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A SOCIEDADE DE “OS
VINGADORES: A ERA ULTRON”: O
SIMULACRO APRESENTADO NO
CINEMA
Ingrid Barbosa
Trabalho de Conclusão de Curso - Publicidade e Propaganda - Centro Universitário Adventista de São
Paulo
Mediat ización por los jóvenes en la expansión narrat iva del Universo Cinemát ico Marvel
Mat heus Tage
CENTRO UNIVERSITÁRIO ADVENTISTA DE SÃO PAULO
CAMPUS ENGENHEIRO COELHO
PUBLICIDADE E PROPAGANDA
ENGENHEIRO COELHO
2015
A todos aqueles que têm coragem de
questionar o mundo, que utopicamente
buscam entendê-lo, mas não esquecem de
viver.
AGRADECIMENTOS
Esse trabalho é uma análise do filme “Vingadores: a era de Ultron”, partindo do princípio de
Hagemeyer de que o filme é uma contra análise da sociedade e, portanto, uma observação
deste pode trazer compreensões acerca do contexto social em que foi produzido. A teoria dos
simulacros de Baudrillard foi amplamente abordada no estudo, sendo utilizada como forma de
compreender a sociedade, levando também em conta as relações com a mídia e a técnica
ainda de acordo com o mesmo autor. Ao longo dos capítulos foi feito um levantamento
bibliográfico para definir e discutir as ordens dos simulacros e seus respectivos imaginários.
Estes conceitos foram aplicados ao filme buscando identificar a presença das ordens e
imaginários no objeto escolhido através da escolha de personagens, também conforme a
proposta de Hagemeyer sobre o papel dos personagens como representações alegóricas de
momentos históricos e grupos sociais e de Thomson sobre a necessidade do ser humano de
criar heróis.Assim, foram relacionadas as ordens de simulacro com os personagens, notando
as características dos personagens em comparação com a descrição dos simulacros e de seus
imaginários. Finalmente, notou-se que o filme escolhido possui elementos bastante úteis e
pontuais para a compreensão da sociedade à luz da teoria dos Simulacros e que a escolha de
um produto do cinema, por ser um objeto da mídia, também pode encontrar importância para
a comunicação e no mercado.
Palavras chave
Vingadores: a era Ultron; Simulacros; Baudrillard; heróis; filme; sociedade
ABSTRACT
This work is an analysis of the film “Avangers: the Ultron era”. Beginning at the thought of
Hagemeyer about film as a counter-analysis of society, one can observe that such an object
can bring comprehensions about the social context in which it was produced. Also,
Baudrillard‟s theory of simulacra was widely covered in the study and chosen for it to
understand society. The relationship with media and technique were likewise commented
according to the same author. A bibliographical review was carried on over the chapters to
define and discuss the orders of simulacra and its respective imaginaries. These concepts were
applied to the film aiming to identify the orders and imaginaries in the chosen object through
determined characters, still following Hagemeyer in his proposal about the role of the
characters as allegoric representations of historical moments and social groups, and
Thomson‟s point of view about the human need of creating heroes. Thus, the orders of
simulacra were related to the characters, noting the characteristics of the last compared to the
description of the first. At last, it was understood that the chosen movie has very useful and
sharp elements for the comprehension of society in the light of the simulacra theory. Also, the
choice of a cinema product, a media object, also can find its importance for communication
and the market.
Keywords
Avangers: age of Ultron; Simulacra; Baudrillard; heroes; film; society
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 9
1.1. Síntese da bibliografia fundamental e uma breve revisão de seus conceitos ................... 9
1.2. Problemática da pesquisa ............................................................................................... 10
1.3. Hipóteses ........................................................................................................................ 10
1.4. Objetivos ........................................................................................................................ 11
1.4.1. Objetivo Geral ......................................................................................................... 11
1.4.2. Objetivos Específicos .............................................................................................. 12
1.5. Justificativa .................................................................................................................... 12
1.5.1. Relevância Pessoal .................................................................................................. 12
1.5.2. Relevância Social .................................................................................................... 12
1.5.3. Relação com a linha de pesquisa do curso .............................................................. 12
1.6. Métodos ......................................................................................................................... 13
1.7. Projeção dos capítulos ................................................................................................... 13
2 A SOCIEDADE E A MÍDIA .............................................................................................. 15
2.1. O cinema como forma de compreender a sociedade ..................................................... 16
2.2. Afinal, que sociedade? ................................................................................................... 19
2.3. Ser veloz é incerto .......................................................................................................... 22
2.4. A técnica ........................................................................................................................ 24
2.5. A sociedade re-produzida pela sua mídia ...................................................................... 26
