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Alice de Oliveira Viana

Em busca da casa perdida: a cabana primitiva segundo Laugier e Semper

Em busca da casa perdida: a cabana primiti-


va segundo Laugier e Semper
In search of the lost house: the primitive hut according to Laugier and
Semper

Alice de Oliveira Viana*

*Doutora em Arquitetura e Ur- Resumo Abstract


banismo pela Faculdade de O presente trabalho pretende cotejar duas investi- This paper aims to compare two theoretical in-
Arquitetura e Urbanismo da gações teóricas sobre a casa primordial, que reno- vestigations on the primordial house that re-
Universidade de São Paulo varam as discussões sobre o tema em Arquitetura: newed the discussions on the subject in the ar-
(FAUUSP). Professora da a de Marc-Antoine Laugier e a de Gottfried Sem- chitectural field: that of Marc-Antoine Laugier and
Universidade do Estado de per. Em ambos, a habitação primitiva é uma caba- that of Gottfried Semper. In both, the primitive
Santa Catarina (UDESC). na, produto humano, pensado e fabricado pelos dwelling is a hut, a human product, designed and
ORCID: 0000-0002-7328- homens e, com isso, sujeito à reflexão teórica. In- manufactured by men and, therefore, subject to
9795 satisfeitos com a condição contemporânea da Ar- theoretical reflection. Dissatisfied with the con-
quitetura, avaliando o momento como uma época temporary condition of Architecture, evaluating
de desvirtuamento na prática arquitetônica, Laugi- the moment as a time of distortion in architec-
er e Semper, cada um em sua época, usaram tural practice, Laugier and Semper, each in their
essa casa imaginada como estratégia discursiva own time, used this imagined house as a discur-
para propor modificações em seu meio. Nesses sive strategy to propose changes in their field. In
autores, a imagem da cabana e o discurso sobre these authors, the image of the hut and the dis-
ela serviram, em grande medida, como um expe- course about it served, to a great extent, as an
diente para tempos percebidos como de crise. expedient for times of crisis.

Palavras-chave: Arquitetura. Habitação primiti- Keywords: Architecture. Primitive dwelling. Ar-


va. Teoria da arquitetura. chitectural theory.

Recebido: 22/04/2020
Aceito: 22/06/2020
https://doi.org/10.37916/arq.urb.v28i.423

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Em busca da casa perdida: a cabana primitiva segundo Laugier e Semper

Introdução

A busca da casa dos primeiros habitantes do Vitrúvio e retomada por seguidores modernos deste
planeta, tema que Joseph Rykwert investiga em último. Nas reflexões de Laugier e Semper, distan-
A casa de Adão no Paraíso (2003), foi uma cons- tes em um intervalo de cem anos, a primeira casa é
tante inquietação de muitos estudiosos, praticantes a habitação dos primeiros indivíduos, conquistada
e amantes da Arquitetura. Desde os princípios da mediante a construção de uma cabana. Ou seja,
teoria da Arquitetura na tradição ocidental, conjec- trata-se de um produto humano, algo pensado e fa-
turar a primeira morada foi atitude recorrente em bricado pelos primeiros habitantes, que usaram
tratados e escritos teóricos. Para muitos, a suposta suas habilidades para atender a suas diferentes ne-
proximidade com as origens consubstanciaria certa cessidades. E justamente por ser um produto do ho-
verdade originária, certa incorruptibilidade que mem, talvez fosse possível deduzir premissas sub-
guardaria os princípios da própria disciplina arqui- jacentes à prática.
tetônica. Buscá-la, ou melhor, imaginar essa casa,
foi necessário toda vez que, na história da Arquite- Ambos estudiosos, admiradores e envolvidos, cada
tura, foi preciso perscrutar os fundamentos da dis- um a seu modo, com a Arquitetura, e insatisfeitos
ciplina. com a condição contemporânea deste campo do
saber e da prática construtiva, usaram essa casa
O presente trabalho pretende pôr em destaque imaginada como estratégia discursiva para propor
duas investigações sobre a casa primordial: a do modificações em seu meio. Entendendo o momento
sacerdote jesuíta Marc-Antoine Laugier (1713- como uma época de desvirtuamento na prática ar-
1769) e a do arquiteto e teórico Gottfried Semper quitetônica, tanto o sacerdote quanto o arquiteto ti-
(1803-1879). Seus escritos deram continuidade a nham no discurso da casa uma espécie de reação à
uma prática discursiva iniciada com o tratado de arquitetura que estava sendo praticada em sua épo-
ca,

