Você está na página 1de 126

CLASSES E MOVIMENTOS SOCIAIS

Neste livro são encontradas as principais categorias explicativas e al-


guns dos principais autores (clássicos e contemporâneos) que contribuem
para o entendimento do debate das lutas de classe e sua relação com a
constituição dos movimentos sociais no Brasil e na América Latina.
Esta obra favorece o acesso a fatos e fenômenos históricos, econômi-
cos, culturais, territoriais e sociais que demarcaram a história das lutas de
classe, bem como aos novos elementos que permeiam o debate atual des-
sa temática. Também favorece compreender de modo mais aprofundado
a relação do Serviço Social com os movimentos sociais, principalmente no
que diz respeito ao exercício da cidadania, da democracia e da efetivação
do usufruto dos direitos constitucionais.

MIRIAN CRISTINA LOPES

Fundação Biblioteca Nacional Código Logístico


ISBN 978-85-387-6604-9

9 788538 766049 59263


Classes e movimentos
sociais

Mirian Cristina Lopes

IESDE BRASIL
2020
© 2020 – IESDE BRASIL S/A.
É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do
detentor dos direitos autorais.
Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: Abscent/ Shutterstock

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
L854c

Lopes, Mirian Cristina


Classes e movimentos sociais / Mirian Cristina Lopes. - 1. ed. - Curiti-
ba [PR] : IESDE, 2020.
122 p.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-387-6604-9

1. Estrutura social. 2. Movimentos sociais. 3. Capitalismo - Aspectos


sociais. I. Título.
CDD: 306.342
20-63421
CDU: 316.344.2

Todos os direitos reservados.

IESDE BRASIL S/A.


Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200
Batel – Curitiba – PR
0800 708 88 88 – www.iesde.com.br
Mirian Cristina Lopes Mestre em Sociologia pela Universidade Federal do
Paraná (UFPR). Especialista em Análise da Questão
Social pela UFPR e graduada em Serviço Social pela
mesma instituição. Professora em instituições de ensino
superior, produtora de materiais didáticos, palestrante
e ministrante de cursos de capacitação continuada em
instituições públicas e privadas. Atua na implantação
de projetos de extensão comunitária e como técnica
de Serviço Social. Temas de interesse: políticas sociais,
novas alternativas em educação e elites políticas e suas
relações com a desigualdade brasileira.
Vídeos
em
QR code!
Agora é possível acessar os vídeos do livro por
meio de QR codes (códigos de barras) presentes
no início de cada seção de capítulo.

Acesse os vídeos automaticamente, direcionando


a câmera fotográfica de seu smartphone ou tablet
para o QR code.

Em alguns dispositivos é necessário ter instalado


um leitor de QR code, que pode ser adquirido
gratuitamente em lojas de aplicativos.
SUMÁRIO
1 A construção sócio-histórica dos movimentos sociais  9
1.1 O que são movimentos sociais   10
1.2 O sujeito político dos movimentos sociais   13
1.3 Movimentos sociais na desconstrução da ideologia burguesa   18
1.4 Características dos movimentos sociais   21
1.5 Movimentos sociais e a dimensão sócio-histórica   24
1.6 Movimentos sociais no contexto capitalista   30

2 Movimentos sociais e perspectivas teóricas  36


2.1 Abordagem teórica dos movimentos sociais   36
2.2 A influência das teorias marxistas clássicas nas abordagens
teóricas sobre os movimentos sociais   38
2.3 A influência da tradição marxista nas abordagens teóricas sobre os
movimentos sociais, após a década de 1960   47
2.4 A influência dos teóricos clássicos estadunidenses nas abordagens
teóricas sobre os movimentos sociais  52
2.5 A década de 1960 e as novas influências nas abordagens teóricas
sobre os movimentos sociais   54

3 A construção dos sujeitos políticos na sociedade de classes  62


3.1 As origens da organização sociopolítica na perspectiva de
classes   62
3.2 A influência da cultura política na organização sociopolítica   67
3.3 A organização sociopolítica na perspectiva de classes e de outros
grupos identitários  72
3.4 Novas configurações no campo de luta   75

4 Os movimentos sociais contemporâneos  85


4.1 A banalização dos direitos políticos e dos demais direitos
fundamentais   85
4.2 A criminalização dos movimentos sociais   89
4.3 As novas estratégias de reorganização e resistência dos
movimentos sociais   95
5 O Serviço Social e os movimentos sociais  101
5.1 O projeto ético-político do Serviço Social e os movimentos
sociais   101
5.2 A experiência do Serviço Social junto aos movimentos
sociais   105
5.3 Políticas públicas, Serviço Social e movimentos sociais   110

6 Gabarito   117
APRESENTAÇÃO
A compreensão dos elementos fundantes das lutas de classe é
imprescindível ao Serviço Social, visto que é com base nela que se fundamenta
toda a construção ético-política, teórico-metodológica e técnica-operativa da
profissão. Trata-se, portanto, de uma temática que deve ser indissociável do
processo formativo de assistentes sociais.
Nesse sentido, exaltamos a importância deste livro e a prioridade de sua
leitura, visto que nele são encontradas as principais categorias explicativas e
alguns dos principais autores (clássicos e contemporâneos) que contribuem
para o entendimento do debate das lutas de classe e sua relação com a
constituição dos movimentos sociais no Brasil e na América Latina.
Além disso, esta obra favorece o acesso a fatos e fenômenos históricos,
econômicos, culturais, territoriais e sociais que demarcaram a história das
lutas de classe, bem como aos novos elementos que permeiam o debate atual
dessa temática. Também favorece compreender de modo mais aprofundado
a relação do Serviço Social com os movimentos sociais, principalmente no
que diz respeito ao exercício da cidadania, da democracia e da efetivação do
usufruto dos direitos constitucionais.
Para que a leitura não seja exaustiva, o livro foi produzido de modo didático,
no sentido de facilitar o entendimento. Está dividido em cinco capítulos
que dialogam entre si, ampliando a perspectiva do leitor acerca de classes
e movimentos sociais. Na mesma linha, são apresentadas dicas de outros
referenciais para aprofundamento, como livros, artigos, filmes, documentários
e materiais diversos que podem contribuir com seus estudos e pesquisas.
Em suma, trata-se de um livro construído com base na perspectiva crítica,
ou seja, demarcado por uma visão de mundo que se orienta pelo projeto
ético-político do Serviço Social brasileiro. Norte que vislumbra uma prática
profissional balizada por um projeto societário de luta permanente contra a
desigualdade social. Portanto, desejamos que a leitura seja proveitosa e que
possa estimular a busca por aprofundamentos.
Bons estudos!
1
A construção sócio-histórica
dos movimentos sociais
Este capítulo reserva a você a oportunidade de compreender
os movimentos sociais e sua importância diante da criação e or-
ganização da vida em sociedade. Para tal, apresenta fatos e fenô-
menos sociais, históricos, econômicos, culturais e territoriais, bem
como conceitos e categorias explicativas que ajudarão no entendi-
mento amplo acerca dos movimentos sociais e de sua construção
sócio-histórica.
Na mesma direção, oferece elementos que contribuirão para
a desconstrução de concepções equivocadas que, porventura,
tenham como base informações simplistas ou naturalizadas. Isso
não quer dizer que somente com este capítulo você será capaz de
atingir um aprofundamento pleno sobre a temática, afinal, aden-
trar a história da Constituição e da práxis dos movimentos sociais
também envolve submergir na história da construção social das
sociedades em geral.
O capítulo enfatiza, assim, a importância da emergência e da
permanência dos movimentos sociais com relação à organização
das sociedades como conhecemos hoje. Enfatiza, também, a im-
prescindível atuação desses movimentos na criação e no exercí-
cio da cidadania, da democracia e da efetivação do usufruto dos
direitos constitucionais. Trata-se de uma introdução aos marcos
interpretativos que possibilitam, de algum modo, instituirmos a
atribuição de sentido e significado aos movimentos sociais.

A construção sócio-histórica dos movimentos sociais 9


1.1 O que são movimentos sociais
Vídeo O entendimento do conceito de movimento social pode ser bastante
complexo. Primeiramente porque nenhum conhecimento de mundo é
neutro, ou seja, diferentes tipos de vivência geram diferentes interes-
ses e, portanto, diferentes olhares sobre o mundo e as coisas que o
compõem. Em outras palavras, cada compreensão acerca do que são
movimentos sociais resulta em variadas conceituações, intrinsecamen-
te relacionadas ao lugar de fala de quem as constrói (origem, cultura,
status social, motivações).

Há também que se avaliar que essas conceituações existem em dis-


tintos campos de estudo, e nenhum deles está livre da disseminação
de informações simplistas ou naturalizadas. Isso se complexifica ainda
mais na contemporaneidade, dada a velocidade com que as informa-
ções são criadas, compartilhadas e destituídas ou substituídas (estrate-
gicamente ou não).
Outro fator importante diz respeito ao abraçamento tardio do as-
sunto pelo universo acadêmico, o que significa que o estudo e a concei-
tuação acerca dos movimentos sociais ainda são muito recentes e, de
1 certo modo, reduzidos se comparados a outros conhecimentos sociais.
Faz referência ao conhecimento Se também considerarmos que a ciência tradicional ainda caminha a
adquirido por meio da vivência passos lentos, no que se refere ao intuito de valorar e proporcionar
e/ou da observação. Como se 1
trata do conhecimento que lugar de voz ao conhecimento empírico , podemos dizer que existe a
oriunda da experiência humana, possibilidade de que os conceitos criados até então sobre os movimen-
e não de experiências científicas tos sociais apresentem fragilidades.
comprovadas, é também
denominado senso comum. Os estudos dos movimentos sociais localizam-se majoritariamente
no campo das ciências sociais, no qual é possível identificar diferentes
Glossário posicionamentos. Podemos sinalizar como ponto nevrálgico do deba-
nevrálgico: em sentido te a origem dos movimentos sociais, dado que a sua demarcação exata
figurado, quer dizer crucial; depende do entendimento de cada autor.
central; ponto mais importante
de uma questão. Caso considerássemos qualquer mobilização coletiva como um movi-
mento social, seria possível demarcar esse surgimento nos primórdios
da história. Um exemplo explícito são as lutas sociais que se desen-
rolaram na Roma Antiga, entre a última década do século VI a.C. e o
começo do século V a.C. Logo após a queda da Monarquia e a institui-
ção da República, o povo romano se manifestou por meio de revoltas
populares ao verificar que suas demandas não eram consideradas pelo
novo Estado estabelecido (PLUTARCO, 1951).

10 Classes e movimentos sociais


Essas mobilizações da plebe romana resultaram na criação do Tribu-
no do Povo, um tipo de cargo estatal para garantir a representatividade Curiosidade

dos plebeus. É uma das revoltas mais conhecidas na história da Roma Para exemplificar a questão,
observemos as Mães da Sé, que
Antiga, por se tratar de um marco na construção da cidadania romana.
reúnem mães de filhos desapa-
Nessa linha de análise, portanto, toda ação de um grupo organizado recidos a manifestarem-se na
Praça da Sé (São Paulo/SP) e em
que objetiva alcançar mudanças sociais por meio do embate político outros cantos do mundo. Elas
é conceituado como movimento social. Com base nesse pressuposto, buscam notícias sobre o para-
um movimento social teria como propósito uma ou mais alterações no deiro de seus filhos e reclamam
contra a ineficiência do Estado
modo como a sociedade institui algum processo. A ação social em si, diante do desaparecimento de
nessa perspectiva, é considerada um movimento social, isto é, refere- crianças no Brasil. Contudo,
ainda que as Mães da Sé estejam
-se ao modo como a sociedade se movimenta (toda mobilização, ação,
organizadas e institucionali-
batalha ou revolta organizada). zadas por meio da Associação
Brasileira de Busca e Defesa a
Por outro viés de análise, manifestações, atos, protestos e marchas Crianças Desaparecidas (ABCD),
políticas configuram-se como ações sociais geradas por movimentos não se configuram enquanto
um movimento social, visto
sociais. São estratégias criadas para expressar insatisfações, articular
que não questionam a raiz da
membros e dar visibilidade às pautas de luta. Podem ser compreendi- estrutura social imposta (papéis,
das como ações políticas que geram ou não o nascimento de movimen- posições, funções, instituições,
organizações, sistemas etc.).
tos sociais, bem como resultam ou não da organização deles. Assim, o
Obtenha mais informações na
movimento social seria o grupo organizado, e não a ação desenvolvida. página oficial, disponível em:
http://www.maesdase.org.br/
Enfatizado que não existe uma única perspectiva sobre os movi- Paginas/default.aspx. Acesso
mentos sociais, que o desafio de determinar seu surgimento é perma- em: 22 jun. 2020.
nente e que esse debate está longe de ser esgotado, cabe agora expor
o que são movimentos sociais e como se organizam. Percorreremos,
para tanto, uma leitura de mundo mediada pela teoria crítica da Escola
de Frankfurt, mais precisamente sob os critérios analíticos do materia- 2
2 Entende-se como materialismo
lismo histórico-dialético de Karl Marx .
histórico-dialético a teoria
Nossas contribuições ao estudo de classes e movimentos sociais, crítica criada por Karl Marx, que
oferece um arcabouço capaz de
desse modo, estarão em consonância com o método de investigação
proporcionar análises mais apro-
da vida proposto por Karl Marx, ou seja, com o entendimento da so- fundadas e amplas acerca da
ciedade pela análise de sua totalidade, sem desconsiderar as particu- realidade social. Essa teoria rom-
pe com diversas outras, como a
laridades que constituem o seu todo (elementos culturais, históricos, funcionalista e a positivista. Para
territoriais, políticos, econômicos e sociais). Considera-se que a vida é Marx, as teorias existentes eram
limitadas e equivocadas, visto
dinâmica, contraditória e em constante movimento, transformando-se
que consideravam o mundo e o
e se materializando historicamente conforme os fenômenos sociais se sistema social estático, fatalista e
relacionam com as forças sociais que os geram. messiânico.

A construção sócio-histórica dos movimentos sociais 11


Consequentemente, temos como ponto de partida a compreensão
dos movimentos sociais como coletivos de poucos ou muitos sujeitos
que se aproximam e permanecem unidos por uma identidade social,
questionam a estrutura social vigente, constroem projetos de socieda-
de segundo o que acreditam ser mais justo. Coletivos que, por meio de
ações sociais, se organizam para expressar na sociedade modos de ver o
mundo e reivindicar politicamente respostas às demandas que lhes são
pertencentes (majoritariamente, lutar por condições adequadas de vida).
Movimentos sociais são ações coletivas de caráter sociopolítico,
construídas por atores sociais pertencentes a diferentes classes
e camadas sociais. Eles politizam suas demandas e criam um
campo político de força social na sociedade civil. Suas ações es-
truturam-se a partir de repertórios criados sobre temas e pro-
blemas em situações de conflitos, litígios e disputas. As ações
desenvolvem um processo social e político-cultural que cria uma
identidade coletiva ao movimento, a partir de interesses em
comum. Essa identidade decorre da força do princípio da solida-
riedade e é construída a partir da base referencial de valores cul-
turais e políticos compartilhados pelo grupo. (GOHN, 2000, p. 13)

Vemos na explicitação desse conceito, em linhas gerais, que um mo-


vimento social é mais do que um ato organizado coletivamente. Sua
complexidade se caracteriza por dimensões que norteiam embates po-
líticos, valores, ideais, tensões sociais, construções identitárias, estraté-
gias planejadas, um projeto societário, articulações em rede, inscrição
na história e estruturas organizacionais (lideranças, comitês, brigadas,
partidos e veículos de comunicação).
São mais que uma simples revolta (as jacqueries camponesas),
mais que um grupo de interesses (câmara de comércio), mais
que uma iniciativa com autonomia do Estado (ONGs). Os movi-
mentos nascem da percepção de objetivos como metas de ação,
mas para existirem no tempo necessitam um processo de insti-
tucionalização. (TOURAINE, 1999, p. 112)

Dada a complexidade que constitui um movimento social, para


compreendê-lo, é preciso verificar as estruturas sociais nas quais ele
emerge, resiste e se manifesta. Dito de outro modo, toda sociedade
funciona sob as rédeas de determinados grupos (elites econômicas e
políticas), desenvolve-se tendo em vista contextos políticos, econômi-
cos, históricos, culturais e territoriais bem específicos, além de se fun-
damentar em valores e crenças diversas e estabelecer relações sociais
constantemente tensionadas por disputas de classe.

12 Classes e movimentos sociais


1.2 O sujeito político dos movimentos sociais
Vídeo É um equívoco conceituar ou buscar compreender os movimentos
sociais sem considerar que cada sociedade vivencia um tipo de moder-
nidade, uma forma de governo e diferentes processos com relação à
formação de sujeitos sociais. Isso nos remete ao fato de que a constitui-
ção dos movimentos sociais também é demarcada por aspectos econô-
micos, geográficos e territoriais.

Nessa linha de análise, há uma categoria explicativa que merece


atenção especial: a formação do sujeito político, o ser que constrói –
segundo vivências e conjunturas estruturais peculiares – e encaminha a
ação. Entendemos, então, que o sujeito da ação social se difere de acor-
do com o meio e o território em que vive, as oportu-
nidades de ação de seu tempo e suas experiências. Saiba mais
A respeito da construção do sujeito político, nes- O capitalismo é um sistema
sa perspectiva, torna-se mais fácil a visualização das econômico e social cuja ori-
gem ocorreu sob a influência
motivações que permeiam a criação dos movimen-
das ideias iluministas e
tos sociais e, portanto, sua legitimidade. Assim se liberalistas. É uma proposta
descortina a raiz dos movimentos sociais, que nas- de desenvolvimento da so-
ciedade com base na ideia do
cem do real vivido, sendo possível compreender o fortalecimento das liberdades,
porquê de se comprovarem necessários. principalmente quanto ao livre
comércio com intervenção
Para melhor explicitar a questão, tomemos o mo- estatal mínima e à liberdade
vimento dos trabalhadores como exemplo em que do estabelecimento da pro-
priedade (da terra e de outros
esses elementos se mostram aparentes. O movi-
bens). O sistema instaura a
mento do proletariado nasceu no século XIX devido divisão de classes (burguesia
às péssimas condições de trabalho e vidas imputa- versus proletariado) entre os
que detêm os meios para a
das pelo sistema capitalista. A construção da luta
produção e os que possuem
contra a exploração dos trabalhadores emergiu da apenas a força de trabalho
necessidade, visto que a pobreza extrema se alarga- para sua sobrevivência.
Diferentemente de todos os
va e, com ela, surgiam novas problemáticas sociais. regimes de governo e modos
Esse contexto se revela de modo drástico na de economia anteriores, o ca-
pitalismo instaura a exploração
maioria das sociedades, uma vez que o capitalismo do homem pelo homem de
se reconfigurou em meados do século XIX, passan- maneiras complexas e contra-
ditórias. Trata-se de um divisor
do de sua forma mercantilista originária (comercial)
temporal no que se refere às
para um modelo mais elaborado, o sistema indus- tipificações de modos de vida
trial. Se com a expansão marítima e colonial (prá- social, político, econômico e
cultural.
ticas que demarcaram os primórdios do sistema

A construção sócio-histórica dos movimentos sociais 13


Filme capitalista) o mundo já sentiu o braço dos processos exploratórios, na
sua segunda fase, o capitalismo instaurou níveis ainda mais complexos
de exploração. Inaugurou-se a era da divisão internacional do trabalho,
medida estratégica de alta exploração com os objetivos de reduzir in-
vestimentos e ampliar ainda mais os lucros.

O mundo foi dividido segundo as necessidades de empoderamento


do sistema capitalista. De um lado, grandes metrópoles se ergueram e
se instituíram enquanto produtoras de mercadorias em grande escala.
Demarcou-se, então, o poderio das elites por sua propriedade dos meios
Sugerimos o filme de produção, assumindo o posto de centro do mundo. Do outro lado,
Germinal, produzido pelo
escritor Émile Zola, que houve o lugar de servidão dos países colonizados, campo de exploração
proporciona a visualiza- de matérias-primas e de mão de obra (em maioria, quase escrava).
ção dos níveis desuma-
nos da exploração do As grandes metrópoles se anunciaram como modelos de desenvol-
sistema capitalista no
período histórico do seu
vimento para o mundo. O processo de produção industrial inviabilizou
surgimento. os tradicionais métodos de vida que a sociedade conhecia: a produção
Direção: Claude Berri. Bélgica, Itália, artesanal, já no início dessas mudanças, foi banida – aos artesãos, só
França: Renn Productions, 1993.
restou a oferta da mão de obra. A vida rural camponesa também foi
inviabilizada, levando famílias inteiras para os grandes centros indus-
triais em busca de alguma chance de emprego e salário. Culturas, há-
Glossário bitos, tradições e símbolos foram drasticamente alterados, e a vida em
pauperismo: extrema pobreza; sociedade nunca mais foi a mesma.
miséria; paupérie.
Após a revolução tecnológica industrial, o capitalismo se tornou a
única possibilidade de subsistência. As cidades industriais surgiram
3
sem planejamento adequado e sem trabalho e emprego para a maio-
Friedrich Engels assumiu, na In-
ria. Houve, portanto, o acentuamento do pauperismo, da violência
glaterra, a direção de uma gran-
de fábrica de sua família, onde urbana, das periferias, do uso descontrolado de psicoativos, de destrui-
pôde observar as mazelas sociais ções de contextos familiares em massa e, entre outras consequências,
criadas pelo sistema capitalista.
da exacerbação dos mais severos níveis de desigualdade social.
Conheceu os dois lados do
capitalismo, primeiramente dado Em 1945, ao observar o trabalho fabril e a vida dos trabalhadores na
à sua origem social e, depois, por 3
meio de suas vivências enquanto Europa, Engels registrou tempos de barbárie e extrema injustiça social.
teórico e militante revolucio- A maioria da população vivia em barracos improvisados ou em cortiços
nário. Após anos dedicados ao aglomerados, e o tempo de trabalho atingia mais de 17 horas por dia
estudo minucioso da situação da
classe trabalhadora na Inglaterra (crianças e mulheres grávidas trabalhavam na mesma medida). O salário
(título de uma de suas principais mal cobria a despesa com alimentação, não havia qualquer subsídio fi-
publicações), Engels concluiu
nanceiro ou serviço para atendimento da saúde dos trabalhadores, bem
que a história da humanidade é
a história da luta de classes. como qualquer tempo reservado para férias ou descanso. Metade das
crianças morria antes dos cinco anos de idade (ENGELS, 2010).

14 Classes e movimentos sociais


Diante de processos exploradores e desumanos, os trabalhadores
4
passaram a se construir enquanto sujeitos políticos. Nasceu, então, o
Karl Marx foi um militante
movimento social dos trabalhadores proletariados, que passaram a se formado em Sociologia, História,
reconhecer enquanto classe antagônica à classe dos capitalistas (pela Economia e Jornalismo. Sua
primeira vez na história, organizaram greves de dimensões considerá- teoria, o materialismo histórico-
4 -dialético, influenciou diversos
veis). No mesmo período, conheceram os manuscritos de Karl Marx , campos da ciência. Ele se de-
passaram a questionar o capitalismo e a denunciá-lo ao mundo como dicou a explicitar as estratégias
um sistema econômico que beneficia os proprietários dos meios de capitalistas para proporcionar à
classe trabalhadora acesso aos
produção e que se sustenta da exploração dos trabalhadores. conhecimentos necessários à
sua libertação dos processos de
Na perspectiva de análise de autores da tradição marxista/marxia-
exploração e injustiça social. Pro-
na, teoria de influência hegemônica no Serviço Social, temos o sécu- duziu livros, jornais e manifestos,
lo XIX como o marco do surgimento do movimento social de classe (o como Manifesto Comunista
(1848) e O Capital (1867-1894).
mais próximo das organizações que conhecemos na atualidade). Com Sacrificou sua condição social
ele, ocorre o nascimento do sujeito social e político que se desenvolveu e econômica em busca de sua
como ator social. meta, foi exilado, perseguido e
boicotado no campo da ciência e
Esse desenvolvimento pode ser identificado em importantes eta- da política. Foi Marx, em suma,
quem desvendou o capitalismo e
pas, organizadas didaticamente a seguir:
o explicitou em suas mais diver-
sas dimensões. Falou e instigou
trabalhadores a se organizarem
O sujeito da O sujeito, pós-sociedade coletiva e internacionalmente,
industrialização que industrializada, que com o propósito de derrubar o
construiu o movimento vivenciou os movimentos
dos trabalhadores sociais e fez nascer desse sistema que os aprisionava na
(que tem a disputa de processo o sujeito coletivo condição de explorados, aliena-
classe no centro do transformador, iniciando
processo) e que inspirou o processo de criação dos
dos e escravizados. Suas ideias
o nascimento de outros movimentos sociais para foram expandidas tendo em
movimentos sociais. além das lutas de classe. vista diferentes interpretações,
algumas equivocadas sobre
sua obra.

O sujeito consciente
do seu processo
de transformação
e construção
enquanto sujeito
político e ator social.

A construção sócio-histórica dos movimentos sociais 15


De acordo com Touraine (1994), o sujeito social histórico se constrói
em meio e ao longo de processos sociais. Evitando ser somente deter-
minado pelo contexto em que vive, é o sujeito que constrói a vontade
de agir e alterar o seu meio social. É o ser social e político que constrói
sua liberdade na relação com o outro e sob a promessa da democracia,
que se torna atuante em seu mundo pessoal e social (ainda que inicial-
mente esse processo ocorra de modo inconsciente).
Uma sociedade democrática é uma sociedade que reconhece o
outro, não na sua diferença, mas como sujeito, quer dizer, de
modo a unir o universal e o particular [...], uma vez que o sujeito
é ao mesmo tempo universalista e comunitário, e ser sujeito é
estabelecer um elo entre esses dois universos, ensaiar viver o
corpo e o espírito, emoção e razão. (TOURAINE, 1994, p. 1-2)

Em suma, os movimentos sociais são legítimos e necessários, pois


emergem e resistem na luta contra as desigualdades implementadas
pela própria estrutura social. Os conflitos sociais se alteram segundo a
influência dos fenômenos vivenciados em cada período, o que nos leva
ao entendimento de que os movimentos sociais existem em todas as
sociedades – campo da produção, pautas culturais e, mais atualmente,
nas questões identitárias.

Como estudamos, há registros históricos de conflitos sociais que


datam desde os primórdios da humanidade, mas foi na sociedade ca-
pitalista que os sujeitos políticos configuraram os moldes institucionali-
zados que caracterizam os movimentos sociais na atualidade.

No contexto capitalista, os movimentos sociais asseguram possibi-


lidades de resistência e luta aos grupos que historicamente são negli-
genciados, excluídos ou invisibilizados devido à sua condição de classe,
sua posição cultural ou sua condição identitária. A inexistência dos
movimentos sociais seria extremamente benéfica ao ideário capitalis-
ta, uma vez que não haveria grupos a denunciar as desumanidades e
barbáries que caracterizam suas estratégias de perpetuação.

A compreensão da ideologia capitalista, bem como das práticas so-


ciais que a materializam, se faz essencial ao entendimento dos movi-
mentos sociais, pois ainda que a desigualdade social seja anterior ao
sistema capitalista e exista em toda parte do mundo (independente-
mente do tipo de governo ou do sistema econômico em vigência), é na
luta de classes que se apresentam os níveis mais complexos de contra-
dição e injustiça social. Logo, o entendimento conceitual dos movimen-

16 Classes e movimentos sociais


tos sociais só é possível se considerados os conflitos de classe, ainda
que estes não sejam o único determinante de sua existência.

Desde a sua origem, portanto, o capitalismo altera muito mais do


que a ordem econômica: ele institui novos valores e modos de ser em
sociedade. No século XIV, um manual distribuído pelos burgueses aos
comerciantes já demonstrava o que estava por vir: a projeção do des-
prezo pelos pobres, a incitação ao egoísmo, o incentivo à corrupção, a
elevação da propriedade privada ao sagrado e a supremacia da obten-
ção de lucros. O manual orientava:
não frequentes os pobres, pois nada tens a esperar deles; tu
não deves servir os outros, deixando de te servir em teus pró-
prios negócios; lembre-se que as dádivas tornam cegos os olhos
dos sábios e muda a boca dos justos. Se para obter o resultado
esperado da transação mercantil for preciso subornar, por que
não fazê-lo? É um grande erro fazer o comércio de modo empírico,
o comércio deve ser feito racionalmente. (RIBEIRO, 1995, p. 210,
grifos do original)

Ainda na contemporaneidade, vemos um grupo minoritário com-


posto de elites econômicas e políticas que tem sob seu poder Estados,
indústrias, empresas, bancos, veículos de comunicação em massa,
grandes complexos industriais monopolizados e incontáveis proprie-
dades de terra em todo o mundo.

É inegável, então, a importância absoluta dos movimentos sociais,


visto que ainda se configuram enquanto espaço de construção de su-
jeitos políticos, que se expressam, organizam e instituem modos de en-
frentamento das desigualdades e injustiças criadas ou intensificadas
pelo sistema capitalista. São os movimentos sociais os porta-vozes dos
sujeitos cujos direitos são negligenciados, reduzidos ou retirados.

Os movimentos sociais proporcionam meios para que os sujeitos se


aproximem, expressem suas demandas individuais e sociais, se identi-
fiquem em suas vivências, compartilhem saberes e conhecimentos de
todos os tipos, inclusive os políticos. Por meio da aproximação com
os grupos organizados, são viabilizados o acesso a estudos, debates
e outras vivências que resultam no entendimento dos sujeitos de sua
própria condição de vida. Condição essa que nem sempre é escolhida,
tendo em vista que, em prol da manutenção de sua ideologia burguesa,
o sistema capitalista dificulta ou impede a ascensão social de pobres,
mulheres, indígenas, negros, homossexuais, lésbicas, travestis, religio-

A construção sócio-histórica dos movimentos sociais 17


sos e de qualquer grupo que questione ou ameace o pleno funciona-
mento da ordem capitalista.

O movimento social é cenário e palco para o fortalecimento de re-


lações de identidade, a descoberta do modo como as relações sociais
são construídas e o entendimento da origem das formas sociais de ex-
ploração e dominação política – campo de extrema importância para
que o sujeito possa tomar ciência de sua alienação. Importante res-
saltar que a alienação é aqui compreendida como um dos pilares para
a construção da ideologia burguesa, sendo a base que proporciona ao
capitalismo as máximas necessárias à sua perpetuação.

Quando o sujeito não percebe que sua vida e o funcionamento do


sistema social em que vive são construídos em parte por ele próprio,
por meio da reprodução das regras que regem a estrutura social, dize-
mos que está na condição de alienado. Nessa situação de “ignorância”,
não percebe, por exemplo, sua condição de explorado, elevando a res-
ponsabilidade pela criação das sociedades e das suas próprias condi-
ções de vida ao divino, ao Estado, ao destino, à ciência etc. Uma pessoa
alienada que vive na condição de extrema pobreza, por exemplo, natu-
raliza sua situação e, por isso, tende a não questioná-la.

Como enfatizado, a compreensão teórica do que é um movimen-


to social é uma tarefa complexa, pois mesmo entre teóricos não há
um consenso quanto a uma conceituação. Ao considerar o fato de que
adentramos em termos e conceitos equivocamente simplificados para
uso no senso comum, a situação fica ainda mais difícil.

1.3 Movimentos sociais na desconstrução


da ideologia burguesa
Vídeo Para além do impasse quanto à determinação do surgimento e do
próprio conceito de movimentos sociais, e considerando os termos ne-
vrálgicos já abordados (estrutura social, sujeito político, ação social, ca-
pitais sociais, alienação, proletariado, burguesia, elites etc.), outro termo
que exige atenção é ideologia, essencial à sequência dessa reflexão.

Ideologia apresenta significados diversos e opostos. No senso co-


mum, é utilizada como sinônimo de visão/ideia de mundo, implicando
o entendimento de que existem diferentes ideologias segundo o que

18 Classes e movimentos sociais


cada um deseja com relação ao funcionamento da sociedade. Já no Saiba mais
âmbito conceitual crítico, ideologia é sinônimo de realidade previamente A ideologia burguesa é um
inventada, que se concretiza por meio de um conjunto sistemático de conjunto sistemático de ideias
que instituem na sociedade o
ideias, valores e símbolos voltados à manutenção das relações de do- culto de que a história das socie-
minação impostas pelas elites. dades é a história do progresso.
Com essa estratégia, oculta-se
Karl Marx foi o autor que conceituou ideologia como um instrumen- a história real e os sujeitos
to de dominação. Explicitou, em seus trabalhos, que a ideologia cria reais que atuam na construção
da sociedade, escondendo,
uma realidade imaginária/falsa, visto que o funcionamento dos ideais
assim, que as elites dominantes
da elite dominante depende da ocultação de diversos aspectos da rea- fazem uso do progresso para
lidade. A ideologia serve, por exemplo, para que o trabalhador não se dominar todas as esferas da vida.
Nessa ideologia, todo tipo de
perceba enquanto explorado. A ideologia orienta que esse trabalhador exploração, alienação e fetiche
deve ser grato pelo salário que recebe, satisfeito por fazer parte da é mantido em sigilo, de modo
construção do progresso e fiel às regras do sistema, sem questioná-las que se faz aparente apenas a
necessidade do progresso e do
para não provocar o caos, porque seu lugar na organização da socieda- desenvolvimento “natural” das
de foi “naturalmente” construído. sociedades. Assim, mantém-se
a ascensão e a manutenção das
Como estratégia de dominação, a ideologia burguesa cria realidades elites burguesas (CHAUÍ, 1988).
que nos fazem acreditar que o Estado é o culpado pelas injustiças. Com
isso, oculta o fato de que o Estado está a serviço das elites – quanto maior Documentário
o nível de corrupção de uma nação, mais visível se torna a questão, uma
vez que os cargos políticos são ocupados pela classe dominante.

Nesse contexto, um dos principais papéis dos movimentos sociais é


o de descortinar a realidade ou, como diria Marx (1985, p. 620), “mos-
trá-la para além do real aparente”. São os movimentos sociais os agen-
tes políticos capazes de questionar o vivido, porque, enquanto sujeitos
coletivos, se tornam fortes, e nada é mais temido pelas elites dominan-
tes do que a força da massa popular.
Pray the Devil Back to Hell
Foram os movimentos sociais os responsáveis pelo questionamen- é um excelente documen-
tário para compreender a
to da história contada. São eles que passaram a cobrar a sociedade
importância da organiza-
quanto à história dos negros, dos índios, das mulheres, das crianças, ção social ante mudanças
que desejamos no
dos camponeses etc. Sem o poder construído pelo povo, ainda estaría-
mundo. A produção da
mos estudando nas escolas apenas sobre os brancos, os poderosos, os assistente social Leymah
Gbowee revela os pro-
ricos e seus feitos.
testos organizados por
É com base em estratégias que ocultam ou confundem que as elites mulheres muçulmanas e
cristãs que, como resul-
dominantes (políticas e econômicas) continuam no poder. A ideologia tado, conquistaram o fim
lhes fornece os instrumentos necessários para garantir sua hegemonia. da Segunda Guerra Civil
da Libéria, em 2003.
Outro aspecto de extrema importância com relação ao entendimen- Direção: Gini Reticker. USA: Fork
to dos movimentos sociais se refere à vulgarização e à marginalização Films, 2008.