2.6. Os imaginários e os simulacros ..................................................................................... 29
2.7. O imaginário para Morin ............................................................................................... 30
2.8. A relação entre as teorias e a mídia escolhida ............................................................... 32
3 A PROGRESSÃO DOS SIMULACROS E SEUS IMAGINÁRIOS E PERCEPÇÕES
IMEDIATAS EM VINGADORES: A ERA DE ULTRON ................................................... 34
3.1. A primeira ordem do simulacro ..................................................................................... 34
3.2. A segunda ordem do simulacro...................................................................................... 36
3.3. A terceira ordem do simulacro ....................................................................................... 37
3.4. A progressão dos imaginários ........................................................................................ 40
4 A REPRESENTAÇÃO SOCIAL ATRAVÉS DE PERSONAGENS: ANALISANDO
VINGADORES: A ERA DE ULTRON .................................................................................. 42
4.1. A descrença nos heróis e o paradoxo da existência destes ............................................ 43
4.2. O perfil dos heróis .......................................................................................................... 49
4.2.1. Os heróis ainda idealizados ..................................................................................... 50
4.2.2. O homem e suas máquinas ...................................................................................... 52
4.3. A exacerbação da técnica – inteligência artificial: Ultron vs. Visão ............................. 55
4.4. Bruce Banner e NataschaRomanoff: a cura pelo toque humano ................................... 61
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 64
6 REFERÊNCIAS .................................................................................................................. 66
1 INTRODUÇÃO
Em 2013, a Marvel Studios lançou o filme “Os Vingadores”, que ganhou enorme
simpatia do público, conquistou inúmeros novos fãs, mesmo por parte dos que jamais leram
as HQs, que deram origem ao filme, ou sequer sabiam da história. Segundo o site Omelete1,
foram US$ 538 milhões arrecadados que o classificaram atualmente como uma das maiores
bilheterias mundiais até então. Assim, entende-se que o público criou uma relação empática
com o filme por se identificar com a trama em alguns aspectos. A continuação da
saga,“Vingadores: a era Ultron”, foi lançada nos cinemas brasileiros em abril deste ano. Ao
assistir o filme, nota-se o retrato de uma sociedade disfuncional, que mesmo contando com os
heróis mais competentes, com toda a força e inteligência, não tem seus problemas resolvidos e
ela continua à beira de desabar.
1
Disponível em <http://omelete.uol.com.br/filmes/noticia/bilheteria-mundial-os-vingadores-supera-harry-
potter/ >, acesso em 17/04/2015.
produzir, ela reproduz a sociedade e uma das formas de se explicar isso é através da teoria dos
simulacros. Baudrillard os define como a reprodução de objetos e eventos, sendo que as
ordens dos simulacros demonstram a progressão dessa simulação entre a referência e sua
reprodução (KELLNER, 1989, p. 77). Marcondes Filho comenta esse conceito afirmando que
“os simulacros são um atentado contra a realidade”(MARCONDES FILHO, 2009), de modo
que “todas as dicotomias entre aparência e realidade, superfície e profundidade, vida e arte,
sujeito e objeto se desintegram num universo de „simulacros‟ funcionalizado, integrado e
autorreprodutivo, controlado por modelos e códigos de „simulações‟”2 (KELLNER, 1989, p.
77, tradução livre).
Baudrillard apresenta três ordens de simulacros e, ao definir a terceira ordem do
simulacro, traz a Disneylândia como um exemplo perfeito de um simulacro. As pessoas vão à
Disney para se divertir com sua magia e diversões fantásticas e, ao deixarem-na, têm a ideia
de que estão voltando para o mundo real. Assim o encantado parque de diversões mascara que
fora dele também já não há realidade – tudo foi tomado por signos e
simulações(BAUDRILLARD, 1991, p. 20-22). Podemos inferir que os filmes da Marvel
funcionam de maneira parecida – os efeitos, personagens e enredo fazem crer que é um
mundo irreal, pois é bastante diferente do nosso mundo e, logo, não teríamos os mesmos
problemas vistos no filme. O que passa despercebido, contudo, é que ele próprio é um retrato
da sociedade atual, que é disfuncional e está à beira de desfazer-se.
1.3. Hipóteses
Falando sobre o imaginário, Morin (1970, p. 107-109) propõe três formas de projeção:
o automorfismo, o antropomorfismo e o desdobramento. Ele aponta que estes dois últimos se
dão no momento em que a projeção passa a ser alienação, o que ele chama de momentos
mágicos. Além da projeção, o autor fala sobre o processo de identificação, quando um
indivíduo exposto a outro ou a um meio, ao invés de se projetar ali, absorve-o. Por fim, há um
2
“All dichotomies between appearance and reality, surface and depths, life and art, subject and object, collapse
into a functionalized, integrated and self-reproducing universe of ‘simulacra’ controlled by ‘simulation’ models
and codes.”
último processo, a transferência, a qual se trata da passagem desse complexo projeção-
identificação para o imaginário. Isso acontece porque “o antropo-cosmo-morfismo, que já não
consegue suster-se no real, bate asas para o imaginário”. O cinema é, para Morin (1970), uma
das formas em que se visualiza esses processos, sendo que, conforme a circularidade dos fatos
proposta anteriormente, ali nasce a alienação que alimentará o início daqueles processos e o
resultado destes é a própria realização do complexo projeção-identificação-transferência.Por
esta razão, a análise de um filme se torna propícia.
