ovinos e caprinos. Em ruminantes selvagens, em- se acentuam gradativamente e os animais geral-
bora existam relatos de sorologia positiva, altera- mente morrem antes dos seis meses de idade.
ções congênitas ainda não foram observadas. No As malformações congênitas ocorrem mais
entanto, acredita-se que, assim como em rumi- freqüentemente quando os fetos são infectados
nantes domésticos, o vírus possa causar perdas durante o primeiro terço gestacional. Em ove-
reprodutivas nas espécies silvestres. Anticorpos lhas, essas alterações ocorrem quando os fetos
contra o AkV já foram detectados em espécies são infectados entre o 30º e 50º dia, dependendo
domésticas não-ruminantes, como eqüinos e ca- da virulência da cepa. Em vacas, malformações
ninos. Até o presente, anticorpos antivírus Aka- congênitas são evidenciadas quando a infecção
bane não foram detectados em humanos. fetal ocorre entre os 62 e 92 dias de gestação. Em
Bunyaviridae 767

cabras, quando a infecção fetal ocorre ao redor do A Akabane é uma enfermidade de notifica-
40º dia de gestação. ção obrigatória. Uma vez detectada a infecção em
A maioria dos animais presentes em áreas uma propriedade, esta entra em quarentena para
endêmicas desenvolve uma resposta imune pro- desinfecção. Como o vírus Akabane não parece
tetora contra o vírus. Os surtos de distúrbios ser transmitido diretamente entre os animais, o
reprodutivos normalmente ocorrem em áreas controle é baseado no combate a vetores que pos-
de instabilidade, quando existem condições fa- suam potencial para atuarem como transmissores
voráveis para a disseminação do vírus entre os do vírus. As medidas recomendadas incluem o
animais susceptíveis. Fêmeas prenhes, quando uso de pesticidas e procedimentos para minimi-
introduzidas em áreas endêmicas, são muito zar o contato de insetos com os animais. Se a de-
susceptíveis. Após a infecção inicial, no entan- sinfecção for necessária, utilizam-se desinfetantes
to, adquirem imunidade e estão protegidas nas – como o hipoclorito – detergentes, compostos à
próximas gestações. Além disso, vacinas são dis- base de cloro, álcool, fenol e desinfetantes comer-
poníveis em alguns países, reduzindo o risco de ciais. Para prevenir a infecção de fêmeas prenhes,
infecção em fêmeas gestantes introduzidas em as fêmeas do rebanho devem ser vacinadas anu-
áreas endêmicas. almente antes da estação de monta.
O diagnóstico da infecção é comumente rea- Diferentes vacinas são disponíveis nos pa-
lizado por testes sorológicos. Anticorpos podem íses que apresentam a infecção. No Japão, uma
ser detectados no soro do feto ou dos bezerros vacina inativada e outra atenuada estão dispo-
antes da ingestão do colostro. Outros fluidos níveis comercialmente. Na Austrália, está sendo
corporais, como o liquor, também podem ser desenvolvida uma vacina inativada com resul-
utilizados para a pesquisa de anticorpos. Deve- tados promissores. No entanto, ainda não está
se salientar que a ausência de anticorpos no soro disponível comercialmente. A vacinação deve ser
fetal ou de recém-nascidos não descarta a infec- utilizada anteriormente ao potencial contato com
ção pelo vírus Akabane. Em adultos, a sorologia os vetores infectados, com o intuito de aumentar
é importante em áreas onde o vírus não é endê- o nível de anticorpos circulantes e, com isso, pre-
mico. A ausência de anticorpos na mãe descarta venir a infecção fetal.
a infecção no feto ou no neonato. Entre os testes
sorológicos utilizados para o diagnóstico da in- 6.3 Hantavírus
fecção, destacam-se: a SN, a imunodifusão em gel
de ágar (IDGA) e a inibição da hemaglutinação A hantavirose é uma enfermidade infeccio-
(HI). sa grave que afeta humanos, cujo agente possui
O isolamento do vírus Akabane pode ser roedores silvestres e domésticos como hospedei-
realizado pela inoculação de macerados de te- ros naturais e reservatórios. A enfermidade apre-
cidos em camundongos lactentes, em embriões senta duas formas clínicas: a febre hemorrágica
de galinha com quatro dias ou em uma varieda- com síndrome renal (HFRS) e a síndrome pul-
de de cultivos celulares. O vírus é identificado, monar por hantavírus (HPS), também conhecida
posteriormente, através de imunofluorescência como síndrome cardiopulmonar por hantavírus
(IFA) ou por neutralização com anti-soro espe- (CPSH). A HFRS foi descrita na década de 1950,
cífico. No entanto, o vírus é dificilmente isolado na Coréia e Rússia, e foi chamada inicialmente de
da placenta e dos tecidos dos fetos abortados. A febre hemorrágica da Coréia. Os sinais clínicos
chance de isolamento aumenta quanto menor for eram inicialmente semelhantes aos da gripe, se-
a imunidade do feto abortado. A partir de tecidos guidos de hipotensão, trombocitopenia e falência
maternos, o isolamento do vírus Akabane é mais renal. Em 1993, na região de Four Corners (Novo
difícil, porque as conseqüências da replicação vi- México, Arizona, Colorado e Utah), nos Estados
ral só são evidenciadas um longo período após a Unidos, foi descrita uma enfermidade com sinais
infecção. semelhantes aos da gripe e com comprometimen-
768 Capítulo 29

to respiratório grave, com mortalidade de até cipais portadores e disseminadores da enfermi-


50%, denominada HPS. O vírus envolvido com a dade. Apesar da ausência de sinais clínicos, in-
nova enfermidade foi classificado no gênero Han- fecções experimentais em roedores indicam que
tavirus e denominado Sin nombre. a viremia pós-infecção pode durar duas semanas,
O agente etiológico da enfermidade é um quando há disseminação do vírus pelos tecidos
vírus do gênero Hantavirus. O gênero possui do hospedeiro.
grande diversidade genética, razão pela qual iso- A patogenia tanto da HPS quanto da HFRS é
lados com características diferentes têm sido res- caracterizada por uma resposta imune exacerba-
ponsabilizados pelos surtos ocorridos em todo o da, que leva à liberação de citocinas envolvidas
mundo. Os principais causadores da HFRS são os no aumento de permeabilidade vascular. Os ví-
vírus Hantaan, Seoul, Puumala e Dobrava. rus possuem capacidade de se ligar em plaquetas
No Brasil, a HPS foi diagnosticada, pela pri- por receptores, levando essas plaquetas a serem
meira vez, em 1993, no município de Juquitiba, retiradas da circulação, provocando a trombocito-
estado de São Paulo. A enfermidade é de notifi- penia observada nas duas apresentações clínicas
cação compulsória, e até 2005 já haviam sido no- da hantavirose. Na HPS, ocorre ainda destruição
tificados 664 casos de hantavirose em humanos, de antígenos nas células endoteliais do coração
com 270 mortes, a maior parte dos casos ocorri- e tecidos linfóides. Os pulmões apresentam infil-
dos na região Sul do país. Até o momento não trados de linfócitos T/CD8, que produzem citoci-
nas, estimulando os macrófagos a produzir TNF,
existem relatos da HFRS no Brasil. Na Europa e
IL-1, IFN gama, que aumentam a permeabilidade
Ásia, os roedores das subfamílias Murinae e Ar-
vascular, levando à formação de edema pulmo-
vicolinae são os principais transmissores das han-
nar.
taviroses, principalmente os gêneros Apodemus
Após a inalação do agente, os sinais se ini-
e Clethionomys. Nas Américas, os transmissores
ciam entre 15 e 20 dias. Os sintomas da forma car-
pertencem à subfamília Sigmodontinae. No Brasil,
diopulmonar são febre, mialgias, cefaléia, além de
os roedores da espécie Bolomys lasiurus são res-
tosse seca e edema pulmonar. A HFRS apresenta
ponsáveis pela transmissão nos estados de São
sinais de trombocitopenia, diátese hemorrágica e
Paulo, Minas Gerais, Bahia, Goiás, Mato Grosso
insuficiência renal.
e Mato Grosso do Sul, enquanto os roedores da
O diagnóstico laboratorial é realizado pela
espécie Oligoryzomis nigripes são os responsá-
detecção de anticorpos específicos, principal-
veis nos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio
mente pela técnica de ELISA, para detecção de
Grande do Sul. IgM, e por imunofluorescência indireta (IFA). O
Os roedores eliminam o vírus pela urina, fe- isolamento viral não é muito utilizado em razão
zes e saliva. A transmissão para humanos ocorre da dificuldade de propagação do vírus em culti-
principalmente pela inalação de partículas des- vo celular.
secadas das fezes dos roedores contaminados. O tratamento para hantavirose é de supor-
A mordedura dos roedores infectados também te, e a letalidade depende do vírus envolvido, do
pode transmitir o vírus para humanos. A trans- tempo de início do tratamento e de fatores indi-
missão entre humanos não é freqüente, embora já viduais, como idade e imunidade do paciente.
tenha sido relatada em um surto da HPS causado Algumas vacinas inativadas contra a HFRS são
pelo vírus Andes, na Argentina, em 1996. Entre os utilizadas para os vírus Seoul e Hantaan, na Ásia,
roedores, a infecção é caracterizada pela ausência e, aparentemente, não promovem proteção con-
de sinais clínicos, e os animais estabelecem uma tra os hantavírus. Estudos são realizados para o
infecção persistente que se mantém por meses ou desenvolvimento de vacinas efetivas contra a for-
anos. Entre os roedores, o vírus é transmitido de ma cardiopulmonar e para a produção de vaci-
forma horizontal, principalmente por arranhões nas de DNA. O controle da enfermidade deve ser
e mordidas e também pela inalação de aerossóis realizado principalmente com medidas de sane-
com partículas virais. Estudos de prevalência em amento básico, controle de roedores e prevenção
roedores demonstram que os machos são os prin- de contato com esses animais.
Bunyaviridae 769

6.4 Vírus da doença das ovelhas de A enfermidade é caracterizada por gastren-


Nairobi terite hemorrágica aguda, que inicia com febre
alta e se segue com depressão, declínio da tem-
A doença das ovelhas de Nairobi (Nairobi peratura corporal e diarréia. Corrimento nasal
sheep disease, NSD) é uma doença viral não-conta- mucopurulento e dificuldade respiratória são
giosa de ovinos e caprinos, caracterizada por gas- freqüentemente observados. As fezes são inicial-
trenterite hemorrágica e alta mortalidade. O agen- mente liquefeitas, mas passam a conter muco e
te, um vírus classificado no gênero Nairovirus, da sangue com a evolução da doença. Casos suba-
família Bunyaviridae, é transmitido primariamen- gudos, em que os animais apresentam fraqueza
te por carrapatos Rhipicephalus appendiculatus. O e quadros recorrentes de diarréia; e casos supe-
vírus causador da NSD (NSDv) é antigenicamen- ragudos, em que os animais apresentam apenas
te distinto dos outros membros da Bunyaviridae, febre alta seguida de colapso e morte súbita, tam-
sendo mais relacionado com o vírus Ganjam, que bém têm sido relatados. Abortos também podem
afeta caprinos na Índia, e com o vírus Dugbe, iso- ocorrer associados com os surtos.
lado de bovinos no Oeste da África. Os vírus des- Os achados patológicos incluem hiperemia
ses três grupos compõem o gênero Nairovirus. A e petéquias da mucosa do abomaso, enterite he-
infecção pelo NSDV é restrita primariamente ao morrágica no ceco e porção anterior do cólon. A
Leste da África (Kênia, Uganda, Tanzânia, Somá- mucosa do intestino grosso pode estar recoberta
lia), onde se encontram os habitats do carrapato com petéquias e com conteúdo sanguinolento.
vetor. No entanto, sorologia positiva para vírus Hiperplasia generalizada nos órgãos linfóides
antigenicamente relacionados, além de casos clí- também é um achado comum. Fêmeas prenhes
nicos semelhantes, também foram relatados em podem apresentar hiperemia no trato genital,
ovinos no Congo e Etiópia. edema e hemorragias nas membranas fetais. Fe-
Dentre as espécies domésticas, o NSDV in- tos abortados apresentam petéquias e sufusões
fecta naturalmente apenas ovinos e caprinos, e em vários órgãos.
tentativas de reproduzir a infecção em animais Em áreas endêmicas, a maioria da popula-
de produção e de laboratório falharam. Acredita- ção de ovinos e caprinos é imune ao vírus, e a
se que uma espécie de rato africano, o Arvicatus enfermidade acomete principalmente animais
abysinicus nubilans, seja o hospedeiro natural do introduzidos a partir de áreas livres. De fato, os
agente. Existem algumas evidências de infecção surtos estão quase sempre associados com movi-
em humanos com sinais clínicos semelhantes à mento de animais susceptíveis para áreas de ocor-
gripe, embora o seu caráter zoonótico não tenha rência dos carrapatos vetores. Épocas de chuvas
sido bem documentado. De qualquer maneira, também favorecem a ocorrência da doença, pela
profissionais e pessoas envolvidas com o manejo maior população dos vetores.
e cuidados de animais doentes devem adotar me- O diagnóstico laboratorial pode ser realiza-
didas de biossegurança para evitar a exposição a do pelo isolamento do vírus a partir de plasma
aerossóis e outros materiais contaminados. ou sangue com anticoagulante, coletado durante
Na natureza, o vírus é transmitido prin- a fase aguda da doença. O vírus pode ser identifi-
cipalmente por carrapatos do gênero Rhipice- cado por imunofluorescência (IFA) realizada em
phalus appendiculatus, embora outros carrapatos cultivos celulares previamente inoculados com o
também possam transmiti-lo. Nos carrapatos, o material suspeito. O vírus replica bem em culti-
vírus é transmitido de forma transestadial, e os vos celulares de origem ovina, caprina e também
adultos podem abrigar o vírus por mais de dois de hamster. A inoculação intracerebral de camun-
anos. Após a inoculação de vertebrados duran- dongos lactentes é um método alternativo de
te o repasto sangüíneo, a infecção apresenta um diagnóstico, e o vírus pode ser identificado por
período de incubação de 4 a 15 dias. Em ovinos e IFA ou fixação de complemento.
caprinos inoculados experimentalmente, o perío- O diagnóstico diferencial deve considerar
do de incubação é inferior, entre 1 e 3 dias. doenças como a febre do vale Rift, antrax e algu-
770 Capítulo 29

mas intoxicações, peste dos pequenos ruminan- ovinos e pequenos mamíferos, como lebres e co-
tes e coccidiose. elhos silvestres. Sorologia positiva para o vírus
Animais que se recuperam da infecção de- tem sido detectada em várias espécies animais de
senvolvem imunidade sólida, que dura, prova- mamíferos silvestres e cativos do Sudeste e Sul
velmente, por toda a vida. Cordeiros e cabritos da África, indicando a sua ampla distribuição.
recém-nascidos parecem adquirir imunidade das Dentre as espécies soropositivas, incluem-se bo-
mães pelo colostro, o que os protege durante as vinos, ovinos, caprinos, eqüinos, cães, mamíferos
primeiras semanas de vida. Vacinas atenuadas, silvestres (74 espécies), além de algumas espécies
obtidas pela passagem do vírus em cultivos ce- de aves. Acredita-se que, na maioria, senão em
lulares ou por passagens em cérebros de camun- todas essas espécies, a infecção cause apenas fe-
dongos têm sido utilizadas, mas o seu uso tem bre transitória e, muitas vezes, pode ser absoluta-
sido matéria de debate. A maior restrição ao seu mente subclínica.
uso extensivo deve-se à variabilidade de respos- A doença é causada por um vírus pertencen-
ta ao vírus vacinal entre raças diferentes de ani- te ao gênero Nairovirus, classificado em um dos
mais. seis sorogrupos que formam o gênero. Vírus rela-
O controle da enfermidade baseia-se no cionados já foram identificados no Oriente Médio,
combate aos carrapatos, pelo uso de carrapatici- Ásia e antiga União Soviética. O vírus replica em
das, e nos cuidados com animais susceptíveis in- uma variedade de células primárias e de linha-
troduzidos em áreas endêmicas. Nestes animais, gem, incluindo Vero, BHK-21 e CER, nas quais
pode-se proceder a vacinação para evitar a ocor- produz citopatologia discreta e de difícil percep-
rência da doença. Os animais de áreas endêmicas ção. O isolamento e titulação do vírus geralmente
geralmente possuem imunidade conferida pela são realizados pela inoculação intracerebral de
infecção natural e são pouco susceptíveis à enfer- camundongos lactentes. O caráter zoonótico e a
midade. possibilidade de transmissão por contato colo-
ca o agente no nível de biossegurança 4 (BSL-4)
6.5 Febre hemorrágica da dentre os agentes patogênicos manipuláveis em
Criméia-Congo laboratório.
A exemplo de outros vírus do gênero, o
A febre hemorrágica da Criméia-Congo agente da CCHF é transmitido entre animais por
(CCHF) é uma enfermidade zoonótica causada carrapatos pertencentes a vários gêneros. O ví-
por um vírus do gênero Nairovirus e transmitida rus já foi isolado de aproximadamente 30 espé-
por carrapatos. A enfermidade foi identificada cies de carrapatos. No entanto, os carrapatos do
inicialmente na Criméia, em 1944, e, posterior- gênero Hyalomma parecem ser os principais en-
mente, no Congo, em 1956, derivando daí a sua volvidos na transmissão e manutenção do vírus
denominação. A doença é endêmica em vários em áreas endêmicas, podendo ser transmitido de
países da África e Ásia e tem sido descrita tam- forma transestadial nesses invertebrados. A dis-
bém em vários países da Europa Oriental e Orien- tribuição geográfica da enfermidade segue fun-
te Médio. Evidências sorológicas limitadas têm damentalmente a distribuição desses vetores. O
indicado a sua presença também em Portugal, vírus persiste nos vetores em todos os estádios de
França, Turquia, Egito e Índia. Em humanos, a seu desenvolvimento e é transmitido aos animais
infecção se caracteriza por febre, sinais semelhan- através da inoculação de saliva contaminada.
tes à gripe, prurido, freqüentemente seguidos Mamíferos infectados geralmente desenvolvem
de eventos hemorrágicos e hepatite necrosante. altos títulos de viremia durante aproximadamen-
Embora classicamente considerada uma zoono- te uma semana, período no qual o vírus pode ser
se, casos de CCHF em pessoas têm sido muito transmitido. Pessoas podem ser infectadas por
mais esporádicos do que a sua ocorrência em ani- contato direto com sangue, tecidos ou secreções
mais. Na natureza, o vírus infecta várias espécies desses animais ou, eventualmente, através da
de animais e causa febre e viremia em bovinos, picada de carrapatos. A maioria dos casos hu-
Bunyaviridae 771

manos relatados foi ocupacional, ou seja, afetou teção pessoal para minimizar o risco de contágio.
indivíduos envolvidos com atividades ligadas a Vacinas inativadas de uso humano, obtidas pela
pecuária ou a matadouros. A reduzida incidência passagem do vírus em cérebro de camundongos,
da doença humana, mesmo em áreas endêmicas já foram utilizadas em áreas endêmicas na antiga
e em indivíduos com alto risco de exposição, su- União Soviética, mas não se encontram disponí-
gere que a maioria das infecções é assintomática. veis para uso em larga escala.
Em pessoas, o período de incubação varia
de acordo com a forma de transmissão. Em indiví- 7 Bibliografia consultada
duos infectados pela picada de carrapatos, este
período varia entre um e três dias; após contato CHARLES, J.A. Akabane virus. The Veterinary Clinics of North
com sangue ou tecidos contaminados, o período America. Food Animal Practice, v.10, p.525-546, 1994.
varia entre cinco e seis dias, atingindo um máximo
DIXON, K.E. et al. Oropouche virus: Epidemiological
de 13 dias. Os sinais iniciais são típicos de viro- observations during an epidemic in Santarém, Pará, Brazil in
ses como a gripe, com cefaléia, mialgia, febre, dor 1975. The American Journal of Tropical Medicine and Hygiene,
nos olhos, fotofobia. Náuseas, vômitos e faringi- v.30, p.161-164, 1981.

te são observados com freqüência. Alterações de DROSTEN, C. et al. Rapid detection and quantification of RNA
comportamento, como agressividade e confusão of Ebola and Marburg viruses, Lassa virus, Crimean-Congo
mental, também têm sido relatados. Após dois ou hemorrhagic fever virus, Rift Valley fever virus, dengue virus,
três dias, esses sinais podem ser substituídos por and yellow fever virus by real-time reverse transcription-PCR.
Journal of Clinical Microbiology, v.40, p.2323-2330, 2002.
depressão, sonolência e dor abdominal, causada
por hepatomegalia. Casos agudos graves podem GEORGE, T.D.S.; STANDFAST, H.A. Diseases caused by
incluir eventos hemorrágicos, como petéquias e Akabane and related Simbu-group viruses. In: COETZER,
J.A.W.; THOMSON, G.R.; TUSTIN, R.C. (eds.) Infectious
sufusões em mucosas, melena, hematúria, epista-
diseases of livestock. Cape Town, South Africa: Oxford, 1994.
xe e sangramento das gengivas. Nestes casos, ge- Cap.70, p.681-687.
ralmente ocorre envolvimento hepático e renal,
GONZALEZ-SCARANO, F.; NATHANSON, N. Bunyaviridae.
acompanhado de insuficiência respiratória após
In: FIELDS, B.N.; KNIPE, D.M.; HOWLEY, P.M. (eds). Fields
o quinto ou sexto dia da doença. A mortalidade
Virology. 3.ed. Philadelphia, PA: Lippincott-Raven, 1996.
atinge 30% dos infectados e ocorre geralmente Cap.48, p.1473-1504.
durante a segunda semana da doença; indivídu-
HARTLEY, W.J. et al. Serological evidence for the association of
os que conseguem debelar a infecção se recupe-
Akabane virus with epizootic bovine congenital arthrogryposis
ram a partir do nono ou décimo dia. and hydranencephaly syndromes in New South Wales.
Para o diagnóstico, a enfermidade deve ser Australian Veterinary Journal, v.51, p.103-104, 1975.
considerada em áreas endêmicas sempre que
HIJELLE, B.; GLASS, G.E. Outbreak of hantavirus infection in
ocorrerem sinais semelhante à gripe, com apa- the Four Corners region of the United States in the wake of the
recimento súbito e curta duração, em pessoas 1997-1998 El Nino-southern oscilation. The Journal of Infectious
potencialmente expostas a material animal con- Diseases, v.181, p.1569-1573, 2000.
taminado ou a carrapatos. O prurido, que fre-
HUI, E.K. Reasons for the increase in emerging and re-emerging
qüentemente ocorre, direciona o diagnóstico, viral infectious diseases. Microbes and Infection, v.8, p.905-916,
assim como as petéquias e hematemese. O diag- 2006.
nóstico laboratorial é realizado pelo isolamento e
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com animais e subprodutos devem utilizar pro-
772 Capítulo 29

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REOVIRIDAE
Amauri A. Alfieri, Alice F. Alfieri,
Elisabete Takiuchi & Zélia Inês Portela Lobato
30
1 Introdução 775

2 Classificação 775

3 Gênero Orthoreovirus 777

3.1 Características do vírion e do genoma 777


3.2 Propriedades gerais 778
3.3 Orthoreovirus de mamíferos 779
3.4 Orthoreovirus aviários 779

4 Gênero Rotavirus 780

4.1 Classificação 781


4.2 Propriedades dos vírions, estrutura e organização genômica 782
4.3 Replicação 786

4.4 Enfermidades causadas por rotavírus 788


4.4.1 Patogenia e sinais clínicos 790
4.4.2 Imunidade 790
4.4.3 Diagnóstico 791
4.4.4 Controle e profilaxia 792

5 Gênero Orbivirus 793

5.1 Propriedades gerais 793


5.2 O vírion, o genoma e as proteínas virais 794
5.3 Replicação 796
5.4 Patogenia 797

5.5 Vírus da língua azul 798


5.5.1 Epidemiologia 798
5.5.2 Patogenia, sinais clínicos e patologia 800
5.5.3 Diagnóstico 802
5.5.4 Controle e profilaxia 802

5.6 Vírus da doença hemorrágica epizoótica dos cervídeos 803


5.6.1 Epidemiologia 803
5.6.2 Patogenia, sinais clínicos e patologia 804
5.6.3 Diagnóstico 804
5.6.4 Controle e profilaxia 805

6 Bibliografia consultada 805


1 Introdução ça em vertebrados. Destes, apenas os orbivírus e
rotavírus possuem importância em medicina ve-
A família Reoviridae é composta por vírus terinária. Não obstante, os vírus do gênero Ortho-
que infectam uma ampla variedade de hospedei- reovirus também possuem alguma importância
ros, incluindo invertebrados, plantas e vertebra- veterinária e serão abordados resumidamente.
dos. As infecções de vertebrados afetam princi- Embora compartilhem várias propriedades
palmente os tratos gastrintestinal e respiratório. estruturais, genéticas e biológicas, os diferentes
A denominação Reovirus é derivada das palavras gêneros que compõem a família Reoviridae tam-
Respiratory, Enteric e Orphan, sendo esta última bém apresentam diferenças importantes entre si.
denominação (órfãos) referente a vírus que não Por essa razão, os gêneros Orthoreovirus, Rotavi-
puderam ser associados com nenhuma doença rus e Orbivirus serão abordados separadamente.
conhecida. Embora vários desses vírus já tenham
sido relacionados recentemente com algumas do-
enças, o nome ainda persiste.
Os vírus que compõem essa família com- 2 Classificação
partilham as seguintes características: a) vírions
com simetria icosaédrica; b) ausência de envelo- A família Reoviridae é composta por 11 gêne-
pe glicoprotéico; c) genoma constituído por RNA ros, dos quais apenas cinco infectam vertebrados
fita dupla (dsRNA) segmentado; d) RNA genô- (Orthoreovirus, Orbivirus, Rotavirus, Coltivirus e
mico infeccioso somente quando associado com Aquareovirus). Destes, apenas os gêneros Orbivi-
as proteínas virais; e) transcriptase presente nos rus e Rotavirus ocasionam infecções que, por suas
vírions; e f) replicação no citoplasma da célula características epidemiológicas e pela gravidade
hospedeira. dos sinais clínicos, são consideradas importantes
O tipo e organização do genoma são as prin- em mamíferos. Alguns ortoreovírus também pro-
cipais características em comum dos vírus incluí- duzem infecções de alguma importância clínica
dos na família Reoviridae. O genoma desses vírus em humanos e animais (Tabela 30.1). Fotografias
é constituído por 10, 11 ou 12 moléculas de dsR- de microscopia eletrônica de vírions representa-
NA, ou seja, possuem o genoma segmentado. Em tivos dos ortoreovírus, rotavírus e orbivírus estão
geral, cada segmento genômico codifica uma pro- apresentados na Figura 30.1.
teína viral, mas há casos em que duas ou até três O gênero Aquareovirus contém diversos ví-
proteínas são codificadas pelo mesmo segmen- rus que já foram isolados de várias espécies de
to. Vírus com o genoma constituído por dsRNA peixes de água doce e salgada, ostras e outros
também podem ser encontrados em outras cinco moluscos. Com base em técnicas de hibridiza-
famílias virais. No entanto, somente duas (Reovi- ção (RNA-RNA), são descritas seis espécies de
ridae e Birnaviridae) possuem vírus que infectam aquareovírus, denominadas de A a F. Esses vírus
vertebrados. Destas, apenas os vírus da família apresentam uma grande especificidade de hospe-
Reoviridae produzem infecções em mamíferos. deiro, de acordo com a espécie viral. Tanto o po-
Os vírions dos membros da Reoviridae possuem tencial patogênico quanto o impacto econômico
uma arquitetura complexa: são desprovidos de da maioria das infecções ocasionadas pelos aqua-
envelope, possuem 60 a 85 nm de diâmetro, si- reovírus ainda não estão claramente definidos.
metria icosaédrica e capsídeo duplo. A exemplo O vírus da febre do carrapato do Colora-
da maioria dos vírus RNA, esses vírus realizam o do (Colorado tick fever virus, CTFV) é o protótipo
seu ciclo replicativo no citoplasma da célula hos- do gênero Coltivirus. O CTFV tem sido isolado
pedeira. de carrapatos, roedores e de seres humanos na
A família Reoviridae é bastante complexa com América do Norte. Um outro vírus, denominado
relação às suas características biológicas e mo- Eyach, também isolado de carrapatos e, possivel-
leculares. A família é composta por 11 gêneros, mente, de seres humanos na Europa (Alemanha
porém apenas cinco estão associados com doen- e França), apresenta reação cruzada em testes
776 Capítulo 30

de neutralização com o CTFV. Esses dois vírus, Mais recentemente, verificou-se que vários
que são facilmente distinguíveis, foram relatados isolados de coltivírus, provenientes da Indonésia
como sorotipos distintos e incluídos no subgrupo e da China, eram sorologicamente distintos dos
A dos coltivírus. coltivírus do subgrupo A. Em 2001, foi propos-

Tabela 30.1. Principais vírus da família Reoviridae associados com doenças em animais.

Gênero Vírus Espécies afetadas Doença

Orthoreovirus Reovírus de mamíferos 1-3 Isolado de vários Hepatoencefalomielite


mamíferos em camundongos

Reovírus aviários 1-11 Galinhas, perus e Artrite, nefrose, enterite,


gansos doença respiratória crônica,
miocardite

Rotavirus Rotavírus: vários, geralmente Virtualmente todas as Enterite


espécie-específicos espécies

Orbivirus Vírus da língua azul 1-25 Ovinos, bovinos e cervídeos Língua azul

Vírus da peste eqüina 1-9 Eqüinos, asnos, burros e Peste eqüina


zebras

Vírus da encefalose eqüina Eqüinos Aborto e encefalite


1-5

Vírus da doença epizoótica Cervos Doença epizoótica


hemorrágica dos cervos 1-7 hemorrágica

Vírus Ibaraki Bovinos Doença febril aguda,


similar a língua azul

Vírus Palyam 1-6 Bovinos Aborto, malformações


congênitas

Fonte: adaptado de Murphy et al. (1999).

A B C

Fonte: A) Dr. Stewart McNulty; qub.ac.uk; B) Dr C. Büchen-Osmond, ICTVdB; C) www.usask.ca

Figura 30.1. Fotografias de microscopia eletrônica de vírions representativos dos gêneros Orthoreovirus (A),
Rotavirus (B), e Orbivirus (C).
Reoviridae 777

to que fosse criado um novo gênero na família a 11). Com base em análises de seqüências genô-
Reoviridae para esses isolados asiáticos: Seadorna- micas e de proteínas, novas espécies de Ortho-
virus. Então, somente os vírus com características reovirus têm sido subseqüentemente descritas.
antigênicas do subgrupo A permaneceram no Atualmente são consideradas quatro espécies,
gênero Coltivirus. Nesse novo gênero, ainda não além de outras cepas virais em processo de re-
foram descritos isolamentos em animais. conhecimento como novas espécies. Algumas
A febre do carrapato do Colorado é uma das novas espécies, como o reovírus de babuíno,
zoonose que ocorre em uma região geográfica encontram-se filogeneticamente em uma posição
bem definida na América do Norte (Montanhas intermediária entre os reovírus de mamíferos e
Rochosas, estado do Colorado). Carrapatos do os aviários. Como o conhecimento acumulado
gênero Dermatocentor andersoni atuam como ve- sobre essas novas espécies e cepas virais ainda
tores biológicos do CTFV, e pequenos roedores é escasso e, principalmente, devido ao impacto
são os reservatórios do vírus. Em seres humanos, ainda não avaliado desses vírus na saúde animal,
a doença manifesta-se sob duas formas clínicas neste capítulo serão apenas consideradas as duas
distintas: uma forma branda, caracterizada por espécies clássicas de ortoreovírus: mamíferos e
sinais clínicos inespecíficos, como febre, cefaléia, aviários.
mialgia e leucopenia; e outra mais grave (5% dos
casos), na qual podem ser observadas meningo- 3.1 Características do vírion e do
encefalite e febre hemorrágica. genoma

3 Gênero Orthoreovirus As partículas virais dos reovírus de mamífe-


ros e de aves compartilham várias características
Os primeiros vírus dsRNA isolados dos em comum. Os vírions não-envelopados de sime-
tratos respiratório e entérico de seres humanos tria icosaédrica apresentam aproximadamente
e animais, alguns mesmo sem vínculo com do- 85 nm de diâmetro (ver Figura 30.1). O genoma
enças conhecidas, foram denominados generica- dsRNA, com aproximadamente 23.500 pares de
mente reovírus. Posteriormente, foram isolados bases (bp), é constituído por 10 segmentos que
e caracterizados outros vírus com genoma dsR- podem ser agrupados em três classes denomina-
NA segmentado, com características antigêni- das L (large), M (medium) e S (small), de acordo
cas, moleculares e clínicas distintas dos reovírus com a respectiva massa molecular. É possível a
originais (p. ex.: rotavírus e orbivírus) e que, por separação dos segmentos genômicos por eletro-
suas características semelhantes, também foram forese em gel de poliacrilamida, de acordo com
incluídos na família Reoviridae. Com o objetivo de a massa. Na classe L, encontram-se os segmentos
diferenciar os isolados primários (reovírus) dos genômicos 1, 2 e 3 (L1, L2 e L3); na classe M, os
novos vírus isolados, foi adicionado o sufixo or- segmentos 4, 5 e 6 (M1, M2 e M3) e, na classe S, os
tho aos isolados iniciais de reovírus, que constitu- segmentos 7, 8, 9 e 10 (S1, S2, S3 e S4).
íram, então, o gênero Orthoreovirus. Os membros O genoma dos reovírus codifica 12 prote-
deste gênero são comumente chamados de reo- ínas, e oito segmentos codificam apenas uma
vírus e assim serão tratados neste texto. Ou seja, proteína e dois segmentos codificam duas prote-
a denominação vernacular reovírus se refere aos ínas cada. Dessas, oito proteínas são estruturais
membros do gênero e não aos membros da famí- (fazem parte da estrutura do vírion) e quatro são
lia Reoviridae em geral. não-estruturais. As proteínas estruturais consti-
Classicamente, o gênero Orthoreovirus é tuem o capsídeo interno (n = 4) e externo (n = 4),
subdividido em duas espécies: ortoreovírus (reo- e as proteínas não-estruturais, presentes apenas
vírus) de mamíferos e ortoreovírus (reovírus) nas células infectadas, desempenham importan-
aviários. Dentre os reovírus de mamíferos são tes funções enzimáticas e regulatórias durante
descritos três sorotipos (1 a 3), e 11 sorotipos já a replicação viral. As proteínas dos reovírus são
foram identificados entre os reovírus aviários (1 identificadas por letras gregas, de acordo com a
778 Capítulo 30

Tabela 30.2. Vírus do gênero Orthoreovirus: segmentos genômicos, proteínas codificadas e sua localização nos
vírions.

Genoma Proteína

Segmento Classe Nucleotídeos Denominação Aminoácidos Localização/função

1 L1 3854 λ3 1267 Capsídeo interno, polimerase


de RNA dependente de RNA

2 L2 3916 λ2 1289 Capsídeo externo, guanilil-


transferase, metiltransferase?

3 L3 3901 λ1 1275 Capsídeo interno, proteína de


ligação ao RNA, metaloproteina

4 M1 2304 μ2 736 Capsídeo interno, função


desconhecida

5 M2 2203 μ1 708 Capsídeo externo, função na


penetração e ativação da
transcriptase
6 M3 2241 μNS+ 721 Não-estrutural, liga-se ao RNA,
ativa a transcrição secundária
μNSC 681 Não-estrutural

7 S1 1416 s1 455 Capsídeo externo, liga ao


receptor, hemaglutinina,
determinante de sorotipo
s1S 120 Não-estrutural, função
desconhecida

8 S2 1331 s2 418 Capsídeo interno, liga-se ao RNA


9 S3 1198 sNS 366 Não-estrutural, liga-se no RNA
10 S4 1196 s3 365 Capsídeo externo, liga-se ao
RNA, atua na tradução

classe de segmentos genômicos e, conseqüente- relativa resistência das partículas virais, desinfe-
mente, de suas respectivas massas moleculares, tantes comuns, como a formalina, lisol, derivados
como λ (lambda) para as proteínas da classe L; μ fenólicos e peróxido de hidrogênio, devem ser
(mi) para a classe M e δ (sigma) para a classe S utilizados com cautela, pois, dependendo da con-
(Tabela 30.2). centração e do tempo de exposição, os reovírus
podem manter a sua viabilidade. O hipoclorito
de sódio e o etanol a 95% são os desinfetantes de
3.2 Propriedades gerais eleição. Nos processos de desinfecção de instala-
ções e equipamentos, deve-se sempre considerar
Algumas características das partículas vi- que os reovírus são primariamente vírus respira-
rais, como a ausência de envelope lipoprotéico e tórios e entéricos, e que secreções e excreções são
a presença de capsídeo duplo, fazem com que os as fontes primárias de contaminação do ambien-
vírions sejam muito estáveis às condições do meio te, água e alimentos. Os vírions são sensíveis à
ambiente. Os vírions são estáveis em uma ampla ação da luz ultravioleta, e essa característica deve
faixa de pH e resistentes a solventes de lipídios, ser considerada para o manejo de vazio sanitário
como o éter e o clorofórmio. Também devido à em ambientes com incidência de luz solar direta.
Reoviridae 779

Os reovírus podem ser amplificados em uma ção também tem sido relacionada com ocorrência
série de cultivos celulares, tanto de células primá- de diarréia. Em animais, a infecção mais impor-
rias quanto de linhagem. A maioria dos isolados tante por esses vírus ocorre em camundongos e,
produz efeito citopático, porém alguns podem ser por isso, essa espécie é muito utilizada em estu-
não-citopáticos. A utilização de enzimas proteolí- dos experimentais. Sinais clínicos variados, como
ticas (p. ex.: tripsina) no meio de cultivo aumenta diarréia, oleosidade de pele e pêlos, sinais neu-
a infectividade das partículas víricas. Os reovírus rológicos (ataxia), hepatite, icterícia, miocardite
de mamíferos exibem atividade hemaglutinante, e pancreatite, são descritos em camundongos
propriedade que é ausente nos reovírus aviários. natural e/ou experimentalmente infectados com
A presença ou ausência desta propriedade bioló- reovírus.
gica é muito utilizada como indicador nas etapas Tanto em animais quanto em seres huma-
iniciais de identificação de isolados virais obtidos nos, infecções bacterianas secundárias e condi-
a partir de casos clínicos. ções imunológicas desfavoráveis, como imunode-
pressão por qualquer origem, podem complicar
3.3 Orthoreovirus de mamíferos o quadro clínico produzido pelas infecções por
reovírus, principalmente em hospedeiros jovens
As infecções por reovírus de mamíferos são e senis.
muito freqüentes, independentemente de região
geográfica e do sorotipo viral. Inquéritos soroepi- 3.4 Orthoreovirus aviários
demiológicos em várias espécies animais e tam-
bém em humanos demonstraram que a taxa de Os reovírus aviários caracterizam-se pela es-
adultos soropositivos é alta (60-85%). Entretanto, pecificidade de hospedeiro, diversidade antigê-
os relatos de doença clínica associada com esses nica e pela ausência de atividade hemaglutinante
vírus são esporádicos. Com isso, presume-se que na grande maioria dos isolados, o que contrasta
a grande maioria das infecções é inaparente ou com a característica hemaglutinante dos reovírus
subclínica. dos mamíferos. Dentre os reovírus aviários, são
Em humanos, a infecção por reovírus tem descritos 11 sorotipos distintos que, de acordo
sido relacionada com doenças respiratórias e en- com a procedência (distribuição geográfica, espé-
téricas sem gravidade, tanto em crianças como cie aviária e material clínico de origem), podem
em adultos e idosos. Os sinais clínicos mais fre- apresentar considerável reatividade sorológica
qüentemente relatados incluem cefaléia, mal-es- cruzada devido à presença de antígenos comuns.
tar, rinite, faringite, tosse, espirro e diarréia. Os O isolamento dos reovírus aviários pode ser ob-
reovírus de mamíferos já foram, ainda, de forma tido com relativa facilidade, pois o vírus adapta-
muito esporádica, implicados em infecções infan- se a uma série de sistemas, como ovos embrio-
tis não relacionadas aos sistemas respiratório e nados de galinha. Nesse sistema, o material deve
digestivo, como atresia biliar extra-hepática neo- ser inoculado no saco da gema ou na membrana
natal, meningite asséptica, exantema e adenopa- cório-alantóide. Lesões macro e microscópicas,
tia cervical. acompanhadas de morte, caracterizam a infecção
Anticorpos anti-reovírus já foram relatados dos embriões. Os reovírus aviários podem ser
em uma grande variedade de mamíferos domés- isolados também em cultivo primário de células
ticos e selvagens. Sinais clínicos são esporadi- originadas de embrião de galinha, como fibro-
camente relatados em animais jovens. Em eqüi- blastos, rim, fígado e pulmão. O isolamento viral
nos, a infecção tem sido relacionada com sinais pode ser monitorado pelo efeito citopático, que
clínicos de infecção respiratória, como laringite, se caracteriza pela formação de sincícios, dege-
rinite e tosse. Conjuntivite também tem sido es- neração celular e produção de inclusões intraci-
poradicamente relatada. Em bovinos, ovinos, su- toplasmáticas. Células de linhagem contínua (ou
ínos, cães e gatos, além de relatos de distúrbios estabelecida) de mamíferos também podem ser
respiratórios, quase sempre secundários, a infec- utilizadas para o isolamento de reovírus aviários,
780 Capítulo 30

destacando-se as linhagens derivadas de tecido faixas etárias mais avançadas. A taxa de mor-
renal Vero, BHK-21 (células renais de hamster), bidade pode ser de 100%, mas a taxa de morta-
GBK (célula de rim bovino), CRFK (células de lidade é relativamente baixa (em média 5%). A
rim felino) e PK (células de rim suíno). evolução pode ser aguda ou crônica, e as aves
Várias espécies de aves domésticas e sil- comprometidas apresentam dor articular, claudi-
vestres são susceptíveis a esses vírus, porém a cação com conseqüentes dificuldades de locomo-
infecção assume especial importância em gali- ção e alimentação. Devido à perda da condição
nhas e perus. Várias condições intercorrentes corporal e refugagem, muitas aves são elimina-
são necessárias para definir o curso de uma in- das do lote. A intensidade dos sinais clínicos e
fecção. A presença ou a ausência de sinais clíni- o número de aves comprometidas estão relacio-
cos e mesmo o número de aves acometidas estão nados com a idade da ave e com o sorotipo viral
relacionados com vários fatores, que incluem: a) envolvido. Fatores intercorrentes, como infecções
genética e idade do hospedeiro; b) sorotipo viral mistas com Mycoplasma synoviae e falhas nos ma-
e via de infecção; c) infecções bacterianas, para- nejos zootécnico, nutricional e sanitário, também
sitárias e virais intercorrentes, incluindo aquelas podem agravar a infecção.
com características imunodepressoras; d) manejo Os prejuízos econômicos ocasionados pela
zootécnico inadequado, acarretando em descon- reovirose aviária em criações comerciais de fran-
forto e estresse; e) qualidade da ração (composi- gos de corte e de perus devem-se à incapacidade
ção, presença de micotoxinas); f) falhas no mane- e definhamento de aves com quadro clínico de ar-
jo sanitário, entre outros. Essas condições, tanto trite/tenosinovite, ao aumento da taxa de morta-
de forma isolada quanto em associação, podem lidade e à redução da performance geral, incluin-
definir o conceito de doenças ou síndromes mul- do ganho de peso e conversão alimentar. Essas
tifatoriais e multietiológicas que contribuem com condições ocasionam um aumento da refugagem
a emergência de novas doenças ou mesmo a ree- e perda da aceitação das aves no mercado.
mergência de doenças conhecidas.
Os reovírus aviários têm sido isolados, com 4 Gênero Rotavirus
maior freqüência, de uma variedade de tecidos
e órgãos de aves acometidas por várias doenças Os rotavírus – membros do gênero Rotavirus
não-relacionadas, como artrite/tenosinovite, sín- – são considerados em todo o mundo como um
drome da refugagem, síndrome da má-absorção, dos principais vírus entéricos tanto para huma-
além de aves com problemas respiratórios e en- nos quanto para animais. A maioria das infec-
téricos. Em outras condições menos freqüentes, ções agudas pelos rotavírus caracteriza-se por
também há relatos do isolamento dos reovírus sua gravidade, sendo, com freqüência, acompa-
aviários, como associados com ruptura do ten- nhadas de diarréia, desidratação, desequilíbrio
dão do gastrocnêmio, osteoporose, pericardite, eletrolítico e acidose. Os rotavírus estão ampla-
miocardite, hidropericárdio, empastamento da mente disseminados na natureza, e uma gama de
cloaca, mortalidade de pintinhos. Várias dessas hospedeiros é susceptível à infecção, incluindo
condições clínicas podem ocorrer concomitante- mamíferos domésticos e silvestres e também as
mente, como as síndromes da refugagem e da má- aves. A infecção, quando acomete animais jovens,
absorção, empastamento da cloaca e aumento da geralmente é acompanhada de sinais clínicos. Em
taxa de mortalidade de pintinhos. Em contraste, adultos, infecção com freqüência é assintomática,
os reovírus aviários também podem ser isolados porém esses indivíduos podem ser portadores e
a partir de aves clinicamente sadias. transmissores do vírus para indivíduos jovens da
A entidade clínica mais bem definida e clas- mesma espécie. Na dependência da virulência da
sicamente atribuída ao reovírus aviário em gali- cepa viral infectante e em hospedeiros com po-
nhas e perus é a artrite viral. A infecção natural tencial de resposta imunológica comprometido,
ocorre usualmente em aves jovens (4 a 6 semanas tanto por infecções imunodepressoras recorren-
de idade), mas também pode ser observada em tes quanto pela idade avançada, algumas infec-
Reoviridae 781

ções em adultos podem ser acompanhadas por ficados em sete sorogrupos distintos, designados
sinais clínicos de diarréia. pelas letras A a G. Os grupos A, B e C têm sido
Os rotavírus são predominantemente es- encontrados tanto em humanos quanto em ou-
pécie-específicos, porém infecções heterólogas tras espécies animais; enquanto os grupos D a G
também são relatadas com grande freqüência. As foram identificados exclusivamente em animais.
infecções heterólogas são caracterizadas pela in- Dos sete sorogrupos dos rotavírus, somente os
fecção de uma determinada espécie animal por grupos A, B e C produzem infecções, que, pela
um rotavírus de outra espécie, como as infecções sua freqüência, podem ser consideradas de im-
humanas causadas por sorotipos e/ou genótipos portância clínica e epidemiológica para humanos
de rotavírus de suínos e bovinos, e vice-versa. A e animais. A grande maioria dos episódios de
primeira situação exemplifica o caráter zoonótico diarréia, e mesmo as infecções subclínicas nessas
da infecção que, até recentemente, não era consi- espécies, está associada com os rotavírus do gru-
derado. po A. A infecção pelo rotavírus grupo B é me-
Em animais de produção, a infecção pelos nos freqüente e, além do homem, já foi relatada
rotavírus assume especial importância epidemio- em bovinos, suínos, ovinos e roedores. O grupo
lógica e, conseqüentemente, econômica na cria- C de rotavírus tem sido identificado em várias
ção de bovinos, suínos e frangos de corte. O rota- partes do mundo como causador de diarréia em
vírus é o principal agente etiológico do complexo humanos e animais, principalmente suínos. Em
“diarréia neonatal bovina e suína”, de etiologia bovinos, a identificação do rotavírus grupo C em
multifatorial e multietiológica, envolvendo fato- fezes de animais com diarréia é um evento raro.
res relacionados ao manejo zootécnico e sanitário, Da mesma forma que a classificação em
além de microorganismos, como bactérias, proto- grupos sorológicos, o perfil de migração dos 11
zoários e vírus. A diarréia neonatal em bovinos segmentos genômicos de dsRNA em eletroforese
e suínos é o principal problema sanitário nessa em gel de poliacrilamida (PAGE) também possi-
fase da criação. Nos episódios de diarréia neo- bilita a classificação dos rotavírus em sete grupos
natal, com alta taxa de morbidade, as principais distintos (A-G), denominados eletroferogrupos.
conseqüências da infecção pelo rotavírus, além As variações observadas no perfil eletroforético
dos sinais clínicos, concentram-se em alterações das cepas ou isolados de rotavírus classificadas
significativas nas taxas de conversão alimentar e em um mesmo eletroferogrupo são denominadas
ganho de peso e em aumento nos custos de pro- eletroferotipos.
dução e da taxa de mortalidade. O padrão eletroforético de migração dos 11
A rotavirose está amplamente disseminada segmentos genômicos dos rotavírus do grupo A,
nos rebanhos e/ou plantéis de bovinos, suínos e de acordo com a massa molecular de cada seg-
frangos de corte brasileiros. Nessas três espécies, mento, é distribuído em classes constituídas pe-
a infecção é mais freqüente na faixa etária entre a los segmentos 1 a 4 (Classe I); 5 e 6 (Classe II); 7, 8,
segunda e terceira semanas de vida. Em bovinos, e 9 (Classe III) e os segmentos 10 e 11 (Classe IV).
a infecção constitui-se em sério problema sanitá- Essa disposição é freqüentemente representada
rio para animais com aptidão para a produção como 4-2-3-2, indicando o número de segmentos
de leite ou para carne, incluindo tanto aqueles genômicos encontrados em cada classe do grupo
rebanhos manejados de forma intensiva quanto A. Uma importante característica eletroforética do
extensiva. Com isso, a infecção assume especial rotavírus do grupo A é a migração dos segmentos
importância para a medicina veterinária. genômicos 7, 8 e 9 em forma de trinca, uma vez
que as suas respectivas massas moleculares são
4.1 Classificação muito próximas, podendo em muitas circunstân-
cias co-migrarem em gel de poliacrilamida (Figu-
De acordo com as diferenças antigênicas ra 30.2). Por outro lado, os rotavírus dos grupos B
detectadas na VP6, que é a proteína mais abun- a G, denominados atípicos, não apresentam essa
dante dos vírions, os rotavírus podem ser classi- distribuição característica em forma de trinca.
782 Capítulo 30

Contudo, o perfil genômico obtido por meio da de 27 diferentes tipos de P (VP4) e 15 tipos de G
migração em PAGE (eletroferotipo) não deve ser (VP7). Entre as mais de 405 combinações possí-
utilizado como único método de classificação dos veis entre os diferentes genótipos P (27) e G (15),
rotavírus, pois alterações no genoma viral, como algumas são mais freqüentes.
rearranjos e deleções, podem resultar em altera-
ções no padrão de migração dos segmentos. 4.2 Propriedades dos vírions, estrutura
Além da classificação dos rotavírus em so- e organização genômica
rogrupos (de acordo com a reatividade sorológi-
ca com a VP6), as proteínas do capsídeo externo Os vírions medem aproximadamente 85 nm
VP4 e VP7 ou os segmentos genômicos que as co- de diâmetro e não possuem envelope. A deno-
dificam permitem a caracterização das amostras minação Rotavirus surgiu da palavra de origem
de rotavírus em sorotipos e/ou genótipos. Dessa latina rota, que significa roda, devido à aparência
forma, os rotavírus possuem um sistema binário das partículas virais quando observadas sob mi-
de classificação, constituído por tipos de VP4 (P croscopia eletrônica (ME) (Figura 30.1). O capsí-
tipos – protease sensível) e tipos de VP7 (G tipo – deo viral é formado por três camadas protéicas
glicoproteína). Atualmente, por meio de técnicas concêntricas de simetria icosaédrica, denomi-
sorológicas e/ou moleculares, são descritos mais nadas capsídeo externo, intermediário e interno

Rotavírus grupo A Outros grupos

Típicos Atípicos
humanos humanos bovinos suínos B C D E

-1
2
3
4

5 < <
6

7
8
9

10
+
11 < < < < <
longo curto a b c d d e e

Fonte: Alfieri et al. (1996).