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esses
ca respectivamente, as experimentações do roco- esses abrigos teriam sido feitos como os ninhos das
có e do barroco tardio, de meados do século XVIII, andorinhas ou cavernas sob os montes, com o cons-
e do ecletismo de meados da centúria seguinte, e, tante refinamento dos sistemas de construção e o
por isso, endereçaram sua mensagem aos arquite- aprimoramento do juízo humano, deixaram de ter o
tos e àqueles de algum modo envolvidos com ar- aspecto de simples cabanas, construções instáveis e
quitetura e construção. precárias, e tornaram-se casas, “com alicerces, cons-
truídas com paredes de tijolo ou de pedra e cobertas
A casa vitruviana e seus herdeiros por madeira e telha”. Seus construtores, em seguida,
teriam passado “dos juízos vagos e incertos, à certa
O tratado de Vitrúvio, datado do século I a.C, é o racionalidade das comensurabilidades, através das
texto mais antigo que até nós chegou da chamada observações das obras” (2007, p.116).
Antiguidade Clássica e, em grande medida, consis-
te na fonte de boa parte das narrativas sobre a Notam-se, nesse importante trecho, premissas fun-
casa primordial na tradição ocidental. No capítulo damentais a circunscrever o domínio da disciplina –
primeiro do segundo livro do De Architectura Libri a transformação do abrigo precário original em uma
Decem (VITRÚVIO, 2007), o surgimento da habita- casa propõe diferenciar a esfera da architectura da-
ção humana é associado à descoberta do fogo. quela da aedificatio. A primeira distinguindo-se pela
Em um relato mítico sobre as origens, o autor sus- busca da comensurabilidade, princípio da beleza no
tenta que foi a constatação da vantagem da reu- De Architectura, e que, no contexto do tratado anti-
nião dos corpos ao redor do calor do fogo que le- go, afirmaria a arquitetura como uma arte liberal,
vou à reunião entre os homens, ao surgimento da distinta dos ofícios mecânicos, a envolver o juízo e a
vida em sociedade e da linguagem falada. A vida reflexão humana. Marca igualmente essa distinção
sedentária daí decorrente teria acarretado a neces- a transformação de um sistema construtivo precário
sidade de uma proteção, a qual foi resolvida não para um mais durável, que na narrativa vitruviana
com a ocupação de uma caverna ou com a explo- delineia-se como a petrificação dos elementos es-
ração de um refúgio natural, mas com a constru- truturais originais em madeira, teoria que o autor le-
ção coletiva de um abrigo para morar. gitima com o princípio da imitação e que no tratado
adquire relevância no exame dos templos religiosos.
Na célebre passagem, Vitrúvio destaca a importância
do ingegno humano, mediante a observação e imita- No Renascimento, com a redescoberta e revaloriza-
ção da natureza e o contínuo exercício dos indivíduos ção dos escritos de Vitrúvio, a narrativa sobre as ori-
no aperfeiçoamento de seus abrigos. Se inicialmente gens da Arquitetura adquire nova importância como