A construção sócio-histórica dos movimentos sociais 19


dos grupos que se organizam para enfrentar a ordem vigente. Compete
à ideologia dar conta de escrever na história a versão de que os movi-
mentos sociais não passam de grupos de pessoas desocupadas, loucas e,
consequentemente, perigosas. O fortalecimento popular não interessa à
ideologia burguesa, uma vez que o poder popular pode colocar em risco
o projeto de sociedade que as elites dominantes perpetuam há séculos –
apenas lhes interessa o poder de mobilização da massa alienada.
Curiosidade As pesquisas dos sociólogos brasileiros Jessé de Souza (2017) e Ri-
A revista Forbes divulgou, em cardo de Oliveira (2001) revelam que a elite dominante se constrói e
publicação de maio de 2014,
se perpetua por meio de relações sociais familiares que se conectam
quais seriam as quinze famílias
mais ricas do Brasil. Segundo e lhes possibilitam acumular capitais sociais, políticos e econômicos ao
as informações apresentadas, longo de diversas gerações. Não se trata de mérito, visto que a maioria
elas detêm sozinhas 15% do
das famílias mais poderosas do mundo apresenta redes de poder que
PIB nacional. Apenas cinco dos
bilionários brasileiros possuem se transformam em benefícios, privilégios e artifícios diversos materia-
mais dinheiro do que a metade lizados na sociedade em nepotismos, relações clientelistas e corrupção.
da população pobre do Brasil.
Os pesquisadores comprovam que as famílias mais ricas e poderosas
Saiba mais na reportagem:
da atualidade pertencem e/ou estão associadas à mesma elite domi-
QUINZE famílias mais ricas do
Brasil são donas de 5% do PIB. nante há mais de 500 anos.
Estadão, São Paulo, 15 mai. A estrutura de poder não é uma abstração, ela se materializa em
2014. Disponível em: https://
situações objetivas de posse de riqueza, se reproduz e se con-
economia.estadao.com.br/
noticias /geral,quinze-fami- solida graças a redes políticas, sociais e de parentesco. As redes
lias-mais-ricas -do-brasil-sao- políticas de poder são definidas como conexões de interesses
-donas-de-5-do-pib ,184946e. envolvendo, basicamente, empresários e cargos políticos no
Acesso em: 22 jun. 2020. aparelho de Estado, no executivo, legislativo e no judiciário e,
também, em outros espaços de poder buscando assegurar van-
tagens e privilégios para os participantes. (OLIVEIRA, 2004, p. 1)

Em suma, a monstruosa desigualdade da sociedade capitalista não


é natural, e sim construída sob a ideologia burguesa, sob as rédeas
de nomes ilustres da política e da economia. Além da mesma ideolo-
gia (estratégia de dominação), formam um grupo coeso, constituído de
pessoas que se conhecem desde a infância, uma vez que herdam as
relações de poder de seus pais, que também já se conheceram por
meio de seus avós. Frequentam as melhores escolas, universidades,
clubes, festas familiares e recebem as melhores oportunidades, pois
as famílias têm em seu poder as indústrias mais influentes, os escritó-
rios jurídicos mais renomados, as escolas e universidades mais tradi-
cionais e reconhecidas. Quando alguma porta não lhes pertence, têm
a influência de seus sobrenomes e o poder econômico necessário para
fazê-la abrir. Sobretudo, sabem que a existência e a permanência de
seu poderio dependem da manutenção das desigualdades sociais.

20 Classes e movimentos sociais


1.4 Características dos movimentos sociais
É inegável a amplitude, a complexidade e a importância dos movi-
Vídeo
mentos sociais, pois, mais do que apenas manifestações ou aglomera-
dos de pessoas que, por motivos particulares, decidem quebrar regras,
são o reflexo do povo com relação à construção histórica da sociedade.
Não se trata de indivíduos que, por não se adaptarem e/ou não es-
tarem privilegiados no desenho da estrutura social, resolvem levantar
bandeiras até que seus lugares sejam garantidos. Sobretudo, não se
constituem por motivos e/ou meios simplistas.

São os movimentos sociais a “chama da democracia”, a união dos


injustiçados e oprimidos e, principalmente, a fundamental porta para
a construção do sujeito político, do ator social, do ser social “desalie-
nado” que, em meio a outros sujeitos com os quais se identifica, cons-
troem relações de identidade, acessam e aprofundam conhecimentos
sobre a história da própria gente.
Com isso, cotidianamente aprendem uns com Filme
os outros, desenham modos de construir bases e
instrumentos em que possam expressar e reclamar
suas demandas, tais como: reuniões, assembleias,
greves, paralisações, passeatas, protestos, fóruns,
conselhos, partidos, oficinas e cursos, organizações
da sociedade civil (OSCs), centros e diretórios, sedes
e outros pontos de encontros diversos.

Apresentam um modo peculiar de organização:


O filme Selma: a marcha
estabelecem bandeiras, símbolos, planos de ação, da liberdade retrata a
redes de comunicação, articulação e mobilização. luta liderada por Martin
Luther King pela defesa
Produzem e partilham materiais de estudo, instru- dos direitos da comu-
mentos de divulgação e de arrecadação de fundos nidade negra nos EUA.
Milhares de pessoas par-
econômicos. Engendram estratégias de ocupação de ticiparam de uma marcha
postos políticos e outros espaços que lhes possibi- durante a campanha para
a igualdade de direitos ao
litem demarcar representatividade, poder de fala e voto. Como resultado, o
de voto. Criam atividades culturais e festivas que be- então presidente Lyndon
B. Johnson implementou
neficiem seus integrantes e a quem possa interessar a Lei dos Direitos de Voto,
(comumente eventos públicos). em 1965.

Direção: Ava DuVernay. EUA:


Movimentam-se conforme a conjuntura sócio-his- Plan B Entertainment, 2014.
tórica de cada época – em busca de mudanças pon-

A construção sócio-histórica dos movimentos sociais 21


tuais, pequenas alterações, grandes transições ou mesmo revoluções
mais drásticas. Operam por meio de ações isoladas ou partilhadas com
outros movimentos e grupos da sociedade, segundo seus interesses
ou suas necessidades (como estratégia de resistência, fortalecimento,
necessidades emergenciais/crônicas e empatia). Pautam a liberdade, a
equidade, o fortalecimento da democracia, a ampliação e a garantia de
direitos políticos, civis e sociais; afinal, debatem acerca da justiça social.

Apresentam diferentes tipos, mas não é possível classificá-los na


íntegra, visto se tratar de organizações altamente complexas, permea-
das por dimensões que ultrapassam o mensurável. Porém, para fins
didáticos, é aceitável construir categorias, por exemplo: características
comuns, atributos peculiares, experiência sócio-histórica, recursos fi-
nanceiros e projetos societários.

As características em comum constituem-se por meio da identifica-


ção e do aprimoramento de ideias, valores, condições de existência (ca-
pitais econômicos, sociais e culturais). Visam alterar a estrutura social
vigente em prol do atendimento das demandas que lhes são peculiares
e se relacionam de modo cíclico com o Estado (no enfrentamento e/ou
no apoio de regimes ou planos de governo).

Nesse sentido, também é possível diferenciá-los enquanto movi-


mentos sociais clássicos/históricos e movimentos sociais contempo-
râneos/novos. Os denominados movimentos clássicos e/ou históricos
fazem referência aos mais antigos da sociedade: dos trabalhadores,
das negritudes, dos povos indígenas, eclesiásticos, feministas e dos tra-
balhadores sem-terra. Já os novos movimentos sociais são oriundos
das últimas décadas e estão relacionados com a defesa: do meio am-
biente e da paz, das questões de gênero e sexualidade, da população
com deficiência, da população em situação de rua, dos povos do campo
e das florestas, dos animais e da diversidade cultural.

Constituem-se em coletivos que incrivelmente resistem, mesmo


diante de desafios gigantescos como o desprezo social, a repressão
estatal e militar, a ignorância social e a falta de recursos (econômicos,
físicos, culturais e tecnológicos). O desafio do financiamento dessas or-
ganizações é uma realidade que os assombra, desde os primórdios do

22 Classes e movimentos sociais


surgimento dos movimentos sociais. Ainda que eles apresentem dife- Filme
rentes tipos de arrecadação de fundos, todos se deparam com esse
desafio, seja pela dificuldade de arrecadação devido à sua marginali-
zação pelas elites, seja por problemas internos de gestão, por alianças
políticas ou por cerceamentos resultantes dos níveis de dependência
das fontes pagadoras.

Carregam o fardo do julgamento equivocado (devido ao desvirtua-


mento de sua história social) e o peso de memórias recheadas pela dor
do sofrimento de seus antepassados, de seus companheiros de cami- O filme Norma Rae
nhada e dos momentos vivenciados em sua própria realidade social. apresenta o contexto da
exploração do trabalho
Enquanto atores da história, foram e são os responsáveis por diversas fabril e as questões in-
trínsecas à luta feminista.
das conquistas vivenciadas na contemporaneidade por meio de inicia-
A protagonista, ciente
tivas como: a Revolução Russa de 1917; as manifestações de 1948 a de que o salário não é
compatível com as longas
1994 contra o Apartheid na África do Sul; o protesto de maio de 1968, horas de trabalho e das
que reuniu mais de nove milhões de manifestantes em Paris contra o péssimas condições da
fábrica, lidera entre seus
governo do general De Gaulle; o Massacre da Praça da Paz Celestial colegas a luta pela cria-
ção de um sindicato.
de Pequim em 1969; o Panelaço Argentino de 1971 contra a ditadura
Direção: Martin Ritt. USA: Twentieth
militar no país; o protesto de 1977 das Mães da Praça de Maio, na Ar-
Century Fox, 1979.
gentina, pelo reclame dos filhos desaparecidos na ditadura militar; as
manifestações conhecidas como Diretas Já de 1983/1984, quando a po-
pulação foi às ruas no Brasil pelo fim da ditadura militar e pelo reclame
de eleições presidenciais diretas; entre outras ações sociais, como os
protestos dos estudantes contra o aumento das passagens de ônibus,
conhecidos como as Jornadas de 2013.

São os movimentos sociais, portanto, coletivos de sujeitos sociais


e políticos que têm como marca histórica as negligências, ausências e
violências que lhes fizeram ser quem são. Em outras palavras, são os
movimentos sociais a parte organizada do povo que tornou possível
a democracia, que deu concretude ao nascimento das políticas públi-
cas e que, entre muitos outros papéis sociais, é o principal responsável
pelo avivamento da memória dos bilhões de injustiçados que tiveram
sua dignidade e vida ceifadas pela ideologia burguesa.

A construção sócio-histórica dos movimentos sociais 23


1.5 Movimentos sociais e a
dimensão sócio-histórica
Vídeo Antes de adentrarmos os fatos e elementos que têm configurado os
movimentos sociais ao longo da história das sociedades, cabe considerar
que existem significativas diferenças entre os movimentos sociais euro-
peus e os latino-americanos, tanto nas demandas requeridas quanto nas
formas de organização. Isso ocorre por serem realidades sócio-históri-
cas diferentes com relação ao contexto político, cultural e territorial.

Devido às sociedades europeias serem mais antigas em comparação


à brasileira, estranho seria se os movimentos sociais europeus não de-
monstrassem peculiaridades, como maturidade política mais elaborada,
força política mais acentuada e, em alguns casos, resistência armada. A
maioria dos países europeus apresenta, em sua história, algum tipo de
manifestação política que antecede o início da contemporaneidade.

Contudo, na perspectiva conceitual já apresentada, seria um equí-


voco afirmar que os eventos ocorridos na Europa anteriormente ao
marco da contemporaneidade se trataram de movimentos sociais. É
preciso considerar que a maioria das manifestações ocorridas foi cons-
truída por personalidades que compunham, de algum modo, a elite de
seu tempo. Afirmação certeira, pois ainda que se tratassem de algum
tipo de questionamento ao poder instituído, o povo não era consultado
e, quando participava, apenas cumpria estratégias sob o comando de
lideranças (aristocratas, fidalgos etc.). Em suma, não havia um processo
em que a construção do sujeito político fosse oportunizada.

Assim, ao tomar a contemporaneidade enquanto marco de análise,


5 podemos afirmar que os primeiros registros de organização popular e
O filósofo Georg Wilhelm formação de sujeitos políticos da Europa ocorreram na segunda meta-
Friedrich Hegel dedicou sua vida
de do século XVIII, por meio de dois importantes levantes populares:
ao estudo do idealismo alemão.
Para alguns, Hegel foi o criador a Festa do Chá, ocorrida em Boston em 1773 (movimento que antece-
do entendimento da dialética deu a Revolução Americana) e a Queda da Bastilha (movimento que
como modo de compreensão da
resultou na queda da monarquia francesa que imperava há mais de
história, da filosofia e do mundo:
uma progressão na qual cada treze séculos). Esses dois eventos são os primeiros movimentos sociais
movimento sucessivo surge europeus de que se tem registro, nos quais uma massa “popular” foi
como solução das contradições
inerentes ao movimento anterior. às ruas manifestar-se contra o poderio da Igreja em diversas cidades
5
europeias. Conforme registros do filósofo Hegel , as massas pareciam

24 Classes e movimentos sociais


ter se levantado todas de uma vez, invadindo as capitais europeias, ins-
pirando e gerando representações pela Europa e América Latina.

Essas mobilizações demonstraram a força da organização de mas-


sa e geraram bases que conduziram a Revolução de 1848, conhecida
como a Primavera dos Povos. Essa revolução teve como norte a revolta
dos povos contra as humilhações, explorações e injustiças que sofriam. Saiba mais
Em meio a essa revolução, nasceu a organização dos trabalhadores Em 1848, Karl Marx e Friedrich
proletários que, encontrando apoio em Karl Marx, Engels e outros in- Engels concluíam o Manifesto
do Partido Comunista, material
telectuais, organizaram o levante popular mais conhecido do mundo.
que convoca os trabalhadores de
Karl Marx foi o primeiro intelectual da história a dedicar a maior parte todo o mundo a lutarem contra
a exploração do capitalismo.
da vida ao fortalecimento da luta popular. Por meio de seus escritos, Eles conclamavam a tomada do
denunciou as barbáries geradas pelo capitalismo, ao mesmo tempo que poder pela massa popular e, por
anunciou ao povo que estaria à frente da revolução, não para lhe dizer meio da ciência, registraram que
a destruição do capitalismo e o
o que fazer, mas tudo que poderia fazer. Ainda é, na atualidade, um dos triunfo da sociedade comunista
autores mais “perseguidos” e “mal interpretados” da história. Afirmava são inevitáveis.
em meio aos trabalhadores e registrou, em seus livros, a força do poder
popular. Segundo ele, caberia ao povo a mudança necessária capaz de
elevar a história da humanidade a um patamar superior, e não à elite
que repetia a injustiça social como forma de perpetuação de poder.

Marx é, no Serviço Social, a referência teórica hegemônica de maior


importância e, sem dúvida, uma das figuras mais influentes. A práxis
realizada por assistentes sociais em todo o mundo tem como base o
método de análise social construído pelo autor: o já mencionado mate-
rialismo histórico-dialético. Enquanto militante, Marx convidou o mun-
do a construir uma aliança máxima entre intelectuais e proletários, a
fim de que se firmassem em grandes movimentos comunistas. Na vi-
são do autor, são as massas que fazem a história:
Os comunistas não se rebaixam a ocultar suas opiniões e os seus
propósitos. Declaram abertamente que os seus objetivos só po-
derão ser alcançados pela derrubada violenta de toda ordem so-
cial existente. Que as classes dominantes tremam à ideia de uma
revolução comunista. Nela, os proletários nada têm a perder a
não ser suas prisões, têm um mundo a ganhar. Proletários de
todos os países, uni-vos! (MARX; ENGELS, 1977, cap. IV)

De acordo com Elias Canetti (1995), autor do clássico  Masse und


Macht (Massa e Poder, em tradução livre), após a Festa do Chá, a Queda da
Bastilha e a Primavera dos Povos, as manifestações populares ganharam
força e o povo sentiu o gosto do poder popular, acessou conhecimentos

A construção sócio-histórica dos movimentos sociais 25


jamais imaginados (como a leitura do Manifesto Comunista, de Karl Marx
e Engels) e, ainda que a história afirme que tenha perdido, venceu.
Um fenômeno tão enigmático quanto universal é o da massa que
repentinamente se forma onde, antes, nada havia. Umas poucas
pessoas se juntam – cinco, dez ou doze, no máximo. De repente,
o local preteja de gente. As pessoas afluem, provindas de todos
os lados, e é como se as ruas tivessem uma única direção. Muitos
não sabem o que aconteceu e, se perguntados, nada têm e res-
ponder; no entanto, têm pressa de estar onde a maioria está. Em
seu movimento, há uma determinação que difere inteiramente
da expressão de curiosidade habitual. O movimento de uns – po-
de-se pensar – comunica-se aos outros; mas não só isso: as pes-
soas têm uma meta. E ela está lá antes mesmo que se encontrem
palavras para descrevê-la: a meta é o ponto mais negro – o local
onde a maioria encontra-se reunida. (CANETTI, 1995, p. 14)

A Primavera dos Povos demarcou o nascimento do movimento


6 social organizado a nível mundial, visto que repercutiu e resultou na
O Iluminismo foi um movimento formação de diversos movimentos e ações sociais com características
oriundo da Europa e projetado de massa. Contudo, nem todos os movimentos emergiram do povo,
por intelectuais no século XVIII. alguns foram criados pelas elites da época – a burguesia, por exemplo,
Sob bandeiras de liberdade,
igualdade e fraternidade, mesmo subordinada à Igreja e monarquia, conseguiu reverter a situa-
reforçava-se a necessidade de ção e derrubar o regime absolutista.
efetivação da ideologia bur-
guesa. Isso pode ser observado Na Áustria, por sua vez, não houve manifestação da massa popular,
pelas pautas defendidas pelo mas integrantes da aristocracia fizeram rebelião contra a monarquia. A
movimento dos intelectuais
da época, pois, ainda que de Alemanha apresentou dois tipos de movimentos: a favor da unificação
modo indireto, defendiam a do país e da libertação dos trabalhadores (revoltas operárias e campo-
liberdade econômica, ou seja, nesas, nesse sentido, foram constantes). Na França, enquanto resulta-
a não intervenção do Estado na
economia, o antropocentrismo, do das rebeliões, a República foi proclamada (o rei Luís Filipe I abdicou
o avanço da ciência e da razão do trono em 1848) e, algum tempo depois, finalizou-se a disputa polí-
– em suma, o predomínio da
tica com a derrubada definitiva do absolutismo e vitória da burguesia.
ideologia burguesa.
Infelizmente, os reclames levantados pelos movimentos sociais po-
pulares da Europa foram por “água a baixo”, pois, de modo geral, no
7
mesmo período, a elite também se articulou e, além de estabelecer
Grosso modo, podemos falar
estratégias de controle das rebeliões populares, aprimorou seu pró-
que o Liberalismo resultou do
movimento iluminista burguês. prio movimento: a revolução burguesa, que já estava em prática desde
É o nome dado ao conjunto 1640, teve êxito em meados de 1850 e atingiu seu auge em 1870. Guia-
das ideias que constituem a 6 7
dos pelas ideias iluministas e pelo liberalismo , a burguesia instaurou
ideologia burguesa.
a Segunda Revolução Industrial.

26 Classes e movimentos sociais


A Segunda Revolução Industrial corresponde ao período do capitalismo em
que houve o aperfeiçoamento tecnológico da industrialização por meio da ma-
nipulação avançada do aço, da introdução da eletricidade e da descoberta de
novos usos do petróleo na produção industrial. Foi um período demarcado pela
produção em massa, diversificação da exploração dos trabalhadores e criação
de novas relações sociais. Foi uma época histórica em que foram criados os
modelos fordista e taylorista de produção.

Na realidade latino-americana, o processo ocorreu de modo dife-


renciado do europeu. Primeiramente por serem territórios que apre-
sentam diferenças extremas no que diz respeito à temporalidade
histórica de seu surgimento. Outro ponto significativo faz referência ao
fato de que a Revolução Industrial já havia sido instaurada na Europa
há muito tempo e, com ela, a “promessa do progresso tecnológico”, isto
é, as elites dos países periféricos já teriam a expectativa de se tornarem
espelhos das grandes potências europeias e americanas. Contudo, é
fato que os países da América Latina só entraram no jogo porque se
configuravam como fonte dos recursos necessários à expansão do ca-
pitalismo europeu e americano.

Embora as várias mutações do capitalismo sejam sempre os arqué-


tipos causadores da condição exploratória dos países periféricos, não
se pode negar que alguns dos resultados exploratórios visualizados na
América Latina também se objetivaram fora dela. Dito de outro modo,
existem elementos comuns do capitalismo em diferentes territórios,
ainda que cada nação tenha servido para um determinado tipo de ne-
cessidade do sistema capitalista. Isso se sustenta no fato de que nem
mesmo entre os países tidos como desenvolvidos o processo aconte-
ceu de modo igualitário.

Na América Latina, por exemplo, embora todos os países que a com-


põem tenham sido peças essenciais à efetivação e manutenção da inter-
nacionalização do capital a nível mundial, os processos decorreram de
modo diferenciado em cada um deles (Bolívia, Venezuela, México, Peru,
Argentina e Brasil), resultando em histórias e implicações diversas.

Além dos conflitos culturais e de classe, outro elemento importante


na formação dos movimentos sociais organizados na América Latina
foi o regionalismo dentro de cada país. Segundo os estudos de José
Luis Roca (1979), o regionalismo exerce um significativo papel, pois,

A construção sócio-histórica dos movimentos sociais 27


para além das particularidades de cada período em que o capitalismo
se instaurou e da diversidade de matérias-primas de cada nação, há a
questão dos diferentes tipos de cultura e formação de Estado.

Nesse ínterim, cada país da América Latina dependeu da sorte no


que se refere à exploração e extração de produtos, com o propósito
de potencializar a internacionalização do capital. A oferta de investi-
mento na criação ou no fortalecimento da estrutura estatal foi a condi-
ção primária desse processo, o que se deu desde a década de 1940 aos
dias atuais. O Estado Nacional tem se mostrado essencial à efetivação
do sistema capitalista – arranjo político e econômico que não se desfez
nem nos períodos de ditadura.

A internalização do capital, também denominada mundialização do capital e


entendida por algumas vertentes enquanto globalização, é um processo em
que as relações econômicas e sociais entre diferentes nações são intensifica-
das. Teve início com as expansões marítimas e com as novas configurações
no modo de produção e exploração do trabalho. Na produção, as principais
mudanças com vistas à expansão e internacionalização do capital ocorreram
após o término da Segunda Guerra Mundial, quando o capitalismo se percebe
em crise e cria estratégias de sobrevivência.
O fordismo que em tempos anteriores garantiu lucro e crescimento aos países
capitalistas centrais, no período pós-guerra, já não poderia oferecer o mes-
mo retorno e foi substituído pela flexibilização dos processos de trabalho e de
produção. A flexibilização do trabalho, da produção e dos limites territoriais
aconteceu, principalmente, pela aliança de grupos corporativos, os chamados
monopólios e oligopólios (poucos vendedores para muitos compradores), que
entraram no debate do mercado mundial como resposta capaz de combinar
maior produtividade, capacidade de inovação e ampla competitividade.

De acordo com Thomas Hobbes (1992), a figura do Estado mais pró-


xima à que conhecemos na atualidade surgiu entre os séculos XV e XVI.
Para ele, o surgimento do Estado esteve atrelado à necessidade das
elites de resguardarem seus patrimônios, de modo que não tivessem
de estar em constante alerta de guerra. Desse modo, criaram o Estado
enquanto instituição social, econômica e política que teria como pre-
missa o julgamento das liberdades individuais (e coletivas) por meio
de uma nova organização jurídica. O Estado era compreendido, então,
como criação estratégica das elites dominantes, voltada à garantia da
sua própria estabilidade social e segurança pessoal (HOBBES,1992).

28 Classes e movimentos sociais


Com relação à conceituação de Estado, John Locke (1998) acrescenta
que, no modelo de governo estatal, a propriedade funciona como uma
ditadora dos tipos de relações sociais, visto que liberdade e proprieda-
de estão imbricadas. Se antes da criação do Estado o nivelamento das
liberdades decorria pelo que cada rei entendia como adequado aos seus
diferentes grupos de súditos (classes e estamentos sociais), na formação
de Estado Nacional, a liberdade é nivelada pelo governo, com base na
proporção de propriedade dos meios de produção (LOCKE, 1998).

Em uma leitura mais atual do mesmo contexto, Mészáros (2002) nos


mostra que o Estado Moderno e o sistema capitalista foram criados
e configurados de modo paralelo. Para o autor, não se trata de uma
coincidência, uma vez que, desde os primórdios do seu nascimento, a
instituição tem funcionado como a única estrutura corretiva compatível
com os parâmetros estruturais do capital que opera onde o controle
social se dá de modo metabólico.

Imbricada ao Estado, sempre esteve a revolta popular (a luta dos


indígenas, a dos escravos, a dos trabalhadores e a das mulheres), ainda
que o processo se tenha efetivado de modo particularizado, conforme
a condição de consciência de cada país quanto ao avanço capitalista.
Os nativos brasileiros, por exemplo, não tinham a informação de que
o processo de chegada dos estrangeiros era parte estratégica de um
sistema altamente elaborado, que pretendia a escravização local. Da
mesma forma, não sabiam os escravos que sua condição étnica con-
denaria as suas gerações a níveis escravistas ainda mais desumanos.

Fato é que o sistema capitalista complexificou as desigualdades e os


conflitos já existentes a níveis jamais vistos na história social. Os con-
flitos raciais, étnicos, de gênero e culturais (patriarcado, intolerância
religiosa etc.) foram intensificados. E ainda que esses poucos grupos
tenham sido os primeiros a enfrentarem a ordem estabelecida, por
meio das rebeliões que mancharam o Brasil de sangue, foi somente
por meio da luta de classes que o sistema capitalista foi enfrentado
como um inimigo que se conhecia na íntegra. Em outras palavras, é
na luta de classes que temos identificado a formação dos movimentos
sociais como luta organizada que se levanta contra o projeto de socie-
dade instaurado, tanto na Europa quanto na América Latina.

A construção sócio-histórica dos movimentos sociais 29


1.6 Movimentos sociais no contexto capitalista
Vídeo Os períodos mencionados, com relação à instauração dos novos
modos de produção da vida, produziram na sociedade diferentes níveis
de desenvolvimento. Os países periféricos sofreram de modo drástico
a industrialização tardia: além de servirem como fonte de extração de
matéria-prima, tiveram seus territórios marcados por mudanças socio-
culturais até então inimagináveis.

Políticas e estruturas de dominação foram implantadas sob o dis-


curso do desenvolvimento de todas as nações, e o capitalismo se ins-
taurar na sua forma mercantilista foi suficiente para o estabelecimento
de economias escravas. Populações inteiras foram devastadas, e as
que sucumbiram foram escravizadas. As cidades feudais desparece-
ram, artesãos e produtores do campo não conseguiram resistir à des-
leal concorrência, a produção em troca de assalariamento aos poucos
foi instaurada em todo o mundo. A venda da força de trabalho foi o que
restou à maior parcela da população mundial.

O movimento operário inaugura na história o pressuposto necessário


à organização e à luta política organizada por meio de lutas populares.
Indignados com os absurdos níveis exploratórios e armados de ideias
motivadas por escritos, como o já mencionado Manifesto Comunista e
outros, os operários traduziram suas dores em ações políticas. Foram
responsáveis por diversas reconstruções históricas, o que nos remete ao
Curiosidade
entendimento de que não podemos acreditar que as sociedades foram
Na Constituição brasileira, são
construídas unicamente pelos sujeitos que as governam e dominam.
conhecidos como direitos fun-
damentais individuais o direito Pensar desse modo seria ter uma leitura superficial das sociedades, visto
à vida, à liberdade, à igualdade, que diversos movimentos e revoltas populares ciclicamente têm se ma-
à segurança e à propriedade. Os
nifestado com vistas ao enfrentamento das amarras que os prendem.
chamados direitos fundamentais
coletivos dizem respeito ao direi- Os direitos tidos como fundamentais (individuais e coletivos), por
to da organização social política
enquanto exercício da cidadania, exemplo, resultaram das lutas sociais travadas historicamente por di-
como o direito a reuniões, as- ferentes grupos e movimentos sociais, tais como os conhecemos na
sembleias e atos políticos – são atualidade. Esses direitos emergem e são instaurados em nome da
também relacionados à criação
de associativismos diversos ampliação da justiça social e da redução das desigualdades sociais, ou
(movimentos, manifestações, seja, de condições essenciais à garantia da democracia (bandeira da
associações, organizações da
maioria dos movimentos sociais). No mesmo contexto, se insere a cria-
sociedade civil – OSCs, coopera-
tivas e outros). ção dos direitos humanos, dos direitos civis e políticos, das políticas
públicas em geral e das políticas públicas sociais.

30 Classes e movimentos sociais


Nesse ponto, contudo, cabe considerar que há um abismo entre
a realidade ocidental europeia, a dos Estados Unidos da América do
Norte e a latino-americana, uma vez que, na primeira e na segunda, o
exercício da cidadania emerge da participação do povo na formação
dos Estados nacionais, por meio dos constantes conflitos de classe,
8
8
raça, etnia e gênero . Na realidade latino-americana, especificamente,
A questão de gênero é
o processo não ocorreu do mesmo modo, pois o estágio avançado da empregada neste contexto com
expansão capitalista configurou impedimentos drásticos à construção relação às lutas feministas,
da participação cidadã. A esse respeito, vale mencionar o conceito ori- visto que somente nas décadas
mais recentes surgiram outras
ginal de cidadania para uma compreensão histórica: categorias.
A origem do conceito de cidadania é grega. Foi em Atenas, há
mais ou menos VIII séculos a.C., que surgiu no Mediterrâneo
uma experiência singular: a ideia de Pólis, espécie de cidade
autônoma, independente e soberana que era governada, em
última instância, por uma Assembleia de Cidadãos (politai). Daí
decorria que cidadão entre os gregos antigos era o homem livre,
senhor de si e que tinha direito de participar da Assembleia de
Cidadãos. Esse direito de participar da politai, portanto, não era
extensivo aos escravos, mulheres e crianças, mas apenas aos ho-
mens livres que exerciam a prática do direito de decidir sobre os
destinos políticos, culturais e econômicos da Pólis [...] A Reforma
Protestante foi um marco histórico que também exerceu grande
influência na criação da cidadania, visto que inaugurou valores
éticos e políticos inovadores: o fim do domínio político da Igreja
Católica, o surgimento de liberdades políticas; liberdade de culto
e de religião; liberdade de imprensa; liberdade de pensamen-
to e, principalmente, liberdade de cátedra nas Universidades.
(GONZALEZ, 2010, p. 10)

No Brasil, os direitos fundamentais apareceram pela primeira vez na


Constituição de 1824, após a implantação do Estado Nacional brasilei-
ro, processo construído pelas elites locais sem a participação do povo
(SARLET, 2001). Lembremos, portanto, que o tipo de processo quanto
à instauração de um país (colonização versus exploração) e o tipo de
criação de Estado interferem diretamente na capacidade de construção
das lutas sociais e, portanto, na criação da cidadania e da democracia
– no caso do Brasil, por exemplo, é importante considerar que suas
raízes históricas envolvem a escravidão e o aniquilamento de índios.

Com base no exposto, é correto afirmar que a cidadania (em seu


sentido histórico e amplo) ainda está em construção no Brasil e na
maioria dos países da América Latina. É, portanto, mais um elemento

A construção sócio-histórica dos movimentos sociais 31


que complementa a necessidade e a importância das lutas e dos movi-
Vídeo
mentos sociais.
O vídeo Documentário Obser-
vatório dos Movimentos Sociais, No Brasil, há registro de lutas sociais que se manifestam desde os
publicado pelo canal Andriza
seus primórdios, contudo, foi com a instauração do Regime Militar de
Andrade, mostra as atividades
desenvolvidas por esse progra- 1964 que os movimentos sociais se intensificaram, constituindo-se
ma de extensão da Universidade como formações organizadas e demonstrando alta capacidade de en-
Federal de Viçosa. O programa
frentamento, mesmo ante forte repressão da época. Desde então, o
fortalece e potencializa as ações
dos movimentos sociais da Zona Estado brasileiro e as elites têm a ciência de que há, no Brasil, um alto
da Mata Mineira desde 2012. poder de organização e enfrentamento, como demonstrado em diver-
Disponível em: https:// sos momentos pelos movimentos sociais históricos e mais atuais, tam-
www.youtube.com/
watch?v=pJH_f50OBu4 bém denominados novos movimentos sociais.

Podemos citar alguns movimentos como exemplos:


Movimento Operário, Movimento Indígena, Movimento Negro, Movimento Fe-
minista, Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, Movimento dos Trabalhadores
Sem Teto, Movimento Estudantil e Movimento das Ligas Camponesas.
Também há os movimentos sociais conservadores, como o Movimento Eclesiástico
de Base (Marcha da Família com Deus pela Liberdade), e os denominados novos
movimentos sociais, como o Movimento Contra a LGBTTIQ+fobia (lésbicas, gays,
bissexuais, transexuais, travestis, intersexuais, transgêneros, queers e afins), em
Defesa do Meio Ambiente, o Movimento Vegano, o Movimento das Pessoas com
Deficiência e diferentes movimentos urbanos.

Como visto, a constituição dos movimentos sociais está entrelaça-


da à história das sociedades e, principalmente, à evolução do sistema
capitalista. Desse modo, a análise da dominação de uns sobre outros
é indissociável do processo de acúmulo e expansão econômica. Nes-
sa convergência, Marx (1975) enfatiza que os moldes hierárquicos que
caracterizam nossa organização social advêm em grande parte das es-
truturas que dão forma à organização da produção da vida material.

As estruturas sociais não são inabaláveis, nem mesmo as capitalis-


tas (ainda que estas demonstrem certa facilidade de adaptação e reor-
denação conforme cada conjuntura histórica se apresenta). Embora a
injustiça social permaneça, e pareça mais mascarada do que nunca,
diversos movimentos têm conseguido alterá-la a fim de que possam
atender às suas reivindicações. É notável que os conflitos gerados pe-
los movimentos sociais, históricos ou novos, têm construído transfor-
mações nas estruturas sociais.

32 Classes e movimentos sociais


Para aprofundar os conceitos apresentados, recomendamos ler as pesquisas
listadas a seguir, das autoras que desenvolveram excelentes materiais com foco na
análise dos movimentos sociais:

• GOHN, M. G. 500 anos de lutas sociais no Brasil: movimentos sociais, ONGs e


terceiro setor. Revista Mediações, Londrina, v. 5, n. 1, p. 11-40, jan./jun. 2000.

• MINAYO, M. C. de S. De ferro e flexíveis: marcas do Estado empresário e da


privatização na subjetividade operária. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O entendimento e a análise dos movimentos sociais perpassam his-
toricidades e contextos socioculturais em que debates importantes são
realizados sobre relações de desigualdade e igualdade, organização social
e poder popular, dominação histórica e pontual, padrões e ciclos sociais,
sistemas e instituições.
As desigualdades configuradas pelas estruturas sociais demonstram
quão injusta tem sido a humanidade no que diz respeito aos modos ins-
tituídos para a construção da vida social. Ao mesmo tempo que a huma-
nidade demonstra sua alta potencialidade para a construção de ações e
estruturas, com vistas a responder suas necessidades, apresenta imensas
dificuldades em instituir desenhos de sociedades mais sustentáveis em
todos os aspectos que compõem a vida humana no planeta.
Temos insistido na exploração como premissa para a vida em socieda-
de e, com base nessa concepção, instituímos mecanismos e processos de
dominação capazes de aniquilar grande parte de tudo o que nos constitui
humanos. Temos vivido de modos que prejudicam nossa própria evolu-
ção, tão preocupados em nos proporcionar meios e estilos de vida que
nos induzem a uma prática cotidiana robotizada, voltada à criação e ao
acúmulo de bens a qualquer custo.
Em meio a esse contexto, geramos processos que nos conduzem à
percepção de nossas contradições e, com isso, geramos conflitos e ten-
sões sociais que atuam como caminhos que podem nos garantir alguma
salvação. Como resultado, de tempos em tempos, chegamos a consen-
sos ou nos contra-atacamos, geramos guerras ou acordos de paz que, às
vezes, nos elevam a patamares mais evoluídos ou, em sua maioria, nos
conduzem à destruição.
Não podemos negar que historicamente “navegamos por mares” que,
apesar de conhecidos, não parecem suficientes para nossa permanência

A construção sócio-histórica dos movimentos sociais 33


neste planeta. Há a necessidade de entendermos que as estruturas so-
ciais construídas (exploração, dominação e acúmulo de recursos) têm nos
encaminhado para a extinção.
Por fim, arriscamos afirmar que este capítulo oportuniza a compreen-
são dos movimentos sociais para além de sua importância sócio-histórica,
no que diz respeito à construção da cidadania, da democracia e de um
desenho em que a vida social se institua de modo mais justo. O objetivo
era instigar a reflexão sobre a importância dos movimentos sociais em
seu poder de reconstruir nossos moldes de vida na sociedade, a fim de
que nossa existência e coexistência continuem a ser viáveis.