Figura 30.2. Ilustração esquemática do padrão de migração dos segmentos genômicos dos rotavírus pertencentes aos
eletroferogrupos A a E, após eletroforese em gel de poliacrilamida.
Reoviridae 783

(Figura 30.3). De acordo com a sua composição ções enzimáticas necessárias para a replicação
protéica e estrutura, três tipos de partículas ví- viral. As proteínas estruturais são designadas VP
ricas podem ser visualizadas sob ME. As partí- (viral protein), seguidas por número seqüencial
culas completas apresentam todo o conjunto de na ordem decrescente da massa molecular. No
proteínas estruturais, distribuídas em três cama- core ou núcleo, estão presentes as proteínas VP1
das protéicas (Figura 30.3A). Partículas contendo (125kDa), VP2 (94kDa) e VP3 (88kDa); no capsí-
apenas duas camadas protéicas, que podem ser deo intermediário, a VP6 (46kDa); e, no capsídeo
obtidas experimentalmente pela remoção da VP4 externo, as proteínas VP4 (88kDa) e VP7 (38kDa).
e VP7 por métodos químicos, também são obser- As proteínas não-estruturais, encontradas nas
vadas, porém não são infecciosas (Figura 30.3B). partículas virais maduras, recebem a denomina-
A remoção da VP6, que também pode ser obtida ção NSP (non-structural protein).
in vitro, resulta em partículas menores, não-in- No core ou núcleo viral, as proteínas VP1 e
fecciosas, compostas apenas pelo núcleo ou core VP3 estão diretamente associadas com o genoma.
(Figura 30.3C). A proteína VP2, com 120 moléculas por vírion,
No interior do núcleo, encontra-se o genoma é a mais abundante do núcleo. A proteína VP1
viral, constituído por 11 moléculas de dsRNA. possui atividade de RNA polimerase RNA-de-
Cada um dos 11 segmentos genômicos codifica pendente, e a proteína VP3 possui atividade de
pelo menos uma proteína viral, totalizando seis guanililtransferase, estando envolvida na adição
proteínas estruturais e seis proteínas não-estru- da estrutura 5´-cap aos RNAs mensageiros (mR-
turais. Estudos com a estirpe SA11 do rotavírus NAs). O capsídeo intermediário é formado por
símio identificaram uma sexta proteína não-es- 780 moléculas da proteína estrutural VP6, orga-
trutural, codificada pelo segmento 11 do genoma, nizadas em 260 unidades triméricas. O capsídeo
sendo este o único segmento que codifica mais de externo é composto por duas classes de proteínas,
uma proteína. A Figura 30.4 apresenta a estrutura VP4 e VP7, que são responsáveis pelas interações
esquemática do vírion, os segmentos genômicos iniciais do vírus com a célula hospedeira. A su-
e as proteínas codificadas por cada segmento. perfície externa do vírus apresenta 780 cópias da
Os vírions contêm a atividade de RNA po- glicoproteína VP7, em arranjos triméricos, e 120
limerase dependente de RNA e as demais fun- cópias da proteína VP4, que formam 60 estrutu-

Partícula Partícula
A com capsídeo B com capsídeo C Core ou núcleo
triplo duplo

VP4, VP7 VP6

Agentes Agentes
quelantes caotrópicos
(10mM EDTA)
(1,5M CaCl2)

Proteínas: Proteínas: Proteínas:


VP1, 2, 3, 4, 6, 7 VP1, 2, 3, 6 VP1, 2, 3

Infecciosa Não-infecciosa Não-infecciosa

Fonte: adaptado de Estes (2001).

Figura 30.3. Ilustração esquemática da estrutura dos três tipos de partículas víricas dos rotavírus que podem ser
visualizadas sob ME.
784 Capítulo 30

1 VP1
2 VP2
3 VP3
4 VP4

5 NSP1

6 VP6

7 NSP2
8 NSP3
9 VP7

10 NSP4

11 NSP5
NSP6

Segmentos Proteínas
genômicos

Fonte: adaptado de Estes (2001).

Figura 30.4. Eletroforese em gel de poliacrilamida, mostrando os segmentos genômicos (dsRNA) dos rotavírus
(esquerda); as proteínas codificadas por cada segmento (centro) e uma ilustração simplificada de uma partícula vírica
e os seus componentes (direita). Os segmentos estão numerados com base na migração do genoma do rotavírus grupo
A da cepa Sa11.

ras diméricas semelhantes a espículas. A proteína O protótipo símio SA11 foi o primeiro ro-
VP4 contém um sítio de clivagem pela tripsina tavírus a ter o genoma completamente seqüen-
e, quando submetida ao tratamento in vitro com ciado. As extremidades 5’ das fitas genômicas
protease, gera dois produtos: as proteínas VP5 de polaridade positiva possuem uma estrutura
e VP8, que aumentam a infectividade do vírus. cap, mas diferentemente da maioria dos mRNA
Os genes dos rotavírus, com os seus respectivos celulares, não possuem as extremidades 3’ po-
produtos e funções, estão apresentados na Tabela liadeniladas. Todos os genes dos rotavírus estão
30.3. flanqueados por regiões traduzidas de extensão
Os rotavírus são os únicos vírus conhecidos variável próximo as extremidades 5’ e 3’. Em to-
de mamíferos e aves que possuem 11 segmentos dos os segmentos, essas seqüências não-traduzi-
de dsRNA como genoma. A extensão de cada um das flanqueiam uma única seqüência aberta de
dos 11 segmentos genômicos varia entre 600 e leitura (open reading frame, ORF), com exceção do
3.000 pb, e o genoma completo apresenta aproxi- segmento 11, que possui duas ORFs. Quase todos
madamente 18.600 pb. É essa diferença de tama- os mRNA terminam com a seqüência consenso
nho que possibilita que os segmentos genômicos 5’-UGUGACC-3’, sugerindo que se constituam
apresentem um perfil de migração característico em sinais importantes para a transcrição, trans-
e único para os rotavírus quando separados por porte do RNA e replicação e/ou encapsidação
PAGE. dos segmentos genômicos.
Reoviridae 785

Tabela 30.3. Características dos segmentos genômicos e proteínas codificadas pelo genoma segmentado dos rotavírus

Localização Número
Gene Proteína Massa (Da) nas partículas Funções
de cópias

1 VP1 125.005 Nucleocapsídeo 12 RNA polimerase RNA-dependente.

2 VP2 102.431 Nucleocapsídeo 120 União ao RNA; forma o nucleocapsídeo.

3 VP3 98.120 Nucleocapsídeo 12 Guanililtransferase; metiltransferase;


proteína básica.

4 VP4 86.782 Capsídeo 120 Proteína de união à célula; interage com


Produto da clivagem de VP4 VP6; antígeno neutralizante P-tipo.
60.000
Infectividade aumenta após clivagem
28.000 Produto da clivagem de VP4 pela tripsina, formando as proteínas
Vp5 e VP8.

Associa-se ao citoesqueleto; interage


5 NSP1 58.654 Proteína não-estrutural 0
com fator 3 regulatório de IFN.

Proteína estrutural do capsídeo


6 VP6 48.16 Capsídeo 780
intermediário; antígeno de subgrupo.

7 NSP3 34.600 Proteína não-estrutural 0 Envolvida na regulação da tradução.

Acumula-se em viroplasmas; atividade


8 NSP2 34.700 Proteína não-estrutural 0
NTPase; liga-se à NSP5 e Vp1.

Glicoproteína estrutural do capsídeo


9 VP7 7.368 Capsídeo externo 780
externo; antígeno neutralizante G-tipo.

Enterotoxina; receptor para partículas.


10 NSP4 20.290 Proteína não-estrutural 0

11 NSP5 21.725 Proteína não-estrutural 0 Possível cinase autocalítica; interage


com VP2, NSP2 e NSP6.
NSP6 11.012 Proteína não-estrutural 0 Produto do ORF2 do gene 11; interage
com NSP5; localizada em viroplasmas.

O ressortimento (reassortment) – uma forma deletérios que ocasionam na camada externa do


de recombinação genética – dos rotavírus pode vírion, a formalina, o cloro, a betapropiolactona,
ocorrer quando uma célula é co-infectada por o etanol a 95% e o glutaraldeído são considerados
duas cepas virais distintas, de forma que a pro- desinfetantes eficientes para esses vírus.
gênie viral será constituída por uma população A complexidade molecular e antigênica dos
contendo diferentes combinações dos genes pa- rotavírus é decorrente da diversidade genômica
rentais. A ocorrência desse fenômeno de varia- gerada por três mecanismos genéticos básicos:
bilidade genética é permitida pela homologia da mutações pontuais, ressortimento e rearranjos
seqüência consenso (5’-UGUGACC-3’) entre to- genômicos. As mutações pontuais consistem
dos os segmentos do genoma viral. em alterações na seqüência de nucleotídeos que
Os rotavírus são relativamente estáveis em ocorrem durante a replicação do genoma e que
condições ambientais, mantendo a sua infectivi- acarretam substituições de aminoácidos das pro-
dade na faixa de pH entre 3 e 9. Amostras virais teínas. Essas mutações podem alterar os sítios
isoladas de bezerros permaneceram infectivas antigênicos, resultando em cepas resistentes aos
durante vários meses a 4ºC ou mesmo a -20ºC anticorpos neutralizantes produzidos contra as
quando estabilizadas em 1,5 mM CaCl2. A ausên- cepas parentais. O ressortimento é uma forma de
cia de lipídeos na estrutura dos vírions justifica a recombinação que ocorre em vírus com o genoma
resistência desses vírus aos solventes orgânicos, segmentado, decorrentes da troca de segmentos
tais como: éter, clorofórmio ou freón. Pelos efeitos genômicos por cepas diferentes por ocasião de
786 Capítulo 30

uma co-infecção de uma célula. Por meio desse vez que já foram identificadas moléculas na su-
mecanismo, novas cepas virais podem surgir ra- perfície celular resistentes a neuraminidase (AS-
pidamente. A co-infecção celular por cepas gene- independentes), que interagem com a maioria das
ticamente próximas pode promover naturalmen- cepas de rotavírus de origem humana e algumas
te o mesmo fenômeno de forma mais eficiente. As de origem animal. Portanto, tem sido proposto
alterações na seqüência de nucleotídeos, identifi- que existam, pelo menos, dois receptores para
cadas em porções importantes de um segmento o rotavírus: os AS-dependentes (gangliosídeos)
genômico, muitas vezes na forma de deleções ou e os AS-independentes (integrinas). Estudos re-
duplicações, são denominadas de rearranjo. Tais centes sugerem uma interação inicial dos vírions
alterações determinam modificações na massa com o receptor AS-dependente, seguida por uma
molecular dos segmentos de dsRNA, resultando segunda interação com um receptor AS-indepen-
em um perfil eletroforético ou eletroferotipo, dis- dente. Aparentemente a ligação com o segundo
tinto da cepa original. receptor é mais específica. A interação inicial é
dependente de concentrações de sódio e ocorre
4.3 Replicação na faixa de pH compreendida entre 5,5 e 8.
Após a interação do vírion com os receptores
O mecanismo de replicação dos rotavírus celulares, a partícula viral penetra no citoplasma
tem sido elucidado a partir de estudos realizados celular por um mecanismo ainda não completa-
em células da linhagem contínua MA-104 (célu- mente conhecido. Entre os mecanismos propos-
las renais de macaco rhesus). Esta linhagem celu- tos, destacam-se a penetração direta através da
lar é uma das mais permissivas à infecção pelos membrana plasmática após a clivagem proteolíti-
rotavírus e tem sido amplamente utilizada para a ca de VP4 e exposição do peptídeo de fusão VP5;
caracterização desses vírus. e a penetração após internalização por endocito-
O monitoramento dos estágios iniciais da se (Figura 30.5).
replicação viral por ME revela que somente as Estudos realizados com a cepa OSU do ro-
partículas com o capsídeo triplo, contendo a tavírus suíno confirmam a internalização dos
VP4 íntegra, são capazes de penetrar produtiva- vírions por endocitose, mediada por receptor
mente nas células hospedeiras. A adsorção viral específico, e sugerem que o desnudamento pode
à superfície celular é mediada pela VP4 ou por ocorrer pela ação de enzimas lisossomais. A en-
seu produto de clivagem (VP5). Alguns estudos docitose constitui um modelo de entrada cálcio-
apontam também a participação da VP7 nas liga- dependente, sendo que a ligação aos receptores
ções vírion-célula. Entretanto, a penetração dos celulares induz a formação de uma vesícula en-
rotavírus nas células hospedeiras parece iniciar docítica que isola a partícula de capsídeo triplo
com um processo complexo, que necessita da in- em um compartimento intracelular. A redução
teração dessas duas proteínas (VP4 e VP7) para da concentração de cálcio no interior da vesícula
estabelecer a ligação inicial. endossomal ocorre por meio de difusão simples
A infecção in vivo pelo rotavírus está restri- e pode provocar alterações conformacionais no
ta a células do topo das vilosidades do intestino capsídeo, com a solubilização das proteínas do
delgado, o que sugere a existência de receptores capsídeo externo. Com a liberação dos peptíde-
específicos nessas células. A infecção in vitro tam- os do capsídeo externo, ocorre o rompimento da
bém é limitada a linhagens celulares epiteliais de membrana lisossomal, permitindo a penetração
origem intestinal e renal. Embora grandes avan- da partícula subviral, isenta do capsídeo exter-
ços no conhecimento da biologia molecular e no, no citoplasma (Figura 30.5). Nesse momento,
estrutural dos rotavírus já tenham sido obtidos, ocorre a ativação da transcriptase viral, dando
pouco é conhecido sobre os seus prováveis recep- início à transcrição dos segmentos genômicos.
tores. A infectividade de algumas cepas de rota- O ciclo replicativo ocorre integralmente no
vírus de origem animal depende da presença de citoplasma, independente de estruturas e me-
ácido siálico (AS) na superfície celular. Entretan- canismos nucleares. A síntese dos mRNA virais
to, esta interação parece não ser essencial, uma é modulada pela enzima viral RNA polimerase
Reoviridae 787

Membrana plasmática

Citoplasma
1

Fonte: adaptado de Ruiz et al. (2000).

Figura 30.5. Modelo para a penetração dos rotavírus em células susceptíveis, por meio de endocitose cálcio-
dependente. 1) Internalização por endocitose; 2) Efluxo de íons cálcio do interior das vesículas; 3) Baixa na
concentração de Ca++ e acidificação das vesículas; 4) Solubilização do capsídeo externo (VP5, 7 e 8); 5)
Permeabilização da membrana, lise da vesícula endocítica, liberação das partículas com duplo capsídeo no citosol.

RNA-dependente (VP1). Os mRNA recém-trans- tículo endoplasmático rugoso (RER), onde são
critos cumprem basicamente duas funções: atuam processadas e inseridas na membrana. Dessa
como mensageiros para a tradução das proteínas forma, todas as proteínas se acumulam no viro-
virais e atuam como molde para a síntese do dsR- plasma, com exceção da VP7 e NSP4 que se lo-
NA que constituirá o genoma da progênie viral. calizam no RER, e das proteínas não-estruturais
A transcrição é assimétrica: todos os transcritos NSP1 e NSP3, que se encontram distribuídas no
sintetizados são fitas de polaridade positiva que citoplasma, em associação com as fibras do cito-
utilizam como molde as fitas negativas dos RNAs esqueleto.
genômicos. À medida que se processa a síntese A morfogênese das partículas víricas é um
e o acúmulo das proteínas virais (VPs e NSPs), processo complexo que ocorre de forma coorde-
grandes inclusões citoplasmáticas, denominadas nada com a replicação. Nesse processo, ocorre a
viroplasmas, são formadas no citoplasma das cé- formação de pelo menos três estágios intermedi-
lulas infectadas. ários de replicação, que são os precursores das
Tem sido sugerido que todo o processo de partículas de duplo capsídeo. Após a formação
replicação do genoma e a formação das partícu- das partículas com duplo capsídeo, elas passam
las subvirais com duplo capsídeo, formadas pela do viroplasma para o interior do RER adjacente.
VP2 e VP6, ocorra no interior dos viroplasmas. A maturação final é dependente de altas concen-
Embora grande parte da tradução dos mRNA trações de cálcio para promover a estabilização
ocorra nos ribossomos livres, as glicoproteínas das proteínas do capsídeo externo. Durante a
VP7 (capsídeo externo) e NSP4 são sintetizadas passagem pelo RER as partículas virais adquirem
nos ribossomos associados à membrana do re- uma bicamada lipídica temporária. O envelope
788 Capítulo 30

?
1 12

13

9
Viroplasma

cap AAAA
(-) 10
9
cap AAAA
2 (-)
cap AAAA
11
(-)
6
7
? 4 cap AAAA
cap AAAA
cap AAAA
3
cap AAAA
5 cap AAAA
cap AAAA
cap AAAA

VP7
RER

Citoplasma
Núcleo

Fonte: adaptado de Estes (2001).

Figura 30.6. Ciclo replicativo dos rotavírus. A internalização ocorre por endocitose mediada por receptor (1), e a
penetração ocorre após a desestabilização da partícula vírica e permeabilização da membrana endocítica
desencadeadas pelo efluxo de cálcio (2). A penetração direta através da membrana também tem sido proposta (3). A
transcrição primária ocorre ainda no interior de partículas semi-íntegras (4) e resulta na produção de mRNA para a
síntese protéica (5) e para a replicação do genoma (6). A replicação do genoma (6, 7) e os estágios iniciais da
morfogênese (8) ocorrem no interior de estruturas denominadas viroplasmas, que contém RNAs e proteínas virais e
partículas víricas em formação. As partículas com duplo capsídeo formadas no viroplasma adquirem um envelope
lipídico temporário ao penetrarem no RER (9). A remoção do envelope (10) é seguida da adição da VP7, formando o
capsídeo externo e estabilizando as partículas (11). Acredita-se que os vírions maduros sejam liberados por lise
celular (12), embora outros mecanismos já tenham sido propostos (13).

lipídico é removido no interior do RER por ação 4.4 Enfermidades causadas


coordenada da NSP4. Em seguida, a VP7 (capsí- por rotavírus
deo externo) é adicionada para formar a partícula
viral madura (triplo capsídeo). Estudos por ME A primeira descrição dos rotavírus em ani-
têm demonstrado que, ao final do ciclo replicati- mais foi realizada, em 1969, por Mebus e cola-
vo, a progênie viral é liberada por lise celular. A boradores, que demonstraram a presença de
Figura 30.6 apresenta uma ilustração esquemáti- partículas virais em fezes de bezerros com diar-
ca do ciclo replicativo dos rotavírus. réia. Woode, Jones e Bridger (1975) realizaram o
Reoviridae 789

primeiro relato de rotavírus em fezes diarréicas posição dos enterócitos é mais intensa e compete
de leitões. Desde então, os rotavírus têm sido com a replicação viral, de forma que somente as
identificados como uma das principais etiologias cepas virais muito virulentas podem causar diar-
virais de diarréia em animais jovens de diversas réia em bezerros com idade superior a seis sema-
espécies de mamíferos e aves. Em medicina vete- nas. A doença clínica também não é freqüente
rinária, importância especial é atribuída aos ani- durante a primeira semana de vida do animal,
mais de interesse econômico, principalmente os provavelmente devido à transmissão passiva dos
suínos, bovinos, ovinos e eqüinos. Os animais de anticorpos maternos e conseqüente neutralização
companhia e/ou laboratório, como cães, gatos, do vírus.
coelhos, ratos e camundongos, também são sus- Diferentemente de outras infecções entéri-
ceptíveis à infecção pelo rotavírus. As rotaviroses cas, em especial as bacterianas e parasitárias, as
também representam um problema sanitário em medidas de caráter higiênico-sanitário adotadas
aves comerciais, principalmente em frangos de isoladamente não são capazes de reduzir sig-
corte e perus. nificativamente o número de casos clínicos de
As taxas de morbidade e mortalidade e os rotaviroses. Algumas características peculiares
prejuízos econômicos ocasionados pelas rotavi- dos rotavírus fazem com que as rotaviroses se
roses em espécies de importância veterinária são manifestem de forma diferente de outras doen-
variáveis. Em bovinos, a diarréia causada pelos ças entéricas, determinando um grande impacto
rotavírus é reconhecidamente uma das principais
na sanidade animal, até mesmo em rebanhos de
causas de perdas econômicas no período entre o
propriedades altamente tecnificadas. Dentre es-
nascimento e o desmame. Estudos epidemiológi-
sas características, destacam-se: a) resistência dos
cos, realizados no Brasil, Estados Unidos, Cana-
vírions às condições ambientais e aos produtos
dá, Índia, Austrália e países europeus, indicam
químicos utilizados em desinfecção; b) alta con-
que as infecções por rotavírus apresentam morbi-
centração de partículas virais excretadas no perí-
dade com taxas de 8 a 36%, e a mortalidade pode
odo agudo da doença (1011 partículas por grama
atingir de 3 a 6% dos animais jovens. Bezerros na
de fezes); c) presença de infecções subclínicas e
segunda ou terceira semanas de vida são os mais
de adultos portadores assintomáticos; d) grande
susceptíveis.
variedade de hospedeiros; e) possibilidade de
Em leitões, as diarréias constituem o princi-
transmissão entre espécies (infecções heterólo-
pal problema de ordem sanitária que ocorre tan-
gas); e f) caráter endêmico da infecção. Medidas
to em animais lactentes (maternidade) quanto em
relativas aos aspectos nutricionais e de caráter
recém-desmamados (creche). Em todos os países
onde a suinocultura é explorada de forma inten- higiênico-sanitário não foram capazes de reduzir
siva, os rotavírus são identificados como um dos significativamente a incidência e a gravidade das
mais importantes agentes infecciosos causadores infecções por rotavírus.
de diarréia nos períodos do pré e pós-desmame. As infecções por rotavírus são amplamente
O primeiro mês de vida dos animais tem disseminadas nas populações humanas e animais
sido apontado como o período mais crítico para susceptíveis. A distribuição dos sorotipos e/ou
a ocorrência das rotaviroses. Após esse período, eletroferotipos de cada espécie viral, no entanto,
a freqüência de episódios de diarréia por esses pode apresentar variações, de modo que deter-
vírus declina vertiginosamente. A maior suscep- minadas regiões apresentem determinados soro-
tibilidade dos animais neonatos é explicada pelo tipos em contraste com outras regiões que podem
fato de que a reposição do epitélio apical das vi- apresentar a circulação de sorotipos diferentes.
losidades ocorre de forma mais lenta, facilitando Os altos títulos em que o vírus é excretado, o pe-
o desenvolvimento completo do ciclo replicativo ríodo de excreção, a existência de portadores e a
e a produção de progênie viral. Os animais adul- alta resistência dos vírions no ambiente contri-
tos tornam-se resistentes à doença porque a re- buem para essa ampla disseminação.
790 Capítulo 30

4.4.1 Patogenia e sinais clínicos as vilosidades atrofiam-se, podendo fusionar-se


nos casos mais graves. Após o período médio de
incubação de 16 a 24 horas, surgem os primeiros
A transmissão dos rotavírus ocorre princi-
sinais de diarréia. Além da diarréia, outros sinais
palmente pela via fecal-oral, por meio de partí-
clínicos não-específicos das síndromes diarréicas
culas virais encontradas no ambiente, na água e
incluem: depressão, anorexia, vômito, desidra-
nos alimentos contaminados pelas fezes. Após a
tação, pêlo eriçado e sinais inerentes à acidose
ingestão, as partículas virais alcançam a luz in- metabólica. Animais jovens podem morrer em
testinal. Os rotavírus possuem tropismo marcan- conseqüência da desidratação ou da infecção bac-
te pelas células do intestino delgado. Os vírions teriana secundária, mas a maioria se recupera em
penetram nos enterócitos maduros, localizados três a quatro dias.
na região apical das vilosidades intestinais. Além Estudos realizados em camundongos de-
da capacidade absortiva, os enterócitos maduros monstraram que a proteína não-estrutural NSP4
ou do ápice das vilosidades desempenham tam- pode atuar como uma enterotoxina e induzir
bém função digestiva com a secreção da enzima diarréia quando administrada pela via intrape-
lactase. ritoneal ou intraluminal. Nesse caso, o meca-
A partir desse momento, é iniciado o ciclo nismo fisiopatológico envolvido na evolução do
replicativo no interior dos enterócitos, culminan- quadro diarréico ocorreria de forma semelhante
do com a lise e descamação do epitélio intestinal. a enterotoxina da Escherichia coli. A NSP4 intera-
Os vírions liberados, após a descamação celular, ge com um receptor celular do epitélio intestinal,
irão infectar novos enterócitos, contribuindo para ativando uma via sinalizadora da tradução, que
a propagação da infecção. O vírus é excretado nas aumenta os níveis de Ca2+ intracelular. O Ca2+ in-
fezes por até sete dias pós-infecção. Em decorrên- duz o aumento da permeabilidade da membrana
cia da grande injúria tecidual, a reposição celular plasmática ao cloro, que é, então, secretado. Esses
é feita por células cubóides, imaturas do ponto eventos caracterizam um quadro de diarréia por
de vista estrutural e funcional, provenientes das hipersecreção. A proteína NSP4 pode, ainda, par-
criptas intestinais que não são afetadas direta- ticipar da ativação do sistema nervoso entérico,
mente pela infecção. Embora as células imaturas que estimula e aumenta a secreção de água pelas
células intestinais.
sejam refratárias à infecção viral, o que confere
Apesar dos rotavírus serem espécie-espe-
à infecção a característica autolimitante, elas per-
cíficos, a transmissão interespécies também é
dem a capacidade absortiva e digestiva.
possível. Vários estudos têm encontrado evidên-
Com base nos mecanismos fisiopatológicos,
cias antigênicas e moleculares de recombinação
a diarréia ocasionada pelo rotavírus também é
(ressortimento) in vivo de diferentes cepas de ro-
conhecida como diarréia por má absorção. Por
tavírus do grupo A provenientes de humanos e
deficiência da enzima lactase, ocorre falha na di-
de animais. Cepas virais que são geneticamente
gestão da lactose. Associada com a má absorção, muito relacionadas com rotavírus de origem bo-
a lactose não digerida entra em fermentação por vina, suína, canina, felina e inclusive aviária, têm
ação de bactérias, intensificando a diarréia devi- sido isoladas de crianças com infecções sintomá-
do ao aumento da pressão osmótica na luz intes- ticas ou assintomáticas e nosocomiais. Recipro-
tinal. Por esses eventos, as infecções pelos rota- camente, combinações genotípicas, comumente
vírus são freqüentemente denominadas “curso associadas com cepas de rotavírus do grupo A
branco”, devido à presença de leite não digerido de origem humana, estão sendo identificadas em
nas fezes diarréicas. animais.
Em conseqüência das lesões no epitélio, os
mediadores da reação inflamatória comprome- 4.4.2 Imunidade
tem também as células das criptas; e a motilidade
intestinal pode estar inibida durante a maioria Os mecanismos imunológicos envolvidos
dos casos de diarréia. Quando o número de ente- na resposta às infecções pelos rotavírus ainda
rócitos infectados excede o da reposição celular, não estão totalmente esclarecidos. A imunidade
Reoviridae 791

de mucosas, mediada por imunoglobulinas da o entendimento dos fatores imunológicos envol-


classe A (IgA secretora), parece constituir a prin- vidos, bem como para a definição das diretrizes
cipal defesa orgânica contra as infecções intesti- para o desenvolvimento de vacinas eficazes.
nais causadas por esses vírus.
As proteínas do capsídeo intermediário 4.4.3 Diagnóstico
(VP6) e externo (VP4 e VP7) e a proteína não-es-
trutural NSP4 induzem a formação de anticorpos Devido à semelhança com os sinais clínicos
neutralizantes, principalmente IgG. Entretanto, a de infecções entéricas causadas por outros entero-
função específica desse isotipo de imunoglobuli- patógenos, como bactérias, protozoários e vírus,
na na proteção contra a infecção ainda não está o diagnóstico definitivo das rotaviroses depende
claramente definida. Experimentos conduzidos essencialmente da realização de testes laborato-
em cordeiros neonatos gnotobióticos sugeriram riais. A ME é muito eficiente na detecção do ví-
que os anticorpos presentes na luz do intestino rus, uma vez que a morfologia típica dos rotaví-
delgado foram os determinantes primários da rus permite a sua identificação sem a necessidade
resistência à infecção pelo rotavírus, enquanto do uso de soro hiperimune (imunomicroscopia
os anticorpos circulantes falharam na proteção. eletrônica). A ME é também freqüentemente uti-
Também foi observada a participação efetiva de lizada com o objetivo de solucionar os resultados
IgG neutralizantes de origem materna na prote- discrepantes de outros métodos de diagnóstico.
ção de animais neonatos contra a doença clínica. Entretanto, essa técnica mostra-se inviável quan-
A importância da imunidade celular na res- do o diagnóstico envolve um grande número de
posta imunológica contra a infecção pelo rotaví- amostras a serem analisadas.
rus tem sido amplamente estudada em camun- O isolamento viral em cultivo celular tem
dongos, utilizados como modelos experimentais. pouco valor prático para o diagnóstico, particu-
Nesses animais, tem sido demonstrado que: a) larmente por ser uma técnica laboriosa, demora-
anticorpos rotavírus-específicos são de impor- da e exigir a manutenção de linhagens celulares,
tância primária na proteção contra a reinfecção; que torna o procedimento oneroso. As linhagens
b) cepas homólogas de rotavírus são muito mais celulares rotineiramente empregadas para o iso-
potentes na indução de resposta imune humoral lamento do rotavírus incluem a MA-104b e HT 29
local do que cepas heterólogas; c) os linfócitos T (célula de tumor retal humano). Embora não seja
CD8+ desempenham função principal na reso- utilizada como técnica de diagnóstico de rotina,
lução da enfermidade, embora, de forma menos o cultivo do rotavírus é um método indispensá-
efetiva, também seja demonstrada a participação vel para o desenvolvimento de estudos relacio-
de linfócitos T CD4+; d) citocinas e células NK nados às características antigênicas e moleculares
(natural killer) também estão envolvidos na elimi- das cepas virais e para a produção de antígenos
nação do vírus. Em síntese, a imunidade celular empregados no diagnóstico e na elaboração de
pode estar muito mais relacionada com a recupe- vacinas.
ração da enfermidade do que com a prevenção Outros métodos também já foram padroni-
da reinfecção. zados para a detecção do rotavírus, como a fixa-
Em paralelo à demonstração que a proteína ção de complemento, imunofluorescência (IFA),
não-estrutural NSP4 pode atuar como enterotoxi- radioimunoensaio (RIA), hemaglutinação (HA)
na viral e ocasionar diarréia em ratos experimen- e aglutinação em látex. Os testes imunoenzimá-
talmente inoculados, também foi observado que ticos (ELISA) constituem um dos métodos mais
essa proteína estimula as respostas humoral e ce- difundidos no diagnóstico da rotavirose animal
lular, com a participação de linfócitos T citotóxi- devido ao seu limiar de detecção, facilidade de
cos. Embora existam evidências de que a resposta execução, baixo custo e rapidez na obtenção dos
imunológica induzida pela NSP4 não seja fun- resultados. Vários testes de ELISA com anticor-
damental para o controle da infecção, as novas pos de captura foram desenvolvidos para o diag-
descobertas nesse campo são fundamentais para nóstico do rotavírus grupo A. Kits de ELISA, em
792 Capítulo 30

escala comercial, estão disponíveis. Embora a sificação sorológica de muitas cepas de rotavírus
técnica de ELISA seja altamente sensível, de fá- grupo A por meio de sistemas de ELISA que uti-
cil execução e apropriada para o processamento lizam painéis de anticorpos monoclonais. O uso
de um grande número de amostras, o sucesso do apenas do ELISA para a sorotipagem de cepas de
diagnóstico é diretamente dependente da quali- rotavírus grupo A apresenta também limitações
dade dos anticorpos empregados. em razão da indisponibilidade comercial de anti-
O genoma segmentado, característico dos corpos monoclonais neutralizantes para a identi-
rotavírus, permite a aplicação da técnica de ficação de alguns sorotipos G (VP7) e da maioria
PAGE para a identificação desse vírus. Contu- dos sorotipos P (VP4).
do, apesar de ser eficiente na definição do grupo Devido à alta prevalência da infecção na
ou do eletroferogrupo, a PAGE não possibilita a maioria dos rebanhos de animais de produção,
definição do sorotipo viral. Cepas de rotavírus não é comum a realização do diagnóstico soro-
de um mesmo sorotipo podem apresentar perfis lógico. Animais adultos podem apresentar taxas
eletroforéticos distintos, e cepas do mesmo ele- superiores a 90% de soropositividade.
troferotipo podem pertencer a diferentes soroti-
pos. Os grupos B e E, encontrados em suínos, por 4.4.4 Controle e profilaxia
exemplo, apresentam eletroferotipos com a mes-
ma distribuição e são antigenicamente diferentes. A profilaxia das rotaviroses não se restringe
Dessa forma, a eletroferotipagem não deve ser o apenas à adoção de medidas de caráter higiênico-
único critério para a classificação dos grupos de sanitário, visto que a infecção se estabelece inclu-
rotavírus. sive em rebanhos de propriedades altamente tec-
Os métodos moleculares, tais como a hibri- nificadas e com bom manejo sanitário. Medidas
dização e a amplificação gênica por RT-PCR estão gerais de profilaxia da infecção podem incluir: a)
sendo aplicados para a genotipagem de cepas de isolamento dos animais infectados com o objeti-
rotavírus grupo A. Devido à boa correlação com vo de reduzir a transmissão do vírus aos animais
a especificidade antigênica, relacionada aos soro- susceptíveis; b) criação de animais de faixas etá-
tipos, a genotipagem passou a ser utilizada como rias uniformes; c) desinfecção de instalações; d)
uma técnica alternativa à sorotipagem. Além da rodízio de piquetes de parições em rebanhos bo-
genotipagem, que possibilita a caracterização dos vinos de criação extensiva; e) vazio sanitário.
genotipos G e P das cepas de rotavírus do grupo Nos mamíferos domésticos, os anticorpos
A circulantes em uma região ou período, a RT- rotavírus-específicos presentes no colostro são
PCR pode ser também utilizada com muita efici- particularmente importantes na proteção dos
ência para o diagnóstico das infecções ocasiona- animais neonatos. Embora a maior parte dos an-
das pelos rotavírus grupos B e C. ticorpos colostrais seja absorvida pelos animais
A utilização de RT-PCR multiplex per- recém-nascidos, altos títulos de anticorpos séri-
mite, ainda, a identificação de infecções mistas, cos parecem não ser eficazes na proteção contra
como aquelas ocasionadas por cepas de rotavírus a infecção. Porém, as imunoglobulinas presentes
pertencentes a diferentes genótipos, e também de na luz intestinal participam efetivamente na pro-
infecções heterólogas, ocasionadas por recombi- teção contra os rotavírus. Dessa forma, a inges-
nação genética, nas quais são identificadas asso- tão de colostro de boa qualidade pode prevenir
ciações de genótipos G e P não características da a incidência da doença nos neonatos ou reduzir a
espécie em estudo. gravidade da diarréia. Com esse propósito, pre-
Os métodos mais tradicionais de determina- coniza-se a vacinação das fêmeas gestantes com
ção do sorotipo da cepa viral infectante, como a vacinas inativadas para garantir altos títulos de
soroneutralização (SN) e diferentes sistemas de anticorpos específicos no colostro.
ELISA, também são comumente empregados nas Contudo, também no campo imunoprofilá-
rotaviroses. Infecções mistas, bem como a pre- tico, as rotaviroses representam um desafio para
sença de variantes antigênicas, dificultam a clas- a elaboração de imunógenos capazes de induzir
Reoviridae 793

resposta imunológica plena e duradoura. A varia- rogrupos, número de sorotipos, principais veto-
bilidade antigênica e molecular dos rotavírus, ge- res e hospedeiros desses vírus estão listados na
rada pelas características próprias de seu genoma Tabela 30.4.
e expressas nos vários grupos sorológicos, soro- Dentre as espécies de orbivírus importantes
tipos e mesmo variantes de sorotipos circulantes na medicina veterinária, incluem-se o vírus da
representa um grande obstáculo para a obtenção língua azul (bluetongue virus, BTV) que possui 24
de vacinas efetivas. Devido à complexidade e di- sorotipos conhecidos; o vírus da doença hemor-
versidade genômica dos rotavírus, fica evidente rágica epizoótica dos cervídeos (EHDV), com dez
que o prévio conhecimento dos genótipos P e G sorotipos; o vírus da peste eqüina (african horse si-
das cepas virais circulantes em uma região, bem ckness virus, AHSV), com nove sorotipos; o vírus
como a sua distribuição temporal, é fundamental da encefalose eqüina (EEV), com sete sorotipos, e
para o planejamento de qualquer programa de o vírus Palyam. Estas três últimas enfermidades
vacinação. são exóticas no Brasil e encontram-se basicamen-
te restritas aos continentes africano e asiático.
5 Gênero Orbivirus
5.1 Propriedades gerais
Os orbivírus constituem um dos 11 gêneros
da família Reoviridae. Os vírus desse gênero in- Os vírions maduros medem entre 60 e 85 nm
fectam uma variedade de vertebrados, incluindo de diâmetro, não apresentam envelope lipídico,
ruminantes domésticos e selvagens, eqüídeos, e as proteínas que formam a partícula viral estão
roedores, morcegos, primatas, marsupiais e aves. dispostas em camadas concêntricas que, geral-
Esses vírus infectam e são primariamente trans- mente, conferem uma simetria icosaédrica. Os ví-
mitidos por artrópodes vetores como mosquitos rions apresentam coeficiente de sedimentação de
e carrapatos, mas a infecção nestas espécies não 55 S e densidade de flutuação em CsCl2 de 1,36 -
apresenta efeitos deletérios evidentes. 1,38 g/cm3. Esses vírions são resistentes a solven-
Com base em reatividade sorológica, 19 tes lipídicos, sensíveis a desinfetantes à base de
espécies de orbivírus, abrangendo pelo menos iodoforos e fenóis. São estáveis sob pH entre 6,5
130 sorotipos, já foram definidas. Ainda assim, e 8 e quando armazenados a temperatura de 4°C,
existem vários isolados não-classificados. Os so- principalmente na presença de matéria orgânica.

Tabela 30.4. Principais membros do gênero Orbivirus associados com doenças em animais.

Distribuição
Sorogrupo Sorotipos Hospedeiros Doença geográfica Vetor

Peste eqüina 1 a 10 Eqüideos, Doença cardiopulmonar, África, Oriente Médio, Culicoides


zebras, cães febre Ásia e Europa

Língua azul 1 a 24 Ovinos, bovinos, Rinite, estomatite, África,Ásia, Culicoides


caprinos, cervídeos laminite Austrália, Américas

EHDV Cervídeos Similar a língua azul Américas, Austrália, Culicoides


Doença (vários África
epizoótica sorotipos)
hemorrágica
Ibakari Bovinos Doença febril semelhante Ásia, Austrália, Culicoides
Kawanabe a língua azul, encefalite Japão

Kasba Bovinos Abortos África do Sul Culicoides


Palyam
Chuzan Bovinos Malformações congênitas Japão Culicoides
794 Capítulo 30

O congelamento pode reduzir até 90% a infecti- rotipos e entre as diferentes espécies do gênero,
vidade viral, porém a infectividade é preservada enquanto as proteínas não-estruturais NS1 e NS2
quando mantidos a -70ºC. são altamente conservadas. Estudos baseados na
O genoma desses vírus é composto por 10 seqüência de aminoácidos da proteína estrutural
segmentos de dsRNA, cada um deles codificando VP3, que é altamente conservada, têm sido utili-
uma, duas ou três proteínas (geralmente uma). O zados para agrupar cepas isoladas de diferentes
padrão de migração desses segmentos pode ser regiões, como América, África do Sul e Austrá-
usado para diferenciar sorogrupos dos orbivírus, lia, em sorotipos e sorogrupos. Por outro lado,
assim como diferenciá-los de outros gêneros da estudos baseados na seqüência da VP5 fornecem
família Reoviridae. informações sobre o sorotipo viral. De fato, uma
Devido à natureza dos genomas segmenta- comparação entre as seqüências das proteínas do
dos e, dependendo da compatibilidade genética, BTV, EHDV e AHSV indicou que a VP3 é a prote-
os orbivírus podem sofrer ressortimento de seus ína mais conservada e a VP2 a mais variável.
genes durante infecções mistas. Esses eventos po-
dem envolver vírus de um mesmo sorotipo ou di- 5.2 O vírion, o genoma e as proteínas
ferentes sorotipos. Uma alta freqüência de ressor- virais
timentos genômicos entre orbivírus relacionados
já foi demonstrada em hospedeiros vertebrados e Grande parte dos conhecimentos sobre a es-
invertebrados, bem como em cultivos celulares. trutura das partículas víricas, biologia molecular
Aparentemente, a freqüência de ressortimento é e replicação dos orbivírus foi obtida a partir de
mais observada nos vetores artrópodes. Esse fe- estudos do protótipo do gênero, o BTV. O geno-
nômeno é um dos responsáveis pela diversidade ma do BTV consiste de 10 segmentos de dsRNA,
genética da população dos orbivírus na natureza. divididos em três segmentos grandes (L1 a L3),
Múltiplos sorotipos de um mesmo ou de diferen- três médios (M4 a M6) e quatro pequenos (S7 a
tes sorogrupos têm sido identificados no mesmo S10). O conjunto de segmentos genômicos codi-
inseto, indicando que vírus geneticamente distin- fica sete proteínas estruturais (VP1 a VP7) e três
tos podem estar presentes em um único hospe- proteínas não-estruturais (NS1 a NS3). As duas
deiro. fitas de RNA que compõem cada segmento ge-
Também têm sido reportadas variações ge- nômico são exatamente complementares, embora
néticas dentro de isolados do mesmo sorotipo ao a extremidade 5’ da fita codificante (polaridade
longo de um mesmo ano em diferentes regiões, positiva) de cada duplex possua a estrutura cap,
indicando que mutações e evolução ocorrem enquanto a cadeia complementar não possui esta
também dentro de cada sorotipo. modificação em sua extremidade. A seqüência
Assim, os sorotipos atualmente existentes completa de nucleotídeos de todos os segmentos
nos diversos continentes refletem provavelmente de vários sorotipos do BTV e de alguns represen-
uma combinação de mutações, rearranjos e co- tantes dos grupos da EHDV e AHSV já foi estabe-
evoluções de um pool de genes de vírus de vá- lecida. As características de cada segmento, a(s)
rias localidades. Essa evolução ocorre através dos proteína(s) codificada(s), sua localização e prová-
tempos e resulta em uma diversidade genética veis funções estão apresentadas na Tabela 30.5.
com conseqüências epidemiológicas e clínico-pa- Os vírions do BTV medem entre 65 a 75 nm
tológicas ainda pouco conhecidas. Da mesma for- de diâmetro, não apresentam envelope lipídico,
ma, o impacto dos rearranjos dos segmentos so- e as proteínas que formam a partícula viral estão
bre o fenótipo viral, viremia e transmissibilidade, dispostas em camadas concêntricas que conferem
pressão seletiva na resposta imune do hospedei- a ela uma simetria icosaédrica (Figura 30.7). A ca-
ro, virulência e conseqüências do uso de vacinas mada interna ou núcleo (54-58 nm de diâmetro)
vivas multivalentes são ainda pouco conhecidos. contém cinco proteínas (VP1, VP3, VP4, VP6 e
As duas proteínas externas do capsídeo VP7). Dentre estas, a VP7 (antígeno determinante
(VP5 e VP2) são as mais variáveis dentro dos so- do sorogrupo) e a VP3 são as mais abundantes. A
Reoviridae 795

Tabela 30.5. Características dos segmentos genômicos e das proteínas codificadas pelo genoma dos orbivírus.

Segmento N° de Proteína Massa (Da) Localização na


do genoma bases Principais funções
codificada partícula viral

L1 3.954 VP1 149.588 Núcleo interno RNA polimerase

Ligação aos receptores celulares e


penetração nas células de mamíferos;
L2 2.926 VP2 111.112 Capsídeo externo hemaglutinina; determinação do
sorotipo, principais epitopos
neutralizantes.

L3 2.772 VP3 103.344 Subnúcleo Formação de estrutura para


deposição dos trímeros de Vp7.

M4 2.011 VP4 76.433 Núcleo interno Função enzimática de


guanililtransferase e metiltransferase.

M5 1.639 VP5 59.163 Capsídeo externo Penetração viral.

M6 1.770 NS1 64.445 Não-estrutural Formação dos túbulos.

S7 1.156 VP7 38.548 Subnúcleo Determinação do sorogrupo,


penetração em células de insetos.

S8 1.124 NS2 40.999 Não-estrutural Formação de corpúsculos de inclusão,


ligação a RNA de fita simples.

S9 1.046 VP6 35.750 Núcleo interno Ligação à ssRNA, dsRNA,


helicase e ATPase.

NS3 25.572
S10 822 Não-estrutural Auxílio no egresso das
NS3A 24.020 partículas víricas.

VP3 forma uma estrutura central ou subnúcleo, no núcleo e seqüência de aminoácidos, acredita-
no qual 260 trímeros da VP7 estão ancorados. se que seja a RNA polimerase viral. Essa proteína
Por isso exerce uma importante função na inte- seria a responsável pela transcrição e replicação
gridade estrutural do núcleo viral. A seqüência do genoma durante a replicação viral nas células
de nucleotídeos que codifica a VP3 é altamente hospedeiras.
conservada entre os diferentes sorotipos do vírus O núcleo icosaédrico do BTV é circundado
e também é muito semelhante a VP3 do EHDV e pela camada externa ou capsídeo, que é composto
ASFV. A VP7 é a proteína mais abundante que pelas proteínas VP2 e VP5. Estas proteínas são as
compõe o núcleo e contém os principais determi- menos conservadas entre os diferentes sorotipos
nantes antigênicos específicos de grupo. Apesar do vírus. A VP2 é o principal determinante do so-
de fazer parte do núcleo, sabe-se que esta proteí- rotipo e é responsável pelo estímulo para a pro-
na está exposta em algumas regiões da superfície dução de anticorpos neutralizantes. Além disso,
viral e é capaz de estimular a produção de anti- apresenta atividade de hemaglutinação e hemad-
corpos. sorção. A segunda proteína do capsídeo externo
Localizadas no interior do subnúcleo, as pro- é a VP5, que possui 526 aminoácidos. Esta prote-
teínas VP1, VP4 e VP6 estão presentes em peque- ína é mais variável do que as outras proteínas do
nas quantidades e parecem não desempenhar um núcleo, mas é mais conservada do que a VP2. A
papel importante na estrutura do núcleo. A VP1 é VP5 possui uma função importante na penetra-
a proteína com maior massa do BTV e, com base ção do vírus na membrana do endossomo, sendo
em sua massa, localização, concentração molar responsável pela liberação do núcleo viral no ci-
796 Capítulo 30

A B
VP2
VP5
VP7

dsRNA

VP1

VP3

VP4

VP6

Fonte: A) Dr Peter Mertens, www.iah.bbsrc.ac.uk; B) Adaptado de Roy (2001).