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tema
tema especulativo. No primeiro tratado arquitetôni- O tratado de Alberti, dedicado aos temas e precei-
co da era moderna, o De Re Aedificatoria (escrito tos que regem a arte da edificação, pouco se detém
entre 1443 e 1452), destinado a emular o texto de na especulação sobre as origens da disciplina. De
seu antecessor, o tema não deixa de comparecer. modo contrário, nos tradutores e comentadores de
Seu autor, o humanista florentino Leon Battista Al- Vitrúvio dos séculos XV e XVI, vê-se surgir uma
berti, que tomou conhecimento dos escritos do ar- grande fortuna da ideia da cabana primitiva 1. Estan-
quiteto romano e teceu sobre eles comentários e do já estabelecida a autoridade de Vitrúvio, sobretu-
críticas, não investe em uma narrativa mítica, con- do após a contribuição e mediação de Alberti, inter-
soante ao que fez Vitrúvio, mas apresenta notas pretar o texto do arquiteto romano – e nele a passa-
esparsas que mantêm a fundamentação principal gem sobre as origens da Arquitetura –, do qual as
da construção de um abrigo nas necessidades hu- imagens foram perdidas e a escrita em si se mostra-
manas e na atuação coletiva dos indivíduos. va deveras obscura, era estratégia para o estabele-
cimento de um preceituário arquitetônico e para a
dignificação da Arquitetura como uma arte liberal,
No discurso de Alberti, não foi o fogo o responsá-
1. Para maior aprofundamento não mais um ofício mecânico, como havia sido du-
acerca das especulações so- vel por reunir os indivíduos, mas antes a necessi-
rante a Idade Média2.
bre a cabana primitiva no Re- dade de proteção contra as intempéries, que levou
nascimento, conferir ANDRA- à criação de tetos e paredes. Para o erudito, a arte
DE (2017).
2. As tentativas de tradução, surgiu do acaso e, assim como no autor do De Ar- Grande parte dos interlocutores do texto vitruviano,
comentários e referências ao chitectura, progrediu com a observação, a imita- haja vista as idiossincrasias de cada um, comentou e
autor latino se apresentavam ção, a prática e, sobretudo, o raciocínio, faculdade ilustrou sua narrativa sobre as origens3, narrando a
com muitas dificuldades, im-
postas à tradução de uma es- mental que, para Alberti, distinguiria a atividade do descoberta do fogo, bem como a construção coletiva
crita que, na acepção crítica arquiteto daquela associada aos ofícios mecânicos dos primeiros abrigos e seu aperfeiçoamento em algo
de Alberti, não era culta, “de (ALBERTI, 2012). Do escrito de Alberti, averígua- mais durável. Tais avanços construtivos costumeira-
modo que os latinos diriam
que quis parecer grego e os se que, também no Renascimento, a distinção en- mente foram fundamentados não só no aprimoramen-
gregos, latino”, eram muitas tre uma cabana primitiva, de materiais precários e to da prática, mas também no uso de habilidades
(ALBERTI, 2012, p. 213).
provisórios, e uma habitação mais durável, perene, mentais do homem. Desta literatura, pode-se citar, por
3. Muitos procuraram adaptar
fundada sobre o alicerce da razão, da imitação e exemplo, a primeira tradução comentada e ilustrada
tal narrativa àquela contida
nas sagradas escrituras. de preceitos racionais, fixa os principais parâme- do tratado de Vitrúvio, de autoria de Cesare Cesariano
4. Respectivamente, “Di Lucio tros de reconhecimento e distinção da chamada e que surge em 1521, e também o tratado de Antonio
Vitruvio Pollione De architectura arte edificatória. Averlino, dito Filarete, textos cujas ilustrações sobre
libri dece: traducti de latino in
vulgare, affigurati, comentati” e
este tema fizeram parte da rica iconografia renascen-
“Trattato di architettura”. tista4 (Figuras 1 e 2).
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víduos.
Nessa literatura renascentista, mesmo em alguns
escritos do século XVII – como no “Les Dix Livres No campo teórico da Arquitetura, essa atitude crítica
d’Architecture de Vitruve”, traduzido e “corrigido” com relação à tradição é observada nos escritos de
pelo arquiteto Claude Perrault (1613-1688), do ano Marc-Antoine Laugier, caracterizado por Emil Kauf-
de 1673 –, a narrativa sobre as origens da Arquite- mann (1952, p.448) como um “típico representante
tura e a especulação sobre uma cabana primitiva do Iluminismo”, e cujos escritos “exemplificam as
apresentam-se como um dos muitos esforços da tendências arquitetônicas de meados do século
exegese vitruviana, das tentativas de compreen- XVIII”. Em seu Essai sur l’Architecture, surgido em
der, ou mesmo revisar, o texto antigo, não apre- meados do século, consoante Rykwert (2003, p.41),
sentando, no discurso de seus autores, mais do “as origens desfrutavam de uma autoridade única” e
que uma ligação superficial com os princípios da a noção de uma cabana primitiva adquire uma “prio-
disciplina, ou seja, seu propósito distanciava-se da ridade absoluta” (2003, p.35), como padrão de ex-
tentativa de estabelecer novos fundamentos para a celência a guiar a criação e também o julgamento
Arquitetura (RYKWERT, 2003). Situação diversa das obras arquitetônicas.
se instaurará no chamado século das Luzes, em
que o exame das origens adquire novo valor no
A primeira edição do Essai apareceu em 1753, pu-
Figura 1 – A descoberta do fogo. Cesare Cesariano, movimento geral de revisão da tradição e de seus
1521. Fonte: CESARIANO, 1521. Domínio público. blicada de forma anônima pelo autor, e, devido ao
pressupostos.
sucesso obtido, foi logo seguida de uma segunda
edição, dois anos depois, com ampliações e ilustra-
La petite cabane rustique de Marc-Antoine
ções, desta vez com a identificação da autoria.
Laugier
Trata-se de um tratado que, como colocam Váz-
Foi no século XVIII que o tema das origens da Ar- quez Ramos e Tourinho (2015, p.173), se por um
quitetura e a investigação sobre uma primeira casa lado segue a tradição dos tratados franceses do sé-
adquiriram uma importância considerável, em culo XVII, como os de Jean-Louis de Cordemoy
grande medida como parte do interesse iluminista (1655-1714) e do mencionado Claude Perrault, por
pelas causas primeiras e pela “certeza” das ori- outro questiona criticamente a tradição, sobretudo a
gens. Naquele contexto, a busca pelas origens in- “legitimidade impositiva dos exemplos do passado”
tegrava as estratégias de revisão dos pressupostos – uma vez que a cópia dos modelos antigos se
Figura 2 – A construção da cabana primitiva. Cesare
Cesariano, 1521. Fonte: CESARIANO, 1521. Domínio
tidos como dados pela tradição e contribuía na mostrava como prática comum da Academia Fran-
público.
construção de novos princípios explicativos acerca cesa à época.
de costumes, hábitos e práticas culturais dos indi-

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de
No contexto amplo, o Essai reage às extravagânci- de dados, mas sim de uma abordagem especulativa
as e arbitrariedades formais e decorativas do roco- e apriorística; trata-se de “uma hipótese fundada no
có e do barroco tardio, que para o autor estavam que logicamente deve ter ocorrido, associando o ló-
distorcendo as formas simples e puras da Arquite- gico ao cronológico” (COLQUHOUN, 2004, p.46).
tura e desvirtuando-a de seus sólidos princípios.
Tais princípios, para ele, estavam fundados em leis Não obstante tal proximidade entre o selvagem do
fixas e imutáveis que se encontravam na “simples filósofo e aquele do sacerdote, Laugier, diversamen-
natureza” e que eram de aprovação geral por se- te de Rousseau, não aborda a vida primitiva de um
rem sancionadas pela razão, ao invés do mero ponto de vista moral, não intenciona descrever um
gosto ou costume (1755). A arte, para o sacerdote, indivíduo em meio à natureza confortado com a sa-
deve seu surgimento à imitação desta simples na- tisfação de seus instintos e suas necessidades,
tureza e de seus procedimentos; evitam-se todos tampouco pretende incentivar os contemporâneos a
os erros e desvios acercando-se desta simplicida- retornar a essa condição “natural” (RYKWERT,
de e pureza originárias – tal é a premissa que Lau- 2003). Pelo contrário, a narrativa das origens surge
gier procura firmar logo no início de seu tratado, ao em seu tratado mais como uma crítica à situação
narrar como supostamente a Arquitetura surgiu contemporânea e uma referência para a elaboração
(1755). de princípios válidos para a prática da boa Arquite-
tura.
No capítulo inicial do Essai, não casualmente intitu-
lado “Princípios Gerais da Arquitetura”, o autor Diversamente ao observado nos escritos de Vitrú-
apresenta uma narrativa sobre o homem primitivo vio, esse capítulo inicial do Essai não vincula as ori-
vivendo em seu ambiente natural e “sem outro guia gens à descoberta do fogo, mas igualmente descre-
que o instinto natural de suas necessidades” ve um indivíduo confrontado com a necessidade de
(1755, p.10). Assim como ocorre com a ideia do guardar-se das intempéries e dos fenômenos da na-
nobre selvagem descrito por um contemporâneo tureza. Tal primitivo busca, sem sucesso, uma pro-
de Laugier, o filósofo Jean-Jacques Rousseau teção natural. Após tentativas de ocupação de ca-
(1712-1778), o primitivo de Laugier e a cultura pri- vernas e abrigos naturais, nos quais variadas incon-
mitiva por ele imaginada, de um modo geral, não veniências não lhe davam a proteção e satisfação
consistem, como lembra Alan Colquhoun (2004, desejadas, decide ele mesmo construir um abrigo.
p.46), na “descoberta empírica de um verdadeiro Recolhe quatro fortes troncos encontrados no solo,
vernáculo”. Ou seja, não se trata de uma concep- ergue-os perpendicularmente e os dispõe em uma
ção empírica do primitivo, resultada da apreensão espécie de quadrado. Sobre o topo ele coloca