ATIVIDADES
1. Para a implantação e a permanência do sistema capitalista, uma
instituição foi enfatizada como primordial. Por meio dela, ocorreu a
efetivação das estratégias necessárias à exploração e à dominação
da maioria dos povos do globo. Qual instituição cumpriu esse papel
determinante?

2. Ao considerar a importância da emergência e da permanência dos


movimentos sociais na criação e concretização da cidadania, da
democracia e do usufruto dos direitos constitucionais, qual é a origem
do termo cidadania e a quais aspectos ela está relacionada?

3. O que são movimentos sociais?

REFERÊNCIAS
CANETTI, E. Massa e poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
CHAUÍ, M. O que é Ideologia. 26. ed. São Paulo: Brasiliense, 1988.
ENGELS, F. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2010.
GOHN, M. G. 500 anos de lutas sociais no Brasil: movimentos sociais, ONGs e terceiro
setor. Revista Mediações, Londrina, v. 5, n. 1, p. 11-40, jan./jun. 2000.
GONZALEZ, E. T. Movimentos Sociais e direitos fundamentais coletivos e difusos no Brasil.
Cadernos de Direito, Piracicaba, v. 10, n. 19, p. 7-19, jul./dez. 2010.
HOBBES, T. Do cidadão. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
LOCKE, J. Dois tratados sobre o governo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
MARX, K. O capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975.
MARX, K. O capital: crítica da economia política. 10. ed. São Paulo: Difel, 1985.
MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto comunista. In: Cartas filosóficas e outros escritos. São Paulo:
Grijalbo, 1977.
MÉSZÁROS, I. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo,
2002.

34 Classes e movimentos sociais


OLIVEIRA, R. C. de. A construção do Paraná moderno: políticos e políticas no Governo do
Paraná de 1930 a 1980. Curitiba: SETI, 2004.
OLIVEIRA, R. C. de. O silêncio dos vencedores: genealogia, classe dominante e Estado no
Paraná. Curitiba: Moinho do Verbo, 2001.
PLUTARCO, M. L. As vidas dos homens ilustres de Plutarco: Sólon. São Paulo: Editora das
Américas, 1951.
RIBEIRO, D. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
ROCA, J. L. Fisonomía del Regionalismo Boliviano. La Paz: Los Amigos del Libro, 1979.
SARLET, I. W. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de
1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
SOUZA, J. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de Janeiro: LeYa, 2017.
TOURAINE, A. ¿Cómo salir del liberalismo? México: Editorial Paidós, 1999.
TOURAINE, A. Crítica da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1994.

A construção sócio-histórica dos movimentos sociais 35


2
Movimentos sociais e
perspectivas teóricas
Este capítulo oferece subsídios que podem contribuir para
compreender a construção de debates e teorias, principalmente
com relação às influências e vertentes analíticas que favorecem as
atuais abordagens dos movimentos sociais.
Para isso, com base em divisões de cunho didático a fim de pro-
porcionar um entendimento amplo dos movimentos sociais, são apre-
sentadas: a abordagem teórica desse tema, a influência dos marxistas
clássicos, as influências estadunidenses, as influências marxistas mais
atuais e uma introdutória análise sobre a influência pós-moderna.

2.1 Abordagem teórica dos movimentos sociais


Vídeo Nos últimos tempos, os movimentos sociais alcançaram lugar de
maior destaque, o que deve ser compreendido pelos marcos interpre-
tativos da história social, visto que sua configuração atual é resultado
de um longo processo de lutas.

Sua visibilidade também não é mais a mesma. Ainda que algumas


fontes midiáticas continuem a criminalizá-los, encontraram no adven-
to das tecnologias da comunicação a possibilidade de criar modos de
organização e mobilização, assim como novos tipos de articulação. Se-
1
gundo Manuel Castells (2013), articulados em redes e repletos de senti-
Socióloga brasileira de maior
referência teórica sobre os mo- mentos como indignação e esperança, os movimentos sociais têm feito
vimentos sociais na atualidade. da contemporaneidade palco de sua visibilidade, por meio de diferen-
Produziu mais de vinte livros
tes estratégias e contextos sociais.
para o entendimento de cida-
dania, terceiro setor, conselhos, Os estudos mais reconhecidos no âmbito acadêmico se mostram vol-
sociedade civil, educação não
tados à análise dos movimentos sociais pela ótica da disputa de classes
formal, entre outros temas,
1
especialmente os movimentos e/ou dos debates culturalistas. Segundo Maria da Glória Gohn (2007),
sociais. a teorização dos movimentos sociais apresenta três grandes eixos refe-

36 Classes e movimentos sociais


renciais: os clássicos europeus, os clássicos estadunidenses e os estu-
dos mais recentes produzidos a partir da década de 1960.

A década de 1960 é um importante marco da teorização mais atua-


lizada dos movimentos sociais. Os estudos pós-modernos entendem
que as sociedades atuais avançaram na organização racional do tra-
balho e da economia de tal modo que os estudos clássicos acerca dos 2
conflitos de classe não têm mais razão para existir. As publicações de
Touraine afirma ser
2
Alain Touraine (1971, p. 80-85, tradução livre) sobre o movimento es- um pós-colonialista, ainda que,
tudantil de maio de 1968, por exemplo, anunciam que, nas sociedades em suas produções, seja possível
identificar críticas à vertente
programadas, isto é, pós-industriais, se observam “vias de enriqueci- teórica. Uma das principais
mento e de institucionalização dos conflitos do trabalho [...], que invia- contribuições desse autor para
bilizam o antigo lugar central dos conflitos de classe”. a teorização dos movimentos
sociais é o fato de ter evidencia-
Na perspectiva crítica marxiana, os estudos pós-colonialistas/pós- do o sujeito (ator social) “como
elemento dinâmico da história,
-modernos insistem em ignorar o fato de que as transformações ins-
verdadeiro agente de transfor-
tauradas pela estratégia de internacionalização do capital (globalização) mação social” (GOHN, 2007).
instituíram manobras que resultaram na fragilização da organização
popular. A insegurança causada pelos novos moldes de flexibilização
do trabalho alocou o movimento dos trabalhadores na condição de ne-
gociadores, retirando deles a força de confronto que outrora compôs o
conflito de classes (NETTO; BRAZ, 2006).

O debate entre as diferentes vertentes teóricas exerce importante


papel no que diz respeito ao melhor entendimento da constituição dos
movimentos sociais. Isso ocorre principalmente porque esse debate
aproxima o universo acadêmico à realidade vivenciada, para além do
que o real aparenta.
O melhor trabalho sobre o conceito de classe tem sido deter-
minado por uma percepção aguda das relações complexas, às
vezes tensas, entre situações de classe diversificadas e desiguais
e a construção frágil e contingente de interesses e identidades de
classe mais amplos. (GRAY, 1994, p. 114)

Robert Gray (1994), Geoff Eley e Keith Nield (2013) afirmam ser ver-
dadeira a atual conjuntura de afastamento dos movimentos sociais do
debate da disputa de classes. Trata-se de movimentos que apresen-
tam uma identidade coletiva direcionada a outros focos. Estão em alta
seus silêncios, demarcações e ações, mas, em sua maioria, constituem
a mesma classe que antes fora unificada. Para esses autores, a decom-
posição da clássica disputa de classes é, em si, uma história social re-
configurada pela dinâmica das sociedades pós-industriais.

Movimentos sociais e perspectivas teóricas 37


Por fim, notamos que a teorização dos movimentos sociais
latino-americanos se esforça para acompanhar, explicar e analisar as
recentes dinâmicas dos movimentos sociais no curso de sua aproxi-
mação, organização, articulação e manifestação de luta. O que se pode
destacar a mais é o fato de que há movimentos sociais da atualidade
que têm demonstrado certa contradição ao manifestarem propensão
a aceitar e reproduzir, de modo acrítico, as “inclusões” teóricas conser-
vadoras e de cunho historicamente burguês.

2.2 A influência das teorias marxistas


clássicas nas abordagens teóricas
sobre os movimentos sociais
Vídeo Os primeiros estudos sobre os movimentos sociais emergiram da
tradição marxista, ou seja, apresentam grande influência das visões de
mundo de Karl Marx. Além de explicar o funcionamento da lógica da
exploração capitalista, ele foi o responsável pela formulação da teoria
que fornece o mais rico dos detalhamentos com relação aos meandros
que constituem a disputa de classes: o materialismo histórico-dialético.

A esse respeito, cabe considerar que Karl Marx foi o autor socialista
3 alemão que criou, no século XIX, a teoria que se tornou posteriormen-
3
As ciências sociais se constituem te a primeira matriz teórica das ciências sociais – matriz que gerou
de três matrizes teóricas: Karl
tendências diversas segundo a leitura criada por cada intelectual que
Marx, Durkheim e Max Weber.
exercitou interpretá-lo. Cabe dizer também que Marx não foi apenas
um teórico, mas um militante comunista e, como tal, exerceu forte in-
fluência na organização do movimento comunista de seu tempo.

Contudo, Marx morreu em 1883, tendo publicado em vida apenas o


primeiro livro do conjunto dos livros que constitui a obra mais impor-
tante de sua vida: O Capital. Além disso, duas das suas principais obras
só foram publicadas após sua morte – A Ideologia Alemã, por exemplo,
que explica as premissas do pensamento de Marx, só foi publicada em
1932. Esse ponto é importante porque explica que as ideias de Karl
Marx foram interpretadas de modo dilacerado tanto nas universida-
des quanto fora delas. Suas ideias, além de fracionadas, também foram
simplificadas e até mesmo vulgarizadas, a fim de torná-las mais acessí-
veis aos trabalhadores.

38 Classes e movimentos sociais


Dos cem volumes de anotações e teorias produzidas pelo autor, me- Livro
nos de um terço foi publicado até o século XX. Desse contexto, nascem
críticas infundadas à teoria de Karl Marx, bem como interpretações fa-
talistas de sua obra. Entre essas interpretações, podemos citar a afir-
mativa de que Marx acreditava na existência de um fator que comanda
todos os outros, ou seja, o determinismo econômico. Essa é uma inter-
pretação simplista baseada no panfleto construído por Marx e Engels,
chamado Manifesto Comunista, com o objetivo de tornar sua teoria mais
acessível aos trabalhadores. Esse panfleto não era a síntese da obra do
Sugere-se o filme O Jovem
autor, especialmente porque Marx deixa explícito em sua teoria que há Karl Marx, que apresenta,
várias determinações. ainda que parcialmente,
a trajetória do autor em
Marx, portanto, focaliza os interesses e as aspirações de uma sua fase inicial.

classe social; não fala das individualidades. O autor se dedicou a ler Direção: Raoul Peck. EUA: California
Filmes, 2017.
o processo histórico real, o protagonismo da classe trabalhadora
que se levantava contra suas condições exploratórias. Para isso,
trouxe a essência dos acontecimentos, o que estava oculto na apa-
rência. A influência do autor ultrapassa o campo acadêmico, visto
que suas ideias resultaram na organização efetiva dos trabalhado-
res, com vistas à revolução proletária.
Saiba mais
A organização da Comuna de Paris, por exemplo, teve forte influência
Com a queda de Napoleão III,
da teoria marxista e serve para demonstrar que diferentes grupos fa- por renúncia, as condições de
ziam diferentes interpretações de Marx. O advento da Comuna de Paris trabalho e de vida chegaram a
ocorreu na França, em 1871, após a guerra entre o Império Francês e níveis drásticos. Os trabalhadores
(apoiados pela pequena burgue-
o Reino da Prússia. Tratou-se de uma revolta armada do proletariado sia) não aceitaram a renúncia
francês, com apoio momentâneo da burguesia francesa, contra o novo de Napoleão e se mantiveram
em oposição ao novo regime
governo republicano. Desse processo, resultou a implantação de um re-
republicano. Em resposta às
gime socialista, que teve apenas 40 dias de exercício, porque os trabalha- revoltas do povo francês, o
dores foram traídos pela mesma burguesia que inicialmente os apoiara governo anunciou a elevação de
impostos para pagar as dívidas
(alguns integrantes da Comuna foram presos e outros, executados).
da Coroa e uma resposta armada
Segundo Marx, o movimento da Comuna de Paris não sairia ven- se houvesse discordância. E,
assim, travou-se a revolução.
cedor do processo, pois, ainda que fosse realmente revolucionário,
não estava pronto para enfrentar o adversário que viria após a des-
tituição da República, ou seja, a burguesia. Faltava um planejamen-
to estratégico que pudesse derrotar a burguesia por completo, o
que, para o autor, exige a desconstrução completa da máquina do
Estado (em sua versão burguesa). Em sua advertência, Marx ressal-
tou ao movimento que o período escolhido para a revolução não
era o mais adequado. Para ele, as estratégias do movimento ainda

Movimentos sociais e perspectivas teóricas 39


estavam imaturas, apresentavam traços ditatoriais e base em aná-
lises de conjuntura incompletas (NETTO, 2011).
4
4
Ativista de esquerda, Kugelmann
Nas cartas escritas por Marx a Kugelmann , em abril de 1871, du-
era integrante da associação rante a Comuna de Paris, encontramos uma passagem na qual o autor
internacional dos trabalhadores manifesta a seguinte análise:
e amigo íntimo de Karl Marx,
o que se comprova nas cartas reli o último capítulo do meu 18 de Brumário. Afirmo que a re-
trocadas entre ambos. volução em França deve tentar, antes de tudo, não passar para
outras mãos a máquina burocrática e militar – como se tem feito
até aqui – mas quebrá-la. Eis a condição preliminar para qual-
quer revolução popular do continente. Eis também o que tenta-
ram os nossos heroicos camaradas de Paris, ainda que de modo
precoce. (LENIN, 1981, p. 709)

Figura 1
Barricada na Comuna de Paris

Wikimedia Commons

Apesar da relevância de sua teorização a respeito da ordem da so-


ciedade burguesa, Marx morreu antes de concluir seus estudos. O que
ele deixou foram os fundamentos de uma teoria social, ainda aberta,
que contribui em muito para a compreensão da sociedade atual, visto
que a ordem burguesa permanece.

40 Classes e movimentos sociais


Com base na influência teórica e revolucionária de Marx, intelectuais
e militantes construíram análises particulares que, posteriormente, de-
ram subsídios para práticas e teorizações acerca dos movimentos sociais
na continuidade do que hoje conhecemos como marxismo. Cabe enfati-
zar que nem mesmo seus sucessores, Lenin e Rosa Luxemburgo, tive-
ram acesso à totalidade da teoria social produzida por Marx, visto que
já haviam morrido quando os principais textos dele foram publicados.

Dado o exposto, a seguir, apresentaremos três marxistas que mais


contribuíram para o entendimento dos movimentos sociais: Vladimir
Ilyich Ulyanov Lenin, pela prática revolucionária alicerçada na teoria
científica; Antonio Francesco Gramsci, pelas inovações produzidas no
que se refere à teoria marxista; e Rozalia Luxenburg (Rosa Luxembur-
go), pela práxis revolucionária e representação da mulher na teoriza-
ção e na história de luta dos movimentos sociais.

Vladimir Lenin preconizou ideias propagadas em várias partes do


mundo, além de ter se colocado à frente de todas as etapas da Revolução
Russa (1917). Apesar de também não ter construído uma teoria sobre os
movimentos sociais, publicou várias de suas ideias a fim de proporcionar
ao movimento operário bases para sua organização e resistência.

Lenin conheceu os inscritos de Marx aos 19 anos e, desde então,


passou a construir análises sobre a natureza do capitalismo russo e
suas consequências. Dedicou-se também ao entendimento do papel
desenvolvido pela burguesia russa frente ao capitalismo internacional.
Construiu incríveis análises acerca do modo como a Rússia capitalista
passou a explorar ferozmente as regiões periféricas, o que intitulou de
colonização interna.

Após a revolução de 1905, Lenin dedicou-se a analisar o Estado e


sua relação com a burguesia, o que chamou de monarquia burguesa.
Uma de suas grandes preocupações era fazer uso das teorias para de-
senvolver pensares e estratégias que pudessem promover a tomada
de consciência da classe operária. Para o revolucionário, não devia ha-
ver separação entre teoria e prática social, assim como o valor efetivo
dos intelectuais se provava apenas quando se envolviam organicamen-
te com os movimentos sociais (KRAUSZ, 2017).

Para Lenin, o regime burguês era o principal responsável pela


alienação dos trabalhadores, visto que só havia brechas para um

Movimentos sociais e perspectivas teóricas 41


tipo de participação controlada: a sindicalização (vanguarda mili-
tante). Advertia também que os trabalhadores precisavam se orga-
nizar em rede, tanto por vias legais quanto ilegais, a fim de garantir
a efetividade da comunicação e das atividades entre os diferentes
grupos da sociedade. Já em sua época, Lenin falava sobre o recru-
tamento das massas (KRAUSZ, 2017).

A primeira medida na revolução para Lenin, portanto, era a demoli-


ção da máquina estatal militar e burocrática. E, ao contrário do que se
tem propagado ao longo da história, Lenin não apoiava as concepções
anarquistas que veem o Estado como responsável pela desigualdade
social. Para o pensador, a derrubada total e rápida do Estado aniqui-
laria as garantias necessárias à revolução. A derrubada do Estado bur-
guês “não pode ser iniciada por ele mesmo, mas pela transformação
das formas e relações de produção, pela transformação da economia”
(KRAUSZ, 2017, p. 271-272).

Segundo Tamáz Krausz (2017), especialista em história russa, Lenin


fazia críticas severas à autocracia, ao nepotismo, ao esquerdismo mes-
siânico, às interpretações anarquistas da obra de Marx, ao modo como
o capitalismo instituía a opressão das mulheres e dos negros, e à falta
de valorização das vanguardas revolucionárias.

Lenine, como também era conhecido, esteve à frente do Estado russo


de 1917 a 1924, porém, em nenhum momento da sua trajetória enquan-
to líder da Revolução Soviética, afirmou que o socialismo já estava ins-
taurado na Rússia. Em seus discursos, Lenin afirmava que a Revolução
Russa estava em processo de instauração e o que se tinha até então era
um tipo de organização capitalista, ainda desconhecida em outras re-
giões do mundo (KRAUSZ, 2017 apud JARDIM; MONTEIRO, 2018).

A influência de Lenin na teorização dos movimentos sociais se insti-


tuiu devido ao modelo organizacional por ele criado, no qual comprova
a efetividade das análises marxistas sobre a possibilidade real do fim
da sociedade de classes. Lenin protagonizou e orquestrou o movimen-
to revolucionário mais formidável da história moderna, o que o tor-
na indispensável, dadas as suas contribuições para a compreensão de
suas práticas, bem como para o questionamento de suas influências
teóricas (HOBSBAWM, 2007).

É, portanto, relevante conhecer com maior profundidade as ideias


de Lenin, especialmente porque esse brilhante teórico/militante já foi

42 Classes e movimentos sociais


vulgarmente nivelado no senso comum como líder de um movimento
fracassado. Trata-se do efeito de avaliações construídas em leituras su-
perficiais das ideias de Lenin, visto que, descontextualizadas quanto à
temporalidade e às condições vivenciadas na Revolução Russa, deixam
de valorar a incrível capacidade organizacional da liderança desse revo-
lucionário – demanda caríssima aos movimentos sociais da atualidade.

Antonio Francesco Gramsci, por sua vez, igualmente contribuiu


para a teorização dos movimentos sociais ao enriquecer as análises da
tradição marxista, por meio da criação de novas categorias explicativas
e de novos instrumentos práticos. Cabe enfatizar que esse intelectual
ainda não foi superado em suas análises e, na contramão das várias crí-
ticas destinadas a Lenin ou Marx, Gramsci é um dos poucos de seu tem-
po que permanece inviolável e comprovadamente utilizado enquanto
referência teórica, até mesmo para os que consideram o marxismo
uma teoria ultrapassada.

A principal influência teórica de Gramsci foram as análises produzi-


das por Karl Marx, visão de mundo que culminou no seu envolvimen-
to no movimento comunista italiano. Essa atividade lhe proporcionou
publicizar ideias e posicionamentos com relação ao sistema capitalista,
levando, como resultado, ao seu encarceramento enquanto preso po-
lítico aos 39 anos. Gramsci permaneceu em situação de cárcere até os
46 anos, quando recebeu liberdade condicional devido à sua precária
condição de saúde, vindo a falecer em 1937, logo após ter sido liberto.

Foi no contexto do cárcere que esse brilhante intelectual es-


creveu uma das mais respeitadas e prestigiadas análises sobre as
transformações sociopolíticas ocorridas em seu tempo. Por meio
de cartas destinadas a familiares e amigos e de registros em cader-
nos (32 cadernos que totalizaram 2.848 páginas), Gramsci construiu
um arcabouço teórico que, além de ter ampliado a análise marxista
de Estado, inaugurou o conceito de hegemonia cultural, enriqueceu
as análises referentes à alienação (trouxe novos elementos frente
à formação educacional dos trabalhadores), apresentou elementos
para distinção do entendimento entre sociedade política e socieda-
de civil e, sobretudo, apresentou aos trabalhadores a necessidade
de se organizarem com vistas à construção de uma nova hegemonia,
ou seja, um novo direcionamento para o tocar das sociedades que
não fosse a ideologia burguesa (DURIGUETTO, 2007).

Movimentos sociais e perspectivas teóricas 43


Para Gramsci, é na sociedade civil que os movimentos populares
deveriam desprender mais esforços, e não somente frente à ideia
da derrubada do Estado, visto que a ideologia burguesa conta com
diferentes mecanismos para efetivar e manter o poder da classe
burguesa. Desse modo, caberia aos movimentos sociais ter a ciência
de que o Estado é apenas um dos mecanismos de dominação. Esse
espaço, portanto, poderia ser estrategicamente ocupado e tomado
pelos trabalhadores como força a ser estruturada e utilizada para
garantir dirigência (COUTINHO, 1992).

Na visão do autor, o despertar em massa da sociedade civil é condi-


ção essencial para a revolução real, o que somente se viabiliza por meio
de processos educativos que tenham como premissa o descortinar das
Glossário redes estratégicas de dominação para além das que estão aparentes
infraestrutura social: termo na infraestrutura social.
muito utilizado pelos marxistas Toda relação de “hegemonia” é necessariamente uma relação
e conceituado por Karl Marx.
educacional que se verifica não apenas no interior de uma nação,
Refere-se à parte social que
constitui as forças produtivas e, entre as diversas forças que a compõe, mas em todo campo in-
portanto, às relações sociais de ternacional e mundial, entre conjuntos de civilizações nacionais
produção. e continentais. (GRAMSCI, 1986, p. 210)

Dito de outro modo, Gramsci revisitou o termo hegemonia descrito


por Lenin, conceituando-o com alto nível de detalhamento e aplican-
do um viés interpretativo nunca visto anteriormente. Com isso, enfati-
Documentário zou o potencial interventivo da sociedade civil enquanto massa que se
constitui e que age segundo a ideologia da classe dirigente.
Sugerimos o documen-
tário Requiém for the
Com base nessa perspectiva, Gramsci enfatizou que é na esfera da
American Dream (O fim
do sonho americano, em sociedade civil que se dão as disputas pela hegemonia. Ele fez extraor-
tradução livre), resultado
dinárias análises acerca da potencialidade da participação dos intelec-
de uma série de entre-
vistas nas quais o crítico tuais nos processos que constituem a elaboração de culturas sociais
social Noam Chomsky
e políticas (seja para o constructo da visão de mundo requerida pela
discute como a concen-
tração de riqueza e poder burguesia ou pelos trabalhadores) e os apontou como ditadores de
entre uma pequena elite
realidades (PORTELLI, 1977).
polarizou a sociedade
americana e provocou o A ampliação da conceituação de Estado e a alocação da sociedade
declínio da classe média.
civil no centro do poder foram as principais contribuições de Gramsci,
Direção: Jared P. Scott; Kelly Nyks;
Peter D. Hutchison. EUA: PF Pictures; dado que, se o Estado é a materialização da força da burguesia (políti-
Naked City Films, 2015. ca e econômica), também pode se constituir por completo como força
transformadora a serviço dos trabalhadores:

44 Classes e movimentos sociais


a conquista de uma consciência superior: e é graças a isso que
alguém consegue compreender seu próprio valor histórico, sua
própria função na vida, seus próprios direitos e seus próprios
deveres. Mas nada disso pode ocorrer por evolução espontânea,
por ações e reações independentes da própria vontade, como
ocorre na natureza vegetal e animal [...]. O homem é sobretu-
do espírito, ou seja, criação histórica, e não natureza. (GRAMSCI,
2004, p. 58)

E por que não uma revolução construída em campo mais ame-


no de disputa, conforme a leitura de Maria da Glória Gohn (2007,
p. 178) a seguir?
Uma atraente arena para a luta pela transformação social, não
apenas um mecanismo de dominação, mas um local que me-
rece ser democratizado e gerido de forma participativa, emba-
sado nas forças organizadas da sociedade civil [...] espaço para
execução da solidariedade citada por Marx, que se refere a uma
relação social pautada no mesmo interesse e para o mesmo ob-
jetivo: a emancipação dos trabalhadores.

Nesse contexto, vale trazer Rosa Luxemburgo à continuidade da


reflexão. Foi uma mulher revolucionária que marcou a história como
liderança do movimento comunista alemão, incansável desafiante de
seus adversários e de “seus companheiros”, além de jornalista, pro-
fessora e militante. Enquanto teórica, protagonizou análises acerca do
imperialismo e deixou um legado que facilitou o entendimento das di-
vergências existentes dentro do movimento comunista de seu tempo.

Rosa nasceu na Alemanha, filha de judeus e herdeira de significativo


patrimônio cultural e social, na contramão da maioria das mulheres e,
até mesmo, dos filhos homens das famílias abastadas de seu tempo, es-
colheu o caminho da luta revolucionária. Dedicou a maior parte da sua
vida aos estudos e à luta por uma sociedade livre, justa e humanizada.
Devido ao seu grau de influência, envolvimento e direção do movimen-
to comunista alemão, foi condenada ao cárcere por diversas vezes e
executada em 1919, no auge de sua maturidade política (aos 48 anos).

Consciente de seu alto grau de conhecimento, da sua excelente orató-


ria e da sua independência financeira e emocional, quando questionada,
respondia assertivamente, conquistando respeito de adversários ou alia-
dos políticos. A despeito do machismo presente em toda a caminhada da

Movimentos sociais e perspectivas teóricas 45


militante comunista, por vezes ofendida em espaços de debate, nunca
titubeou. A águia polonesa, como era chamada por Lenin, enfrentava o
machismo sem piedade; com sua postura libertária, oratória impecável
e conhecimento teórico-político inquestionável, ocupava espaços de re-
presentação e luta, majoritariamente masculinos (LOUREIRO, 2005).

Ainda que não tenha se dedicado à elaboração de uma teoria para


o feminismo, Rosa Luxemburgo produziu textos sobre a ideologia
burguesa, que tanto enfrentava, ser a mesma responsável por alocar
a mulher na condição de submissão e no isolamento da vida privada
(avaliação orientada por seus estudos de Marx). Além de ser a única
pensadora de economia política de seu tempo, foi também a única mu-
lher a exercer a profissão de professora de Economia Política na Escola
do Partido Social-Democrata da Alemanha (EVANS, 2017).

Com relação à sua principal contribuição para a teorização dos mo-


vimentos sociais, enfatizamos suas análises acerca do imperialismo
e/ou da internacionalização do capital em um debate mais atual. No
material intitulado A Acumulação do Capital: uma contribuição para uma
explicação económica do imperialismo, produzido em 1913, Luxemburgo
argumentou que o capitalismo se direcionava para um tipo de expan-
são que não teria outro fim além do seu próprio colapso.

Para Luxemburgo, o quadro de guerra entre os países imperialis-


tas forneceria as condições ideias para que o proletariado assumisse a
frente da organização social e política das sociedades. Arriscamos dizer
que essa certeza foi a responsável pelas últimas palavras que registrou,
na noite que antecedeu sua execução: “A ordem reina em Berlim! La-
caios estúpidos! A vossa ‘ordem’ está construída em areia. A revolução
vai levantar-se outra vez e para vosso terror proclamará ao som de
trompetes: Eu fui, eu sou, eu serei” (HOLMSTROM, 2006, p. 18-19).

Luxemburgo não foi a primeira a teorizar o modo expansionista do


capital, visto que Marx foi o precursor, seguido de Lenin e Gramsci.
Contudo, a tese dela se difere dos demais intelectuais revolucionários
de sua época pelo fato de que, ao registrar o imperialismo como uma
fase do capital, o levaria a esgotar suas estratégias de acumulação,
afirma que a revolução proletária só ocorreria como uma necessidade
objetiva. Isso, em última análise, retira dos movimentos sociais a espe-
rança e a motivação revolucionária de cunho protagonista, ou seja, a
derrubada do capitalismo pelas “mãos dos trabalhadores”. Um divisor

46 Classes e movimentos sociais


e tanto de águas, não é? Para a esperança dos movimentos sociais pro-
letários, sobre esse tema, Lenin deixou significativo legado:
1. A concentração da produção e do capital levada a um grau tão
elevado de desenvolvimento que criaria monopólios, os quais
passariam a desempenhar um papel decisivo na vida econômica;
2. A criação da fusão do capital bancário com o capital industrial,
e a criação da oligarquia, baseada nesse capital financeiro;
3. A exportação de capitais, diferentemente da exportação de
mercadorias;
4. A formação de associações internacionais monopolistas de ca-
pitalistas, que partilhariam o mundo entre si;
5. A criação de termos de partilha territorial do mundo, entre
as potências capitalistas mais importantes. (LENIN, 1977, p. 107)

Luxemburgo ainda oferece excelentes materiais de análise, seja Curiosidade


do ponto de vista histórico ou político. Pesquisá-la é responsabili- Com relação a produções de
dade das mulheres do nosso tempo. O Dia Internacional da Mulher, mulheres marxistas sobre o
por exemplo, resultou da militância política de Luxemburgo e Clara feminismo e/ou à militância
feminina de influência marxista,
Zetkin, deputada do partido comunista alemão e uma das compa- destacam-se para estudo:
nheiras de caminhada de Luxemburgo. Alexandra Kollontai, Gayatri
Spivak, Heleieth Saffioti, Luce
Além dos autores mencionados nesta seção, houve muitos outros Irigaray, Nancy Fraser, Valerie
que marcaram a tradição marxista. Destes, alguns ainda influenciam Bryson, entre outras.
a teorização dos movimentos sociais: Friedrich Engels, por exemplo,
além de ter caminhado lado a lado com Karl Marx e de ter escrito al-
gumas obras em parceria (a exemplo, O Manifesto Comunista), foi o res-
ponsável por publicar, e até mesmo concluir O Capital, com base no
que Marx já havia deixado registrado antes de sua morte. Neste livro,
o autor não foi priorizado, dado que já existem materiais suficientes ao
entendimento dessa parceria e de seu papel nas produções marxistas.

2.3 A influência da tradição marxista nas


abordagens teóricas sobre os movimentos
sociais, após a década de 1960
Vídeo O estudo marxista sobre os movimentos sociais até a década de
1960 apresentou análises majoritariamente pautadas nas teorias clás-
sicas aqui já descritas. Tinha como foco a disputa de classes, o debate
revolucionário, as formas de organização partidária e a relação entre
esses campos analíticos.

Movimentos sociais e perspectivas teóricas 47


Contudo, após a década de 1960, algumas sociedades contemporâ-
neas visualizaram o nascimento de novos movimentos, com caracterís-
ticas peculiares não prestigiadas com profundidade nas obras de Karl
Marx, pois esses elementos não existiam na época do autor – ainda que
as demandas levantadas por esses novos grupos apresentem raízes so-
cioculturais tão antigas quanto a própria humanidade, a exemplo das
questões étnico-raciais e dos debates de gênero.

Com a entrada de novas pautas de luta e de novos grupos de repre-


sentatividade sociopolítica nos campos de disputa (construídos e/ou
fortalecidos na atualidade), um novo debate se abriu: a teoria marxista
ainda oferece subsídios adequados de análise após o surgimento dos
denominados novos movimentos sociais (NMS)? Essa questão foi levan-
tada devido às particularidades reivindicadas por esses movimentos,
com relação a aspectos que não envolvem necessariamente o debate
da disputa de classes.
Curiosidade Com isso, o campo de influência da teoria marxista com relação à
A sigla LGBTTIQ+ se transforma teorização dos movimentos sociais ficou dividido, visto que vários teó-
de modo processual e a intenção ricos (orgânicos ou não) passaram a dedicar esforços ao entendimento
primária em sua configuração
é trazer a visibilidade das dos NMS: Movimento dos Estudantes, Movimento Negro, Movimento
individualidades/peculiaridades Feminista, Movimento Indígena, Movimento LGBTTIQ+, Movimentos da
de cada grupo que compõe o
População do Campo, Movimentos Urbanos, Movimentos Ambientalis-
movimento. A sigla se refere a
lésbicas, gays, bissexuais, tra- tas e Movimentos Globais.
vestis, transexuais, intersexuais,
Uma parcela de teóricos marxistas se manteve inalterável diante
queer e outros. “O ‘mais’ indica
que há pessoas com orientações desse questionamento, considerada como marxista anacrônica/vulgar.
sexuais e identidades de gênero Ainda que poucos, esses teóricos insistem em se fechar absolutamente
que não aparecem nesse acrôni-
mo. Como as pessoas agênero e nas leituras de Karl Marx e buscam aplicar, na atualidade, com pouca
as não binárias, além de tantas ou nenhuma crítica, as análises do autor, como se fosse possível um
outras” (REIS apud CISCATI, encaixe perfeito. São marxistas que não consideram que as produções
2019). Para saber mais, acesse:
https://www.brasildedireitos. do autor são inseparáveis do seu tempo, ou seja, uma conjuntura que
org.br/noticias/500-por-que- ditava sua realidade em meados de 1880. Desconsideram, também, as
-a-sigla-lgbti-mudou-ao-lon-
diferentes fases intelectuais de Marx (jovem Marx e Marx maduro).
go-dos-anos. Acesso em: 22
jun. 2020. Na linha de influência teórica do marxismo frente à teorização dos
movimentos sociais, encontra-se também o grupo de teóricos mar-
xistas que continuam a valorar e utilizar as categorias analíticas de
Karl Marx (grupo que entende que as teorias de Marx ainda se fazem
atuais em contextos específicos). Esses se intitulam marxianos, mas

48 Classes e movimentos sociais


são conhecidos como marxistas ortodoxos, ou seja, um grupo de teóri-
cos marxistas usa o método do materialismo histórico-dialético para
a construção de suas análises.