Figura 30.7. Partículas víricas dos orbivírus. A) Fotografia de microscopia eletrônica de um vírion; B) Ilustração
esquemática da estrutura de uma partícula vírica indicando os elementos constituintes.

toplasma celular. A sua conformação estrutural proteína a principal responsável pela penetração
indica que é capaz de induzir a permeabilização do vírus nas células de mamíferos. Acredita-se
e desestabilização de membranas. que a VP7, localizada no core, esteja envolvida
Três proteínas não-estruturais (NS1, NS2 em um mecanismo equivalente nas células dos
e NS3) são produzidas durante a replicação do insetos vetores Culicoides. A natureza dos recep-
BTV. A NS1 e NS2 são sintetizadas abundante- tores celulares que medeiam este evento ainda
mente, enquanto NS3 é de difícil detecção. A se- está sendo esclarecida, porém sabe-se que a VP2
qüência dessas proteínas é altamente conservada possui a característica de se ligar a uma sialogli-
entre os sorotipos, o que indica a sua importância coproteína presente em eritrócitos de várias espé-
para a replicação desses vírus. A síntese da NS1 cies animais.
e NS2 coincide, respectivamente, com o apare- Após a ligação aos receptores por meio da
cimento de duas estruturas vírus-específicas: os VP2, os vírions são internalizados por endocito-
túbulos e os corpúsculos de inclusão. Presume-se se. Poucos minutos após, os vírions podem ser
que essas estruturas estejam envolvidas na repli- encontrados no interior de vesículas nas proxi-
cação e no processo de transporte das partículas midades do núcleo. Aproximadamente uma hora
virais para a membrana celular ou na prevenção pós-infecção, as partículas perdem as proteínas
da mitose em células infectadas. A NS3 é a pro- VP2 e VP5 do capsídeo, provavelmente pela ação
teína menos abundante do BTV e a sua função do baixo pH e pela concentração de cátions no in-
ainda não está totalmente esclarecida, mas sabe- terior dos endossomos. Este mecanismo é essen-
se que é essencial para o egresso das partículas cial para que a transcriptase viral (RNA polime-
víricas da célula. rase) se torne ativa, o que ocorre pelo acesso de
nucleotídeos trifosfato ao genoma viral através
5.3 Replicação de canais localizados nas camadas que delimitam
o núcleo viral.
A adsorção dos vírions do BTV às células No citoplasma, as partículas virais semi-de-
hospedeiras parece envolver uma interação rápi- sintegradas se ligam a fibras do citoesqueleto e,
da e específica de algumas regiões da VP2 com após o início da transcrição do genoma viral, a
componentes da membrana celular, sendo esta síntese das proteínas da célula hospedeira é rapi-
Reoviridae 797

damente reprimida. O primeiro polipeptídeo vi- ças em relação a sua espessura e extensão, va-
ral é detectado duas a quatro horas pós-infecção, riando para cada espécie viral, o que sugere que
e a síntese protéica viral atinge o pico entre nove possuem uma função específica para cada grupo
e 11 horas após, diminuindo progressivamente viral. Os corpúsculos, os túbulos e as partículas
até a morte celular. virais recém-formadas são associadas com redes
A proteína VP6 possui função de helicase de filamentos intermediários no citoesqueleto ce-
e desenrola os componentes do duplex de RNA lular.
genômico, enquanto a VP1 inicia a síntese de mo- No processo de morfogênese das partículas,
léculas de RNA de sentido positivo, para serem ocorre inicialmente a formação do subnúcleo,
utilizadas como mRNA para a síntese protéica. que é composto pela VP3, VP4, VP1 e VP6. Em
Uma vez sintetizadas, essas moléculas são seguida, são montados e adicionados os tríme-
modificadas pela atividade enzimática da VP4, ros de VP7, formando o núcleo viral. Acredita-se
sendo metiladas na extremidade 5’. Os mRNA, que a NS2, com a sua capacidade de ligação ao
assim sintetizados, são exportados dos capsídeos RNA, facilita o “empacotamento” dos segmentos
semi-íntegros para o citoplasma, para o início da genômicos no núcleo viral. A seguir, as proteínas
tradução. A fita de RNA de polaridade negativa VP2 e VP5 se associam através da interação com
é sintetizada também pela ação da VP1, inician- a VP7.
do a partir da extremidade 3’ das fitas positivas. Vários estudos da morfogênese do BTV
Em geral, os segmentos genômicos menores são têm sido conduzidos, utilizando a expressão de
transcritos com maior freqüência, porém o frag- proteínas individuais no sistema de baculovírus.
mento que codifica a proteína NS1 é o mais abun- Nesses estudos, observou-se que as proteínas es-
dantemente transcrito. truturais possuem a capacidade de se associarem
A condensação dos RNAs recém-produzi- entre si, na ausência do genoma, formando partí-
dos pela transcrição e as proteínas recém-pro- culas chamadas de CLP (core like particles) ou VLP
duzidas pela tradução formam os corpúsculos (virus like particles), dependendo da combinação
de inclusão, onde os vírions são montados gra- das proteínas produzidas.
dativamente, desde núcleo até partícula viral Após a formação do capsídeo pela adição
completa, e, subseqüentemente, liberados para o da VP2 e VP5 ao núcleo viral, as partículas virais
citoplasma. A VP2 e a VP5 são adicionadas aos estão prontas para o seu egresso das células in-
vírions na periferia dos corpúsculos. fectadas. Nas fases iniciais da infecção, os vírions
Os corpúsculos de inclusão podem ser gra- podem ser liberados por brotamento através da
nulares ou fibrilares, são encontrados dispersos membrana plasmática, onde adquirem um enve-
pela célula e correspondem aos sítios de morfo- lope temporário. Quando já há desestruturação
gênese das partículas virais. Esses corpúsculos da membrana celular, grupos de partículas virais
são compostos por ssRNA, dsRNA, núcleos e se movem através de membrana plasmática rom-
subnúcleos virais, algumas proteínas estruturais pida e são, assim, liberados. A proteína não-es-
(VP3, VP7 e VP5) e, principalmente, a NS2. Esta trutural NS3 tem sido identificada nesses sítios,
proteína pode ligar-se ao RNA viral, facilitan- sugerindo um papel importante, provavelmente
do, assim, o seu encapsidamento no interior dos mediando a liberação das partículas por exocito-
núcleos virais. Proteínas estruturais e partículas se.
virais completas são observadas em maior con-
centração na periferia dos corpúsculos. 5.4 Patogenia
A NS1 é produzida em grandes quantida-
des, formando os túbulos que estão presentes Os orbivírus são transmitidos para os hos-
em grande abundância, predominantemente ao pedeiros vertebrados por insetos hematófagos.
redor ou nas proximidades do núcleo da célula Após a replicação primária nos linfonodos re-
hospedeira. Essas estruturas são características gionais, os vírions se disseminam para o baço,
da infecção por orbivírus e apresentam diferen- timo e outros linfonodos associados às células
798 Capítulo 30

sangüíneas. O BTV se liga a glicoforinas na su- O maior impacto da doença causada pelo
perfície dos eritrócitos de bovinos e ovinos, onde BTV é observado na indústria ovina, já que é
persiste em invaginações da membrana. Nesses nesta espécie que as manifestações clínicas da
locais, os vírions permanecem protegidos dos doença ocorrem com maior freqüência e severi-
anticorpos circulantes por longo período, resul- dade. As perdas por mortalidade podem chegar
tando em viremia prolongada. Essa viremia de a 40%, e perdas indiretas por queda de produção
longa duração proporciona uma contínua opor- no período de convalescença são especialmente
tunidade para a transmissão do agente. importantes. Para países que produzem lã de alta
A maioria dos orbivírus são neurovirulentos qualidade, a “quebra da lã” pode ocorrer como
e alguns são neuroinvasivos quando inoculados conseqüência da doença, causando sérios prejuí-
em camundongos ou hamsters, e os fetos são par- zos. Nos bovinos, a doença clínica é rara e, apesar
ticularmente susceptíveis a infecção. de perdas diretas ocorrerem, principalmente em
Uma característica marcante da patogenia casos de epidemias, as maiores perdas são cau-
da infecção por esses vírus é a sua capacidade de sadas pelas restrições de mercado. De fato, as
replicar e destruir células endoteliais em diferen- restrições ao comércio de animais e subprodutos
tes órgãos. A lise dessas células leva à injúria vas- provavelmente são responsáveis pelas maiores
cular, resultando em lesão dos capilares, hemor- perdas econômicas associadas com a infecção
ragias e coagulação intravascular disseminada. pelo BTV. Por muitos anos, a infecção pelo BTV
Clinicamente, observa-se edema generalizado, foi considerada uma das principais barreiras para
hidrotórax, hidropericárdio, hemorragias gene- a exportação de ruminantes dos EUA para outros
ralizadas, hipotensão e choque. países, sobretudo para a Austrália, Nova Zelân-
A capacidade de atravessar a placenta e in- dia e Comunidade Européia.
fectar os fetos é outra propriedade importante
dos orbivírus. A infecção de ovelhas e vacas, com 5.5.1 Epidemiologia
o BTV, e de bovinos, com o vírus de Ibaraki ou o
vírus Kasba do grupo Palyam, pode resultar em O BTV é capaz de infectar naturalmente uma
abortos e no nascimento de produtos com anor- variedade de ruminantes domésticos e selvagens,
malidades, incluindo hidrocefalia, artrogripose, incluindo ovinos, caprinos, bovinos, bubalinos,
prognatismo, cegueira e surdez. camelos, cervídeos e outros herbívoros, como os
elefantes. A doença clínica é mais comum nos
5.5 Vírus da língua azul ovinos e cervídeos. Embora a infecção nos bovi-
nos seja de grande importância epidemiológica,
Dentre os membros do gênero orbivírus, o a infecção nesta espécie é geralmente subclínica.
vírus da língua azul (BTV) é o que possui maior Em 1994, nos Estados Unidos, foi demonstrada
relevância em medicina veterinária e será abor- uma associação entre a administração de vacinas
dado com detalhes. contaminadas com o BTV e morte fulminante em
A língua azul (BT) é uma enfermidade in- cães com problemas cardíacos e respiratórios. A
fecciosa, não-contagiosa, associada com a infec- importância desses achados é desconhecida.
ção pelo BTV, transmitida por insetos vetores e O vírus é transmitido por mosquitos do gê-
caracterizada por inflamação das mucosas, he- nero Culicoides, que possuem grande variação de
morragia e edema generalizados. A enfermidade hábitos alimentares, preferência por hospedeiros
tem sido também denominada febre catarral do e competência na transmissão da infecção. No
carneiro. Os isolados do BTV podem ser agrupa- Brasil, os mosquitos Culicoides sp. são denomi-
dos em 24 sorotipos, de acordo com a sua reati- nados “maruim”, “mosquitos-pólvora” ou “mos-
vidade sorológica. Variações de patogenicidade e quitos-do-mangue”. Apesar de existirem poucos
virulência têm sido observadas entre isolados de estudos sobre esses vetores no País, várias espé-
campo, assim como diferentes padrões de tropis- cies competentes na transmissão da doença, como
mo tecidual e fetal. o Culicoides insignis, já foram descritas.
Reoviridae 799

Os mosquitos adquirem o vírus quando in- a) áreas endêmicas: onde a infecção é co-
gerem sangue de um hospedeiro virêmico. Ape- mum, mas a ocorrência da doença clínica é rara
nas as fêmeas são hematófagas e requerem pelo devido à presença de grande número de animais
menos um repasto sangüíneo para a conclusão de soropositivos. Nessas áreas, o vírus pode ser iso-
um ciclo ovariano. Por isso o pico de atividade lado, com freqüência, de insetos vetores ou de
desses insetos está relacionado com o seu ciclo animais virêmicos. A doença pode ocorrer após a
reprodutivo. Estações quentes e úmidas favore- introdução de animais virêmicos infectados com
cem o aparecimento dos Culicoides e, conseqüen- sorotipos exóticos para a área ou quando animais
temente, a maior transmissão do vírus. A popu- susceptíveis, oriundos de zonas livres da doença,
lação desses insetos tende a diminuir no outono e são introduzidos nessas áreas;
inverno, quando a temperatura é mais baixa. b) áreas epiendêmicas: onde o número de
Após a ingestão e adsorção na parede do in- animais soropositivos varia e a ocorrência da do-
testino médio do mosquito, o vírus se multipli- ença é geralmente localizada em áreas específicas.
ca em tecidos intestinais e em outros tecidos do Casos de doença podem ocorrer em formas de
inseto, incluindo as glândulas salivares. Assim, surtos esporádicos, dependendo principalmente
pode ser transmitido a um novo hospedeiro ao se de variações climáticas, como temperatura, umi-
alimentar novamente. dade do ar, velocidade e direção dos ventos;
A viremia que ocorre nos hospedeiros é c) áreas livres: onde não há animais soropo-
essencial para a transmissão do vírus, uma vez sitivos, geralmente pela impossibilidade de so-
que, nessa fase, o vírus encontra-se associado às brevivência dos insetos vetores.
células sangüíneas (principalmente monócitos, Vários fatores podem alterar a distribuição
linfócitos e eritrócitos). Nos ovinos e caprinos, a do vírus dentro dessas áreas, como alterações
viremia dura em média 50 e 28-41 dias, respecti- climáticas em regiões limítrofes, movimento de
vamente. Nos bovinos, a viremia pode persistir animais, mudanças nas características da esta-
por mais de 100 dias, sendo estes animais con- ção chuvosa e, principalmente, movimento dos
siderados de grande importância epidemiológica ventos, que podem trazer os vetores Culicoides de
por servirem como reservatórios do vírus por pe- regiões distantes. O movimento dos hospedeiros
ríodos prolongados. Durante esse período, o vírus para áreas endemicamente infectadas em busca
circula intimamente associado com a membrana de alimentos ou de climas mais amenos também
dos eritrócitos, ficando protegido dos anticorpos pode levar ao aparecimento de surtos localiza-
neutralizantes. Várias espécies de Culicoides com- dos. Assim, essas zonas são dinâmicas e repre-
petentes na transmissão do BTV se alimentam sentam o resultado da interação entre o vírus, o
preferencialmente nos bovinos, mesmo quando meio ambiente e os hospedeiros.
ovinos e caprinos estão presentes. No passado, o BTV já havia sido esporadi-
A infecção pelo BTV está distribuída nas camente detectado em alguns países da costa do
áreas tropicais e subtropicais em todos os conti- mar Mediterrâneo, mas, nas últimas décadas, pa-
nentes, entre as latitudes 40ºN e 35ºS, onde está recia estar ausente do continente. No entanto, em
concentrado aproximadamente 70,7% do reba- 2006, foi reintroduzido em vários países europeus
nho ovino mundial. Essa área inclui as Américas, (Holanda, Bélgica e Alemanha), provavelmente
África, parte da Europa, Ásia e Oriente Médio. a partir da África, onde permanece endêmico.
Muitos países localizados em áreas tropicais, A reintrodução do vírus na Europa causou uma
como a Ásia, Caribe e América do Sul, apresen- grande repercussão, pelas possíveis conseqüên-
tam evidências sorológicas da presença do BTV cias sanitárias e comerciais e também pelo receio
em ovinos e outros ruminantes, porém sem rela- de a infecção se tornar endêmica em algumas re-
tos da ocorrência de doença. giões com condições climáticas propícias para a
A distribuição geográfica da BT pode ser di- sobrevivência dos vetores.
vidida em três áreas epidemiológicas, com o ob- Os inquéritos sorológicos, realizados no ter-
jetivo de facilitar a análise da epidemiologia da ritório brasileiro, em bovinos, caprinos, ovinos e
doença: bubalinos por meio da técnica de imunodifusão
800 Capítulo 30

em gel de ágar (IDGA), indicam que a infecção prazo, ou seja, a principal forma de disseminação
está amplamente distribuída em todas as regiões. do vírus é por meio de insetos vetores.
Pelos dados sorológicos obtidos associados com O risco de transmissão por transferência
a falta de relatos clínicos, acredita-se o BTV per- de embriões é muito baixo, desde que as reco-
petue-se de forma inaparente nos rebanhos bra- mendações técnicas sejam seguidas. Da mesma
sileiros. Os casos clínicos que ocorrem parecem forma, existem poucos relatos na literatura des-
ser brandos ou de menor importância do ponto crevendo o isolamento do BTV a partir de outras
de vista econômico e, muitas vezes, passam des- secreções que não o sêmen. Portanto, não se sabe
percebidos. As possíveis explicações para este se o vírus estaria presente em outras secreções ou
fato são: baixa virulência das cepas circulantes se poderia ser transmitido por via iatrogênica. De
no país, maior resistência de algumas raças con- qualquer forma, esses possíveis mecanismos de
tra a infecção ou a característica endêmica que a transmissão provavelmente possuam importân-
infecção assume na maior parte do país, onde as cia epidemiológica limitada.
condições de temperatura e umidade favorecem
a multiplicação e manutenção dos vetores. 5.5.2 Patogenia, sinais clínicos
O estado do Rio Grande do Sul apresenta e patologia
as menores taxas de prevalência, provavelmente
devido ao clima, que não favorece a sobrevivên- A replicação inicial do vírus ocorre no sítio
cia dos vetores, porém se mostra como área de da picada do inseto vetor, sobretudo, nas célu-
risco, com um grande número de animais suscep- las endoteliais do sistema vascular e em células
tíveis. Nos estados da região Nordeste, onde se do sistema linforreticular. A replicação primária
encontra o principal efetivo dos rebanhos ovinos é seguida por viremia associada às células san-
e caprinos, assim como os estados da região Su- güíneas (eritrócitos, leucócitos e plaquetas) e dis-
deste, que estão entre os líderes na produção de seminação do vírus para outros linfonodos, baço,
carne e leite no Brasil, observa-se a presença dos medula óssea e outros tecidos. Nesses tecidos, o
fatores necessários para a ocorrência da doença: vírus se replica no sistema microvascular, resul-
vírus circulando, vetores e animais susceptíveis. tando nas alterações patológicas características
Em Minas Gerais, estudos recentes mostraram da doença. A maior concentração de vírus se en-
uma soroprevalência de 45 e 54% em caprinos e contra nos endotélios da microvascularização do
ovinos, respectivamente. epitélio bucal. Uma grande variedade de órgãos
Até o presente, apenas dois sorotipos do BTV pode ser afetada, incluindo pulmões, baço, cora-
foram identificados inequivocamente no Brasil. ção, rim e bexiga.
O sorotipo 4 foi isolado, em 1980, nos EUA, de Acredita-se que o vírus interaja de forma
animais que haviam sido exportados para aquele distinta com os receptores das células endoteliais
país. O sorotipo 12 foi identificado em 2001, no das diferentes espécies animais, resultando em
Paraná, onde caprinos, ovinos e bovinos foram diferenças marcantes na patologia vascular. Isso
acometidos. No entanto, investigações realizadas poderia explicar as manifestações clínicas distin-
em laboratórios internacionais de referência, uti- tas observadas entre as espécies de ruminantes
lizando a técnica de SN, indicam que outros soro- afetadas. Algumas hipóteses propõem que as
tipos podem também estar presentes no Brasil. manifestações clínicas nos bovinos podem estar
O risco de se introduzir o BTV pela importa- associadas com uma reação de hipersensibilida-
ção de animais é considerado muito maior do que de retardada, mediada por imunoglobulinas da
a introdução por sêmen ou embriões contamina- classe E (IgE), devida as várias e constantes rein-
dos. Embora a transmissão venérea, por meio de fecções pelo vírus.
sêmen contaminado e transmissão congênita do Em ovinos, o período de incubação varia
vírus possam ocorrer, a restrição geográfica da entre cinco e dez dias. Os sinais clínicos iniciam-
doença indica que esses mecanismos não são im- se por uma elevação da temperatura corporal,
portantes para a perpetuação da infecção a longo que coincide com o aumento da freqüência res-
Reoviridae 801

piratória. As manifestações clínicas podem estar infecção e da doença pode ser influenciada pelo
ausentes ou se manifestarem de forma aguda. sorotipo, dose infectante, fisiologia do hospedei-
Em áreas endêmicas, a doença é rara, apresen- ro, raça e outros fatores externos. Os surtos são
tando-se geralmente em animais vindos de áreas esporádicos, e a morbidade é variável, situando-
livres. Como regra, o primeiro sinal é o aumento se geralmente em torno de 5%. Provavelmente
da temperatura corporal de 41 a 42ºC, seis a sete menos de 1% dos bovinos infectados apresentem
dias pós-infecção. A hipertermia persiste, em mé- sinais clínicos em decorrência da infecção. Esses
dia, seis a sete dias, mas este período pode ser sinais são caracterizados por febre transitória,
tão curto quanto dois dias ou tão longo quanto seguida de hiperemia e lesões ulcerativas na lín-
11 dias. A ocorrência de um segundo pico febril gua, palato, gengiva, mucosa oral e lábios. O fo-
nos dias 10-11 pós-infecção pode ser observada cinho apresenta uma aparência ressecada, com a
em alguns casos. pele quebradiça. Com o progresso da doença, os
Os primeiros sinais observados são: hipere- animais podem apresentar claudicação devido a
mia no focinho, lábios e mucosa oral, que torna- inflamação da região da coroa do casco. Úlceras
se evidente entre dois a três dias após a febre. A nos tetos podem se desenvolver, com uma sub-
hiperemia pode se estender para a pele, levando seqüente redução na produção de leite. Em casos
à “quebra de lã”. Edema generalizado na face e crônicos, a patologia é mais pronunciada na pele,
mandíbula desenvolve-se 10-12 dias após a in- na qual se observam edema e infiltração eosino-
fecção. Descarga nasal serosa e mucopurulenta fílica na derme.
pode ocorrer. A presença de exsudado seroso ou A infecção de vacas prenhes na primeira
serossanguinolento, evoluindo a mucopurulento, metade da gestação (até 150 dias) pode resultar
de forma a bloquear a abertura das narinas e for- em morte embrionária ou fetal ou no nascimen-
çar a respiração pela boca, pode ser observada. A to de bezerros com malformações neurológicas,
língua pode estar edemaciada e estendida para como hidrocefalia e cegueira. Fetos infectados
fora da boca, mas raramente se torna cianótica, em fases posteriores nascem normais ou podem
apesar deste sinal ter sido o responsável pela de- apresentar viremia prolongada. No entanto, ain-
nominação da doença. Ulcerações na língua e em da não foi comprovada a ocorrência de animais
mucosas podem propiciar infecções secundárias imunotolerantes ao vírus. Existem evidências de
e necrose, principalmente na região superior do que algumas amostras do BTV ou mesmo alguns
esôfago e faringe, causando vômito e aspiração sorotipos possuem predileção pelo útero grávi-
do conteúdo ruminal, levando à pneumonia de- do e, conseqüentemente, produzem infecção do
bilitante. concepto.
A inflamação da banda coronária imediata- A infecção de caprinos é geralmente branda
mente acima do casco, geralmente resultando em ou inaparente, manifestando-se apenas por febre
laminite, é outro achado comum, principalmente ocasional, viremia em níveis baixos e curta du-
nas fases finais de infecção. Prostação e dificulda- ração, leucopenia e hiperemia leve da conjuntiva
de de locomoção são geralmente observadas em e mucosa nasal. Em alguns ruminantes silvestres
conseqüência das lesões musculares e nos cascos. – sobretudo cervídeos –, o BTV pode produzir
Fraqueza muscular e, em casos extremos, torcico- manifestações clínicas semelhantes às observa-
lo irreversível e morte, podem ocorrer. das na infecção aguda em ovinos.
Ovelhas prenhes podem abortar em qual- Os achados patológicos da enfermidade
quer fase da gestação. A infecção dos fetos com causada pelo BTV estão relacionados com as le-
40 a 80 dias de idade geralmente apresenta, como sões no endotélio vascular, que resultam na sua
conseqüência, o nascimento de cordeiros com hi- fragilização e em alterações na permeabilidade
drocefalia e outras alterações no cérebro, displa- vascular. Essas alterações resultam em edema,
sia da retina e outras alterações teratogênicas. congestão, hemorragias, inflamação e necrose.
A infecção pelo BTV em bovinos é muito co- Em ovinos, a face e as orelhas se apresentam
mum, mas a ocorrência de manifestações clínicas edematosas, e as narinas podem conter exsudato.
é considerada rara nessa espécie. A severidade da As bandas coronárias freqüentemente se encon-
802 Capítulo 30

tram hiperêmicas. Petéquias, úlceras e erosões têm sido extensivamente utilizados na vigilância
são comuns na cavidade oral. As mucosas nasal e epidemiológica e para emissão de certificados de
oral podem estar congestas, necrosadas e cianóti- trânsito, cujos rebanhos são destinados à expor-
cas. Hiperemia e erosões podem ser encontradas tação.
no retículo e omaso. Petéquias, equimoses e focos Para a detecção do vírus em amostras de
necróticos podem ser observados no coração. He- sangue e tecidos, o teste in vitro mais sensível é
morragia na base da artéria pulmonar é um acha- a inoculação intravenosa em ovos embrionados,
do particular da doença em ovinos. Hiperemia, seguida do cultivo em células BHK. A identifica-
hemorragia, edema em vários órgãos, hemorra- ção do grupo BTV é geralmente realizada pela
gias focais e necrose nos músculos esqueléticos técnica de imunofluorescência direta (IFD) e a
podem também ser observados. tipificação sorológica por meio da técnica de SN,
Nos cervídeos, as lesões mais evidentes são utilizando-se uma bateria de soros dos 24 soroti-
petéquias e equimoses disseminadas por vários pos existentes. O isolamento do vírus em cultivo
órgãos e tecidos. Animais com úlceras necróticas celular, a partir de amostras clínicas, é particu-
na cavidade oral e lesões nos cascos podem ser larmente difícil, o que dificulta sobremaneira o
encontrados em casos em que o curso da doença diagnóstico da infecção. Métodos alternativos,
é mais prolongado. como a RT-PCR, têm sido utilizados para detec-
O exame microscópico das lesões das muco- tar a presença do vírus ou do ácido nucléico viral
sas demonstra infiltração de células mononuclea- em amostras clínicas (sangue) e em vetores.
res, degeneração e necrose das células epiteliais. As principais enfermidades consideradas no
Os músculos afetados apresentam edema, he- diagnóstico diferencial são o ectima contagioso,
morragia, degeneração hialina e necrose. Infiltra- febre aftosa, fotossensibilização, diarréia viral
ção de neutrófilos, macrófagos e linfócitos estão bovina/doença das mucosas, rinotraqueíte infec-
presentes em casos agudos. ciosa bovina, estomatite vesicular, febre catarral
maligna e enfermidade hemorrágica epizoótica
5.5.3 Diagnóstico dos cervos.

Deve-se suspeitar de língua azul quando os 5.5.4 Controle e profilaxia


sinais clínicos característicos da doença forem
observados em ovinos e bovinos, principalmente Em áreas livres, o controle da infecção pelo
nas estações de maior atividade dos vetores ou BTV deve ser focado principalmente no controle
quando animais provenientes de outras regiões do movimento de animais, em regras rígidas de
são introduzidos em áreas endêmicas. importação e quarentena, geralmente acompa-
Para o diagnóstico laboratorial, amostras de nhadas de dois a três testes sorológicos.
sangue total e de soro devem ser coletadas de vá- Uma vez que a infecção se instale em região
rios animais do rebanho. Baço, medula, coração livre, o diagnóstico rápido, associado ao sacrifí-
e linfonodos mesentéricos são os tecidos de es- cio dos animais, desinfecção rigorosa e contro-
colha a serem coletados em animais submetidos le de vetores são as medidas a serem adotadas.
à necropsia. Sangue, soro, baço e tecido nervoso Porém, como a infecção pelo BTV pode ocorrer
devem ser coletados de cordeiros ou bezerros sem evidências clínicas, sobretudo em bovinos, a
com problemas congênitos. O material deve ser infecção pode se disseminar despercebida. Uma
enviado refrigerado, o mais rápido possível, para vez estabelecida de forma endêmica, a possibili-
o laboratório. dade de erradicação da infecção é praticamente
O diagnóstico sorológico da infecção pelo nula. Assim, as medidas a serem adotadas obje-
BTV é baseado principalmente nas técnicas de tivam minimizar os prejuízos causados pela do-
IDGA e ELISA, que identificam a exposição dos ença clínica. Nesses casos, o controle pode ser re-
animais a vírus do sorogrupo BTV. Esses testes alizado de duas maneiras: interrompendo o ciclo
Reoviridae 803

de transmissão, por meio do controle de vetores; silvestres, principalmente os cervídeos. A doença


ou reduzindo o número de hospedeiros susceptí- é caracterizada pela ocorrência de alterações he-
veis, pela vacinação. morrágicas em vários órgãos e sistemas. A doen-
A separação de ovinos e bovinos pode re- ça é causada pelo EHDV, um membro do gênero
duzir a possibilidade dos vetores disseminarem Orbivirus da família Reoviridae. Já foram identifi-
a infecção entre essas espécies. Abrigar os ovi- cados nove sorotipos deste vírus (sorotipos 1-9)
nos em áreas protegidas de mosquitos durante a e, ainda, o vírus Ibaraki (IV), que é classificado
noite, período de maior atividade dos vetores ou como um vírus distinto pertencente ao grupo do
para algumas espécies de Culicoides, e manejar as EHDV. Alguns autores acreditam que o IV e o
ovelhas em áreas de altitude elevada são outras EHDV sorotipo 2 australiano pertençam ao mes-
medidas que podem ser adotadas. mo sopotipo.
A redução na população dos vetores pode Apesar de não ser uma doença de importân-
ser obtida com uso de inseticidas, que podem ser cia econômica, a EHD apresenta um importante
aplicados diretamente nos animais de forma lo- significado pela alta mortalidade que causa nos
cal ou sistêmica, ou na fase aquática do ciclo dos cervídeos, podendo reduzir drasticamente a po-
vetores, visando à destruição das larvas. Embora pulação desses animais em determinadas áreas. A
o uso de pesticidas possa ser efetivo em áreas res- doença de Ibaraki possui importância econômica
tritas, a tentativa de controlar Culicoides sp. desta restrita às áreas de sua ocorrência, pois, além de
maneira não se mostra prática para uso rotineiro, problemas reprodutivos, pode levar à mortalida-
podendo resultar em problemas ambientais, além de até 10% dos bovinos acometidos.
de ser muito dispendiosa e economicamente invi-
ável. Além disso, depende dos conhecimentos do 5.6.1 Epidemiologia
ciclo biológico, população e dinâmica dos mos-
quitos da região e aplicação em época certa e com O EHDV pode infectar uma grande varie-
condições climáticas adequadas. dade de ruminantes silvestres e domésticos, mas
O uso da vacinação nas áreas onde a BT se os sinais clínicos são observados principalmente
constitui em problema sanitário importante é a em cervídeos. Nos bovinos, a infecção raramen-
medida mais freqüentemente adotada. Embora te é acompanhada de sinais clínicos. Já a doença
a infecção de bovinos seja comum e curse com de Ibaraki freqüentemente afeta essa espécie. Os
níveis altos de viremia, em todos os países onde ovinos podem ser infectados experimentalmen-
as vacinas são utilizadas, apenas os ovinos têm te, mas raramente desenvolvem sinais clínicos; e
sido vacinados. As vacinas comercialmente dis- os caprinos parecem não ser susceptíveis à infec-
poníveis são atenuadas e geralmente polivalen- ção.
tes, contendo os sorotipos prevalentes em cada A infecção pelo EHDV está presente na
área. A vacinação é adotada rotineiramente em Austrália, Ásia e países africanos. Na América
países como a África do Sul, Israel e alguns esta- do Norte, a infecção é considerada, junto com a
dos dos EUA, onde a doença causa prejuízos para língua azul, a doença mais importante dos cer-
criadores de ovinos. No Brasil, não existem vaci- vídeos. Animais soropositivos para o vírus já fo-
nas disponíveis, pois além da incerteza quanto a ram identificados também na América do Sul. A
distribuição e o impacto econômico da infecção, doença de Ibaraki está restrita ao Japão, Coréia e
os sorotipos prevalentes no país não são conhe- Tailândia, apesar de bovinos soropositivos terem
cidos. sido identificados também na Austrália e Indo-
nésia.
5.6 Vírus da doença hemorrágica No Brasil, poucos estudos têm sido feitos em
epizoótica dos cervídeos relação ao EHDV. Apesar de o vírus não ter sido
isolado e tipificado, existem evidências sorológi-
A doença hemorrágica epizoótica dos cer- cas da sua ocorrência em cervídeos de vida livre
vídeos (EHD) é uma doença viral aguda, fre- nos estados de São Paulo e Mato Grosso. Através
qüentemente fatal, que afeta alguns ruminantes de testes sorológicos, realizados em 81 cervídeos
804 Capítulo 30

capturados, detectou-se 88% positivos o BTV, surtos esporádicos de uma doença severa no Ja-
74% positivos para o EHDV e 60% positivos para pão. Os sinais clínicos consistem de febre, lesões
os dois vírus, indicando a circulação desses vírus erosivas e ulcerativas na cavidade oral e na mu-
no País. cosa esofágica e edema na pele. A mortalidade
Os vírus do sorogrupo do EHDV são trans- pode atingir 10% do rebanho. Lesões degenera-
mitidos por mosquitos do gênero Culicoides, que tivas na musculatura são encontradas no esôfa-
atuam como vetores biológicos. Nos Estados go, laringe, língua e musculatura esquelética. La-
Unidos, onde a doença ocorre freqüentemente minite e problemas de casco podem também ser
em cervídeos, o principal vetor é o C. variipennis. observados. Nos animais gestantes, pode ocorrer
Surtos das doenças causadas pelo EHDV são des- morte fetal e, se a infecção ocorrer entre os dias 70
critos principalmente no final do verão e início do e 120 de gestação, pode ocorrer o nascimento de
animais com hidrocefalia, malformações fetais e
outono, épocas da maior população dos vetores.
distúrbios neurológicos.
Cervídeos infectados podem permanecer virê-
Os achados macroscópicos e microscópicos
micos por até dois meses, atuando nesse período
da EHD são caracterizados por hemorragias, que
como reservatórios e fontes de infecção.
vão desde petéquias a equimoses, e envolvem
diferentes tecidos e órgãos, sendo mais freqüen-
5.6.2 Patogenia, sinais clínicos te o envolvimento do coração, fígado, baço, rim,
e patologia pulmão e trato gastrintestinal. Edema generaliza-
do e aumento do fluido pericárdico são achados
O período de incubação da EHD é de cinco freqüentes. As alterações encontradas são conse-
a dez dias. Nos cervídeos, os sinais clínicos são qüências da degeneração das células endoteliais
semelhantes aos da BT, mas três formas clínicas dos vasos sangüíneos e da interferência no pro-
da doença podem ser observadas: cesso de coagulação.
a) doença hiperaguda: caracterizada por
febre alta, anorexia, fraqueza, aumento da fre-
qüência respiratória e edema acentuado na ca- 5.6.3 Diagnóstico
beça, pescoço e língua. Nesta forma da doença,
os animais geralmente morrem em 8 a 36 horas e Uma combinação do histórico, epidemiolo-
alguns são encontrados mortos sem a observação gia, características clínicas e achados macroscópi-
prévia de sinais clínicos; cos podem levar à suspeita da EHD. No entanto,
b) forma aguda: os sinais mencionados são pelas similaridades com outras enfermidades, o
acompanhados por extensiva hemorragia em isolamento e identificação do vírus são essenciais
vários tecidos, incluindo a pele, coração e trato para o diagnóstico conclusivo. A ocorrência sazo-
gastrintestinal. Geralmente observa-se salivação nal e o quadro de hemorragias generalizadas são
excessiva e descarga nasal, que pode ser sangui- características que fortalecem a suspeita clínica.
nolenta. Erosões na língua, gengiva, palato, rú- No diagnóstico diferencial, devem ser considera-
men e omaso podem ser observadas. As formas das a BT, febre aftosa, fotossensibilização e febre
hiperaguda e aguda apresentam altas taxas de catarral maligna.
mortalidade; Na doença em cervídeos, os melhores te-
c) forma crônica: o animal fica doente por cidos para o isolamento e/ou identificação do
várias semanas, mas se recupera gradualmente, agente ou seus produtos são baço e linfonodos,
quando podem ser observados anéis nos cascos, seguidos de fígado, pulmão e coração. O sangue
causados pela interrupção do seu crescimento. total, coletado com anticoagulantes, é a amostra
Nesta forma da doença, os animais podem tam- indicada para a pesquisa do EHDV e do vírus
bém apresentar úlceras e erosões no rúmen. Ibaraki. O material deve ser enviado sob refrige-
Em ovinos, geralmente não são observados ração ao laboratório. Tecidos fixados em formol,
sinais clínicos relevantes. para análise histopatológica, também podem
A EHD é raramente observada nos bovinos, ser coletados. O soro, principalmente nos casos
porém o sorotipo Ibaraki tem sido associado com de doença crônica, pode ser útil, e, se possível,
Reoviridae 805

o soro pareado deve ser coletado. O diagnóstico CLAVIJO, A. et al. Isolation of bluetongue virus serotype 12 from
an outbreak of the disease in South America. The Veterinary
definitivo baseia-se no isolamento e identificação
Record, v.151, p.301-302, 2002.
do agente. Dentre os métodos mais sensíveis,
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RETROVIRIDAE
Ana Paula Ravazzolo & Ubirajara Maciel da Costa
31
1 Introdução 811

2 Classificação 811

3 Estrutura dos vírions 811

3.1 O genoma 812

4 Replicação 815

5 Retrovírus de interesse veterinário 819

5.1 Vírus da leucose bovina 819


5.1.1 Epidemiologia 819
5.1.2 Patogenia, sinais clínicos, patologia e imunidade 820
5.1.3 Diagnóstico 821
5.1.4 Profilaxia e controle 822

5.2 Vírus da imunodeficiência bovina 823


5.2.1 Epidemiologia 823
5.2.2 Patogenia, sinais clínicos, patologia e imunidade 824
5.2.3 Diagnóstico e controle 824

5.3 Vírus da pneumonia progressiva dos ovinos (Maedi-Visna) 824


5.3.1 Epidemiologia 824
5.3.2 Patogenia, sinais clínicos, patologia e imunidade 825
5.3.3 Diagnóstico e controle 825

5.4 Vírus da artrite-encefalite caprina 826


5.4.1 Epidemiologia 826
5.4.2 Patogenia, sinais clínicos, patologia e imunidade 827
5.4.3 Diagnóstico e controle 827

5.5 Vírus da adenomatose pulmonar dos ovinos 828


5.5.1 Epidemiologia 828
5.5.2 Patogenia, sinais clínicos, patologia e imunidade 828
5.5.3 Diagnóstico e controle 829
5.6 Vírus da anemia infecciosa eqüina 829
5.6.1 Epidemiologia 829
5.6.2 Patogenia, sinais clínicos, patologia e imunidade 830
5.6.3 Diagnóstico e controle 830

5.7 Vírus da leucemia felina 831


5.7.1 Epidemiologia 831
5.7.2 Patogenia, sinais clínicos, patologia e imunidade 832
5.7.3 Diagnóstico e controle 832

5.8 Vírus da imunodeficiência felina 833


5.8.1 Epidemiologia 833
5.8.2 Patogenia, sinais clínicos, patologia e imunidade 834
5.8.3 Diagnóstico 834
5.8.4 Controle e profilaxia 835

5.9 Vírus da leucose aviária 835


5.9.1 Epidemiologia 835
5.9.2 Patogenia, sinais clínicos, patologia e imunidade 836
5.9.3 Diagnóstico e controle 836

6 Bibliografia consultada 836


1 Introdução cefalite caprina (CAEV), os vírus da leucemia
(FeLV) e imunodeficiência felina (FIV) e o vírus
A família Retroviridae é composta por um da leucose aviária (ALV), entre outros.
grande número de vírus que podem ser encontra- Nas duas últimas décadas, um número ex-
dos em, virtualmente, todos os vertebrados. Os pressivo de pesquisas relacionadas aos retrovírus
retrovírus possuem vírions envelopados e apre- foi publicado, pesquisas essas motivadas a partir
sentam duas moléculas idênticas de RNA de fita da identificação e da importância adquirida pelo
simples linear como genoma. Os membros dessa vírus da imunodeficiência humana (HIV). Esse
família são assim denominados por possuírem vírus foi classificado no gênero Lentivirus, em
uma enzima capaz de sintetizar uma molécula de função de sua similaridade com o vírus Maedi-
DNA pela transcrição do seu genoma, mecanismo Visna.
chamado de transcrição reversa. A enzima que Além de sua importância como patógenos
cataliza esta reação – a transcriptase reversa (RT) de animais, vários lentivírus têm sido também
– é um componente dos vírions e possui, ainda, estudados como modelos para o HIV, em estudos
outras atividades essenciais para a replicação vi- de patogenia e na pesquisa e desenvolvimento
ral. A etapa de transcrição reversa se constitui no de drogas antivirais e vacinas. O BLV, que é um
evento central da multiplicação dos retrovírus. O Deltaretrovirus, também tem sido utilizado como
ciclo replicativo dos retrovírus envolve também modelo para o vírus da leucemia dos linfócitos T
uma etapa de integração da cópia DNA do seu de humanos (HTLV).
ácido nucléico no genoma da célula hospedeira, Neste capítulo, serão abordados aspectos re-
etapa essencial para a expressão gênica e para a lacionados aos principais retrovírus de animais
produção de progênie viral. Esse evento faz com domésticos, com ênfase naqueles de maior im-
que as infecções pelos retrovírus assumam um portância em nosso meio.
caráter persistente, ou seja, uma vez infectados,
os hospedeiros se tornam portadores do agente 2 Classificação
pelo resto da vida. Alguns retrovírus também
têm sido descritos como indutores de tumores Segundo o Comitê Internacional de Taxono-
em humanos e animais. mia Viral (International Comittee of Viral Taxonomy
Os retrovírus foram responsáveis por dois – ICTV), a família Retroviridae está dividida em
marcos importantes nas Ciências Biológicas, am- duas subfamílias, sendo cada subfamília dividida
bos relacionados com a descrição da enzima RT em gêneros (Tabela 31.1). A divisão em subfamí-
– DNA polimerase dependente de RNA – por lias baseia-se mais em propriedades patogênicas
Howard Temin, em 1970, que lhe valeu o prêmio do que em critérios moleculares. A análise de ho-
Nobel. O primeiro refere-se à quebra de um para- mologia de nucleotídeos, estrutura e organização
digma: até então se acreditava que a transcrição genômica permite a divisão em grupos. A maio-
só ocorria de DNA para RNA. O segundo, basea- ria dos retrovírus de importância em veterinária
do justamente nesta característica, proporcionou está classificada na subfamília Orthoretrovirinae;
grandes avanços na Biologia Molecular, pela uti- na subfamília Spumaretrovirinae, os Spumavirus
lização de enzimas com essa propriedade na ob- ainda não foram associados com doenças.
tenção de DNA complementar (cDNA) aos RNA
mensageiros (mRNA). 3 Estrutura dos vírions
Os retrovírus podem ser encontrados em
praticamente todas as espécies de animais do- Os vírions dos retrovírus contêm duas mo-
mésticos, com significado clínico e sanitário va- léculas idênticas de RNA de fita simples, polari-
riáveis. Dentre os retrovírus de importância vete- dade positiva, com aproximadamente 10 kb cada.
rinária, destacam-se o vírus da anemia infecciosa Nesse sentido, são os únicos vírus animais a pos-
eqüina (EIAV), o vírus da leucose bovina (BLV), suírem duas cópias do genoma nos vírions e, por
o Maedi-Visna de ovinos, o vírus da artrite e en- isso, são ditos diplóides. O genoma viral encontra-
812 Capítulo 31

Tabela 31.1. Vírus da família Retroviridae de importância em Medicina Veterinária.

Subfamília Gênero Espécie viral

Alpharetrovirus Vírus da leucose aviária (ALV)


Betaretrovirus Jaagsiekte (JSRV; adenocarcinoma ovino)

Gamaretrovirus Vírus da leucemia felina (FeLV)

Deltaretrovirus Vírus da leucose bovina (BLV)


Epsilonretrovirus Nenhum associado com doença animal
Orthoretrovirinae
Vírus da imunodeficiência bovina (BIV)

Vírus da anemia infecciosa eqüina (EIAV)

Lentivirus Vírus da imunodeficiência felina (FIV)


Vírus da artrite encefalite caprina (CAEV)
Vírus Maedi Visna dos ovinos (MVV)

Spumaretrovirinae Spumavirus Nenhum associado com doença animal

se altamente condensado e associado com múlti- ras dos retrovírus são, aproximadamente, esféri-
plas cópias da nucleoproteína (NC), formando o cas e possuem um diâmetro que varia entre 80
núcleo ou core. Neste núcleo também estão pre- e 120 nm para os diferentes vírus. A Figura 31.1
sentes algumas proteínas que desempenham fun- apresenta uma fotografia de microscopia eletrô-
ções catalíticas durante a replicação: a protease nica e uma ilustração esquemática de partículas
(PR), a RT e a integrase (IN). Esse complexo está víricas dos retrovírus.
contido em um capsídeo de forma esférica ou cô-
nica, formado pela associação de cópias múltiplas 3.1 O genoma
da proteína do capsídeo (CA). O nucleocapsídeo
(core + capsídeo) é revestido externamente por O genoma RNA dos membros da família
uma camada formada por centenas ou milhares Retroviridae possui entre sete e 13 kb, dependen-
de cópias da proteína da matriz (MA). Essa cama- do do vírus, e contém três genes principais: gag,
da é recoberta por um envelope lipoprotéico, no pol e env. O gene do antígeno específico de grupo
qual se encontram as duas glicoproteínas virais, (group antigen – gag) codifica as proteínas MA, a
a transmembrana (TM) e a de superfície (SU). A NC e a CA. O gene pol codifica as enzimas RT, IN
TM é uma proteína integral de membrana, ou e PR. O gene env codifica as proteínas do enve-
seja, apresenta uma região transmembrana; a SU lope (TM e SU). As proteínas Gag, Pol e Env são
está localizada externamente no vírion, associa- sintetizadas como poliproteínas precursoras e são
da de forma não-covalente com a região externa clivadas somente na fase final do ciclo, durante
da TM. As partículas víricas dos retrovírus são o egresso e mesmo após, dando origem às pro-
liberadas das células infectadas ainda imaturas. teínas individuais. A Figura 31.2 apresenta uma
A maturação ocorre no meio extracelular, pela ilustração da estrutura e organização do genoma
clivagem dos precursores protéicos e rearranjos dos lentivírus de pequenos ruminantes (SRLV),
estruturais nas estruturas víricas internas, o que e a Figura 31.3 apresenta uma comparação da
resulta em mudanças na aparência dos vírions estrutura e organização genômica (provírus) de
sob microscopia eletrônica. As partículas madu- diferentes retrovírus.
Retroviridae 813

A B
SU
ENV
TM
NC
MA
IN
RNA
RT CA

PR

Fonte: A) Dept. Microbiologia, University of Otaga, Nova Zelândia. ICTVdB.

Figura 31.1. Vírions da família Retroviridae. A) Fotografia de microscopia eletrônica de partículas do HIV; B)
Ilustraçăo esquemática de um vírion mostrando os seus componentes. RNA: genoma; NC: proteína do
nucleocapsídeo; CA: capsídeo; MA: matriz; IN: integrase; RT: transcriptase reversa; PR: protease; TM: glicoproteína
transmembrana; SU: glicoproteína de superfície, ENV: envelope.

Cap AAAA

gag tat rev


vif
pol

LTR env

P55 Gag .Gag-pol gp160 Env LTR

MA NC PR IN SU TM
p16 CA p14 p12 RT p29 gp 135 gp 45
p25 p66/p51

Figura 31.2. Organização do genoma e do provírus DNA dos lentivírus de pequenos ruminantes (SRLV ou CAEV e
MVV), com as proteínas codificadas. LTR: região repetida terminal. Genes: gag (antígenos específicos de grupo); pro
(protease); pol (polimerase); env (envelope). Proteínas: MA: proteína da matriz; CA: proteína do capsídeo; NC:
proteína do nucleocapsídeo; RT: transcriptase reversa; IN: integrase; PR: protease; TM: proteína transmembrana; SU:
glicoproteína de superfície. Os produtos dos genes tat, vif e rev são proteínas acessórias com funções regulatórias. Os
números abaixo de cada proteína referem-se à respectiva massa molecular.
814 Capítulo 31

LTR LTR

gag pro ALV


pol
env

LTR LTR
gag pol BLV
pro env
.tax

.rex
LTR LTR
gag pol FeLV
env

LTR vif rev LTR


gag pol tat env CAEV

LTR tat env


LTR
pol EIAV
gag S2 rev

pol env LTR


LTR
gag w y BIV
rev
Vif .tat

LTR
gag Vif A LTR

env FIV
pol rev

Figura 31.3 Estrutura comparativa do genoma de diferentes retrovírus de animais domésticos. ALV: vírus da leucose
aviária; BLV: vírus da leucose bovina; FeLV: vírus da leucemia felina; CAEV: vírus da artrite-encefalite caprina; EIAV:
vírus da anemia infecciosa eqüina; BIV: vírus da imunodeficiência bovina; FIV: vírus da imunodeficiência felina;
LTR: regiăo repetida terminal. Genes gag (antígenos específicos de grupo); pro (protease); pol (polimerase); env
(envelope). Genes acessórios: tax, rex, rev, vif, tat etc.
Retroviridae 815

O RNA genômico é produzido pela trans- re após a penetração e desnudamento, envolve a


crição do provírus integrado no cromossomo da síntese de uma cópia DNA (provírus) a partir do
célula hospedeira, reação que é catalisada pela genoma RNA, transporte do provírus até o inte-
maquinaria celular de transcrição. Por isso, o ge- rior do núcleo e a sua integração no cromossomo
noma viral contém uma estrutura cap em sua ex- da célula hospedeira. Uma parte dessas etapas
tremidade 5’ e uma cauda poli-A na extremidade ocorre no citoplasma; e a outra parte, no núcleo,
3’. O genoma possui seqüências envolvidas na e são mediadas por proteínas presentes nos ví-
expressão gênica e na replicação, localizadas pró- rions (RT, IN). A segunda fase envolve a síntese
ximas às extremidades: as regiões R (de repetida) e processamento de mRNAs e síntese das proteí-
e U5 (única da extremidade 5’) estão próximas à nas virais. Essas etapas utilizam a maquinaria ce-
extremidade 5’; as seqüências R e U3 se localizam lular de transcrição e processamento de mRNAs
próximas à extremidade 3’. O processo de trans- e de síntese protéica, respectivamente. A morfo-
crição reversa resulta na duplicação das regiões gênese inicia pelo encapsidamento do genoma,
únicas (U5 e U3), o que faz com que a molécula de juntamente com as enzimas virais, por precur-
DNA resultante – denominada provírus – conte- sores das proteínas estruturais. A morfogênese é
nha seqüências idênticas nas duas extremidades, completada pelo brotamento do nucleocapsídeo
as regiões longas terminais (Long Terminal Repeat, na membrana plasmática. O processamento final
LTR). Cada LTR apresenta as seguintes seqüên- dos precursores protéicos, dando origem às pro-
cias, nesta ordem: U3-R-U5. Na região U3, estão teínas estruturais maduras, ocorre já no interior
localizadas as principais seqüências de ligação dos vírions extracelulares.
para os fatores de transcrição, enquanto o início A infecção inicia pelo reconhecimento e li-
da região R corresponde ao início da transcrição. gação dos vírions à superfície das células-alvo.
Essas seqüências são necessárias para a transcri- Este evento é mediado pela glicoproteína SU do
ção do provírus, que somente ocorre após a sua envelope, que interage com receptores específi-
integração ao genoma da célula hospedeira. cos da membrana plasmática. Vários receptores
Alguns retrovírus, incluindo os lentivírus, para retrovírus já foram identificados, incluindo
possuem genes adicionais, denominados acessó- os receptores para o FIV, FeLV e BLV. A maioria
rios ou auxiliares. Esses vírus são denominados dos retrovírus infecta células do sistema imuno-
retrovírus complexos, enquanto aqueles que não lógico, como as células da linhagem monocítica/
possuem estes genes são denominados retrovírus macrofágica e/ou linfocítica.
simples. Os produtos desses genes participam da A etapa seguinte consiste na fusão do enve-
regulação de diversas etapas da replicação viral. lope viral com a membrana plasmática, processo
O HIV parece conter o maior número de genes que envolve interações da proteína TM com com-
acessórios. Três desses genes foram igualmente ponentes da membrana e que resulta na liberação
descritos em lentivírus de animais: os genes tat, do nucleocapsídeo no citoplasma. Essa fusão in-
rev e vif. O gene tat não parece ser essencial, en- depende da redução de pH e ocorre na superfície
quanto a deleção do gene rev impede a produção da célula. Além do genoma e das proteínas NC e
de progênie viral. A função da proteína Rev con- CA, o nucleocapsídeo contém algumas molécu-
siste em facilitar a exportação de determinados las das enzimas RT, IN e PR. A primeira etapa
mRNA virais do núcleo para o citoplasma, onde após a penetração e desnudamento do genoma
serão traduzidos. Esses mRNAs contêm uma se- é a síntese do DNA proviral – mecanismo deno-
qüência para a ligação da Rev (RRE – rev respon- minado de transcrição reversa. O processo se inicia
sive element) localizada na região central do gene em uma seqüência denominada de sítio de liga-
env. ção do primer (primer binding site, PBS), localizada
próxima da região U5, onde ocorre a ligação de
4 Replicação um RNA transportador (tRNA celular que está
presente nos vírions). Inicialmente é sintetizada
O ciclo replicativo dos retrovírus pode ser a fita de DNA complementar (cDNA), iniciando
dividido em duas fases. A primeira fase, que ocor- pela síntese das regiões U5 e R. O DNA de fita
816 Capítulo 31

simples recém-sintetizado desloca-se, então, para dará origem às proteínas TM e SU) e nas proteí-
a extremidade 3’ (primeiro salto), ocorrendo o nas acessórias (nos retrovírus que as possuem).
pareamento com a região R, e a síntese prossegue Os mRNA com a extensão do genoma serão tra-
até a seqüência PBS. À medida que a transcrição duzidos nas proteínas gag e pol (precursoras das
avança, a fita de RNA é degradada pela atividade proteínas MA, NC e CA; e RT, IN e PR, respecti-
da ribonuclease H (RNAse H) da enzima RT, a vamente), e também serão encapsidados em nu-
qual é igualmente responsável pela liberação do cleocapsídeos pela NC e CA. Ambas as classes de
primer de RNA, que possibilita a síntese da fita mRNAs possuem cap na extremidade 5’ e são po-
complementar do DNA proviral. A seguir, ocorre liadeniladas na extremidade 3’. As etapas da re-
um segundo salto, com o pareamento da região plicação do genoma e a estrutura das moléculas
PBS entre as duas fitas, que culmina com a for- intermediárias (provírus) estão apresentadas na
mação da molécula de DNA de fita dupla, deno- Figura 31.4. As etapas tardias do ciclo, com o des-
minada provírus. tino dos diferentes RNA transcritos a partir do
A atividade da enzima RT é parcialmente
responsável pela variabilidade observada no ge-
noma dos retrovírus. Essa enzima comete erros Genoma
ao transcrever o RNA genômico em DNA, com .gag pol env
uma freqüência de um em cada 103-104 nucleotí- Cap R U5 U3 R AAAA RNA

deos incorporados. Isso equivale a uma mutação


Transcrição reversa (1)
em cada novo genoma produzido, considerando-
Provírus
se que o genoma dos retrovírus apresenta apro-
.gag pol env
ximadamente 10.000 nt. Esta taxa de mutação é U3 R U5 U3 R U5 DNA
significativamente maior, comparando-se com as
Integração (2)
enzimas de replicação do DNA celular, cuja fre-
qüência de erros é estimada em um em cada 109. Provírus Integrado
DNA
.gag pol env
O provírus DNA de fita dupla é, então, DNA
celular U3 R U5 U3 R U5
DNA
celular
transportado para o núcleo da célula, onde é in-
serido no cromossomo celular pela atividade da Transcrição (3)
IN. Essa enzima possui também atividade endo- Genoma
nuclease, que é necessária para clivar o DNA ce- .gag pol env
Cap R U5 U3 R AAAA RNA
lular para a integração do provírus. A etapa de
inserção resulta na incorporação definitiva de
uma cópia do genoma viral (na forma de DNA)
no cromossomo do hospedeiro e se constitui em Figura 31.4. Etapas da replicação do genoma dos
retrovírus e estrutura das moléculas intermediárias. O
uma etapa essencial para o prosseguimento do genoma é constituído por duas moléculas idênticas de
ciclo replicativo e produção de progênie viral. RNA de fita simples com 5' cap e poliA. Próximo às
Após ser integrado no cromossomo da cé- extremidades, o genoma possui duas regiões repetidas R
(5' e 3') e duas regiões únicas (U5 e U3). Entre essas
lula hospedeira, o provírus DNA é transcrito regiões, localizam-se as seqüências codificantes: genes
pela RNA polimerase II e fatores de transcrição gag, pol e env. A primeira etapa da replicação é síntese
do provírus DNA (molécula de DNA de fita dupla
celulares para a síntese de mRNAs destinados à
correspondente ao genoma) pela enzima viral
produção das proteínas virais. Os transcritos pri- transcriptase reversa (1). O provírus contém as regiões
mários originam duas classes de mRNA: mRNA U3 e U5 duplicadas nas extremidades opostas e é
integrado aos cromossomos celulares pela ação da
subgenômicos e mRNAs com a extensão total do enzima viral integrase (2). Após a integração, o provírus
genoma. Os mRNA subgenômicos foram subme- é transcrito pela RNA polimerase II celular (3),
tidos a processamento por splicing, exportados originando mRNAs idênticos ao genoma. Esses mRNAs
servem para a tradução em proteínas e também
para o citoplasma, onde serão traduzidos nas constituem o RNA genômico para serem encapsidados
proteínas do envelope (Env, que, após clivagem, na progênie viral.
Retroviridae 817

provírus integrado e a morfogênese dos vírions são transcritos os mRNA que codificam as prote-
estão apresentadas na Figura 31.5. ínas envolvidas na regulação da replicação viral;
A transcrição do genoma dos retrovírus que uma fase tardia, em que ocorre a exportação do
possuem genes acessórios (p. ex., os lentivírus), núcleo para o citoplasma mRNAs que serão tra-
ocorre em duas fases: uma fase precoce, quando duzidos nas proteínas estruturais.