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mais ele-
mais quatro troncos horizontalmente e em seguida elementos compositivos e a forma final do abrigo
ergue um telhado, formado de peças inclinadas e primitivo teriam sido plenamente desenvolvidos pe-
reunidas em um ponto e coberto com folhas, de los gregos, os quais, mediante reflexão e aprimora-
modo a se proteger tanto do sol quanto da chuva mento, teriam levado o modelo da cabana à perfei-
(LAUGIER, 1755). ção artística no tipo do templo períptero. Se por um
lado, esse ponto de vista de Laugier dá continuida-
Assim o religioso descreve a origem da Arquitetura. A de à crença tradicional, derivada de Vitrúvio e per-
“petite cabane rustique”, tornada célebre pela gravura petuada nos textos da tradição renascentista, de
de Charles Eisen (1720-1778) elaborada para a se- que o templo grego, em pedra polida, teria derivado
gunda edição do Essai (Figura 3), tratava-se da reso- sua morfologia e relações métricas diretamente de
lução natural e instintiva das necessidades desse ho- um primeiro abrigo construído em matéria lígnea,
mem primitivo e tinha cada uma de suas partes asso- por outro, coloca-se em confronto com essa mesma
ciada àquilo que ele entendia como os elementos es- herança ao assumir a primordialidade da arquitetura
senciais da composição da Arquitetura, as quais de- helênica. Tal postura, de outra forma, o coloca em
veriam servir de modelo para toda criação: colunas, consonância às reflexões de Johann Joachim Winc-
entablamento e frontão (LAUGIER, 1755). kelmann, seu contemporâneo. Para Winckelmann
(1955), a arquitetura helênica seria a origem de toda
arquitetura ocidental e de todas as invenções artísti-
Figura 3 – A cabana primitiva segundo O modelo originário de Laugier é concebido com
Laugier, 1755. Fonte: LAUGIER, 1755. cas, as quais teriam sido em seguida copiadas pe-
Domínio público. base na imitação de elementos essenciais deriva-
los romanos e distorcidas na época moderna. Con-
dos da natureza, em que cada uma das partes
soante, esclarece Azevedo (2009, p.53, grifo do au-
atenderia a uma razão natural. É imitando este mo-
tor), no Essai,
delo que se alcançavam todas as virtudes em Ar-
quitetura:
especula-se o trilhamento regressivo de uma ve-
reda pela qual, remontando-se aos romanos, e,
a pequena cabana rústica que eu acabo de des-
destes, aos helênicos e daí até a mais remota
crever é o modelo sobre o qual nós imaginamos
ancestralidade, à medida que mais se retroage à
todas as magnificências em Arquitetura, é se
pureza incorrupta das origens, mais se acerca do
aproximando da execução da simplicidade des-
verdadeiro, do natural. A construção originária
te primeiro modelo que se evitam todos os de-
em rústica madeira – mais tarde perenizada em
feitos essenciais, que se alcançam as reais per-
polido mármore e ajustada ao cânone da medida
feições (LAUGIER, 1755, pp.12-13).
humana – fixa, imutável, a forma (eidós) pela
qual se consubstanciaria o arquétipo imaculado
No desenvolvimento histórico da Arquitetura, os da verdadeira Arquitetura.