Trata-se de um grupo da atualidade que faz uso das teorias do velho


Marx e de outros clássicos marxistas sem ignorar as grandes contribui-
ções de novos pensadores, no sentido de criar diálogos e embates com
autores de tradições teóricas diferentes, para construir novas análises
sobre temas da atualidade. Além disso, compreendem que a teoria de
Marx não pode ser aplicada em sua totalidade em tempos atuais.

Emergiram também os neo-marxistas, intitulados intelectuais hete-


rodoxos. Trata-se de um grupo que entende que Karl Marx não se aplica
mais à realidade atual, principalmente no que se refere aos novos mo-
vimentos sociais. Na concepção desse grupo, as teorias de Marx, além
de dogmáticas, são reducionistas, visto que privilegiam apenas uma
classe enquanto propulsora de transformações sociais. Fomentam um
tipo de marxismo aberto e, em suma, incorporam elaborações teóricas
de diferentes vertentes (NETTO, 2015).

Podemos assumir que não existe uma única influência marxista, o


que quer dizer que dentro de uma mesma tradição teórica há divergên-
cias e posicionamentos distintos. É evidente que o marxismo é uma das
tradições teóricas essenciais ao entendimento dos movimentos sociais,
tanto dos movimentos sociais de vanguarda (que protagonizaram as
lutas sociais) quanto dos novos movimentos. E mesmo as críticas das
grandes referências teóricas da atualidade têm cometido equívocos na
interpretação de Marx, o que corrobora com a tentativa de supressão
de suas contribuições para a análise dos movimentos sociais.

No entendimento do Serviço Social, hegemonicamente falando, as


análises de Karl Marx permanecem intrigantes há dois séculos, sua
contribuição é inegável e muitas de suas análises ainda não foram su-
peradas. Para ele, os movimentos políticos e os movimentos de classe
são frutos do conjunto de relações sociais entre sujeitos que têm cons-
ciência de seu lugar na história. Não possibilitar a constituição dessa
consciência é uma das grandes metas do capitalismo. Em seu tempo,
até havia ações em prol de colocar em debate outras pautas que não
fossem as lutas de classes, mas a luta organizada pelo movimento ope-
rário era o que imperava.

Movimentos sociais e perspectivas teóricas 49


Nesse sentido, o que Marx fez foi conceituar o que era e/ou deveria
ser um movimento de classe e um movimento político. Contudo, em
tentativas forçadas de encaixá-lo ao tema (a fim de comprovar sua de-
fasagem ou algo do tipo), diversas confusões teóricas são criadas. Mes-
mo Gohn demonstra cometer algumas interpretações equivocadas a
esse respeito, visto que autora também usa citações de Karl Marx como
se fizesse menção a uma teorização dos movimentos sociais.

Porém, quando pesquisado diretamente, as contribuições de


Marx ficam bem explícitas: ao falar de movimentos, ele se referia a
mudanças políticas, e não a movimentos sociais como conhecemos
na atualidade. O que Marx fez foi mostrar que toda mudança política
é uma mudança social:
todo o movimento em que a classe operária enfrenta como clas-
se as classes dominantes e tenta obrigá-las por meio de uma
pressão externa é um movimento político. A tentativa, por exem-
plo, de impor aos capitalistas isolados uma redução do tempo
de trabalho numa só fábrica ou num dado ramo industrial por
meio de greves etc. [...] é um movimento puramente econômi-
co; em contrapartida, o movimento para impor uma lei das oito
horas etc., é um movimento político. E, deste modo, surge, em
toda a parte, a partir dos movimentos econômicos isolados dos
operários, um movimento político, isto é, um movimento da clas-
se, para impor os seus interesses de uma forma geral, de uma
forma que possua força geral, socialmente coercitiva. Se estes
movimentos supõem uma certa organização prévia, eles são
igualmente, por seu lado, meio do desenvolvimento dessa orga-
nização. (MARX, 1982, p. 459-460)

Outra crítica muito utilizada contra o autor é a de que ele não con-
siderou o debate feminista em suas análises. Marx alertou que os
capitalistas sabem que devem retirar a possibilidade de as mulheres
ocuparem espaços decisórios e, por isso, a elas designam espaços de
subalternidade e submissão. Nas análises marxistas, o “ser mulher” é
um padrão, um produto social construído em cada período da história,
e, ao feminino, tem sido empregado o pior dos papéis no capitalismo:

50 Classes e movimentos sociais


a família capitalista foi instituída pelo capitalismo. Foi a primeira
forma de família que não se baseava em condições naturais, mas
econômicas, e concretamente no triunfo da propriedade priva-
da sobre a propriedade comum primitiva, originada esponta-
neamente [...]. A monogamia não aparece na história, portanto,
absolutamente, como uma reconciliação entre o homem e a mu-
lher e, menos ainda, como a forma mais elevada de matrimônio.
Pelo contrário, ela surge sob a forma de escravização de sexo
pelo outro, como proclamação de um conflito entre os sexos,
ignorado, até então, na pré-história [...] a condição social histo-
ricamente variável da mulher e seu lugar na sociedade, estão
intimamente ligados com a propriedade privada, a família e o
Estado, que é o aparato que legaliza tais relações e as impõem e
sustenta pela força. (ENGELS, 1984, p. 17)

A citação de Engels demonstra que Marx não ignorava o constructo de 5


5
mulher na sociedade – assim como não ignorou as questões étnicas –, O debate contemporâneo
como vulgarmente afirmam algumas análises pós-modernas. É preciso marxista sobre a questão étnica
valorar que, mesmo em seu tempo, além de não ignorar, Marx demons- pode ser acessado em diferentes
perspectivas. Farias (2017)
trou saber exatamente onde e por que as mulheres são “usadas”. Não se recomenda algumas delas, entre
dedicou a priorizar o tema, mas essa não pode ser uma razão para des- as quais destacamos: 1) Dossiê
qualificá-lo nas análises pós-modernas como alguns teóricos fazem. Marx Marxismo e questão racial (men-
cionado na Revista Margem
especializou-se, aprofundou-se em sua grande meta, ou seja, a exposição Esquerda, n. 27, publicada pela
do capital e de suas estratégias de exploração. Editora Boitempo em 2016);
2) Marxismo e questão racial,
Ainda que por diferentes vieses, diversos intelectuais e militantes mencionado pelo Núcleo de
interpretaram, dialogaram e/ou fizeram uso da teoria marxista em Estudos de Ideologias e Lutas
Sociais (Neils), ligado ao Progra-
todo o mundo, principalmente, os oriundos das Escola de Frankfurt. Al- ma de Estudos Pós-Graduados
guns não a destacaram, outros nem sequer fizeram qualquer menção em Ciências Sociais (PUC-SP),
a Marx, muito embora se possa identificar constructos dele em suas em edição especial (v. 19,
n. 34, 2015); 3) Panafricanismo
produções. O que mais importa é que cada um, a seu tempo e segundo e comunismo: conversa com
as demais vertentes teóricas que os conduziram, tem servido a apro- Hakim, em entrevista realizada
por Selim Nadi.
fundamentos teóricos importantes.

Assim, independentemente das dúvidas sobre as diferenças e os em-


bates acerca da influência de Karl Marx, para os que desejarem adentrar
nessa caminhada, importa saber que alguns elementos pontuados na teo-
ria dele são inegáveis à análise e à compreensão dos movimentos sociais:

Movimentos sociais e perspectivas teóricas 51


1. A divisão de classes permanece, ainda que na atualidade a luta 7. Nossas pulsões são o que torna possível o movimento, ou
se aparente desconfigurada em relação ao passado. seja, a ação se realiza por meio de sistemas de mediações
2. A história das sociedades é a história das lutas de classes, a que constituem a cultura. Assim, quanto mais mediatizada
relação entre dominantes e dominados e/ou de exploradores é a nossa vida, mais social ela é. Na sociedade capitalista,
e explorados. essas pulsões não são naturais, e sim preestabelecidas.
3. Somos o que somos porque nos transformamos e trans- 8. A pesquisa, ou seja, o estudo teórico, deve ter como premis-
formamos o mundo a nossa volta. Estamos, portanto, em sa a identificação e o diálogo das determinações históricas
constante movimento, e disso depende a construção da vida que constituem o social.
que idealizamos. 9. O conhecimento real só pode ser construído por uma
4. Evoluímos e nos constituímos socialmente por meio de ações e concepção democrática do conhecimento. Devemos, então,
relações sociais, tendo a atividade do trabalho como a principal conhecer o máximo de teorias sobre um determinado
dentre delas. Dependendo da organização e das condições de objeto, não a fim de mesclá-las e/ou repeti-las, mas para
trabalho, configuramos determinados tipos de vida e de ser em que seja possível debatê-las, enfrentá-las ou, no mínimo,
sociedade. dialogar com elas, a fim de verificar os potenciais de análise
que oferecem.
5. Enquanto houver divisão de classes, haverá desigualdade.
10. O que Marx oferece é uma teoria do social, construída em
6. A liberdade só existe para um “ser social” que se constitua livre
seu tempo, não acabada e aberta a novas construções.
e que, portanto, possa fazer escolhas entre opções concretas.

Por fim, cabe ressaltar que teorias são como lentes que potenciali-
zam a visão, contudo, não encerram em si mesmas a realidade concreta.

2.4 A influência dos teóricos clássicos


estadunidenses nas abordagens
teóricas sobre os movimentos sociais
Vídeo Outros intelectuais importantes se constituíram como influências
clássicas às abordagens teóricas dos movimentos sociais. Autores
oriundos da tradição sociológica estadunidense (Escola de Chicago),
por exemplo, produziram estudos que influenciam o campo analítico
dos movimentos sociais até os dias atuais.

Fundada em 1892, a Escola de Chicago foi erguida por meio do fi-


nanciamento de John Rockefeller, feito realizado devido ao envolvimen-
to direto de seu filho Davison com as ciências sociais. A Escola ficou
muito conhecida pelos estudos gerados com base em um significativo
número de pesquisas voltadas à investigação dos fenômenos sociais
que constituíam a cidade de Chicago.

Segundo alguns pesquisadores formados na instituição, havia dife-


rentes grupos e, no mínimo, duas modalidades de constructo de pes-
quisa: os grupos de orientandos, que produziam estudos e pesquisas
com base nas referências ditadas por um orientador, e os grupos de

52 Classes e movimentos sociais


trabalho, que não partilhavam necessariamente da mesma influência Curiosidade
teórica, mas desenvolviam atividades e estudos que se complementa- Ainda que fosse o homem mais
rico do mundo, por ter estudado
vam. O que os aproximava e os movia a trabalharem juntos era o inte-
Karl Marx, o filho de John
resse pela compreensão dos problemas culturais (BECKER, 1996). Davison Rockefeller demonstrava
uma diferenciada comoção pela
Entre os estudos produzidos na Escola de Chicago que influencia-
filantropia. Talvez um modo
ram as abordagens teóricas sobre os movimentos sociais, destacamos de agradar a Deus, visto que a
os do sociólogo alemão Georg Simmel. As análises de Simmel foram família era fortemente vinculada
à Igreja Batista e/ou, quem
construídas para a compreensão das problemáticas sociais em meio sabe, um modo de purificar
aos diferentes espaços urbanos da cidade de Chicago. As pesquisas do sua imagem social e da família,
autor o levaram a concluir que as sociedades oriundam de interações diante dos escândalos gerados
em algumas negociações consi-
sociais, construídas com base em relações de interdependência entre deradas irregulares no período,
diferentes sujeitos, ou seja, sociações de reciprocidade, nas quais nem como os monopólios. Essas são
nossas especulações a partir da
sempre se identificam acordos quanto a interesses.
leitura de biografias da família.
Com base nessas conclusões, Simmel construiu contribuições teóri-
cas acerca da constituição das massas e do conflito entre elas. Elaborou,
portanto, o conceito de sociação. Essa conceituação de Simmel propõe
que o principal fator de formação das massas não são as características
individuais de cada sujeito que compõe um determinado grupo social.
Para ele, as massas são formadas porque existem características em
comum entre as diferentes pessoas, fato que possibilita sua sociação.
Entende-se, assim, que mesmo quando constituído em massa, o movi-
mento social não representa a soma das características que compõem
o grupo. As massas não representam realmente o todo, e o que lhes é
realmente comum pode até não ser percebido e/ou acordado pelo todo.

Em uma passeata, por exemplo, nem todos do grupo realmen-


te têm consciência do que está sendo requerido, mas, ainda assim,
compõem multidões de reclames. O que se identifica com mais fa-
cilidade é o motivo pelo qual decidiram fazer essa sociação, des-
de opiniões como “o movimento parece legal, quero ver o que está
rolando”; “conheço pessoas, que conhecem pessoas, que disseram
que é importante”; “meus amigos participam da organização do mo-
vimento”; e “todo mundo vai, então também vou” até o esclareci-
mento de “sei do que se trata e defendo a ideia”.

O conceito de sociação, de Simmel, propõe que alguns dos princi-


pais problemas da vida moderna se localizam na inevitável relação de
conflito entre o indivíduo e a sociedade. Para o autor, a investigação
dos tipos de individualidades construídos pelas sociedades fornece ele-

Movimentos sociais e perspectivas teóricas 53


mentos para compreender os tipos sociais existentes dentro dos cole-
tivos, o que é uma condição necessária ao entendimento do porquê de
suas ações (WAIZBORT, 2013).

Uma das individualidades identificadas por Simmel em meio às mas-


sas faz referência à individualidade do pobre. O autor explica que, se
considerado o fato de que a pobreza é julgada pela coletividade (o todo
social), e que, com base nisso, criam-se processos estigmatizantes, o
pobre tende a se isolar e/ou é isolado de muitos tipos de interação. A
situação de humilhação social o conduz a não construir sentimentos de
pertencimento a uma classe social, visto que cria um tipo de individua-
lidade que resulta no distanciamento, até mesmo dos seus (PAUGAM;
SCHULTEIS, 1998).

Se considerarmos, por exemplo, que o interesse pela política resul-


ta de experiências vivenciadas, os tipos de individualidade de Simmel
podem explicar (ao menos em parte) um dos mais desafiantes proble-
mas identificados pelos movimentos sociais: a não participação políti-
ca, bem como o porquê do distanciamento das lutas de classes. Dado
que, na condição de excluídos, os pobres não compreendem e não se
percebem dignos de compreender os problemas sociais, visto que se
entendem como um deles.

Por fim, sobre Simmel, é inegável a representatividade de sua


influência nas análises dos movimentos sociais atuais, uma vez que
os principais debates teóricos sobre o tema permeiam a questão
da individualidade dentre as coletividades. Uma coerência teórica,
dada a atual conjuntura quanto aos tipos de organização e à for-
mação dos movimentos sociais.

2.5 A década de 1960 e as novas


influências nas abordagens teóricas
sobre os movimentos sociais
Vídeo Após a eclosão dos chamados novos movimentos sociais (NMS) nos
anos 1960, a suficiência da tradição marxista foi questionada, visto que
se argumentava não terem nada em comum com os movimentos so-
ciais clássicos anteriores. Assim, somada a um novo entendimento de
mundo, emerge, em meio ao campo universitário internacional, uma
oposição ferrenha às análises marxistas – mais precisamente na déca-

54 Classes e movimentos sociais


da de 1980 –, bem como um significativo esforço direcionado à criação
de paradigmas teóricos para explicar os movimentos sociais. A pauta
cultural e individual adentra o centro dos debates, sob o carimbo das
teorias pós-modernas.

Segundo o que afirmam alguns intelectuais europeus, como Alain


Touraine, destacado na sequência desta seção, a ruptura com a tra-
dição marxista foi necessária, visto que os NMS da Europa (iniciados
pelos estudantes) não tinham a questão das disputas de classes como
centro de debate. Essa concepção encontra como principal perspectiva
a ideia de que, na pós-modernidade, não há mais um sujeito revolucio-
nário, principalmente em debates organizados por partidos políticos. O
que passa a imperar, nesse contexto, é o sentido que o sujeito atribui
aos processos sociais: a sua representação, o seu imaginário e as indi-
vidualidades que os constituem.

Segundo Netto (2011), a compreensão desse debate requer conside-


rar que, a partir da instauração das novas medidas da macropolítica do
capitalismo contemporâneo, a perda da força dos interlocutores do so-
cialismo foi irremediável, ocasionando a quase total eliminação da pro-
dução cultural dos partidos comunistas. Esse processo configurou um
desprestígio acadêmico aos intelectuais vinculados à tradição marxista,
que, além de perder espaço e representatividade, perderam o financia-
mento de suas pesquisas. Enquanto saída, encontraram, em geral, mo-
dos de se inserir no debate pós-moderno com base em um mix analítico.

Para Netto (2011), ainda, este é o fenômeno de um sistema causal


diretamente relacionado às estratégias capitalistas. Isso não quer dizer
que as contribuições pós-modernas não tenham construído significati-
vas análises para o entendimento do Serviço Social. É preciso conside-
rar também o advento das novas tecnologias, visto que reconfiguraram
a dimensão espacial, ou seja, as mudanças foram efetivas, mas perma-
neceram configuradas pelo capital.

Não há dúvidas de que há novos processos, novos movimentos, no-


vas configurações no campo teórico, contudo, as alterações implicadas
pela divisão intelectual e técnica do trabalho não podem ser ignoradas.
Não se pode ignorar também que a ideologia burguesa ainda se faz
hegemônica na maior parte do mundo.

Em resposta às críticas destinadas aos intelectuais da tradição mar-


xista, José Paulo Netto (2009) e Manuel Castells (1999) consideram que

Movimentos sociais e perspectivas teóricas 55


o deslocamento da disputa de classes do centro dos debates dos movi-
mentos sociais está intrinsecamente relacionado ao fato de que, após
a década de 1960 – mais precisamente a partir da década de 1990, no
que diz respeito à realidade brasileira –, a organização dos trabalha-
dores foi fortemente influenciada pelas novas estratégias capitalistas
voltadas à internacionalização do capital.

Esse é um fato pouco considerado nas análises pós-modernas, mas


que deveria ocupar o centro deste embate, visto que a conjuntura ins-
taurada pela internacionalização do capital e pelas medidas macroeco-
nômicas que a sustentam resultaram em profundas repercussões no
interior de diversos países (sobretudo, nos países periféricos), princi-
palmente quanto ao desemprego e à precarização da força humana
de trabalho. Enquanto consequência, restaram apenas duas condições
aos trabalhadores: a condição de trabalhador indispensável, altamen-
te preparado para atender às qualificações requeridas pelo sistema
(privilégio dos poucos que conseguem construir uma formação educa-
cional), ou a condição de peça dispensável, que, em suma, tem como
única possibilidade de subsistência ocupar lugar na fila entre os demais
trabalhadores que constituem a mão de obra de reserva exploratória
do capitalismo, executando trabalhos precarizados, flexibilizados, frag-
mentados e/ou terceirizados (CASTELLS, 1999).

São elementos que resultaram na desmobilização dos trabalhadores,


na cooptação de dirigentes e organizações partidárias e afetaram dire-
tamente a visão de mundo, a capacidade de resistência e de reorganiza-
ção do movimento dos trabalhadores. Pode-se dizer que esse fato vem
sendo pouco considerado nas análises teóricas dos novos movimentos
sociais, as quais descartam categorias explicativas da tradição marxista,
essenciais à compreensão dos movimentos sociais da atualidade.

Quando se adentra com maior profundidade nas leituras dos


textos produzidos por Engels com Marx, uma questão importante
é encontrada: “a história de toda a sociedade até aqui é a história
das lutas de classes” (MARX; ENGELS, 1987, p. 29). Nesse contexto, é
válido indagar: trata-se mesmo de novos movimentos sociais ou de
novas configurações de luta?
A história de toda a sociedade até aqui é a história das lutas de
classes [...] “Homem” livre e escravo, patrício e plebeu, barão e
servo, burgueses de corporação e oficial, em suma, opressores

56 Classes e movimentos sociais


e oprimidos, estiveram em constante oposição uns aos outros,
travaram uma luta ininterrupta, ora oculta ora aberta, uma luta
que de cada vez acabou por uma reconfiguração revolucionária
de toda a sociedade ou pelo declínio comum das classes em luta.
Nas anteriores épocas da história, encontramos quase por toda
a parte uma articulação completa da sociedade em diversos es-
tados [ou ordens sociais – Stände], uma múltipla gradação das
posições sociais. Na Roma antiga, temos patrícios, cavaleiros, ple-
beus, escravos; na Idade Média: senhores feudais, vassalos, bur-
gueses de corporação, oficiais, servos, e ainda por cima, quase
em cada uma destas classes, de novo gradações particulares. A
moderna sociedade burguesa, saída do declínio da sociedade
feudal, não aboliu as oposições de classes. Apenas pôs novas
classes, novas condições de opressão, novas configurações de
luta, no lugar das antigas. (MARX; ENGELS, 1987, p. 29-30)

Alain Touraine é um dos teóricos da vertente pós-moderna cujas


contribuições são diversas acerca das representações e relações
constitutivas da identidade social. Foi um dos primeiros intelectuais a
teorizar sobre o nascimento de uma sociedade pós-industrial, confi-
gurada pela produção de serviços e não mais pela indústria, como tra-
dicionalmente ocorria. Nas análises do autor, a globalização destruiu
o social, visto que a política foi engolida pela economia, então não há
mais espaço para forças sociais. Touraine entende que as forças indi-
viduais são as únicas que demonstram ainda alguma chance de mol-
dar as sociedades, sendo elas: o novo movimento feminista, o novo
movimento negro e, entre outros, os novos movimentos fundados na
defesa do meio ambiente.

Segundo Touraine, em curto espaço de tempo, presenciaremos


primeiramente a separação completa da economia e da sociedade e,
posteriormente, o fim de instituições como escolas e sistemas de previ-
dência social. Ele acrescenta:
já que o que chamamos de sociedade são instituições que usam
recursos, com os quais fazemos escolas, estradas, sistemas de
previdência social, aviões, o que se quiser. Bem, o que nós vive-
mos por trás da crise é a globalização, ou seja, o fato de que a
economia mundial hoje está essencialmente ligada às finanças. A
existência de empresas, em si, não é um problema. Mas nós não
estamos mais em mundo de empresas, estamos em um mundo
de mercado, de mercado globalizado, e ninguém pode controlar
isso. (TOURAINE, 2011)

Movimentos sociais e perspectivas teóricas 57


Touraine afirma também que os movimentos sociais da atualida-
de submergiram as classes, colocaram-se acima delas, porque quanto
mais se penetram em si mesmos, enquanto sujeitos, mais se tornam
livres. Nessa nova constituição enquanto sujeitos, tornam-se libertos
de dependências e, assim, tem-se o nascimento da ética da autentici-
dade. Com base em suas individualidades, criam coletividades a fim de
combater leis, culturas e símbolos que lhes impeçam de ser quem são
e/ou quem desejam ser (TOURAINE, 2002).

Para Malfatti, essa concepção de Touraine pode colocar qualquer


regime democrático em risco e, até mesmo, instaurar guerras. Isso
porque a ideia de Touraine propõe a conquista à margem da lei, con-
cepção que poderia resultar no entendimento: caso não se tenha o
que deseja, se pode tomar.
Os movimentos sociais atuam exatamente contra um status
quo que lhes parece injusto no sentido de que a lei os discri-
mina e prejudica. Por isso, posicionam-se contra a lei estabe-
lecida. Se o movimento social pleiteia um pedaço de terra é
porque seus membros acham que não possuem terra porque,
por algum motivo, estão impedidos de possuí-la. Para tanto, é
preciso abolir a lei que não lhes dá oportunidade e, por isso,
devem lançar mão de outros meios para alcançar seu objetivo.
Ora, este modo de pensar pode ser estendido a qualquer mem-
bro da sociedade que não possua determinado bem que outros
têm e ele não tem. Então, quando se começa a agir à margem
da lei. (MALFATTI, 2011, p. 220)

Apesar dessa ressalva, Touraine é, na atualidade, um dos autores


mais referenciados nas abordagens dos movimentos sociais dado o
seu estilo de pensar e produzir teorias frente à contemporaneidade, na
perspectiva pós-moderna. Um ponto marcante das contribuições des-
se autor é o fato de que ele não acredita nas formas de representação
existentes nas sociedades. Para ele, as desigualdades reclamadas pelos
movimentos sociais não serão solucionadas por partidos políticos nem
por sistemas de governo, tampouco por uma revolução de classes.

O autor entende que nenhum dos modelos vivenciados resultou


em soluções reais, pois, quando o Estado é forte, todas as decisões
cabem ao Executivo, lugar de domínio das elites econômicas e polí-
ticas, ou seja, continua a prevalecer os interesses dos dominantes.
Quando o Estado é fraco, ganham espaço as representações terro-
ristas e/ou revolucionárias. Quando se derruba o Estado, o povo

58 Classes e movimentos sociais


fica à mercê da fome e da falta de importantes suportes, como
educação e saúde. As ideias de Touraine levam ao entendimento
de que esse ponto ainda está no campo do desconhecido, ou seja,
ainda precisa ser desenvolvido (TOURAINE, 1996).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo dos movimentos sociais ainda é recente, se considerada a
temporalidade histórica. Portanto, no entendimento do Serviço Social, de-
vem ser analisados sob a perspectiva crítica, dada a segurança de uma
vertente teórica estabelecida há mais de dois séculos.
É importante também ter em vista que muitos dos estudos construí-
dos aquém da influência marxista e principalmente pelos pós-modernos,
a partir da eclosão dos novos movimentos sociais, contribuíram para o
campo da teorização dos movimentos sociais. Em outras palavras, se faz
urgente dialogar com eles.
Contudo, é inegável também que os movimentos sociais nascem e se
estruturam em pleno processo de implantação das novas estratégias de
aprimoramento do sistema capitalista, portanto, novos ou não, se estrutu-
raram em meio às rédeas do capital. E dado que ninguém, sem exceção,
explicou o capital melhor do que Karl Marx, sua teoria social (mesmo que
construída em outra época) ainda pode fornecer instrumentos para que
nos seja possível identificar características/leis da sociedade atual.
A fim de instigar ao aprofundamento de leituras e pesquisas, demar-
camos a finalização deste capítulo com as seguintes questões: o capitalis-
mo reserva um “lugar específico” para determinados grupos (indígenas,
negros, mulheres, grupos LGBTTIQ+, deficientes, idosos, crianças e ado-
lescentes) ou as condições de negligência, violência, territorialidade, su-
balternidade e invisibilidade social que vivenciam nada manifestam com
relação ao sistema econômico atual? Se o capitalismo se instaura em to-
das as esferas da produção da vida, não teriam também esses novos mo-
vimentos certa marca desse processo, ou seriam eles superiores à lógica
da ideologia burguesa?

ATIVIDADES
1. Após 1960, a sociedade europeia vivenciou a eclosão de novas
configurações no campo dos movimentos sociais, o que inaugurou um
complexo debate acerca da validade da tradição marxista com relação
ao uso de suas teorias frente aos movimentos sociais desse período.

Movimentos sociais e perspectivas teóricas 59


Alain Touraine foi um dos precursores desse debate e, também, um
dos teóricos que mais tem sido utilizado para análises dos movimentos
sociais na contemporaneidade. Dado o contexto, explique: qual é o
principal elemento de análise utilizado pelos teóricos da tradição
marxista em resposta aos questionamentos frente à validade de seus
princípios epistemológicos?

2. Na contramão dos movimentos sociais clássicos, ou seja, do


movimento operário cujo debate central era a disputa de classes, os
movimentos que surgiram a partir da década de 1960 apresentam
outras características. Tendo em vista o exposto, registre quais são
as principais características desses novos movimentos na perspectiva
pós-moderna.

3. Várias vertentes influenciam a abordagem teórica dos movimentos


sociais e, portanto, estão baseadas em diferentes entendimentos sobre
os fenômenos sociais. Suas análises traduzem os acontecimentos do
mundo em teorias e teses, a fim de explicar as sociedades. Nesse
sentido, qual é o nome dado à teoria de Karl Marx e como se pode
explicá-la?

REFERÊNCIAS
BECKER, H. A escola de Chicago. Mana, Rio de Janeiro, v. 2, n. 2, out. 1996. Disponível
em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-93131996000200008.
Acesso em: 22 jun. 2020.
CASTELLS, M. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
CASTELLS, M. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet.
Rio de Janeiro: Zahar, 2013.
CISCATI, R. Por que a sigla LGBTI+ mudou ao longo dos anos. Brasil de Direitos, 30 set.
2019. Disponível em: https://www.brasildedireitos.org.br/noticias/500-por-que-a-sigla-
lgbti-mudou-ao-longo-dos-anos. Acesso em: 25 jun. 2020.
COUTINHO, C. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento político. São Paulo: Campus,
1992.
DURIGUETTO, M. L. Sociedade civil e democracia: um debate necessário. São Paulo: Cortez,
2007.
ELEY, G; NIELD, K. Adeus à classe trabalhadora? Revista Brasileira de História, v. 33, n.
66, São Paulo, jul./dez. 2013. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0102-01882013000200008. Acesso em: 22 jun. 2020.
ENGELS, F. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 9. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1984.
EVANS, K. Rosa vermelha: uma biografia em quadrinhos de Rosa de Luxemburgo. São
Paulo: Martins Fontes, 2017.
FARIAS, M. Uma esquerda marxista fora do lugar: pensamento adstringido e a luta de
classe e raça no Brasil. Revista SER Social, Brasília, v. 19, n. 41, p. 398-413, jul./dez. 2017.
Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/SER_Social/article/view/14946/13265.

60 Classes e movimentos sociais


Acesso em: 22 jun. 2020.
GOHN, M. G. Teoria dos movimentos sociais: paradigmas clássicos e contemporâneos. São
Paulo: Loyola, 2007.
GRAMSCI, A. Cuadernos de la cárcel. México, D.F.: Era, 1986. (Cad. 10 – XXXIII, 6 v.)
GRAMSCI, A. Escritos políticos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004. (v. 1, 1910-1920)
GRAY, R. Class, Politics, and Historical ‘Revisionism’. Social History, v. 19, p. 211, 1994.
HOBSBAWM, E. A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhias
das Letras, 2007.
HOLMSTROM, N. Capitalism For and Against: a Feminist Debate. Nova York: Fundação Rosa
Luxemburgo, 2006.
KRAUSZ, T. Reconstruindo Lênin: uma biografia intelectual. São Paulo: Boitempo, 2017.
JARDIM, D; MONTEIRO, M. L. Resgatar Lênin: uma tarefa para o presente. Debate sobre
reconstruindo Lênin: uma biografia intelectual, de Tomáz Krausz. Revista Espaço Acadêmico,
n. 203, abr. 2018.
LENIN, V. I. O Estado e a revolução. In: MARX, K; ENGELS, F. Obras escolhidas em três tomos.
Lisboa: Edições Avante!, 1981.
LENIN, V. I. O Imperialismo, Fase Superior do Capitalismo. In: LENINE, V. I. Obras Escolhidas.
Lisboa: Edições Avante!, 1977.
LOUREIRO, M. I. Rosa Luxemburgo: vida e obra. São Paulo: Expressão Popular, 2005.
MALFATTI, S. A. Os Movimentos Sociais em Alain Touraine. Revista Estudos Filosóficos, São
João Del-Rei, n. 6, 2011.
MARX. K. Carta a Friedrich Bolte. In: MARX, K; ENGELS, F. Obras Escolhidas em três tomos.
Lisboa: Edições Avante!, 1982.
MARX, K; ENGELS, F. Cartas filosóficas e o manifesto comunista de 1848. São Paulo: Moraes,
1987.
NETTO, J. P; BRAZ, M. Economia política: uma introdução crítica. São Paulo: Cortez, 2006.
NETTO, J. P. Capitalismo monopolista e Serviço Social. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2009.
NETTO, J. P. (Lecture): a Comuna de Paris e a Ditadura do Proletariado. São Paulo: PUC,
2011.
NETTO, J. P. Os três caminhos na tradição marxista: uma escolha para o marxista.
Curso Método em Marx, UFPE, jan, 2015. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=pLkuBO3bOmY. Acesso em: 25 jun. 2020.
PAUGAM, S.; SHULTHEIS, F. Naissance d’une sociologie de la pauvrété. In: SIMMEL, G. Les
pauvres. (Introdução). Paris: Presses Universitaires de France. Quadrige, 1998.
PORTELLI, H. Gramsci e o bloco histórico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.
TOURAINE, A. A Sociedade Post-Industrial. Lisboa: Moraes, 1971.
TOURAINE. A. O que é a Democracia? Petrópolis: Vozes, 1996.
TOURAINE, A. Crítica da Modernidade. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2002.
TOURAINE, A. A globalização destruiu totalmente o social. [Entrevista concedida a] Leila
Sterenberg. Globo News, Revista Conjur, 28 jan. 2011. Disponível em: https://www.conjur.
com.br/2011-jan-28/ideias-milenio-alain-touraine-sociologo-frances. Acesso em: 25 jun.
2020.
WAIZBORT, L. As aventuras de Georg Simmel. São Paulo: Programa de Pós-Graduação em
Sociologia da FFLCH-USP; Editora 34, 2013.

Movimentos sociais e perspectivas teóricas 61


3
A construção dos sujeitos
políticos na sociedade de classes
Este capítulo aborda os elementos que constituem a forma-
ção da cultura política, assim como em que medida interferem no
modo de os sujeitos construírem o entendimento da política e suas
ações no curso dela. Apresenta também o debate das disputas
de classes, a fim de mensurar o importante lugar que ocupam na
construção dos sujeitos políticos.
Trata-se de um conteúdo elaborado com base no entendimen-
to de que a construção política é um tipo de capital. Como tal, se
apresenta norteado de relações de poder, que são determinantes
para o nível de discernimento e de comprometimento dos sujeitos
com a questão política.

3.1 As origens da organização sociopolítica


na perspectiva de classes
Vídeo 1
As sociedades modernas são marcadas pelo sombrio cenário da
divisão de classes sociais. Essa separação configura uma realidade com-
posta por altos níveis de desigualdade social, onde uma minoria peculiar
(elites políticas e econômicas) exerce domínio sobre a organização social.
1 Da relação contraditória entre capital e trabalho, emergem tanto
Este capítulo aborda diferentes as leis que regulam e afixam a ideologia burguesa quanto as possi-
sociedades, mas será demarcado
bilidades de construção e luta por um novo projeto de sociedade, na
pela realidade brasileira. Para
o âmbito geral, usaremos o perspectiva dos trabalhadores. Dado o exposto, insistimos em reafir-
termo sociedade moderna e mar que todas as lutas travadas, em todas as sociedades já existentes,
para a realidade brasileira, nossa
sociedade.
foram e são lutas de classes (MARX, 1989).

Partindo desse pressuposto, entendemos que a organização social


moderna é constituída por um complexo conjunto de determinantes

62 Classes e movimentos sociais


históricos que preestabelecem os tipos de organizações sociopolíticas
que conhecemos na atualidade. Essa configuração social se revela em
um sistema de relações contraditórias que permitem brechas organi-
zacionais, segundo a capacidade de movimento e de luta social de cada
lado em disputa.

As organizações sociopolíticas que se originam da sociedade capi-


talista têm duas classes protagonistas: a fundamental e a transitória. A
primeira é formada pela burguesia e pelo proletariado, e a segunda é
constituída pelos sujeitos que compõem a classe média.