Núcleo

LTR LTR

Transcrição
Cap gag pol env
AAAAA

Sem splicing Splicing

Citoplasma env
AAA

gag pol env Exportação


AA

Tradução env
AAAAA

Tradução
Gag (MA, CA, NC) Pol (PR, RT, IN)

Env (SU+TM)

Figura 31.5. Etapas tardias da replicaçăo dos retrovírus. O provírus DNA integrado ao cromossomo celular é
transcrito pela RNA pol II celular em toda a sua extensăo, gerando transcritos com cap e poli-A. Uma parte desses
transcritos é exportada do núcleo sem sofrer splicing e serve de mRNA para a síntese da poliproteína do gene gag e das
proteínas do gene pol . A outra parte destes mRNAs, que năo sofre processamento, é exportada do núcleo e servirá de
RNA genômico. Em fases tardias do ciclo, uma populaçăo de transcritos sofre splicing e serve de mRNA para a
traduçăo em uma poliproteína (Env) que originará as glicoproteínas do envelope. Esta poliproteína é transportada
para a membrana plasmática, onde as proteínas TM e SU săo geradas por clivagem e ficam associadas à membrana
que dará origem ao envelope viral. As poliproteínas dos genes gag e pol săo transportadas para a membrana
plasmática, onde interagem com o RNA genômico e com as caudas das glicoproteínas, membrana, resultando na
formaçăo do nucleocapsídeo e brotamento das partículas víricas. A maturaçăo completa das proteínas precursoras
ocorre em partículas víricas extracelulares.
818 Capítulo 31

A morfogênese é uma etapa pouco conhe- res. Por outro lado, a infecção de cada retrovírus
cida do ciclo replicativo dos retrovírus e parece in vivo parece estar restrita a um determinado
apresentar algumas diferenças entre os vírus. hospedeiro e a poucos tipos celulares, restrição
Para a maioria dos vírus, as etapas de montagem principalmente relacionada com a presença dos
do nucleocapsídeo (interações RNA + NC + CA) receptores virais.
e brotamento na membrana parecem ocorrer si- Apesar de serem considerados predomi-
multaneamente. Em outros, os nucleocapsídeos nantemente espécie-específicos, alguns retroví-
são inicialmente montados no citoplasma e trans- rus podem infectar mais de uma espécie animal.
portados até a membrana plasmática, onde inte- A infecção cruzada de caprinos e ovinos pelo
ragem com a proteína MA e com as caudas das CAEV e MVV foi descrita por vários autores, que
glicoproteínas, resultando no brotamento e egres- sugeriram a denominação lentivírus de peque-
so. De qualquer forma, estes eventos ocorrem no nos ruminantes (SLRV – small ruminant lentivirus)
citoplasma, e as partículas víricas são liberadas para esses vírus. Provavelmente, a proximidade
sem a necessidade de lise celular. Durante a mor- filogenética entre essas espécies favoreça a in-
fogênese, são incluídas algumas moléculas das fecção cruzada. Por outro lado, estudos recentes
enzimas virais RT, IN e PR nas partículas recém- demonstraram que o CAEV é capaz de infectar
formadas. O ciclo replicativo dos retrovírus está bovinos – igualmente ruminante – experimental-
ilustrado esquematicamente na Figura 31.6. mente, apesar de a infecção não persistir.
O estudo da replicação dos retrovírus pode A replicação de vários lentivírus em células
ser realizado in vitro, em diferentes tipos celula- de cultivo resulta na produção de efeito citopá-

Brotamento Maturação

Ligação aos
receptores Formação
2 do capsídeo
Penetração

Transcrição
Tradução Tradução
reversa
AAAAA
AAAAA

AAAAA
RER

Provírus AAAAA AAAAA

Transcrição
Integração

Provírus
integrado

Figura 31.6. Ilustraçăo simplificada do ciclo replicativo dos retrovírus.


Retroviridae 819

tico, caracterizado pela formação de células gi- 5.1.1 Epidemiologia


gantes multinucleadas ou sincícios. A replicação
in vitro de outros retrovírus pode levar à morte O BLV está distribuído mundialmente, com
da célula devido ao acúmulo de partículas virais exceção de alguns países europeus que erradi-
(superinfecção). Isso tem sido observado com al- caram a infecção a partir da década de 1980. No
gumas cepas do ALV e em variantes do FeLV. Brasil, a infecção está amplamente difundida,
com níveis variáveis de prevalência entre os re-
5 Retrovírus de interesse veterinário banhos. Estudos sorológicos já foram realizados
em praticamente todas as regiões do país, in-
O número de retrovírus que infecta animais dicando a ampla distribuição da infecção, com
é muito grande e, por isso, de difícil enumeração índices de prevalência geralmente maiores em
e abordagem em um livro texto como este. Por- gado leiteiro. Na Serra de Botucatu, SP, foi de-
tanto, será dada ênfase aos principais retrovírus tectada prevalência de 52% entre animais e de 10
que causam doenças em animais de companhia a 67% das propriedades eram positivas. No Rio
e de produção. A ordem de apresentação será de de Janeiro, 17,3% de 734 animais testados foram
acordo com a espécie animal. positivos. Em um estudo envolvendo aproxima-
damente 10.000 amostras no Rio Grande do Sul,
5.1 Vírus da leucose bovina detectou-se uma prevalência de 8% de animais
soropositivos.
O BLV (bovine leukemia virus), agente etioló- Em condições naturais, o vírus pode infectar
gico da leucose enzoótica bovina, é classificado bovinos, zebuínos, búfalos e capivaras. Infecções
como um Deltaretrovirus e apresenta muitas simi- experimentais já demonstraram a susceptibilida-
laridades estruturais, genômicas e de patogenici- de de ovinos, caprinos e coelhos. Os coelhos po-
dade com o HTLV-1 e o HTLV-2 (human T lym- dem desenvolver tumores ou imunodeficiência
photropic viruses 1 and 2). após um tempo variável de incubação.
Esse vírus foi descrito, pela primeira vez, em Assim como os outros retrovírus, o BLV
1871, na Lituânia, em um bovino com hipertro- apresenta uma baixa transmissibilidade, ou seja,
fia de linfonodos superficiais e esplenomegalia. não é facilmente transmitido. A transmissão ocor-
Depois disso, outros casos semelhantes também re predominantemente entre animais do mesmo
foram descritos e, em 1917, Kenneth demonstrou rebanho, e é incomum ocorrer entre rebanhos
que a doença era causada por um agente infeccio- vizinhos. É comum a existência de regiões onde
so. Em 1976, Kettmann e colaboradores demons- rebanhos positivos e negativos vizinhos coexis-
traram que as partículas virais possuíam RNA tam por longos períodos, sem a disseminação do
exógeno e que continham a enzima RT, permitin- vírus para os rebanhos livres. Essas observações
do sua classificação como um retrovírus oncogê- indicam que um contato mais próximo entre os
nico. O BLV é um retrovírus complexo e, assim animais é necessário para a transmissão. A trans-
como os HTLV-1 e 2, contém genes que codificam missão iatrogênica, pela aplicação de vacinas,
produtos acessórios como Tax e Rex, cuja função uso compartilhado de agulhas hipodérmicas,
está relacionada com a regulação da expressão administração de medicamentos e após o toque
gênica desses vírus. retal contribui de forma importante para a disse-
A variabilidade genômica do BLV não pare- minação da infecção dentro dos rebanhos.
ce ser grande entre isolados, provavelmente de- O vírus está presente no sangue dos animais
vido à taxa de mutação de sua RT ser inferior a de infectados e é transmitido por procedimentos
outros retrovírus. Comparativamente, o BLV te- que envolvam a transferência de células sangüí-
ria um comportamento similar ao HTLV, em que neas entre animais. Cabe lembrar que os animais
isolados do Japão, Caribe e África apresentam até infectados tornam-se portadores pelo resto da
99% de homologia. vida e possuem o vírus no sangue, sobretudo em
820 Capítulo 31

linfócitos B. Aproximadamente 1 microlitro de plo das infecções pelos outros retrovírus, uma
sangue de um animal com linfocitose persistente vez infectados os animais tornam-se portadores
já pode ser suficiente para transmitir o vírus para do agente pelo resto da vida. Na maioria das
outro animal. Assim sendo, a forma iatrogênica vezes, a infecção pelo BLV é assintomática, e o
parece contribuir de forma importante para a reconhecimento dos animais positivos somente é
transmissão do vírus. Animais submetidos a pro- possível pela realização de testes sorológicos.
cedimentos cirúrgicos ou terapêuticos, como cas- Entre os animais infectados, aproximada-
tração, descorna, tatuação, vacinações, pequenas mente 30% desenvolvem uma linfocitose per-
cirurgias, palpação retal, injeções ou colocação sistente, sem a manifestação de quaisquer sinais
de brincos, sem os devidos cuidados de profila- clínicos. Estima-se que entre 1 e 5% dos animais
xia, estão propensos a adquirirem a infecção pelo infectados persistentemente irão desenvolver a
BLV. A transmissão pela picada de insetos, como forma clínica da doença em algum momento de
os tabanídeos, já foi relatada e parece possuir al- suas vidas. A enfermidade (denominada leuco-
guma importância em regiões com alta infestação se) caracteriza-se pela produção de tumores de
desses insetos. A presença do vírus já foi descrita origem linfóide, como linfossarcomas ou linfo-
na glândula mamária, associada aos linfócitos, mas malignos, em diversos órgãos. A patogenia
bem como no leite, indicando a possibilidade de dos tumores não está relacionada a oncogenes
transmissão através do leite. presentes no genoma viral, mas a proteína viral
Embora o vírus possa ser ocasionalmente
Tax parece ter um papel importante na sua pro-
encontrado no sêmen de touros, a inseminação
dução.
artificial não parece ser um meio importante de
Os sinais clínicos são variáveis e estão rela-
disseminação do vírus. Não obstante, centrais de
cionados com os órgãos e tecidos afetados pelos
coleta de sêmen são desaconselhadas a manter
tumores. Assim, tumores que se desenvolvem
touros positivos. A transmissão pela monta na-
no trato gastrintestinal podem ocasionar obstru-
tural pode ocorrer, representando uma forma de
ções ou provocar úlceras, que podem resultar em
disseminação do vírus de touros infectados para
disfunções digestivas, anorexia e perda de peso.
fêmeas. Vacas positivas prenhes podem transmi-
Tumores que atingem a medula espinhal podem
tir o vírus para o feto; entretanto, menos de 10%
resultar em distúrbios neurológicos com manifes-
dos animais nascidos dessas fêmeas são portado-
tações diversas. Alguns sinais clínicos observados
res do vírus ao nascer. Em outros trabalhos, que
em dois grupos de animais com linfossarcoma es-
analisam a transferência de embriões a partir de
tão descritos na Tabela 31.2. Aproximadamente
doadoras infectadas pelo BLV, não foi detectada
transmissão para os embriões ou para as recep- dois terços dos animais com tumores apresentam
toras. também linfocitose persistente. A forma tumoral
Em países cujos sistemas criatórios mantêm do BLV afeta geralmente animais acima de dois
registros detalhados de produtividade, como os anos de idade, com um pico de incidência entre
EUA, Canadá, Japão e Austrália, estima-se que os 5 e 8 anos. Esses tumores devem ser distin-
os efeitos do BLV podem atingir uma redução de guidos da leucose esporádica bovina, que afeta
até 10% na produção leiteira. animais com idade inferior a um ano e não está
relacionada à infecção pelo BLV.
Os tumores podem afetar um ou vários lin-
5.1.2 Patogenia, sinais clínicos, fonodos, superficiais ou profundos. Algumas ve-
patologia e imunidade zes, o infartamento de linfonodos superficiais é o
primeiro indicador clínico da ocorrência de lin-
O BLV infecta principalmente linfócitos B, fossarcoma. A partir do reconhecimento clínico,
nos quais produz uma infecção persistente, em- o linfossarcoma possui um curso de tempo variá-
bora também possa infectar linfócitos T. A exem- vel, mas é virtualmente sempre fatal.
Retroviridae 821

Tabela 31.2. Sinais clínicos associados com a infecçăo pelo vírus da leucose bovina (BLV).

Sinais clínicos Grupo 1b (%) Grupo 2c (%)

Perda de peso - 80

Agalactia - 77

Linfoadenopatia (aumento de volume) 58 58

Anorexia 62 52

Paralisia/paresia do posterior 16 41

Febre - 23

Exoftalmia 9 20

Dificuldade respiratória - 14

Obstrução intestinal 19 9

Anormalidade no miocárdio 64 7

Linfócitos anormais 63 -

a
Fonte: adaptado de: The Compendium Collection, Infectious Disease in Food and Animal Practice, 1993.
b
Dados de 298 animais hospitalizados.
c
Dados de 1.100 animais de campo.

A viremia é detectável somente nas duas pri- O provírus integrado é detectado em, apro-
meiras semanas após a infecção e, tardiamente, a ximadamente, 30% dos linfócitos circulantes. A
detecção de antígenos virais no sangue é difícil. expansão da população linfocitária ocorre a par-
Alguns trabalhos indicam que, após a infecção tir da proliferação policlonal de linfócitos B, com
inicial, a permanência do vírus no organismo se- citologia e cariótipo normais.
ria mantida principalmente pela divisão celular Os achados de necropsia incluem aumento
– da célula contendo o provírus – e não pela re- generalizado dos linfonodos, tanto superficiais
plicação do genoma viral via RT. Isso, de certa como internos. Ao corte, os linfonodos apresen-
forma, também ajudaria a explicar a menor varia- tam uma superfície branco-amarelada, sem dis-
bilidade genômica do BLV, quando comparado tinção entre a cortical e medular. Massas tumorais
com outros retrovírus (p. ex., EIAV), cuja taxa de com o mesmo aspecto podem ser encontradas no
replicação é maior no curso da infecção. coração, rins, intestinos, abomaso, medula espi-
Os animais infectados desenvolvem uma nhal e útero. Histologicamente observa-se pro-
resposta sorológica entre duas a oito semanas liferação das células da linhagem linfocítica e
pós-infecção. Os anticorpos são direcionados infiltração maciça dessas células nos órgãos afe-
principalmente contra as glicoproteínas do enve- tados.
lope (TM, SU) e contra as proteínas do capsídeo.
Os anticorpos são persistentes, porém os níveis 5.1.3 Diagnóstico
presentes podem variar de acordo com a condi-
ção fisiológica e imunológica do animal. Um es- Duas condições distintas devem ser consi-
tudo recente estimou o tempo médio de sorocon- deradas no diagnóstico do BLV: o diagnóstico da
versão em 47 dias (infecção experimental) e 57 enfermidade (leucose ou linfossarcoma) e o diag-
dias (dados de infecção experimental e natural). nóstico da infecção. A suspeita da doença clínica,
822 Capítulo 31

pela observação dos sinais mencionados, deve quiridos passivamente pelo colostro. Os anticor-
ser confirmada por exames histopatológicos e so- pos passivos tendem a desaparecer até os 6 ou 7
rológicos; a infecção pode ser diagnosticada por meses de idade, e o teste de IDGA nesses animais
testes sorológicos. deve tornar-se negativo após este período. Re-
Dentre os sinais que mais chamam a aten- sultados falso-negativos também podem ocorrer,
ção e levam o veterinário a suspeitar de leucose sobretudo, em fêmeas prenhes nas proximidades
bovina, estão o infartamento de linfonodos su- do parto, devido ao seqüestro de anticorpos para
perficiais, distúrbios digestivos persistentes com o colostro. O ensaio imunoenzimático (ELISA)
anorexia e perda de peso, presença de massas também tem sido utilizado para detecção de an-
tumorais no intestino e paralisia dos membros ticorpos anti-BLV e apresenta vantagens como a
posteriores. Como nenhum desses sinais é pa- maior sensibilidade e facilidade de automação.
tognomônico, o diagnóstico requer a realização Apesar de apresentar uma grande variação
de testes sorológicos e/ou histopatológicos. Os de resultados entre diferentes laboratórios, o tes-
testes sorológicos são realizados principalmente te da reação em cadeia da polimerase (PCR), que
para a identificação de portadores e para triagem detecta o DNA proviral, tem se mostrado útil
de rebanhos. Em animais com suspeita clínica, como método complementar aos testes de IDGA
um teste sorológico positivo reforça a hipótese e ELISA. Essa variação de resultados ocorre em
diagnóstica, mas não é capaz de fornecer o resul- função da variabilidade genética do genoma viral.
tado definitivo. O diagnóstico definitivo de lin- O teste de PCR é realizado com DNA extraído de
fossarcoma no animal vivo pode ser obtido por leucócitos em amostras de sangue coletadas com
exames histopatológicos de linfonodos super- anticoagulante. Amostras negativas no IDGA ou
ficiais obtidos por biópsia. No animal morto, os no ELISA ou de animais que receberam colostro
achados patológicos macro e microscópicos po- de mães positivas podem ser testadas por PCR. A
dem confirmar o diagnóstico. técnica de PCR, no entanto, não é muito utilizada
Os testes sorológicos são utilizados para de- na rotina e possui aplicação apenas em situações
tectar a condição de portador. O primeiro teste especiais.
sorológico empregado para diagnóstico da infec-
ção pelo BLV foi a imunodifusão em gel de ágar 5.1.4 Profilaxia e controle
(IDGA), utilizando a proteína do capsídeo (p24)
como antígeno. O uso da glicoproteína principal Considerando-se as formas de transmissão
do envelope (gp51), entretanto, permitiu o au- do BLV, é possível erradicar a infecção de reba-
mento da sensibilidade desse teste. Desta forma, nhos e populações maiores pela adoção de práti-
os testes de IDGA atuais utilizam a glicoproteína cas de manejo associadas com o uso de medidas
gp51 ou uma combinação de gp51 e p24 como an- sanitárias profiláticas. A etapa inicial do progra-
tígeno. A simplicidade, praticidade e custo baixo ma envolve a realização de testes sorológicos e a
fizeram com que o teste de IDGA fosse aceito ra- identificação dos animais soropositivos. Os ani-
pidamente em todo o mundo, tornando-se o teste mais positivos devem ser preferencialmente des-
oficial para detecção de anticorpos anti-BLV. cartados, mas podem ser mantidos no rebanho
Como os animais infectados pelo BLV per- desde que separados dos demais e submetidos a
manecem como portadores permanentes, todos práticas que minimizem o risco de transmissão.
os animais positivos, com idade superior a seis Os animais positivos devem ser distinguidos dos
meses, devem ser considerados portadores e po- outros para serem facilmente reconhecidos e, as-
tenciais fontes de infecção para outros animais. sim, manejados com cuidados especiais para evi-
A imunidade passiva pode influenciar as tar a transmissão iatrogênica do vírus. Bezerros
provas sorológicas para o BLV, gerando resulta- nascidos de mães positivas devem ser isolados e
dos falso-positivos. Sorologia positiva em animais testados, só podendo ser introduzidos no rebanho
com idade inferior a seis meses pode ocorrer em negativo se mantiverem a condição soronegativa
razão da infecção ou dos anticorpos maternos ad- até os 6-8 meses, ocasião do desaparecimento dos
Retroviridae 823

anticorpos passivos. A condição sorológica dos positivos possuem um alto valor genético e eco-
animais deve ser monitorada a cada seis meses, nômico; do contrário, devem ser identificados e
com a qual se avalia a eficácia das medidas ado- eliminados do rebanho.
tadas. Atualmente não existem vacinas disponíveis
Como medidas de controle em rebanhos que contra o BLV.
possuem animais positivos, citam-se:
– utilização de agulhas estéreis individuais 5.2 Vírus da imunodeficiência bovina
para procedimentos profiláticos, clínicos e tera-
pêuticos (aplicação de vacinas, antiparasitários, O BIV (bovine immunodeficiency virus) foi
outros medicamentos, anestésicos e coleta de isolado, pela primeira vez, por Van der Maaten
sangue); e colaboradores, em 1972, a partir de um bovino
– utilização de luvas de palpação individu- com suspeita de linfossarcoma. Durante aproxi-
ais para cada animal; madamente 15 anos, pouca importância foi dada
– lavagem e desinfecção de instrumentos ao BIV, pois esse vírus aparentemente não estava
cirúrgicos ou de procedimentos potencialmente relacionado com nenhuma enfermidade. Com a
contaminados com sangue de animal infectado; descoberta de que a síndrome da imunodefici-
– adoção de um programa de controle de ência humana adquirida (AIDS) era causada por
insetos hematófagos nas regiões em que há ne- um lentivírus, o BIV e outros vírus pertencentes
cessidade; a este gênero assumiram grande importância em
– uso de inseminação artificial, evitando estudos de evolução e de características biológi-
transmissão de linfócitos infectados através da cas e moleculares. O BIV foi classificado como um
monta natural; lentivírus por possuir similaridades moleculares,
– separação dos bezerros filhos de mães po- genéticas, antigênicas e estruturais com o HIV.
sitivas, não permitindo que entrem em contato
com animais negativos até que sua condição so- 5.2.1 Epidemiologia
rológica para BLV possa ser definida. Pode-se co-
letar uma amostra de sangue do animal logo após A presença do BIV já foi relatada em vá-
o nascimento, antes de mamar o colostro. Caso a rios países, como o Canadá, Costa Rica, Estados
amostra seja positiva, considera-se que o animal Unidos, França e Itália. Nos Estados Unidos, a
foi infectado in utero e é portador do vírus; soroprevalência da infecção é bastante variável.
– separação dos animais em grupos de posi- Alguns estudos identificaram uma prevalência
tivos e negativos, o que favorece o manejo, pois os de anticorpos em 40% de animais de carne e em
animais negativos devem ser manejados antes. 60% de animais de leite no estado da Louisiana.
As propriedades livres do vírus devem ado- Embora os dados de prevalência sejam escassos,
tar medidas para evitar a sua introdução. Para acredita-se que o BIV esteja amplamente difun-
isso, todos os animais adquiridos devem ser dido na população bovina de diferentes países.
previamente testados para o BLV. Se oriundos No Brasil, von Groll et al. (1997) relataram, pela
de rebanhos sabidamente negativos, podem ser primeira vez, a presença do BIV pela detecção de
incorporados ao rebanho; se oriundos de pro- animais sorologicamente positivos entre animais
priedades de situação sorológica desconhecida, clinicamente sadios.
devem ser mantidos separados por oito semanas A transmissão experimental pode ser obtida
e, então, submetidos a um novo teste sorológico. pela administração de sangue total de um animal
A adoção de medidas de controle para evi- infectado. Dessa forma, o uso de agulhas e ins-
tar a disseminação do vírus dentro do rebanho trumental cirúrgico contaminados, ingestão de
tem surtido efeito e tem sido possível manter colostro de fêmeas infectadas e a higienização
animais positivos no rebanho, com risco mínimo deficiente de instrumentos utilizados em práticas
de transmissão aos outros animais. Essa estraté- invasivas, como castrações e descornas, podem
gia somente deve ser adotada quando os animais estar envolvidos na transmissão do BIV. Já foi de-
824 Capítulo 31

monstrada a presença do provírus do BIV em um a infecção, e persistem por mais de dois anos em
grande número de amostras de sêmen, podendo animais inoculados experimentalmente.
essa secreção se constituir em um veículo para a Pela prova de Western blot, anticorpos contra
transmissão. A transmissão pela via transplacen- a proteína do capsídeo p26 são os primeiros a se-
tária também já foi demonstrada experimental- rem detectados, demonstrando que esta proteína
mente. é imunodominante.
O BIV infecta naturalmente os bovinos e A detecção do provírus e do RNA genômi-
pode infectar experimentalmente ovinos, capri- co, em células infectadas, pode ser realizada pelo
nos e coelhos. uso das técnicas de PCR e transcrição reversa se-
guida de PCR(RT-PCR), respectivamente.
5.2.2 Patogenia, sinais clínicos, Considerando-se que o vírus infecta leucó-
patologia e imunidade citos, a medida mais indicada para prevenir a
transmissão é evitar a transferência de sangue de
Ainda não foi demonstrado que o BIV seja animais contaminados para animais sadios. Além
capaz de, agindo isoladamente, produzir mani- disso, é recomendado aquecer (56ºC – 30 min) o
festações clínico-patológicas específicas, nem que leite de vacas soropositivas antes de fornecê-lo
o vírus torne os animais infectados susceptíveis aos bezerros.
a outros agentes infecciosos. No entanto, existe
uma correlação positiva entre soropositividade 5.3 Vírus da pneumonia progressiva dos
para o vírus (e a condição de portador) e redução ovinos (Maedi-Visna)
na produção de leite.
Uma das primeiras descrições da infecção O vírus Maedi-Visna (MVV) ou vírus da
pelo BIV relata um bovino da raça holandesa, de peneumonia progressiva dos ovínos (OPPV) foi
oito anos, com um aumento no número de leucó- caracterizado nos anos 1960, na Islândia, em ovi-
citos e perda de condição corporal. Após a mor- nos que apresentavam pneumonia progressiva
te desse animal, não foram observados tumores, e encefalite degenerativa. A presença da doença
como inicialmente suspeito. Histologicamente foi havia sido descrita inicialmente nos anos 1930,
relatada uma hiperplasia folicular dos linfonodos quando mais de 100.000 animais morreram em
e lesões no sistema nervoso central. decorrência da infecção. Os termos islandeses
Assim como outros lentivírus, o BIV apre- Maedi e Visna correspondem, respectivamente,
senta tropismo por subpopulações específicas de aos sinais clínicos observados nos animais doen-
leucócitos. Já foi identificada a presença de DNA tes: dispnéia e definhamento. A denominação do-
proviral do BIV e a produção de partículas infec- enças causadas por vírus lentos (slow virus diseases)
ciosas em células B, T e em monócitos durante os foi atribuída, pela primeira vez, por Sigurdsson
estágios agudos da infecção. (1954), que identificou a presença de um agente
O BIV pode ser propagado em vários tipos viral associado a casos de Maedi-Visna.
de cultivos celulares de origem bovina, e a repli- O agente da Maedi-Visna é classificado no
cação em células de baço e pulmão é mais indi- gênero Lentivirus e tem sido denominado, junta-
cada, pois o vírus é capaz de replicar em altos mente com o vírus da artrite-encefalite caprina,
títulos. como lentivírus de pequenos ruminantes (SRLV
– small ruminant lentivirus) em função da similari-
5.2.3 Diagnóstico e controle dade genômica, antigênica e de apresentação da
doença em caprinos e ovinos.
O diagnóstico da infecção pelo BIV pode
ser realizado pela detecção de anticorpos, com o 5.3.1 Epidemiologia
uso de técnicas como imunofluorescência (IFA)
e Western blot. Anticorpos para o BIV podem ser Com exceção da Islândia, de onde a doen-
detectados pelo teste de IFA, três semanas após ça foi erradicada após o sacrifício de milhares
Retroviridae 825

de animais, a presença do MVV já foi detectada das vezes, os animais desenvolvem uma respos-
em diversos países da Europa e das Américas. A ta humoral com títulos de anticorpos detectáveis
Austrália e Nova Zelândia são consideradas li- por testes sorológicos, mas que não resultam na
vres da doença. No Brasil, a situação epidemioló- erradicação do vírus do organismo. A exemplo
gica da enfermidade é desconhecida, no entanto, dos outros retrovírus, uma vez infectado, o ani-
já foram realizados alguns estudos e o seqüencia- mal torna-se portador e fonte de contaminação
mento e análise filogenética de pelo menos um para o rebanho durante toda a sua vida.
isolado do Sul do país. Vários fatores são responsáveis pela persis-
O MVV foi, inicialmente, associado com in- tência do vírus no organismo do hospedeiro. No
fecção de ovinos, embora, atualmente, se aceite caso dos SRLV, foi demonstrada a importância
que possa ocorrer infecção cruzada entre ovinos da diferenciação/ativação dos macrófagos no
incremento da produção de partículas virais. A
e caprinos. Diversos estudos filogenéticos indi-
restrição da replicação viral estaria relacionada
cam para essa disseminação interespécies, princi-
com a ausência e/ou quantidades insuficientes
palmente em países em que as duas espécies são
de fatores de transcrição, capazes de levar à sínte-
criadas juntas.
se dos mRNA virais codificadores das proteínas
O vírus é excretado em secreções como par-
estruturais do vírion.
tículas livres ou associado com células como os
As patologias pulmonares estão associadas
monócitos e macrófagos. A transmissão pode
com a formação de folículos linfóides que, atra-
ocorrer por contato direto ou indireto e através de vés da secreção de citocinas, contribuiriam para o
materiais e equipamentos compartilhados. Para o desenvolvimento da pneumonia intersticial devi-
recém-nascido, a principal fonte de contaminação do a uma resposta inflamatória exacerbada. Além
é o colostro. O leite contaminado também pode do pulmão, a glândula mamária pode igualmen-
permitir propagação do vírus entre animais que te apresentar a formação de folículos linfóides e
compartilhem o uso de ordenhadeiras e na práti- o conseqüente desenvolvimento de mastite. As
ca de se utilizar um banco de colostro. Parece que manifestações de origem neurológica, por ence-
a maioria das infecções ocorre pela ingestão de falite, são raras e foram descritas principalmente
colostro ou leite de fêmeas soropositivas. O con- na epidemia que atingiu a Islândia e que levou
tato prolongado entre animais parece ser menos à morte um grande número de animais. Com-
eficiente na transmissão do agente. prometimentos articulares (artrites) foram igual-
Considerando-se o comprometimento do mente descritos, mas com menor freqüência do
trato respiratório, uma vez que o pulmão é o que os quadros respiratórios.
principal órgão de replicação do MVV, os aeros- Em função dos diferentes órgãos atingi-
sóis podem ser importantes na disseminação do dos pelo vírus, as manifestações clínicas podem
vírus. A transmissão horizontal é favorecida em variar desde dificuldade respiratória, mastite
animais criados em regime de confinamento. acompanhada de endurecimento da glândula
A transmissão intra-uterina não foi demons- mamária, artrite, ataxia dos membros posteriores
trada claramente e, mesmo que ela ocorra, não e incoordenação. Os sinais clínicos podem levar
parece desempenhar um papel epidemiológico meses ou anos para se manifestarem; e apenas
importante. O mesmo se aplica à transmissão uma parcela dos animais infectados desenvolve
a sintomatologia. Estima-se que apenas 30% dos
pelo sêmen contaminado.
animais sorologicamente positivos manifestem
sinais clínicos da infecção, e as manifestações res-
5.3.2 Patogenia, sinais clínicos, piratórias apresentam maior incidência.
patologia e imunidade
5.3.3 Diagnóstico e controle
As doenças associadas aos lentivírus apre-
sentam uma evolução lenta e progressiva, carac- Em regiões endêmicas, o diagnóstico pre-
terizadas por um longo período de incubação até suntivo pode ser realizado pelo quadro clínico,
o aparecimento dos sinais clínicos. Na maioria embora apenas uma parcela dos animais apre-
826 Capítulo 31

sente sinais clínicos. As principais manifestações didas mais importantes consiste na separação do
clínicas em ovinos infectados pelo MVV são os recém-nascido da fêmea infectada, impedindo a
sinais respiratórios. O quadro pode progredir, ingestão do colostro. Neste caso, pode-se proce-
levando à caquexia e morte. As fêmeas podem der à inativação do vírus, aquecendo o colostro
igualmente apresentar endurecimento do úbere a 56°C por 1 hora ou fornecer colostro de origem
devido à formação de nódulos linfóides. A sus- bovina. A remoção gradativa de animais sorolo-
peita clínica deve ser necessariamente confirma- gicamente positivos associada com a reposição
da por exames laboratoriais para a detecção de com animais negativos, separando-se os rebanhos
anticorpos ou de antígenos e RNA viral. O con- positivos dos negativos, vem sendo utilizada em
trole é principalmente baseado na identificação e diversos países. O que determina o sucesso dos
segregação dos animais infectados. programas de controle é, em grande parte, a esco-
Diversos testes sorológicos são utilizados lha do teste diagnóstico mais adequado à região,
para identificar os animais infectados, como a levando-se em consideração as cepas circulantes.
IDGA, ELISA, Western blot e radioimunoprecipi- Testes mais sensíveis que o IDGA devem ser ado-
tação (RIP). Não existe, atualmente, um teste que tados quando a prevalência de animais soroposi-
seja considerado padrão (gold standard) para de- tivos diminui no rebanho.
terminar a sensibilidade e especificidade dos tes-
tes disponíveis. No entanto, é de consenso que a 5.4 Vírus da artrite-encefalite caprina
utilização de um teste sorológico associado a me-
didas de controle permite reduzir a prevalência O vírus da artrite-encefalite caprina (CAEV)
da infecção, reduzindo a disseminação do agente foi descrito, pela primeira vez, em 1980, por
no rebanho. Crawford e colaboradores, como sendo um retro-
O isolamento viral é realizado a partir de vírus causador de artrite, embora a etiologia vi-
co-cultivo de monócitos do sangue periférico ou ral de encefalite em caprinos jovens já tenha sido
de macrófagos alveolares com fibroblastos de descrita anos antes por Cork (1974). Das duas
origem fetal, células de plexo coróide ou mesmo manifestações clínicas inicialmente descritas, a
com cultivos primários de membrana sinovial. artrite é a forma mais comum de apresentação da
Observa-se, na maioria das vezes, a formação de doença.
sincícios, caracterizada pela presença de células A classificação do CAEV é a mesma do
gigantes multinucleadas. A replicação do vírus MVV, assim como diversos aspectos de patoge-
em cultivo é lenta, e os resultados podem levar nia e transmissão. Assim, somente os aspectos
vários dias ou semanas. que diferenciam os dois vírus serão abordados
As técnicas de imunohistoquímica e hibridi- com maior ênfase, a seguir.
zação in situ podem ser utilizadas para demons-
trar antígenos ou ácidos nucléicos virais nos 5.4.1 Epidemiologia
cultivos e em amostras de tecidos destinadas à
histopatologia. Ainda, para detecção do provírus O vírus já foi detectado em diversos países,
ou do genoma viral, podem ser utilizadas a PCR inclusive no Brasil, pelo isolamento do agente ou
e a RT-PCR. pela detecção de anticorpos. A infecção já foi de-
A variabilidade genética e antigênica exis- tectada em caprinos nos estados de Minas Gerais,
tente entre os isolados do SRLV indica que a de- Pernambuco e São Paulo. Um inquérito sorológi-
tecção de anticorpos ou do ácido nucléico viral co, no Ceará, demonstrou 1% de prevalência en-
por PCR deve considerar as características das tre 4.019 animais e, no Rio de Janeiro, 32,1% dos
cepas circulantes na população estudada. rebanhos testados possuíam animais positivos.
As principais medidas de controle relacio- O CAEV é transmitido principalmente atra-
nam-se com a identificação dos animais infecta- vés do colostro e leite, durante as primeiras ma-
dos e a sua separação dos não-infectados, pois madas dos recém-nascidos. A transmissão por
não existem vacinas para os SRLV. Uma das me- sangue contaminado, pelo uso de agulhas hipo-
Retroviridae 827

dérmicas e de material cirúrgico contaminado, ELISA pode ocorrer de forma intermitente duran-
além de feridas abertas, é considerada a segunda te a vida do animal. Além disso, já foi demonstra-
principal forma de transmissão. A transmissão da a resistência à doença em animais portadores
por contato entre animais adultos é considerada de certos haplótipos do complexo principal de
pouco importante. histocompatibilidade (MHC).
A doença se manifesta principalmente em
rebanhos com alta soroprevalência, sendo pouco
5.4.2 Patogenia, sinais clínicos,
significativa em rebanhos com baixa prevalência
patologia e imunidade de animais soropositivos. Essa observação favo-
rece a hipótese de que não existiriam fatores de
A patologia mais freqüente é a artrite, que virulência relacionados às cepas de SRLV, uma
se desenvolve lentamente e acomete geralmente vez que se consegue eliminar a ocorrência da do-
animais adultos, com mais de dois anos de ida- ença com a redução dos animais soropositivos no
de. A artrite afeta principalmente as articulações rebanho.
do carpo (joelhos), determinando um aumento
de volume localizado, o que determinou a ter-
minologia big knee (joelho grande). Os animais 5.4.3 Diagnóstico e controle
afetados apresentam dificuldade de locomoção e
perda de peso. Os métodos de diagnóstico e as medidas de
A inflamação crônica das articulações pa- controle são basicamente as mesmas preconiza-
rece ser mediada por deposição de imunocom- das para os ovinos infectados pelo MVV.
plexos (complexos antígeno-anticorpos), pois foi Além dos testes sorológicos descritos para o
evidenciada uma relação direta entre o título de MVV (IDGA, ELISA, Western blot) pode-se usar
anticorpos contra a proteína do envelope viral e a também a IFA indireta para detecção de anticor-
severidade das lesões articulares. Quanto maior pos. Nesses testes, células infectadas com o vírus
o título de anticorpos no soro e/ou no líquido si- servem de antígeno para a captura dos anticorpos
novial, mais abundantes e severas são as lesões. no soro-teste. Os antígenos dos testes sorológicos
A encefalite tem sido descrita principalmen- podem ser empregados indiscriminadamente
te em animais com idade inferior a seis meses, para os SRLV. No entanto, alguns trabalhos de-
embora animais adultos também possam ser al- monstraram que o uso de antígenos de CAEV
vos da forma neurológica. Observa-se uma des- para detecção de anticorpos em caprinos aumen-
mielinização, aumento no número de leucócitos ta a sensibilidade do teste quando comparado
no líquido céfalo-raquidiano, infiltração de célu- com antígenos de MVV.
las mononucleares e astrocitose na medula e no O resultado positivo no teste sorológico in-
cérebro. dica que o animal é portador do CAEV e pode
Alterações na glândula mamária e pneumo- transmitir o agente a outros animais, principal-
nia intersticial também são manifestações da in- mente durante a lactação através do colostro. A
fecção pelo CAEV. Observa-se o endurecimento ausência de sinais clínicos é irrelevante do pon-
da glândula mamária, provavelmente associado to de vista de controle, pois acima de 90% dos
com a formação de folículos linfóides, sendo de- animais portadores podem não apresentar ma-
nominada em inglês hard udder (úbere duro). Na nifestações clínicas. Se o teste for realizado em
pneumonia intersticial, observa-se uma prolifera- animais com idade inferior a seis meses, é possí-
ção de pneumócitos do tipo II e uma epitelização vel que o resultado positivo se deva a anticorpos
dos alvéolos. maternos adquiridos pelo colostro. Nesses casos,
Assim como no caso do MVV, a presença de recomenda-se avaliar o animal novamente após
anticorpos não significa uma resposta imune pro- os seis meses de idade. Nesse período, devem-se
tetora. A resposta imune humoral em caprinos minimizar as chances de transmissão do agente
infectados pode ser detectada tardiamente após a partir desse animal, que deve ser considerado
a infecção, e a presença de anticorpos no teste de suspeito.
828 Capítulo 31

Um aspecto importante a salientar é o fato de demonstrado que o JSRV, produzido a partir de


que, em função das evidências de infecção cruza- um clone infeccioso, foi capaz de reproduzir a
da entre ovinos e caprinos, as medidas de contro- doença.
le a serem implementadas em uma propriedade A transmissão, embora ainda não totalmen-
ou região devem considerar as duas espécies. No te elucidada, parece ocorrer através de contato
entanto, na Austrália e na Nova Zelândia, foi de- direto e indireto com secreções do trato respira-
monstrada somente a ocorrência de infecção por tório e também pela saliva. Os animais infectados
CAEV em caprinos, sem evidências de infecção provavelmente excretem o vírus em secreções
por lentivírus em ovinos. respiratórias mesmo alguns dias antes do início
dos sinais clínicos. As secreções podem formar
5.5 Vírus da adenomatose pulmonar aerossóis e aumentar o alcance da disseminação.
dos ovinos Tem sido demonstrado que os caprinos po-
dem se infectar naturalmente pelo JSRV, com
A adenomatose pulmonar dos ovinos (SPA, freqüência semelhante aos ovinos. O significado
para sheep pulmonary adenomatosis) é causada pelo epidemiológico e patológico desses achados, no
retrovírus de ovinos Jaagsiekte (JSRV), perten- entanto, são desconhecidos.
cente ao gênero Betaretrovirus. A denominação
Jaagsiekte foi atribuída na primeira descrição do 5.5.2 Patogenia, sinais clínicos,
vírus, na África do Sul, em 1825. A palavra Ja- patologia e imunidade
agziekte, de origem holandesa, foi proferida por
um fazendeiro para se referir a duas manifesta- Os animais infectados apresentam uma in-
ções observadas em ovinos afetados: jaag signi- fecção silenciosa, aparentemente sem a indução
fica caçar, e siekte significa doença. Os animais de resposta imune humoral. Níveis baixos de
doentes apresentavam-se como se tivessem sido RNA e DNA proviral estão presentes, e podem
perseguidos ou caçados, devido à dificuldade ser detectados pelo uso de técnicas de detecção
respiratória. Outra denominação da doença é de ácidos nucléicos altamente sensíveis, como a
carcinoma pulmonar de ovinos (OPC, para ovine nested PCR. As células envolvidas na dissemina-
pulmonary carcinoma), sendo considerada como ção do vírus no organismo do hospedeiro seriam
modelo para o carcinoma brônquio-alveolar de principalmente as da linhagem linfóide, como os
humanos pelas semelhanças clínicas, macroscó- linfócitos B, e da linhagem mielóide, como monó-
picas e histopatológicas dos dois tumores. citos e macrófagos. A formação dos tumores está
relacionada com a transformação neoplásica de
5.5.1 Epidemiologia células epiteliais do pulmão. O vírus replica ati-
vamente nas células epiteliais tumorais, origina-
O JSRV apresenta distribuição mundial, das a partir dos pneumócitos tipo II e das células
com exceção da Austrália, onde a doença ainda clava bronquiolares. Antígenos virais podem ser
não foi descrita, e da Islândia, de onde a doença detectados nas células tumorais, embora o me-
foi erradicada. A doença ocorre de forma esporá- canismo de transformação neoplásica pelo vírus
dica, podendo atingir até 25% de incidência em ainda não seja conhecido. Os tumores associados
alguns rebanhos de alto risco em países como o com a infecção são classificados como adenomas
Reino Unido, África do Sul e Espanha. A doença e adenocarcinomas. Recentemente, foi demons-
também já foi descrita no Chile, no Peru e no Bra- trada a capacidade da proteína do envelope viral
sil, onde é considerada enfermidade de notifica- em induzir a transformação em diferentes tipos
ção obrigatória. celulares, e a formação de tumores em camun-
No genoma dos ovinos, estima-se que exis- dongos e ovinos recém-nascidos.
tam entre 15 e 20 cópias do genoma de retrovírus O período até a manifestação de sinais clí-
endógenos relacionados ao JSRV, alguns deles nicos pode variar de um a três anos, sendo mais
apresentando transcrição ativa. No entanto, foi curto em animais jovens. A sintomatologia clínica
Retroviridae 829

está relacionada com a produção de muco pelas 5.6.1 Epidemiologia


células tumorais, observando-se tosse e descar-
gas nasais abundantes. Pode ocorrer a obstrução A infecção pelo EIAV apresenta distribuição
das vias respiratórias e morte por anoxia e pneu- mundial, com maior ocorrência em áreas tropi-
monia por infecções secundárias. cais ou subtropicais pantanosas e que apresen-
tam populações numerosas de vetores artrópo-
des – moscas, tabanídeos e mosquitos. Em áreas
5.5.3 Diagnóstico e controle endêmicas, a prevalência pode atingir 70% dos
animais adultos. Estudos sorológicos em vários
Devido à ausência de resposta humoral de- estados brasileiros, como o Pará, Minas Gerais,
tectável, o diagnóstico da infecção deve basear-se Mato Grosso do Sul, Goiás e Rio Grande do Sul,
principalmente nos sinais clínicos nas fases avan- demonstram a presença do EIAV na população
çadas da doença. Nessa fase, freqüentemente ob- eqüina do país. Em geral, os níveis de prevalên-
serva-se secreção nasal abundante, acompanha- cia são moderados a altos em regiões com po-
da de dispnéia em graus variáveis. Os achados pulações numerosas e permanentes dos insetos
macroscópicos e histopatológicos devem ser con- vetores.
siderados para a confirmação da suspeita clínica. Os hospedeiros naturais são os eqüídeos
A detecção de ácidos nucléicos virais nos tu- e, até o presente, não foi demonstrada infecção
mores por hibridização in situ ou por PCR podem natural de outras espécies. A principal forma de
ser também utilizados. transmissão é pela picada de insetos hematófa-
Após a confirmação do diagnóstico, o con- gos – sobretudo tabanídeos – que exercem o pa-
trole da infecção pode ser estabelecido pelo isola- pel de vetores mecânicos, carreando o vírus na
mento dos animais doentes, reduzindo a incidên- probóscide. A transmissão é mais freqüente em
cia da doença no rebanho. Em alguns países, o áreas de grande infestação de insetos e com gran-
descarte dos animais positivos (e erradicação dos de concentração de animais. A picada dos insetos
animais do rebanho) é a medida indicada. estimula um reflexo defensivo dos animais, o que
freqüentemente resulta na interrupção do repas-
to sangüíneo. Esses insetos procuram reiniciar o
5.6 Vírus da anemia infecciosa eqüina repasto com a maior brevidade, freqüentemen-
te o fazendo em animais que se encontram nas
A anemia infecciosa eqüina (EIA) é uma proximidades e, com isso, transmitindo o agente.
doença infecciosa potencialmente fatal que afe- A transmissão do EIAV por insetos depende da
ta os eqüídeos. O EIAV (equine infectious anemia população e hábitos dos insetos, da densidade
virus) é mais um membro do gênero Lentivirus. dos animais, do número de picadas no animal e
Assim como os SRLV, o EIAV também apresenta em animais das proximidades, da quantidade de
algumas características que o relacionam ao HIV. sangue transferida entre animais, e do nível de
Foram reações sorológicas cruzadas, observadas vírus no sangue do animal infectado que serve de
entre o soro de eqüinos infectados e a proteína fonte de infecção. Mosquitos e moscas também
do capsídeo do HIV, que levaram Montagnier e podem transmitir a infecção entre animais.
colaboradores a relacionar o vírus que havia sido Acredita-se que o homem também possa
recentemente isolado com os lentivírus. A ane- desempenhar um papel epidemiológico na trans-
mia infecciosa eqüina foi inicialmente descrita missão do EIAV entre animais, pela utilização de
em 1843, na França, e sua etiologia viral foi deter- agulhas, seringas e materiais cirúrgicos não-des-
minada em 1904, por Vallée e Carré. A enfermi- cartáveis. Embora possua papel epidemiológico
dade é facilmente confundível com outras infec- secundário, a transmissão pela ingestão de leite
ções que cursem com febre, como a influenza e as ou pela inseminação artificial com o sêmen con-
encefalites eqüinas. taminado também pode ocorrer.
830 Capítulo 31