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Apesar de advogar que tal verdadeira Arquitetura Nesse sentido, os elementos essenciais da Arquite-
era encontrada na reunião das partes essenciais, tura, que compuseram a cabana tal qual construída
estritamente indispensáveis – coluna, entablamen- pelo primitivo e que seriam as partes da edificação,
to e frontão –, estando aí toda sua beleza, Laugier são para ele as próprias ordens clássicas. Destas,
(1755) não deixa de admitir a possibilidade da exis- ele reconhece apenas três – dórica, jônica e coríntia
tência de partes que ele indica como necessárias, –, mas, atento à relevância assumida pelo papel do
as quais seriam toleráveis em virtude de uma ne- gosto na época, exorta os arquitetos contemporâne-
cessidade de uso, como, por exemplo, portas, ja- os a inventarem novas, desde que suas partes
nelas e vedações. Tais elementos ele aponta como atendam estritamente à conveniência à utilidade, tal
licenças, termo que, como lembra Rykwert (2003, como fora na gênese. Frontões, por exemplo, deve-
p.41), “na antiga teoria da arquitetura foi aplicado riam ser triangulares e localizarem-se acima do en-
em relação aos caracteres ornamentais que não tablamento, na largura das edificações, nunca em
eram consagrados pela antiguidade”, estando as- sua parte longitudinal. Entablamentos deveriam es-
sociado, no período do Renascimento, mais ao ca- tar sobre as colunas e serem retilíneos, sem angula-
priccio, àquilo que foge à norma, do que à razão. ções e relevos. E colunas, aprumadas, preferencial-
mente isoladas, sem pedestal e cilíndricas – “por-
que a natureza não faz nada quadrado” (LAUGIER,
Se nas partes introduzidas pela necessidade do
1755, p.16). Dessas três partes, a coluna é aquela a
uso encontram-se as licenças aceitáveis, naquelas
que ele dedica maior atenção em seu texto. Tendo
acrescentadas por puro capricho e arbitrariedade
em vista que paredes seriam apenas toleráveis
estaria tudo aquilo que é inaceitável, todos os de-
como vedação e proteção, e considerando a reitera-
feitos e falhas da Arquitetura (LAUGIER, 1755),
da ênfase que o autor concede à unidade formal
condenados pelo sacerdote, tal como arcos, áticos,
das ordens clássicas, a coluna é elemento substan-
pilastras, pedestais, nichos, frontões interrompidos
cial em seu discurso, tornando-se “mais que o com-
ou curvos, entre outros elementos bastante explo-
ponente estrutural da construção, o epítome estrutu-
5. Alan Colquhoun (2004, rados nos monumentos barrocos, que não se en-
p.47) define o classicismo de rante de toda Arquitetura” (AZEVEDO, 2009, pp.54-
contravam na cabana primeira e, deste modo, cujo
Laugier como um “classicismo 55).
vernáculo”, no sentido de “um emprego não se justificava.
processo pelo qual o classicis-
mo, nos termos de sua própria O impacto das propostas de Laugier fez-se sentir
teoria de linguagem, recria Em seu discurso, Laugier parte do próprio edifício
suas próprias origens”, bus- logo após a publicação do Essai, o qual foi “aclama-
clássico para confrontá-lo e restabelecê-lo sobre
cando as fontes puras e incor- do e avidamente lido por toda a Europa” e recebido
novos alicerces5.
ruptas da arquitetura clássica. por muitos como um “panfleto revolucionário” (MID-
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DLETON;
DLETON; WATKIN, 1987, p.20). A partir de sua di- Gottfried Semper e a cabana caribenha
vulgação, muitas arquiteturas procuraram ilustrar
suas ideias, as quais, em grande medida, se torna- De modo distinto ao do autor do Essai, Gottfried
ram “a ordenação arquitetônica do Iluminismo” Semper era arquiteto, tendo em muito se envolvido
(RYKWERT, 2015, p.35). De não menor repercus- com a parte prática da Arquitetura, atividade que
são foram suas propostas no campo da teoria da sempre que possível foi conciliada com suas férteis
Arquitetura. O sucesso da obra fez do sacerdote investigações teóricas e com o ensino 7. Em seus
jesuíta “um dos pensadores mais lidos e respeita- escritos, a especulação sobre uma casa primordial
dos pelos arquitetos mais avançados de sua época aparece pela primeira vez em sua segunda obra pu-
e do século XIX” (VÁZQUEZ RAMOS; TOURI- blicada, Die vier Elemente der Baukunst [Os quatro
NHO, 2015, p.171) e contribuiu para formar discí- elementos da Arquitetura], e segue como fio condu-
pulos em vários países europeus – um dos mais tor de sua teoria até a publicação da opus magnum,
célebres, Quatremère de Quincy, secretário perpé- Der Stil [O Estilo], obra de maturidade, publicada
tuo da Academia de Beaux-Arts6 - que sustentaram em dois volumes (1860 e 1863), e na qual ele pro-
o ideal da imitação clássica da cabana em suas cura apresentar, de modo unitário, seu pensamento
orientações teóricas ao menos até as primeiras dé- teórico.
cadas do século seguinte.