Baudrillard (1991, p. 151) fala dos imaginários correspondentes a cada ordem do
simulacro. À primeira ordem, ele coloca a utopia; à segunda, ele afirma ser a ficção científica;
e, à terceira, ele próprio questiona se haveria algum imaginário capaz de correspondê-la, mas
que certamente a ficção científica morreria em algum momento e algo surgiria. Ora, os filmes
da saga “Vingadores”são de ficção, o que significa que se enquadram na correspondência à
segunda ordem dos simulacros. No entanto, o que se observa no primeiro filme é a
apresentação de uma utopia, pois se acredita ainda que a liga de heróis é capaz de trazer de
volta a paz e a ordem3ao mundo, o que o posicionaria correspondendo à primeira ordem do
simulacro. Por outro lado, Baudrillard (1991, p. 152-153) aponta que a tendência na terceira
ordem do simulacro é a de tratar o imaginário de forma que ele constitui mais um “imaginário
relativamente ao real”, sendo ele próprio é a antecipação do real e que houve também uma
inversão, pois agora o real se tornou o álibi da ficção.
Em “Vingadores: a era Ultron” encontramos uma sociedade desesperançada,
distópica e desacreditada até mesmo de seus heróis. Este cenário parece se aproximar da atual
condição da sociedade, de forma que podemos encontrar traços correspondentes à terceira
ordem do simulacro. Logo, nota-se nesse novo filme uma mistura das ordens, sendo que nada
parece corresponder totalmente à disfuncionalidade trágica do filme. Assim, há a
possibilidade de perceber que os simulacros não são suficientes para explicar a sociedade.
1.4. Objetivos
1.4.1. Objetivo Geral
O trabalho visa a identificar e analisar que sociedade emerge de uma leitura do filme
“Vingadores: a era Ultron”, considerando a proposta de Baudrillard de compreender através
de simulacros a sociedade re-produzida pela mídia.
3
Aparentemente, o segundo filme quebrará esta utopia, apresentando uma sociedade disfuncional. Será
necessário assistir ao filme, que estreará dentro de algumas semanas, para poder ter mais assertividade.
1.4.2. Objetivos Específicos
Construir, mediante bibliografia selecionada,uma compreensão da sociedade tecnológica,
discutindo a mídia e a nova sociedade re-produzida pela mídia;
Construir uma análise do filme “Vingadores: a era Ultron”, identificando nele a
presença dos imaginários correspondentes à primeira e à segunda ordem do simulacro,
como é proposto por Baudrillard (1991, p. 152-158), discutindo utopia e ficção científica;
Discutir a presença também do imaginário correspondente à terceira ordem do simulacro
no filme proposto, conforme Baudrillard (1991, p. 152-158), abordando a mistura das
ordens dos simulacros através de seus imaginários e observando qual a leitura possível da
sociedade a partir dessa mistura.
1.5. Justificativa
1.5.1. Relevância Pessoal
Compreender a sociedade sempre foi uma questão inquietante e a proposta de que a
mídia é um espelho da sociedade sempre pareceu perfeitamente plausível. Assim, unindo o
gosto por filmes de heróis ao interesse em analisar a sociedade, surgiu a ideia de escolher um
filme de grande gosto pessoal para realizar este trabalho. Incluir a teoria dos simulacros de
Baudrillard como parâmetro para a pesquisa foi uma escolha resultada do desejo de
compreender melhor este autor, após alguns breves usos feitos de sua obra em pesquisas
anteriores, e por acreditar que no filme é possível fazer boas observações utilizando tal teoria
e suas implicações.
4
Vale esclarecer aqui que esta divisão capitular pode ser modificada de acordo com a necessidade de mais ou
menos espaço mediante os resultados do estudo.
Capítulo 1: A sociedade e a mídia
Resumo do capítulo: Este capítulo construiu o panorama da sociedade que produz uma mídia
e da sociedade re-produzida pela mídia, a partir dos conceitos de tecnocracia de Ciro
Marcondes Filho, de velocidade de Eugênio Trivinho e a visão de Jean Baudrillard a respeito
da técnica. Também foi discutida a possibilidade e relevância do cinema como documento
histórico para compreender a sociedade que o produziu, baseado em Rafael Hagemeyer e
Edgar Morin e, para tal, foi escolhida a teoria dos simulacros de Baudrillard como base para
analisar o filme Vingadores: a era de Ultron.
O desafio de fazer um estudo tendo como objeto a sociedade, qualquer que seja o
recorte ou perspectiva escolhida, está na necessidade de se pensar nela como um objeto
complexo. Edgar Morin (2003, p. 23-24) apresenta esta ideia explicando que até a metade do
século 20 as ciências utilizavam formas reducionistas de conhecimento e acabavam ocultando
novas percepções por aplicar a “lógica mecânica da máquina artificial aos problemas vivos,
humanos e sociais”.