5.6.2 Patogenia, sinais clínicos, Após a viremia primária, diferentes qua-


patologia e imunidade dros podem se desenvolver nos animais infec-
tados pelo EIAV: a) anemia profunda e morte
(forma aguda); b) recuperação e recidivas coin-
O curso clínico da infecção é variável e está
cidentes com novas viremias (forma crônica) ou,
relacionado com a susceptibilidade do hospedei-
ainda, c) o animal pode tornar-se um portador,
ro, dose e virulência da cepa do EIAV envolvida.
mas sem recidivas ou manifestações clínicas apa-
Nos dias que se seguem à infecção, os animais
rentes (forma inaparente). As recidivas e novas
desenvolvem uma viremia inicial, que cursa com
viremias estão associadas com o surgimento de
hipertermia, anemia e trombocitopenia. Essas
variantes virais e, à medida que o sistema imu-
manifestações são geralmente observadas entre
ne reage à infecção pela produção de anticorpos
uma a duas semanas após infecção, e estão rela-
e pela resposta celular, ocorre redução da carga
cionadas com a resposta imunológica. A anemia é
viral no sangue, correspondendo aos períodos
resultante de hemólise e fagocitose, mediada pela
assintomáticos.
presença de eritrócitos recobertos pelas proteínas
Na forma crônica, os episódios de febre po-
do complemento (C3) e, concomitantemente, pela
dem ocorrer a intervalos variáveis, entre os quais
redução da eritropoiese. A trombocitopenia pare-
a temperatura volta a valores normais. Quadros
ce estar associada com um aumento dos níveis do
recorrentes de depressão e letargia, petéquias nas
fator de necrose tumoral alfa (TNF-α), que é um
mucosas, emagrecimento progressivo, edema nas
regulador negativo da produção de plaquetas no
partes baixas e anemia estão freqüentemente as-
plasma dos animais infectados. A hipertermia
sociados com a infecção crônica.
deve-se aos níveis aumentados de TNF-α e tam-
A resposta mediada por linfócitos T citotó-
bém pela produção de interleucina 1 (IL-1) por
xicos específicos para epitopos das proteínas do
células da linhagem monocítica-macrofágica.
capsídeo e das glicoproteínas do envelope viral
Acredita-se que a maioria dos animais infec-
seria a principal responsável pela manutenção
tados apresente uma infecção subclínica, tornan-
do estado assintomático em animais portadores.
do-se portadores assintomáticos do agente. Esses
O período entre uma recidiva e outra é variável,
animais geralmente apresentam níveis mais bai-
podendo ser inferior a 30 dias.
xos de viremia do que aqueles que desenvolvem
A replicação contínua do vírus nas células-
a infecção ativa sintomática. A forma inaparente
alvo – os monócitos/macrófagos – é responsável
– ou subclínica – da infecção pode se transformar
pela carga viral presente na corrente sangüínea.
em forma clínica aguda ou crônica devido a fato-
Embora ocorra uma redução de até 700 vezes nos
res como estresse, trabalho pesado ou a ocorrên-
títulos virais no sangue de animais assintomáti-
cia concomitante de outras doenças.
cos quando comparados com animais virêmicos,
Em cavalos infectados experimentalmen-
estima-se que a replicação viral continue nesses
te, observa-se o estabelecimento de uma infec-
períodos, nos macrófagos de diferentes órgãos,
ção persistente, geralmente acompanhada por
como o fígado, linfonodos e baço.
episódios de viremia, febre e anemia. Além das
manifestações supracitadas, os animais podem
apresentar glomerulonefrite, linfoadenopatia e 5.6.3 Diagnóstico e controle
infiltração de macrófagos e linfócitos no fígado
e em outros órgãos. A exemplo dos outros retro- As manifestações clínicas de hipertermia,
vírus, a infecção pelo EIAV é persistente, ou seja, anemia, depressão e letargia recorrentes, em áre-
os animais infectados tornam-se portadores do as endêmicas para o agente são sugestivas da in-
agente por toda a vida. A diferença entre a in- fecção pelo EIAV e devem ser investigadas. A de-
fecção pelo EIAV daquelas causadas por outros tecção de anticorpos é o método laboratorial mais
lentivírus é o fato de o EIAV desencadear picos empregado para o diagnóstico da anemia infec-
de viremia, que não são observados em infecções ciosa eqüina. O teste sorológico mais utilizado – e
pelo CAEV, MVV ou FIV. considerado o teste-padrão – é a IDGA, também
Retroviridae 831

conhecido como teste de Coggins. Esse é o teste 5.7 Vírus da leucemia felina
recomendado pelo Ministério da Agricultura de
vários países. A suspeita clínica também pode ser O vírus da leucemia felina (FeLV) pertence
confirmada por outros testes laboratoriais, como ao gênero Gamaretrovirus, cujo protótipo é o ví-
fixação do complemento, inibição da hemagluti- rus da leucemia murina (MLV). Dentre os gama-
nação (HI), IFA e ELISA. retrovírus de mamíferos, o FeLV se enquadra na
O teste de IDGA se constitui em um teste categoria dos vírus autônomos para a replicação,
simples, com boa especificidade (baixa sensibi- enquanto os outros vírus do gênero são defecti-
lidade), que pode ser utilizado para a confirma- vos.
ção da suspeita clínica, mas que possui aplicação Embora ainda não tenham sido descritos
mais importante no monitoramento de rebanhos sorotipos, os isolados do FeLV possuem varian-
e da condição sanitária de animais submetidos tes ou subgrupos (FeLV-A, FeLV-B, FeLV-C e
a transporte, comércio, importação/exportação. FeLV-T), devido à variabilidade das seqüências
No Brasil, laboratórios e técnicos interessados em de aminoácidos das glicoproteínas do envelope.
realizar o teste devem ser cadastrados no Minis- As variações de seqüências detectadas na proteí-
tério da Agricultura e ser submetidos a treina- na SU seriam responsáveis pela utilização de di-
mento específico. Somente técnicos e laboratórios ferentes receptores celulares, o que resultaria em
cadastrados são legalmente licenciados para a re- diferenças de tropismo e patogenia entre isolados
alização do teste e emissão do laudo. de campo.
O EIAV replica em macrófagos dos eqüinos
infectados, mas o isolamento viral não é uma téc-
nica empregada na rotina diagnóstica, embora 5.7.1 Epidemiologia
existam cepas laboratoriais adaptadas em cultivo
de fibroblastos. O vírus não induz efeito citopá- A infecção pelo FeLV possui distribuição
tico, e a confirmação da infecção pode ser feita mundial, e a sua prevalência é notadamente
por IFA ou pela detecção de RNA viral ou DNA maior em locais de grande densidade de felinos,
proviral por RT-PCR ou PCR, respectivamente. como os gatis e abrigos. Nesses locais, o contato
Não existem vacinas comerciais disponíveis freqüente e próximo entre os animais facilita a
contra o EIAV. O controle da infecção baseia-se transmissão e pode resultar em prevalências de
na identificação e restrição ao trânsito e comér- até 33%. A prevalência é geralmente mais baixa,
cio de animais positivos. Animais destinados a podendo atingir níveis aproximados de 1%, na
comércio, trânsito, participação em competições, população geral de gatos domésticos, em que o
feiras e exposições devem ser necessariamente contato entre animais é apenas casual. No Brasil,
testados e apresentar resultado negativo no teste a ocorrência da infecção tem sido demonstrada
de IDGA. No Brasil, os animais positivos nesse em felinos domésticos e selvagens em vários es-
teste devem ser sacrificados, conforme estabeleci- tudos. No zoológico da Universidade Federal de
do no Programa Nacional de Sanidade dos Eqüi- Mato Grosso (UFMT), 12 de 16 felinos selvagens
nos do Ministério da Agricultura. possuíam antígenos do FeLV e, no Ceará, 83%
Outras medidas de controle recomendadas dos gatos de rua testados foram positivos. Um
são: a) isolamento dos animais positivos até o estudo em São Paulo revelou uma prevalência
sacrifício; b) não compartilhar seringas e outros baixa (<5%).
utensílios que possam ser veículo de células in- Acredita-se que a transmissão ocorra princi-
fectadas; c) combate a insetos vetores em áreas palmente por contato direto e indireto, através da
endêmicas (inviável em grandes áreas ou em saliva, sendo favorecida durante as brigas. Isso
áreas de grande infestação, mas viável em insta- pode explicar o porquê de gatos castrados apre-
lações); d) minimizar o contato de eqüinos com sentarem incidência menor da infecção. Os gatos
secreções, sangue ou outros eqüinos de status com infecção persistente podem excretar até 106
sanitário desconhecido, até que sejam testados e vírions por mL de saliva, o que constitui a princi-
certificados livres do vírus. pal fonte de vírus para a transmissão por contato
832 Capítulo 31

direto ou por fômites. A utilização de seringas e O contato com o FeLV, na maioria dos gatos,
outros equipamentos contaminados com sangue leva a uma infecção aguda temporária que pode
também podem transmitir o agente. Já foi des- progredir para a recuperação clínica completa
crita a transmissão vertical, inclusive de fêmeas ou infecção latente. Em outras situações, pode
apresentando a infecção latente. ocorrer uma viremia persistente, que resulta no
desenvolvimento da doença, nas suas diversas
5.7.2 Patogenia, sinais clínicos, manifestações fatais. Os fatores que conferem re-
patologia e imunidade sistência ou susceptibilidade não são totalmente
conhecidos, embora tenha sido descrito que ani-
A forma mais comum de apresentação clí- mais jovens sejam mais susceptíveis do que ani-
nica por animais infectados pelo FeLV é a imu- mais adultos. A exemplo dos outros retrovírus, a
nodeficiência, causada principalmente por va- infecção pelo FeLV é essencialmente persistente.
riantes do subgrupo A. Os vírus desse subgrupo Recentemente, analisando animais vacina-
são igualmente os mais descritos na transmissão dos e não-vacinados desafiados experimental-
natural, na qual se classifica o isolado FeLV-FAI- mente, pesquisadores propuseram quatro cate-
DS. Além do quadro de imunodeficiência, outras gorias para definir as relações do FeLV com o
manifestações estão associadas à infecção pelo hospedeiro: a) abortiva, em que não foi detectado
FeLV: linfomas, leucemia, anemia e falhas repro- DNA proviral, nem antígeno viral; b) regressiva,
dutivas. quando não é detectado antígeno viral e a carga
Os sinais clínicos mais comuns são os obser- proviral é transitória ou baixa; c) latente, antige-
vados em casos de imunodeficiência e devem-se nemia transitória e carga proviral moderada e d)
a infecções oportunistas e repetidas: estomatite progressiva, antigenemia e carga proviral eleva-
e gengivite crônicas, lesões de pele e abscessos das e persistentes. As diferentes categorias obser-
subcutâneos, doenças respiratórias crônicas e vadas experimentalmente sugerem que alguns
maior incidência de peritonite infecciosa felina. A animais, naturalmente infectados, poderiam eli-
ocorrência de toxoplasmose também é favorecida minar o vírus e não apresentariam nenhuma sin-
pela infecção pelo FeLV. tomatologia clínica. Por outro lado, animais com
A imunodeficiência está relacionada com a infecção latente poderiam não ser detectados
presença do antígeno viral – oncovírus felino as- através da antigenemia e seriam prováveis fontes
sociado à membrana (feline oncovirus membrane- de transmissão.
associated antigens, FOCMA) – e ocorre por causa A detecção de anticorpos neutralizantes tem
da depleção das células linfóides infectadas, pro- sido associada com a recuperação dos animais
vavelmente pela ação citotóxica mediada por an- infectados. No entanto, o surgimento de anticor-
ticorpos (ADCC). A leucemia e anemia são indu- pos é posterior à erradicação do vírus em animais
zidas a partir da transformação de células-tronco, que desenvolvem uma infecção transitória, o que
das linhagens mielóides e linfóides, que dão ori- indicaria a existência de uma resposta imune do
gem aos linfócitos e eritrócitos. Os variantes do tipo celular.
subgrupo C, aparentemente gerados a partir de
mutações de vírus do subgrupo A, parecem es- 5.7.3 Diagnóstico e controle
tar associados com os casos de anemia induzidos
pelo FeLV. O isolamento do vírus não é muito utilizado
Os linfossarcomas representam 30% dos como método diagnóstico, embora antígenos vi-
tumores em felinos, e evidências indicam que a rais possam ser detectados em células do sangue
maioria deles está associada ao FeLV. Esses tu- periférico. Conseqüentemente, a técnica mais uti-
mores podem se desenvolver em diferentes célu- lizada no diagnóstico é a IFA, em esfregaços san-
las e tecidos, como o timo, trato gastrintestinal, güíneos, utilizando anticorpos específicos para as
sistema nervoso, pele e outros. proteínas do capsídeo. Existem kits de ELISA e
Retroviridae 833

testes imunocromatográficos disponíveis para a ciência, e as características ultra-estruturais das


detecção de antígenos virais. Esses kits podem ser partículas víricas, assim como a detecção da ati-
utilizados em clínicas e consultórios e permitem vidade de transcriptase reversa, permitiram a sua
a obtenção do resultado em poucos minutos, po- classificação como um retrovírus pertencente ao
rém possuem um custo relativamente alto. gênero Lentivirus. Os isolados de campo do FIV
Considerando os animais em que a presença são agrupados em cinco genotipos (A, B, C, D e E),
do antígeno viral não seja detectada, técnicas mo- com base em similaridade genética. Os genotipos
leculares de detecção do genoma viral e proviral A e C são mais freqüentes na América do Norte,
(RT-PCR e PCR, respectivamente) podem ser ne- embora atualmente os genótipos A e B sejam os
cessárias. Na Suíça, um estudo demonstrou que mais detectados em todo o mundo. Filogenetica-
10% dos gatos eram portadores, detectados atra- mente o FIV é mais próximo dos lentivírus EIAV,
vés da presença do provírus, embora não tenha CAEV e MVV do que dos lentivírus de primatas,
sido possível detectar o antígeno viral. Recente- como o HIV. Apesar disso, esse vírus é conside-
mente foi descrita a utilização de RT-PCR e PCR rado um modelo animal adequado para estudos
para detecção de RNA viral e DNA proviral, res- de patogenia, pesquisa de drogas anti-retrovirais
pectivamente, na saliva de animais infectados. e desenvolvimento de vacinas para o HIV. Isso se
O controle da infecção pode ser realizado deve principalmente às características semelhan-
a partir do diagnóstico correto e envolve neces- tes dos quadros de imunossupressão observados
sariamente o isolamento dos animais positivos, em gatos (FIV) e humanos (HIV).
evitando que transmitam o agente a outros ani-
mais. Vacinas preparadas com o vírus completo 5.8.1 Epidemiologia
inativado obtido a partir de cultivos celulares são
disponíveis comercialmente, assim como vacinas O FIV apresenta uma distribuição mundial e
recombinantes contendo proteínas virais expres- já foi isolado também de felinos selvagens, além
sas em sistemas heterólogos. O uso das vacinas de já terem sido descritos vários isolados de ga-
inativadas pode resultar em uma redução de 70% tos domésticos. A soroprevalência na população
de incidência da doença nos animais imunizados. geral pode variar de 1 a 30%, com índices mais
Alguns estudos indicam a necessidade de indu- elevados entre animais que apresentam sinais de
ção de uma resposta mediada por linfócitos Tc, doença. Em níveis mundiais, estima-se uma pre-
como a induzida por vacinas de DNA, para a ob- valência de aproximadamente 12% nos felinos
tenção de uma imunidade realmente protetora. domésticos. O FIV tem sido descrito em felinos
A vacina para o FeLV foi a primeira a ser no Brasil. No Rio de Janeiro, 21% dos felinos tes-
desenvolvida e utilizada na prevenção de uma tados eram positivos para o vírus. No Rio Grande
doença causada por retrovírus em mamíferos. O do Sul, Minas Gerais e São Paulo, estudos epide-
fato de que algumas delas sejam capazes de pro- miológicos têm confirmado a presença da infec-
teger completamente o animal vacinado (infec- ção em felinos com imunodeficiência ou sem si-
ção abortiva), sugere que alguns animais possam nais clínicos.
erradicar totalmente o vírus quando infectados A infecção ocorre com maior freqüência em
naturalmente. gatos com mais de um ano de idade. A princi-
pal forma de transmissão parece ser pelo contato
direto, através da saliva, pelas mordidas durante
5.8 Vírus da imunodeficiência felina as brigas entre animais. Os machos se infectam
com o dobro da freqüência das fêmeas, pelo seu
O primeiro isolamento de imunodeficiência comportamento social e agressivo distinto. O ví-
felina (FIV) foi descrito em 1986, na cidade de rus também pode ser transmitido pelo sêmen du-
Petaluma, Estados Unidos. A presença do vírus rante a cópula e pelo leite de fêmeas infectadas
estava associada com um quadro de imunodefi- (infecção pela via oral).
834 Capítulo 31

5.8.2 Patogenia, sinais clínicos, de maior incidência da infecção, provavelmente


patologia e imunidade devido aos fatores de risco para a transmissão do
agente (agressividade, brigas, contato com vários
A imunossupressão observada nos animais animais).
infectados pelo FIV é o resultado da depleção
dos linfócitos T auxiliares (CD4+), que leva a uma 5.8.3 Diagnóstico
inversão da relação CD4+/CD8+. O comprome-
timento do sistema imunológico resulta no de- A sintomatologia clínica observada em ga-
senvolvimento de infecções oportunistas, que tos infectados pelo FIV é inespecífica e reflete um
caracterizam os estágios finais da doença (Tabela quadro geral de imunossupressão, semelhante
31.3). ao observado na leucemia pelo FeLV. Quadros
A disseminação do vírus no organismo do sugestivos de imunossupressão devem ser inves-
hospedeiro ocorre principalmente pelos linfócitos tigados para a presença de anticorpos, antígenos
infectados e, em menor escala, pelos monócitos e ou ácidos nucléicos virais.
macrófagos. Estes últimos estariam relacionados Para a detecção de anticorpos, os testes mais
com a persistência do vírus nos estágios finais da utilizados são o ELISA, IFA e o Western blot.
doença. Animais com testes negativos devem ser testados
O vírus pode ser detectado em órgãos linfói- novamente após 60 dias, para a confirmação do
des, nos pulmões, fígado, rins e no plexo coróide. resultado. Existem kits baseados em cromatogra-
Os achados histopatológicos associados com a fia para o diagnóstico da infecção em nível am-
enfermidade consistem de hiperplasias no tecido bulatorial, pela detecção de antígenos virais no
linfóide associados às mucosas (MALT), nos lin- sangue total. A detecção do provírus em células
fonodos, tonsilas, timo e medula óssea. sangüíneas por PCR também pode ser realiza-
A presença de anticorpos contra o FIV pode da, utilizando-se o DNA extraído dos leucócitos.
ser evidenciada por testes sorológicos em duas a Essa técnica tem se difundido nos últimos anos e
quatro semanas após a infecção. Os machos adul- se constitui em uma importante ferramenta para
tos têm sido apontados como a categoria animal a identificação de animais infectados. Porém, a

Tabela 31.3. Manifestaçơes clínicas e estágios da infecçăo pelo FIV.

Forma Manifestações clínicas Duração

Infecção aguda Nenhuma ou inespecífica (febre, Semanas ou meses


linfoadenopatia, diarréia,
infecções respiratórias)

Portador subclínico Nenhuma Anos


Aumento generalizado dos linfonodos, sinais
Linfoadenopatia
inespecíficos (febre, anorexia, perda de Anos
generalizada
peso), alterações comportamentais
Linfoadenopatia, infecções crônicas
ARC (AIDS related
secundárias (na cavidade oral e trato Meses a anos
complex)
respiratório superior)

Infecções crônicas oportunistas e


FAIDS (AIDS felina) Meses
secundárias severas, tumores e emaciação

a
Fonte: adaptado de Ishida e Tomoda (1990).
Retroviridae 835

utilização da técnica de PCR para o diagnóstico macrófagos e estimula a produção de linfocinas


da infecção pelo FIV tem sido questionada, pela e a resposta imune celular, aumentando a ativi-
falha na detecção de vírus com variações genô- dade das células NK. O AZT (Retrovir®), usado
micas. no tratamento da AIDS em humanos, também é
utilizado em gatos com sinais clínicos de FIV.
5.8.4 Controle e profilaxia
5.9 Vírus da leucose aviária
Após a identificação dos animais positivos,
o controle pode ser realizado pela sua separação Descrito, pela primeira vez, em 1908, o ví-
dos demais animais, reduzindo a possibilidade rus da leucose aviária (ALV) é um Alpharetrovirus
de transmissão. Animais que tem acesso às ruas, causador de displasias e neoplasias do sistema
e que, portanto, entram em contato com outros hematopoiético em aves. O termo refere-se às
animais, apresentam uma probabilidade maior manifestações clínicas do vírus, como a leucemia,
de serem infectados. A limitação do acesso de caracterizada pela presença de linfócitos B imatu-
gatos domésticos às ruas pode reduzir o risco ros na corrente sangüínea, e a invasão de órgãos
de adquirirem a infecção, mas isto nem sempre periféricos como o baço, fígado, rins e sistema
é exeqüível. nervoso por essas células.
Diversas vacinas experimentais têm sido de- Aspectos relacionados ao espectro de hos-
senvolvidas e avaliadas, incluindo vacinas com pedeiros susceptíveis (presença de receptores),
vírus inativado, proteínas recombinantes e vaci- neutralização viral por anti-soro específico e in-
nas de DNA. De uma maneira geral, a diversida- terferência viral foram utilizados para classificar
de genética e antigênica dos isolados de campo o vírus da leucose aviária em vários subgrupos.
tem dificultado o sucesso e a utilização das vaci- Os ALV são divididos em grupos endógenos
nas em larga escala. Vacinas inativadas têm de- presentes no genoma das galinhas (subgrupo E)
monstrado maior eficiência em triagens vacinais. e grupos exógenos (subgrupos A, B, C, D e J). A
Uma vacina que contém dois genótipos do FIV e maioria dos surtos de leucose aviária tem sido
protege contra um terceiro genótipo foi licencia- atribuída aos subgrupos A, B e J. O subgrupo J
da nos EUA e é atualmente comercializada. No tem sido identificado como o principal agente
entanto, a sua eficácia em limitar a transmissão causal de tumores em frangos de corte e é tam-
natural do vírus na população felina necessita de bém o grupo de vírus que atinge o maior número
comprovação. de linhagens de galinhas, uma vez que já foram
Alguns estudos têm demonstrado resulta- descritas várias linhagens resistentes a um ou
dos promissores com a utilização de interferon mais dos outros subgrupos.
recombinante para o tratamento da infecção, au-
mentando a sobrevida dos animais tratados. O 5.9.1 Epidemiologia
tratamento de felinos infectados com o FIV e FeLV
por cinco dias, com rFeIFNw (interferon omega O ALV está presente de forma endêmica em
recombinante felino), pela via subcutânea, au- praticamente todos os países que possuem avi-
mentou duas vezes as chances de sobrevivência. cultura comercial. A incidência da infecção pode
Clínicos têm utilizado interferon-α humano para variar de 3 a 20%, com a ocorrência de surtos
o tratamento de várias doenças virais felinas, re- esporádicos. O subgrupo J já foi descrito como
latando alguns sucessos na terapia. No entanto, ocasionando perdas de até 30% em matrizes de
ainda são necessários estudos para a comprova- corte.
ção da eficácia do interferon em espécie heterólo- A transmissão ocorre de duas formas prin-
ga. Drogas que estimulam o sistema imune, como cipais: vertical e horizontal. A transmissão verti-
a Immunoregulin®, também são utilizadas. Essa cal pode ocorrer pela transferência congênita do
droga contém a Propionibacterium acnes, que ativa vírus infeccioso e por transmissão genética, com
836 Capítulo 31

a integração do provírus DNA nos cromossomos a) o isolamento viral em ovos embrionados ou


dos gametas. Essas duas formas de transmissão em cultivos celulares, b) teste de fixação do com-
vertical estão associadas com quadros clínicos di- plemento para detecção da proteína do capsídeo
ferentes. A primeira forma resulta no desenvol- em cultivo celular inoculado (teste de COFAL),
vimento de viremia e leucemia, enquanto a pre- c) ELISA, d) IFA e e) PCR para detecção do pro-
sença do provírus no gameta não induz viremia, vírus, com capacidade de diferenciação entre os
e a infecção é geralmente latente. A transmissão subtipos.
horizontal pelo contato direto ou indireto com sa- O controle baseia-se em medidas profiláticas
liva contaminada pode desempenhar um papel para evitar a transmissão horizontal onde há alta
importante na disseminação da infecção devido densidade populacional (sistema all-in-all-out) e
à alta densidade populacional em granjas indus- na escolha de linhagens resistentes, o que levou
triais. a uma diminuição significativa de infecção por
ALV em granjas comerciais. Apesar da seleção
5.9.2 Patogenia, sinais clínicos, de linhagens resistentes, o surgimento de mutan-
patologia e imunidade tes e/ou recombinantes capazes de infectar essas
linhagens tem sido descrito.
A forma mais comum de apresentação de
doença pelos animais infectados com ALV é a
leucose, que acomete aves de 14 a 30 semanas de 6 Bibliografia consultada
idade, sem o desenvolvimento de sinais clínicos
específicos. As aves apresentam fraqueza, redu-
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diagnosis of feline immunodeficiency virus infection. The
lículos regride, mas alguns poderão dar origem
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aparecer associados com a leucemia e tumores.
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5.9.3 Diagnóstico e controle A; MACARI, M. Doenças das Aves. Campinas, SP: Fundação
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O diagnóstico de leucose aviária é geral- 265.

mente realizado por ocasião da necropsia, asso- CAXITO, F.A.; RESENDE, M. Feline immunodeficiency virus: a
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of Virology, v.68, p.494-499, 1994.
OUTRAS FAMÍLIAS VIRAIS
Fernanda Silveira Flores Vogel1
& Eduardo Furtado Flores
32
1 Introdução 841

2 Polyomaviridae 841

2.1 Classificação 842


2.2 Propriedades gerais 842
2.3 Ciclo replicativo 842
2.4 Biologia e patogenia 842

3 Hepadnaviridae 844

3.1 Classificação 844


3.2 Propriedades gerais 844
3.3 Ciclo replicativo 844
3.4 Biologia e patogenia 845

4 Arenaviridae 846

4.1 Classificação 846


4.2 Propriedades gerais 846
4.3 Ciclo replicativo 846
4.4 Biologia e patogenia 847

5 Astroviridae 848

5.1 Classificação 848


5.2 Propriedades gerais 848
5.3 Ciclo replicativo 849
5.4 Biologia e patogenia 849

6 Filoviridae 849

6.1 Classificação 850


6.2 Propriedades gerais 850
6.3 Ciclo replicativo 850
6.4 Biologia e patogenia 851

1
Luiz Carlos Kreutz elaborou a seção 7.4.2 (Vírus da pancreatite necrosante dos salmões, INPV).
7 Birnaviridae 851

7.1 Classificação 851


7.2 Propriedades gerais 851
7.3 Ciclo replicativo 852

7.4 Birnavírus de importância veterinária 852


7.4.1 Vírus da doença de Gumboro 852
7.4.2 Vírus da pancreatite necrótica infecciosa 855

8 Bornaviridae 856

8.1 Classificação 856


8.2 Propriedades gerais 857
8.3 Ciclo replicativo 857
8.4 Biologia e patogenia 858
8.5 Doença de Borna 858

9 Bibliografia consultada 859


1 Introdução infecta principalmente, mas não exclusivamente,
eqüinos.
Algumas famílias abrigam vírus que pos-
suem importância limitada, como patógenos de 2 Polyomaviridae
animais de companhia ou de criação, apresen-
tando menor relevância em medicina veteriná- A família Polyomaviridae era classificada an-
ria. Este capítulo abordará, de forma sucinta, os teriormente como uma subfamília da Papovaviri-
principais aspectos das famílias de vírus cujos dae, cuja denominação se devia aos vírus protó-
membros possuem importância clínica limitada tipos de cada subfamília: Pa (papilomavírus de
em animais de interesse veterinário. Dentre os coelhos); po (poliomavírus de camundongos);
membros dessas famílias, alguns possuem im- va (agente vacuolizante, vírus símio 40, SV-40).
portância como patógenos humanos; outros são Atualmente, os poliomavírus e o protótipo SV-
patógenos de animais de laboratório, de inverte- 40 são classificados separadamente, na família
brados ou produzem doenças apenas em animais Polyomaviridae. O interesse maior nesses vírus se
silvestres; um terceiro grupo abrange vírus que, iniciou com a descoberta de que o SV-40 e outros
aparentemente, não estão envolvidos com doen- poliomavírus eram capazes de produzir tumores
ça em vertebrados e a sua importância limita-se em hamsters (por isto foram denominados peque-
a aspectos peculiares de sua estrutura, biologia nos vírus DNA tumorais). O SV-40 foi descoberto
e ecologia. acidentalmente como contaminante de linhagens
Deve-se ressaltar que os critérios utilizados celulares de macacos rhesus utilizadas para a
nesta classificação são relativos, e que as linhas produção de vacinas contra a poliomielite. Como
que delimitam os grupos de vírus de acordo com conseqüência, aproximadamente 50 milhões de
a sua importância clínica são tênues, podendo ser doses de vacinas produzidas contra a poliomie-
circunstanciais e temporárias. Certos agentes po- lite e utilizadas na década de 1950 estavam con-
dem ser considerados pouco importantes dentro taminadas com o SV-40. Posteriormente, consta-
de um contexto, mas são muito importantes em tou-se que o SV-40 era capaz de produzir tumores
outras situações. Da mesma forma, vírus histori- em hamsters, aumentando a preocupação sobre
camente considerados pouco importantes podem uma possível atividade tumorigênica também
adquirir importância clínica devido a alterações em humanos. Embora estudos extensivos reali-
genéticas ou ecológico-ambientais que influen- zados durante décadas não tenham sido capazes
ciam as suas interações com os hospedeiros, po- de demonstrar associação entre o SV-40 e tumo-
dendo resultar na ocorrência de doenças huma- res humanos, estudos recentes demonstraram a
nas e animais. Um exemplo recente é a adaptação presença de seqüências de DNA e antígenos do
do vírus da influenza a cães, espécie até então SV-40 em certos tumores raros em humanos, re-
considerada refratária à infecção. novando o interesse por este vírus.
Ao final deste capítulo, será apresentada a O interesse inicial pelos poliomavírus de-
família Birnaviridae, uma pequena família, que veu-se ao seu potencial oncogênico. No entanto,
abriga pelo menos dois vírus importantes em estes vírus foram mais estudados como mode-
animais: o INPV (vírus da pancreatite necrótica los para a Virologia e Biologia Molecular do que
infecciosa), que infecta peixes e possui impor- como patógenos humanos ou animais. Importan-
tância em criatórios de salmões, e o IBDV (vírus tes conhecimentos na Biologia Molecular, como a
da doença de Gumboro ou doença da bursa de estrutura do DNA superenrolado, origens e ini-
Fabricius), que infecta galinhas e possui grande ciação da replicação do DNA, estrutura e função
importância na avicultura comercial em vários de promotores e enhancers, splicing alternativo e
países. Outro vírus que possui importância rela- regulação da expressão gênica, entre outros, fo-
tiva em alguns países é o vírus da doença de Bor- ram obtidos a partir de estudos realizados com
na (BDV), pertencente a família Bornaviridae, que esses vírus.
842 Capítulo 32

2.1 Classificação 2.3 Ciclo replicativo

Os vírus da família Polyomaviridae infectam Os detalhes da replicação dos poliomaví-


animais e humanos, e todos pertencem ao gênero rus estão apresentados com detalhes no capítulo
Polyomavirus. Entre estes vírus estão: polioma- referente à replicação dos vírus DNA. Do pon-
vírus de camundongos (PyV), vírus K (camun- to de vista biológico, é importante ressaltar que
dongos), vírus símio 40 (SV-40) (macaco rhesus), a replicação desses vírus em células de espécie
agente símio 12 (SA-12) (babuínos), poliomaví- homóloga ou heteróloga pode ter conseqüências
rus linfotrópico (LPyV) (macaco-verde-africano), diferentes. A infecção de células permissivas (es-
poliomavírus bovino (BPyV), vírus vacuolizante pécie homóloga) resulta na ocorrência de todas
renal de coelhos (RKV), poliomavírus de hamsters as etapas do ciclo e na conseqüente produção de
(HaPV), poliomavírus de ratos atímicos (ARPyV), progênie viral infecciosa. Por outro lado, a infec-
vírus da doença de Budgerigar fledgling (BFDV) ção de células semi-permissivas (geralmente de
(psitacídeos), poliomavírus JC (JCV) (humanos), espécies heterólogas) resulta em replicação abor-
vírus BK (BKPyV) (humanos), poliomavírus B tiva, na qual ocorre apenas a expressão dos genes
linfotrópico, o vírus pneumotrópico de murinos iniciais, sem a replicação do genoma ou produção
(MPtV), o Kilham poliomavírus (KPyV) e o vírus das proteínas estruturais (tardias). A persistência
do rim de fetos do macaco rhesus. do genoma viral nessas células, associada com a
expressão contínua dos antígenos T, pode levar à
2.2 Propriedades gerais imortalização e transformação celular.

As principais propriedades biológicas e 2.4 Biologia e patogenia


moleculares dos poliomavírus estão apresenta-
das no Quadro 32.1. Os poliomavírus são vírus Em geral, os poliomavírus humanos e ani-
que geralmente produzem infecções subclínicas mais estão mais freqüentemente associados com
persistentes em seus hospedeiros naturais. Al- infecções subclínicas e apenas esporadicamente
guns deles estão associados com a produção de produzem sinais clínicos ou tumores em hospe-
tumores em espécies heterólogas, pricipalmente deiros heterólogos. Portanto, possuem impor-
hamsters. tância limitada em medicina veterinária. Alguns,
Polyomaviridae

– Vírions pequenos (45 mm), icosaédricos, sem envelope;


– Genoma: DNA circular, fita dupla, 5 kb;
– Genoma conjugado com histonas formando um minicromossomo;
– Existem poliomavírus de vários mamíferos de humanos e aves;
– Espectro restrito de hospedeiros;
– Não replicam produtivamente em outra espécie;
– Causam infecções inaparentes na maioria dos hospedeiros naturais;
– Alguns vírus produzem tumores em hamsters recém-nascidos;
– Infecção de células heterólogas pode resultar em transformação;
– Chamados de "pequenos vírus DNA tumorais".
Fonte: PHIL Library, CDC.

Quadro 32.1. Propriedades biológicas e moleculares da família Polyomaviridae. À direita: fotografia de microscopia
eletrônica de vírions do SV-40.
Outras famílias virais 843

no entanto, podem estar associados com doença demonstrado que o JCV é capaz de estabelecer
severa, como o BFDV. A Tabela 32.1 apresenta os infecção latente em linfócitos, no trato urogeni-
principais poliomavírus animais, os seus hospe- tal e no cérebro de pessoas infectadas. Em indiví-
deiros e os aspectos mais importantes da infec- duos imunodeprimidos, o vírus pode reativar e
ção. produzir infecção clínica. Nestes indivíduos, o
Dois poliomavírus humanos já foram iden- JCV pode determinar a PML, que é uma enfermi-
tificados até o presente: os vírus JC e BK. Esses dade degenerativa que afeta as células oligoden-
vírus infectam grande parte das pessoas durante dríticas. As pessoas doentes apresentam perda de
a infância ou adolescência, produzindo infecções memória, confusão mental, desorientação, ataxia,
subclínicas ou com sinais clínicos discretos, e hemiparesia, incoordenação e anormalidades vi-
permanecem latentes ou persistentes no epitélio suais. A morte pode ocorrer entre três e seis me-
renal de algumas pessoas. Acredita-se que cerca ses após o início dos sintomas. Além disso, o JCV
de 80% da população mundial apresente anticor- já foi encontrado associado com nefropatias em
pos contra esses vírus. A associação desses agen- pacientes recém-transplantados. Quanto ao BKV,
tes com enfermidade é incerta, embora o BKV já não há evidências de que este vírus determine
tenha sido isolado de pacientes transplantados infecção clínica em pessoas imunocompetentes.
imunodeprimidos e o JCV já tenha sido identi- Em pacientes que receberam transplante renal, o
ficado no cérebro de pacientes com leucoence- BKV também é incriminado como uma das cau-
falopatia multifocal progressiva (PML). Já foi sas de insucesso do transplante.

Tabela 32.1. Principais poliomavírus animais, hospedeiros e principais aspectos da infecção

Vírus Hospedeiro Características principais

Infecção natural em camundongos


silvestres; infecção de
Poliomavírus de camundongos Camundongos camundongos de laboratórios e
(PyV) colônias; causa infecção renal
persistente

Vírus K (PyK) Camundongos Infecção natural de camundongos,


replica nos endotélios pulmonares

Infecção renal persistente em


Vírus símio 40 (SV-40) Macacos rhesus
macacos silvestres na Ásia

Agente símio 12 (SA-12) Baboons Infecção natural em baboons na África

Poliomavírus linfotrópico (LPV) Macaco-verde-africano Infecta linfoblastos da linhagem B

Bovinos Comum em bovinos;


Poliomavírus bovino (BPyV)
persiste nos rins

Vírus vacuolizante renal de Infecção natural em coelhos-


Coelhos
coelhos (RKV) cauda-de-algodão

Poliomavírus de Hamsters Associado com tumores


hamsters (HaPV) cutâneos

Poliomavírus de ratos atímicos (ARPyV) Ratos atímicos Infecta a glândula parótida

Vírus da doença de
Psitacídeos Doença aguda e fatal em psitacídeos
Budgerigar fledgling (BFDV)
844 Capítulo 32

3 Hepadnaviridae 3.1 Classificação

A família Hepadnaviridae é composta por ví- Os vírus da família Hepadnaviridae são clas-
rus DNA pequenos, que apresentam um tropis- sificados em dois gêneros, de acordo com os seus
mo marcante por células hepáticas. Essa família hospedeiros naturais, a sua estrutura e organi-
abriga um importante patógeno de humanos, o zação genômica. Os Orthohepadnavirus infectam
vírus da hepatite B (HBV), que é o seu protótipo. mamíferos (marmotas e esquilos) e os Avihepad-
Por isso, os hepadnavírus são genericamente de- navirus infectam aves (patos, gansos, garças e ou-
nominados vírus das hepatites B. O HBV é con- tras espécies), produzindo hepatite do tipo B em
siderado um dos principais patógenos de huma- seus hospedeiros.
nos e, em todo mundo, acredita-se que cerca de
300 milhões de pessoas estejam cronicamente in- 3.2 Propriedades gerais
fectadas. Entre as conseqüências da infecção pelo
HBV, estão a hepatite aguda ou crônica, infecção As principais propriedades biológicas e mo-
subclínica persistente, cirrose e o carcinoma he- leculares dos hepadnavírus estão apresentadas
patocelular (HCC). no Quadro 32.2. Dentre as propriedades bioló-
Esta família também abriga alguns vírus gicas mais marcantes, destacam-se o hepatotro-
de animais, como os hepadnavírus de esquilos pismo e a capacidade de produzirem infecções
(ground squirrel hepatitis virus, GSHV), marmo- hepáticas persistentes, muitas vezes, seguidas de
tas (woodchuck hepatitis virus, WHV) e patos (duck desenvolvimento de cirrose hepática e de carci-
hepatitis B virus, DHBV). Recentemente, outros noma hepatocelular.
hepadnavírus foram identificados em garças,
gansos, marsupiais e orangotangos. Os hepad- 3.3 Ciclo replicativo
navírus possuem tropismo marcante por células
hepáticas, e as manifestações clínicas da infecção O ciclo replicativo dos hepadnavírus é único
são predominantemente hepáticas embora não entre os vírus animais e inclui uma etapa de trans-
exclusivamente. crição reversa – distinta dos retrovírus. Após a

– Vírions pequenos (42-47 nm), esféricos, com envelope;


Hepadnaviridae

– Nucleocapsídeo icosaédrico;
– Genoma DNA circular (3.0 to 3.3 kb), fita parcialmente dupla;
– Partículas subvirais em abundância (esféricas, filamentosas);
– A polimerase viral está presente nos vírions;
– O ciclo replicativo envolve uma etapa de transcrição reversa;
– Parte da replicação do genoma no núcleo parte no citoplasma;
– Não replicam bem em cultivo celular;
– Espectro restrito de hospedeiros in vivo;
– Hepatotropismo marcante;
– Produzem infecções hepáticas persistentes;
– Associados com carcinoma hepatocelular (HCC). Fonte: Dr Linda Stannard.uct.ac.za

Quadro 32.2. Propriedades biológicas e moleculares dos hepadnavírus. À direita: fotografia de microscopia eletrônica
de vírions e partículas subvirais esféricas e filamentosas do HBV.
Outras famílias virais 845

penetração na célula, transporte ao núcleo e des- se recupera da infecção. No entanto, em algumas


nudamento, o DNA genômico é circularizado em pessoas, a infecção se torna persistente, determi-
uma fita parcialmente dupla e é convertido por nando uma doença hepática de moderada a se-
enzimas celulares e/ou pela polimerase viral em vera, com taxas de morbidade e mortalidade bai-
uma molécula circular, covalentemente fechada xas. A extensão e a severidade da infecção pelo
de fita dupla (covalently closed circle, ccc). A molé- HBV dependem de fatores virais e do hospedei-
cula de DNA ccc serve de molde para a transcri- ro. Sabe-se que esse vírus apresenta mecanismos
ção pela RNA polimerase II celular, originando de adaptação ao hospedeiro, como mutações em
RNAs mensageiros subgenômicos (mRNA) e um determinadas regiões do genoma, favorecendo a
RNA mensageiro da extensão do genoma (pgR- infecção persistente.
NA). Esses RNAs são exportados para o citoplas- Após a infecção, o início da injúria hepato-
ma, onde os mRNA são traduzidos nas proteínas celular ocorre pela indução de apoptose mediada
virais (polimerase, capsídeo e envelope). A poli- por linfócitos T citotóxicos em hepatócitos in-
merase recém-produzida pela tradução utiliza o fectados. Durante a infecção aguda, a patologia
pgRNA como molde e realiza transcrição reversa, varia de leve a moderada. Em alguns casos, no
resultando em uma cópia de DNA complementar entanto, existe uma reação inflamatória intensa,
(cDNA), que é convertida em fita dupla pela pró- que resulta em uma grande injúria hepatocelular
pria polimerase. Essa reação ocorre em capsídeos e em hepatite fulminante. Por outro lado, a hepa-
recém-formados e é interrompida quando ocorre tite crônica resulta da injúria contínua dos hepa-
o brotamento e egresso dos vírions das células. tócitos. Em pacientes assintomáticos, existe certa
Como resultado, os vírions contêm, no seu inte- tolerância aos antígenos do HBV, o que resulta
rior, uma molécula de DNA de fita parcialmente em injúria leve ou ausente aos hepatócitos, pelas
dupla. Parte desses vírions pode reciclar para o células do sistema imune. Para um melhor escla-
núcleo e reiniciar o ciclo; outra parte é liberada recimento da patogenia do HBV, animais, como
da célula. camundongos e chimpanzés, têm sido utilizados
como modelos experimentais. Uma vacina re-
3.4 Biologia e patogenia combinante, contendo a glicoproteína de super-
fície do HBV, produzida em levedura, tem sido
A infecção pelo HBV pode ser subclínica ou utilizada em humanos. A Tabela 32.2 apresenta
resultar em enfermidade hepática, caracterizada os principais hepadnavírus, os seus hospedeiros
por hepatite aguda a crônica, cirrose e carcinoma e as principais características da infecção em cada
hepatocelular. A maioria das pessoas infectadas espécie.

Tabela 32.2. Hospedeiros e principais aspectos da patogenia dos hepadnavírus

HBV WHV GSHV DHBV

Hospedeiro Humanos Esquilos Patos


Marmotas
Chimpanzés Marmotas Gansos

Fígado Fígado Fígado


Tropismo Rins Rins Rins
Fígado
Pâncreas Pâncreas Pâncreas
Leucócitos Leucócitos Baço

Portadores Portadores Portadores Portadores


Manifestações subclínicos; subclínicos; subclínicos; subclínicos;
clínicas hepatite aguda e hepatite; HCC hepatite; HCC hepatite
crônica; cirose,
HCC
846 Capítulo 32

4 Arenaviridae argentina); Machupo (febre hemorrágica bolivia-


na); Guanarito (febre hemorrágica venezuelana)
Os membros da família Arenaviridae são ví- e Sabiá (febre hemorrágica brasileira). Esses e ou-
rus que possuem roedores silvestres da Europa, tros arenavírus foram identificados nas Américas
África e Américas como hospedeiros naturais. do Norte, Central e do Sul em infecções persis-
Nesses hospedeiros, os arenavírus geralmen- tentes em várias espécies de roedores silvestres e,
te produzem infecções subclínicas persistentes, ocasionalmente, infectando humanos, nos quais
sendo continuamente excretados na saliva, urina podem causar desde infecções subclínicas até fe-
e fezes, condições que favorecem a sua transmis- bre hemorrágica fatal.
são e disseminação. A exposição humana é usu- O número de arenavírus cresce continua-
almente ocupacional e freqüentemente envolve mente à medida que estudos epidemiológicos são
trabalhadores rurais. As conseqüências da infec- realizados nos nichos ecológicos dos seus hospe-
ção humana variam desde infecções inaparentes, deiros naturais. A importância de vários desses
com sintomatologia leve a moderada, até febre vírus recém-descobertos, para a saúde humana e
hemorrágica fatal. Por isso, esses vírus são ge- animal, no entanto, é difícil de ser estimada no
nericamente denominados agentes de febres he- presente.
morrágicas. Mais de 20 espécies de arenavírus já
foram identificadas em vários continentes; todas, 4.2 Propriedades gerais
provavelmente, associadas com hospedeiros roe-
dores, e algumas associadas com doença humana. As principais propriedades biológicas e mo-
O protótipo dessa família é o vírus da coriome- leculares dos arenavírus estão apresentadas no
ningite linfocítica (LCMV), um agente que infecta Quadro 32.3. Os vírions envelopados contêm ri-
roedores silvestres, colônias de roedores cativos bossomos celulares no seu interior, o que confere
e, ocasionalmente, pessoas. O interesse maior no um aspecto granular a sua superfície. O genoma
LCMV tem sido como modelo para estudos imu- é composto por duas moléculas de RNA lineares,
nológicos. Descobertas importantes, como a imu- fita simples (S = 3.4 kb; and L = 7.2 kb) de po-
notolerância, imunopatologia induzida por vírus, laridade negativa. No entanto, os produtos dos
reconhecimento de antígenos virais por linfócitos genes localizados na metade 3’ dos segmentos
T CD4+ e CD8+, atividade das células NK (natu- genômicos são codificados no sentido genômico,
ral killer), entre outras, vieram de estudos com o estratégia denominada ambissense. A replicação
LCMV. Os arenavírus que causam doença huma- ocorre no citoplasma, geralmente é não-citolítica
na devem ser manipulados em laboratórios com e freqüentemente resulta na produção de partí-
estritas condições de biossegurança para evitar a culas defectivas. Como a infecção, na maioria das
exposição (nível 4 de biossegurança). vezes, é não-citolítica, pode favorecer o estabele-
cimento de infecções persistentes in vivo.
4.1 Classificação
4.3 Ciclo replicativo
A família Arenaviridae apresenta um único
gênero (Arenavirus). Os arenavírus são classifica- Os vírions se ligam aos receptores na super-
dos em dois grupos, com base em propriedades fície celular através da glicoproteína GP1 e são in-
genéticas e antigênicas: os arenavírus do Novo ternalizados por endocitose. A fusão do envelope
Mundo (Junin, Machupo, Guanarito e vírus Sa- com a membrana do endossomo é dependente
biá) e os arenavírus do Velho Mundo (LCMV e de pH e mediada pela GP2, ocorrendo, então, a
Lassa vírus). O LCMV é o protótipo do segundo liberação dos nucleocapsídeos no citoplasma.
grupo, que também inclui os arenavírus da Áfri- A proteína L (RNA polimerase dependente de
ca. RNA), que está presente no nucleocapsídeo asso-
Os arenavírus do Novo Mundo são agentes ciada ao genoma, sintetiza o mRNA do gene da
associados com febres hemorrágicas nas Améri- nucleoproteína (NP) (presente no segmento S) e
cas, incluindo o vírus Junin (febre hemorrágica do gene da proteína L (segmento L). Estes genes,
Outras famílias virais 847

– Vírions pleomórficos (110 a 130 nm), envelopados;


Arenaviridae
– Envelope recoberto com peplômeros cubóides (10-12 nm);
– Os vírions contêm ribossomos; aparência de areia (areia = arena);
– Genoma: 2 moléculas de RNA fita simples, polaridade negativa;
– Um dos segmentos de RNA é ambissense;
– Dois nucleocapsídeos helicoidais; cada um com um RNA;
– Polimerase viral presente nos vírions;
– Roedores silvestres são os hospedeiros naturais,
– Replicação citoplasmática, geralmente não-citolítica;
– Infecções persistentes são freqüentes in vivo. Fonte: Scientific American.ICTVdB.