Publicada em 1851, no começo de seus anos de


6. Sobre as reflexões de Qua- Em meados do século XIX, se a perspectiva idea- exílio, Die vier Elemente é uma obra organizada em
tremère de Quincy acerca da lista de Laugier perde vigor, tendo em vista sobre- duas partes8. A primeira parte contém suas ideias
cabana primitiva, conferir PE-
tudo os aportes do historicismo alemão, a postura sobre a policromia clássica – tema que agitou as
REIRA (2010).
7. Semper foi professor em de retorno às origens, de busca de uma casa an- principais cidades europeias nas primeiras décadas
instituições de ensino em cestral da Arquitetura, como meio de ancorar pro- do século XIX – e é delineada como uma espécie
Dresden, Londres e Zurique.
postas teóricas, ainda vai encontrar novas reformu- de resposta do autor às assertivas de um de seus
Para maior aprofundamento
de sua trajetória profissional, lações no pensamento de um dos mais importan- grandes adversários, o historiador Franz Theodor
conferir MALLGRAVE (1996). tes estudiosos da Arquitetura, o arquiteto e teórico Kugler (1808-1858), defensor da tese winckelmania-
8. Em 1849, Semper teve que
hamburguês Gottfried Semper, cujo discurso pro- na da brancura da arquitetura clássica, sobretudo
abandonar os territórios de lín-
gua alemã por conta de seu curou contrapor as formulações do sacerdote fran- aquela da Acrópole ateniense, proposição que
envolvimento na insurgência cês. Semper veementemente refutou e procurou contes-
contra a coroa de Dresden,
tar ao longo de toda sua carreira. A segunda parte,
durante as revoluções que
ocorreram nas principais cida- que se inicia no quinto capítulo e que ele procura in-
des europeias entre 1848-9. corporar teoricamente à primeira, apresenta ao pú-
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blico, uma
blico, pela primeira vez, sua teoria da Arquitetura, uma “história cultural da humanidade”, abarcando
baseada em suas reflexões sobre a habitação pri- variados fatos antropológicos, tais como os costu-
mitiva, a casa dos primeiros habitantes. mes, crenças, hábitos, artefatos, habilidades, práti-
cas religiosas, vida doméstica e pública, entre ou-
A cultura primitiva ali delineada é diversa daquela tros aspectos culturais dos homens, examinados
que o sacerdote francês traçou no Essai aproxima- desde os primórdios, ou seja, desde as culturas pri-
damente cem anos antes. A teorização do autor de mitivas.
Die vier Elemente sustenta-se sobre os estudos
contemporâneos das culturas primitivas levados a No quarto volume da sua Culturgeschichte, Klemm
cabo por campos científicos então emergentes, (1845, p.289) descreve as habitações dos primeiros
como a etnologia e a história da cultura. Deste indivíduos como “cabanas quadrangulares com um
modo, sua cabana não é um simples produto da telhado de duas águas pendentes”, elevadas do
imaginação, tampouco é uma elaboração apriorísti- solo mediante uma plataforma em pedra e cujas
ca; pelo contrário, ela funda-se sobre bases inves- “paredes laterais consistem de materiais trançados”.
tigativas reais, as quais serviam para traçar parale- No centro da cabana, um local para o fogo, no qual
los conceituais com o passado remoto. Como es- “dia e noite uma pequena chama é mantida ininter-
clarece Rykwert (2015, p.36), Semper parte dos ruptamente”. Tal descrição é muito próxima à que
“primitivos ‘modernos’”, cujas práticas e cultura ma- Semper apresenta no quinto capítulo de seu Die
terial na época serviam de analogia para os primiti- vier Elemente. São estas quatro partes da cabana
vos antigos, já que as cabanas e o modo de vida descrita por Klemm que irão compor os quatro ele-
destes últimos não poderiam ser reconstituídos. mentos da habitação primitiva de Semper: um telha-
do de duas águas, uma plataforma elevada, divisóri-
Dentre os estudos sobre as culturas primitivas, as verticais e um local para o fogo.
uma das prováveis referências de Semper foram
os escritos etnológicos elaborados por Gustav Essas partes não assumem igual relevância no dis-
Klemm, com os quais, segundo Mallgrave (1985), curso do autor; de todas, uma importância particular
o arquiteto provavelmente teve contato durante os é conferida ao local do fogo: “é o primeiro e mais im-
anos que morou e trabalhou na cidade de Dres- portante, o elemento moral da arquitetura” (SEM-
den. Klemm é o responsável pela elaboração de PER, 1851, p.55), em torno do qual surgem, sobre-
uma vasta obra literária, a Allgemeine Culturges- tudo com o propósito de proteção contra ataques de
chichte der Menschheit (1843-1852), apresentada inimigos e intempéries, os outros três elementos.
em dez volumes, e que tinha a pretensão de ser Tal importância atribuída ao fogo é assim justificada