A burguesia como parte da classe fundamental, constituída pelos


“donos do poder” (herdeiros das aristocracias, das oligarquias e das
capitanias hereditárias, ou seja, banqueiros, empresários industriais de
diferentes ramificações, agropecuaristas, políticos de carreira, coronéis,
papas e bispos, diretores de empresas, funcionários de alto escalão do
Estado etc.), forma um grupo peculiar lavrado nas raízes sócio-históri-
cas das nações e reconfigurado estrategicamente, segundo os moldes
da economia e os tipos de fazer política que ela própria constrói.
o Brasil é um país dominado pelas elites (conservadoras) econô-
micas e políticas que, através de mecanismos de poder, instituem
regras, valores, crenças, costumes, símbolos e tipos de regime.
A história comprova que, em alguns momentos, os dominados
criam mecanismos de poder a fim de lutar por justiça social e
assim alcançaram o que hoje conhecemos por direitos. Mas ainda
que tenham obtido algumas conquistas frente às imposições das
elites políticas, não conseguiram instituir estratégias para confron-
tar, na mesma medida, as estruturas do poder econômico. Fato
que pode ser exemplificado pela não instauração da reforma de
Estado prevista na década de 1980. Em outras palavras, nesse pe-
ríodo, grupos socialmente excluídos e explorados conseguiram,
de certa forma, se organizar no que então parecia ser uma brecha
democrática e conquistaram a materialização de direitos sociais.
Contudo, essa brecha foi rapidamente contornada pelo dispositivo
Estado neoliberal (que na época se consolidava), que rapidamente
criou um tipo de inclusão que só seria possível se subordinada à
lógica de mercado. (LOPES, 2014, p. 133)

Podemos assumir, segundo Lopes, que a burguesia tem como al-


gumas de suas principais características o conservadorismo e a cons-
ciência de seu lugar de classe. Essa minoria muito distinta, por deter
poderes econômicos e políticos, constitui capitais sociais que perfei-
tamente a instrumentam ante os objetivos de perpetuação do poder

A construção dos sujeitos políticos na sociedade de classes 63


que, para ela, lhe é merecido (LOPES, 2014). Sobre o indivíduo burguês,
portanto, é válida a definição:
o burguês é aquele que “mora no seu quarto”, que vive isola-
do da sociedade e da natureza em torno, gozando, todavia, de
seus frutos, mas sem se dar conta da fluidez extrema da situação
do mundo real que ignora. Sua preocupação é consigo mesmo
e com seus pares burgueses, mesmo por não conseguir perce-
ber a necessidade de qualquer preocupação com o mundo real.
(RAMALHETE, 2016)

Constituindo o outro lado da classe fundamental, vemos o prole-


tariado, grupo oriundo das mais severas condições de sobrevivência
(descendentes de escravos, trabalhadores braçais assalariados e tra-
balhadores informais, grande parte das mulheres, indígenas urbanos,
refugiados e imigrantes, trabalhadores do campo etc.), ou seja, dos po-
bres que, além de historicamente explorados, vivenciam a miséria. Na
definição elitista romana-burguesa, aquele “que só é útil pelos filhos
que gera” (DICIO, 2020).
O proletariado é aquela classe da sociedade que tira o seu sus-
tento única e somente da venda do seu trabalho e não do lucro
de qualquer capital; [aquela classe] cujo bem e cujo sofrimen-
to, cuja vida e cuja morte, cuja total existência dependem da
procura do trabalho e, portanto, da alternância dos bons e dos
maus tempos para o negócio, das flutuações de uma concor-
rência desenfreada. Numa palavra, o proletariado ou a classe
dos proletários é a classe trabalhadora do século XIX. (MARX;
ENGELS, 1982, p. 56)

Podemos assumir o proletariado como grupo peculiar que é oriun-


do da sociedade capitalista e, mesmo na condição de não escravo,
continua a ser explorado, negligenciado em seus direitos, sem ter as
condições adequadas e, tampouco, mínimas a uma vida digna.

Cabe considerar que o capitalismo não foi responsável pela inven-


ção da pobreza, pois essa condição de ser em sociedade já existe desde
os primórdios da humanidade. As antigas condições de pobreza deriva-
ram de um quadro generalizado de escassez, que se constituía devido
ao baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas materiais e
sociais dos períodos históricos que antecederam o capitalismo.

Contudo, a partir da sociedade capitalista, mais precisamente após


a Revolução Industrial, emerge um novo tipo de pobreza (jamais cons-
tatado na história para os “sujeitos livres”), a pobreza absoluta enquan-

64 Classes e movimentos sociais


to barbárie estratégica do capital. Isso se constata pelo fato de que,
diferentemente das precárias condições de produção anteriores, a po-
breza passou a ser acentuada na mesma medida em que se aumentava
a capacidade social de produzir riquezas. Uma incoerência proposital.
Pela primeira vez na história registrada, a pobreza crescia na
razão direta em que aumentava a capacidade social de produzir
riquezas. Tanto mais a sociedade se revelava capaz de progressi-
vamente produzir mais bens e serviços, tanto mais aumentava o
contingente dos seus membros que, além de não terem acesso
efetivo a tais bens e serviços, viam-se despossuídos até das con-
dições materiais de vida de que dispunham anteriormente. Se,
nas formas de sociedade precedentes à sociedade capitalista, a
pobreza estava ligada a um quadro geral de escassez (quadro em
larguíssima medida determinado pelo baixo nível de desenvol-
vimento das forças produtivas materiais e sociais), agora ela se
mostrava conectada a um quadro geral tendente a reduzir com
força a situação de escassez. (NETTO, 2012, p. 203)

Desde então, os proletários têm sido designados à condição de


pauperismo, ao sentimento de insegurança e ao afastamento das 2
2
possibilidades de aprimoramento enquanto seres sociais . Passaram
“Na tradição marxista, o ser
a compor o exército de mão de obra de reserva do capitalismo, sem social é um ser real, concreto,
qualquer meio para produzir de modo autônomo a sua subsistência, histórico e dialeticamente consti-
tuído na vida, em contraposição
restando-lhes apenas a venda de sua força de trabalho e, como con-
à proposta idealista. O ser social
sequência, a insegurança social – em termos mais fidedignos, o campo se diferencia dos animais pela
do desespero social. Mas quem é o proletário? Segundo os dados apre- sua capacidade de transformar
a própria natureza, de tal modo
sentados em diferentes pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e que, ao transformá-la, transfor-
Estatística (IBGE), pode-se definir o perfil da população pobre brasileira ma a si mesmo. [...] O primeiro
da seguinte maneira: ato humano e social, segundo
os apontamentos marxistas, é a
sujeitos que vivem em condições precárias de vida, podendo criação das condições materiais
ser pobres, extremamente pobres e/ou menos pobres [...] não para a sua sobrevivência. Deste
desfrutam de alimentação adequada e, por isso, sofrem de di- modo, para que possa fazer sua
própria história, deve, primeira-
ferentes tipos de desnutrição alimentar [...] são aqueles(as) que
mente, estar em condições para
ainda cozinham com lenha, porque não podem custear o gás e isso” (MARX; ENGELS, 2007 apud
a eletricidade sem políticas públicas que possibilitem seu uso BRAGHINI; DONIZETI; VERONEZE,
[...] vivem em péssimas condições de moradia, isso quando as 2013, p. 2).
possuem (barracos, aglomerados, favelas, casas inacabadas).
Em maioria, alocados nas regiões mais periféricas das cidades
e/ou em terrenos irregulares, em áreas de proteção ambiental
(morros, encostas, beiras de rio) [...] quando possuem renda,
tratam-se majoritariamente, de famílias com renda inferior a
70$ por pessoa da família e também os grupos beneficiários de

A construção dos sujeitos políticos na sociedade de classes 65


programas de renda mínima como, por exemplo, Bolsa Família
e Benefício de Prestação Continuada [...] grupos que dependem
exclusivamente de políticas públicas para acessar, atendimentos
de saúde, formação educacional, saneamento, garantia de renda
etc. [...] em relação ao trabalho, são famílias que não detém os
meios para produzir e, que portanto, dependem em maioria de
trabalhos gerados na informalidade (bicos), do trabalho de salá-
rio mínimo [...] constituem também este grupo, os analfabetos
totais e os analfabetos funcionais [...] uma população majorita-
riamente negra ou parda e constituída em maioria por mulheres
[...] Em suma, três tipos de família constituem a população extre-
mamente pobre: aquelas cuja conexão com a renda do trabalho
é agrícola, precária ou inexistente. (IBGE, 2017; 2018)

O proletariado e a burguesia constituem as classes fundamentais


porque, no sistema capitalista, as principais disputas ocorrem entre
eles. Disputas que atuam como a força motriz da história, pois configu-
ram a sociedade moderna. Trata-se de um debate que não considera
princípios morais individuais, e sim os diferentes projetos societários
que concorrem desde os primórdios das sociedades civilizadas.

Tendo em vista o exposto, cabe refletir sobre a classe transitória,


ou seja, a classe média, nas atuais configurações da sociedade moder-
na. Essa classe se constitui tanto de privilégios, negociados por meio
de relações pessoais diretas com as elites, quanto da gama de direitos
conquistada pela luta dos trabalhadores. Ela é a criação não planejada,
mas rapidamente cooptada pelo capital.

É uma classe de condição econômica intermediária, que se localiza


majoritariamente nos espaços da intelectualidade curricular (univer-
sitários), entre os pequenos proprietários, no funcionalismo estatal e
nas organizações da sociedade civil. Enquanto característica peculiar, é
constituída de sujeitos que receiam retornar à condição de proletários
que ocuparam ou de que emergiram e, portanto, desenvolvem um tipo
de rejeição que os cega a ponto de passarem a se perceber como elites,
ainda que na realidade não controlem nada (SOUZA, 2018).

Desse modo, passam a referendar e reproduzir as características


mais perversas da ideologia burguesa: discurso meritocrático, estraté-
gias capitalistas de desenvolvimento, criminalização da pobreza, julga-
mento moral e fascista do pobre e, principalmente, hábitos culturais

66 Classes e movimentos sociais


e morais elitizados. Além de não possuírem consciência do seu lugar
de classe, ignoram sua condição de serviçais e de peças utilizáveis. Na
estrutura organizacional burguesa, a classe média cumpre também a
função de necessária consumidora, alimento aos “motores capitalis-
tas”, visto que a elite pouco consome produtos nacionais.

Se os proletários se constituem como a mão de obra de reserva do


capitalismo, a classe média se configura como um exército de servi-
çais, facilmente manipuláveis e manejados para o consumo nacional.
Trata-se de uma classe transitória, visto que seu lugar de classe não é
estável, pois está diretamente relacionado à manutenção dos direitos
conquistados pelos trabalhadores e ao entendimento do capital diante
da demanda de seus serviços nas relações sociais e no mercado. São,
portanto, uma espécie de “capatazes das elites”.

É nesse contexto de desigualdade e contradições que emerge a or-


ganização sociopolítica da sociedade na perspectiva de classes. Assim,
organizações, instituições e diferentes tipos de relações são desenvolvi-
dos a fim de colocar em movimento as frentes de luta pelos diferentes
projetos de sociedade. Afinal, ainda que a hegemonia burguesa esteja
instaurada, isso não impede processos de disputa.

Dessa lógica, surgem as instituições e representações sociais


como as conhecemos na atualidade: família, Estado, ordenamento
jurídico, escolas, universidades e outras. São criados também os ti-
pos de organizações representativas: partidos, institutos, lideranças
políticas e religiosas, chefias de Estado e demais cargos representa-
tivos. Uma totalidade em movimento, regida e materializada na ação
(com participação) dos sujeitos.

3.2 A influência da cultura política


na organização sociopolítica
Vídeo
Toda organização sociopolítica é materializada por meio de ações
e instituições, o que requer a participação dos sujeitos no processo,
ao menos na perspectiva dos regimes democráticos, pois, quando não
há traços de democracia, não há participação social – processo que só

A construção dos sujeitos políticos na sociedade de classes 67


3 ocorre mediante espaço de disputa concreta, o que, por exemplo, é
3
Surge da crença de que a quase inexistente em regimes nazistas .
grandeza presente e futura da
Alemanha e de toda a “raça A participação é entendida como oportunidade de ação, gerada pela
ariana” dependia da luta pela criação de oportunidades reais, em que se executam reivindicações in-
“pureza racial”; essa “pureza”,
dividuais e coletivas contra as forças internas e/ou externas, que, por
concebida em termos biológicos,
impunha o afastamento e, no estarem em disputa, incidem sobre o social. Trata-se de um espaço de
limite, a destruição dos grupos debate, posicionamento e enfrentamento das problemáticas sociais,
humanos “inferiores”, cujo epíto-
me era representado pela “raça” que se instituem por meio de processos de luta permanente e de con-
judaica (FAUSTO, 1998). quistas processuais. É algo construído e não cedido/dado, além de ter
começo, meio e fim. É um instrumento das classes e dos mais diversos
grupos sociais étnicos, de gênero, de faixa etária, de tradição, regiona-
lidade e de território (PATEMAM, 1992; DEMO, 1998).

A participação é um dos mecanismos estratégicos que torna possível


a disputa e a mediação de classes ante os projetos sociopolíticos que são
disputados. Nas sociedades atuais, a participação tem sido construída
enquanto conquista do processo de luta pela instauração da democracia
participativa, mas fiscalizada pela ordem burguesa (DAGNINO, 1994).

A participação é o primeiro plano de constituição do sujeito políti-


co. É sujeito porque é socialmente constituído por meio de diferentes
vivências que emergem de diversos tipos de relações sociais. Estas ge-
ram diferentes discursos, determinados pertencimentos e sentimen-
tos, que se manifestam em narrativas, símbolos e culturas, os quais
influenciam e constroem modificações e/ou transformações sociais.

O sujeito político é, então, orientado pela cultura política (valores,


crenças e símbolos, que constituem tipos de caráter, comportamento,
regimes etc.) de cada povo, nação e território. Cultura que, por ser po-
lítica, é social, e, portanto, também é poder, visto que interfere no nível
de democracia e, principalmente, na condição de mobilidade social em
meio às estruturas de poder – isso considerando que a cultura política
também se constitui de determinantes econômicos, políticos e cultu-
rais (LOPES, 2014).

Dado que a cultura política é um determinante sócio-histórico da


ação política, por ser construída em contextos históricos diversos que,
por sua vez, carregam condições históricas repletas de códigos cultu-
rais, é inegável que ela determina os tipos de participação social na
construção da organização sociopolítica das sociedades. A organização
sociopolítica brasileira, por exemplo, é desenhada principalmente pela

68 Classes e movimentos sociais


herança deixada pelas redes de parentesco e de poder que têm se per-
petuado ao longo de séculos e que demarcam as raízes da desigualda-
de social percebida nesse território.

Essa herança social reproduz o ciclo de dominação das elites (por


meio de diferentes mecanismos de dominações econômica, ideológi-
ca e cultural) a fim de subalternizar sociopolítica e economicamente a
população, pelo prevalecimento da cultura do favor em detrimento da
concepção de direitos. Esse mecanismo, fundado com base nos privi-
légios oriundos dos tempos do Brasil Colônia, se materializou em po-
derios econômicos capazes de forjar falsas e/ou reduzidas cidadanias.
Processo que se instaura, visto que:
quando reduzidos os recursos econômicos para satisfazer as de-
mandas materiais básicas, o processo de desagregação da vida
social se dá de forma acelerada, pois, em condições precárias
de subsistência, dificilmente se estabelecem formas de cultura
política participativa e por consequência, o que se tem é a apatia
política. (BAQUERO, 2003, p. 5)

Outro importante determinante da cultura política brasileira é o


fato de que a organização das estruturas sociais, econômicas, políti-
cas e culturais é majoritariamente engendrada pela ordem burguesa, o
que resulta na criação de espaços de participação política controlada.
Vejamos: se a ideologia burguesa rege todas as sociedades capitalistas
(que só é capitalista, porque é burguesa), é certo dizer que todas as
estruturas sociais nessa ordem são criadas para atender aos interesses
de apenas uma classe social – a burguesa. Assim, mesmo quando os
proletariados lutam, saem vitoriosos das disputas travadas e conquis-
tam espaços voltados ao exercício da participação política, ainda assim
continuam a ser controlados (direta ou indiretamente).

Esse processo ocorre por meio de um tipo de fiscalização estratégi-


ca especializada, pela manipulação do voto em relações clientelistas e
paternalistas entre burgueses, classe média e proletários. Ocorre tam-
bém por meio da pressão gerada pelo poderio econômico das elites,
que se manifesta na ocupação do Estado, tanto como campo estraté-
gico de institucionalização e legalização dos ideais burgueses quanto
como espaço de armazenamento legítimo de força militar (acionada
quando os interesses do capital estão em risco, devido aos enfrenta-
mentos travados contra o poder popular).

A construção dos sujeitos políticos na sociedade de classes 69


Outro ponto de relevância nesse contexto se trata da amarração
econômica das instituições da sociedade civil, que vemos na depen-
dência dos movimentos sociais com relação aos recursos estatais (fi-
nanciamentos e negociações). Assim, de modo globalizado, vemos nas
medidas macroeconômicas do capital internacional que, além de dita-
rem o tipo de desenvolvimento, se configuram uma ameaça constante
aos direitos duramente conquistados pelos trabalhadores, incidindo na
insegurança da classe proletária, na cooptação de lideranças e, portan-
to, no enfraquecimento e descrédito da organização partidária.

Esses são alguns dos elementos da cultura política brasileira, que


influencia e, por vezes, determina a constituição dos sujeitos políticos e
a organização sociopolítica da sociedade. A cultura política é, em qual-
quer sociedade, um complexo conjunto de elementos que se materia-
lizam por meio de:
normas, crenças, mais ou menos largamente partilhados pelos
membros de uma determinada unidade social e tendo como
objetos fenômenos políticos (BOBBIO, 2000, p. 306). Segundo
os apontamentos do mesmo autor, existem três tipos de cultura
política: a das sociedades simples, a cultura política da sujeição e
a cultura política da participação. O primeiro tipo se dá quando
as instituições e os papéis de caráter especificamente políticos
não existem ou ajustam-se as estruturas e aos papeis de cunho
econômico e religioso. O segundo acontece quando os sujeitos
se envolvem diretamente com o sistema político, porém com
foco especifico na execução dos encaminhamentos dados e não
nos processos decisórios, como por exemplo, o que acontece
nos regimes políticos mais autoritários. A cultura política de par-
ticipação que se refere à terceira tipificação também faz relação
com o envolvimento direto dos sujeitos, porém o que diferencia
o terceiro do segundo tipo é o fato de que na participação os po-
sicionamentos são mais amplos e a ação dos sujeitos é analisada
tanto nos processos decisórios quanto na execução do já decidi-
do. (BOBBIO, 2000 apud LOPES, 2014, p. 105-110)

Assim, a cultura política ocupa lugar central na formação sociopo-


lítica das sociedades e se materializa segundo as características pecu-
liares de cada tipo de território, história étnica, tipo de regime político
e jurídico, além da moralidade estabelecida. Quanto à formatação do
sujeito político, torna-se menos ou mais democrática conforme o grau

70 Classes e movimentos sociais


de formação educacional, o nível de dependência e fragilidade econô-
mica populacional e, sobretudo, a ideologia hegemônica.

A cultura política é responsável pela condução de diversos proces-


sos e comportamentos, influencia diretamente a formação da opinião
e a ação dos sujeitos, resultando na moldagem da democracia e, prin-
cipalmente, na qualificação e no nível de poderio das ações humanas
ante as estruturas sociais. A cultura política exerce influência no coti-
diano, no modo como as pessoas partilham informações, criam expec-
tativas e vivem.

Com base nos pressupostos criados pela cultura política de cada


povo, cria-se a organização social, fundada nos valores eleitos para dar
legitimidade às instituições políticas. Portanto, diferentemente do que
se acredita e se espalha no senso comum, a cultura política não é de-
terminada pelos tipos de regime, e sim pela ideologia que, por ocupar
lugar hegemônico, conspira e cria organizações favoráveis a seus idea-
lizadores. Na experiência brasileira, a cultura política é criada majori-
tariamente pela ideologia burguesa, o que caracteriza uma sociedade
marcada por níveis extremos de desigualdade social.

Vemos uma sociedade timbrada pelo uso das políticas públicas


como “moeda de troca eleitoral”, constituída por grupos que, na condi-
ção de alienados, servem de massa de manobra a partidos, instituições
religiosas e diferentes lideranças. Ainda se faz presente o tipo de orga-
nização sociopolítica que é conduzida pelo medo da tirania de famílias
políticas de poderio econômico, herdado na época do Brasil Colônia,
que se constituem vencedoras silenciosas mesmo com a ascensão de
debates sobre cidadania e direitos sociais, ainda perpetuando seus ne-
gócios e tramas exploratórias (OLIVEIRA, 2015).

Contudo, ainda que não se observem transformações mais totali-


zantes, não se pode negar os avanços instituídos por meio das lutas so-
ciais travadas. Na contramão dos processos burgueses, encontramos
estratégias de enfrentamento e luta dos movimentos sociais de classe,
dos movimentos identitários e dos demais grupos que constituem o
bloco dos novos movimentos sociais. Sujeitos que se diferenciam da
massa comum devido aos tipos de capitais sociais e políticos que cons-
truíram e que, na resistência, têm contribuído para alterar significativa-
mente a cultura política brasileira.

A construção dos sujeitos políticos na sociedade de classes 71


O conceito de capitais sociais e políticos, de Pierre Bourdieu, faz referência a um tipo de poder construído com
base em relações sociais que, em primeira medida, são acessadas por relações de proximidade e interesses
oriundos do poder econômico, mas não o são em si. Um pobre, por exemplo, pode conseguir construir capital
social e/ou político, ainda que não possua poder econômico, mas são possibilidades mais raras, oportunidades
que devem ser planejadas.
Quando optamos, por exemplo, pela carreira do Serviço Social, tem-se implícito que nossa caminhada dificil-
mente nos colocará do mesmo lado dos capitalistas, o que resultará na construção de relações mais implícitas
com os sujeitos com os quais nos identificamos, seja uma luta consciente ou não. Desse modo, dificilmente
seremos convidados e, tampouco, vamos desejar estar à mesa em que os grandes industriais celebram a
exploração da vida. Na mesma linha, dificilmente seremos amigos pessoais das elites, ainda que, em algum
momento, por um motivo ou outro, ocupemos os mesmos espaços. Já os que optam por carreiras que elevam
os capitais econômicos, como Medicina e Direito, são conduzidos a determinados estilos de vida que constroem
4 relações muito próximas ao alto escalão. Essa caminhada possibilitará construir um capital entre as possibilida-
des de poder, resultantes das relações pessoais reforçadas pelo poderio econômico que já tinham.
O primeiro-damismo resulta
na negação do direito social,
na desprofissionalização das Por fim, cabe considerar que a cultura política não é estática, man-
políticas sociais e na condição
subalterna da mulher. Consiste tendo-se passível de alterações e rupturas radicais. Isso possibilitou a
no deslocamento do direito so- conquista de um significativo leque de direitos sociais que, a partir do
cial para uma ode à filantropia,
advento da tecnologia da informação, com a sociedade em rede, tor-
ao voluntariado e à solidariedade
indiferenciada. Reside no reforço nou possível dar visibilidade às disputas políticas.
do papel tradicional da mulher
em uma sociedade patriarcal,
A conexão em rede, além de permitir acessar diferentes deba-
submetendo-a a múltiplas tes, trâmites e encaminhamentos decorrentes da luta de classes,
e extenuantes jornadas de também possibilita a organização sociopolítica e a ascensão de
trabalho (remunerado e/ou não)
e a profundas desigualdades na movimentos e grupos representativos, antes desconhecidos na his-
divisão sexual do trabalho, no tória das sociedades. Movimentos imprescindíveis para “a denún-
racismo, nas relações de poder cia” de processos de corrupção e de artimanhas históricas como o
e na apropriação privada da 4
riqueza (CFESS, 2016). coronelismo, o clientelismo, o nepotismo e o primeiro-damismo .
Na sociedade em rede, pouco fica oculto, nada se mostra imóvel e
tudo gera pensares.

3.3 A organização sociopolítica na perspectiva


de classes e de outros grupos identitários
Vídeo
No campo exequível da participação popular contemporânea,
localizamos as organizações dos setores representativos (partidos,
categorias profissionais com seus conselhos, agremiações estu-
dantis e centros acadêmicos de universidades), os institutos, as
organizações da sociedade civil (OSC) e o Estado, compreendido
como estrutura base dessas relações.

72 Classes e movimentos sociais


Na organização partidária, localizamos as lideranças, os militantes
em geral e os “seguidores de partidos”. Os partidos são formados por
pessoas que, com base em lideranças, se associam em prol de seus inte-
resses. Trata-se de um tipo contemporâneo de representação por voto
direto, tal como os princípios constitucionais democráticos determinam,
mas que nem sempre se cumprem devido aos elementos constitutivos
da cultura política brasileira. Essas lideranças formam a assembleia re-
presentativa, responsável por criar normalidades jurídicas, executar a
função de fiscalizar o bem público e legislar sobre a nação.

Assim, alocam-se em espaços de câmaras ordenadas (bancadas)


segundo interesses majoritários. São exemplos de frentes a bancada
ruralista, a bancada sindical, a bancada evangélica e a bancada ambien-
talista. A bancada das câmaras, em regra, é constituída por parlamenta-
res de diferentes partidos aliados, comumente denominados de partidos
da direita, da esquerda e os autodenominados de centro/meio.

Um dos elementos da cultura política que constitui a divisão par-


lamentar brasileira são as relações familiares (a patriarcal enquanto
hegemônica), fato característico da tradição imperialista, clientelista
e nepotista da época do Império e da Primeira República. Famílias de
poderio econômico quase não dimensionável, além do prestígio e das
relações de parcerias de poder que estabelecem entre si (direita, ex-
trema direita e, de modo frequente, o centro), também usufruem de
relações que lhes garantem o uso legitimado das forças armadas (a
bancada militar).

Desse modo, essas famílias têm ocupado suas gerações no ofício de


manter mando e domínio sobre o Estado, e o fazem por meio do con-
trole quase total dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, bem
como do Tribunal de Contas da União. Historicamente, podemos vê-
-las no comando da produção da informação e do conhecimento, por
meio da indústria da mídia e, em menor proporção, dos espaços da
arte (OLIVEIRA, 2015). Em sua maioria, essas famílias defendem pautas
relacionadas à manutenção do conservadorismo, das liberdades indi-
viduais, das tradições, do não gasto e/ou da redução de investimentos
nas áreas do Direito Público, de privilégios e, não raro, de ideias impe-
rialistas, conservadoras e ditatoriais.

As representações dos grupos de centro, por sua vez, apresentam a


característica do trânsito entre as demais posições, ainda que majorita-

A construção dos sujeitos políticos na sociedade de classes 73


riamente apoiem as frentes de interesse dos grupos da direita. Identifi-
cam-se em geral como liberalistas, cumprem a função de mediadores,
equilibram para haver consensos, mas, em momentos extremos em
que se colocam em risco os princípios conservadores e/ou o rumo da
divisão econômica, historicamente apoiam a direita.

No campo dos grupos de esquerda, representados pelas bancadas


relacionadas às lutas sindicais e aos direitos humanos (atualmente,
conduzidas pelos reclames dos novos movimentos sociais), encontra-
mos as lideranças do partido dos trabalhadores, dos estudantes das
universidades públicas, dos intelectuais (orgânicos), dos artistas e de
movimentos como o das mulheres, dos negros, dos indígenas, dos
LGBTTIQ+ e outros.

A esquerda se associa por interesses que envolvem a luta pela


efetivação de direitos, pelo exercício da cidadania, pela igualdade e
equidade de oportunidades a diferentes etnias e gêneros. Representa
também a luta pelos direitos humanitários, pela redução ou fim da de-
sigualdade na distribuição da renda socialmente produzida, bem como
se agrega a pautas voltadas à garantia dos direitos dos trabalhadores,
às regionais, ao laicismo do Estado e à liberdade religiosa.

Cabe considerar que, no cenário contemporâneo, essas divisões


apresentam outras diversas variações, segundo o nível de envolvi-
mento ideológico e tático com os projetos societários em disputa e
segundo o que apresentam as pautas históricas e/ou mais atuais. No
campo representativo da direita e da esquerda, infelizmente, encon-
tramos mostras de fanatismos, sexismos, racismos e outros extremis-
mos inconstitucionais.
Mesmo depois de passados, mais de 30 anos da instituição da
Constituição de 1988, o Brasil não instituiu processos que ga-
rantissem (de modo livre, efetivo e concreto), que a participação
sociopolítica fosse de fato democrática. Os princípios da carta
constitucional não se tornaram uma realidade, ainda que tenha
sinalizado a sociedade brasileira a superação muitas das práticas
anteriores. No campo da institucionalidade jurídico constitucio-
nal, principalmente no que se refere ao tocar da “coisa pública”,
permaneceram as tendências tradicionais de se fazer política.
(LOPES, 2014, p. 116)

74 Classes e movimentos sociais


Assim se configura a organização sociopolítica brasileira, modelo
de representação e de espectros políticos que tem sido questionado.
As práticas partidárias de agenciamento dos atores políticos, as cor-
rupções empregadas por suas lideranças e as incansáveis negociações
para a manutenção de poder, a qualquer custo, têm exaurido a po-
pulação que não ocupa lugar de militância e ação política direta, de-
cepcionando também a nova geração de sujeitos políticos da internet.
Tal conjunto de descréditos conduz as últimas gerações a exercitarem
novos modos de pensar e fazer política, ainda que nenhuma mudança
estrutural tenha sido apresentada.

3.4 Novas configurações no campo de luta


Vídeo A organização sociopolítica brasileira que conhecemos na atualida-
de resultou de um histórico de luta. A partir da instituição da Constitui-
ção Federal de 1988, o Brasil adentrou a era dos direitos, conjuntura
originada dos processos de luta instituídos entre as décadas de 1960
e 1980, quando a esquerda brasileira se organizava para enfrentar o
governo militar, unindo o movimento dos trabalhadores, alguns grupos
de intelectuais e artistas, categorias profissionais e, principalmente, es-
tudantes universitários.

A luta travada não foi fácil. O governo militar foi instituído em 1964,
quando os militares assumiram o poder do Brasil. Foram mais de
20 anos caracterizados por negação do direito ao debate, à ação po-
lítica e a qualquer movimento que colocasse em dúvida a ordem do
regime instituído. A banalização do autoritarismo e a indiferença aos
direitos humanos se materializavam por meio de diferentes barbáries,
como perseguição política, sequestro, tortura e assassinato.
Filme

Sugerimos assistir ao filme O que é isso compa-


nheiro?, que apresenta a trajetória de dois pro-
tagonistas envolvidos na luta armada contra o
governo militar. Favorece a compreensão do
contexto da época.

Direção: Bruno Barreto. Brasil: Pandora Film, 1997.

A construção dos sujeitos políticos na sociedade de classes 75


Figura 1
Manifestação estudantil contra o governo militar

Arquivo Nacional/Wikimedia Commons


Os depoimentos de algumas assistentes sociais que vivenciaram o
período do governo militar foram registrados em um livro produzido
pelo Conselho Federal de Serviço Social (CFESS), em 2017, intitulado
Serviço Social, memórias e resistências contra a ditadura: depoimentos.
Nesse material, encontramos testemunhos das barbáries vivenciadas
no período:
fui levada para o DOI CODI/ OBAN–SP, sendo torturada por uma
semana, com tortura física e psicológica, forçada a depor, com-
pletamente despida, por equipes que se revezavam ininterrup-
tamente. Estando no primeiro mês de gravidez, tive ameaça de
aborto em consequência das torturas. No DOI-CODI, estive todo
o tempo em cela escura solitária durante cinquenta e cinco dias
[...]. Em 14 de setembro, em uma sala do 12º RI, para onde fui le-
vada pelo capitão Lacerda, fui torturada até 3h30 da madrugada
pelo capitão Sebastião Geraldo Peixoto e pelo capitão Schubert,
que me deram mais de 15 descargas elétricas. Só interrompe-
ram a tortura quando eu desmaiei, caindo da cadeira onde me
haviam posto. (CFESS, 2017)

76 Classes e movimentos sociais


Os movimentos venceram a disputa e, a partir da nova Constituição
Federal de 1988, deu-se início ao projeto de redemocratização do Bra-
sil, direcionado majoritariamente pelos princípios fundamentais da car-
ta cidadã: soberania popular, cidadania, dignidade da pessoa humana,
valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, bem como pluralismo
político. A partir desse processo, abriu-se o leque da construção de po-
líticas públicas materializadas pelo tripé da seguridade social brasileira:
saúde, assistência e previdência social.
Site
Contudo, ao mesmo passo que a sociedade brasileira adentrava o
Recomendamos conhe-
novo quadro das possibilidades do exercício real da cidadania, as eli-
cer o site Memórias da
tes econômicas e políticas também davam início à implantação de uma ditadura, que reúne e or-
ganiza uma das maiores
nova era com relação à economia e à internacionalização do capital.
fontes de materiais sobre
Dito de outro modo, o Brasil assinou acordos internacionais que pre- o assunto.

viam a aplicação de medidas macroeconômicas voltadas à reorgani- Disponível em: http://


zação da lógica neoliberal e dos processos de produção de produtos, memoriasdaditadura.org.
br/?gclid=EAIaIQobChMIm9X-
bens e serviços. vuPPf6AIVF4GRCh2JUAyKEAAYA-
SAAEgKp5fD_BwE. Acesso em: 22
As medidas macroeconômicas propostas e impostas pelos países jun. 2020.
imperialistas (por meio de acordos para a liberação de financiamentos,
amarrados a contrapartidas que têm custado a autonomia, os recursos
humanos e naturais do país) se alicerçam na estratégia de flexibilização
dos meios de produção, das condições e dos recursos. Assim, ao mes-
mo tempo em que o país iniciava a caminhada dos direitos sociais, civis
e políticos, também tinha à espreita processos programados para des-
regulamentar qualquer lei que se colocasse como impedimento e/ou di-
ficuldade à implantação do que comumente chamamos de globalização.

Entende-se que o Brasil nem sequer chegou a vivenciar um ver- 5


5
dadeiro Estado de bem-estar social nesse contexto, bem como não Entre os modelos de Estado
conseguiu efetivar todos os princípios da carta cidadã. Quando iniciou requeridos pela população após
as crises econômicas e sociais
essa caminhada, foi atropelado por um adversário muito maior do que que assolaram o mundo no con-
enfrentara há pouco internamente. O capital internacional adentra texto pós-guerra, o welfare state
(estado de bem-estar social)
as fronteiras brasileiras fortemente organizado, aparado tanto pelos
propõe uma estrutura na qual
grandes grupos econômicos quanto pelos grupos políticos que, mesmo a intervenção estatal nas áreas
após o governo militar, continuaram a disputar os espaços de repre- sociais é ampliada e priorizada
com vistas a garantir, de modo
sentatividade na nova ordem estatal. Afinal, mesmo diante da queda pleno e adequado, os serviços de
do regime que os favorecia, continuavam absolutas as disputas de clas- educação, saúde e previdência
ses diante da defesa de seus projetos societários. social a toda a população.

A construção dos sujeitos políticos na sociedade de classes 77


Esse novo processo de regulação e reorganização da economia ain-
da está em implantação e, na atualidade, tem se mostrado completa-
mente adverso às aspirações tecidas pelas mobilizações populares que
participaram dos movimentos contra o governo militar e deram rumo
à criação da nova Constituição brasileira. As medidas que possibilitam
a internacionalização do capital têm instituído diversas desregulamen-
tações de ordem trabalhista, fiscal e/ou ambiental.

Trata-se de um retrocesso que pode ser caracterizado pela abertura


das fronteiras nacionais à implantação de empresas que exploram nos-
sos recursos naturais, além das diferentes modalidades de exploração
da força de trabalho dos brasileiros. As medidas de flexibilização do
capital acarretam também altos índices de desemprego e insegurança
social, visto que os espaços de trabalho são cada vez mais reduzidos,
privatizados, informalizados, desregulamentados e terceirizados.