Quadro 32.3. Propriedades biológicas e moleculares dos arenavírus. À direita: fotografia de microscopia eletrônica de
um vírion desta família.

portanto, são codificados pelo RNA com sentido roedores, em particular os camundongos, cobaias
antigenômico. Os genes que estão localizados na e hamsters, são excelentes modelos experimentais
metade 3’ dos segmentos genômicos (segmento para estudos da infecção. Poucas informações es-
S = glicoproteínas GPG; segmento L = proteína tão disponíveis a respeito da infecção de caninos,
Z) são codificados no sentido do genoma. A sua felinos, animais de produção e de vertebrados
expressão ocorre pela tradução de RNAs (com o não-mamíferos por arenavírus. Porém sabe-se
mesmo sentido do genoma) que são produzidos que esses animais podem potencialmente parti-
pela transcrição do RNA de sentido antigenômi- cipar da epidemiologia da infecção. Embora te-
co. Esses RNAs seriam, por definição, de sentido nha sido demonstrado que o LCMV replica em
negativo, porém são traduzidos em proteínas. mosquitos, além de outros arenavírus terem sido
Essa estratégia de expressão é denominada am- isolados de artrópodes, o significado epidemioló-
bissense e também ocorre em alguns membros da gico desses achados permanece incerto.
família Bunyaviridae. O precursor das GPG sofre A patogenia dos arenavírus envolve uma
modificações pós-translacionais, em que a GPG replicação inicial no sítio de penetração, geral-
é clivada em GP1 e GP2. O RNA genômico se mente nos pulmões, após a inalação de aerossóis
conjuga com a proteína NP, formando o nucle- contaminados. Os linfonodos do hilo, tecidos
ocapsídeo, que é transportado até a membrana pulmonares e, mais tardiamente, outros órgãos
plasmática, onde interage com as glicoproteínas parenquimatosos são importantes sítios de repli-
e realiza o brotamento. As moléculas de GP1 cação viral.
formam homotetrâmeros, mantidas unidas por O LCMV produz infecção e doença huma-
pontes dissulfeto. A GP2, ancorada na membra- na, eventos que ocorrem quando roedores silves-
na, também forma homotetrâmeros. O complexo tres infectados entram em contato com pessoas.
da GP1 e da GP2 interage e forma as projeções Esse vírus também produz infecções persisten-
na superfície dos vírions. Na morfogênese das tes assintomáticas em colônias de camundongos
partículas víricas, a GP2 interage com a NP. Os e hamsters. Outras espécies, como cães, coelhos,
vírions adquirem envelope e são liberados sem, suínos e primatas, também podem ser ocasional-
necessariamente, causar lise celular. mente infectadas.
Em roedores, a duração da viremia parece
4.4 Biologia e patogenia estar diretamente associada com a idade em que
ocorre a infecção. Para os vírus Lassa e LCMV, foi
A infecção de mamíferos com os arenaví- demonstrado que a viremia persiste por toda a
rus pode cursar de forma aguda ou crônica, com vida quando a infecção dos roedores é intra-ute-
taxas variáveis de morbidade e mortalidade. Os rina ou ocorre logo após o nascimento. Quando
848 Capítulo 32

roedores adultos são infectados, a viremia é tran- importantes distinguem os astrovírus de outros
sitória. Já para o vírus Junin, a infecção intra-ute- pequenos vírus RNA de fita simples, como os pi-
rina determina morte fetal e aborto. A infecção cornavírus e os calicivírus.
de neonatos resulta em viremia que persiste por
toda a vida; já a infecção de adultos pode resul- 5.1 Classificação
tar em viremia transitória ou persistente. Conse-
qüentemente, a presença da infecção persistente Os astrovírus são classificados em dois gê-
é decorrente da interação de vários fatores. neros: Mamastrovirus e Avastrovirus. Os vírus
que pertencem ao gênero Mamastrovirus infec-
5 Astroviridae tam mamíferos e incluem vírus de bovinos (dois
sorotipos – US1 e US2), felinos, ovinos, suínos,
Os astrovírus são agentes muito comuns que marta e humanos (oito sorotipos). As espécies de
infectam animais e humanos, mas raramente es- mamastrovírus são definidas de acordo com o
tão associados com enfermidade clínica. Ocasio- hospedeiro de origem. Os Avastrovirus infectam
nalmente são encontrados associados com outros aves, incluindo pássaros, galinhas, patos e perus.
agentes em casos de diarréia. Esses vírus foram O vírus da nefrite aviária (ANV), que está asso-
descobertos, inicialmente, pelo exame ultrami- ciado com nefrite aguda em galinhas, inclui-se
croscópico de fezes de crianças e, posteriormente, nesse gênero.
foram encontrados nas fezes de várias espécies, Os astrovírus são espécie-específicos e não
como cães, gatos, ovinos, bovinos, suínos, entre apresentam reatividade sorológica cruzada. A
outras. Em aves, manifestações clínicas intesti- análise sorológica de vários isolados de diferen-
nais e hepáticas associadas com astrovírus têm tes espécies (sete de humanos, um de ovinos, um
sido descritas. Patos jovens podem desenvolver de suínos, três de bovinos e um de aves) não de-
hepatite aguda fatal quando infectados. Os astro- monstrou relação antigênica entre eles.
vírus também têm sido implicados como co-fa-
tores em casos de diarréia em crianças em países 5.2 Propriedades gerais
subdesenvolvidos.
O nome da família deriva da aparência de As principais propriedades biológicas e mo-
estrela de cinco ou seis pontas que alguns vírions leculares dos astrovírus estão apresentadas no
apresentam quando examinados sob microsco- Quadro 32.4. Esses agentes apresentam várias
pia eletrônica. Aspectos moleculares e biológicos características moleculares e de replicação seme-
Astroviridae

– Vírions esférico-icosaédricos, 28 a 30 nm, sem envelope;


– Alguns vírions apresentam aparência de estrelas (astro = estrela);
– Genoma RNA linear polaridade positiva, 6.8 kb;
– Proteína ligada na extremidade 5'; cauda poliA na extremidade 3';
– Duas proteínas do capsídeo; várias proteínas não-estruturais;
– Tradução parcial do genoma; produção de mRNA subgenômicos;
– Replicação citoplasmática;
– Progênie viral acumula-se em arranjos cristalinos no citoplasma;
– A liberação de vírions ocorre por lise celular. Fonte: www.epa.gov

Quadro 32.4. Propriedades biológicas e moleculares dos astrovírus. À direita, fotografia de microscopia eletrônica de
vírus desta família.
Outras famílias virais 849

lhantes a outros vírus RNA de polaridade positi- 5.4 Biologia e patogenia


va, como os calicivírus.
A patogenia da infecção pelos astrovírus é
5.3 Ciclo replicativo pouco conhecida. No entanto, a replicação des-
ses vírus no intestino tem sido associada com o
O ciclo replicativo dos astrovírus ainda não achatamento das vilosidades e a ocorrência de
foi completamente esclarecido. Porém, sabe-se diarréia. Como a replicação desses vírus ocorre
que, durante a infecção, são produzidos RNAs principalmente no epitélio intestinal, grandes
subgenômicos, além dos RNA genômicos e an- quantidades de partículas víricas são excretadas
tigenômicos. A exemplo de outros vírus RNA nas fezes. A maioria das infecções é subclínica; al-
de polaridade positiva, a replicação do genoma gumas resultam em diarréia discreta autolimitan-
envolve a síntese de uma molécula de RNA de tes – principalmente em animais jovens –; e casos
sentido antigenômico (polaridade negativa). de enfermidade severa são raros. Os indivíduos
O genoma viral contém três ORFs. A ORF-1a adultos dificilmente desenvolvem sinais clínicos
e a ORF-1b codificam as proteínas não-estrutu- devido à imunidade adquirida previamente.
rais e estão localizadas nos dois terços próximos Os sinais clínicos são mais freqüentemente
à extremidade 5’. A ORF-2 codifica a proteína observados em casos de infecções múltiplas. Em
do capsídeo e está localizada no terço próximo à infecções experimentais, suínos, felinos e bovinos
extremidade 3’. As ORF-1a e 1b estão presentes são menos susceptíveis do que ovinos.
apenas no RNA genômico e estão separadas por O astrovírus de peru (TAstV) produz diar-
um frameshift dos ribossomos. Os seus produtos réia, que persiste por aproximadamente oito
(proteínas não-estruturais nsP1a e nsP1b) são dias. Este mesmo vírus foi isolado de pássaros
sintetizados a partir da tradução direta do RNA com uma síndrome entérica denominada PEMS
genômico. Como a ORF-2 está presente tanto no (poult enteritis mortality syndrome). O vírus da ne-
RNA genômico como nos mRNAs subgenômi- frite aviária (ANV), que infecta galinhas, provoca
cos, sugere-se que o papel do mRNA subgenô- retardamento do crescimento e nefrite intersticial
mico seja a codificação para a síntese de maior aguda, sendo um exemplo de astrovírus que cau-
quantidade de proteínas estruturais. sa infecção extra-intestinal. A infecção de patos
A ORF-1a codifica uma protease, que é im- jovens (menos de seis semanas de idade) freqüen-
portante no processamento das proteínas virais. temente resulta em hepatite aguda, que é fatal em
A ORF-1b codifica a RNA polimerase viral (RNA aproximadamente 50% dos casos.
polimerase dependente de RNA); e a ORF-2 codi-
fica um precursor da proteína do capsídeo. Esse 6 Filoviridae
precursor é clivado antes da formação da partí-
cula vírica. Os filovírus foram os primeiros vírus as-
As duas proteínas não-estruturais nsP1a sociados com febre hemorrágica em humanos.
(protease) e nsP1b (replicase), após o processa- Esses vírus foram inicialmente identificados em
mento por proteases virais e celulares, dão ori- casos da doença em laboratoristas na Alemanha,
gem às proteínas responsáveis pela transcrição na década de 1960. O vírus foi caracterizado e de-
do RNA genômico, produzindo o RNA de sen- nominado vírus Marburg, tornando-se o protóti-
tido antigenômico. O RNA antigenômico serve po dessa família. A origem do vírus Marburg foi,
de molde para a produção de múltiplas cópias posteriormente, determinada e, provavelmente,
de um RNA subgenômico (mRNA para produ- ocorreu pela importação de macacos-verdes afri-
ção da proteína do capsídeo) e para a produção canos de Uganda. Aproximadamente uma déca-
de RNA genômico, para ser encapsidado na pro- da depois, o vírus Ebola foi reconhecido como
gênie viral. A replicação ocorre inteiramente no agente etiológico de surtos de febre hemorrágica
citoplasma, os vírions se acumulam em arranjos no Zaire e no Sudan. Um vírus similar, denomi-
cristalinos e são liberados após a lise celular. nado de Reston, foi introduzido nos EUA por
850 Capítulo 32

macacos importados das Filipinas. Desde então, 6.2 Propriedades gerais


surtos esporádicos de febre hemorrágica associa-
dos ao vírus Ebola têm sido descritos em vários As principais propriedades biológicas e
países africanos. Nesses surtos, tem sido suge- moleculares dos filovírus estão apresentadas no
rida a participação de um hospedeiro silvestre Quadro 32.5. Muitos aspectos estruturais e do ci-
como introdutor do agente na população huma- clo replicativo são semelhantes aos das famílias
na. Uma vez introduzido na população, o vírus Rhabdoviridae e Paramyxoviridae, também compo-
se dissemina geralmente por transmissão noso- nentes da ordem Mononegavirales.
comial (agulhas, práticas parenterais não-apro-
priadas) e por contato direto. Em alguns surtos, 6.3 Ciclo replicativo
a taxa de letalidade pode chegar a 80%. O vírus
Ebola é um dos vírus mais letais de humanos e O ciclo replicativo dos filovírus inicia pela
é classificado como um agente de biossegurança ligação da glicoproteína viral (GP) a receptores
nível 4. Embora o vírus Ebola e os demais filoví- na superfície da célula hospedeira. Os vírions
rus apresentem um caráter claramente zoonótico, são internalizados em vesículas endocíticas, a
os reservatórios naturais do vírus permanecem penetração ocorre pela fusão do envelope com
desconhecidos e se constituem em um grande a membrana do endossomo, e o nucleocapsídeo
desafio para os epidemiologistas. é liberado no citoplasma. O RNA genômico de
polaridade negativa é utilizado como molde para
6.1 Classificação a síntese de mRNAs monocistrônicos individuais
para cada gene. Estes mRNA contêm cap, são po-
A família Filoviridae pertence à ordem Mo- liadenilados e traduzidos pelos ribossomos ce-
nonegavirales, juntamente com outros vírus com lulares. A transcrição e replicação são realizadas
genoma RNA não-segmentado de polaridade ne- pela enzima replicase (RNA polimerase depen-
gativa. Na família Filoviridae, existem dois gêne- dente de RNA) presente nos vírions. As proteínas
ros: os vírus semelhantes ao Ebola (Ebola-like vi- virais podem sofrer modificações após a tradu-
ruses), com quatro espécies (Zaire, Sudan, Reston ção. A GP0 (precursora da glicoproteína) é cliva-
e Côte d’Ivoire), e o gênero dos vírus semelhantes da em GP1 e GP2, que são altamente glicosiladas.
ao Marburg (Marburg-like viruses). Não existe re- A GP1 e a GP2 se ligam formando heterodímeros.
atividade sorológica cruzada entre os vírus dos Trímeros destes heterodímeros formam, então, os
diferentes gêneros. No entanto, existem alguns peplômeros da superfície dos vírions. A precur-
epitopos em comum entre os vírus do grupo do sora da glicoproteína secretada (SGP) é clivada
Ebola. em SGP e em um peptídeo delta, ambos secre-

– Vírions pleomórficos, filamentosos, em forma de U ou 6;


Filoviridae

– Diâmetro uniforme (80 nm); extensão pode chegar a 14.000 nm;


– Nucleocapsídeo helicoidal (50 nm de diâmetro) pode atingir 800 nm;
– O envelope contém peplômeros (10 nm);
– Genoma RNA cadeia simples polaridade negativa (19.1 kb);
– RNA polimerase viral presente nos vírions;
– Os vírions possuem sete proteínas estruturais;
– Associados com febre hemorrágica;
– O vírus Ebola é um dos mais letais para humanos.
Fonte: Dr F. Murphy. ICTVdB.

Quadro 32.5. Propriedades biológicas e moleculares dos filovírus. À direita, fotografia de microscopia eletrônica de
um virion do vírus Ebola.
Outras famílias virais 851

tados. Quando a quantidade de proteínas virais variedade de sinais clínicos, que incluem sinais
no interior da célula atinge um determinado ní- gastrintestinais, respiratórios, vasculares e neu-
vel, ocorre a troca de transcrição para replicação. rológicos. A síndrome hemorrágica é caracteriza-
Utilizando o RNA genômico como molde, molé- da pela presença de petéquias, equimoses, tem-
culas de RNA de sentido antigenômico (polari- po de coagulação aumentado e hemorragias nas
dade positiva) são sintetizadas e utilizadas como mucosas. O exame post-mortem revela a presença
molde para a produção de mais moléculas de de extensas hemorragias nas vísceras.
RNA de sentido genômico. Estas são encapsida- Vacinas contra o vírus Ebola estão em fase
das por múltiplas cópias da nucleoproteína (NP), de pesquisa e desenvolvimento e podem auxiliar
formando os nucleocapsídeos, que contêm ainda na redução da morbidade e mortalidade comu-
a replicase. Os nucleocapsídeos recém-formados mente associada com os surtos que ocorrem em
se associam com as glicoproteínas do envelope, comunidades africanas.
que estão inseridas na membrana plasmática da
célula, local onde ocorre o brotamento e o egresso 7 Birnaviridae
das partículas víricas.
Os membros da família Birnaviridae são ví-
6.4 Biologia e patogenia rus que infectam vertebrados, insetos, moluscos
e crustáceos. Os birnavírus de maior importância
Os filovírus são responsáveis pela forma são os que infectam aves e peixes, entre eles, o
mais severa de febre hemorrágica em humanos. agente da doença de Gumboro, também conheci-
Embora as taxas de mortalidade em surtos na- da como doença da bursa de Fabricius. A doença
turais de infecção pelo vírus Ebola sejam altas, a de Gumboro possui grande repercussão sanitária
detecção de anticorpos em pessoas sem histórico na avicultura comercial de vários países.
clínico compatível com a doença sugere que esta
infecção nem sempre está associada com sinais 7.1 Classificação
clínicos. Alternativamente, a existência de outros
vírus antigenicamente relacionados ao vírus Ebo- A família Birnaviridae apresenta três gêneros:
la poderia explicar a presença desses anticorpos Aquabirnavirus, Avibirnavirus e Entomobirnavirus.
em populações saudáveis. No gênero Aquabirnavirus, estão classificados ví-
A patogenia do vírus Ebola tem sido exten- rus que infectam peixes, moluscos e crustáceos.
sivamente estudada em modelos experimentais, Entre estes se destacam o vírus da pancreatite
como macacos, cobaias e camundongos. Atual- necrótica infecciosa (INPV) que infecta peixes,
mente, os modelos mais utilizados são macacos o vírus Tellina (TV-2) e o vírus yellowtail ascites
e cobaias, pois a patogenia nessas espécies parece (YTAV). O gênero Avibirnavirus abriga os vírus
ser mais semelhante àquela observada em huma- que infectam as aves (vírus da doença da bursa
nos. de Fabricius – IBDV) e o gênero Entomobirnavi-
Em macacos, a virulência dos filovírus é rus congrega vírus que infectam insetos. Tanto
bastante variável, similarmente ao que ocorre em o INPV como o IBDV possuem diferentes soro-
humanos. Entre os vírus semelhantes ao Ebola, tipos.
os vírus Zaire são mais virulentos do que os Res-
ton. A infecção pelos vírus Zaire progride rapida- 7.2 Propriedades gerais
mente, sendo fatal entre quatro e oito dias após a
infecção. As principais propriedades biológicas e mo-
Os sinais da infecção pelos filovírus incluem leculares dos birnavírus estão apresentadas no
febre, mialgia, calafrios e depressão, após um pe- Quadro 32.6. O genoma é composto por duas mo-
ríodo de incubação de 4 a 10 dias. Posteriormen- léculas de RNA de fita dupla (segmentos A e B).
te, os sinais clínicos refletem um envolvimento Cada segmento codifica uma poliproteína, que é
multissistêmico, o que pode determinar uma posteriormente clivada em produtos funcionais.
852 Capítulo 32

– Vírions esférico-icosaédricos, sem envelope, 60 nm;


Birnaviridae
– Capsídeo icosaédrico, 5 proteínas, 162 capsômeros;
– Genoma RNA de fita dupla, 2 segmentos (A e B);
– Proteína (VPG) na extremidade 5'; sem poliA;
– Segmento A= 3.1kb, proteínas do capsídeo + protease;
– Segmento B= 2.8 - replicase viral;
– Replicam no citoplasma;
– Transcrição/replicação no interior dos capsídeos;
– IBDV= infecta linfócitos B, doença de Gumboro em aves.
Fonte: Dr S. McNulty; qub.ac.uk

Quadro 32.6. Propriedades biológicas e moleculares dos birnavírus. À direita, fotografia de microscopia eletrônica de
vírions desta família.

Existe uma pequena ORF adicional presente no presente nos vírions, formando os mRNAs para
segmento maior (A). As proteínas do capsídeo e a síntese protéica. Cada segmento é transcrito
as proteínas não-estruturais são codificadas no em um único mRNA, cuja tradução resulta em
segmento A; a RNA polimerase dependente de uma poliproteína, que é clivada logo após a tra-
RNA é codificada no segmento B. O segmento dução. O mRNA do segmento A codifica quatro
A codifica através da ORF 1 uma proteína de 17 proteínas, sendo duas proteínas estruturais do
kDa (VP5), cuja função é desconhecida; a ORF 2 capsídeo, uma protease e outra de função desco-
codifica uma poliproteína de 106 kDa que é pro- nhecida. O segmento B codifica a replicase viral.
cessada, originando três proteínas. O primeiro Os RNAs de sentido positivo também servem
produto é a VP2, que é a maior proteína do capsí- de molde para a síntese de moléculas de RNA
deo. O segundo é a proteína não-estrutural (NS), de sentido negativo. As moléculas de cadeia du-
chamada de VP4, que é uma protease que sofre pla (RNA positivo + RNA negativo) são, então,
truncamento e clivagem adicional; e a VP3, que incluídas como genoma nas partículas víricas,
é a proteína interna do capsídeo. A NS é assim juntamente com a replicase viral. A morfogênese
denominada nos aquabirnavírus. Nos demais gê- ocorre no citoplasma, e as partículas víricas ma-
neros, essa proteína é denominada VP4. O seg- duras são liberadas após a lise celular.
mento genômico B (2,8 kb) codifica uma única
proteína de 94 kDa (VP1), a partir da ORF 3, que 7.4 Birnavírus de importância
é a RNA polimerase dependente de RNA. veterinária

7.3 Ciclo replicativo 7.4.1 Vírus da doença de Gumboro

A replicação dos birnavírus ocorre no cito- A doença de Gumboro é causada por um ví-
plasma das células hospedeiras. A penetração rus da família Birnaviridae (infectius bursal disease
ocorre por endocitose e a estrutura dos vírions é virus, IBDV), ocorre em aves jovens e apresenta a
desestabilizada pelo pH ácido presente no inte- bursa de Fabricius como órgão-alvo, sendo tam-
rior dos endossomos. A transcrição e a replicação bém conhecida como doença infecciosa da bursa
do genoma ocorrem ainda no interior de capsíde- de Fabricius (IBD). Esta enfermidade possui dis-
os parcialmente desintegrados ou em capsídeos tribuição mundial e tem causado grandes perdas
pré-formados. A primeira etapa é a transcrição econômicas à indústria avícola em vários países,
das cadeias de RNA negativas pela transcriptase por determinar mortalidade e imunossupressão
Outras famílias virais 853

nas aves infectadas. Uma importante conseqüên- presença do vírus no fígado pode ser detectada
cia da infecção de frangos jovens pelo IBDV é a cinco horas após a infecção, onde as células de
imunossupressão. Além disso, a infecção com ce- Küpfer fagocitam uma quantidade considerável
pas virulentas pode determinar taxas de mortali- de partículas víricas. A partir desses sítios de
dade elevadas. As medidas de controle envolvem replicação inicial, o vírus invade a corrente san-
a vacinação e medidas gerais de biossegurança. güínea e se dissemina por vários órgãos, incluin-
A doença de Gumboro foi inicialmente des- do a bursa. Neste órgão linfóide, os linfócitos B
crita, em 1962, por Cosgrove, na cidade de Gum- imaturos, presentes nos folículos, são as princi-
boro, nos Estados Unidos, daí a sua denomina- pais células-alvo para a replicação viral. Aproxi-
ção. Nos últimos anos, a emergência de variantes madamente 13 horas após a infecção, a maioria
antigênicas e de cepas de alta virulência, que po- dos folículos da bursa apresenta antígenos virais.
dem produzir doença clínica mesmo em animais Uma segunda viremia ocorre aproximadamente
vacinados, tem ressaltado a importância desta 15 a 16 horas após a infecção. Os sinais clínicos,
doença. Diferentes cepas do IBDV foram identi- quando ocorrem, são observados em 64 a 72 ho-
ficadas nos EUA (entre 1986 e 1987), na Bélgica e ras após a infecção.
nos países baixos (em 1987). As cepas de alta vi- A severidade dos sinais clínicos e das lesões
rulência foram descritas na Europa em 1986. Tan- depende da virulência da cepa viral, da raça (cor-
to as cepas clássicas como as mais virulentas es- te ou postura), da idade e do status imunitário
tão presentes em todos os países, com exceção da dos animais. O período de incubação da doença
América do Norte e da Austrália, pois nestes dois é muito curto, e os sinais clínicos são observados
países predominam as cepas variantes (maior vi- entre dois e três dias pós-exposição. As lesões na
rulência) do IBDV. bursa de Fabricius são severas e geralmente per-
O IBDV apresenta dois sorotipos. No soro- manentes nas aves infectadas, produzindo um
tipo 1, são classificados os isolados patogênicos quadro severo de imunossupressão. Essas aves
do IBDV, que apresentam as células linfóides da apresentam maior susceptibilidade a outros agen-
bursa como alvo para replicação. Os IBDV do so- tes infecciosos (adenovírus, reovírus, micoplasma
rotipo 2 são isolados de perus e, geralmente, são spp., E. coli, Salmonella spp., coccídeos e outros) e
apatogênicos. Pelas diferenças antigênicas entre não respondem adequadamente a vacinações.
os sorotipos, os frangos expostos ao sorotipo 2 Duas formas da infecção são descritas: clí-
não possuem proteção contra uma infecção pos- nica e subclínica. A forma clínica ou aguda da
terior por um IBDV do tipo 1. doença ocorre em aves com três a seis semanas
As galinhas são os únicos hospedei- de idade, período de desenvolvimento intenso
ros conhecidos que desenvolvem a da bursa de Fabricius. Essas aves apresentam
forma clínica da infecção pelo IBDV, porém perus depressão, anorexia, diarréia, penas eriçadas,
e patos também podem ser infectados. O vírus é tremores e desidratação por três a quatro dias.
transmitido pela via fecal-oral, com a ingestão de A forma subclínica ocorre em aves com idade in-
fezes e/ou outros materiais orgânicos contami- ferior a três semanas e é muito importante, pois
nados, ou, ainda, verticalmente, via ovo. O vírus causa imunossupressão severa. As aves mais jo-
é bastante resistente às condições ambientais, so- vens apresentam imunidade passiva, o que ex-
brevive a 60°C por 60 minutos e em pH entre 3 e plica a menor incidência de doença clínica nessa
9, o que representa um entrave para o combate à faixa etária. Aves com mais de seis semanas de
infecção. idade raramente desenvolvem sinais clínicos, po-
Após a ingestão de material contaminado, rém produzem anticorpos contra o vírus.
o vírus pode ser detectado em macrófagos e em Quando não há mortalidade, as aves se re-
células linfáticas do duodeno, jejuno e ceco em cuperam dentro de cinco a sete dias. Freqüente-
quatro ou cinco horas. O duodeno, jejuno e ceco mente os lotes não são uniformes, pois há baixo
são os órgãos de replicação primária do vírus, ganho de peso e menor conversão alimentar.
que pode chegar ao fígado pelo sistema porta. A Quando o vírus é introduzido na propriedade, a
854 Capítulo 32

taxa de mortalidade do surto pode ser superior a dos do IBDV, utiliza-se o teste de soroneutraliza-
90%. No entanto, taxas de mortalidade entre 20 e ção (SN), que é capaz de diferenciar os isolados
30% são mais comuns. em sorotipo e subtipo dentro do sorotipo 1. A
Na necropsia, a atrofia da bursa é caracte- técnica de RT-PCR tem sido cada vez mais utili-
rística, os rins encontram-se aumentados, com o zada para o diagnóstico. Quando associada com
acúmulo de uratos e uma provável deposição de análise de restrição enzimática (RFLP), permite a
imunocomplexos nos glomérulos. Cepas de alta identificação rápida das cepas de alta virulência
virulência causam lesões severas na bursa e em e a caracterização de isolados entre os seis grupos
outros órgãos linfóides, como o timo, baço e a moleculares do IBDV.
medula óssea. As alterações na bursa variam de Em estádios mais avançados da infecção, é
acordo com a extensão e progressão da lesão. Dois difícil confirmar o diagnóstico somente pelo exa-
a três dias após a infecção, a bursa apresenta ede- me da bursa atrofiada. Outras doenças que cur-
ma e um transudato gelatinoso sobre a superfície sam com alterações similares, como a doença de
serosa. A partir do quinto dia após a infecção, o Marek, micotoxicoses, coccidioses, síndrome he-
transudato e o edema começam a desaparecer, e morrágica, hepatite por corpúsculos de inclusão
a bursa retorna a sua coloração acinzentada. Nos e bronquite infecciosa, devem ser consideradas
casos de doença aguda, petéquias são observadas no diagnóstico diferencial.
nos músculos peitorais e nas coxas, pois o IBDV Pela grande capacidade de disseminação do
interfere com mecanismos de coagulação do san- IBDV, as medidas de prevenção e controle dessa
gue. O fígado pode apresentar-se edemaciado, enfermidade requerem uma abordagem bem co-
e os intestinos com quantidade aumentada de ordenada, envolvendo medidas de biossegurança
muco. Microscopicamente, a principal alteração e vacinação. No ambiente, o vírus pode persistir
na arquitetura folicular da bursa ocorre em con- por quatro meses. A vacinação deve ser utilizada
seqüência da degeneração e necrose dos linfóci- para proteger os frangos nas primeiras semanas
tos na região medular e da apoptose de células na de vida. Para garantir altos títulos de anticorpos
região central dos folículos. Estudos demonstra- passivos, as matrizes poedeiras devem receber
ram que a imunodepressão induzida pelo IBDV vacinas inativadas com adjuvante oleoso quando
se deve, em parte, à apoptose. Os linfócitos fo- completarem 18 semanas de vida, com revacina-
liculares são substituídos por heterófilos, restos ções anuais. Algumas vacinas são aplicadas pela
celulares necróticos e por células reticuloendo- via oral, adicionadas na água dos bebedouros. Os
teliais hiperplásicas. À medida que a inflamação pintos são imunizados com uma vacina atenua-
regride, formam-se cavidades císticas na região da, iniciando a aplicação com uma ou duas sema-
medular folicular, sinais de necrose e de fagocito- nas de vida, porém a proteção é comprometida
se de células inflamatórias e fibroplasia do tecido nessas aves pela presença de imunidade passiva,
conjuntivo interfolicular. que pode permanecer por quatro a sete semanas
O diagnóstico da infecção deve ser baseado e neutralizar o vírus vacinal. A proteção dos fran-
no quadro clínico, associado com as lesões obser- gos frente a cepas de alta virulência também pode
vadas na necropsia e no exame histopatológico ser comprometida quando os antígenos vacinais
da bursa, além do histórico do lote. A microsco- utilizam cepas altamente atenuadas. Por outro
pia eletrônica pode ser empregada para demons- lado, a utilização de cepas pouco atenuadas pode
trar o vírus nos órgãos-alvo. Antígenos virais não ser segura, e os animais apresentarem infec-
podem ser demonstrados na bursa de Fabricius ção subclínica, acompanhada de lesão na bursa
por imunofluorescência, imunistoquímica, pre- e imunossupressão. Vacinas recombinantes estão
cipitação em gel de ágar ou por testes imunoen- em desenvolvimento, utilizando alguns poxví-
zimáticos. O IBDV pode ser isolado pela inocu- rus, herpesvírus (vírus da doença de Marek) e to-
lação em ovos embrionados livres de anticorpos gavírus (vírus Semliki Forest) como vetores. Va-
anti-IBDV. Anticorpos podem ser detectados por cinas de subunidade, utilizando a proteína VP2
ELISA na rotina. Para a caracterização de isola- como antígeno, também estão sendo estudadas
Outras famílias virais 855

e apresentaram uma resposta satisfatória. Vaci- 7.4.2.2 Patogenia, sinais clínicos e pa-
nas de DNA também estão em fase de pesquisa tologia
e desenvolvimento. No entanto, nenhuma dessas
vacinas está disponível no comércio. A infecção per se dos salmões com o aqua-
birnavírus não é suficiente para causar a doença.
7.4.2 Vírus da pancreatite necrótica A ocorrência de manifestações clínico-patológi-
infecciosa cas depende da cepa viral, do título do inóculo,
das condições ambientais e da idade dos peixes.
A pancreatite necrótica infecciosa (infectious O efeito da densidade dos peixes na transmissão
necrotizing pancreatitis, INP) é uma doença infec- e ocorrência da doença ainda é controverso. A
to-contagiosa de grande importância na produ- infecção pelo INPV em alevinos de salmonídeos
ção de diferentes espécies de salmonídeos em di- cursa com alta morbidade e mortalidade. Além
versos países da União Européia, Ásia, América disso, desde a década de 1980, observou-se que a
do Norte e América do Sul. A doença foi descrita, infecção também tem sido fatal em salmões com
pela primeira vez, nos EUA, em 1955, em trutas mais de dois anos de idade (juvenis). A morte
de água doce; porém, relatos compatíveis com geralmente sobrevém 2 a 3 meses após o contato
a doença datam da década de 1940. Na Europa, ou transferência dos salmões com a água do mar.
a doença foi descrita na Inglaterra, em 1971, em Os sinais da infecção pelo INPV caracterizam-
trutas-arco-íris (Oncorhynchus mykiss). se por um aumento repentino e progressivo na
O agente etiológico da INP é um vírus não- mortalidade diária de peixes, acompanhada de
envelopado, pertencente ao gênero aquabirnavi- pigmentação escurecida, exoftalmia, distensão
rus, família Birnaviridae. Os isolados do vírus da abdominal, hiperventilação, geralmente próxima
INP (INPV) possuem uma grande variabilidade à superfície, e natação errática, em espiral, sobre
antigênica e podem ser classificados em dois so- seu próprio eixo. A mortalidade total pode variar
rogrupos imunologicamente distintos: sorogru- de menos de 10% até acima de 90%.
pos A e B. A grande maioria dos isolados do ví- Além disso, é comum a infecção persistente
rus pertencem ao sorogrupo A, que possui, pelo e assintomática em salmões adultos. Nestes ca-
menos, nove sorotipos com diferentes níveis de sos, o vírus encontra-se associado aos neutrófilos
patogenicidade e virulência. e monócitos da corrente sangüínea e do rim. O
estado de portador cursa com redução do apetite
7.4.2.1 Epidemiologia e, conseqüentemente, com redução na produção.
Além disso, a mortalidade em salmões com infec-
O INPV é transmitido horizontalmente, por ção assintomática é cinco vezes maior do que em
meio de fezes, urina e secreções, e também verti- salmões não-infectados. Acredita-se que apro-
calmente, por meio das ovas infectadas. Algumas ximadamente 90% dos peixes que sobrevivem à
espécies de aves e mamíferos aquáticos, caran- infecção tornam-se portadores e mantêm o INPV
guejos e protozoários podem servir como vetores por vários anos. No entanto, a persistência do ví-
mecânicos do vírus. Experimentalmente, a doen- rus pode ser afetada pela espécie de salmonídeo
ça pode ser transmitida pela ingestão do vírus, infectada e parece diminuir gradativamente com
imersão em água contaminada ou pela injeção do o tempo e com a quantidade de anticorpos neu-
vírus nos salmões. tralizantes. Outras espécies de peixes também
A doença ocorre com freqüência em trutas- podem manter o INPV no ambiente aquático.
arco-íris (Oncorhynchus mykiss), trutas-brool (Sal- Condições de estresse reativam a infecção nos
velinus fontinalis), trutas-marrons (Salmo trutta), peixes infectados de forma persistente.
salmões do Atlântico (Salmo salar) e diversas ou- A resistência à infecção depende da idade
tras espécies de salmões do oceano Pacífico (On- e da temperatura da água, e ocorre aproximada-
corhynchus spp.). mente aos 1.500 graus-dias, valor esse obtido pela
856 Capítulo 32

multiplicação da idade do peixe (em dias), pela e a utilização de água de boa qualidade (isto é,
temperatura média da água (em °C) durante a proveniente de riachos ou poços artificiais), na
sua vida. No entanto, salmões do oceano Atlânti- qual é impossível a introdução de salmonídeos
co, criados em cativeiro, são susceptíveis à infec- (ou outras espécies de peixes) portadores do
ção logo após a transferência da água doce para INPV. Deve-se também evitar condições de ma-
a água salgada, que ocorre aproximadamente aos nejo estressantes. Em criatórios, águas contami-
dois anos de idade. A mortalidade é mais rápida nadas podem ser tratadas com cloro, ozônio e
e maior em temperaturas em torno de 10 a 14ºC; radiação ultravioleta, porém a eficácia desses
em temperaturas acima de 14ºC, a mortalidade é tratamentos é influenciada por diversos fatores,
significante, mas reduzida. como presença de matéria orgânica. Além disso,
As lesões patológicas observadas na INP ca- recomenda-se a desinfecção rotineira dos ovos
racterizam-se por palidez hepática e esplênica; o com desinfetantes ionofóros tamponados.
estômago e o intestino encontram-se repletos de A utilização de vacinas para o controle ain-
fluido mucóide; observam-se hemorragias pete- da é incipiente. Vacinas inativadas estimulam
quiais ao longo do tecido pilórico e pancreático. uma boa resposta imune quando administradas
As células acinares do pâncreas apresentam ne- via injeção ou imersão, mas não conferem pro-
crose intensiva, caracterizada por picnose, carior- teção quando administradas com o alimento ou
rexia, inclusões intracitoplasmáticas e infiltração por infiltração hiperosmótica. Vacinas vivas ate-
de macrófagos e células polimorfonucleares. O nuadas apresentam problemas de ordem legal
piloro, a ceca do piloro e também o intestino an- relacionados ao controle da disseminação do ví-
terior apresentam necrose intensa. Há despren- rus e interferência com métodos de diagnóstico.
dimento do epitélio intestinal, o qual se combina Vacinas de subunidades e vacinas recombinantes
com o muco para formar um exsudato catarral estão sendo testadas para controle da INP, bem
esbranquiçado. Observa-se também degeneração como o desenvolvimento de peixes geneticamen-
do tecido renal hematopoiético, tecido excretor e te resistentes à infecção pelo INPV.
fígado.
8 Bornaviridae
7.4.2.3 Diagnóstico
A família Bornaviridae é constituída por vírus
O diagnóstico da infecção pelo INPV dos RNA de fita simples e polaridade negativa que
salmões baseia-se no isolamento viral em cultivo infectam vertebrados. O membro mais impor-
celular, seguido da identificação imunológica do tante dessa família é o vírus da doença de Borna
vírus por meio de soroneutralização (SN), ELISA, (BDV), que acomete principalmente os eqüinos
imunofluorescência (IFA) ou imunoperoxidase e ovinos. A denominação da doença se refere à
(IPX). Métodos moleculares de diagnóstico, como cidade alemã, onde vários cavalos morreram de
a RT-PCR, executadas diretamente em amostras doença neurológica em 1895. Esta enfermidade
clínicas, também têm sido desenvolvidos e apre- foi, então, denominada de doença de Borna (BD),
sentam alto grau de concordância e especificida- e o agente identificado, em 1926, foi denominado
de. Antígenos virais também podem ser detecta- vírus da doença de Borna (BDV). Nas últimas dé-
dos por meio de imunohistoquímica em tecidos cadas, vírus com características semelhantes têm
preservados em formalina. sido identificados como patógenos de humanos,
porém ainda estão em processo de caracteriza-
7.4.2.4 Controle e profilaxia ção.

O controle da infecção se baseia na adoção 8.1 Classificação


de medidas profiláticas, para evitar a introdução
do agente na criação, que consistem na obtenção A família Bornaviridae pertence à ordem Mo-
de ovas provenientes de matrizes livres de INPV nonegavirales, juntamente com os vírus das famí-
Outras famílias virais 857

lias Filoviridae, Rhabdoviridae e Paramyxoviridae. A à extremidade 5’; a ORF da nucleoproteína está


família Bornaviridae possui um único gênero, o situada próxima à extremidade 3’. As proteínas
Bornavirus, cujo único membro é o BDV. Existem codificadas pelas ORFs são: ORF 1 – nucleoprote-
diferentes isolados do BDV, obtidos de diferentes ína (p40), ORF 2 – p24 uma fosfoproteína (cofator
espécies e em diferentes locais. No entanto, a aná- da polimerase), ORF 3 – p10, uma proteína de 9
lise filogenética revela que esses isolados são al- kDa cuja função é desconhecida, porém aparen-
tamente relacionados entre si e apresentam uma temente é um regulador negativo da polimerase
alta reatividade sorológica cruzada, justificando ou tem função na importação para o núcleo das
o seu agrupamento no mesmo gênero. demais proteínas virais; está em posição sobre-
posta a ORF 2; ORF 4 – proteína da matriz (p16)
8.2 Propriedades gerais de aproximadamente 16 kDa; ORF 5 – glicoprote-
ína de 56 kDa, e ORF 6 – RNA polimerase (p190).
Os bornavírus possuem vírions esféricos, As ORFs 4, 5 e 6 são geradas de uma mesma uni-
envelopados, com 80 a 100 nm de diâmetro. Pos- dade de transcrição, seja por sobreposição em di-
suem uma molécula de RNA de fita simples, sen- ferentes fases de leitura seja por splicing.
tido negativo, de aproximadamente 8.9 kb como
genoma. A superfície do envelope é recoberta 8.3 Ciclo replicativo
por peplômeros de aproximadamente 7 nm. O
núcleo dos vírions (nucleocapsídeo) parece não Os bornavírus são os únicos vírus RNA de
possuir uma forma bem definida. Ao contrário polaridade negativa não-segmentados que repli-
das outras famílias que compõem a ordem Mo- cam no núcleo das células hospedeiras. Estudos
nonegavirales, os bornavírus replicam no núcleo, têm demonstrado que tanto o RNA de polaridade
apresentam unidades de transcrição sobrepostas positiva como o RNA de polaridade negativa são
e alguns transcritos sofrem processamento (spli- encontrados no núcleo, porém em localizações
cing) pela maquinaria da célula hospedeira. As distintas. Cadeias de RNA de polaridade positi-
propriedades gerais dos bornavírus estão resu- va estão preferencialmente localizados próximos
midas no Quadro 32.7. aos nucléolos, enquanto os de polaridade nega-
O genoma dos bornavírus (RNA de polarida- tiva podem ou não estar próximos aos nucléolo,
de negativa, 8.9 kb) apresenta seis ORFs, que es- sugerindo um papel dessas organelas na replica-
tão divididas em três unidades de transcrição. As ção do BDV.
outras três ORFs são geradas por splicing. A ORF Os bornavírus penetram na célula hospedei-
da RNA polimerase se localiza na região próxima ra por endocitose, seguida de fusão do envelope

– Vírions esféricos, com envelope (80-90 nm);


Bornaviridae

– Envelope com peplômeros (7 nm);


– Capsídeo sem morfologia definida;
– Genoma RNA fita simples, polaridade negativa, 8.9 kb;
– Genes sobrepostos; 6 ORFs;
– Alguns mRNAs sofrem splicing;
– Replicação do genoma ocorre no núcleo;
– Infecção in vitro é geralmente não-citolítica;
– Membro principal: vírus da doença de Borna (eqüinos).
Fonte: Dr W.Garten. Inst.Virol.Marburg.

Quadro 32.7. Propriedades biológicas e moleculares dos bornavírus. À direita, está uma ilustração esquemática de um
vírion.
858 Capítulo 32

com a membrana endocítica. A gp-43 está presen- Originalmente, o BDV foi identificado como
te no envelope e na superfície das células infecta- agente de enfermidade em eqüinos. No entanto,
das e provavelmente fusão. A gp-84 parece estar o vírus também tem sido isolado de ovinos, lha-
envolvida na ligação do vírus aos receptores ce- mas, felinos e bovinos. Várias espécies animais
lulares. já foram infectadas experimentalmente, o que
Os detalhes da replicação dos bornavírus sugere que este vírus seja capaz de infectar vir-
não estão bem esclarecidos. Alguns pesquisado- tualmente todos os animais de sangue quente, in-
res sugerem que exista um mecanismo de regula- cluindo primatas. Anticorpos anti-BDV têm sido
ção do genoma através de digestão enzimática na detectados tanto em animais como em humanos
extremidade 5’, envolvendo a deleção de partes sem sinais clínicos, o que indica que as infecções
do genoma para limitar a expressão gênica. Suge- subclínicas são, provavelmente, mais prevalen-
re-se que esta estratégia seja benéfica aos bornaví- tes do que as clínicas. De fato, acredita-se que a
rus, pois permitiria o estabelecimento de infecção maioria das infecções pelo BDV em eqüinos são
persistente, sem determinar efeitos citolíticos. assintomáticas, pois anticorpos anti-BDV são fre-
qüentemente encontrados em animais sem histó-
8.4 Biologia e patogenia rico clínico da enfermidade.
Não se conhecem possíveis reservatórios
O BDV infecta primariamente neurônios e naturais do BDV, nem a forma de transmissão.
células da glia, nas quais não produz efeito cito- O BDV penetra provavelmente pela via na-
pático aparente. Constitui-se, portanto, em um sal, replica nos neurônios localizados próximos
vírus neurotrópico. O BDV apresenta níveis de ao sítio de entrada e migra através de transpor-
replicação e produção de progênie viral inferio- te axonal até o sistema nervoso central (SNC),
res quando comparado com outros vírus. Ou- provavelmente pelo sistema olfatório. No SNC,
tra característica importante desse vírus é a sua o BDV apresenta tropismo pelo sistema límbico,
capacidade de permanecer no sistema nervoso incluindo o hipocampo. O sistema límbico está
central (SNC) de animais infectados em infecções envolvido na regulação da memória, das intera-
persistentes. ções ambientais e das emoções e parece ter um
papel importante em algumas desordens neu-
8.5 Doença de Borna ropsiquiátricas em humanos. Tardiamente após
a infecção, o BDV migra via transporte axonal
A doença de Borna é uma enfermidade se- anterógrado para o sistema nervoso periférico,
vera, de curso geralmente fatal, caracterizada infectando células como astrócitos, oligodendró-
pelo desenvolvimento de distúrbios nervosos em citos e as células de Schwann. Órgãos não-neurais
eqüinos e ovinos, causada pelo BDV. A enfermi- podem ser infectados posteriormente. A presença
dade cursa com uma meningoencefalite não-su- de ácidos nucléicos e de proteínas do BDV em cé-
purativa. A importância dessa enfermidade tem lulas mononucleares periféricas (PBMC) podem
aumentado nos últimos anos, pois uma série de indicar uma disseminação pela via hematógena.
estudos tem demonstrado uma associação do A infecção experimental em roedores resul-
bornavírus com desordens neuropsiquiátricas. ta em persistência viral e está associada com a
A distribuição geográfica da infecção pelo presença do vírus na saliva, na urina e nas fezes.
BDV é desconhecida. A infecção natural tem
Levantou-se a hipótese de que roedores pode-
sido descrita na Europa, na América do Norte
riam ser os hospedeiros naturais do agente. No
e em parte da Ásia (Japão e Israel). No entanto,
entanto, o BDV ainda não foi demonstrado em
deve-se considerar que a falta de reagentes para
infecções naturais em roedores.
diagnóstico certamente contribui para o pouco
Em eqüinos e em ovinos, a infecção é carac-
conhecimento sobre essa doença em muitos pa-
terizada por alterações comportamentais agressi-
íses. Assim, considera-se que esse vírus possa ter
vas, que progridem para a paralisia e inanição em
uma distribuição maior do que a relatada até o
presente. poucas semanas. A patogenia da infecção parece
Outras famílias virais 859

estar ligada à doença mediada pelo sistema imu- CENTERS FOR DISEASE CONTROL AND PREVENTION.
Ebola Hemorrhagic Fever. Atlanta, GA: CDC. Disponível em:
nológico. Os sinais clínicos mais freqüentemen-
http://www.cdc.gov/ncidod/dvrd/spb/mnpages/ebola.htm.
te observados em cavalos são: excitação, ataxia, Acesso em: 05 dez. 2006.
postura anormal, opistótono, nistagmo, cegueira,
paralisia e morte. Por outro lado, a infecção pode CHISARI, F.V.; FERRARI, C. Viral Hepatitis. In: NATHANSON,
N. (ed). Viral pathogenesis. Philadelphia: Lippincott-Raven,
também ser assintomática, persistente ou crôni-
1997. Cap.31, p.745-778.
ca.
Roedores têm sido utilizados como modelo HOW, L.T.; BROKER, T.R. Small DNA Tumor Viruses. In:
NATHANSON, N. (ed). Viral pathogenesis. Philadelphia:
experimental para estudos de patogenia da infec-
Lippincott-Raven, 1997. Cap.12, p.267-301.
ção pelo BDV. Ratos adultos apresentam hipe-
ratividade, que coincide com a presença de pro- COLE, C.N. Polyomavirinae: The Viruses and Their Replication.
dutos virais em neurônios do sistema límbico e In: FIELDS, B.N.; KNIPE, D.M.; HOWLEY, P.M. (eds). Fields
virology. 3.ed. Philadelphia, PA: Lippincott-Raven, 1996. Cap.63,
infiltração de células mononucleares no cérebro.
p.1997-2025.
Em animais que sobrevivem à infecção, embora a
inflamação regrida em algumas semanas, o vírus DOHERTY, P.C.; AHMED, R. Immune Responses to Viral
Infection. In: NATHANSON, N. (ed). Viral pathogenesis.
persiste e os animais podem apresentar diferen-
Philadelphia: Lippincott-Raven, 1997. Cap.7, p.143-161 .
tes sinais neurológicos associados com alterações
no SNC. No entanto, quando ratos são infectados FLINT, S.J. et al. Principles of virology: molecular biology,
pathogenesis and control. Washington, DC: ASM Press, 2000.
quando neonatos, a doença é caracterizada por
804p.
crescimento retardado, distúrbios de comporta-
mento e apetite depravado. Estes animais não são GANEM, D. Hepadnaviridae and Their Replication. In: FIELDS,
capazes de montar uma resposta imune celular B.N.; KNIPE, D.M.; HOWLEY, P.M. (eds). Fields virology. 3.ed.
Philadelphia, PA: Lippincott-Raven, 1996. Cap.85, p.2703-2737.
contra o vírus. Primatas infectados experimental-
mente apresentam distúrbios comportamentais GANEM, D.; SCHNEIDER, R.J. HEPADNAVIRIDAE: THE
nos aspectos social e sexual. Alguns destes apre- VIRUSES AND THEIR REPLICATION. In: KNIPE, D.M.;
HOWLEY, P.M. (eds). Fields virology. 4.ed. Philadelphia, PA:
sentam relações anormais de dominância e não
Lippincott Williams & Wilkins, 2001. Cap.36, p.1285-1321.
conseguem copular. Os macacos rhesus infecta-
dos experimentalmente se tornam inicialmente GARCIA, J.; URQUHART, H.; ELLIS, A.E. Infectious pancreatic
hiperativos e, posteriormente, apáticos e hipoci- necrosis vírus establishes an assymptomatic carrie state in kidney
leukocyte of juvenile Atlantic cod, Gadus morhua L. Journal of
néticos.
Fish Disease, v.29, p.409-413, 2006.
O diagnóstico diferencial de doenças neuro-
lógicas em eqüinos deve, necessariamente, consi- LUKERT, P.D.; SAIF, Y.M. Infectious Bursal Disease. In: SAIF,
Y.M. et al. Diseases of poultry. 11. ed. Ames: IO: Iowa State
derar a possibilidade de doença de Borna, sobre-
University Press, 2003. Cap.6, p.161-179.
tudo em áreas onde a doença já foi diagnosticada.
O diagnóstico laboratorial pode ser realizado MATSUI, S.M.; GREENBERG, H.B. Astroviruses. In: FIELDS,
B.N.; KNIPE, D.M.; HOWLEY, P.M. (eds). Fields virology. 3.ed.
com testes sorológicos, por imunofluorescência,
Philadelphia, PA: Lippincott-Raven, 1996. Cap.26, p.811-824.
Western blot, radioimunoprecipitação e ELISA.
McALLISTER, P.E. Salmonid fish viruses. In: STOSKOPF, M.K.
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9 Bibliografia consultada Cap.38, p.380-408.

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860 Capítulo 32

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Diseases, v.10, p.40-47, 2004.
ABREVIATURAS E SIGLAS

A ARPyV: poliomavírus de ratos atímicos.

ARV: ortoreovírus de aves.


AAV: vírus adeno-associado.
ARV-A: aquareovírus A.
AcM: anticorpo monoclonal.
AS: ácido siálico.
ADCC: citotoxicidade celular dependente de anticorpos.
ASF: peste suína africana.
ADE: infecção mediada por anticorpos.
ASFV: vírus da peste suína africana.
AdV: adenovírus.
ATP: adenosina trifosfato.
ADV: vírus da doença de Aujeszky (herpesvírus suíno 1, SuHV-
1 ou vírus da pseudoraiva, PRV). ATPase: atividade de hidrólise de ATP.

AE: encefalomielite das aves.

AEC: aminoetilcarbazol. B
AEV: vírus da encefalomielite das aves. B19: parvovírus humano.

AGID: imunodifusão em ágar. BAdV: adenovírus bovino.

AHSV: vírus da peste eqüina. BALT: tecido linfóide associado aos brônquios.

AIDS: síndrome da imunodeficiência humana adquirida. BCG: bacilo de Calmette e Guerin.

