Você está na página 1de 5

A técnica de “debate” dos trapaceiros simplificou-se

muito nos últimos tempos. Já não apelam aos


requintes dos antigos sofistas, nem aos ardis
daquela falsa retórica que Aristóteles chamava de
erística. Por economia de tempo, ou por preguiça e
incapacidade de estudar essas coisas, transferem a
disputa do terreno lógico para o da manipulação
psicológica, buscando, não persuadir ou mesmo
confundir, mas simplesmente atemorizar e
subjugar.
O método com que logram obter esse resultado é
simples. Com ares da maior inocência, expelem
afirmações chocantes ou insultuosas em linguagem
enganosamente sofisticada, e em seguida impõem
ao adversário regras de polidez que excluem toda
possibilidade de queixa ou de revide à altura, de
modo que não resta ao infeliz senão submeter-se ao
embuste, tentando mover-se timidamente num
terreno que de antemão foi demarcado para
humilhá-lo.
Os polemistas que mais têm se destacado no
emprego dessa técnica são os Quatro Jumentos do
Apocalipse – Richard Dawkins, Christopher
Hitchens, Sam Harris e Daniel Dennett –, cujo
objetivo, exemplarmente modesto, é varrer a
religião da face da Terra, impondo em lugar dela o
culto da “razão” e da “ciência”.
Eles não odeiam todas as religiões por igual.
Sua bête noire é o cristianismo, em especial o
católico, no qual vêem, declaradamente, o maior
dos inimigos da humanidade. Por motivos que já
veremos, preferem no entanto tentar destruí-lo por
meio de um ataque generalizado à “religião”, na
esperança, bastante razoável, de que a supressão
do gênero traga consigo a aniquilação da espécie.
Acontece que “religião”, tal como eles empregam
essa palavra, não é uma entidade historicamente
identificável; não é sequer um conceito. É uma
palavra-fetiche, um espantalho verbal dentro de
cuja gama de significados se incluem,
indistintamente, o cristianismo, a gnose, o culto
estatal dos césares, a feitiçaria, o chamanismo, a
astrologia, a alquimia e o esoterismo em geral,
todas as religiões indígenas possíveis e imagináveis,
o mormonismo, a ufologia, o espiritismo e mais não
sei quantas coisas, conferindo a tudo isso uma
unidade fictícia baseada no mero uso de um termo
comum.
Em seguida atribuem à entidade amorfa assim
designada a unidade de um sujeito consciente,
capaz de decisões e ações, de responsabilidade
moral portanto, e procedem então ao julgamento da
estranha criatura. A condenação, em tais condições,
é inevitável. Com tantas encarnações históricas
diversas, heterogêneas e mutuamente
incompatíveis, a “religião” não tem como escapar a
praticamente nenhuma acusação que se lhe faça.
Onipresente, indefinido, o monstrengo imaginário
leva a culpa de todos os males que afligem a pobre
espécie humana. E, como o geral abrange todos os
seus casos particulares, cada uma das “religiões”
existentes passa a carregar automaticamente não
só as suas culpas, mas as do conjunto e, por tabela,
a de cada uma das outras em particular.
A naturalidade, a desenvoltura e a freqüência com
que os quatro ídolos da militância ateística apelam a
essa transferência de culpas já bastariam para
catalogá-los entre os maiores vigaristas intelectuais
de todos os tempos. Só para dar um exemplo entre
inumeráveis outros: numa de suas últimas
investidas polêmicas, Christopher Hitchens,
recordando que os soldados alemães da II Guerra
traziam nos seus cinturões o dístico “Gott mit uns”
(Deus está conosco), concluía daí que o nazismo era
um regime cristão, católico, cabendo portanto à
Igreja de Roma as culpas da guerra, do Holocausto
etc. etc. O detalhe aí faltante é o seguinte. Hitler
não era ateu, mas, com toda a evidência, não era
católico. Era um gnóstico, firmemente empenhado
em remodelar o Evangelho e realizar o Juízo Final
terrestre sem esperar pelo celeste. Para isso era
preciso, dizia ele, “esmagar a Igreja Católica como
se pisa num sapo”. O gnosticismo é o mais velho e
feroz inimigo da Igreja, que o condena como raiz de
todas as heresias. Mas, para Christopher Hitchens e
a platéia que o aplaude, isso não faz a menor
diferença. Catolicismo é “religião”, gnosticismo é