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por mente
por Semper (1851, p.55): mente não necessariamente partes ou formas mate-
riais; o que ele delineia como “elementos” é antes
ao redor do fogo os primeiros grupos se reuni- pensado como “motivos originários” da Arquitetura
ram; nele as primeiras alianças se teceram; nele [Urmotiven], ou seja, ideias arquitetônicas originári-
os primeiros rudes conceitos religiosos foram as, princípios criativos e simbólicos que permitem
formulados nos usos culturais de um culto. Por
variações e interpretações diversas dependendo
todas as fases de desenvolvimento da socieda-
de o fogo formou o ponto sagrado ao redor do das particularidades geográficas, climáticas e cultu-
qual o todo tomava ordem e forma. rais de cada sociedade ou grupo cultural. Trata-se
de forças criativas que correspondem a gestos ou
O local do fogo é o elemento que não somente procedimentos de fabricação artística – por exem-
aquece e serve para o preparo de alimentos, mas, plo, elevar do solo, no caso da plataforma, ou deli-
sobretudo, reúne os indivíduos tendo em vista pro- mitar, encerrar, no caso da divisória. Essas forças,
pósitos culturais diversos – mormente religiosos. É reificadas, resultam nas quatro configurações arqui-
o responsável pelo surgimento da vida em socie- tetônicas acima elencadas: o telhado, a plataforma,
dade e pela condução a uma vida civilizada, pre- as divisórias e um local para o fogo. Dependendo
missas que, se não se observam explicitamente no das variáveis, é possível que não exista um dos ele-
tratado de Laugier, aproximam Semper do pensa- mentos, ou que haja maior desenvolvimento de ou-
mento vitruviano, na medida em que ambos confe- tro.
rem um papel nobre à chamada arte edificatória,
ao coincidirem a origem da Arquitetura com a ori- Outra notável divergência com a cabana neoclássi-
gem da vida em sociedade. ca apresenta-se no fato de Semper ter rejeitado
uma origem lígnea a sua casa, bem como sua pos-
Não obstante essa afinidade à tradição vitruviana, terior transformação integral em pedra. Para o teóri-
a teorização semperiana caracteriza-se mais pelo co, uma cabana de madeira não poderia ser a ori-
distanciamento, tanto das premissas do arquiteto gem da Arquitetura, tampouco o princípio – no duplo
romano, quanto, sobretudo, de suas interpretações sentido que este termo acolhe – do templo grego
e revisões posteriores, como aquela do sacerdote em pedra. Herdeiro de uma tradição de pensamento
francês. Uma das principais divergências é que a que desde princípios do século XIX vinha conside-
casa ancestral concebida por Semper não preten- rando a importância da abordagem dos aspectos
dia ser um protótipo formal a ser perseguido e re- materiais na Arquitetura, Semper concebeu que
produzido. Ao se referir à habitação primitiva como para cada parte formal de sua cabana haveria um
constituída por quatro partes, o autor tinha em material e um ofício específicos, mais adequados ao
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rência
propósito construtivo; ou seja, os motivos foram rência a conceitos secundários” (SEMPER, vol.1,
por ele associados às operações técnicas das ar- 1860, p.227). Essa premissa, que em grande medi-
tes aplicadas: ao local do fogo foi associada a ce- da coloca o autor como um dos precursores na as-
ele
râmica e o ofício com argila; à divisória vertical, fi- sociação moderna entre arquitetura e espaço, vai
bras têxteis e o trabalho de trançados ou tecela- ao encontro de sua perspectiva antropológica, pois
gem; à plataforma elevada foi associada a pedra e a parede, ao separar um dentro e um fora, separa a
o ofício da estereotomia ou trabalho com alvenaria vida interna da externa, ou seja, ela define o espaço
de pedras; ao telhado vinculou-se a madeira e a ocupado, o espaço habitado. Logo, a parede sem-
carpintaria9. periana não consiste em uma licença, em um expe-
diente tolerável em virtude dos usos e das necessi-
dades humanas, como se observava na petite ca-
Igualmente atestando a refutação do discurso neo-
bane rustique; sem ela, não há vida social.
clássico sobre as origens da Arquitetura encontra-
se o fato de o teórico também abdicar de atribuir à
coluna o papel de protagonista em sua cabana, Com a proposta da cabana semperiana, cuja con-
contrariamente à posição do sacerdote francês. cepção, em princípios da década de 1850, Semper
Compondo uma unidade junto ao telhado de duas encontrou uma notável confirmação no exemplar de
águas, na qual ela assume o propósito de susten- uma cabana caribenha (figura 4) exposta na grande
tação, nas especulações semperianas a coluna exposição industrial londrina de 1851, Semper “de-
perde o posto para a parede divisória. Esta, que no moliu o protótipo da concepção clássica da Arqui-
Essai consistia em um dos elementos toleráveis do tetura, a cabana vitruviana, e colocou em seu lugar
rigorismo de Laugier, em Semper, maleável, móvel o conceito pluralista dos quatro elementos (fogo,
e formada pela textura ornamental do entrelaça- cerca, telhado, plataforma) como tipos originários
9. Uma das referências de mento de fibras têxteis, seria o elemento definidor da Arquitetura” (GEORGIADIS, 1992, p.61). Mas,
Semper foram os escritos do
historiador da arte Karl Friedri- da Arquitetura, pois, segundo ele, estaria associa- assim como se nota no discurso clássico, a cabana
ch von Rumohr (1785-1843), da à criação do espaço. Para Semper, a essência de Semper não seria considerada Arquitetura, ape-
que advogava pela considera- da Arquitetura estaria no encerramento de um es- nas seu estágio material. Para o teórico, a transfor-
ção de fatores como necessi-
dade, propósito e material na paço10. Tal ideia, apresentada no Die vier Elemen- mação para materiais mais duráveis não somente
apreciação e fabricação de te e desenvolvida posteriormente no Der Stil, é não era fenômeno exclusivo grego, como consistia
obras. Cf. RUMOHR (vol. 1, neste último assim colocada: “a parede é aquele em um processo que, superando as necessidades
1827).
10. Para maior aprofundamen- elemento arquitetônico que formalmente evoca e materiais, atendia também a exigências de ordem
to desse assunto, conferir VEN identifica externamente aos olhos o espaço cerca- simbólica. Para Semper (vol.1, 1860), e também
(1978). do como tal, por assim dizer, absoluto e sem refe- para seu predecessor francês, a verdadeira arquite-
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tura
tura é e deve ser da ordem do monumento. Tais metáforas sugeridas pela gravura de Eisen
apontam para os pressupostos com os quais o sa-
Considerações Finais cerdote procurava confrontar as afetações do roco-
có e do barroco tardio, bem como as cópias dos
modelos antigos produzidas pelos membros da
Haja vista as particularidades teóricas e discursivas
Academia. Já Semper (1834, p.VII) tentava, com
de cada autor, ambos procuraram resoluções para
suas reflexões, fazer face à prática corrente dos ar-
os dilemas que observavam em sua época medi-
quitetos de seu tempo de produzir um “Walhalla à la
ante o retorno às origens da Arquitetura. De certo
Parthenon, uma basílica à la Monreale, um boudoir
modo, não somente os discursos, mas também as
à la Pompeia, um palácio à la Pitti, uma igreja bizan-
imagens de habitação primitiva aos autores associ-
tina, ou mesmo um bazar ao gosto turco”. Suas
adas têm contribuições a sugerir acerca disso. Na
contendas dirigiam-se às expressões arquitetônicas
gravura de Charles Eisen (conferir figura 3), a figu-
oitocentistas e seus expedientes de imitação de ma-
ra feminina, alegoria da Arquitetura – compasso e
teriais e cópias dos estilos do passado. A cabana
esquadro à mão, trajando roupas antigas e senta-
caribenha com que ele se deparou na grande expo-
da sobre fragmentos de arquitetura clássica –,
sição londrina (conferir figura 4), como observado,
aponta para a cabana de madeira, como que a in-
não consiste em um padrão a seguir, no entanto,
dicar a direção da boa Arquitetura. Entre os frag-
ela ilustra parte das reflexões de Semper.
mentos e a cabana, a meio caminho, atrás da per-
na direita da figura feminina, nota-se parte de um
fuste polido, ainda sem caneluras, como a indicar o De acordo com Mallgrave (1996), tratava-se de ca-
aperfeiçoamento gradual pelo trabalho do homem, bana exposta em escala real no stand expositivo
que se conclui com o fuste canelado do primeiro das ilhas de Trinidad e Tobago. No Der Stil (1863,
plano. Os fragmentos não parecem consistir em p.276) Semper chama a atenção do leitor para este
ruínas, pelo contrário, a impressão é de serem pe- exemplar, uma vez que era possível notar ali os mo-
ças finalizadas, à espera da força humana, bem tivos primordiais da Arquitetura em “seu modo mais
Figura 4 – A cabana caribenha encontrada por Semper,
1860. Fonte: SEMPER, 1863. Domínio público. como dos princípios racionais que irão ordená-las puro e original”: um pequeno local em cerâmica
– algo que parece caber à figura feminina, que as- para o fogo, um telhado de bambu compondo uni-
sinala a fonte de tais princípios. O único fragmento dade com os pilares que o sustentam, uma platafor-
que aparenta não estar destinado à construção é o ma elevada e divisórias verticais de fibras trança-
trecho de pilastra, pois encontra-se parcialmente das, formando padrões decorativos e pendidas en-
soterrado, e, como observado, consistia em artifí- tre os suportes do telhado. No entendimento do au-
cio condenado por Laugier. tor, observar a condição originária, no sentido da
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consideração
consideração das técnicas primordiais e das carac- Referências
terísticas de cada material, assim como da com-
preensão do propósito e das forças simbólicas por ALBERTI, Leon Battista. Da arte de construir. Tra-
trás de cada motivo, permitiria acompanhar e anali- tado de Arquitetura e Urbanismo. São Paulo: Hedra,
sar o desenvolvimento dos motivos em obras pos- 2012.
teriores. Além disso, esses fatores somados à
atenção às particularidades externas em termos de
ANDRADE, Francisco Dias de. A imagem da caba-
geografia, clima, cultura, entre outras, poderiam
na primitiva no Renascimento e a gênese da noção
auxiliar a evitar formas sem atenção ao propósito e
de arquitetura vernacular. Urbana, Campinas, vol.9,
carentes do sentido de adequação. Pode-se dizer
n.2, pp. 267-296, mai/ago 2017. Disponível em:
que, sob a perspectiva semperiana, aí estaria a
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/ur-
chave para o caminho da boa Arquitetura.
bana/article/view/8648611. Acesso em:
18.dez.2019.
A leitura atenta das reflexões trazidas pelos dois
autores mostra-se em grande medida oportuna,
AZEVEDO, Ricardo Marques de. Antigos moder-
sobretudo tendo em vista momentos em que o ho-
nos: estudo das doutrinas arquitetônicas nos sécu-
rizonte da arquitetura se mostra incerto, sem leme
los XVII e XVIII. São Paulo: Fauusp, 2009.
ou direção. Tanto para Laugier quanto para Sem-
per, a casa primordial era um recurso para tempos
percebidos como de crise, e, em sua imagem esta- COLQUHOUN, Alan. Modernidade e tradição
ria a chave para a relação entre passado e presen- clássica: ensaios sobre arquitetura, 1980-1987.
te da Arquitetura. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