AIG: anemia infecciosa das galinhas. BCoV: coronavírus bovino.

AiV: vírus Aichi. BCR: receptor de linfócitos B.

AIV: vírus da influenza aviária. BD: doença de Borna.

AKAV: vírus Akabane. BDV: vírus da doença da fronteira (ovinos) e também vírus da
doença de Borna (eqüinos).
AlHV-1: herpesvírus alcefaline (vírus da febre catarral maligna,
forma africana). BEFV: vírus da febre efêmera dos bovinos.

ALT: alanina aminotransferase. BEV: enterovírus bovino.

ALV: vírus da leucose aviária. BeV: vírus Berne.

AMDV: vírus da doença das martas Aleutian. BFV: vírus da doença das penas e bicos dos psitacídeos.

AmPV: metapneumovírus aviário. BHK-21: célula de rim de hamster jovem.

ANV: vírus da nefrite aviária. BHM: mamilite herpética bovina.

ANVISA: Agência Nacional de Vigilância Sanitária. BIV: vírus da imunodeficiência bovina.

AP: fosfatase alcalina. BKPyV: vírus BK.

APC: célula apresentadora de antígeno. BKV: poliomavírus humano

APMV: paramixovírus aviário. BLV: vírus da leucose bovina.

APV: pneumovírus aviário. BoHV: herpesvírus bovino (1, 2, 4 e 5).


862 Virologia Veterinária

BoRV: rinovírus bovino. CCHF: febre hemorrágica da Criméia-Congo.

BOTV: vírus Bunyamwera. CCHFV: vírus da febre hemorrágica Criméia-Congo.

bPI3V: vírus da parainfluenza bovina tipo 3. CCoV: coronavírus canino.

BPSV: vírus da estomatite papular bovina. CD4: marcador de linfócitos T auxiliares (Th).

BPV (1-7): papilomavírus bovino. CD8: marcador de linfócitos T citotóxicos (Tc).

BPV: parvovírus bovino. Cdk: quinases dependentes de ciclinas.

BPV-1: papilomavírus bovino tipo 1. cDNA: DNA complementar

BPyV: poliomavírus bovino. CDV: vírus da cinomose.

BRSV: vírus respiratório sincicial bovino. CEF: cultivo primário de embrião de galinha.

BRV: ortoreovírus de babuínos. CEK: célula de embrião de pinto.

BRV: rotavírus bovino. CF: fixação do complemento.

BrV: vírus Breda. ChPV: Chanffinch papilomavírus.

BSL: nível de biossegurança. ChPV: parvovírus das galinhas.

BT: língua azul. ChPVs: cordopoxvírus.

BT: linhagem celular de corneto nasal bovino. CID: coagulação intravascular disseminada.

BToV: torovírus bovino. CLP: partícula semelhante ao core ou núcleo viral.

BTV: vírus da língua azul. CMV: citomegalovírus humano.

BVDV: vírus da diarréia viral bovina. CnMV: vírus minuto dos cães.

CNPV: poxvírus do canário.

C COCV: vírus Cocal.

C: capsídeo. CoCV: coronavírus canino.

CA: proteína do capsídeo. COPV: papilomavírus oral canino.

CaCV: circovírus do canário. Cp: citopático.

CAdV: adenovírus canino. CPE: efeito citopático.

CAdV-1: adenovírus canino tipo 1. CpHV: herpesvírus caprino.

CAdV-2: adenovírus canino tipo 2. CPIV-2: vírus da parainfluenza canina tipo 2.

CAEV: vírus da artrite-encefalite caprina. CPSH: síndrome cardiopulmonar por hantavírus.

CaHV: herpesvírus canino. CPV: parvovírus canino.

Cap: 7-metil-guanina ligada na extremidade 5’ do RNA. CR1, 2 e 3: regiões conservadas.

CAR: receptor do adenovírus e do vírus Coxsackie. CRCV: coronavírus canino respiratório.

CAV: vírus da anemia aviária. Cre: seqüência regulatória cis-acting.

CAV9: Coxsackievirus A9. CRFK: célula de linhagem de rim felino.

ccc: círculo covalentemente fechado. CRIB: célula de linhagem de rim bovino resistente ao BVDV.
Abreviaturas e siglas 863

cRNA: RNA complementar. EAV: vírus da arterite eqüina.

CRPV: papilomavírus dos coelhos cauda-de-algodão. EBHSV: vírus da doença hemorrágica das lebres pardas
européias.
CRSV: vírus respiratório sincicial caprino.
EBTr: células de linhagem de traquéia de feto bovino.
CRV: reovírus canino.
EBV: vírus Epstein-Barr.
CSF: peste suína clássica.
ECMV: vírus da encefalomiocardite.
CSFV: vírus da peste suína clássica.
ECP: efeito citopatogênico ou citopático.
CTFV: vírus da febre dos carrapatos do Colorado.
ED: célula de derme eqüina.
CTL: linfócito T citotóxico.
EDS: síndrome da queda da postura.
CV-1: célula de linhagem de primatas.
EEE: encefalite eqüina do leste.
CV-B5: Coxsackievirus B5 de humanos.
EEEV: vírus da encefalite eqüina do leste.

D EEPV: papilomavírus do alce europeu.

EEV: partícula vírica envelopada extracelular.


Da: dalton.
EEV: vírus da encefalose eqüina.
DAB: diaminobenzidina.
EHD: doença epizoótica hemorrágica dos cervos.
DAdV: adenovírus de patos.
EHDV: vírus da doença epizoótica hemorrágica dos cervos.
DBP: proteína de ligação ao DNA.
EHV: herpesvírus eqüino 1, 3 e 4.
DC: célula dendrítica.
EIAV: vírus da anemia infecciosa eqüina.
DeAdV: adenovírus de cervídeos.
eIF-2: fator eucariota de iniciação.
DHBV: vírus da hepatite B dos marrecos.
EITB: ensaio imunoenzimático em blot.
DHOV: vírus Dhori.
EIV: vírus da influenza eqüina.
DM: doença das mucosas.
ELISA: ensaio imunoenzimático.
DNA: ácido desoxirribonucléico.
EMCV: vírus da encefalomiocardite murina.
dNTP: desoxirribonucleotídeo.
EqPV: papilomavírus eqüino.
DPV: papilomavírus de cervídeos.
EqRV: rinovírus eqüino.
DR: repetição direta.
ERBV: vírus da rinite eqüina B.
ds: cadeia dupla (double stranded).
ETF: fator de transcrição dos genes iniciais.
dsRNA: RNA de fita dupla.
EToV: torovírus eqüino.
DUGV: vírus de Dugbe.
EVA: arterite viral eqüina.
dUTPase: enzima que desdobra o nucleotídeo UTP.

E F
F: proteína de fusão.
E (early): genes de expressão inicial (ou precoce).
FA: Fosfatase alcalina
E1 a E7: proteínas iniciais.
FAdV: adenovírus aviário.
EAdV: adenovírus eqüino.
864 Virologia Veterinária

FAIDS: síndrome da imunodeficiência felina adquirida. GP: glicoproteína.

FAO: seção da ONU responsável pela agricultura e alimentos. GSHV: vírus da hepatite B dos esquilos.

Fc: fixação do complemento. GTPV: poxvírus dos caprinos.

FCoV: coronavírus entérico felino.

FCV: calicivírus felino.


H
FDPV: papilomavírus felino.
H: hemaglutinina.
FeCoV: vírus da peritonite infecciosa felina.
HA: teste de hemaglutinação.
FeHV: herpesvírus felino.
HA: hemaglutinina.
FeLV: vírus da leucemia felina.
HAD: hemadsorção.
FIP: peritonite infecciosa dos felinos.
HaOPV: papilomavírus oral do hamster.
FIPV: vírus da peritonite infecciosa felina.
HaPV: polyomavírus de hamsters.
FITC: isotiocianato de fluoresceína.
HAV: vírus da hepatite A humana.
FIV: vírus da imunodeficiência felina.
HBV: vírus da hepatite B humana.
FluAV: Influenzavírus A.
HCC: carcinoma hepatocelular.
FluBV: Influenzavírus B.
HCMV: citomegalovírus humano (HHV-5).
FluCV: Influenzavírus C.
HCoV: coronavírus humano.
FMD: febre aftosa.
HCV: vírus da hepatite C.
FMDV: vírus da febre aftosa.
HE: hemaglutinina-esterase.
FMO: falência múltipla dos órgãos.
HEF: glicoproteína multifuncional no envelope.
FOCMA: antígeno do oncovírus felino associado à membrana.
HeLA: células de linhagem humana.
FPL: panleucopenia felina.
HEV: vírus da encefalomielite hemaglutinante dos suínos.
FPLV: vírus da panleucopenia felina.
HeV: vírus Hendra.
FVR: rinotraqueíte viral felina.
HFRS: febre hemorrágica com síndrome renal.
FWPV: vírus da bouba aviária.
HHV: herpesvírus humanos tipos 1-8.

HI: inibição da hemaglutinação.

G HIC: hepatite infecciosa canina.

GAdV: adenovírus caprino. HIRRV: rabdovírus hirame.

GaHV-1, 2 e 3: herpesvírus galídeo tipos 1, 2 e 3. HIV: vírus da imunodeficiência humana.

gB (C etc.): glicoproteínas do envelope. hPEV1: parechovírus humano 1.

GBK: célula de rim bovino. hPIV: vírus da parainfluenza humana

GDD: glicina-asparagina-asparagina. HPS: síndrome pulmonar por hantavírus.

GEH: gastrenterite hemorrágica. HPV: papilomavírus humanos.

GoAdV: adenovírus de gansos. HRPO: horseradish peroxidase.

GoCV: circovírus dos gansos. hRSV: vírus sincicial respiratório humano.


Abreviaturas e siglas 865

HRV: rhinovírus humano. Ig: imunoglobulina.

HSV: vírus do herpes simplex (HSV-1 e HSV-2). IgA: imunoglobulina A

HT 29: célula de tumor retal humano. IHC: imunoistoquímica.

HTLV: vírus da leucemia de linfócitos T. IHNV: vírus da necrose hematopoiética infecciosa.

HTNV: vírus Hantaan ou hantavírus. IHQ: imunoistoquímica.

HToV: torovírus humano. IL: interleucinas.

HuCoV: coronavírus humano. ILTV: vírus da laringotraqueíte infecciosa das aves.

HuCV: calicivírus clássicos humanos. IMV: partícula vírica intracelular madura.

HV: herpesvírus. IN: integrase.

HVT: herpesvírus de perus. INPV: vírus da pancreatite necrótica infecciosa.

IPB: balanopostite pustular bovina.

I IPIC: índice de patogenicidade intracerebral.

IBDV: vírus da doença de Gumboro. IPV: vulvovaginite pustular bovina.

IBR: rinotraqueíte infecciosa bovina. IPX: imunoperoxidase.

IBRS-2: célula de rim suíno (Instituto Biológico de São Paulo). IR: repetição invertida.

IBRS2: célula de linhagem de rim suíno. IR: região intergênica.

IBRV: vírus da rinotraqueíte infecciosa bovina (BoHV-1). IRES: sítio interno de reconhecimento pelos ribossomos.

IBV: vírus da bronquite infecciosa aviária. ISAV: vírus da diarréia infecciosa do salmão.

ICAM-1: molécula de adesão intercelular tipo 1. ISCOM: complexo imunoestimulante.

IcHV-1: herpesvírus do catfish. ISH: hibridização in situ.

ICPs: polipeptídeos virais produzidos em células infectadas por ITR: repetição terminal invertida.
herpesvírus.
IV: vírus da doença de Ibaraki.
ICQ: imunocitoquímica.

ICTV: Comitê Internacional de Taxonomia de Vírus.


J
ID: intestino delgado.
JCV: poliomavírus humano.
ID50: dose infectiva para 50% dos cultivos celulares.
JEV: vírus da encefalite japonesa.
IDGA: imunodifusão em ágar.
JSRV: vírus da adenomatose pulmonar dos ovinos (retrovírus
IE: genes de transcrição imediata. Jaagsiekte).

IFA: imunofluorescência. JUNV: vírus Junin.

IFD: imunofluorescência direta.

IFI: imunofluorescência indireta. K


IFN: interferon. kb: quilobase.

IFN-α: interferon alfa. kbp: quilopares de bases.

IFN- : interferon beta. kDa: quilodalton.

IFN- : interferon gama. KDV: vírus kadipiro.


866 Virologia Veterinária

KIR: receptor inibidor de morte celular. MACV: vírus Machupo.

KPyV: Kilham poliomavírus. MALT: tecido linfóide associado com mucosas.

MARC145: linhagem derivada da MA104.

L MCF: febre catarral maligna.

MCF-AO: febre catarral maligna associada a ovinos.


L: large (grande).
MCFV: vírus da febre catarral maligna.
L: polimerase.
MD: doença de Marek.
L (late): genes de expressão tardia.
MDBK: célula de linhagem de rim bovino.
LACV: vírus La Crosse.
MDCK: célula de linhagem de rim canino.
LASV: lassavírus de roedores e humanos.
mDCs: células dendríticas mielóides.
LAT (LTR): transcrito associado à latência.
MDCT-RP19: linhagem fibroblastóide.
LC: célula de Langerhans.
MDPV: parvovírus dos patos Muscovy.
LCMV: vírus da coriomeningite linfocítica.
MDV: vírus da doença de Marek (GaHV-2).
LCR: região longa de controle.
ME: microscopia eletrônica.
LD50: dose letal para 50% dos animais.
MeHV-1: herpesvírus melagridis tipo 1.
LDEV: vírus elevador da lactato desidrogenase.
MEV: vírus da enterite das martas.
LDL: lipoproteína de baixa densidade.
MHC: complexo maior de histocompatibilidade.
LNYV: vírus da necrose amarela da alface.
MHC-I: complexo maior de histocompatibilidade do tipo I.
LPS: lipopolissacarídeo.
MHC-II: complexo maior de histocompatibilidade tipo II.
LPyV: poliomavírus linfotrópico.
MHV: vírus da hepatite murina.
LSD: doença da pele nodulosa (lumpy skin disease).
miRNA: micro RNAs com atividade interferente.
LSDV: vírus da LSD.
MLV: vírus da leucemia murina.
LT: laringotraqueíte infecciosa das galinhas.
MMTV: vírus do tumor mamário do camundongo.
lT: antígeno T grande.
MNPV: papilomavírus dos Mastomys natalensis.
LTR: região longa terminal.
MNT: teste de neutralização viral em camundongos.
LTR: transcrito relacionado com a latência.
MOCV: vírus do Moluscum contagiosum.

M MPtV: vírus pneumotrópico dos murinos.

mRNA: RNA mensageiro.


M: médio (medium).
mRNAsg: RNA subgenômico.
M: proteína da matriz.
MRV: ortoreovírus de mamíferos.
M1: proteína principal da matriz.
mT: antígeno T médio.
M2: proteína com atividade de canal de íons.
MuLV: vírus da leucemia murina.
MA: proteína da matriz.
MV: vírus do sarampo.
MA-104: células de rim de macaco.
MVEV: vírus Murray Valley.
MAC: complexo de ataque à membrana.
Abreviaturas e siglas 867

MVM: vírus minuto dos camundongos. OvHV-2: herpesvírus ovino tipo 2.

MVV: vírus Maedi-Visna. OvPV: papilomavírus ovino.

MYXV: vírus do mixoma dos coelhos.

P
N PA: polimerase ácida.

NA: neuraminidase. PAdV: adenovírus suíno.

NC: proteína do nucleocapsídeo. PAGE: eletroforese gel de poliacrilamida.

NCP: não-citopático. PANAFTOSA: Centro Pan-americano de Febre Aftosa.

ND: doença de Newcastle. Pb: pares de bases.

NDV: vírus da doença de Newcastle. PB1: polimerase básica 1.

NiPV: vírus Nipah. PB2: polimerase básica 2.

NK: células natural killer. PBMC: células mononucleares do sangue periférico.

NLS: sinais para localização nuclear. PBS: sítio de ligação do primer.

nm: nanômetro. PCNA: fator celular de processividade do complexo de


replicação.
NP (ou N): nucleoproteína ou proteína do nucleocapsídeo.
PCR: reação da polimerase em cadeia.
NS: proteína não-estrutural.
PCV-1: circovírus suíno tipo 1.
NSD: doença das ovelhas de Nairobi.
PCV-2: circovírus suíno tipo 2.
NSDV: vírus da doença das ovelhas de Nairobi.
pDCs: células dendríticas plasmacitóides.
NSp: proteínas não-estruturais.
PDGF: fator de crescimento derivado de plaquetas.
nt: nucleotídeo.
PEDV: vírus da diarréia epidêmica dos suínos.

PEMSV: vírus da síndrome de mortalidade de galinhas.


O
PePV: papilomavírus dos psitacídeos.
OAdV: adenovírus ovino.
PEV: enterovírus suíno.
OE: ovo embrionado.
PFU: unidades formadoras de placas.
OIE: Escritório Internacional das Epizootias.
pgRNA: RNA pré-genômico.
OMS: Organização Mundial da Saúde.
PhAdV: adenovírus de faisões.
OP: fluido esofágico-faringeano.
PhCoV: coronavírus de faisões.
OPC: carcinoma pulmonar dos ovinos.
PhDV: morbilivírus das focas.
OPPV: vírus da pneumonia progressiva dos ovinos.
PI: persistentemente infectado.
ORF: fase aberta de leitura.
PiCV: circovírus dos pombos.
ORFV: vírus do ectima contagioso dos ovinos.
PIVs: vírus da parainfluenza.
ORI: origem de replicação.
PK: células de rim suíno.
ORSV: vírus respiratório sincicial ovino.
PK15: célula de linhagem de rim suíno.
868 Virologia Veterinária

PKR: proteína quinase R. RFV: vírus do fibroma dos coelhos.

PLSD: pseudo lumpy skin disease. RHDV: vírus da doença hemorrágica dos coelhos.

PML: leucoencefalopatia progressiva multifocal. RhPV: parvovírus do macaco rhesus.

polyA: seqüência de adeninas. RI: molécula intermediária de replicação.

PoV: poliomavírus de camundongos. RIA: radioimunoensaio.

PoV: poliomavírus. RIP: radioimunoprecipitação.

PoxV: poxvírus. RK13: células de linhagem de rim de coelho.

PPRV: vírus da peste dos pequenos ruminantes. RNA: ácido ribonucléico.

PPT: trato de polipurina. RNApolII: RNA polimerase II.

PpV: papilomavírus. RNAse H: ribonuclease H.

PPV: parvovírus suíno. RNAse: ribonuclease.

PR: protease. RNP: ribonucleoproteína.

PRA: ensaio de redução de placa. RPA: proteína replicativa A.

pRB: proteína do retinoblastoma. RPM: rotações por minuto.

PRCoV: coronavírus respiratório dos suínos. RPV: parvovírus do mão-pelada (racoon).

PRRSV: vírus da síndrome reprodutiva e respiratória dos RPV: vírus da peste bovina.
suínos.
RR: ribonucleotídeo redutase.
PRV: vírus da pseudoraiva (SuHV-1).
RRE: elemento responsivo ao Rev.
PsPV: papilomavírus dos cetáceos.
RRV: vírus Ross River.
PToV: torovírus suíno.
RS: Rio Grande do Sul.
pTP: precursora da proteína terminal.
RSV: vírus do sarcoma Rous.
PTV: teschovírus suíno 1.
RSVs: vírus respiratórios sinciciais.
PV: poliovírus.
RT: transcriptase reversa.
PYDV: vírus do tomate pequeno amarelo.
RT-PCR: transcrição reversa seguida de PCR.
PyV: poliomavírus de camundongos.
RVF: febre do vale Rift.

RVFV: vírus da febre do vale Rift.


R
RabV: vírus da raiva.
S
Rb: produto do gene do retinoblastoma.
S: pequeno (small).
RdRp: RNA polimerase dependente de RNA.
SA-12: vírus símio 12.
RE: retículo endoplasmático.
SABV: vírus sabiá.
REA: análise de restrição enzimática.
SaHV-2: herpesvírus saimiri tipo 2.
RER: retículo endoplasmático rugoso.
SARS-CoV: coronavírus causador da pneumonia asiática, SARS.
RFFIT: técnica de inibição de focos fluorescentes.
SAT: South African Territory 1, 2 e 3.
RFLP: polimorfismo de tamanho de fragmentos de restrição.
Abreviaturas e siglas 869

SAV: adenovírus suíno.


T
SCR: seqüência repetida consenso.
TAdV: adenovírus de perus.
SDNS: síndrome da dermatite e nefropatia suína.
TANV: vírus Tanapox.
SFV: vírus Semliki Forest.
Taq: polimerase do organismo Thermophilus aquatics.
SH: proteína hifrofóbica pequena.
TAS: seqüência associada à transcrição.
SHFV: vírus da febre hemorrágica dos símios.
TAstV: astrovírus de perus.
SHS: síndrome da cabeça inchada.
TBEV: vírus da encefalite transmitida por carrapatos.
SI: influenza suína.
TBP: proteína de ligação ao TATA box.
SIN: vírus Sindbis.
Tc: linfócito T citotóxico.
SIRS: síndrome da resposta inflamatória sistêmica.
TCID50: dose infectiva para 50% dos cultivos celulares.
SIV: vírus da influenza suína (também vírus da imunodeficiência
TCoV: coronavírus dos perus.
dos símios).
TCR: receptor de linfócitos T.
SK6: células de linhagem de rim suíno.
TfR: receptor da transferrina.
SLEV: vírus da encefalite Saint Louis.
TGE: gastrenterite transmissível dos suínos.
SMDS: síndrome multissistêmica do definhamento.
TGEV: vírus da gastrenterite transmissível dos suínos.
SMSV: vírus dos leões-marinhos de San Miguel.
TGF: fator de crescimento tumoral.
SN: soroneutralização.
TGI: trato gastrintestinal.
SNC: sistema nervoso central.
Th: linfócito T auxiliar (helper).
SPA: adenomatose pulmonar dos ovinos.
THOV: vírus Thogoto de carrapatos.
SPF: livres de patógenos específicos.
TIC: traqueobronquite infecciosa canina.
SPV: parvovírus dos símios.
TIF: fator ativador dos genes alfa.
SRLV: lentivírus dos pequenos ruminantes.
TK: timidina quinase.
SRSV: vírus pequenos arredondados.
TM: proteína transmembrana.
ss: cadeia simples (single stranded).
TNF: fator de necrose tumoral.
ssRNA: RNA de fita simples.
TOC: cultivo de anel da traquéia.
sT: antígeno T pequeno.
TP: proteína terminal.
ST: linhagem celular de testículo suíno.
TRHV: vírus da rinotraqueíte dos perus.
SToV: torovírus suíno.
tRNA: RNA transportador.
SU: proteína de superfície.
TRS: seqüência de regulação da transcrição.
SuHV: herpesvírus suíno.
TS: mutantes sensíveis à temperatura.
SV-40: vírus símio 40.
TTE: trifluortricloroetano.
SVCV: vírus da viremia primaveril das carpas.
TTV: circovírus humano (torquetenovírus).
SVDV: vírus da doença vesicular dos suínos.
TV-2: vírus Tellina.
SVEV: vírus do exantema vesicular dos suínos.

SwPV: poxvírus suíno.


870 Virologia Veterinária

U VS: estomatite vesicular.

VSAV: vírus da estomatite vesicular Alagoas.


UH: unidade hemaglutinante.
VSIV: vírus da estomatite vesicular Indiana.
UL: região única longa.
VSNJV: vírus da estomatite vesicular New Jersey.
UL(n): proteína cujo gene está na região UL.
VSV: vírus da estomatite vesicular.
US: região única curta.
VV: vírus da vaccinia.
UTR: região não-traduzida.
VWD: síndrome do vômito e definhamento.
UV: ultravioleta.
VZV: vírus da varicela-zoster (HHV-3)

V
VAP: proteína viral de ligação.
W
VCAM-1: molécula de adesão de células vasculares tipo 1.
WB: Western blot.
VEE: encefalite eqüina venezuelana.
WBV: vírus Wesselbron.
VEEV: vírus da encefalite eqüina venezuelana.
WDSV: vírus do sarcoma dermal de Walleye.
VERO: célula de rim de macaco-verde-africano.
WEE: encefalite eqüina do oeste.
VESV: vírus do exantema vesicular dos suínos.
WEEV: vírus da encefalite eqüina do oeste.
VHSV: vírus da septicemia hemorrágica.
WHV: vírus da hepatite B das marmotas.
VIAA: antígeno associado com infecção viral.
WNV: vírus do Nilo Ocidental
VLDL-R: lipoproteína de baixíssima densidade.

VLP: partícula semelhante ao vírion.


Y
VP1, 2 e 3: proteínas do capsídeo.
YFV: vírus da febre amarela.
VP-16: transativador dos genes alfa dos herpesvírus (o mesmo
que alfa-TIF). YMTV: atapox dos macacos.

VPg: proteína terminal. YTAV: vírus yellowtail ascites.

VPs: proteínas virais.

vRNA: RNA genômico.


GLOSSÁRIO

Ácido nucléico: molécula de ácido deoxirribonucléico (DNA) ou Anticorpo secundário: anticorpo contra imunoglobulinas (anti-
ácido ribonucléico (RNA). Ig) de determinadas espécies animais, utilizado em técnicas de
detecção de antígenos.
Ácido siálico: sacarídeo composto por nove carbonos, encontrado
em glicoproteínas e glicolipídios de membranas celulares. É Antígeno: macromolécula capaz de se ligar especificamente aos
utilizado como receptor por alguns vírus. receptores de células do sistema imunológico.

Adjuvante: substância ou formulação utilizada em vacinas não- Antígeno T: proteína complexa multifuncional dos
replicativas para potencializar o efeito imunoestimulante do poliomavírus.
antígeno.
Antigenômico: molécula de ácido nucléico com sentido
Adsorção: etapa inicial do ciclo replicativo dos vírus, na qual os complementar (inverso) ao genoma.
vírions se ligam aos receptores celulares.
Anti-soro: soro de animal que contém anticorpos, geralmente
Aglutinação em látex: técnica de detecção de antígeno ou em altos títulos, contra um determinado antígeno ou agente.
anticorpos que utiliza microesferas de látex como suporte para
a imobilização da reação. Antissense: molécula de ácido nucléico cuja seqüência de
nucleotídeos é complementar (sentido contrário) a outra
Ambissense: molécula de RNA que contém informação genética determinada molécula.
tanto no sentido do genoma quanto no sentido antigenômico.
Aparelho de Golgi (complexo de Golgi): organela citoplasmática
Amostra viral: vírus de uma determinada espécie viral que foi vesicular em cujo lúmen ocorrem modificações químicas de
isolado e não caracterizado. Os termos cepa e isolado também são proteínas e metabolismo de lipídios. O aparelho de Golgi
utilizados. é responsável pelo direcionamento de proteínas e outras
macromoléculas às diferentes organelas da célula e também para
Amplicon: segmento de DNA amplificado por PCR. Também exportação.
chamado de produto de PCR.
Apatogênico: agente não-patogênico ou atenuado.
Análise de restrição: análise comparativa de moléculas de DNA
com base no tamanho dos fragmentos gerados pela clivagem por Apoptose: mecanismo de morte celular desencadeado por uma
enzimas de restrição (endonucleases). variedade de estímulos fisiológicos ou patológicos, que cursa
com ativação de vários genes e culmina com a fragmentação do
Anterógrado: relativo à direção do transporte neuronal: do corpo DNA celular. Também denominada morte celular programada.
neuronal para as extremidades dos axônios ou dendritos.
Aptidão biológica: conjunto de características fenotípicas que
Anticorpos: classe de globulinas plasmáticas com função de favorecem a replicação e perpetuação de um agente em um
ligação a determinantes antigênicos. Também chamados de determinado ambiente biológico.
imunoglobulinas.
Arbovirose: infecção vírica transmitida por artrópodes
Anticorpos maternos: anticorpos recebidos da mãe através da (insetos).
placenta, pelo colostro/leite ou pela gema do ovo.
Arbovírus: vírus transmitidos primariamente por artrópodes
Anticorpos monoclonais: população de anticorpos altamente (insetos).
específicos e homogêneos, produzidos por clones de células
híbridas (hibridomas) obtidas pela fusão entre linfócitos B e Área livre: área ou região que não possui um determinado
células de mieloma. agente etiológico.

Anticorpos policlonais: população heterogênea de anticorpos Atenuação: redução (ou abolição) da patogenicidade de um
produzidos por um animal em resposta a um determinado agente.
antígeno. São produtos de secreção de inúmeros clones diferentes
de linfócitos B (plasmócitos). Atenuação da transcrição: redução da eficiência de transcrição à
medida que o complexo enzimático avança ao longo da molécula
Anticorpo primário: anticorpo específico para o antígeno de molde.
interesse, utilizado em técnicas de detecção de antígenos.
872 Virologia Veterinária

Atenuado: agente etiológico com patogenicidade reduzida. Capsômero: unidade estrutural do capsídeo; aparece como
projeção ou depressão na superfície dos vírions; pode ser
Ativador promíscuo: fator de transcrição (ou ativação) que formado por uma ou mais proteínas.
se liga em seqüências presentes em uma grande variedade de
promotores, ativando a transcrição dos respectivos genes. Caspase: família de proteases, algumas das quais envolvidas no
mecanismo de apoptose.
Atividade hemaglutinante: atividade de aglutinar eritrócitos
animais. Cauda poli A: seqüência de adeninas com extensão variável
(tipicamente 100-200) adicionada à extremidade 3’ de RNAs
ATPase: enzima com atividade de desdobramento de ATP para mensageiros celulares e virais. Parece conferir estabilidade ao
o fornecimento de energia para processos biológicos. mRNA e pode também ter participação no início da tradução.

Autócrina: ação de uma substância na própria célula que a Caveola: estrutura vesicular envolvida na internalização de
produz. macromoléculas e pequenas partículas por células eucariotas.

Bacteriófago: vírus que infecta bactérias. Célula apresentadora de antígeno (APC): célula que processa
antígenos protéicos endógenos ou exógenos e apresenta a
Balística: metodologia de introdução de macromoléculas
linfócitos T, induzindo a sua estimulação.
em organismos uni ou multicelulares por meio de projéteis
impulsionados por um equipamento apropriado. Célula de Langerhans: célula da linhagem monocítica que atua
como APC na pele.
Barreira sanitária: conjunto de medidas utilizadas em zonas
limítrofes para impedir a introdução de agentes patogênicos em Célula de memória: célula linfóide (T ou B) originada a partir da
determinadas áreas ou populações. expansão clonal estimulada pelo contato com o antígeno. Essas
células possuem longa vida e podem ser reestimuladas quando
Base nitrogenada: componente dos nucleotídeos que compõem
o organismo é reexposto ao antígeno específico.
o DNA e RNA. Adenina, timina (uracil), citosina e guanina.
Célula dendrítica: população de células da linhagem mielóide
BCR: receptor de linfócitos B.
ou linfóide que se distribuem no sangue e em tecidos linfóides e
Brotamento: mecanismo de aquisição do envelope viral, no qual não-linfóides, cuja função principal é a captura e apresentação de
o nucleocapsídeo projeta-se através de membranas celulares. antígenos aos linfócitos.

Bursa de Fabricius: órgão linfóide primário das aves que controla Célula efetora: denominação dada às células que atuam
o desenvolvimento e maturação de linfócitos B. diretamente em determinada função.

Cadeia complementar: molécula de ácido nucléico cuja seqüência Célula hospedeira: denominação genérica dada às células que
de nucleotídeos é exatamente complementar a de outra molécula, servem de hospedeiras para a replicação de um vírus.
de acordo com o pareamento de bases Watson-Crick (A-T, C-G).
Célula interdigitante: célula da linhagem das células dendríticas
Cadeia do processo infeccioso: série de etapas que ocorrem que residem no baço.
seqüencialmente e continuamente na história natural dos agentes
Célula M: célula especializada na produção de muco que
infecciosos na natureza.
se localiza entre as células epiteliais da mucosa do intestino
Cadeia lagging: molécula de DNA sintetizada delgado.
descontinuamente.
Célula natural killer: célula da linhagem linfóide cuja função
Cadeia leading: molécula de DNA sintetizada continuamente. principal é lisar inespecificamente células tumorais e células
infectadas por vírus, além de produzir citocinas. Também
Cap: guanina metilada na posição 7, com orientação inversa, participa da lise celular dependente de anticorpos (ADCC).
incorporada na extremidade 5’ de RNAs mensageiros de
eucariotas e que serve de sinal para o reconhecimento e tradução Célula permissiva: célula que apresenta as condições
pelos ribossomos. Alguns cap possuem a segunda e terceira bases intracelulares necessárias para a replicação viral.
também metiladas.
Célula primária (cultivo primário): célula cultivada in vitro
Capa flogística: camada fina de leucócitos que se forma entre a recentemente removida de tecidos animais. É capaz de um
coluna de eritrócitos e de plasma após centrifugação de sangue número limitado de divisões.
integral não-coagulado.
Célula semipermissiva: célula que apresenta condições
Capsídeo: camada protéica que reveste externamente o genoma intracelulares parciais para a replicação viral ou que apresenta
viral. condições para a ocorrência somente de algumas etapas do ciclo
replicativo.
Glossário 873

Célula susceptível: célula que apresenta as condições para a Citotoxicidade celular dependente de anticorpos (ADCC):
ocorrência completa do ciclo replicativo, desde a penetração até mecanismo de lise celular mediada por células, que se ligam à
o egresso da progênie viral. porção Fc de imunoglobulinas que estão ligadas a antígenos na
superfície da célula-alvo.
Cepa ou estirpe: vírus de uma determinada espécie viral que já
foi caracterizado fenotipicamente e/ou genotipicamente. Clatrina: proteína estrutural da membrana plasmática, cuja
aglomeração em certos locais antecede e media a endocitose.
Cepa de referência: cepa viral bem caracterizada que é
utilizada como referência por vários laboratórios com diversas Clivagem enzimática: clivagem de uma macromolécula pela
finalidades. ação de enzimas.

CD4: molécula de superfície celular que atua conjuntamente com Códon: seqüência de três nucleotídeos que codifica um aminoácido
o TCR na ligação ao MHC-II e peptídeos na superfície de APCs, ou a terminação da tradução (códon de terminação).
no processo de reconhecimento de antígenos pelos linfócitos T
auxiliares. É o principal marcador molecular dessta população Códon de iniciação: seqüência AUG que determina o local exato
de linfócitos. do início da tradução. Este códon também codifica o aminoácido
metionina.
CD8: molécula de superfície celular que atua conjuntamente
com o TCR na ligação ao MHC-I e peptídeos na superfície de Códon de terminação: seqüência de três nucleotídeos que não
células infectadas por vírus e células dendríticas, no processo de codifica aminoácidos e determina a terminação da tradução
reconhecimento de antígenos pelos linfócitos T citotóxicos. É o (UGA, UAA, UAG).
principal marcador molecular desta população de linfócitos.
Compactação genética: capacidade de compactar o máximo de
Chaperone: proteína ou estrutura protéica que assiste e auxilia informação genética no genoma.
as proteínas a assumirem a conformação tridimensional logo
Complementação: interação entre os produtos gênicos de
após a sua síntese.
diferentes vírus que permite a multiplicação de um ou mais
Ciclinas: família de proteínas envolvidas na regulação do ciclo vírus, sem alteração do seu genótipo.
celular.
Complemento: sistema plasmático formado por um grupo
Ciclo lítico: ciclo replicativo viral que resulta na lise/destruição de proteínas enzimáticas inativas, cuja ativação seqüencial
da célula hospedeira. desencadeia a formação de moléculas com atividades biológicas
diversas, principalmente relacionadas com a ativação da
Ciclo replicativo: série de etapas que compõem a multiplicação/ inflamação e combate a microorganismos.
reprodução dos vírus em células susceptíveis.
Complexo antígeno-anticorpo: complexo molecular formado
Círculo rolante: mecanismo de replicação de DNA em que a pela ligação do anticorpo ao antígeno específico.
estrutura replicativa se assemelha a um círculo em movimento.
A replicação ocorre ao longo da molécula circular de DNA, Complexo basal de transcrição: conjunto mínimo de fatores
resultando em uma molécula linear crescente que, posteriormente, de transcrição e enzima RNA polimerase necessários para a
é clivada nas unidades genômicas. realização de níveis basais de transcrição.

Cis-acting: seqüência de nucleotídeos cuja atividade é exercida Complexo de ataque à membrana (MAC): complexo formado
na própria molécula; geralmente serve de sítio de ligação para pelos componentes C5-C9 do complemento, que se insere e
proteínas que ativam/reprimem a transcrição ou replicação; ex. forma poros nas membranas celulares e bacterianas.
promotores, enhancers, origens de replicação.
Complexo de histocompatibilidade principal (MHC):
Cistron: gene. proteínas de membrana celular, envolvidas na apresentação
de peptídeos endógenos (MHC-I) ou exógenos (MHC-II) para
Citocinas: substâncias solúveis secretadas por determinadas células do sistema imunológico. Identificadas inicialmente como
células em resposta a um estímulo e que exercem função responsáveis pela rejeição (ou não) de transplantes.
modulatória em outras células.
Complexo replicativo: conjunto de enzimas e fatores auxiliares
Citoesqueleto: rede de fibras, fibrilas, túbulos e microtúbulos que realizam a replicação do genoma.
protéicos que conferem a forma e uma variedade de movimentos
às células eucariotas, além de servirem de elos de ligação entre os Complexo ribonucleoproteína: complexo formado pelo RNA
diferentes locais e organelas no interior da célula. genômico e proteínas associadas.

Citomegalia: aumento de volume celular. Concatêmero: molécula longa de DNA formada por múltiplas
cópias de unidades genômicas contínuas. Constituem-se em
Citopatologia: patologia em nível celular. Freqüentemente moléculas intermediárias na replicação do genoma de alguns
se manifesta sob a forma de alterações estruturais e/ou vírus DNA.
morfológicas.
874 Virologia Veterinária

Convalescença: fase de recuperação clínica. Diapedese: movimentação de células sangüíneas para fora do
leito vascular e através dos tecidos.
Core (ou núcleo): estrutura compacta formada pelo genoma viral
geralmente conjugado com proteínas. Diluição limitante: diluição seriada utilizada para quantificar
unidades víricas infecciosas presentes em um material.
Co-receptor: molécula de superfície celular que participa,
juntamente com os receptores, no processo de ligação e Diplóide: organismo que contêm duas cópias do genoma.
penetração dos vírus nas células.
Disseminação hematógena: disseminação pelo sangue.
Corpúsculo de inclusão: estrutura intracelular produzida como
resultado da replicação viral. Pode ser formado por produtos DNA: ácido desoxirribonucléico.
virais e/ou por estruturas celulares modificadas.
DNA complementar (cDNA): molécula de DNA cuja seqüência
Corpúsculo de Lenz: corpúsculo de inclusão observado em de nucleotídeos é complementar a outra molécula de DNA ou
neurônios do sistema nervoso central durante a infecção com o RNA.
vírus da cinomose.
DNA extracromossômico: molécula de DNA que não faz parte
Corpúsculo de Negri: corpúsculo de inclusão observado em do cromossomo ou genoma celular.
neurônios do sistema nervoso central durante a infecção pelo
DNA genômico: DNA que constitui o genoma do organismo.
vírus da raiva.
DNA intermediário: molécula de DNA, complementar ao DNA
Cristal violeta: corante utilizado para corar cultivos celulares.
genômico, que serve de intermediário na replicação do genoma
Cromatina: complexo formado pelo DNA celular conjugado de alguns vírus.
com proteínas nucleares denominadas histonas.
DNA polimerases: enzimas que sintetizam DNA a partir de
CTL: linfócito T que possui atividade citotóxica. uma molécula molde.

Cultivo celular: cultivo de células de animais utilizado para a Doença emergente: doença que assumiu importância
multiplicação de vírus in vitro. recentemente. Pode ser uma doença realmente nova, que
aumentou de incidência ou que foi recentemente diagnosticada.
Dambos: depressões extensas no terreno que se enchem de água
em épocas de chuva e secam durante a estiagem. São típicos de Doença esporádica: doença de ocorrência rara, imprevisível, em
certas regiões da África. uma determinada população.

Degranulação: liberação do conteúdo de grânulos Doença exótica: doença que não existe em uma determinada
citoplasmáticos. população.

Deleção: ausência ou remoção de um segmento do genoma. Doente: hospedeiro que apresenta sinais clínicos resultantes de
alterações da fisiologia.
Dendritos: prolongamentos citoplasmáticos presentes em certos
tipos de células, tipicamente neurônios. Doença atípica: doença cujas características clínico-patológicas
diferem da maioria dos casos daquela enfermidade.
Deoxirribonucleotídeo (dNTP): nucleotídeos que contêm a
desoxirribose como açúcar. São as unidades componentes do Domínio: região de uma molécula de proteína que possui
DNA. uma determinada função e que assume uma conformação
independente do restante da molécula. Geralmente os diferentes
Depopulação: remoção ou eliminação total da população de domínios de uma proteína são codificados por diferentes exons.
uma determinada área.
Drift antigênico: alteração antigênica discreta em proteínas
Desnaturação: perda da conformação tridimensional natural. de superfície de agentes infecciosos que altera o padrão de
Termo utilizado para proteínas e ácidos nucléicos. reconhecimento destes agentes pelo sistema imunológico.

Desnudamento: série que eventos que ocorrem após a penetração Eclipse: período inicial da infecção viral em cultivo celular, no
viral e que resultam na remoção parcial ou total das proteínas qual ocorrem as fases iniciais da replicação.
que recobrem o genoma, tornando-o acessível à maquinaria de
transcrição e/ou tradução. Ecossistema: conjunto de componentes físicos e biológicos
presentes em uma determinada área.
Determinante antigênico: pequena região do antígeno que
se liga às regiões variáveis dos receptores de linfócitos B e T. Efeito citopático (ou citopatogênico): alteração morfológica
Também denominado epitopo. de células de cultivo associada com a replicação viral. Pode
ser observado sob microscopia ou, às vezes, pelo exame visual
Diagnóstico sorológico: diagnóstico baseado na detecção de direto (placas).
anticorpos específicos.
Glossário 875

Egresso: saída ou liberação da partícula vírica da célula Epidemia em ponto: epidemia caracterizada pela ocorrência de
hospedeira. um grande número de casos em um curto intervalo de tempo.

Eletroferogrupo: classificação dos rotavírus em grupos, de Epissomal: livre, não integrado ao cromossomo celular.
acordo com o padrão de migração dos segmentos genômicos em
géis de poliacrilamida. Epitopo: o mesmo que determinante antigênico.

Eletroforese em gel de poliacrilamida: método de análise de Epizootia: o mesmo que epidemia, termo aplicado a populações
ácidos nucléicos e proteínas, baseado na migração eletroforética animais.
das moléculas em uma matriz gelatinosa e porosa de
Espécie heteróloga: outra espécie, que não a espécie em
poliacrilamida.
questão.
ELISA: ensaio imunoenzimático para a detecção de antígenos ou
Espécie homóloga: mesma espécie em questão.
anticorpos.
Especificidade (anticorpos): propriedade de anticorpos em se
Empacotamento: mecanismo de inclusão do genoma viral
ligar apenas aos epitopos que são exatamente complementares
nas partículas víricas recém-formadas. Também chamado de
às suas regiões variáveis.
encapsidação ou encapsidamento.
Especificidade (testes): propriedade de uma técnica diagnóstica
Encapsidação: o mesmo que empacotamento.
de identificar, detectar e diagnosticar um determinado agente
Endemia (enzootia): doença presente em uma determinada (ou anticorpos) e distingui-lo de outros agentes.
população e cuja incidência não apresenta grandes variações ao
Espectro de hospedeiros: gama ou conjunto de hospedeiros que
longo do tempo.
um agente pode potencialmente infectar.
Endêmica: padrão de ocorrência de uma doença que ocorre
Espectrofotômetro: aparelho que mede a capacidade de diferentes
naturalmente em uma população sem grandes variações de
substâncias de absorver luz em diferentes comprimentos de
incidência ao longo do tempo.
onda. É utilizado para determinar a concentração de diversas
Endocitose: mecanismo celular de internalização de partículas e substâncias em diferentes materiais.
macromoléculas por meio de invaginação progressiva e formação
Espícula (spike): projeção formada pelas proteínas de superfície
de vesículas derivadas da membrana plasmática.
de alguns vírions. O mesmo que peplômero.
Endonucleases: enzimas que clivam e degradam ácidos
Estabilidade genética: estabilidade (conservação) da seqüência
nucléicos, clivando as ligações entre nucleotídeos internos da
de nucleotídeos de um determinado genoma ao longo do
molécula.
tempo.
Enhancer: seqüência de nucleotídeos do DNA localizada a
Estacional: padrão de ocorrência de doença cuja incidência
distâncias variáveis dos locais de iniciação da transcrição. Serve
apresenta variações a intervalos anuais, geralmente coincidentes
de sítio de ligação para os fatores de transcrição. Não é essencial
com uma determinada estação do ano.
para a transcrição basal, mas aumenta a eficiência de transcrição
a partir de um determinado promotor. Estrutura secundária (ou terciária): conformação bi ou
tridimensional adotada por macromoléculas (proteínas, ácidos
Enhancer constitutivo: enhancer cuja atividade é permanente,
nucléicos).
geralmente em níveis basais.
Eucariota: organismo cujo genoma é separado do citoplasma
Ensaio de placa: ensaio biológico realizado em tapetes celulares.
por uma membrana nuclear e dividido em cromossomos
Baseia-se na capacidade de certos vírus de produzirem focos
individuais.
de destruição celular. É utilizado para a análise fenotípica,
quantificação e clonagem biológica (purificação) de vírus. Evasão imunológica: denominação genérica ao conjunto de
mecanismos utilizados por agentes infecciosos para se evadirem
Envelope: envoltório lipoprotéico externo presente em algumas
da resposta imunológica montada pelo hospedeiro.
famílias de vírus. É derivado de membranas celulares e contém
proteínas virais inseridas. Exocitose: processo celular de secreção de macromoléculas,
no qual vesículas contendo essas moléculas se fusionam
Epidemia: aumento significativo do número de casos de uma
com a membrana plasmática, liberando o conteúdo no meio
doença em uma determinada população em um período de
extracelular.
tempo.
Exon: seqüência codificante dos genes descontínuos de
Epidemia de propagação: epidemia em que o número de novos
eucariotas, que são unidas entre si após a remoção das seqüências
casos aumenta gradativamente ao longo do tempo.
intervenientes (íntrons), pelo mecanismo de splicing.
876 Virologia Veterinária

Exonucleases: enzimas que degradam moléculas de ácidos Fonte de infecção: animal vertebrado que abriga e multiplica um
nucléicos a partir da remoção de nucleotídeos de suas vírus, podendo transmiti-lo a outro hospedeiro.
extremidades.
Fosfatase alcalina: enzima utilizada em testes
Expansão clonal: multiplicação de células a partir de células imunoenzimáticos.
progenitoras individuais.
Fragmentos de Okazaki: segmentos de DNA (100: 2.000
Expressão gênica: termo genérico que denota a expressão ou nucleotídeos) produzidos durante a síntese da cadeia descontínua
materialização das informações genéticas contidas no genoma. (lagging) na replicação semidescontínua do DNA celular e de
Resumidamente, refere-se à produção de proteínas e às funções alguns vírus.
decorrentes das suas atividades.
Frameshift: mudança de fase de leitura do RNA mensageiro
Fábrica viral: local específico no citoplasma ou núcleo onde se pelos ribossomos durante a tradução.
acumulam os produtos virais e vírions em diferentes estágios de
morfogênese. É o local de replicação do genoma e produção das Fusão: processo de fusionamento entre membranas biológicas
partículas víricas. pela interação entre seus componentes. A fusão entre o envelope
viral e a membrana celular proporciona a penetração do
Fagocitose: processo celular de internalização de partículas nucleocapsídeo no citoplasma da célula.
grandes, que envolve alterações marcantes na estrutura da
membrana plasmática, gasto de energia e reorganização do Gene: seqüência de nucleotídeos nos ácidos nucléicos que
citoesqueleto cortical. codifica um produto (proteína).

Fagossomo: vesícula derivada da fagocitose que contêm o Genes alfa (ou de transcrição imediata): grupo de genes dos
material fagocitado. herpesvírus que são transcritos imediatamente após a penetração
viral na célula.
Fator de necrose tumoral: um tipo de interleucina secretada por
leucócitos. Genes beta (ou iniciais): grupo de genes de alguns vírus que são
preferencialmente transcritos em fases iniciais do ciclo, antes da
Fatores de transcrição: proteínas celulares que auxiliam a enzima replicação do genoma.
RNA polimerase no reconhecimento, ligação aos promotores e
início da transcrição. Genes de virulência: genes cujos produtos estão envolvidos na
determinação da virulência de um agente infeccioso.
Fenótipo: conjunto de características observáveis de um
indivíduo. É o resultado da expressão do genótipo. Gene essencial: gene cujo produto é essencial para a replicação
viral em cultivo.
Fidelidade: propriedade das polimerases de DNA e RNA em
produzirem cópias exatamente complementares às moléculas Genes gama (ou tardios): grupo de genes dos herpesvírus que
utilizadas como molde. são transcritos somente após o início da replicação do genoma.

Filamentos de actina: filamentos da proteína actina que Gene não-essencial: gene cujo produto é dispensável para a
compõem o citoesqueleto. replicação viral em cultivo celular.

Fita complementar (ou cadeia complementar): molécula de Genes tardios: genes que são expressos em fases tardias do ciclo,
ácido nucléico (RNA ou DNA) cuja seqüência de nucleotídeos geralmente após a replicação do genoma.
é exatamente complementar à molécula parental que serviu de
Genética reversa: denominação genérica para a metodologia
molde para a sua produção.
utilizada para estudar a genética de organismos na ordem inversa
Fixação do complemento: técnica de detecção de anticorpos que à genética tradicional, ou seja, parte de um determinado genótipo
se baseia na capacidade de moléculas de imunoglobulinas se e estuda as conseqüências da produção deliberada de mutações e
ligarem a moléculas do complemento quando interagem com o outras alterações genéticas no fenótipo do organismo.
antígeno.
Genoma: molécula de ácido nucléico (DNA, RNA) que contém o
Flebotomídeo: espécie de inseto hematófago. Envolvido na conjunto completo de informações genéticas do organismo.
transmissão mecânica de alguns vírus.
Genótipo: conjunto de seqüências específicas e informações
Fluoresceína: substância que emite luminosidade fluorescente genéticas contidas no genoma de um organismo.
ao ser exposta a luz ultravioleta.
Glicoproteína: proteína que possui molécula(s) de açúcar
Fluxo axoplásmico: fluxo de vesículas e macromoléculas ao associada(s) covalentemente.
longo do citoplasma (axoplasma) dos axônios de neurônios.
Golden standard: teste padrão universal de um determinado
Fômite (ou veículo): qualquer objeto (ser inanimado) que serve método, cujos resultados servem de comparação com os
para transmitir um agente infeccioso entre hospedeiros. resultados de outros testes.
Glossário 877

Granzimas: enzimas contidas em grânulos citoplasmáticos de não o transmite, ou seja, não participa do ciclo de manutenção
determinadas células efetoras. do agente na natureza.