Esse quadro foi instituído mais fortemente no Brasil a partir da dé-


cada de 1990 e, desde então, resulta no alargamento das desigualda-
des já existentes e na criação de outras expressões da questão social.
Quanto mais o capital avança, mais flexibilizados se tornam os proces-
sos no campo econômico e na esfera social.
Curiosidade A criação de novos tipos de contratos de trabalho, nos quais se fir-
CLT faz referência à Consolidação mam a redução e a eliminação de direitos trabalhistas em detrimento
das Leis Trabalhistas, organizadas
do favorecimento dos patrões, é um exemplo das medidas flexibiliza-
por um regime jurídico que
unificou leis anteriormente doras implementadas pelo capital. Essa estratégia tem ocasionado o
existentes e inseriu novas. A CLT desmonte processual do regime CLT brasileiro e, portanto, a decadên-
é, sem dúvida, a mais ampla lei
cia das condições de trabalho.
de direitos dos trabalhadores,
pois define direitos e deveres No campo da exploração territorial, encontramos as medidas de re-
tanto do empregador quanto do
empregado. Foi instituída em dução e eliminação das leis e das práticas de punição fiscal, que, até
1943, por meio da aprovação então, eram direcionadas à imposição de limites ao capital industrial.
do Decreto-lei n. 5.452/1943, Medidas de flexibilização como essas permitem aos grandes grupos
durante o governo do então
presidente Getúlio Vargas. internacionais instituir vias exploratórias descontroladas, causando, in-
clusive, desastres ambientais e sociais impagáveis.

A respeito de medidas que beneficiam grandes indústrias na exploração de recursos naturais e força de tra-
balho, podemos citar como exemplo a Vale S.A, a maior mineradora brasileira e a terceira maior companhia
do mundo na área de extração de minerais metais. A Vale é a prova de que as leis de proteção ambiental
não vêm sendo aplicadas como deveriam, visto que, além dos desastres ambientais gerados nas cidades de
Brumadinho e Mariana (MG), comumente dispersa metais pesados, altera a paisagem do solo, contamina
os corpos hídricos, causa danos à flora e à fauna, além de desmatamentos, erosão e morte de trabalhadores
(MILANEZ; LOSEKANN, 2016).

78 Classes e movimentos sociais


Articulado à fragilização das leis e práticas de fiscalização, encon-
tramos também o grande leque de flexibilizações das leis de isenção
fiscal. Essa dupla proporciona diversas vantagens aos países imperialis-
tas, como a desnacionalização da economia brasileira e a transferência
da riqueza socialmente produzida no Brasil para as economias inter-
nacionais, fortalecendo a exploração desenfreada dos nossos recursos
naturais e humanos.

Essa conjuntura é um deleite a países que imperam no capitalismo


mundial, visto que lhes favorece privatizar no Brasil serviços de alta
relevância, como as telecomunicações, os bancos e a distribuição de
energia, setores que, cada vez mais, são transferidos da “mão do Esta-
do” para o domínio das multinacionais.

Embora pareça distante, a internacionalização do capital exerce in-


fluência direta na composição da organização sociopolítica e, principal-
mente, nas possibilidades de acesso à formação dos sujeitos políticos.
As empresas multinacionais americanas, por exemplo, dominam 80%
do setor que produz a comunicação de massa e o entretenimento em
todo o mundo. Esses monopólios de todos os campos, na realidade
brasileira, atuam também na cultura política. São gigantes esmagado-
res que ocupam locais estratégicos, voltados à garantia da manutenção
de seus espaços de poder e dominação.

Com relação aos movimentos sociais, esses elementos afetam a


configuração do campo de luta, visto que as medidas macroeconômi-
cas implantadas pela flexibilização das leis trabalhistas e dos modos de
produção, por exemplo, fizeram a insegurança se sobrepor ao campo do
trabalho. Além dos extremos níveis de desemprego e da fragilização das
leis trabalhistas ocasionados para favorecer os capitalistas, passou-se a
exigir dos trabalhadores uma formação especializada conquistada so-
mente por processos educacionais que, em sua maioria, não são de fácil
acesso (cursos técnicos ou universitários, especializações e domínio de
línguas estrangeiras). Estabeleceu-se, assim, uma conjuntura de deses-
pero, que levou ao desmonte da força da organização dos trabalhadores.

Alguns anos após o auge das manifestações dos movimentos sindi-


cais, militantes e suas lideranças se espalharam por diversos setores da
sociedade. Podemos assumir ser um encaminhamento coerente, dado
que a era de direitos que recém iniciara necessitava de protagonistas em
diversas frentes.

A construção dos sujeitos políticos na sociedade de classes 79


Comprometido em suas frentes, com vistas a contribuir com a implan-
tação do tripé da seguridade social e com os debates referentes aos di-
reitos humanos, talvez tenha passado desapercebido ao movimento dos
trabalhadores que uma outra disputa já havia se instaurado. Um número
significativo de lideranças foi cooptado, sindicalistas foram convidados,
convencidos e/ou ameaçados para exercer novos papéis no “chão de fá-
brica”. Surgiram modalidades de “negociação” entre o proletariado e a
burguesia, para as quais essas lideranças foram “convidadas” a participar.
As lideranças que resistiram foram ameaçadas com ações mais incisivas,
como a aplicação de multas impagáveis aos sindicatos se descumprissem
e/ou não aceitassem as novas normativas, outras foram convencidas pe-
las promessas de participação nos lucros e/ou de novos postos de poder
político (fiscais, encarregados, subgerências, coordenadores de áreas etc.).

Houve, ainda, aquelas que se envolveram profundamente com as


pautas individuais dos debates a favor dos direitos humanos (negritu-
des, mulheres, indígenas, ambientalistas, infância e adolescência etc.)
e parecem ter se perdido. A habilidade do capital conduziu processos
que tornaram essas lideranças dependentes de financiamentos e alian-
ças com o Estado e/ou com o mercado.

Institucionalizadas em fundações, associações, agremiações, cen-


tros e diretórios acadêmicos, organizações não governamentais e or-
ganizações da sociedade civil em geral, aos poucos (cientes ou não dos
arranjos), passaram a compor a terceirização dos serviços sociais esta-
tais, visto que foram institucionalizados pela ordem capitalista. Desse
contexto, inaugura-se o terceiro setor da sociedade, no qual majorita-
riamente se aplicam ações, programas e políticas com base na lógica
do favor, e não dos direitos sociais, como preconizava a Constituição
Federal que inicialmente os guiara.

Assim, novos sujeitos políticos adentraram o campo de luta, no-


vas perspectivas e condições emergiram. O movimento sindical per-
deu espaço de articulação, além de ter caído em descrédito depois
de beneficiar-se com as novas configurações. Houve, sim, grupos de
resistência, afinal, os sindicatos ainda existem, mas são pouco valo-
rizados na atualidade. Assim, a partir do debate e da relação afinada
com o Estado, novos grupos sociais surgiram, em maioria, distantes
do debate da luta de classes.

80 Classes e movimentos sociais


Nesse contexto, novas configurações foram construídas no campo de
luta: os espaços representativos foram alterados; diferentes partidos es-
tabeleceram alianças; a luta de classes deixou de ocupar lugar central nos
debates e nas manifestações; as individualidades ganharam força, visibi-
lidade, espaço, financiamento, institucionalidade e apoio estatal. Com o
aumento das coalizões e negociações entre os diferentes grupos, gerou-se
maior visibilidade das práticas de corrupção, dado que o próprio trânsito
de disputa de interesses resultava na denúncia “uns dos outros”.

Desse processo mais amplo, emergem as descrenças e até um tipo


de repúdio ao exercício da política. E, a partir do advento da sociedade
em rede, a cultura política brasileira, enfim, imprime sua cara: uma cul-
tura política da desconfiança, que ora move os sujeitos à luta política
enquanto desabafo, outrora os aloca na apatia política e na decisão da
não prática política por diferentes históricos de decepção. Essa organi-
zação sociopolítica e essa condição de “sujeito apolítico” vêm muito a
calhar aos interesses de quem as faz prioritárias, afinal, os políticos de
carreira adoram as inúmeras conexões de subordinação social.

Portanto, cabe compreender que a organização sociopolítica só


pode ser compreendida em sua complexidade quando considerada a
importância do entendimento do processo de construção do sujeito
político, pois toda a estrutura social que conhecemos resulta das re-
lações políticas travadas no âmbito da sociedade. Relações essas que
predeterminam o tipo de liberdade política, o tipo de regime político e,
portanto, o tipo de vida dos sujeitos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A cultura política é um dos mais importantes mecanismos de poder,
visto que oferece incontáveis potencialidades para ventricular a socieda-
de. É também uma das mais célebres criações da sociedade, visto que é,
em si, objeto, meio e espelho de mudança. Atualmente, a cultura política
brasileira tem sido majoritariamente influenciada pela ordem burguesa.
As elites políticas e econômicas apropriam-se dela como instrumen-
to que viabiliza o uso arbitrário de poder. Com base nisso, imprimem na
cultura política características conservadoras, patrimonialistas, sexistas e
meritocráticas, ou seja, todo um conjunto de elementos socioculturais a
fim de justificar a injustiça na distribuição da renda produzida socialmente.

A construção dos sujeitos políticos na sociedade de classes 81


Para manutenção desses elementos, contam com a influência do conhe-
cimento produzido por seus intelectuais nos espaços das universidades.
Dessas relações, surgem as “verdades” fundamentadas, as ciências a
serviço das elites. Para expandi-las e validá-las, detêm a produção do sa-
ber e os condutores de comunicação, resultando na formação de opinião
de massa que legitima as ideias burguesas. Por meio de relações de pa-
rentesco e de proximidade, legalizam e legitimam seu projeto de socieda-
de nos mais diferentes espaços institucionais. E, quando questionados e/
ou ameaçados, contam com o poder do Estado para mediar, com a força
militar se preciso, e assegurar a manutenção de seus ideais.
Por fim, entendemos que as novas configurações no campo de luta
apontam para difíceis fatalidades: a atual configuração sociopolítica do
país imprime diariamente o risco do desmonte dos direitos duramente
conquistados pelos trabalhadores. Essa classe, na atualidade, parece es-
tar colhendo os resultados de seus desvios e consensos e, em meio a
condições contraditórias (próprias das lutas de classes), segue a passos
lentos, como quem se percebe caminhando e, enquanto caminha, tam-
bém para, a fim de observar.
Por sua vez, os novos movimentos sociais, ainda que pareçam ter
inaugurado elementos no fazer político, pouco mostram forças diante
de transformações mais estruturais. O que se observa, de fato, é que os
avanços conquistados estão à mercê de regimes e/ou planos de governo
e se caracterizam provisórios.
Portanto, de mais concreto no atual campo de luta, há a oportunida-
de de aprendizado dos diferentes movimentos diante de governos que
ameaçam diversos princípios constitucionais. Trata-se de uma oportu-
nidade para o entendimento real da cultura política brasileira, em suas
potencialidades e barbaridades. Os diferentes projetos societários não
se mostravam tão evidentes desde a luta contra o governo militar e, do
mesmo modo, o debate político nunca foi tão acessado e partilhado como
agora. Emerge, no campo de luta, uma nova ferramenta: a conexão em
rede para que os movimentos sociais possam se fortalecer. Então, impri-
me-se a seguinte questão reflexiva: o que eles estão esperando?

ATIVIDADES
1. A organização social moderna que conhecemos foi construída com
base em diferentes determinantes que, além de históricos, são sociais e,
portanto, políticos. Nesse contexto, apresente quais contradições estão
presentes no processo de construção da cultura política brasileira.

82 Classes e movimentos sociais


2. As organizações sociopolíticas que originam a sociedade capitalista
têm duas classes protagonistas: as classes fundamentais e as classes
transitórias. Exercite explicar as principais características dos sujeitos
que compõem essas classes.

3. Na atualidade brasileira, tem-se questionado os tipos de organização


sociopolítica, tanto os modelos de representação existentes quanto
as medidas políticas que resultam dessa configuração política.
Disserte sobre os processos que têm ocorrido para que o quadro
atual seja de descrença da população brasileira com relação ao modo
de se fazer política.

REFERÊNCIAS
BAQUERO, M. Construindo uma outra sociedade: o capital social na estruturação de
uma cultura política participativa no Brasil. Revista de Sociologia e Política, Curitiba,
n. 21, p. 83-108, nov. 2003. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-
44782003000200007&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em: 22 jun. 2020.
BRAGHINI, N. C.; DONIZETI, T. C.; VERONEZE, R. T. As bases sócio-históricas da ontologia
do ser social: o trabalho. In: III Simpósio Mineiro de Assistentes Sociais. CRESS 6ª Região.
Anais [...]. Belo Horizonte: 2013. Disponível em: https://www.cress-mg.org.br/arquivos/
simposio/AS%20BASES%20S%C3%93CIO-HIST%C3%93RICA%20DA%20ONTOLOGIA%20
DO%20SER%20SOCIAL.pdf. Acesso em: 22 jun. 2020.
CFESS – Conselho Federal de Serviço Social. Comissão de Ética e Direitos Humanos – Gestão
Tecendo na Luta a Manhã Desejada (2014-2017) (org.). Primeiro-damismo, voluntariado
e a felicidade da burguesia brasileira! 7 out. 2016. Disponível em: http://www.cfess.org.br/
visualizar/noticia/cod/1301. Acesso em: 22 jun. 2020.
CFESS – Conselho Federal de Serviço Social. Comissão de Ética e Direitos Humanos –
Gestão Tecendo na Luta a Manhã Desejada (2014-2017) (org.). Serviço Social, Memórias e
Resistências contra a Ditadura: depoimentos. Brasília, DF, 2017. Disponível em: http://www.
cfess.org.br/arquivos/Livro-MemoriaseResistenciasContraDitadura.pdf. Acesso em: 22
jun. 2020.
DAGNINO, E. Movimentos sociais e a emergência de uma nova cidadania. In: DAGNINO, E.
(org.). Anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994.
DEMO, P. Desafios modernos da educação. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.
DICIO – Dicionário Online de Português. 2020. Disponível em: https://www.dicio.com.br/
proletario/. Acesso em: 22 jun. 2020.
FAUSTO, B. A interpretação do nazismo, na visão de Norbet Elias. Mana, Rio de Janeiro, v. 4,
n. 1, p. 141-152, 1998.
IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Coordenação de População
e Indicadores Sociais. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida
da população brasileira. Rio de Janeiro: IBGE, 2017. (Estudos e pesquisas: informação
demográfica e socioeconômica, n. 37). Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/
visualizacao/livros/liv101459.pdf. Acesso em: 26 jun. 2020.
IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Coordenação de População
e Indicadores Sociais. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida
da população brasileira. Rio de Janeiro: IBGE, 2018. (Estudos e pesquisas: informação
demográfica e socioeconômica, n. 39). Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/
visualizacao/livros/liv101629.pdf. Acesso em: 26 jun. 2020.

A construção dos sujeitos políticos na sociedade de classes 83


LOPES, M. C. Cultura política no litoral do Paraná: a UFPR-Litoral e as “águas de março”.
Curitiba, 2014. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Setor De Ciências Humanas, Letras
E Artes, Universidade Federal do Paraná.
MARX, K. O capital: crítica da economia política. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil S. A., 1989.
(Livro 1. O processo de produção do capital, 2v.)
MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. In: MARX, K.; ENGELS, F. Obras
escolhidas em três tomos. Lisboa: Edições Avante!, 1982.
MILANEZ, B.; LOSEKANN, C. (orgs.). Desastre no Vale do Rio Doce: antecedentes, impactos e
ações sobre a destruição. Rio de Janeiro: Folio Digital; Letra e Imagem, 2016.
NETTO, J. P. Capitalismo e barbárie contemporânea. Argumentum, Vitória, v. 4, n. 1,
p. 202-222, jan./jun. 2012. Disponível em: http://www.abepss.org.br/arquivos/anexos/
netto-jose-paulo-201608060404028661510.pdf. Acesso em: 22 jun. 2020.
OLIVEIRA, R. C. de. Nepotismo Estrutural do Paraná em 2015. In: OLIVEIRA, R. C. de. Estado,
Classe Dominante e Parentesco no Paraná. Blumenau: Nova Letra, 2015. 1v.
PATEMAN, C. Participação e Teoria Democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
RAMALHETE, C. Ascensão e queda da sociedade burguesa. Medium, 28 mar. 2016.
Disponível em: https://medium.com/@carlosramalhete/ascens%C3%A3o-e-queda-da-
sociedade-burguesa-c3be45d695e2. Acesso em: 22 jun. 2020.
SOUZA, J. A classe média vista no espelho. Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2018.

84 Classes e movimentos sociais


4
Os movimentos sociais
contemporâneos
Os movimentos sociais contemporâneos são o retrato da socie-
dade moderna. Compreendê-los, portanto, é uma tarefa indispen-
sável a todos que desejam atuar na área social.
Neste capítulo, você terá a oportunidade de ampliar suas análi-
ses diante dos elementos constitutivos da desigualdade social bra-
sileira, visto que poderá correlacioná-los à realidade atual, ou seja,
ao mesmo tempo em que as coisas ainda ocorrem.

4.1 A banalização dos direitos políticos e


dos demais direitos fundamentais
Vídeo O Brasil de direitos é uma realidade recente, visto que, somente a
partir da instituição da Constituição Federal de 1988, a sociedade bra-
sileira começou a vivenciar, de modo amplo e na perspectiva da demo-
cracia, a era do exercício dos direitos sociais, civis e políticos. Desde
então, foram instituídos diversos tipos de penalização e um significati-
vo leque de direitos a todos os cidadãos, por exemplo: o enquadramen-
to da tortura enquanto crime inafiançável; a garantia de organização e
participação política; a amplitude dos direitos trabalhistas e da seguri-
dade social; a criação de políticas públicas de critérios sociais; e tam-
bém a instituição de políticas públicas.

Os direitos civis podem ser individuais e/ou coletivos e deles advêm os demais direitos. Eles
preveem o direito à vida sem violação, à liberdade, à igualdade e, dentre outros, o direito ao jul-
gamento justo. Os direitos sociais abarcam o leque de leis que predizem as garantias necessárias
à manutenção da vida em sociedade como o direito à educação, à saúde e à assistência social.
Já os direitos políticos são os que dão materialidade à prática democrática, ou seja, os direitos
relativos à participação cidadã e ao voto direto para escolha de representantes, bem como à
organização e à manifestação de ideais, insatisfações e projetos de sociedade.

Os movimentos sociais contemporâneos 85


Nessa linha, configurou-se ao Estado brasileiro a ampliação de seu
poder e de sua responsabilidade diante da regulação, do financiamen-
to e da implantação de direitos sociais, o que, segundo Pereira (2013),
foram os fatores que preconizaram o atual caráter distributivo da se-
guridade social, bem como a definição da concepção de direito a um
conjunto de direitos sociais mínimos a quem precisar.

Em suma, os princípios constitucionais prescreveram uma nova or-


ganização das relações sociais, com vistas à implantação de um proces-
so democrático participativo e descentralizado, no qual se garantisse
participação direta nos processos decisórios à população brasileira.
Vislumbrava-se uma nova ordem social pública, capaz de promover a
seguridade social dos cidadãos, por meio de uma rede de proteção am-
pla e consistente.

Contudo, como visto anteriormente, a Constituição Cidadã foi


uma conquista que não se deu em território ameno e, portanto,
continuou em disputa pelos diferentes grupos que compõem a re-
lação contraditória entre capital, Estado e sociedade. Desse modo,
não podemos afirmar que vivenciamos uma democracia plena, pois
o processo de materialidade plena dos direitos é constantemente
ameaçado pelas ações oriundas da ideologia burguesa. As atuais es-
tratégias empregadas pelo Estado, a fim de reproduzir e fortalecer
as medidas neoliberais orquestradas pelos países imperialistas, têm
sido o fermento desse processo.

As políticas macroeconômicas são medidas estratégicas advindas da


fase monopolista do capitalismo, nas quais ocorre a fusão de empre-
sas, cartéis e bancos, que dão origem a monopólios de proporções gi-
gantescas que, em suma, eliminam de pequenos a grandes produtores,
a fim de acumular lucro. Nessa mesma linha, estabelecem conexões e
fusões a nível global e passam a determinar quem e por que sobrevi-
ve no mercado, segundo seus interesses de acumulação. O Brasil, por
exemplo, entra nessa lógica enquanto campo aberto para a exploração
desenfreada de recursos naturais e humanos.

Assim, a democracia brasileira, que ainda engatinhava quanto aos


objetivos traçados, já em meados da década de 1990, foi atropelada
pela imposição dessas medidas macroeconômicas. Advindas dos paí-
ses imperialistas, essas medidas tinham como objetivo a flexibilização
de qualquer lei que demonstrasse impedimento à internacionalização

86 Classes e movimentos sociais


do capital. Desde então, é frequente o uso da máquina estatal por par-
te das elites econômicas e políticas para instituir ações reducionistas,
punitivas e repressivas à classe trabalhadora.

Segundo Lopes (2014), os princípios constitucionais da Carta Cida-


dã de 1988 ameaçaram a hegemonia burguesa brasileira, portanto as
elites políticas e econômicas agiram rápido. Construíram articulações
que culminaram na eleição do então presidente Collor de Mello, figura
política que representava o novo projeto de modernidade da classe do-
minante. Desde então, a universalidade dos direitos sociais, previstos
na Constituição, aos poucos, foi transfigurada pelas reformas de cunho
neoliberal, impostas pelo capital internacional e pacificamente aceitas
pelas elites brasileiras.

Desse processo, resultou a terceirização das funções estatais, por


meio da privatização e da entrega de uma parcela significativa do patri-
mônio público brasileiro ao capital estrangeiro, bem como pelo fomen-
to da criação do terceiro setor da sociedade. Isso delegou grande parte
das necessidades sociais dos mais pobres à filantropia, o que constan-
temente os condiciona a viver aquém dos direitos sociais.

O Brasil, a partir desse contexto, segue regido por incoerências ad-


ministrativas diversas, que levam ao processual desmonte dos direitos
preconizados pela sua lei maior: políticas públicas marcadas por crité-
rios celetistas e privatizantes; priorização da população contribuinte,
limitando a garantia de direitos a um enorme número de trabalhado-
res que desenvolvem atividades de modo informal; flexibilização de
leis trabalhistas e ajustes fiscais que, dentre suas principais medidas,
ampliou o tempo de atuação no mercado de trabalho, prejudicando
seriamente os trabalhadores; comprometimento do orçamento pú- Glossário
blico e corte de gastos sociais em função da imposição do superávit superávit primário: termo
utilizado por economistas para
primário; e a forte ênfase nos programas de transferência de renda
se referir ao valor que sobra nos
de caráter compensatório, o que prejudica seriamente as condições de cofres públicos após o pagamen-
mudança estrutural de vida da população brasileira. to de despesas, ou seja, o saldo
positivo.
Em uma perspectiva gramsciana, podemos dizer que o funciona-
mento do Estado brasileiro atual se encontra redefinido a fim de ser-
vir às estratégias de acumulação de lucro do capitalismo imperialista.
Além disso, o Estado exerce papel central no apaziguamento das dispu-
tas entre as diferentes classes, no sentido de assegurar que não ecloda
uma revolução social. Assim, quando o neoliberalismo é questionado

Os movimentos sociais contemporâneos 87


pelos movimentos sociais, o Estado entra em campo. Essa estratégia,
composta por elementos de tradição ideoburguesa e que se materia-
liza por meio de aspectos econômicos, culturais e políticos, desenha
uma sociedade hegemonicamente capitalista (GRAMSCI, 1968).
A hegemonia é a capacidade de obter e manter poder sobre a so-
ciedade pelo controle que mantém sobre os meios de produção
econômicos e sobre os instrumentos de repressão, mas, prin-
cipalmente, por sua capacidade de produzir e organizar o con-
senso e a direção política, intelectual e moral dessa sociedade.
A hegemonia é, ao mesmo tempo, direção ideológico-política da
sociedade civil e combinação de força e consenso para obter o
controle social. (ACANDA, 2006, p. 178)

Desse modo, mantêm-se os discursos da prática cidadã e da garan-


tia de direitos, por parte do Estado, na mesma medida que se aplicam
formas de desmonte dos princípios constitucionais. Esse contexto é
permeado de conflitos de classes contidos pelo Estado, com base em
mecanismos repressivos, inclusive das forças armadas, sempre que os
sujeitos organizados questionam a ordem vigente em manifestações
organizadas pelos movimentos sociais.

Dado que o Estado é a instituição que, sem dúvida, ocupa lugar cen-
tral na manutenção da hegemonia burguesa, os impeditivos com vistas
ao reclame dos direitos são cada vez mais amplos, pois cabe ao Estado
a interpretação e a aplicabilidade das leis que regulam todas as esferas
da vida social. Desse modo, nas sociedades capitalistas, o poder Judiciá-
rio desempenha papéis incompatíveis com a efetivação da democracia
plena. Isso porque, quando pressionado sobre o aprofundamento das
mazelas e injustiças sociais geradas pelo sistema capitalista, o poder
Judiciário é acionado para fomentar o consenso entre as classes (por
meio das políticas públicas e sociais), passando a efetivar a criminaliza-
ção e a punição dos sujeitos. Dito de outro modo, a mesma via que de-
veria garantir aos sujeitos o exercício pleno dos direitos políticos, civis e
sociais é aquela que contraditoriamente os penaliza.
O modelo neoliberal vigente parece ter conseguido estabelecer
padrões de comportamento em que os cidadãos e as autoridades
públicas se tornam indiferentes à continuidade de um conjunto
de procedimentos que, claramente, compromete a construção
democrática efetiva no país. Um dos pontos a enfatizar é o acú-
mulo de experiências que ocorre no país e, como forma antide-
mocrática de resolução de problemas, uma vez internalizado

88 Classes e movimentos sociais


pelas pessoas, constitui a base de uma memória coletiva difícil
de ser alterada. Nessa dimensão, a ausência de capital social,
fruto da falta de confiança interpessoal e da falta de confiança
nas instituições, pode levar à manutenção de um sistema demo-
crático permanentemente instável. (BAQUERO, 2001, p. 104)

A esse cenário se deve a atual configuração da sociedade brasilei-


ra no que diz respeito à banalização dos direitos constitucionais e ao
lugar criminalizado dos sujeitos e movimentos sociais. Essa realidade
se materializa em formas diversas de injustiças sociais, como o encar-
ceramento do pobre, a criminalização da negritude, o isolamento de
grupos considerados “não rentáveis” ao capitalismo (pessoas com de-
ficiências e com necessidades específicas, por exemplo), a vulgarização
da diversidade sexual, a penalização da condição de gênero da mulher,
a tutelação e o aniquilamento da população indígena, a invisibilidade
da população em situação de rua, o constante ataque armado aos tra-
balhadores do campo e, dentre outros, o assassinato de milhões de
sujeitos. É na contramão da lógica neoliberal que resistem sujeitos e
movimentos em prol da luta pela efetivação dos direitos preconizados
na Constituição Federal de 1988.

4.2 A criminalização dos movimentos sociais


Vídeo A criminalização dos movimentos sociais é uma temática nova, ain-
da que a história das sociedades comprove que sua prática é tão an-
tiga quanto a própria humanidade. Como prática, a criminalização é
norteada por um conjunto de elementos sociais (morais, econômicos
e políticos) utilizados pelos grupos que ocupam o poder para comba-
ter a manifestação e a resistência dos sujeitos que, de algum modo,
questionam a hegemonia vigente. Quanto mais próximo chegam de
conquistar seus reclames, mais severas são as medidas criminalizató-
rias que enfrentam.

Trata-se de um fenômeno social utilizado ao longo da história como


estratégia para a manutenção do poder; um tipo de mando que pode
ser individual ou coletivo e que se firma como uma condenação moral,
sustentada por arranjos e mecanismos de poder como instituições e
procedimentos administrativos judiciais (ARROYO, 2015; BECKER, 2008;
MISSE, 2008).

Os movimentos sociais contemporâneos 89


Segundo Duriguetto (2017, p. 105), na contemporaneidade, a cri-
minalização se compõe de “ações sociopolíticas orquestradas pelos
Estados, como respostas às expressões das desigualdades sociais
(acentuadas pelas ofensivas do capital para recuperação de sua expan-
são e valorização)”. Estados esses que, como vimos anteriormente, fun-
dam-se com base nas influências direta e indireta do poder das elites
econômicas que detêm o domínio das rédeas do capital.

Esse fenômeno social se materializa por meio de culturas conser-


vadoras de entendimento sobre os sujeitos, suas condições de vida,
status social e posicionamento diante da estrutura social orquestrada
(pobreza, racismo, machismo, sexismo e, dentre outros, a condição de
produtividade para o capital). Quanto maior a sua capacidade de orga-
nização e enfrentamento, ou seja, quanto mais expressivos se tornam,
mais drásticas são as ações de resposta.

Os movimentos sociais são criminalizados pelo fato de que, em maio-


ria, oriundam de sujeitos historicamente considerados inferiores por
grupos peculiares que acreditam ser superiores. Esse é o cerne dessa
problemática. Trata-se de uma lógica de fácil leitura, mas que historica-
mente tem sido mascarada por culturas sociopolíticas, socioterritoriais e
socioeconômicas que antecedem o berço da contemporaneidade, mas
que nela foram acentuadas, agravadas e notoriamente complexificadas.

Perguntas simples podem conduzir esse caminho de análise: qual é o


perfil dos sujeitos que constituem o movimento operário, o movimento
feminista, o movimento da população sem-terra, o movimento das negri-
tudes, o movimento indígena, o movimento LGBTTIQ+ e, dentre outros,
o movimento da população em situação de rua? Quais pautas levantam?

Artigo

https://www.scielo.br/pdf/rbedu/v16n47/v16n47a05.pdf

A fim de ampliar seus conhecimentos acerca dos movimentos sociais


contemporâneos, sugerimos ler o artigo Movimentos sociais na contempora-
neidade, publicado pela autora Maria da Glória Gohn na Revista Brasileira de
Educação (v. 16, n. 47, maio/ago. 2011).
Acesso em: 22 jun. 2020.

Os movimentos de luta pela garantia do direito à terra, por exem-


plo, são constantemente criminalizados e punidos, visto que, entre
suas pautas, centraliza-se o forte questionamento aos elementos que
regulam a propriedade privada. Elementos esses que alocam os movi-

90 Classes e movimentos sociais


mentos agrários e o movimento da população indígena no campo de
principais inimigos do Estado, pois denunciam que um dos principais
pilares de sustentação da divisão de classes sociais está intrínseco na
questão da centralização da posse da terra.

Esse processo remete às raízes da história brasileira, dado que


o Brasil, assim como todos os países latino-americanos, foi configu-
rado com base na exploração dos grupos considerados inferiores
por seus colonizadores: escravos, indígenas e mestiços, além das de-
mais pessoas tidas como desviantes do padrão de sociedade ideali-
zado pelas tradicionais elites, herdeiras do modo de operacionalizar
a vida advindo das sociedades europeias. A esses foi negado o direi-
to à terra, bem como o direito à cidadania efetiva, visto que foram
criminalizados por serem quem são.

Excluídos de qualquer processo igualitário, a força de trabalho foi o


que lhes restou para manter a existência. Assim, a terra foi centralizada
nas mãos dos poderosos e por eles destinada segundo seus interesses
particulares. Podemos notar que esse processo culminou em um con-
junto de desigualdades sociais que ainda se expressa no cotidiano da
atualidade, pois a estrutura social de um país é, sem dúvida, o reflexo
da estrutura fundiária instaurada (LINHARES; SILVA, 1999).

Nesse ínterim, as condições de pobreza e de extrema pobreza fo-


ram impostas a determinados grupos sociais, dado que, ao centralizar
a posse da terra nas mãos de poucos, também se centraliza a riqueza
produzida e, portanto, seu usufruto. Dito de outro modo, a crimina-
lização dos grupos e dos movimentos sociais se constitui enquanto
principal estratégia para abafar o debate da exploração humana e da
desigualdade social.

Na mesma linha de exploração, de discriminação e de criminaliza-


ção, encontramos demarcada a população negra. Os marcos regulató-
rios da institucionalização da criminalização da população negra são
encontrados em diversos instrumentos legais da história brasileira,
como no 2º ato oficial da lei complementar à Constituição do Impé-
rio de 1824, que legislou sobre a proibição da população negra de fre-
quentar a escola, bem como a Lei das Terras de 1850, que proibiu a
população negra de comprar espaços de terra.

Os movimentos sociais contemporâneos 91


Artigo

http://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/180818

Para aprofundamento, sugerimos a leitura do artigo O negro e a Constituição


de 1824, do autor Paulo Eduardo Cabral, publicado na Revista de Informação
Legislativa (v. 11, n. 41, jan./mar. 1974). É um artigo interessante por apre-
sentar os incisos constitucionais do período de modo didático.
Acesso em: 22 jun. 2020.

O Brasil foi o último país do continente americano a instaurar o fim


da escravidão de negros e, se não bastasse tal título, prosseguiu por
séculos com abordagens institucionais racistas que, além de crimina-
lizá-los, condenou-os a severas condições de vulnerabilidade social.
Mesmo após terem conquistado a tão sonhada liberdade, foram man-
tidos fora do planejamento da sociedade. Inclusive o lugar de trabalha-
dores, por muito tempo, foi retirado da população negra, dado que a
sociedade brasileira não admitia remunerá-la. Desse contexto, oriunda
a substituição do trabalho escravo pela força de trabalho dos imigran-
tes alemães, italianos e japoneses no século XIX.

Sem acesso à educação, à terra e ao trabalho, os negros ainda fo-


ram institucionalmente criminalizados por sua condição de pobreza.
Fatos históricos que se comprovam na legislação brasileira a partir do
Decreto-Lei n. 1.688/1941, conhecido como Lei de 1941, que criminaliza
a condição de ociosidade, e outras leis que se seguiram para legislar
sobre a proibição de manifestação pública da cultura negra, a fim de
Saiba mais
coibir a organização da população negra, como o Código Penal de 1890.
Para saber mais sobre a
Aquém de direitos sociais, a população negra ainda foi estigmatizada
Lei de 1941, sugerimos
ler a reportagem crítica de diversas maneiras, elementos que comprovam que o encarcera-
publicada no Migalhas
mento demasiado da população negra não é eventual.
Quentes, em 18 de
março de 2019, intitulada O contexto comprova, portanto, que o racismo é estrutural e ain-
Mendigar deixou de ser
contravenção penal há da está instaurado na sociedade atual, dado que a cultura racista está
apenas dez anos. a serviço dos interesses das elites dominantes. O racismo permanece
Disponível em: https://www. porque também permanece o conservadorismo de ideais e práticas de-
migalhas.com.br/quentes/297910/
mendigar-deixou-de-ser-contra- sumanas. Como já pontuado anteriormente, a supremacia das elites
vencao-penal-ha-apenas-dez-anos. depende da permanência da condição de subalternidade dos sujeitos e
Acesso em: 22 jun. 2020.
do enraizamento da pobreza.

Assim, a população negra também se configura como inimiga dos


donos do poder. O movimento negro incomoda, visto ser uma denún-

92 Classes e movimentos sociais


cia do fato de que os valores burgueses são severos e desarticulados
dos direitos fundamentais. Afinal, à população negra delegou-se a mo-
radia nas favelas, os espaços de trabalho mais precarizados, as piores
condições de acesso a bens e serviços, assim como o distanciamento
da efetividade dos direitos já garantidos aos demais grupos populacio-
nais, como o acesso à educação pública e ao atendimento de saúde.