Baudrillard (1999, p. 15-16) não parece muito otimista ao trazer o paradoxo que existe
na realidade encontrada quando se trata de pensar o mundo ao afirmar que,
Apesar dessa aparente busca sem fim, o teórico francês não foi o único a persistir com
inúmeras obras tentando explicar o mundo, o indivíduo e a sociedade. Morin discute a
necessidade de uma reforma de pensamento para se pensar a sociedade. Ele diz que o
problema de todo cidadão é “como adquirir a possibilidade de articular e organizar as
informações sobre o mundo” (MORIN, 2003, p. 24). Levando em conta sua observação sobre
o problema parcelar excessivamente os conhecimentos, o que em sua opinião quebra um
mundo complexo e produz fragmentos (MORIN, 2003, p. 25), são trazidos alguns princípios
para construir o pensamento complexo. Além de facilitar na compreensão do mundo, Morin
também afirma que ao buscarmos dinstinguir conhecimentos e ligá-los, ao invés de separá-
los, tratamos também da incerteza surgida da queda do determinismo. “Assim, o objetivo do
pensamento complexo é ao mesmo tempo unir (contextualizar e globalizar) e aceitar o desafio
da incerteza” (MORIN, 2003, p. 26).
São propostos sete princípios para pensar a complexidade. Para evitar mais delongas,
falaremos apenas do quarto princípio: o anel recursivo. Trata-se de uma compreensão de
circularidade que vai além da simples relação de causa e efeito, e que também supera a
autorregulação proposta por Norbert Wiener5. O anel recursivo compreende que “os
indivíduos humanos produzem a sociedade nas – e através de – suas interações, mas a
sociedade, enquanto todo emergente, produz a humanidade desses indivíduos,aportando-lhes
a linguagem e a cultura” (MORIN, 2003, p. 27). Essa forma de pensar será escolhida para este
trabalho, considerando que se assume que “os produtos e os efeitos são produtores e
causadores do que os produz” (MORIN, 2003, p. 27). De forma mais direta, Morin (2003, p.
17) já afirmou que “produzimos a sociedade que nos produz” e Baudrillard (1999, p. 14)
afirma que “a incerteza do pensamento vem de que não estou sozinho pensando o mundo, mas
que o mundo me pensa de volta”. É essa relação que será explorada a seguir, levando em
conta o lugar da mídia e seus produtos nesse contexto, sendo que a mídia escolhida foi o
cinema e o produto o filme “Vingadores: a era de Ultron”, lançado no Brasil em 23 de abril
de 2015 pela Marvel Studios.
6
A principal obra de Walter Benjamin, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, trata
justamente da reprodutibilidade técnica da arte, propondo que a técnica possibilitava a produção de arte por
mais indivíduos, tirando a exclusividade dos artistas, bem como tornava mais fácil a viralização dessas artes.
Esse fenômeno resultava da lógica industrial e dos inventos desse período da história.
desses tais poderá revelar características e impressões desse público consumidor das novas
mídias e seus produtos.
Quanto à análise do cinema como documento histórico, Hagemeyer (2012, p. 42-43)
aponta que durante o século 20 surgiram duas linhas principais utilizadas pelos historiadores:
a) a formalista, que comparava documentos, imagens e obras, levando em conta elementos
como luminosidade, tom das cores, enquadramentos, balanço de elementos dispostos na
imagem, espessura geral das linhas etc.; e b) a contextualista, preocupada em entender a obra
dentro do contexto em que foi lançada, observando o trabalho do artista e suas relações com
as classes, funções sociais da arte e as ideologias dominantes. Ao enquadrar o presente estudo
em uma das duas linhas, optamos pela última. Como observa o autor, “também há uma
história social do cinema, mais preocupada com a produção dos filmes, seu contexto de
exibição, a recepção do público e da crítica, seus aspectos ideológicos”, sendo que nesse
trabalho há um grande foco principalmente no “contexto de exibição” e nos “aspectos
ideológicos” do filme.
Rafael Hagemeyer traz o teórico Marc Ferro, com seu artigo “O filme como contra-
análise da sociedade”, o qual enfatiza a importância e a possibilidade de se compreender a
História através do cinema. “Nela, um setor da sociedade representa a história, cujos
personagens e conflitos dramáticos podem ser lidos como uma alegoria de seu próprio tempo.
[...] Um filme pode ser lido, desta forma, como expressão ideológica da sociedade, segundo as
escolhas narrativas realizadas por seus autores, de acordo com o desejo de seus produtores”
(HAGEMEYER, 2012, p. 48). Ainda que não seja negada a interferência do ponto de vista do
criador da narrativa, do roteirista e dos produtores, a própria escolha na elaboração do filme e
a identificação (ou a falta dela) do público com o filme já é uma resposta que nos mostra algo
sobre a sociedade ou um segmento dela. “Podemos compreender que desde então o filme[...]
passou a ser visto como parte importante, senão preponderante, na reprodução do imaginário
social. O cinema pode ser considerado fonte privilegiada para compreender as emoções, os
medos e as esperanças de uma época” (HAGEMEYER, 2012, p. 48).
Feitas essas considerações, o autor propõe três tipos de códigos mediante os quais
pode ser feita a análise: 1) os de enquadramento, montagem, iluminação etc.; 2) os códigos
narrativos, de sequência, focalização, marcas de enunciação, função dos protagonistas,
temporalidade; e 3) representações sociais e enunciados ideológicos (HAGEMEYER, 2012, p.
49). Tendo claramente descritos os aspectos e sua importância e utilidade como análise social,
este trabalho fará uso principalmente do terceiro código e mais tenuamente do segundo
(considerando a função dos protagonistas), como descritas acima.