Hairpin: estrutura semelhante a um grampo de cabelo, formada Host range in vitro: conjunto de tipos de células de cultivo
pelo flexionamento de moléculas de ácido nucléico sobre si susceptíveis à infecção por um determinado vírus.
mesmas. Geralmente ocorre próximo às extremidades das
moléculas. Host-range in vivo: conjunto de espécies animais susceptíveis a
um determinado agente. Pode-se referir a um host range natural
Haplóide: organismo que contém apenas uma cópia do (infecções naturais) ou experimental (espécies susceptíveis à
genoma. infecção experimental).

Helicases: enzimas que separam cadeias de DNA e RNA. São Iatrogênico: transmissão de um agente entre hospedeiros,
necessárias para a transcrição e replicação. decorrente da realização de procedimentos médicos.

Hemadsorção: atividade biológica de proteínas de alguns vírus Icosaedro: estrutura geométrica que consiste de 20 faces
quando expressas na superfície de células infectadas. Refere-se triangulares arranjadas ao redor da superfície de uma esfera.
à adsorção de eritrócitos à superfície celular que contém essas Constitui-se na simetria fundamental de vários vírus.
proteínas.
Icossomos: estruturas esferóides encontradas associadas aos
Hemaglutinação: atividade biológica de aglutinação de prolongamentos citoplasmáticos das células dendríticas e que
eritrócitos animais por partículas víricas ou por proteínas de contêm antígenos a serem apresentados aos linfócitos.
alguns vírus.
Imortalização: denominação dada à capacidade de algumas
Hemaglutinina: proteína viral responsável pela aglutinação de células de cultivo de se multiplicarem indefinidamente.
eritrócitos.
Importinas: proteínas componentes do processo de importação
Hepatotrópico: agente que apresenta tropismo por células de proteínas e outras moléculas para o interior do núcleo
hepáticas. celular.

Heterodímero: estrutura molecular formada pela associação de Imunidade: estado de resistência adquirida de um hospedeiro a
duas subunidades (moléculas) diferentes. um agente infeccioso.

Hibridização: associação entre duas moléculas complementares Imunidade de mucosas: conjunto de mecanismos imunológicos
de ácido nucléico, porém de origens diferentes. localizados nas mucosas corporais.

Hibridização in situ: técnica de detecção de ácidos nucléicos em Imunidade de população (ou de rebanho): nível e abrangência
cortes de tecidos que utiliza o princípio da hibridização. da imunidade contra um determinado agente existente em uma
determinada população.
Híbrido: molécula de ácido nucléico de cadeia dupla cujas
cadeias componentes possuem origens diferentes. Termo Imunidade passiva: imunidade recebida passivamente através
também utilizado para designar o organismo cujo genoma da placenta, pelo colostro/leite, ou pela administração de soro
contém informações genéticas de duas espécies heterólogas. hiperimune. É essencialmente humoral (anticorpos).

Histonas: proteínas nucleares que se conjugam com o DNA Imunização: indução de imunidade.
cromossômico, proporcionando o seu empacotamento e
compactação. Imunização ativa: indução de imunidade pela exposição do
hospedeiro ao antígeno.
Homólogo: da mesma espécie, semelhante.
Imunização passiva: indução de imunidade pela administração
Homologia de nucleotídeos: grau de similaridade da seqüência de anticorpos pré-formados (via placentária, colostral ou soro
de nucleotídeos entre duas ou mais moléculas de ácidos hiperimune).
nucléicos.
Imunoblot: técnica de detecção de antígenos (ou anticorpos)
Horseradish peroxidase (HRPO): enzima utilizada em testes realizada em impressões do material suspeito em membranas.
imunoenzimáticos.
Imunocitoquímica: técnica imunoenzimática de detecção de
Hospedeiro: espécie animal que abriga e permite a multiplicação antígenos em células.
de um determinado agente biológico.
Imunocomplexo: complexo molecular formado pela conjugação
Hospedeiro natural (ou reservatório): espécie animal na qual de anticorpos com o antígeno específico.
um determinado agente é mantido na natureza.
Imunocromatografia: técnica de detecção de antígenos (ou
Hospedeiro terminal (acidental): espécie animal que pode ser, anticorpos) baseada em cromatografia.
ocasionalmente, infectada por um determinado agente, mas que
878 Virologia Veterinária

Imunodifusão em gel de ágar (IDGA): técnica de detecção de Infecção produtiva: infecção que resulta na produção de
anticorpos (e antígenos) que se baseia na migração e precipitação progênie viral infecciosa.
dos complexos antígeno-anticorpos em uma matriz de ágar.
Infecção sistêmica: infecção disseminada por vários órgãos e
Imunoeletromicroscopia: técnica de microscopia eletrônica que tecidos, geralmente disseminada pelo sangue.
utiliza anticorpos específicos para melhor localizar e marcar o
antígeno alvo. Infecção subclínica persistente: infecção persistente sem
manifestações clínicas perceptíveis.
Imunofluorescência: técnica de detecção de antígenos que
utiliza anticorpos conjugados com uma substância que emite Inibição da hemaglutinação (HI): técnica de detecção
luminosidade fluorescente quando excitada por luz ultravioleta. de anticorpos que inibem a atividade hemaglutinante de
determinados vírus.
Imunogenicidade: potencial de determinado antígeno de
estimular a resposta imunológica do hospedeiro. Inoquidade: ausência de atividade (biológica) deletéria ao
organismo.
Imunogold: técnica de microscopia eletrônica que utiliza
anticorpos marcados com micropartículas de ouro para melhor Insidiosa: infecção ou doença que se dissemina rapidamente
localizar o antígeno alvo no material examinado. entre hospedeiros susceptíveis.

Imunoistoquímica: técnica imunoenzimática de detecção de Integração: inserção de um segmento de ácido nucléico na


antígenos em cortes de tecidos. molécula de outro ácido nucléico.

Imunopatologia: patologia celular ou tecidual resultante da Integrase: enzima que catalisa a integração de um segmento de
resposta imunológica do hospedeiro. ácido nucléico em outra molécula de ácido nucléico.

Imunoperoxidase: técnica imunoenzimática de detecção de Interferência: inibição parcial ou completa da replicação viral
antígenos (ou de anticorpos) que utiliza anticorpos marcados por outro vírus.
com a enzima peroxidase.
Interferons: grupo de peptídeos solúveis sintetizados por células
Inativação: supressão da viabilidade atividade química ou infectadas e por células do sistema imunológico. Possuem
biológica. atividade antiviral e/ou de modulação sobre a atividade de
outras células.
Incidência: freqüência relativa de novos casos de uma doença
em relação ao tempo. Interleucinas: substâncias solúveis (geralmente peptídeos)
produzidas por leucócitos e que modulam a proliferação e
Indene: área livre de uma determinada doença. função de outras células.

Infecção: penetração e multiplicação de um agente infeccioso em Intermediário replicativo: molécula de ácido nucléico que se
um organismo (ou em células de cultivo). constitui em um intermediário da replicação do genoma dos
vírus.
Infecção abortiva: infecção que não resulta em produção de
progênie viral, geralmente pela interrupção do ciclo replicativo Internalização: etapa seguinte à adsorção, na qual as partículas
em alguma etapa. víricas (ou os nucleocapsídeos) são internalizadas na célula.

Infecção aguda: infecção de duração limitada, algumas vezes Introns: seqüências intervenientes, não-codificantes, presentes na
acompanhada de altos níveis de replicação. maioria dos genes de eucariotas. São removidos dos transcritos
primários pelo mecanismo de splicing.
Infecção disseminada: infecção que atinge vários órgãos e
tecidos do hospedeiro. In vitro: em Virologia, geralmente se refere ao sistema de
multiplicação viral em cultivos celulares.
Infecção latente: infecção caracterizada pela permanência do
genoma do agente no hospedeiro, com expressão gênica limitada IRES (Internal Ribosomal Entry Site): estrutura secundária
ou ausente e sem produção de progênie infecciosa. encontrada próxima à extremidade 5’ do RNA genômico de
alguns vírus e que é necessária para o reconhecimento do
Infecção localizada: infecção limitada a determinado sítio, tecido RNA pelos ribossomos da célula hospedeira para o início da
ou órgão. tradução.

Infecção persistente ou crônica: infecção que persiste por um Isolado: vírus obtido a partir de hospedeiros infectados e que
longo tempo. ainda não foi caracterizado. O termo amostra também é utilizado
para designar esses vírus.
Infecção persistente temporária: infecção cuja replicação viral
persiste por longo tempo, porém eventualmente cessa. Isolamento: obtenção do agente infeccioso viável e puro.
Glossário 879

kb: quilobase, 1.000 nucleotídeos. Matriz: camada protéica, geralmente composta por múltiplas
moléculas de uma única proteína, localizada entre o
kDa: unidade de massa de proteínas. Corresponde a 1.000 nucleocapsídeo e o envelope de alguns vírus.
daltons.
Maturação: etapa final do ciclo replicativo, na qual as partículas
Lagging (strand): cadeia descontínua de DNA sintetizada durante recém-formadas adquirem infectividade. Em alguns vírus,
a replicação semidescontínua do DNA cromossômico celular e ocorre concomitantemente com a morfogênese.
do genoma de alguns vírus.
Membrana plasmática: membrana celular que delimita o
Latência: o mesmo que infecção latente. compartimento citoplasmático e o separa do meio extracelular.
Também denominada membrana celular.
Leading (strand): cadeia contínua de DNA sintetizada durante a
replicação semidescontínua do DNA cromossômico celular e do Memória imunológica: propriedade que permite ao sistema
genoma de alguns vírus. imunológico reagir de forma e magnitude diferentes em
exposições subseqüentes ao um mesmo antígeno.
Lentogênica: denominação dada a amostras do vírus da doença
de Newcastle (NDV) pouco patogênicas. Mesogênica: denominação dada a amostras do NDV
medianamente patogênicas.
Letalidade: medida da mortalidade entre os animais que
desenvolvem uma determinada doença. Minicromossomo: estrutura semelhante aos cromossomos
celulares, formada pela associação do genoma dos poliovírus e
Ligase: enzima que catalisa a ligação entre extremidades
papilomavírus com proteínas celulares chamadas de histonas.
de moléculas de ácidos nucléicos. Linfócitos B: população
de linfócitos envolvidos na resposta humoral (produção de Mistura fenotípica: mescla de componentes fenotípicos, sem a
anticorpos) e que possuem moléculas de imunoglobulinas como ocorrência de interações genéticas.
marcadores de membrana.
Molde (ou modelo): molécula de ácido nucléico utilizada
Linfócitos T auxiliares: população de linfócitos cuja função como modelo para a síntese de uma molécula exatamente
principal é secretar interleucinas que estimulam e modulam a complementar.
resposta imunológica celular e humoral. Possuem moléculas de
TCR e CD4 como marcadores de membrana. Monocamada (monocapa, tapete): camada única e plana de
células, geralmente achatadas, que se multiplicam aderidas à
Linfócitos T citotóxicos: população de linfócitos cuja função superfície de frascos de cultivo.
principal é identificar e destruir células infectadas por vírus.
Também secretam algumas interleucinas. Possuem o TCR e CD8 Monocistrônico: segmento de DNA ou RNA que contém apenas
como marcadores de membrana. uma região codificante (cistron = gene).

Linhagem celular: população de células homogêneas derivadas Monócito: célula sangüínea da linhagem mielóide que origina
de células removidas de animais e cultivadas in vitro. os macrófagos.

Linhagem contínua: linhagem de células homogêneas e bem Monômero: unidade básica que compõe as macromoléculas.
caracterizadas, geralmente capazes de multiplicação infinita in
vitro. Morfogênese: mecanismo de montagem das partículas víricas
a partir dos componentes pré-formados. Também denominada
Lise celular: morte e desintegração da célula causada pela reunião.
ruptura da membrana plasmática.
Motif (motivo) de DNA/RNA: seqüências específicas de
Lisossomo: vesícula intracelular que contém enzimas hidrolíticas nucleotídeos localizadas próximas aos locais de iniciação da
envolvidas na degradação ou digestão de material internalizado transcrição dos genes. Servem de sítios de reconhecimento e
por endocitose ou fagocitose. ligação para os fatores de transcrição e RNA polimerase para o
início da transcrição.
Luminômetro: aparelho que quantifica a emissão de
luminosidade. Motif (motivo) de proteína: seqüência específica de aminoácidos
ou estrutura tridimensional específica correlacionada com
Macrófago: célula derivada dos monócitos sangüíneos cujas alguma atividade ou função.
funções principais são a fagocitose, digestão e reorganização
tecidual, secreção de citocinas, processamento e apresentação de mRNA: RNA mensageiro, molécula de RNA intermediária na
antígenos a linfócitos T auxiliares. síntese protéica.

Macropinocitose: pinocitose de macromoléculas ou de partículas mRNA policistrônico: RNA mensageiro que contém mais de
grandes. uma região codificante.
880 Virologia Veterinária

mRNA subgenômico: RNA mensageiro com extensão menor do nested PCR: variação da técnica de PCR em que um segmento
que o genoma. interno do produto da primeira reação é reamplificado em uma
segunda reação.
miRNA: RNA pequenos produzidos durante a infecção com
alguns vírus e que interferem com funções celulares e virais. Neuraminidase: glicoproteína do envelope de alguns vírus que
cliva a ligação dos vírions ao ácido siálico.
Multiplicidade de infecção (moi): número aproximado
de partículas víricas infecciosas por célula contida em uma Neuroinvasividade: propriedade de invadir o sistema nervoso
suspensão viral inoculada em cultivo celular. central a partir de penetração e replicação inicial em sítios
periféricos.
Mutação: alteração da seqüência de nucleotídeos de uma
molécula de ácido nucléico em comparação com a molécula Neurovirulência: propriedade de replicar no sistema nervoso
parental. central e causar doença neurológica.

Mutação em ponto: substituição de um nucleotídeo na molécula Neutralização: supressão da capacidade infectiva.


de ácido nucléico, comparando-se com a molécula parental.
Nível de erro limitante: freqüência de mutação limite para a
Mutação espontânea: mutação que ocorre naturalmente, viabilidade do organismo.
decorrente de erros da polimerase ou por fatores externos.
Northern blot: técnica de detecção de RNA que se baseia
Mutação induzida: mutação induzida propositalmente pelo uso no princípio da hibridização e utiliza oligonucleotídeos
de agentes químicos ou físicos. complementares a seqüências da molécula alvo como sonda.

Mutação letal: mutação que resulta na inviabilidade absoluta do Nt: nucleotídeo de uma molécula de ácido nucléico.
organismo que a possui.
Núcleo celular: compartimento de células eucariotas que contém
Mutação missense: mutação pontual que resulta na codificação o genoma e é delimitado e separado do citoplasma por uma
de um aminoácido diferente do original. membrana.

Mutação nonsense: mutação pontual que resulta na criação de Nucleocapsídeo: estrutura formada pelo genoma viral associado
um códon de terminação da tradução. com proteínas e revestida externamente pelo capsídeo.

Mutação silenciosa: mutação pontual que não resulta na Nucleoproteínas: proteínas que se conjugam com o genoma
alteração do aminoácido codificado. viral, formando o core (ou núcleo).

Mutagênese direcionada: mutação introduzida artificialmente, Nucleossomo: unidade estrutural da cromatina celular, formada
na qual se substitui os nucleotídeos desejados. pelo DNA enrolado ao redor de uma massa cilíndrica formada
pelas histonas.
Mutante: organismo que possui uma ou mais mutações no
genoma. Núcleo viral (core): estrutura compacta formada pelo genoma
associado com proteínas.
Mutante atenuado: vírus mutante que possui patogenicidade
e virulência reduzidos em comparação com o organismo Oligonucleotídeo: molécula linear formada por um número
parental. limitado de nucleotídeos ligados entre si.

Mutante condicional: vírus cujo fenótipo mutante se manifesta Oligossacarídeo: polímeros pequenos de açúcar.
apenas em algumas condições.
Oncogene: gene que codifica uma proteína capaz de induzir
Mutante de escape: vírus que possui mutação – ou mutações transformação tumoral em células.
– que resulta na falha de reconhecimento de suas proteínas de
superfície por anticorpos neutralizantes do hospedeiro. Oncogênese: indução ou produção de neoplasias.

Mutante de gama de hospedeiro: vírus mutante que possui a Oncogênese insercional: indução de neoplasias pela inserção do
capacidade de infectar um conjunto de espécies hospedeiras genoma viral em cromossomos celulares, alterando a expressão
diferente do vírus parental. de genes envolvidos na indução ou repressão da formação de
tumores.
Mutante de placa pequena: vírus mutante cuja replicação em
cultivos celulares resulta em focos menores de destruição celular, Opsonização: revestimento de partículas por determinadas
comparando-se com o vírus parental. substâncias (complemento, anticorpos) e que facilita a
fagocitose.
Não-citopático: vírus cuja replicação em cultivo celular não
resulta em citopatologia aparente. ORF (seqüência aberta de leitura): seqüência de nucleotídeos
de um gene ou mRNA que é traduzida em proteína; inicia-se em
Glossário 881

um códon iniciador (AUG) e termina em um códon terminador PCR em tempo real: variação da técnica de PCR em que os
(UAA, UAG ou UGA). resultados podem ser obtidos à medida que o processo de
amplificação ocorre e não apenas ao final, como na técnica
Órgãos linfóides secundários: órgãos linfóides que servem tradicional.
de locais de maturação e proliferação de células linfóides em
resposta a antígenos. PCR in situ: variação da técnica de PCR utilizada para a detecção
e amplificação de ácidos nucléicos diretamente em cortes de
Origem da replicação (ori): seqüência específica do DNA (ou tecidos.
RNA) genômico que serve de sítio de reconhecimento, ligação
e início da replicação pelo complexo enzimático envolvido na Penetração: etapa do ciclo replicativo dos vírus em que
replicação do respectivo genoma. o nucleocapsídeo ou o genoma ultrapassam a membrana
plasmática e ganham acesso ao citoplasma celular. Pode ocorrer
Ovo embrionado: ovo de galinha com embrião em na superfície celular ou em vesículas endocíticas ou fagocíticas.
desenvolvimento.
Peplômero: projeção protéica presente na superfície de alguns
Ovoscópio: aparelho utilizado para se examinar ovos vírions, formada por glicoproteínas virais.
embrionados em desenvolvimento.
Peptídeo: molécula linear composta por um número limitado de
Palindrome: seqüência de nucleotídeos cuja ordem dos aminoácidos unidos entre si por ligações peptídicas.
nucleotídeos individuais é a mesma em ambas as direções.
Perfil eletroforético: perfil de migração de segmentos de ácidos
Pandemia: epidemia de proporções continentais ou mundiais. nucléicos ou proteínas em eletroforese.

Panhandle: estrutura semelhante a um cabo de panela, formada Perforinas: proteínas presentes em células NK e linfócitos
pelo pareamento de seqüências complementares localizadas nas T citotóxicos que, quando secretadas, produzem poros na
extremidades de moléculas de DNA e/ou RNA. membrana plasmática das células-alvo.

Paraendêmica: doença de ocorrência rara, esporádica. Período de incubação: intervalo de tempo entre a infecção de um
hospedeiro e o início dos sinais clínicos.
Partícula Dane: partícula vírica completa, infecciosa, do vírus da
hepatite B. Período de incubação extrínseco: período de replicação do vírus
no artrópode vetor antes de poder ser transmitido pelo vetor.
Partícula defectiva: partícula vírica anômala, não-infecciosa,
produzida no ciclo replicativo de alguns vírus. Essas partículas Período de transmissibilidade (ou comunicabilidade): período
geralmente contêm genomas defectivos em um ou mais genes e, de excreção do agente pelo hospedeiro infectado.
por isso, são capazes de replicar autonomamente.
Período pré-patente: período entre a infecção e o início da
Partícula infecciosa: partícula vírica infectiva, viável, capaz de excreção do agente pelo hospedeiro recém-infectado.
infectar e replicar autonomamente uma célula susceptível.
Período prodrômico: período situado no final do período de
Partícula viral: o mesmo que partícula vírica, vírion. incubação, quando o hospedeiro apresenta sinais inespecíficos
de doença.
Partícula vírica: o mesmo que partícula viral, vírion.
Permissividade: propriedade das células em permitir a ocorrência
Passagem (de células): refere-se a cada subcultivo das células
das etapas intracelulares da replicação viral.
cultivadas in vitro. Os termos repique e subcultivo também são
utilizados. Placa: foco localizado de alterações morfológicas ou destruição
celular produzido pela replicação viral em monocamadas de
Passagem (de vírus): refere-se a uma etapa de multiplicação do
células.
vírus em células de cultivo. Inicia com a inoculação e termina
com a coleta do sobrenadante contendo a progênie viral. Placas de Peyer: acúmulos linfóides localizados na submucosa
Dependendo do vírus e do intervalo entre a inoculação e a coleta, do intestino delgado de mamíferos.
cada passagem pode abranger mais de um ciclo replicativo do
vírus. Plasmídeos: moléculas extracromossômicas de DNA,
geralmente circulares, encontradas em procariotas. Replicam
Patogenicidade: capacidade do agente de produzir doença nos independentemente do DNA cromossômico.
hospedeiros.
Plasmócitos: células derivadas da proliferação e diferenciação
Pb: par de bases. Refere-se a unidades formadas pelo pareamento dos linfócitos B, especializadas na secreção de imunoglobulinas.
entre duas bases complementares em moléculas de ácido nucléico
(DNA, RNA) de fita dupla. Polaridade negativa (sentido negativo): seqüência de
nucleotídeos que é complementar a seqüência do RNA
PCR: técnica de amplificação enzimática de seqüências específicas mensageiro (que, por convenção, possui polaridade positiva).
de ácidos nucléicos pelo uso de enzimas polimerases.
882 Virologia Veterinária

Polaridade positiva: seqüência de nucleotídeos com o mesmo Progênie viral: população de vírions resultantes da replicação
sentido do RNA mensageiro. viral.

Poliadenilação: adição de uma seqüência de adeninas (100-200) Promotor: seqüência de nucleotídeos do DNA localizada
à extremidade 3’ do RNA mensageiro. próxima ao local de iniciação da transcrição. Serve de sítio de
ligação para os fatores de transcrição e/ou RNA polimerase.
Policistrônico: segmento de DNA ou RNA que contém mais de
uma região codificante (cistron = gene). Proofreading: sistema de correção de erros durante a
polimerização (síntese) de ácidos nucléicos, no qual as
Polimerases: enzimas que sintetizam ácidos nucléicos (RNA, polimerases removem nucleotídeos errados, eventualmente
DNA) a partir de um molde. incorporados, e os substituem pelos nucleotídeos corretos.

Polimerização: adição seqüencial de nucleotídeos durante a Protease: enzima que cliva e/ou degrada proteínas.
síntese de moléculas de DNA e RNA.
Protease de cisteína: protease que cliva proteínas em locais onde
Poliploidia: presença de várias cópias do genoma em um existem aminoácidos do tipo cisteína.
organismo.
Proteção cruzada: proteção contra agentes heterólogos, porém
Poliproteína: proteína extensa que é clivada à medida que vai semelhantes, produzida pela imunização com um determinado
sendo produzida, originando proteínas menores com funções agente.
diversas.
Proteína de matriz: proteína estrutural que reveste internamente
Poliribossomos: agregados citoplasmáticos de vários ribossomos, o envelope de alguns vírus, mediando as suas interações com o
nos quais ocorre a tradução de RNAs mensageiros. nucleocapsídeo.

Pontos quentes (hot spots): locais do DNA ou RNA que Proteína de fusão: proteína da superfície dos vírions responsável
apresentam uma freqüência maior de mutações do que o restante pela fusão do envelope viral com a membrana celular e
do genoma. a conseqüente penetração do material genético na célula
hospedeira.
População: grupo de indivíduos no qual se está estudando
algum aspecto relacionado à saúde ou doença. Proteína endógena: proteína produzida no interior da célula.

População de risco: parcela da população que é susceptível a um Proteína estrutural: proteína viral que faz parte da estrutura da
determinado agente ou doença. partícula vírica.

População local: população restrita geograficamente, cujos Proteína exógena: proteína de origem externa à célula ou
indivíduos componentes interagem entre si com certa hospedeiro.
freqüência.
Proteína heteróloga: proteína estranha, de organismo diferente.
Portador: hospedeiro que abriga o agente e permite a sua
multiplicação sem manifestar sinais clínicos da infecção. Proteína imunodominante: proteína com capacidade superior
de estimular o sistema imunológico.
Portador ativo: portador que abriga e excreta o agente.
Proteína integral de membrana: proteína que se encontra
Portador passivo: portador que abriga, mas não excreta o inserida em membranas celulares por meio de uma região
agente. transmembrana.

Prevalência: freqüência relativa de um fator relacionado à saúde Proteína motora: proteína que participa dos sistemas de
ou à doença em um determinado momento em uma população. transporte de macromoléculas no interior das células.

Primases: enzimas capazes de iniciar a síntese de DNA a partir de Proteína não-estrutural: proteína viral que não faz parte da
um molde, propriedade inerente a algumas DNA polimerases. estrutura da partícula vírica.

Primer: oligonucleotídeo (RNA ou DNA) que serve de iniciador Proteína periférica de membrana: proteína que se encontra
para a síntese de DNA. associada com membranas, sem, no entanto, possuir uma região
transmembrana.
Primovacinação: primeira administração de um determinado
antígeno a um hospedeiro. Proteína terminal (TP): proteína ligada covalentemente à
extremidade 5’ do genoma dos adenovírus.
Procariota: organismo cujo material genético não se encontra
separado do restante da célula por uma membrana. Proteína truncada: proteína incompleta produzida pela
terminação precoce da tradução devido à presença de um códon
Produto de PCR (amplicon): segmento de DNA ou RNA
de terminação na região codificante.
amplificado por PCR.
Glossário 883

Protômero: unidade estrutural dos capsídeos, forma os Recombinante: organismo que contém no seu genoma material
capsômeros. genético heterólogo, produto de recombinação.

Prova biológica: teste diagnóstico da raiva, em que camundongos Recrudescência: ressurgimento de manifestações clínico-
lactentes são inoculados pela via intracerebral com um patológicos de doença.
macerado de cérebro de animais suspeitos de terem contraído
a enfermidade. Refratariedade: estado de resistência absoluta de uma espécie
animal a um agente infeccioso.
Provírus: molécula de DNA de fita dupla, em que uma das
cadeias é exatamente complementar ao RNA genômico dos Região conservada: seqüência de nucleotídeos (ou de
retrovírus. aminoácidos) que é pouco variável entre os vírus pertencentes a
uma mesma espécie viral (ou entre diferentes vírus).
Pseudovírion: partícula vírica incompleta, não-infecciosa, dos
poliomavírus e de outros vírus. Região regulatória: região do genoma que contém promotores
e enhancers e que, por isso, está envolvida na regulação da
Quarentena: período de isolamento e observação clínica de transcrição e expressão gênica.
hospedeiros, para verificar se se encontram no período de
incubação de uma doença infecciosa. Região intergênica (IR): seqüência de nucleotídeos não-
codificante situada entre regiões codificantes de genomas.
Quasispecies: população heterogênea de variantes virais que
compõem uma população de vírus. São típicas de vírus RNA. Renaturação: retorno à conformação e estrutura nativa original
por moléculas de ácidos nucléicos e proteínas previamente
Quilobase (kb): unidade de ácido nucléico que equivale a 1.000 submetidas à desnaturação.
bases.
Replicação (de ácido nucléico): síntese ou duplicação de uma
Quimiotaxia: movimentação de células inflamatórias através molécula de ácido nucléico a partir de uma molécula parental.
dos tecidos em resposta a estímulos químicos.
Replicação abortiva: replicação viral interrompida em alguma
Quinase: enzima que fosforila determinados substratos. etapa do ciclo e que não resulta na produção de progênie
infecciosa.
Quinesina: proteína componente de um dos sistemas
intracelulares de transporte de macromoléculas. Replicação primária: replicação viral que ocorre no início da
infecção de um hospedeiro, geralmente em sítios próximos ao
Radioimunoensaio: técnica de detecção de antígenos e local de penetração.
anticorpos que utiliza anticorpos específicos conjugados com
isótopos radioativos. Replicação semidescontínua: mecanismo de replicação do DNA
em que a síntese de uma das moléculas é realizada de forma
Reação sorológica cruzada: reação imunológica do soro que contínua e a outra de forma descontínua.
contém anticorpos contra um determinado agente, com antígenos
de outro agente antigenicamente semelhante. Replicação viral: denominação genérica para o processo de
multiplicação dos vírus.
Rearranjo: denominação genérica para alterações na seqüência
e estrutura de moléculas de ácidos nucléicos. Essa definição Replicase: enzima (polimerase de RNA) envolvida na replicação
abrange inserções, duplicações, deleções e outras alterações do genoma de vírus RNA.
genéticas.
Replicativo intermediário: molécula de DNA ou RNA que se
Reativação: retomada da replicação produtiva após um período constitui em um intermediário no processo de replicação do
de infecção latente. genoma.

Reatividade cruzada: o mesmo que reação sorológica cruzada. Replicon: molécula de ácido nucléico que contém as informações
para a sua própria replicação.
Receptor viral: molécula da superfície celular que serve de sítio
de ligação para os vírions. Reprodutibilidade: propriedade de uma técnica diagnóstica
em produzir resultados reproduzíveis ou idênticos quando
Recombinação: intercâmbio de seqüências genômicas entre dois repetida.
ou mais genomas.
Reservatório: o mesmo que hospedeiro natural.
Recombinação homóloga: recombinação entre moléculas de
DNA com seqüências semelhantes. Resolvases: enzimas envolvidas na fase final da replicação
do genoma de alguns vírus, em que as moléculas-filhas são
Recombinação intramolecular: intercâmbio de seqüências individualizadas pela clivagem de multímeros ou de moléculas
genômicas entre locais diferentes de uma mesma molécula de complexadas.
ácido nucléico.
884 Virologia Veterinária

Resposta celular: resposta imunológica mediada por células codificantes de aminoácidos). Também denominado RNA de
efetoras. sentido negativo, RNA de cadeia negativa ou simplesmente RNA
negativo. Possui seqüência complementar ao RNA mensageiro.
Resposta humoral: resposta imunológica mediada por
imunoglobulinas. RNA de polaridade positiva: RNA que é traduzido diretamente
pelos ribossomos; possui sentido de RNA mensageiro
Resposta imune: conjunto de mecanismos efetores desencadeados (contém as seqüências codificantes de aminoácidos). Também
em resposta à estimulação antigênica. denominado RNA de sentido positivo, RNA de cadeia positiva
ou simplesmente RNA positivo.
Resposta imune adquirida: resposta imune montada ativamente
pelo hospedeiro em resposta à exposição ao antígeno. RNA genômico: ácido nucléico que constitui o genoma viral.
Esse termo é utilizado para diferenciá-lo de outros RNAs virais
Resposta imune inata: conjunto de mecanismos inespecíficos que
produzidos durante o ciclo replicativo e que não são incluídos
compõem a defesa do organismo contra agentes patogênicos.
nos vírions.
Resposta imunológica: conjunto de mecanismos moleculares e
RNA intermediário: molécula de RNA que serve de
celulares produzidos pelo sistema imunológico do hospedeiro
intermediário na replicação do genoma. Possui polaridade
em resposta a exposição a um determinado agente.
inversa à do genoma.
Resposta primária: resposta imunológica montada pelo
RNA mensageiro (mRNA): RNA intermediário da síntese
hospedeiro em uma primeira exposição a um determinado
protéica. Produto da transcrição e de modificações co e pós-
antígeno.
transcripcionais (adição do cap, cauda poliA, splicing). RNA apto
Resposta secundária: resposta imunológica montada pelo a ser traduzido em proteína
hospedeiro em reexposições a um determinado antígeno.
RNA monocistrônico: molécula de mRNA que possui apenas
Ressortimento: evento de recombinação genética caracterizada uma seqüência codificante (ORF). Contém apenas um gene.
pela troca de segmentos genômicos entre dois ou mais vírus
RNA polimerases: enzimas que sintetizam RNAs a partir de um
durante uma co-infecção. Ocorre somente em vírus que possuem
molde DNA ou RNA.
o genoma segmentado.
RNA pol II: RNA polimerase celular que realiza a transcrição
Retículo endoplasmático: compartimento intracitoplasmático,
dos genes que codificam proteínas.
local de síntese de certas proteínas e em cujo lúmen essas
proteínas sofrem modificações. Sazonal ou estacional: padrão de ocorrência de uma doença,
em que variações de incidência ocorrem a intervalos anuais,
Retrógrado: relativo à direção do transporte neuronal (das
coincidentes com as estações do ano.
extremidades dos axônios ou dendritos para o corpo neuronal).
SDS-PAGE: técnica de análise de proteínas e de ácidos
Reversão à virulência: reaquisição do fenótipo virulento por um
nucléicos (de baixo peso molecular), que se baseia na separação
mutante viral atenuado.
eletroforética das moléculas em um gel de poliacrilamida.
Ribavirina: droga que possui atividade antiviral contra alguns
Sensibilidade: capacidade da técnica em detectar mínimas
vírus RNA.
quantidades do respectivo alvo (proteína, ácido nucléico, vírus
Ribonuclease: enzima que cliva e degrada moléculas de RNA. etc.).

Ribonucleoproteína: complexo formado por RNA genômico e Sentido negativo: o mesmo que polaridade negativa (RNA).
proteínas virais associadas.
Sentido positivo: o mesmo que polaridade positiva (RNA).
Ribonucleotídeo redutase: enzima envolvida do metabolismo
Seqüência-alvo: determinada região de uma molécula de DNA
de nucleotídeos para a síntese de DNA.
ou RNA a ser amplificada por PCR. É a seqüência compreendida
RNA: ácido ribonucléico. entre os dois primers.

RNA antigenômico: RNA com sentido contrário (complementar) Seqüência cis-acting: ver cis-acting.
ao RNA genômico. Também chamado de RNA complementar
Seqüência consenso: seqüência de nucleotídeos predominante
ou intermediário replicativo.
(ou mais freqüente) em vários isolados, amostras ou cepas de um
RNA complementar: molécula de RNA com seqüência mesmo vírus ou em clones de um mesmo vírus.
complementar ao genoma (também denominado RNA
Seqüência conservada: o mesmo que região conservada.
antigenômico).
Seqüência regulatória: denominação genérica para uma
RNA de polaridade negativa: RNA cuja seqüência não permite a
seqüência de nucleotídeos que serve para a ligação de fatores
sua tradução direta pelos ribossomos (não contém as seqüências
Glossário 885

de transcrição e enzima polimerase para o início da transcrição. Soropositivo: indivíduo que apresenta anticorpos específicos
Significado semelhante, porém mais abrangente e genérico do para um determinado agente. Em algumas infecções, a
que promotor e enhancer. soropositividade do animal indica a presença da infecção.

Seqüenciamento: determinação da seqüência de nucleotídeos Soroprevalência: prevalência de um determinado agente na


de uma molécula de ácido nucléico. população determinada pela detecção de anticorpos específicos.
É a freqüência relativa de animais com anticorpos contra um
Shift antigênico: alteração marcante no perfil antigênico de um agente em um determinado momento em uma população.
vírus, que resulta na falha de reconhecimento por anticorpos
produzidos contra o vírus original. Geralmente surge nos vírus Sorotipo: vírus ou grupo de vírus cujos membros apresentam
da influenza, fruto de ressortimento entre dois vírus diferentes reatividade sorológica cruzada entre si e que podem ser
com troca nos genes que codificam as glicoproteínas HA e NA. distinguidos sorologicamente de outros vírus ou grupos de
vírus.
Sinal de localização nuclear (NLS): seqüência de aminoácidos
presente em algumas proteínas que as direcionam para o núcleo Southern blot: técnica de detecção de DNA que se baseia
da célula. no princípio da hibridização e utiliza oligonucleotídeos
complementares a seqüências da molécula-alvo como sonda.
Sinal mitogênico: sinal químico (mediador) que determina o
início dos processos bioquímicos celulares que culminam com Splicing: mecanismo de processamento dos transcritos primários
a mitose celular. (RNA) resultantes da transcrição de genes descontínuos de
eucariotas, pelo qual os introns são removidos, e os exons são
Sincício: massa celular multinucleada resultante da fusão de religados entre si.
várias células.
Splicing alternativo: mecanismo pelo qual um transcrito pode
Sistema avidina-biotina: sistema de amplificação de sinal originar diferentes mRNAs (e diferentes proteínas) pela remoção
utilizado em testes de detecção de antígeno (e anticorpos) para diferencial de introns e ligação entre diferentes exons.
aumentar a sensibilidade. Baseia-se na grande afinidade e nos
vários sítios na biotina em que se ligam moléculas de avidina. Suabe: dispositivo composto por uma haste com material
absorvente na extremidade utilizado para coletar secreções
Sistema complemento: ver complemento. orgânicas para exames.

Sistema heterólogo: outra espécie de organismo (bactéria, Subclínica: sem manifestações clínicas perceptíveis.
levedura, célula de inseto).
Substrato: composto químico utilizado em testes
Sítios de privilégio: sítios ou locais no organismo que imunoenzimáticos, que sofre alterações químicas pela ação de
apresentam algum tipo de restrição ao acesso de células e enzimas.
moléculas envolvidas na resposta imunológica.
Substrato cromogênico: substrato que muda de coloração pela
Sonda: oligonucleotídeo sintético ou fragmento de DNA ou ação de enzimas específicas.
RNA conjugado com um marcador radioativo ou enzimático
utilizado para detectar seqüências específicas de ácidos nucléicos Substrato luminescente: substrato que emite luminosidade pela
em testes de hibridização. ação de enzimas específicas.

Soroconversão: produção de anticorpos contra um determinado Sulfato de heparina: molécula pequena conjugada com proteínas
antígeno ou agente. Termo também utilizado para designar de superfície de células de uma diversidade de tecidos. Faz parte
um aumento nos níveis de anticorpos contra um determinado do (ou se constitui no) complexo molecular utilizado como
antígeno ou agente. receptor para alguns vírus.

Sorogrupo: grupo de vírus que induzem em seus hospedeiros Surto: o mesmo que epidemia.
uma reatividade sorológica cruzada entre si e que pode ser
distinguida sorologicamente de outros grupos. Susceptibilidade: propriedade das células (ou do hospedeiro)
em permitir a infecção natural e multiplicação dos vírus.
Soro-hiperimune: soro animal que contém altos títulos de
anticorpos específicos contra um determinado antígeno ou Tapete celular: monocamada formada por células animais sobre
agente. a superfície dos frascos de cultivo.

Sorologia: denominação genérica de métodos destinados a Taq polimerase: DNA polimerase do organismo Thermophilus
detectar anticorpos específicos contra um agente em amostras aquaticus amplamente utilizada para amplificação de ácidos
clínicas (geralmente soro). nucléicos in vitro.

Soro-neutralização (SN): teste de detecção de anticorpos com TATA box: pequena seqüência de timidinas e adeninas localizada
atividade antiviral neutralizante. próxima ao sítio de iniciação da transcrição de inúmeros genes e
que faz parte do promotor destes genes.
886 Virologia Veterinária

Taxa de morbidade: freqüência de doença causada por um Trans-acting: produto cuja função é exercida à distância.
determinado agente em relação à população de risco exposta.
Transativador: proteína celular ou viral que atua estimulando
Taxa de mortalidade: freqüência de morte causada por um ou favorecendo a transcrição de genes.
determinado agente em relação à população de risco exposta.
Transcrição: síntese de moléculas de RNA de sentido positivo
Taxa de mutação: freqüência de mutação determinada pelo (mRNA) a partir de um molde RNA ou DNA.
número de mutações introduzidas por unidade genômica a cada
ciclo de replicação. Transcrição reversa: síntese de moléculas de DNA complementar
a partir de um molde RNA.
Tegumento: substância protéica amorfa presente entre o
nucleocapsídeo e o envelope dos herpesvírus. Transcriptases: enzimas virais responsáveis pela transcrição do
genoma dos vírus RNA (replicases).
TCR: receptor de linfócitos T.
Transcriptase reversa: enzima viral que sintetiza DNA a partir
Técnica sorológica: técnica de detecção de anticorpos. de um molde RNA.

Telomerase: enzima que replica as extremidades do DNA Transcrito: molécula de RNA resultante da transcrição.
cromossômico celular.
Transcrito associado à latência (LAT): transcrito RNA detectado
Template (molde ou modelo): molécula de DNA ou RNA no núcleo de neurônios durante a infecção latente pelos
utilizada como molde (ou modelo) pelas polimerases para a alfaherpesvírus.
síntese de moléculas exatamente complementares (moléculas-
filhas). Transcrito primário: produto inicial da transcrição (RNA), antes
de qualquer modificação.
Tendência secular: padrão de variação de doenças cuja incidência
varia lenta e discretamente ao longo de grandes períodos. Transestadial: transmissão de agentes através de diferentes
estágios de desenvolvimento (em organismos que as possuem
Termociclador: aparelho utilizado para a técnica de PCR. Produz em seu ciclo de vida).
ciclos contínuos, constituídos por três etapas, com temperaturas
diferentes, que proporcionam a ocorrência das três reações: Transfecção: introdução do genoma viral em células por meios
desnaturação, anelamento e extensão. artificiais para permitir a replicação.

Teste de Coggins: teste de imunodifusão em ágar, utilizado Transformação: alteração morfológica, bioquímica ou de padrão
como teste oficial de diagnóstico da anemia infecciosa eqüina. de divisão de uma célula.

Teste sorológico: teste de detecção de anticorpos. Transformação tumoral: transformação celular com
características fenotípicas de células neoplásicas, tumorais.
Timidina quinase (TK): enzima que fosforila a timidina para a
sua incorporação a moléculas de DNA. Transgênico: organismo geneticamente modificado que contém
gene(s) heterólogo(s).
Título: medida relativa da quantidade de vírus infecciosos ou de
anticorpos presentes em um determinado material. Transição: substituição de uma base purínica por outra purínica;
ou de uma pirimidina por outra pirimidina.
Título viral: medida indireta do número de partículas víricas
infecciosas presentes em um material. Translocação: transposição da membrana ou da separação
física entre compartimentos. Penetração do genoma viral no
Titulação: método de determinação do título viral. citoplasma ou no núcleo.

Tolerância imunológica: ausência de resposta imunológica Transmissão aérea: transmissão de agentes por meio de aerossóis
contra determinado antígeno. ou de pequenas partículas transportadas pelo ar.

Topoisomerase: enzima que altera o estado superenrolado Transmissão direta: transmissão de agentes pelo contato entre
do DNA, geralmente promovendo um relaxamento do as superfícies corporais.
tensionamento por clivagem de uma ou das duas cadeias.
Transmissão horizontal: transmissão de agentes entre
Toróide: forma semelhante a um fuso, porém sem a extremidade indivíduos, proporcionada pela convivência e contato.
afilada.
Transmissão iatrogênica: transmissão de agentes entre
Tradução: decodificação do código genético pelos ribossomos, hospedeiros por procedimentos médicos.
em que cada seqüência de três bases (códon) é convertida em
um aminoácido. Processo de síntese de proteínas a partir da Transmissão indireta: transmissão de agentes entre hospedeiros
seqüência de nucleotídeos do mRNA. por intermédio de seres animados ou de objetos inanimados.
Glossário 887

Transmissão perinatal: transmissão de agentes da mãe para a Vacina de peptídeos sintéticos: vacina constituída por peptídeos
progênie durante ou nas proximidades do parto. sintéticos (pequenas seqüências de aminoácidos) correspondentes
aos epitopos imunodominantes do agente de interesse.
Transmissão transovariana: transmissão de agentes dos
progenitores para a progênie por meio dos gametas. Vacina deletada: vacina que contém o agente com deleção em
um ou mais genes.
Transmissão transplacentária: transmissão de agentes da fêmea
para os embriões ou fetos através da placenta. Vacina diferencial: o mesmo que vacina com marcador
antigênico.
Transmissão vertical: transmissão de agentes dos progenitores
para a progênie. Vacina de DNA: vacina composta por moléculas de DNA que
contém o gene da proteína contra a qual se deseja produzir
Transporte anterógrado: transporte de macromoléculas do corpo resposta imunológica.
neuronal em direção às extremidades dos axônios ou dendritos.
Vacina inativada: vacina que contém o agente inativado,
Transporte axoplasmático rápido: transporte rápido de inviável, não-replicativo.
macromoléculas ao longo de axônios.
Vacina monovalente: vacina que contém antígenos de apenas
Transporte retrógrado: transporte de macromoléculas das um agente.
extremidades dos axônios ou dendritos em direção ao corpo
neuronal. Vacina multivalente: vacina que contém antígenos de vários
agentes.
Transversão: mutação que resulta na substituição de uma purina
por uma pirimidina ou vice-versa. Vacina morta: o mesmo que vacina inativada.

Tripsina: enzima utilizada para individualizar células de tecidos Vacina não-replicativa: vacina que não contém o agente
e de cultivo. replicativo.

Tropismo: predileção de um vírus por determinadas células, Vacina polivalente: o mesmo que vacina multivalente.
tecidos ou órgãos.
Vacina viva modificada: o mesmo que vacina atenuada.
Ubiquitina: proteína celular utilizada como marcador para
proteínas destinadas à degradação. Vacinação: imunização ativa pela administração de preparações
de antígenos.
Unidade formadora de placa: unidade de medida referente
à quantidade de partículas infecciosas presentes em uma Vacinação perifocal: vacinação realizada em populações de
suspensão viral. indivíduos localizadas ao redor de um foco de uma doença
infecciosa, para impedir que o agente se dissemine a partir do
Unidade transcripcional: segmento de DNA que abrange foco.
a região transcrita por um evento de iniciação, elongação e
terminação de transcrição. Vacúolo: vesícula intracelular.

UTR (NTR): região não-traduzida do genoma. Vacuolização: formação de vacúolos intracelulares.

Vacina: preparação de antígenos utilizada para induzir resposta Variação antigênica: variação nos componentes de superfície
imunológica específica no hospedeiro. (epitopos) que são reconhecidos pelos mecanismos efetores do
sistema imunológico (anticorpos e linfócitos T).
Vacina atenuada: vacina que contém o agente viável, porém
com patogenicidade e virulência reduzidas. Variação cíclica: variação na incidência de uma determinada
doença que ocorre ciclicamente a intervalos maiores do que um
Vacina atenuada por deleção: vacina replicativa que contém ano.
o agente atenuado pela deleção de genes envolvidos com a
virulência. Variante viral: vírus com alguma diferença fenotípica em relação
ao vírus parental.
Vacina com marcador antigênico: vacina que induz uma
resposta sorológica diferenciável da resposta induzida pela Variolação: procedimento empírico de imunização de pessoas
infecção natural. contra a varíola, em que crostas e líquido de vesículas de pessoas
doentes eram administrados a indivíduos susceptíveis para
Vacina de proteínas recombinantes: vacina constituída por imunizá-los.
proteínas virais produzidas em organismos recombinantes
(bactérias, leveduras). Vazio sanitário: período em que uma determinada área,
propriedade ou instalação é deixada sem animais para se
assegurar da inexistência de possíveis agentes patogênicos
anteriormente presentes.
888 Virologia Veterinária

Veículo: o mesmo que fômite. Vírus atenuado: vírus com patogenicidade e virulência reduzidas
(ou abolidas).
Velogênica: denominação dada a amostras muito patogênicas
do NDV. Vírus citolítico (ou lítico): vírus cuja replicação resulta em lise e
destruição celular.
Vetor bacteriano: bactéria utilizada para carrear genes
heterólogos (virais) com fins vacinais. Vírus citopatogênico (ou citopático): vírus cuja replicação
resulta em patologia celular (citopatologia).
Vetor biológico: inseto que participa biologicamente da
transmissão de um agente infeccioso. O agente geralmente Vírus com marcador antigênico: vírus que possui uma
é amplificado ou desenvolve alguma fase do seu ciclo no composição protéica diferente do vírus parental e que, por isso,
organismo do vetor para, então, ser transmitido. induz no hospedeiro uma resposta sorológica que pode ser
distinguida da resposta montada contra o vírus parental.
Vetor mecânico: inseto que participa apenas mecanicamente da
transmissão de um agente infeccioso. Vírus de campo: o vírus original que circula na natureza.
Constitui-se no vírus parental com o qual os mutantes e variantes
Vetor vacinal: organismo que carreia genes heterólogos (de são comparados.
outro organismo) e é utilizado para imunizar hospedeiros.
Vírus DNA: vírus que possuem o ácido desoxirribonucléico
Via de excreção: via pela qual os agentes infecciosos são (DNA) como genoma.
excretados do hospedeiro.
Vírus emergente: vírus que assumiu importância recentemente.
Via de penetração: via pela qual os agentes infecciosos penetram
no hospedeiro. Vírus helper: vírus que complementa determinadas funções e
permite a replicação de vírus defectivos.
Vigilância epidemiológica: conjunto de atividades utilizadas
para monitorar continuamente a situação epidemiológica de Vírus heterólogo: vírus de outra espécie viral ou outra cepa.
uma determinada doença em uma população.
Vírus homólogo: vírus da mesma espécie viral e/ou mesma
Viremia: presença de vírus no sangue. cepa.

Viremia ativa: viremia derivada da replicação viral em tecidos Vírus pH-dependente: vírus cuja fusão e penetração na célula
do hospedeiro. hospedeira dependem da redução do pH, ocorrendo em
compartimentos intracelulares.
Viremia passiva: viremia derivada da introdução direta dos
vírus no sangue. Vírus pH-independente: vírus cuja fusão e penetração na célula
hospedeira ocorrem independentemente de redução de pH.
Viremia primária: viremia que se segue à replicação primária.
Ocorre precocemente durante a infecção. Vírus RNA: vírus que possuem o ácido ribonucléico (RNA)
como genoma.
Viremia secundária: viremia derivada da replicação viral
nos órgãos e tecidos-alvo. Ocorre mais tardiamente durante a Vírus temperatura sensível (TS): variante viral que não replica
infecção. com eficiência sob a temperatura corporal.

Vírion: unidade estrutural dos vírus; partícula vírica completa, Vírus vetor: vírus utilizado para carrear informação genética
infecciosa. Também denominada partícula viral. (genes) de outros vírus ou organismos.

Viroplasma: local intracelular de replicação e morfogênese dos Vitronectina: componente protéico de membranas plasmáticas
vírus. O mesmo que fábrica viral. celulares, utilizado como receptor ou co-receptor por alguns
vírus.
Virose: denominação genérica das doenças causada por vírus.
Zoonose: doença infecciosa transmissível entre os animais e o
Virossomo: estrutura citoplasmática grande onde ocorrem várias homem.
etapas do ciclo replicativo dos reovírus. Contém proteínas e
ácidos nucléicos virais, capsídeos em diversas fases de maturação Western blot: técnica imunoenzimática de detecção de
e membranas celulares. proteínas.

Virulência: propriedade que se refere à gravidade da doença


causada pelo agente.

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