Na mesma linha de manifestação de desigualdades estruturais, en-


contram-se as condições de vida da população feminina, bem como
a vulgarização e a criminalização do movimento feminista. Esse mo-
vimento também incomoda os detentores do poder, uma vez que de-
nunciam as extremas desigualdades de gênero e os altos índices de
Glossário
feminicídio como resultantes das ideias conservadoras burguesas
sobre o “lugar da mulher” na sociedade capitalista – lugar esse da su- feminicídio: homicídio de
mulheres motivado por “I -
balternidade e da perda de liberdade com relação aos processos deci- violência doméstica e familiar; II
sórios que lhe dizem respeito. - menosprezo ou discriminação
à condição de mulher”, tipificado
A precária condição de existência que foi delegada à mulher, a partir como crime pela Lei n. 13.104,
da instituição da propriedade da terra, teve duas dimensões principais: de 9 de março de 2015.
a primeira com relação ao nível da superestrutura, com base na des-
qualificação das capacidades femininas em função da manutenção da
supremacia masculina, e a segunda no plano estrutural, envolvendo a
marginalização das funções produtivas da mulher.
No processo de individualização inaugurado pelo modo de pro-
dução capitalista, a mulher contaria com uma desvantagem social
de dupla dimensão: no nível superestrutural era tradicional uma
subvalorização das capacidades femininas traduzidas em termos
de mitos justificadores da supremacia masculina e, portanto, da
ordem social que a gerara; no plano estrutural, à medida que se
desenvolviam as forças produtivas, a mulher vinha sendo progres-
sivamente marginalizada das funções produtivas, ou seja, perife-
ricamente situada no sistema de produção. (SAFFIOTI, 2013, p. 18)

Assim, designa-se à mulher uma herança que se materializa no


afastamento do usufruto das liberdades, no distanciamento da efeti-
vidade da cidadania, bem como em obstáculos severos, nos mais di-
ferentes campos da vida social: adequação a estereótipos de beleza e
quanto a funções a executar; exploração do trabalho doméstico; res-
ponsabilização pelos cuidados para com a família; menores salários;
assédio; abuso; exploração e violência sexual; violência doméstica,
psicológica e sexual; desvalorização do trabalho no lar; obrigatorie-

Os movimentos sociais contemporâneos 93


dade de reprodução; condicionamento da vida no espaço do lar; e,
dentre outros, estupro e feminicídio.
Embora as hierarquias de classe e raça incidam na definição de
quem tem acesso aos espaços de poder, a divisão sexual do tra-
balho e as formas da construção do feminino a ela relacionadas
fazem com que as mulheres, por serem mulheres, tenham menores
chances de ocupar posições na política institucional e de dar ex-
pressão política, no debate público, a perspectivas, necessidades
e interesses relacionados a sua posição social. Têm, com isso, me-
nores chances também de influenciar as decisões e a produção
das normas que as afetam diretamente. A cidadania das mulheres
é, portanto, comprometida pela divisão sexual do trabalho, que
em suas formas correntes converge em obstáculos ao acesso a
ocupações e recursos, à participação política autônoma e, numa
frente menos discutida neste estudo, à autonomia decisória na
vida doméstica e íntima. (BIROLI, 2016, grifos do original)

A condição de vulnerabilidade social dos sujeitos que compõem os mo-


vimentos sociais é o principal condicionante utilizado pelos poderosos para
efetivar os processos de seletividade, de exclusão e de aniquilação (como
no caso da população indígena) de suas iniciativas de organização para o
enfrentamento do capital e dos demais eixos que constituem a ideologia
burguesa. Segundo Zaffaroni (2002), em seu sentido etimológico, a pala-
vra vulnerabilidade corresponde ao entendimento da condição de vida vul-
nerável que faz com que se fortaleçam as possibilidades de a pessoa ser
ferida. Essa condição se apresenta na vida de todos os grupos que ainda
precisam lutar para ver garantidos os seus direitos fundamentais. Grupos
que são constantemente feridos, criminalizados e penalizados por serem
quem são e, principalmente, pelos enfrentamentos que concretizam.

Os elementos apresentados dificilmente são tratados no senso co-


mum, visto que a grande massa também não reconhece o valor dos
movimentos sociais diante da garantia de direitos. Com base nisso, infe-
lizmente, também os criminalizam, o que fragiliza sua organização e ca-
pacidade de resistência, visto que, mesmo diante de repressão violenta
e armada, não se unem à causa que lhes é comum. E, mesmo diante de
altíssimos índices de mortalidade advindos desse sistema punitivo, não
se indignam o suficiente. Esse processo é influenciado, principalmente,
pela monopolização da televisão, do rádio e da indústria midiática.

A massa populacional entende os movimentos sociais por meio do


que lhe é descrito pelos meios de comunicação e entretenimento. Igno-

94 Classes e movimentos sociais


ram o fato de que esses meios são controlados pelos grandes grupos
monopolistas que estão à frente do capital mundial. Segundo Meirelles
(2018), esse quadro mundial também se apresenta na particularidade
brasileira, dado que 80% das empresas multinacionais do Brasil liga-
das a esse setor são controladas pelo capital estadunidense. Esse fato
remete ao entendimento de que tais empresas determinam a visão e
a opinião dos sujeitos sobre o mundo e sobre o processo de pensá-lo.

A grande massa populacional, portanto, ainda se mantém aliena-


da quanto às estratégias burguesas de dominação e as reproduzem,
na medida que entendem os processos sociais pela ótica das elites.
Quando consideradas as particularidades das culturas social e política
do Brasil, esse processo se mostra ainda mais complexo, pois é preciso
considerar o fato de que a democracia brasileira ainda é jovem, da-
tando de menos de 35 anos. Podemos dizer que o país ainda não teve
tempo hábil para superar os marcos sócio-históricos causados pela au-
sência de direitos sociais, civis e políticos dos últimos séculos.

4.3 As novas estratégias de reorganização


e resistência dos movimentos sociais
Vídeo A compreensão das práticas efetivadas pelos movimentos sociais
na contemporaneidade é um elemento essencial ao entendimento da
democracia, visto que a era dos direitos não seria uma realidade sem
as frentes que organizam e resistem na luta social.

A partir da Constituição Federal de 1988, novos modos de participa-


ção social foram instituídos, a fim de firmar o Estado democrático de di-
reito. Tivemos o início da descentralização dos processos propositivos
e decisórios no âmbito estatal. Esse direcionamento levou à implanta-
ção de mecanismos voltados a garantir a ampliação da cidadania, por
meio da participação popular.

Assim, pautados nos direitos fundamentais e tendo como reali-


dade efetiva os novos modos de participação social, os movimentos
sociais ocuparam diversos espaços de representação, como as con-
ferências e os conselhos de direitos. Vivenciaram algumas décadas
de abertura política, tempos em que acessaram, pela primeira vez na
história da sociedade brasileira, recursos voltados ao fomento do em-
poderamento popular.

Os movimentos sociais contemporâneos 95


Contudo, como vimos anteriormente, podemos compreender que
nossa democracia ainda é frágil. Além de a nossa Constituição ainda
ser jovem (com início em 1988), teve seu processo de implantação atro-
pelado pelas medidas macroeconômicas internacionais (aderidas pelo
Brasil em 1990) – medidas que, aos poucos, resultam no desmonte de
diversos direitos sociais, civis e políticos.

Nesse campo de disputa, materializam-se diferentes discursos e es-


tratégias. O Estado e os grupos conduzidos pela hegemonia burguesa
insistem em abafar e/ou conter as lutas sociais. Assim, quanto mais
avançam as lutas sociais, mais severas e incisivas são as ações contra
os levantes populares, envolvendo a criminalização e subalternização
dos grupos em movimento, que, em sua maioria, apresentam pautas
com denúncias e questionamentos à ordem social vigente.

A democracia brasileira nasceu e se desenvolve em território mina-


do, visto que diferentes projetos de sociedade permanecem em dis-
puta. Nos últimos anos, vimos diferentes líderes se protegerem nas
estruturas estatais para perseguir e, até mesmo, acionar forças mili-
tares contra os movimentos sociais. A mídia brasileira, sob o comando
das elites, é pouco confiável na divulgação e na contextualização real
dos enfrentamentos mais diretos.

Na resistência, os movimentos sociais enfrentam desafios diversos,


tais como: a ausência de oportunidades de acesso a processos edu-
cacionais que os instrumentem adequadamente para potencializar a
organização e a luta; a falta de recursos essenciais (renda, alimentação,
moradia, meios para deslocamento, para produção de materiais e para
garantir a defesa dos integrantes criminalizados); e a falta de valoriza-
ção social pelo importante papel que desempenham na sociedade.

Contudo, mesmo diante das condições adversas, os movimentos


sociais têm se mantido resistentes. Ora revelam-se mais empodera-
dos, segundo as condições de organização e de financiamento, ora
menos vitoriosos, mas sempre atuantes. Na linha das conquistas,
encontra-se o poder educativo gerado pelas práticas que advêm do
exercício da participação social.
Há um caráter educativo nas práticas que se desenrolam no ato
de participar, tanto para os membros da sociedade civil, como
para a sociedade mais geral, e também para os órgãos públicos
envolvidos – quando há negociações, diálogos ou confrontos.
Uma das premissas básicas a respeito dos movimentos sociais

96 Classes e movimentos sociais


é: são fontes de inovação e matrizes geradoras de saberes. En-
tretanto, não se trata de um processo isolado, mas de caráter
político-social [...]. Os movimentos realizam diagnósticos sobre a
realidade social, constroem propostas. (GOHN, 2011, p. 333-334)

Segundo Gohn (2011), a criação de saberes e a implantação de no-


vas diretrizes foram conquistas dos movimentos sociais, a partir das
alterações fomentadas pela Constituição Federal de 1988. Por meio de
diferentes articulações, negociações, diálogos e possibilidades de em-
bate, os movimentos sociais se aprimoraram e avançaram para cam-
pos antes desconhecidos e/ou pouco ocupados.
A participação direta nos espaços onde se debate e se propõe a coi-
sa pública instrumentalizou os movimentos sociais, no que diz respeito
ao entendimento ampliado dos trâmites que compõem as instituições
públicas e privadas, bem como ante as diferentes disputas de poder na
sociedade. Na mesma linha, por meio das políticas públicas voltadas
a garantir o acesso à educação superior, os movimentos sociais aces-
saram a universidade, o que possibilitou aos sujeitos uma abordagem
com propriedade ainda mais ampla sobre o seu lugar de fala.
Outros importantes elementos que caracterizam os atuais movi-
mentos sociais são os patamares de entendimento e de prática política,
construídos com base nos novos aprendizados gerados pela atuação
em cotidianos mais institucionalizados e politizados. São formas apri-
moradas de interação e conexão social, que, em primeira medida, fo-
mentam e proporcionam a constituição de novas culturas políticas.
Aprendizado coletivo, mútuo e que, além de se manter em constante
movimento, tem sido precursor de novos tipos de comunicabilidade.
Atuando em redes, constroem ações coletivas que agem como
resistência à exclusão e lutam pela inclusão social. Constituem
e desenvolvem o chamado empowerment de atores da socie-
dade civil organizada à medida que criam sujeitos sociais para
essa atuação em rede. Tanto os movimentos sociais dos anos
1980 como os atuais têm construído representações simbólicas
afirmativas por meio de discursos e práticas. Criam identida-
des para grupos antes dispersos e desorganizados, ao realizar
essas ações, projetam em seus participantes sentimentos de
pertencimento social. Aqueles que eram excluídos passam a
se sentir incluídos em algum tipo de ação de um grupo ativo.
(GOHN, 2011, p. 336)

A criação dessa nova comunicabilidade em rede antecede o advento


da internet. São saberes gerados pela conexão dos movimentos sociais
com diferentes instituições, grupos identitários, regionalidades e cultu-

Os movimentos sociais contemporâneos 97


ralidades diversificadas. A internet ampliou e potencializou a rede de
interação e conexão que já existia. Seu uso pelos movimentos sociais
é estratégico e fundamental, visto ser uma ferramenta de extrema im-
portância para potencializar tanto a organização dos sujeitos que os
compõem quanto a publicização de suas bandeiras, ações e intenções.

Por meio da conexão virtual em rede, os movimentos sociais estrei-


taram distâncias, potencializaram ações, abarcaram um maior número
de adeptos e criaram modelos de financiamento, espaços de debate e
tipos de participação. A distância territorial deixou de ser uma barreira
para a aproximação dos grupos que compartilham debates, propostas
e encaminhamentos.

O enfrentamento do monopólio das mídias foi viabilizado devido


à internet possibilitar que os movimentos sociais veiculem o seu lado
da história, além de denunciar abusos, massacres e falsas verdades a
respeito deles. A dificuldade de gerar renda e meios de trabalho para
a manutenção das práticas de luta, aos poucos, também vem sendo
viabilizada. A rede conectada proporciona o acionamento de milhares
de pessoas para a resolução de problemas que podem ser de muitos,
de poucos e/ou de um único sujeito.

Assim, os movimentos sociais seguem na resistência, reinventan-


do estratégias, criando aprendizagens cada vez mais coletivas, mais
instrumentalizadas, cientificamente respaldadas, coletivamente cus-
teadas e modernamente organizadas. A cada década, reduzem os
muros territoriais, a cada conjuntura, adequam os mecanismos uti-
lizados e, ainda que aparentem apáticos e/ou passivos, resistem, se
articulam e expressam suas demandas por meio de ações sociais,
políticas e culturais diversificadas.

Os movimentos sociais se localizam nos âmbitos local, municipal,


estadual, nacional e internacional e, por meio de denúncias e de dife-
rentes tipos de mobilizações, materializam suas lutas. Demarcam suas
pautas por meio de marchas e passeatas, bem como enfrentam a or-
dem hegemônica por meio de atos de desobediência civil. Ainda que
historicamente “remem na contramão das correntes”, suas ações são
indiscutivelmente as principais responsáveis por todas as conquistas
alcançadas a nível mundial no que se refere à criação e à efetivação de
direitos sociais, civis e políticos.

98 Classes e movimentos sociais


CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os movimentos sociais são os principais responsáveis pela exposição
do mundo como ele realmente é, ou seja, constituído sob estruturas de-
siguais e, em muitos casos, desumanas. Nesse campo, é necessário mo-
vimentar-se e impor-se de modo organizado e coletivo, a fim de reunir
forças para denunciar as barbáries que assombram cotidianamente mi-
lhares de sujeitos em todo o mundo.
Se não fossem as lutas promovidas pelos movimentos sociais, não
viveríamos a modernidade como se apresenta, ou seja, permeada de
diversidades sociais, políticas, culturais e artísticas; organizada com
base em leis humanizadas e regulada por princípios de liberdade,
igualdade e respeito. A era dos direitos e da cidadania, que hoje consti-
tui nossa realidade, jamais se tornaria real sem as forças coletivas que
travaram milhares de lutas.
Em tempos atuais, a luta dos movimentos sociais é o que pode ga-
rantir a permanência da era dos direitos, visto que o desmonte deles
está em alta nos encaminhamentos do governo brasileiro, que mani-
festa por vezes uma visão conservadora e um projeto de sociedade
que ameaçam os avanços com relação às organizações social, civil, cul-
tural, econômica e política.
Portanto, cabe aos profissionais da área social fomentar a organização
popular e o empoderamento das classes subalternizadas. De sua organi-
zação depende a organização de uma sociedade mais igualitária.

ATIVIDADES
1. A partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, o Brasil
adentrou o período sócio-histórico denominado de era dos direitos.
Esse processo ocorreu a partir de muitas lutas de diversos movimentos
sociais, que direcionaram a nação a instituir princípios fundamentais
para as organizações social, civil e política do país. Contudo, esse
processo vem sendo ofuscado em nome de intervenções econômicas
internacionais, materializadas por meio das medidas macroeconômicas
impostas pelos países imperialistas. Exercite contextualizar em
que medida essas ações de intervenção econômica prejudicam a
implantação das políticas públicas e sociais.

2. Entre os principais desafios impostos aos movimentos sociais estão


a superação e o enfrentamento dos processos estigmatizantes e
criminalizantes direcionados às suas ações e à sua razão de existir. Qual

Os movimentos sociais contemporâneos 99


conjunto de elementos tem sido utilizado pelos grupos hegemônicos
para estigmatizar e criminalizar os movimentos sociais?

3. Como os movimentos sociais têm resistido historicamente,


principalmente na atualidade?

REFERÊNCIAS
ACANDA, J. L. Sociedade civil e hegemonia. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006.
ARROYO, M. G. O direito à educação e a nova segregação social e racial: tempos
insatisfatórios? Educação em Revista, v. 31, n. 3, p. 15–47, 2015.
BAQUERO, M. Cultura Política participativa e desconsolidação democrática: reflexões
sobre o Brasil contemporâneo. São Paulo em Perspectiva, São Paulo, v. 15, n. 4, p. 98-104,
dez. 2001.
BECKER, H. S. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
BIROLI. F. Divisão sexual do trabalho e democracia. Revista Dados, Rio de Janeiro, v.
59, n. 3, jul./set. 2016.
DURIGUETTO, M. L. Criminalização das classes subalternas no espaço urbano e ações
profissionais do serviço social. Serviço Social & Sociedade, v. 128, p. 104-122, 2017.
GRAMSCI, A. Maquiavel, a política e o Estado moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
GOHN, M. da G. Movimentos sociais na contemporaneidade. Revista Brasileira de Educação,
v. 16, n. 47, maio-ago. 2011. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/rbedu/v16n47/
v16n47a05.pdf. Acesso em: 25 jun. 2020.
LINHARES, M. Y. L.; SILVA, F. C. T. da. Terra prometida: uma história da questão agrária no
Brasil. Rio de Janeiro: Campus, 1999.
LOPES, M. C. Cultura política no litoral do Paraná: a UFPR-Litoral e as “águas de março”.
Curitiba, 2014. Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Setor De Ciências Humanas, Letras
E Artes, Universidade Federal do Paraná.
MEIRELLES, G. Á. de. Serviço Social e “Questão Social”: das origens a contemporaneidade.
Curitiba: Intersaberes, 2018. (Série Formação Profissional em Serviço Social, n. I)
MISSE, M. Sobre a construção social do crime no Brasil: esboços de uma interpretação. In:
MISSE, M. (org.). Acusados e acusadores: estudos sobre ofensas, acusações e incriminações.
Rio de Janeiro: Revan, 2008.
PEREIRA, P. Proteção Social Contemporânea: cui prodest? Serviço Social & Sociedade, São
Paulo, n. 116, p. 636-651, out./dez. 2013.
SAFFIOTI, H. I. B. A mulher na sociedade de classes: mito e realidade. São Paulo: Expressão
Popular, 2013.
ZAFFARONI, E. R.; SLOKUR, A.; ALAGIU, A. Derecho Penal: parte general. 2. ed. Buenos Aires:
Ediar, 2002.

100 Classes e movimentos sociais


5
O Serviço Social e os
movimentos sociais
Neste capítulo, será apresentada a história da construção
da relação social entre o Serviço Social e os movimentos sociais.
Também, teremos a oportunidade de adentrar um dos debates
mais sofisticados da profissão: o ideário do projeto ético-político
do Serviço Social.
Com base nesse debate, poderemos compreender os princí-
pios que regem a atuação do Serviço Social e dimensionar por
que a proximidade dessa área com os movimentos sociais é
uma condição indispensável.

5.1 O projeto ético-político do Serviço


Social e os movimentos sociais
Vídeo Com o passar dos séculos, a experiência da humanidade constituiu
aprimoramentos de níveis diversos e, sem dúvida, a prática do pla-
nejamento está entre os elementos que mais promoveram sua evo-
lução. Nesse ínterim, passamos a traçar metas e construir projetos
de sociedade segundo as expectativas de vida dos diferentes grupos
sociais. Nas palavras de Netto (1999, p. 2), são projetos societários
construídos com base em “antecipações ideais da finalidade que se
pretende alcançar, com a invocação dos valores que a legitimam e a
escolha dos meios para lográ-la”.

Nas sociedades capitalistas, duas das características que constituem


os projetos societários são indispensáveis à compreensão da vida em
sociedade: a dimensão macro e o processo de construção demarcado
por identificação de classe. Isso implica dizer que, na base de constru-
ção de projetos societários, existe uma dimensão política, permeada

O Serviço Social e os movimentos sociais 101


por relações de poder de diferentes níveis e faces que são alocadas
para organizar a vida de modo macro.

Podemos entender, assim, o motivo pelo qual, mesmo nas socieda-


des democráticas, ainda persiste o fato de que os projetos construídos
pelas classes trabalhadoras e subalternizadas não dispõem de condi-
ções favoráveis à sua implantação e desenvolvimento. Uma lógica sim-
ples, visto que, no capitalismo, a aplicabilidade de projetos societários
requer uma disposição mínima de recursos humanos, econômicos e
culturais, bem como exige tempo e consciência de classe – condições
das quais raramente as classes subalternizadas dispõem.

Na mesma linha, as categorias profissionais constroem projetos


de atuação segundo seus entendimentos de mundo. Esses projetos
visam conduzir a uma caminhada de atuação profissional hegemôni-
ca, ou seja, unificada e afinada com os princípios e as diretrizes que a
regulam. Isso não significa que dentro de uma mesma categoria profis-
sional não existam projetos alternativos, afinal, os corpos profissionais
são constituídos de sujeitos plurais, que originam e constroem dife-
rentes capitais econômicos e culturais, refletindo, portanto, diferentes
visões de mundo. Assim, a hegemonia de um projeto se dá por meio do
debate e do consenso de ideias e expectativas de mundo.
Os projetos profissionais apresentam a autoimagem de uma
profissão, elegem os valores que a legitimam socialmente, de-
limitam e priorizam seus objetivos e funções, formulam os re-
quisitos (teóricos, práticos e institucionais) para o seu exercício,
prescrevem normas para o comportamento dos profissionais
e estabelecem as bases das suas relações com os usuários de
1 seus serviços, com as outras profissões e com as organizações e
As ações desenvolvidas pelo Ser- instituições sociais privadas e públicas (inclusive o Estado, a que
viço Social até o movimento de cabe o reconhecimento jurídico dos estatutos profissionais).
reconceituação eram norteadas (NETTO, 1999, p. 4)
pela crença de que os indivíduos
eram os únicos responsáveis por Nesse contexto, na década de 1960, inicia-se a construção do
sua “má sorte”, ou seja, a profissão
os culpava pelas misérias e projeto ético-político do Serviço Social brasileiro, processo que
pelas demais mazelas sociais se realizou com base no debate e no consenso acerca do tipo de
que vivenciavam. Acreditava-se sociedade que a profissão passou a almejar, após atuar por mais
que eram sujeitos desajustados,
ou seja, ignoravam o sistema de de trinta anos no exercício de atender às vulnerabilidades sociais
injustiças e de desigualdades de da organização social criada pelo sistema capitalista. Rompia com
oportunidades ao qual estavam 1
uma atuação conservadora e repressiva , que servia de suporte à
condicionados e condenados.
reprodução da lógica de exploração das classes populares.

102 Classes e movimentos sociais


Nesse período, os assistentes sociais construíram o entendimento Curiosidade
de que a desigualdade social é um fator inseparável da lógica capitalista, O tradicionalismo do Serviço
Social é entendido como bases
pois sua ampliação e sua permanência são elementos indispensáveis à
teóricas e práticas empiristas,
própria existência do capital. Esse fato os conduziu ao entendimento reiterativas, paliativas e buro-
de que, ao contrário do que acreditavam, suas práticas estavam a ser- cratizadas, pautadas na ética
liberal-burguesa que deu base
viço da máquina que criava a miséria e o desespero humano. Portanto,
ao surgimento da profissão e
não só iniciaram um movimento de revisão e reconstrução de suas prá- orientou as intervenções profis-
ticas, como também passaram a almejar uma nova ordem societária. sionais até meados da década de
1970 e 1980 (AVILLA, 2017).
Esse é um movimento de luta e de reconstrução que surgiu sob forte
influência dos movimentos sociais que efervesciam na América Latina,
enquanto resultado do questionamento do povo latino-americano sobre
as relações econômicas e sociais produzidas pelo capitalismo. Ganhou
corpo e força no Brasil, por meio da eclosão dos movimentos sociais
gerados pelas forças populares, no confronto do regime ditatorial.

Assim, da década de 1970 a 1980, o Serviço Social brasileiro debateu


e construiu seu projeto ético-político como enfrentamento das raízes
conservadoras da profissão, processo de renovação profissional co-
2
2
nhecido como Movimento de Reconceituação . As vivências ocorridas Processo iniciado formalmente
no Congresso Brasileiro de
nesses períodos históricos conduziram os profissionais a se percebe- Assistentes Sociais, em 1979, na
rem enquanto classe trabalhadora e esse foi o divisor de águas que cidade de São Paulo, amadureci-
demarcou a construção do projeto ético-político da profissão. do nos anos seguintes por meio
do aprimoramento acadêmico
Um dos elementos relevantes desse processo é o aprimoramento da profissão e consolidado, en-
quanto hegemônico, na década
das bases intelectuais da profissão. Afinal, para instaurar a ruptura
de 1990, mediante a instituição
com as práticas conservadoras, se fazia necessário romper, na mesma do novo Código de Ética do
medida, com as bases teóricas que as fundamentavam. Desse modo, Serviço Social, em 1993.
era preciso incorporar matrizes teóricas e metodológicas compatíveis
com o novo modo de analisar o social sem reproduzir a injustiça social.

Foi nesse contexto que o Serviço Social brasileiro se aprofun-


dou nos estudos da perspectiva crítica, produzidos por Karl Marx
e pelos demais autores de tradição marxista. Assim, um novo perfil
profissional passou a ser traçado, visto que as bases curriculares
do processo formativo da profissão também foram reformuladas.
Como resultado desse processo, houve o abandono das tradicionais
práticas conservadoras e a instauração da crescente ressignificação
das modalidades prático-interventivas, com vistas a contribuir para
o desenvolvimento de uma sociedade mais justa.

O Serviço Social e os movimentos sociais 103


3 Foi também nesse contexto sócio-histórico que a profissão elegeu as
3
As problemáticas sociais que expressões da questão social como objetos de sua primazia interven-
têm origem na questão social
tiva, campos prioritários de atuação, onde a profissão passou a assumir
são, por exemplo, a pobreza,
a miséria, a violência, o desem- grande responsabilidade com relação à emancipação humana. Definição
prego, o analfabetismo e, dentre de norte interventivo que foi aprimorada na mesma medida em que o
muitas outras, a situação de rua.
Serviço Social se aprofundou e se especializou na sua consciência sobre
a divisão social e técnica do trabalho na qual está inserido.
Os assistentes sociais trabalham com a questão social nas suas
mais variadas expressões quotidianas, tais como os indivíduos
as experimentam no trabalho, na família, na área habitacional,
na saúde, na assistência social pública, etc. Questão social que
sendo desigualdade é também rebeldia, por envolver sujeitos
que vivenciam as desigualdades e a ela resistem, se opõem. É
nesta tensão entre produção da desigualdade e produção da
rebeldia e da resistência, que trabalham os assistentes sociais,
situados nesse terreno movido por interesses sociais distintos,
aos quais não é possível abstrair ou deles fugir porque tecem a
vida em sociedade. (IAMAMOTO, 1997, p. 14)

Questão social é, portanto, entendida como a denominação para


fazer referência ao fator que gera e/ou amplia as desigualdades e
Leitura mazelas sociais, ou seja, a relação contraditória entre capitalistas e pro-
letários. É contraditória porque ambos produzem toda a riqueza social,
mas, dado que a ideologia burguesa sustenta o capitalismo, apenas os
capitalistas se apropriam dela. É uma relação de desigualdade e injusti-
ça que, enquanto condena os trabalhadores proletariados a condições
indignas de vida, é o fator que os impulsiona à organização de classe e,
portanto, ao reclame de direitos.

Nesse ínterim, foi concretizado o projeto ético-político do Serviço


Social que, norteado por valores de liberdade, justiça e democracia,
Sugerimos a leitura
estabeleceu, enquanto primazia ética central, o comprometimento
integral do Código de Ética com o desenvolvimento da emancipação humana. E, na mesma li-
do Assistente Social – Lei n.
8.662/1993 de regula-
nha, elegeu os sujeitos que compõem a classe trabalhadora como
mentação da profissão. É alvos prioritários desse processo.
importante conhecê-lo
para tornar sua atuação Com vistas a efetivar esses valores, a profissão se orienta e se nor-
mais consistente.
matiza por meio de seu Código de Ética profissional (implementado
BRASIL. 10. ed. Brasília: CFESS, juridicamente em 1993). O documento materializa os princípios e as
2012. Disponível em: http://www.
cfess.org.br/arquivos/CEP_CFESS-
diretrizes para a atuação profissional do Serviço Social no Brasil e, já
-SITE.pdf. Acesso em: 22 jun. 2020. nos cinco primeiros dos seus onze princípios fundamentais situa a pro-
fissão quanto ao seu papel social prioritário:

104 Classes e movimentos sociais


I. Reconhecimento da liberdade como valor ético central e das
demandas políticas a ela inerentes – autonomia, emancipação e
plena expansão dos indivíduos sociais;
II. Defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbí-
trio e do autoritarismo;
III. Ampliação e consolidação da cidadania, considerada tarefa
primordial de toda sociedade, com vistas à garantia dos direitos
civis sociais e políticos das classes trabalhadoras;
IV. Defesa do aprofundamento da democracia, enquanto so-
4
cialização da participação política e da riqueza socialmente A história da construção do
produzida; debate da ética no Serviço
V. Posicionamento em favor da equidade e justiça social, que Social pode ser observada por
meio dos diferentes códigos de
assegure universalidade de acesso aos bens e serviços relativos
ética elaborados pela profissão:
aos programas e políticas sociais, bem como sua gestão demo- três códigos de ética que
crática. (CFESS, 2012, p. 23-24) antecederam a década de 1980
e que apresentam princípios e
Regida por princípios e diretrizes construídos com base um debate diretrizes conservadoras, devido
4
ético ao longo de décadas , na atualidade, a profissão se apresenta à sua origem (Código de Ética
Profissional do Assistente Social
amadurecida em seus pressupostos epistemológicos (teorias e técni-
de 1948, Código de Ética de
cas). Com isso, o Serviço Social brasileiro assume para si o desenvol- 1965 e Código de 1975), bem
vimento de intervenções, com vistas a corroborar com a construção como, com base no Código de
Ética profissional do Serviço So-
de um novo projeto societário, em que a justiça social seja a grande cial de 1986, que perdurou por
regente dos processos. sete anos, até a elaboração do
atual Código de Ética da profis-
Essa trajetória pode ser efetivada apenas por meio do desenvolvi- são, criado em 1993 (construído
mento de uma atuação que seja construída com os movimentos so- com base em uma perspectiva
crítica de sociedade, resultante
ciais. Isso porque eles representam a luta das classes populares por
das lutas sociais travadas no
igualdade e por equidade de direitos, conforme o compromisso ético- Brasil, enquanto enfrentamento
-político legalmente assumido pela profissão. ao regime ditatorial).

5.2 A experiência do Serviço Social


junto aos movimentos sociais
Vídeo O questionamento da postura conservadora de atuação que
imperou no Serviço Social brasileiro por mais de trinta anos, con-
forme explicitado anteriormente, foi o que tornou possível a cons-
trução da profissão como se apresenta na realidade atual. Trata-se
de um fator que está intrinsecamente ligado à luta de classes, as-
sim como indiscutivelmente enraizado nos aprendizados sócio-his-
tóricos construídos junto aos movimentos sociais.

O Serviço Social e os movimentos sociais 105


Fato é que a própria constituição da profissão em sua versão atual é
resultado da relação do Serviço Social com os movimentos sociais. Um
campo de extremas contradições, visto que, conforme as estratégias
capitalistas se complexificam, mais frágeis se revelam os espaços en-
contrados pela profissão para efetivar a sua participação, consideran-
do que se compõem de trabalhadores que também devem participar
ativamente da organização sociopolítica.

Dito de outro modo, após a promulgação da Constituição Cidadã, os


espaços de atuação do Serviço Social foram ampliados e aprimorados,
com vistas a efetivar a nova organização do sistema de proteção social
brasileiro. Devido à sua experiência histórica de atuação na área social,
os assistentes sociais foram chamados a desempenhar o papel de pro-
positores, executores e avaliadores de políticas públicas sociais.

Desse modo, na mesma medida em que avançavam na linha de


frente da implantação do novo Estado de direitos, também se afas-
tavam da participação cotidiana por dentro dos movimentos sociais.
Esse processo conduziu o Serviço Social a atuar mais em função de
prestar serviços sociais aos movimentos do que compô-los enquan-
to classe trabalhadora.

Assim, gradativamente, os profissionais assumiram postos em áreas


específicas, desenvolvendo suas atividades nos âmbitos federal, estadual
e municipal. Grande parte estava localizada em microrregiões, nas novas
secretarias de assistência social, à frente do conjunto de mecanismos
criados para efetivar as novas políticas sociais. A relação do Serviço Social
com os movimentos sociais, desse modo, se manteve majoritariamente
por meio da efetivação dos acessos individuais às políticas públicas.

Nessa nova relação, enfatizamos a condição imutável de agentes


que involuntariamente desenvolvem papéis contraditórios, dado que,
por um lado, atuam com vistas a fomentar a emancipação dos sujei-
tos e fortalecer as organizações social e política dos trabalhadores
enquanto, na contramão, engendram a manutenção do ideário capita-
lista. Essa é uma atuação na qual existem resistência e posicionamento
crítico constante diante das medidas pontuais e imediatistas impostas
pelo Estado e, também, pelo viés da responsabilidade social que foi
terceirizada ao capital nas últimas décadas.

Trata-se de uma via de mão dupla que se estabelece devido ao fato


de que, enquanto trabalhadores assalariados, também são requeridos

106 Classes e movimentos sociais


para desenvolver atividades tecnicistas, burocráticas, individualizadas
e, muitas vezes, assistencialistas. Condicionantes relacionados às obri-
gações institucionais a que são incumbidos, para efetivar o controle da
vida social requerido pelo Estado ou pelas empresas quando funcioná-
rios do âmbito privado.

Contudo, mesmo diante das contradições que permeiam o campo


de atuação, os assistentes sociais conseguem desenvolver estratégias
direcionadas ao fomento da organização sociopolítica. Orientam os
movimentos sociais com relação às possibilidades de participação na
lógica estatal (conselhos de direito e conferências) e capacitam lideran-
ças, no sentido de prepará-las para o desenvolvimento de projetos e
ações coletivas. Além disso, encaminham os integrantes para a rede
de serviços da esfera pública, conforme as necessidades identificadas.

No que diz respeito à relação direta com os coletivos, a profissão


tem desenvolvido sua trajetória, mais precisamente, voltada à presta-
ção de serviços de assessoria e/ou consultoria – trabalho desenvolvido
tanto via contratações remuneradas quanto voluntárias. Nesse campo,
destacamos as atividades realizadas junto aos movimentos sindicalis-
tas, rurais e urbanos, bem como as atuações construídas em parceria
com os movimentos da saúde e os socioambientais. Nos últimos anos,
ainda, as ações de assessoria e/ou consultoria oriundas do mundo uni-
versitário (projetos de extensão) têm crescido significativamente.
A atuação junto aos movimentos sociais foi instituída, enquanto
uma competência profissional, expressa no artigo 4º (inciso 9) da
Lei de Regulamentação da Profissão (nº 8662/93), em que consta
a nossa reconhecida capacidade de “prestar assessoria e apoio
aos movimentos sociais em matéria relacionada às políticas so-
ciais, no exercício e na defesa dos direitos civis, políticos e sociais
da coletividade”. Bem como também é um direito do/a assistente
social, posto em seu Código de Ética (Capítulo IV, Art.12, inciso b),
“apoiar e/ou participar dos movimentos sociais e organizações
populares vinculados à luta pela consolidação e ampliação da de-
mocracia e dos direitos de cidadania”. (CFESS, 2012, p. 2)

Ainda que historicamente recente, o trabalho de assessoria e de


consultoria realizado pelo Serviço Social junto aos movimentos sociais
tem demonstrado grande potencial. Essa atuação cada vez mais se
comprova por meio do reconhecimento dos movimentos sociais, o que
se expressa, por exemplo, na manutenção das contratações, revelando
a relação de confiança depositada no trabalho desses profissionais.