2.2. Afinal, que sociedade?
Para um breve sequenciamento histórico, recorramos a Ciro Marcondes Filho (2004)
em Cibercultura. O primeiro período histórico mencionado por ele é o teocêntrico, em que
Deus ocupava o centro da cultura por meio da religião. Porém, nas últimas décadas do século
15, com a vinda da modernidade, o ser humano rejeita a onipotência do ser invisível,
“destrona Deus e coloca-se em seu lugar. Se Deus havia sido criador do Universo, agora é o
homem que deverá criar universos” (MARCONDES FILHO, 2004, p. 24). Esse é o
antropocentrismo, trazendo consigo novas convicções de progresso, evolução, razão e
verdades. Ao invés de esperar o medieval destino divino, passou-se a trabalhar e lutar para
atingir um ponto final e, ao invés de buscar uma utopia espiritual, procura-se uma “utopia
material ainda em vida” (MARCONDES FILHO, 2004, p. 25).
Nesse período também se viu um crescente nas descobertas e invenções,
principalmente com a Revolução Industrial. Era preciso substituir o potente divino centro da
sociedade, e a humanidade o fez bem com suas máquinas. “A civilização antropocêntrica
associava a ciência à técnica e ambas voltavam-se para o mundo social” (MARCONDES
FILHO, 2004, p. 26). No entanto, suas criações deram outro rumo para a história e o auge do
ser humano e, ainda de acordo com Marcondes Filho (2004, p. 27), é a partir da metade do
século 20 que identificamos o despontar de um novo tipo de sociedade: a tecnocêntrica.
Ao entregar a realização de suas tarefas às máquinas por ele criadas, o ser humano cria
uma relação de submissão e dependências delas e passa até a se comportar como uma
máquina. A diferença principal entre este modelo e seu antecedente é que antes ainda existia a
ideia de senhorio do criador dos objetos técnicos e estes, em especial dos eletrônicos,
enquanto que a constante devoção a elas levou a uma “rearticulação da sociedade”. Seguindo
para o momento em que os eletrônicos se estabeleceram como parte da vida do ser humano,
toda a construção do posicionamento na sociedade e do imaginário do ser humano se deslocou
para o virtual (MARCONDES FILHO, 2004, p. 29-33).
Com a grande invasão das máquinas eletrônicas e a presença da internet constante no
cotidiano do ser humano, surge um novo termo para o período atual, a cibercultura, definida
porAndré Lemos(2003, p. 11) como “a cultura contemporânea marcada pelas tecnologias
digitais”. Ele também diz que a cibercultura é “a forma sociocultural que emerge da relação
simbiótica entre a sociedade, a cultura e as novas tecnologias de base micro-eletrônica que
surgiram com a convergência das telecomunicações com a informática na década de 70”
(LEMOS, 2003, p. 11).
Lemos também propõe dois princípios relevantes desta era. O primeiro deles é o da
“liberação da palavra”, ou seja, uma época em que todos têm voz; segundo, a “conexão e
conversação mundial” (chamada por Pierre Levy de “inteligência coletiva), o que significa
que, uma vez dada a todos a liberdade de falar, há muito mais compartilhamento de
informação. Para ele, estes princípios demonstram uma reconfiguração da comunicação e de
sua relação global (LEMOS, 2010, p. 25-26). Esses dois pilares são fortes argumentos
utilizados pelo autor para encarar este período de maneira otimista. Eugênio Trivinho (2007),
por sua vez, tem uma perspectiva negativa desse período, consoante à de Marcondes Filho,
apresentando como principal argumento o governo da velocidade na era cibercultural, a ser
discutido no próximo tópico desse capítulo.
Se considerarmos o período teocêntrico como a era obscura e o antropocêntrico como
a era das luzes, pode-se dizer que o tecnocêntrico é a era da “refração da luz, que vai marcar a
grande diversidade e a grande diluição dos diversos componentes do social” (2004, p. 31).
Assim, perdoando o possível equívoco, causado pelo nome dado ao período de pensar as
máquinas como centro, o que é proposta nessa definição é uma sociedade sem centro. “A
sociedade como que se desintegra, pulveriza-se em uma série de fragmentos”, diferente de
quando no antropocentrismo encontrávamos a sociedade como um “organismo”, com partes
encaixadas em suas funções e do teocentrismo, quando a ideia de Deus era o ponto de união
entre os seres humanos (MARCONDES FILHO, 2004, p. 31).
“Até aqui, todos os sistemas fracassaram. Os sistemas mágicos, metafísicos e
religiosos, que em outros tempos provaram seus méritos, caíram em desuso”, afirma
Baudrillard (1999, p. 20). Ele segue falando que a realidade virtual se apresentou como
grande esperança, se mostrando como o “equivalente definitivo”, pois ao invés do mundo se
trocar por algo que viesse de si mesmo, ele estaria se substituindo por algo que vem de fora, e
seria “em suma, a instalação de um perfeito artefato virtual e tecnológico tal que permite que
o mundo possa se trocar por seu duplo artificial”. Ou seja, que na realidade virtual o mundo
(leia-se também a sociedade) poderia se projetar e encontraria seu exato reflexo virtual, porém
otimizado, uma vez que estava migrando para um “duplo infinitamente mais „verdadeiro‟ que
esse [o real], infinitamente mais real que o mundo real, pondo fim, então, à questão da
realidade e à toda veleidade de lhe dar um sentido” (BAUDRILLARD, 1999, p. 20).