“religião”: suas culpas são, portanto,
intercomunicáveis. Mas não será o gnosticismo,
antes, uma pseudo-religião? Também não importa:
pseudo-religião é religião.
A aplicação mais constante e eficaz desse truque
tem consistido em alegar os feitos dos terroristas
islâmicos como provas da periculosidade… de quem?
Do cristianismo!
E o ateísmo, não tem culpa de nada? O fato mais
gritante da história moderna é que a ideologia
ateística do comunismo matou mais gente, em
poucas décadas, do que todas as guerras de religião
haviam matado desde o começo do mundo (confira
na página do prof. R. J.
Rummel, www.hawaii.edu/powerkills). De um ponto
de vista racional não deveria, portanto, haver
margem, por mínima que fosse, para discutir quem
é pior, o ateísmo ou as religiões – mesmo todas elas
somadas. Como se saem dessa os Quatro
Jumentos? Chamam ao comunismo “religião”, e está
resolvido o problema. “As religiões”, e
especialmente a católica, passam a ser culpadas de
todos os delitos dos governos que mais mataram
crentes e religiosos em nome do ateísmo científico.
Ser ateu, dizem os Quatro, consiste apenas na
recusa de crer em Deus – em qualquer Deus – e
não na proposição de quaisquer objetivos ou valores
concretos. Assim concebido, o ateísmo é apenas
uma atitude íntima e não tem nenhuma encarnação
histórica identificável, não podendo, por definição,
ser acusado do que quer que seja.
O fato de que esse ateísmo, na prática, não se
esgote em pura recusa de crer, mas traga consigo a
apologia da “razão” e da “ciência”, não pode torná-
lo responsável pelos crimes das ideologias
científicas, marxismo e nazismo, porque, dizem os
Quatro, elas não se baseavam em ciências mas em
pseudociências. Nem pergunto com que
legitimidade a noção de “pseudo”, proibida aos
defensores da religião, é aí reintroduzida de repente
como critério distintivo válido. Também não
pergunto com que direito se apela à distinção de
ciência e pseudociência como se fosse coisa óbvia,
primária e automática, quando ela parece ter
escapado por completo a toda uma plêiade de
eminentes cientistas marxistas. O que me parece
mais bonito nessa jogada é o apelo devoto à noção
de “pureza”, negado aos defensores da religião:
segundo os Quatro, que Marx ou o próprio Darwin
defendessem abertamente a liquidação sistemática
de “povos inferiores” não torna o seu ateísmo
culpado de nada, porque um e outro, ao propor
essa idéia assassina, não o faziam por devoção
coerente ao ateísmo racional e científico, mas por
uma tentação religiosa passageira…
Reduzido a uma idéia pura, ou, mais propriamente,
à versão pessoal que essa idéia assume nas cabeças
dos Quatro Jumentos, o ateísmo é tão inocente, tão
inatacável quanto uma figura geométrica no céu das
formas platônicas. É esse o debate que os Quatro
propõem, tal como os comunistas propõem o
confronto entre a inocência da sua sociedade ideal e
os males e pecados da sociedade existente, ou
como Seyyed Hossein Nasr, em Ideals and Realities
of Islam, compara as belezas do seu Islam ideal à
feiúra das sociedades ocidentais historicamente
conhecidas. A exigência mais fundamental da
confrontação honesta – comparar ideais com ideais,
realidades com realidades – é assim escamoteada a
priori, só restando ao pobre adversário dos Quatro a
tarefa inglória de defender, em vão, o real contra o
ideal.
Com a ajuda de seus editores e marqueteiros
bilionários, tal tem sido a “proposta de debate”
oferecida pelos Quatro a quem se mostre ingênuo o
bastante para cair no engodo. Quanto mais estrita é
a exigência de polidez acadêmica nesses confrontos,
mas inviável se torna a denúcia do embuste
essencial que gerou e modelou a proposta. Uma vez
desmascarado o embuste, porém, toda a aparente
respeitabilidade intelectual de Hitchens e seus
parceiros vem abaixo, junto com a mentira básica
de que jogam esse jogo sujo com intenções
elevadas e nobilíssimas. Não é saudável discutir
educadamente com trapaceiros, porque denunciar
sua trapaça está proibido, in limine, como uma
tremenda falta de educação.
5

Você também pode gostar