O Serviço Social e os movimentos sociais 107


Assessoria/consultoria é a ação desenvolvida por um profissio-
nal com conhecimento na área, que toma a realidade como obje-
to de estudo e detém uma intenção de alteração da realidade. O
assessor não é aquele que intervém, deve sim, propor caminhos
e estratégias ao profissional ou à equipe que assessora e estes
têm autonomia em acatar ou não as suas proposições. Portanto,
o assessor deve ser alguém estudioso, permanentemente atuali-
zado e com capacidade de apresentar claramente as suas propo-
sições. (MATOS, 2010, p. 31)

Um dos levantamentos realizados por um dos grupos de trabalho


do XV Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social (ENPESS)
demonstra que a profissão tem abarcado, em suas temáticas de pes-
quisa e em seu quadro de atuação, todos os campos existentes no que
diz respeito aos movimentos sociais: sindicalistas, feministas, pela li-
berdade de orientação sexual, quilombolas, urbanos e rurais, étnico-
-raciais, relacionados à pauta da juventude, da população em situação
de rua, ambientalistas e, dentre outros, os movimentos em prol dos
direitos da pessoa idosa, da pessoa com deficiência e da proteção da
infância e a da adolescência.

Outro elemento de extrema importância se refere ao fato de que


o Serviço Social é uma das categorias profissionais que mais desen-
volve pesquisas e instrumentos técnicos para a compreensão e o en-
frentamento das problemáticas sociais vivenciadas pelos movimentos
sociais. As produções das pesquisadoras Maria Lucia Duriguetto (2014),
Maristela Dal Moro e Morena Gomes Marques (2011), por exemplo, de-
monstram que o Serviço Social tem feito diferença na organização e no
aprimoramento dos movimentos sociais, principalmente com relação
ao fazer sociopolítico voltado à construção da autonomia e da emanci-
pação dos sujeitos.

Segundo as pesquisadoras mencionadas, a atuação direta dos assis-


tentes sociais junto aos movimentos sociais tem se materializado por
diferentes vias. Abramides e colaboradores (2016), por exemplo, citam:
Conselho Federal de Serviço Social (CFESS); Conselho Regional de Servi-
ço Social (CRESS); Associação Brasileira de Ensino e Pesquisa em Serviço
Social (ABEPSS); representação em conselhos de Direito; participação em
fóruns, seminários, colóquios, congressos, debates, coordenação de nú-
cleos de pesquisa e de extensão universitária; participação em frentes
de lutas; e, dentre outras, na construção de campanhas articuladas aos
movimentos sociais.

108 Classes e movimentos sociais


A relação do Serviço Social com os movimentos sociais, contudo,
ainda requer debate, compreensão, fortalecimento e revisão, especial-
mente quanto à práxis realizada e aos elementos contraditórios, que,
nas últimas décadas, têm configurado um quadro preocupante. No
campo da sistematização da experiência, por exemplo, menos de 10%
das produções publicadas são sobre os movimentos sociais. Isso reme-
te ao entendimento de que a profissão está distante das bases de luta,
ou seja, se faz necessário incentivar pesquisas acerca dos movimentos
sociais tanto no espaço acadêmico quanto no profissional.

Outro ponto que chama atenção é o fato de que grande parte das
análises sobre os movimentos sociais é influenciada pelas teorias pós-
-modernas, visto que elas carregam elementos explicativos de algumas
das peculiaridades que caracterizam os novos movimentos sociais,
principalmente com relação à pauta dos grupos identitários. Contudo,
essas teorias não estão em consonância com os pressupostos teórico-
-metodológicos e ético-políticos que dão corpo à lei que regulamenta o
exercício profissional do Serviço Social.

Trata-se de uma incoerência epistemológica que deve ser urgen-


temente questionada a fim de que a profissão não se perca em seu
propósito principal, ou seja, o empoderamento da classe trabalhadora
diante da luta de classes. Em suma, ainda que as terias pós-moder-
nas apresentem contribuições sobre os pressupostos da modernidade,
não oferecem os subsídios necessários para o debate da raiz que cria e
sustenta a desigualdade social, isto é, o sistema capitalista.

O uso descontextualizado das teorias pós-modernas, conforme


já problematizado, pode comprometer a postura investigativa da
profissão, pois não se tem a visão da totalidade. Isso pode condu-
zir a uma leitura rápida e fragmentada da realidade, além de ele-
mentos analíticos frágeis culminarem com os interesses do ideário
burguês, e não com a construção da nova ordem societária, como
requer a classe trabalhadora organizada em sua luta contra a ex-
ploração que cotidianamente a aflige.
Neste cenário, desfavorável aos trabalhadores e de crimi-
nalização de sua resistência, faz-se necessário potencializar
propostas de fortalecimento dos movimentos sociais calca-
das na perspectiva contrária à sociabilidade do capital, obje-
tivando à viabilização prático-política do projeto profissional.
Nesta pesquisa, têm-se o exemplo significativo das práticas de

O Serviço Social e os movimentos sociais 109


assessoria aos movimentos sociais, instrumentalizando-fortale-
cendo-capacitando distintos sujeitos coletivos em sua luta coti-
diana. (MORO; MARQUES, 2011, p. 42)

A relação do Serviço Social com os movimentos sociais é tão antiga


quanto a própria origem da profissão, relacionada às vivências cons-
truídas junto aos movimentos de base da Igreja Católica na década de
1930: a conhecida história das moças provenientes de famílias mais
abastadas, que, orientadas sob a ética cristã, debruçavam-se a agir na
realidade social. Essa relação se aprimora e se reconfigura por meio dos
movimentos sociais que efervesceram no país desde a década de 1960,
ganhando novo rumo e concretizando-se entre o final da década de
1980 e o início de 1990, a partir da repaginação da profissão, que teve
como resultado a criação de uma identidade profissional. O Serviço So-
cial e os movimentos sociais têm, portanto, uma relação indissociável.

5.3 Políticas públicas, Serviço Social


e movimentos sociais
Vídeo O novo Serviço Social, que emergiu a partir da década de 1960, par-
ticipou ativamente das reivindicações populares contra o regime dita-
torial (em vigência no país) e em prol da efetivação da cidadania. Como
resultado, ao final da década de 1980, comemorou junto aos movimen-
tos sociais a promulgação da Constituição Federal Brasileira de 1988,
Curiosidade adentrando a década de 1990 designado a atuar na linha de frente da
A seguridade social foi efetivação do tripé da seguridade social, previsto na Carta Magna.
mencionada pela primeira vez
na Constituição Federal de 1988 Os reclames populares, enfim, encontraram lugar de efetivação;
como o conjunto de direitos os movimentos sociais brasileiros vibravam e saboreavam a conquis-
prioritários a serem garantidos
aos cidadãos brasileiros. Alguns ta da nova Constituição, que se anunciava capaz de reverter mais de
desses direitos são os serviços 500 anos de história de negligência, tirania, crueldade e injustiças diver-
voltados à saúde, à previdência sas. A pauta da universalidade de direitos, do abandono das práticas
social contributiva e à assistência
social, para quem dela precisar, o clientelistas, assistencialistas e reducionistas, da ampliação do sistema
que configura um novo entendi- previdenciário, da criação da transparência, da organização descentra-
mento e uma nova organização
lizada e, entre outras demandas, da partilha dos espaços decisórios to-
do sistema de proteção social
brasileiro. maram conta da nação.

Contudo, como vimos anteriormente, o sonho foi interrompido,


visto que, na contramão da cobertura de direitos preconizados pela
Constituição de 1988, o Estado brasileiro iniciou a implantação de um

110 Classes e movimentos sociais


conjunto de medidas reformistas, voltadas à organização do país com
vistas a efetivar as estratégias expansionistas neoliberais. Essas medi-
das, em suma, objetivavam empoderar o capital internacional e, para
tal, reduzir o investimento no social.

Desse modo, efetivou-se o contra-ataque das elites políticas e econô-


micas, o que culminou na não implementação de muitos dos elementos
constituintes do novo sistema de proteção social brasileiro. Esse proces-
so se deu por meio de significativos cortes orçamentários, do desvio dos
recursos anteriormente previstos para a implantação da seguridade so-
cial e da terceirização de serviços públicos essenciais, encaminhamentos
que, dentro outros, progressivamente transfiguraram o que se propu-
nha na Carta Magna. Esse contexto de reformas que demarcam o man-
do e o desmando das elites dominantes avança e, paralelamente, leva
à regressão dos direitos sociais, bem como dos direitos civis e políticos.

É uma rede de poderes muito bem articulada, que vende a ideia da


ampliação de políticas emergenciais e desmonta as políticas de caráter
permanente. Como grupo dominante, cria tendências e setores para
desresponsabilizar o Estado por meio do desvirtuamento da concep-
ção de direito para o entendimento de ajuda. Em suma, vislumbra e
trabalha em prol da despolitização geral dos trabalhadores e das desi-
gualdades sociais, de modo a materializar o ideário neoliberal em to-
dos os âmbitos da esfera estatal (MOTTA, 2006).

Assim, caracteriza-se o campo de atuação do Serviço Social, principal-


mente com relação às políticas de Estado, da década de 1990 aos dias
atuais. Uma “máquina” que nunca paralisa e continua a inovar em estra-
tégias voltadas ao desmonte de direitos fundamentais. Campo minado
que, na atualidade, aloca o Serviço Social em uma via de mão dupla, visto
que, na mesma medida em que atua na linha de frente da implantação e
da manutenção dos direitos sociais, é chamado a efetivar o projeto neo-
liberal, dado que o Estado é o principal agente contratante da categoria.

O chamado neoliberal se materializa na execução de políticas emer-


genciais e reducionistas, bem como de projetos e ações voltados a
manter a população sob controle diante das mazelas cotidianas. Para o
capital, o que interessa é a supressão da miséria, e não a erradicação da
pobreza, visto que pobres, enquanto consumidores, sustentam o capital.

O que prevalece no ideário neoliberal é a criação de medidas que


mantenham a raiz dos problemas sociais. Para tal, a burguesia avança

O Serviço Social e os movimentos sociais 111


para dentro da organização estatal, a fim de ocupar os espaços de po-
der que lhes garantem a legitimidade necessária para engendrar a per-
petuação do lugar de pobre e de despolitizada à classe trabalhadora.

Na mesma linha de uso da máquina do Estado brasileiro, as eli-


tes designam o Serviço Social para reprodução da pobreza, seja por
meio da entrega de cestas básicas para acalmar a fome imediata,
a fim de que a indignação não resulte em atos de contestação da
ordem vigente, seja na seleção dos mais miseráveis para a repro-
dução dos sistemas burocráticos que os distanciam do acesso aos
reclames sociais de que têm direito.

Dito de outro modo, a atuação do Serviço Social se materializa em


campos cada vez mais adversos, pois, para além das muitas formas
de expressão da questão social com que se deparam cotidianamente,
sem que disponham dos mecanismos adequados frente à garantia de
direitos, há também o fato de que atuam em equipes insuficientes e em
espaços inapropriados.

Assistentes sociais são trabalhadores assalariados, que resistem no


enfrentamento das desigualdades sociais. Profissionais que se diversi-
ficam por meio de estratégias criativas para responder às demandas
que lhes são encaminhadas, que se desdobram em meio às adversi-
dades constituintes de seus espaços de trabalho, fortalecidos por um
compromisso ético-político que cada vez menos encontra, na esfera
estatal, “terreno fértil para plantio” de esperança.

Trata-se de profissionais que, mesmo diante de tantas contradi-


ções, mantêm-se na resistência dos princípios que regem a profissão
com a qual assumiram compromisso. Assim, fazem uso de toda e qual-
quer oportunidade em prol de favorecer avanços e transformações
nas condições de vida dos usuários que passam pelos mecanismos
onde atuam.

Nesse sentido, desempenham esforços voltados à construção de


processos socioeducativos para orientar e conduzir os sujeitos rumo
ao acesso de seus direitos, segundo a necessidade de cada um de-
les. Dedicam-se a criar encaminhamentos que possibilitem a eman-
cipação humana, o fortalecimento da participação e da organização
política e, principalmente, o desvelamento da ordem capitalista, no
sentido de se posicionarem e, na mesma medida, incentivarem a
população a também fazê-lo.

112 Classes e movimentos sociais


Atuando em organizações públicas e privadas dos quadros do-
minantes da sociedade, cujo campo é a prestação de serviços
sociais, o Assistente Social exerce uma ação eminentemente
“educativa”, “organizativa”, nas classes trabalhadoras. Seu obje-
tivo é transformar a maneira de ver, de agir, de se comportar e
de sentir dos indivíduos em sua inserção na sociedade. Essa ação
incide, portanto, sobre o modo de viver e de pensar dos traba-
lhadores, a partir de 10 situações vivenciadas no seu cotidiano,
embora se realize através da prestação de serviços sociais, pre-
vistos e efetivados pelas entidades a que o profissional se vincula
contratualmente. (IAMAMOTO, 2007, p. 40)

É nesse contexto que o Serviço Social resiste enquanto profissão que Vídeo
se orienta pelo seu código de ética profissional, a fim de materializar Para compreender
melhor a trajetória da
seus princípios e diretrizes, de modo que possam captar, no cotidiano de profissão, indicamos
atuação, meios viáveis para efetivar os direitos sociais e ampliá-los. Cien- assistir ao vídeo Serviço
Social no Brasil – 80 anos
tes de que se trata de uma caminhada complexa, processual e permeada de história, ousadia e lutas,
de duros enfrentamentos, esses profissionais seguem no exercício de publicado pelo canal
Cortez Editora. Nele, é
apreender a realidade para além do que ela aparenta. feita uma análise crítica
a respeito das diferentes
Os movimentos sociais, nesse sentido, são grandes aliados, dado
perspectivas do Serviço
que representam os sujeitos que vivenciam cotidianamente injustiças Social.

diversas e mazelas sociais, que somente por eles podem ser explicita- Disponível em: https://
www.youtube.com/
das na sua complexidade. Vivências que historicamente os acometem,
watch?v=qExDNXsdy2A. Acesso
tornando-os, portanto, especialistas no que se refere às resultantes da em: 22 jun. 2020.
questão social. Ao Serviço Social, cabe apreender essas vivências em
sua realidade concreta para captar as reais possibilidades de mudança,
ou seja, de transformação da realidade vivida.

Para isso, dispõe de atribuições privativas e competências construí-


das com base em uma profissão centenária, que privilegiadamente
oriunda e permanece atuando com vistas a construir respostas às desi-
gualdades sociais. Um trabalho de extrema complexidade, que encon-
tra nas políticas sociais públicas, bem como nos espaços de atuação na
esfera privada, vias de conquista de direitos, para que as populações
empobrecidas, negligenciadas e/ou excluídas possam tomar consciên-
cia de classe e, portanto, materializar seus campos de luta.

Essa prática se faz possível nos detalhes da atuação profissional


cotidiana, visto que, embora se tenha ciência de que, nas sociedades
capitalistas, o Estado se configure enquanto instrumento de efetivação
dos interesses dos grupos dominantes, ou seja, das elites políticas e
econômicas, também é instituição que se revela campo de cobertura

O Serviço Social e os movimentos sociais 113


dos interesses da classe trabalhadora. O Estado é, em si, a área onde se
mostram as contradições manifestadas pela luta de classes.

De acordo com Poulantzas (1977), no espaço do Estado, manifes-


tam-se as lutas de classe, os diferentes interesses. Isso caracteriza o
campo estatal como área de disputa de poder, ou seja, espaço viável de
conquistas da classe trabalhadora, ainda que em menor grau, devido
às configurações de sua origem enquanto instituição capitalista. No en-
tendimento do autor, esse processo se constitui por meio da unidade
própria de poder institucionalizado do Estado capitalista.
A classe ou fração hegemônica polariza os interesses contradi-
tórios específicos das diversas classes ou frações no bloco no
poder, constituindo os seus interesses econômicos em interes-
ses políticos, representando o interesse geral comum das clas-
ses ou frações do bloco no poder: interesse geral que consiste
na exploração econômica e na dominação política [...]. O pro-
cesso de constituição da hegemonia de uma classe ou fração
difere quando essa hegemonia se exerce sobre as outras clas-
ses e frações dominantes – bloco no poder –, ou sobre o con-
junto de uma formação, inclusive sobre as classes dominadas.
(POULANTZAS, 1977, p. 233-234)

Nesse sentido, a organização do trabalho se realiza na relação di-


reta com os usuários das políticas públicas, no empoderamento das
lideranças comunitárias, na disseminação de informações sobre o fun-
cionamento do Estado, principalmente acerca das mais variadas for-
mas de acesso a reclames sociais, bem como no planejamento e no
acompanhamento minucioso da construção dos espaços de participa-
ção da população, enquanto representações da sociedade civil organi-
zada. Também se realiza por meio dos espaços de gestão das políticas
sociais, lugar de poder mais ampliado devido às possibilidades de re-
querimento de serviços e mecanismos sociais.

Cabe considerar que uma das principais problemáticas da atualida-


de com relação ao Serviço Social e aos movimentos sociais se localiza
no fato de que, embora a relação da profissão com os movimentos
sociais seja oriunda do passado, no presente, essa relação se faz notar
mais distanciada. É um processo elaborado pelo ideário capitalista, seja
por meio dos desmontes de direitos institucionalizados nos últimos
tempos, pelas precárias condições de trabalho dos profissionais, seja
por meio das estratégias de desmobilização, estratificação e vulgariza-

114 Classes e movimentos sociais


ção da organização dos trabalhadores, que cada vez mais os afasta de
construir movimentos de unificação.

Portanto, enfatizamos que a relação do Serviço Social com os mo-


vimentos sociais deve ser íntima, permanente e estruturalmente ar-
ticulada, visto que, na esfera da construção das políticas públicas,
permanecem os espaços conquistados pela Constituição Cidadã. Essa
conexão se faz indispensável à manutenção da hegemonia dos princí-
pios que regem o projeto ético-político do Serviço Social.

No nosso entendimento, a efetiva intervenção da profissão diante da


realidade social depende dessa aliança. Primeiramente porque os mo-
vimentos sociais carregam as pautas atualizadas das condições de vida
que estão ocultas na aparência da realidade social e, depois, porque a
história social dos povos comprova que é somente por meio da força
coletiva que se torna possível construir novas organizações estruturais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Serviço Social é uma profissão crítica e eticamente comprometida
com a luta pelo enfrentamento da desigualdade social. Desde a sua ori-
gem, a profissão se pauta como categoria não conformada com as desi-
gualdades e, ainda que, no período do seu surgimento, não tivesse uma
postura crítica, já nasce para intervir no social.
Trata-se de uma profissão que acumula experiências centenárias e
que tem, em toda a sua trajetória constitutiva, uma estreita relação com
os movimentos sociais latino-americanos. Nesse sentido, a profissão tem
uma natureza interventiva inegável e um compromisso peculiar com a
mudança social, que são mais antigos do que os próprios instrumentos
que criou para tal.
Nesse ínterim, os movimentos sociais são, para o Serviço Social, ori-
gem, meio e fim. Não há razão de ser para a profissão se não for para
atuar no fortalecimento da organização social e política dos sujeitos, a fim
de que, cientes de seu lugar de classe, unam-se aos seus iguais e, juntos,
construam um novo projeto de sociedade, no qual, no mínimo, sejam re-
duzidas as extremas desigualdades.
Desse modo, os movimentos sociais devem encontrar no Serviço So-
cial apoio, acolhimento, fomento, suporte, orientação, capacitação e sus-
tentação para a construção dos caminhos que lhes são necessários, com
vistas à efetivação de processos emancipatórios.

O Serviço Social e os movimentos sociais 115


ATIVIDADES
1. O debate sobre o projeto ético-político do Serviço Social remete ao entendimento da
natureza das intencionalidades dos profissionais da área com relação ao tipo de orga-
nização social que vislumbram poder desenvolver com suas atividades. Apresente ao
menos duas características do projeto ético-político do Serviço Social.

2. No Serviço Social, o debate da ética também é um debate político, visto que, na visão
da categoria profissional, ambas as dimensões estão conectadas no que diz respeito
à estrutura social. Explicite ao menos três dos princípios prescritos aos assistentes
sociais em seu Código de Ética Profissional, enquanto suporte para suas atuações.

3. Uma das dimensões mais importantes da atuação do Serviço Social é a educativa,


visto que constrói meios para que os sujeitos sociais possam se constituir enquanto
agentes de transformação da sua própria história. Assim, os assistentes sociais criam
estratégias, instrumentos e técnicas voltados a inserir pensares e mudanças, no que
diz respeito ao modo de viver e ser em sociedade. Processo este que se faz necessário
para o enfrentamento das mazelas sociais criadas pela questão social. Tendo em vista
o contexto, explique o conceito de questão social.

REFERÊNCIAS
ABRAMIDES, M. B. et al. Relatório do Grupo de Trabalho Serviço Social e Movimentos
Sociais. XV Encontro Nacional de Pesquisadores em Serviço Social – ENPESS: Formação
e Trabalho Profissional: Reafirmando as diretrizes curriculares da ABEPSS. Anais [...], São
Paulo, 4 a 9 de dezembro de 2016. Disponível em: http://www.abepss.org.br/arquivos/
anexos/relatorio-mov-sociais-coloquio-do-xv-enpess-2016-201810081142335331990.pdf.
Acesso em: 22 jun. 2020.
AVILLA, L. S. Projeto Ético-político brasileiro e o trabalho profissional. II Seminário Nacional
de Serviço Social, Trabalho e Políticas Sociais, Universidade Federal de Santa Catarina ,
Anais [...], Florianópolis, 23 a 25 de outubro de 2017. Disponível em: https://repositorio.
ufsc.br/bitstream/handle/123456789/180160/102_00233.pdf?s. Acesso em: 22 jun. 2020.
CFESS – Conselho Federal de Assistência Social. Código de Ética do/a Assistente Social – Lei
n. 8.662/93 de Regulamentação da Profissão. 10. ed. Brasília: CFESS, 2012. Disponível em:
http://www.cfess.org.br/arquivos/CEP_CFESS-SITE.pdf Acesso em: 22 jun. 2020.
DURIGUETTO, M. L. A questão dos intelectuais em Gramsci. Serviço Social & Sociedade, São
Paulo, n. 118, p. 265-293, abr./jun. 2014.
IAMAMOTO, M. V. O Serviço Social na contemporaneidade: dimensões históricas, teóricas e
ético-políticas. Fortaleza: CRESS-CE, Debate n. 6, 1997.
IAMAMOTO, M. V. Renovação e conservadorismo no serviço social. 8. ed. São Paulo: Cortez,
2007.
MATOS, M. C. Assessoria e consultoria: reflexões para o Serviço Social. In: MATOS, M. C.;
BRAVO, M. I. S. (orgs.). Assessoria, Consultoria & Serviço Social. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2010.
MORO, M. D.; MARQUES, M. G. A relação do Serviço social com os movimentos sociais na
contemporaneidade. Temporalis, Brasília (DF), ano 11, n. 21, p. 13-47, jan./jun. 2011.
MOTTA, A. E. Seguridade Social Brasileira: Desenvolvimento Histórico e Tendências
Recentes. In: Saúde e Serviço social: formação e trabalho profissional, 2006. Disponível em:
http://www.fnepas.org.br/pdf/servico_social_saude/texto1-2.pdf. Acesso em: 22 jun. 2020.
NETTO, J. P. A construção do projeto ético político contemporâneo. In: Capacitação em
Serviço Social e Política Social. Módulo 1. Brasília: CEAD/ABEPSS/CFESS, 1999.
POULANTZAS, N. As transformações atuais do Estado, crise política e a crise do Estado. In:
O Estado em crise. Rio de Janeiro: Graal, 1977.

116 Classes e movimentos sociais


GABARITO
1 A construção sócio-histórica dos movimentos
sociais
1. A instituição que exerce um dos principais papéis no que diz respeito
à manutenção do sistema capitalista é o Estado, visto que, desde o
seu surgimento, ele esteve atrelado à necessidade das elites de
resguardarem seus patrimônios, de modo que não estivessem em
constante alerta de guerra. Desse modo, o Estado, enquanto instituição
social, econômica e política, teria como premissa o julgamento das
liberdades individuais e coletivas por meio de uma nova organização
jurídica. O modelo de Estado Nacional é o que melhor funciona para
assegurar as propriedades e o poderio das classes dominantes, pois
elas encontram na estrutura do Estado um lugar garantido para a
execução de suas estratégias.

2. O conceito de cidadania se originou na Grécia Antiga, na cidade


de Atenas, há aproximadamente oito séculos a.C. Sua origem está
relacionada à “ideia de Pólis, uma espécie de cidade autônoma,
independente e soberana que era governada, em última instância,
por uma Assembleia de Cidadãos (politai)” (GONZALEZ, 2010,
p. 10). Logo, a ideia de ser cidadão está associada a ser um homem
livre, com o direito à participação nos debates e nas decisões que
permeiam a cidade.

3. Movimento social diz respeito a coletivos de muitos ou de poucos


sujeitos, que se aproximam e permanecem unidos por uma identidade
social, questionam a estrutura social vigente, constroem projetos de
sociedade segundo o que acreditam ser mais justo. Organizam-se
coletivamente e, por meio de ações sociais, expressam na sociedade
modos de ver o mundo e reivindicam politicamente respostas às
demandas que lhes são pertencentes (majoritariamente, lutam por
condições adequadas de vida). Trata-se também de grupos que
geram inovações e uma identidade coletiva. Segundo Gohn (2000,
p. 13), “os movimentos sociais são, portanto, mais que ações coletivas
construídas por sujeitos ativistas. Suas ações estruturam-se a partir
de repertórios criados sobre temas e problemas em situações de
conflitos, litígios e disputas”.

Gabarito 117
2 Movimentos sociais e perspectivas teóricas
1. Os teóricos marxistas chamam a atenção para a ausência do
debate da internacionalização do capital nas análises teóricas pós-
modernas, visto que, na visão dos autores da tradição marxista,
essa fase do capitalismo instaurou processos de insegurança que
resultaram na desmobilização e na desarticulação dos trabalhadores.
Principalmente porque alterou, de modo ofensivo, as bases de
funcionamento dos meios de produção, alocando os trabalhadores
em novas condições exploratórias.

2. Reconfiguração do Movimento Indígena, fortalecimento e


reorganização do Movimento Negro, fortalecimento do Movimento
Feminista, surgimento do Movimento LGBTTIQ+, surgimento
de Movimentos Sociais Urbanos, articulação internacional dos
Movimentos do Campo, surgimento dos Movimentos Globais, bem
como a ampliação da visibilidade de alguns grupos (deficientes,
idosos, crianças e adolescentes).

3. Materialismo histórico-dialético é a teoria de Karl Marx sobre o


funcionamento da vida social na ótica das sociedades capitalistas.
Trata-se de uma explicação que faz referência à dinâmica da vida, no
que diz respeito a um curso contraditório que tem como resultado
múltiplas relações de desigualdade social, e que emerge a partir de uma
lógica exploratória cuja premissa é a acumulação de riqueza e poder
para um determinado grupo da sociedade. Marx oferece elementos,
caminhos que proporcionam melhores análises do campo social
e das conjunturas relacionadas às desigualdades sociais, trazendo
como principais categorias explicativas: a dialética, a historicidade dos
fenômenos sociais e a sua materialidade no campo da vida.

3 A construção do sujeito político na sociedade


de classes
1. A principal contradição é o fato de que, apesar de todos os grupos
da sociedade contribuírem para a produção da riqueza do país,
apenas um grupo minoritário se apropria dela (capitalistas). Aos
demais, designa-se a sujeição social a diferentes níveis de insegurança,
provocados pelas condições em que vivem os sujeitos. A principal
contradição se localiza no fato de que a desigualdade social resulta
dos processos exploratórios instituídos por um humano sobre outro

118 Classes e movimentos sociais


ser humano, a fim de garantir a poucos a apropriação dos lucros do
que é produzido pela maioria da sociedade.

2. O proletariado e a burguesia constituem as classes fundamentais


porque, no sistema capitalista, as principais disputas ocorrem
entre eles. Os proletários são os grupos que vivem em condição de
pauperismo, com o sentimento de insegurança e o afastamento das
condições de aprimoramento enquanto seres social. Já a burguesia é
constituída pelos grupos conservadores, uma minoria muito distinta
que, por deter poderes econômicos e políticos, tem sido a precursora
da injustiça social. A classe média constitui a classe transitória,
constituída de sujeitos que receiam retornar à condição de proletários
que ocuparam ou de que emergiram e, portanto, desenvolvem um
tipo de rejeição, a qual os cega a ponto de passarem a se perceber
como elites, ainda que, na realidade, não controlem nada.

3. Muitos são os fatores que têm resultado na descrença da população


brasileira com relação ao modo de se fazer política. As práticas
partidárias de agenciamento dos atores políticos, as corrupções
empregadas por suas lideranças e as incansáveis negociações para a
manutenção de poder, a qualquer custo, têm exaurido a população,
que não ocupa lugar de militância e ação política direta, decepcionando
também a nova geração dos sujeitos políticos da internet. Conjunto
de descréditos que tem conduzido as últimas gerações a exercitarem
novos modos de se pensar e fazer política.

4 Os movimentos sociais contemporâneos


1. As medidas macroeconômicas implementadas pela máquina estatal,
em suma, são voltadas à expansão do mercado internacional, o que
ocorre por meio da exploração de recursos naturais e humanos de
países tidos como periféricos, como o Brasil. Para tal, as elites políticas
e econômicas mundiais fazem uso da máquina estatal e, por meio
dela, instituem ações com vistas à redução de direitos trabalhistas e ao
desmonte do sistema de seguridade social com cortes de investimentos
sociais públicos, a fim de redirecionar os investimentos para o setor
econômico. Por meio de emendas, flexibilizam e desregulamentam
as leis de proteção ambiental para instituir processos exploratórios
sem punição, naturalizando a pobreza, reduzindo o leque de políticas
públicas a políticas de caráter emergencial e desqualificando a
efetividade do serviço público, em prol de promover a privatização e

Gabarito 119
terceirização das responsabilidades estatais. Costuram essas medidas
por meio de relações pautadas no clientelismo e no mandonismo.

2. A estigmatização e a criminalização dos movimentos sociais têm


sido as principais estratégias de contenção da força da organização
popular, visto que são práticas instituídas por meio de um conjunto
de elementos sociais, morais, econômicos, políticos e culturais que
criam ideias e valores equivocados sobre os grupos organizados para
o enfrentamento da hegemonia vigente.

3. Os movimentos sociais enfrentam desafios diversos, como a ausência


de oportunidades de acesso a processos educacionais que os
instrumentem adequadamente para potencializar sua organização
e/ou a falta de recursos essenciais (renda, alimentação, moradia,
deslocamento e produção de materiais, meios para garantir a defesa
dos integrantes criminalizados) e de valorização social pelo importante
papel que desempenham na sociedade. Contudo, por meio de
aprendizados coletivos, constroem novos saberes e instrumentos
que garantem sua permanência no campo de luta, por exemplo, o
aperfeiçoamento técnico e acadêmico, a instrumentalização ante os
mecanismos e as burocracias estatais, bem como o uso da conexão
em rede, tanto no campo físico quanto no virtual.

5 O Serviço Social e os movimentos sociais


1. O projeto ético-político do Serviço Social é construído sobre o
debate de uma ética em consonância com a política, o que significa
não ser neutro, ou seja, está voltado a efetivar os interesses de um
determinado grupo da sociedade, no caso, da classe trabalhadora.
Outra característica muito relevante é o fato de que os trabalhadores
ocupam a centralidade do projeto, no sentido de que as ações da
profissão têm como orientação proporcionar aos trabalhadores
possibilidades efetivas de construção de liberdade e de emancipação.

2. Conforme prescrito no Código de Ética do Serviço Social de 1993, os


profissionais da área devem atuar segundo onze princípios fundamentais:
I. Reconhecimento da liberdade como valor ético central e das
demandas políticas a ela inerentes – autonomia, emancipação e
plena expansão dos indivíduos sociais;
II. Defesa intransigente dos direitos humanos e recusa do arbítrio
e do autoritarismo;
III. Ampliação e consolidação da cidadania, considerada tarefa pri-
mordial de toda sociedade, com vistas à garantia dos direitos
civis sociais e políticos das classes trabalhadoras;

120 Classes e movimentos sociais


IV. Defesa do aprofundamento da democracia, enquanto socializa-
ção da participação política e da riqueza socialmente produzida;
V. Posicionamento em favor da equidade e justiça social, que asse-
gure universalidade de acesso aos bens e serviços relativos aos
programas e políticas sociais, bem como sua gestão democrática.
VI. Empenho na eliminação de todas as formas de preconceito, in-
centivando o respeito à diversidade, à participação de grupos so-
cialmente discriminados e à discussão das diferenças;
VII. Garantia do pluralismo, através do respeito às correntes profis-
sionais democráticas existentes e suas expressões teóricas, e
compromisso com o constante aprimoramento intelectual;
VIII. Opção por um projeto profissional vinculado ao processo de
construção de uma nova ordem societária, sem dominação, ex-
ploração de classe, etnia e gênero;
IX. Articulação com os movimentos de outras categorias profissio-
nais que partilhem dos princípios deste Código e com a luta geral
dos/as trabalhadores/as;
X. Compromisso com a qualidade dos serviços prestados à popula-
ção e com o aprimoramento intelectual, na perspectiva da com-
petência profissional;
XI. Exercício do Serviço Social sem ser discriminado/a, nem discri-
minar, por questões de inserção de classe social, gênero, etnia,
religião, nacionalidade, orientação sexual, identidade de gênero,
idade e condição física. (CFESS, 2012, p. 23-24)

3. A questão social é a categoria explicativa, ou seja, a denominação


que simboliza a relação contraditória existente entre o capital e os
trabalhadores. Trata-se de uma relação de conflitos e tensões que
se estabelece e se complexifica, visto que, na sociedade capitalista,
todo bem e serviço existente é produzido, de modo conjunto, pelas
duas diferentes classes, contudo, apenas uma delas toma para si os
frutos do trabalho realizado. Essa relação gera desigualdades sociais
extremas, que resultam em problemáticas sociais de variadas formas,
como a extrema pobreza, o desemprego, a violência etc.

Gabarito 121
CLASSES E MOVIMENTOS SOCIAIS
Neste livro são encontradas as principais categorias explicativas e al-
guns dos principais autores (clássicos e contemporâneos) que contribuem
para o entendimento do debate das lutas de classe e sua relação com a
constituição dos movimentos sociais no Brasil e na América Latina.
Esta obra favorece o acesso a fatos e fenômenos históricos, econômi-
cos, culturais, territoriais e sociais que demarcaram a história das lutas de
classe, bem como aos novos elementos que permeiam o debate atual des-
sa temática. Também favorece compreender de modo mais aprofundado
a relação do Serviço Social com os movimentos sociais, principalmente no
que diz respeito ao exercício da cidadania, da democracia e da efetivação
do usufruto dos direitos constitucionais.

MIRIAN CRISTINA LOPES

Fundação Biblioteca Nacional Código Logístico


ISBN 978-85-387-6604-9

9 788538 766049 59263

Você também pode gostar