Essa visão de uma sociedade fragmentada também está presente nos escritos de
Baudrillard em A transparência do mal (1996). Aliás, em seu primeiro capítulo, intitulado
“Após a orgia” é possível traçar alguns paralelos com a visão de Marcondes Filho da
sociedade tecnocêntrica. Baudrillard descreve que,
7
A termo real é utilizado referindo-se ao cotidiano, ao que acontece fora do virtual; ou seja, o real é empírico.
8
É importante ressaltar que a forma como Baudrillard coloca o hiper-real não indica claramente de imediato
que ele é ou está no virtual, mas sim que o espaço virtual é favorável à repetição e simulação. Marcondes Filho,
porém, objetiva a noção de hiper-real ao afirmar que “é possível, através das máquinas e dos sistemas
eletrônicos, vivenciar uma série de experiências através do que se chama de realidade virtual” (MARCONDES
FILHO, 2004, p. 31), indicando que as tecnologias eletrônicas (mídia eletrônica) são o grande palco do hiper-
real e criando também a ideia de real virtual, a realidade que acontece no virtual.
–orgia – continue a existir, “o que foi liberado o foi para passar à pura circulação, para entrar
em orbita” (BAUDRILLARD, 1996, p. 10), assim, cada vez que a volta se completa, o evento
parecerá inédito. Sendo a finalidade dessa circulação de liberações é “fomentar e alimentar as
redes”. Existe a necessidade constante de existir um algo que mostra o progresso da sociedade
e, por isso, “as coisas liberadas são fadadas à comutação incessante e, portanto, à
indeterminação crescente e ao princípio de incerteza” (BAUDRILLARD, 1996, p. 10).
Baudrillard parece sugerir que o virtual é o grande responsável por intensificar a
repetição e a fractalização da realidade. “Já não há modo fatal de desaparecimento, mas sim
um modo fractal de dispersão” (BAUDRILLARD, 1996, p. 10) e a passagem do real para o
hiper-real não está simplesmente em representar o real, mas em alimentar o hiper-real,
fazendo girar as simulações. Dessa forma, o virtual parece um espaço perfeito para essa
circulação de repetições/simulações, uma vez que a conectividade e mobilidade ganham cada
vez mais espaço no cotidiano do ser humano. O contexto observado aqui é similar à definição
da sociedade sem centro, como definido por Marcondes Filho – uma sociedade fractalizada,
onde não há um cerne para a realidade. E quando a realidade simulada passa a circular de
maneira frenética e dispersa, há um grande risco de que sua essência seja perdida, pois a
simulação já se desprendeu de sua referência (BAUDRILLARD, 1996, p. 11). Assim,
entendemos que os dois teóricos estão falando do mesmo período.
9
Eugênio Trivinho utiliza o termo “vetor” e “resultante” para falar da velocidade e seu efeito imediato,
respectivamente, fazendo alusão às relações das forças na física, onde uma combinação de vetores sempre
gera uma resultante.
que caracteriza a própria presentidade: tempo irreversível de imediatez, inexorável em sua
natureza e em sua tendência à complexização progressiva” (TRIVINHO, 2007, p. 91).
Desta definição, tiramos três características principais da velocidade: 1) ela é
irreversível, não irá regredir a estágios anteriores; 2) ela não se retém e é irrefutável; e 3) ela
está continuamente evoluindo. O que Trivinho parece mostrar aqui é que não há chances
contra a velocidade, o que soa um tanto determinista, dando até margem para encontrar
alguma semelhança com o velho discurso da agulha hipodérmica10.Nesse contexto, Trivinho
apresenta o conceito de dromocracia, que significa “governo da velocidade. Embora o teórico
não marque uma data de início para a inserção da velocidade na sociedade, ele aponta que
num passado mais distante se encontrava a velocidade apenas nas guerras. Com a Revolução
Industrial, a velocidade passou a afetar a esfera do trabalho, o que era notado pela resultante
da produtividade. No presente momento, o autor aponta que a velocidade alcançou o lazer e
sua resultante é a intensidade (TRIVINHO, 2007, p. 92) e, assim, tendo atingido a esfera
profissional e pessoal do ser humano, instaurou o seu governo. Em outras palavras, ao atingir
o lazer, o governo da velocidade invadiu todos os âmbitos da vida do ser humano, de forma
que o que importa é se divertir no menor tempo possível da maneira mais intensa possível.
Trivinho também trabalha as extensões do termo dromocracia abordando o indivíduo
dessa sociedade dromocratizada. A nova crise existencial pode ser traduzida com uma
paráfrase de Othelo – ser veloz ou não ser? É preciso que haja capacitação para seguir com o
governo da velocidade, do contrário, não será possível viver. Isso é chamado por Trivinho de
dromoaptidão e se traduz na busca de não apenas manter a velocidade, mas constantemente
otimizá-la. Esta busca “pode ser encarada de vários ângulos: individual, grupal, institucional,
empresarial, não-governamental, nacional, global, sem prejuízo de níveis intermediários”
(TRIVINHO, 2007, p. 97). A constante ânsia pela velocidade é a causadora das
dromopatologias, ela corrói o ser, mantém apenas a superficialidade do indivíduo e conduz a
inúmeros distúrbios e crises (TRIVINHO, 2007, p 99).