GEORGIADIS, Sokratis. Sempers schwierige Rück-


kehr aus dem zweiten Exil. Werk, Bauen + Woh-
nen, Zürich, n.79, vol.4, pp. 61-62, 1992.

KAUFMANN, Emil. Three revolutionary architects,


Boullée, Ledoux, and Lequeu. Transactions of the
American Philosophical Society, Filadélfia, vol.42,
p. 448, 1952.

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Em busca da casa perdida: a cabana primitiva segundo Laugier e Semper

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1852. ra. São Paulo: Perspectiva, 2003.

LAUGIER, Marc-Antoine. Essai sur l’architecture. RYKWERT, Joseph. A coluna dançante: sobre a
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MALLGRAVE, Harry Francis. Gustav Klemm and SEMPER, Gottfried. Die vier Elemente der
Gottfried Semper: the meeting of ethnological and Baukunst: ein Beitrag zur vergleichenden
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79,1985. SEMPER, Gottfried. Der Stil in den technischen
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Aesthetik. Ein Handbuch für Techniker, Künstler
MIDDLETON, Robin; WATKIN, David. Neoclassi-
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Enlightenment in France and in England. London:
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SEMPER, Gottfried. Der Stil in den technischen
und tektonischen Künsten, oder, Praktische
PEREIRA, Renata Baesso. Quatremère de Quincy
Aesthetik. Ein Handbuch für Techniker, Künstler
e a ideia de tipo. RHAA, Campinas, n.13, pp. 55-
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Revista
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WINCKELMANN, Johann Joachim. Historia del


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