Aproveitemos essa menção das crises da velocidade para tratar de um de seus
principais problemas resultantes: a ansiedade; e não é somente a ansiedade por ser mais veloz,
mas também pela incerteza. Não se sabe o que surgirá no dia seguinte e seres humanos,
empresas e nações estão em uma constante guerra por ser mais veloz. Além disso, o fato da
velocidade ser progressiva não significa que suas fases anteriores são excluídas, mas que são
10
A teoria da agulha hipodérmica, também chamada de teoria da bala mágica, surgiu na escola norte-
americana durante a década de 1930. Ela apresenta a comunicação como algo fatal, que atinge a todos de
maneira uniforme, sem deixar espaço para que haja uma reação do consumidor, classificando-o como uma
gente passivo na sociedade e colocando a mídia como maniqueísta.
mantidas e contagiosas, ou seja, vivemos a velocidade na guerra, na indústria, no trabalho, na
ciência, no lazer.
Bauman (2007) parece trazer uma visão bastante semelhante à de Trivinho ao
apresentar seu conceito de liquidez e aplicá-lo na sociedade. Afirma ele que a sociedade
líquida é a “sociedade em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num
tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das
formas de agir” (BAUMAN, 2007, p. 7). É nesse cenário que se consolida o sentimento que
parece definir o período tecnocrático, ou a sociedade dromocrática, ou a sociedade líquida – a
incerteza, também presente na descrição de Baudrillard como característica principal da era
das simulações, cujo movimento é circular e fractalizado.
2.4. A técnica
Se tomarmos o conceito de tecnocentrismo para definir o período da sociedade atual,
embora a técnica não esteja no centro, é pelo domínio desta que a sociedade se fragmentou e
está sem centro, de acordo com Marcondes Filho (2004, p. 24-33). Portanto, se torna
necessário observar a técnica.Sobre tal, Trivinho escreve que “a violência da velocidade é o
halo que anima desde os objetos técnicos (equipamentos de produção, veículos de transportes,
eletrodomésticos, etc.) até a ordem da informação transnacional” (TRIVINHO, 2007, p. 95).
A questão da técnica como dominadora na história social está presente desde a Grécia
antiga. Francisco Rüdiger (2011) aponta que desde Platão e Aristóteles, em vez de a verdade
ser considerada a própria revelação do ser das coisas, passou a ser “reinterpretada como
função do pensar”. Assim, “a técnica passa a dar sinais de que pode se tornar lugar de
apreensão do ser e princípio de estruturação da experiência do pensamento, ou seja: veículo
da história, porque só com ela o ente seria passível de representação” (RÜDIGER, 2011, p.
434). Em outras palavras, ficou notável que a técnica moldaria a forma de pensar e a maneira
dos seres se representarem, uma vez que a representação deixaria de ser por sua essência e se
tornaria aparente pela apropriação da técnica.
Analisando o pensamento de Jean Baudrillard a respeito da técnica, nota-se que ele
passou por uma mudança relevante a respeito dessa. Inicialmente, como aborda Rüdiger
(2010, p. 3-4), o teórico francês considerou a tecnologia a “realidade mais essencial do mundo
moderno, apesar disso nos ser praticamente inconsciente no curso da vida cotidiana.” Em
outras palavras, todas as produções e descobertas do ser humano partiram e partem da técnica.
Por outro lado, ele considera que quando a “irracionalidade da vida social” vai de encontro à
“racionalidade da ação tecnológica”, faz surgir uma “realidade densa e contraditória, marcada
pela contínua interferência de um sistema de práticas culturais sobre um sistema de
desenvolvimento tecnológico.” É importante destacar que, nesse momento, Baudrillard afirma
que a centralidade tão essencial da técnica não impede que esta seja moldada ao ser
apropriada pela humanidade, sendo determinada pelas circunstâncias de apropriação, as
relações de classe e os interesses econômicos envolvidos em seu uso.
A Revolução Industrial, para Baudrillard, “permitiu que a tecnologia se tornasse uma
força de produção autônoma”, fazendo surgir um sistema técnico que consistia em “um meio
para reestruturar as relações sociais e desenvolvê-las racionalmente”. Assim, a técnica poderia
se colocar a serviço da sociedade se o “sistema social vertical” fosse derrubado (RÜDIGER,
2010, p. 4). Baudrillard acreditava na existência de um pensamento tecnológico, o qual
poderia nortear a construção de um sistema mais progressista e democrático se a técnica fosse
desvinculada da cultura social de exploração das classes. Para Rüdiger (2010, p. 5-6), há um
espaço em branco deixado pelo teórico francês – a explicação de que forma e porque as
práticas sociais obstruíam a técnica – e ressalta a necessidade da observação de um fenômeno,
o qual ele considera que certamente teria sido uma notação do próprio Baudrillard e que foi
responsável pela mudança de seu pensamento sobre a técnica: “nosso tempo é cada vez mais
prisioneiro de seu imaginário”, ou seja, a técnica se tornou mitologia, uma nova forma de se
pensar e reordenar o mundo, uma ideologia. Isso pode ser visto no que ele chama de “culto ao
automatismo”, o ato de o ser humano passar a cultuar as máquinas, buscando um estado
inerte, no qual as tecnologias lhe sirvam sempre a seu favor e o permitam ser apenas
espectador de seus feitos.
O rompimento de Baudrillard com sua antiga visão foi motivado pelo seu
envolvimento com os conflitos ideológicos, vendo a descrença nas instituições, revoluções e
nas correntes filosóficas. Em sua nova perspectiva “a técnica não somente perderá o caráter de
elemento contraditório, tensionador mesmo do sistema social, mas passará a ser vista como
um de seus vetores negativos” (RÜDIGER, 2010, p. 6). A partir da década de 1970, o
discurso sobre a técnica tomou um tom cada vez mais apocalíptico. A antiga perspectiva da
técnica como ideologia foi substituída por um “vetor histórico ontológico de formação de um
mundo artificial” (RÜDIGER, 2010, p. 7), conferindo à técnica um poder autônomo.
Para compreender mais objetivamente a diferença entre o pensamento de Baudrillard
nesses dois momentos, observemos abaixo a citação de Rüdiger (2010, p. 6) que sintetiza o
ponto de vista de seu primeiro período.
De início, recordemos, expressara o autor a ideia de que a técnica, embora
possuísse uma legalidade autônoma, convertera-se em ideologia, em função
da forma como acabou se inserindo nas relações sociais da era capitalista. A
técnica deveria ser sempre estudada, portanto, a partir de um exame do seu
papel e função no seu contexto histórico.
Vejamos agora uma citação de Baudrillard (1999, p. 57) em A troca impossível, que
deixa clara a visão dele da técnica após sua mudança.
Detrás de cada tela de televisão e de computador, em cada operação técnica
com que se defronta diariamente, o indivíduo é analisado função por função,
provado, experimentado, fragmentado, acossado, obrigado a responder,
convertido em um sujeito fractal, que se difrata através das redes, em troca
da mortificação de seu olhar, de seu corpo, do mundo real.
Assim, vemos que de uma ideologia que movimentava o pensamento inquieto humano
de descobrir e produzir coisas, intensificado pela revolução industrial, dependente das
relações sociais e do emprego do capital, a técnica, para Baudrillard, se tornou um vetor de
efeito artificializante, produzindo uma espécie de efeito centrífugo em que sua essência
autônoma é imposta, enquanto o ser humano faz uso de seus objetos tecnológicos e se
submete à orientação da própria técnica. Retomando a descrição de Trivinho acerca da
velocidade como vetor – uma força autônoma, irrefutável, irreversível e progressiva – vê-se
grande afinidade entre ambos os vetores, os quais, podemos concluir, quando somados,
produzirão as resultantes mencionadas anteriormente: a estratégia para vitória, a
produtividade e a intensidade.
11
É necessária essa diferenciação entre “reproduzir” e “re-produzir” nesse trabalho, pois reprodução implica
fazer uma cópia idêntica, ou quase, à original. A ideia nesse trabalho é que a mídia produz uma nova sociedade,
ela produz novamente uma sociedade em seu contexto midiatizado e virtual.
12
“’simulacra’ are reproductions of objects or events, while the ‘orders of simulacra’ form various stages or
‘orders of appearance’ in the relationships between simulacra and ‘the real’. Baudrillard presents a theory of
how simulacra came to dominate social life, both historically and phenomenologically”.
passa a ser reproduzida com outras finalidades além da arte pela arte e passa a ser vista como
um produto.
Finalmente, a terceira ordem do simulacro, a simulação, correspondente à lei estrutural
do valor. Ou seja, nesta fase do simulacro falamos apenas de signos que sequer precisam ter
alguma relação – diferente da contrafação ou da produção – com uma realidade. Os signos
simplesmente representam modelos, os quais precedem as coisas de forma que até mesmo a
produção em série se submete aos modelos e a digitalidade se torna imperante (KELLNER,
1989, p. 79). Para Baudrillard, esse é o momento em que a sociedade migra de “sociedade
capitalista-produtivista para neo-capitalista cibernética, cujo objetivo agora é o controle
total13” (BAUDRILLARD, 1983, p. 111, tradução livre).
Enquanto Baudrillard finaliza as ordens dos simulacros na terceira, ele descreve ainda
uma quarta ordem do valor, representando o estado em que ele atinge o estágio fractal,
quando “já não há equivalência, nem natural nem geral, nem há lei do valor propriamente
dita: só há uma espécie de epidemia do valor, de metástase geral do valor, de proliferação e
dispersão aleatória” [grifo original](BAUDRILLARD, p. 11, 1996). Ao falar desta ordem do
valor, há uma forte inclinação para compreendermos que se trata de um tempo bastante
presente. O funcionamento da era virtual, trazendo a interatividade e constante conectividade
parece favorecer esta fractalização do valor, conforme discutido ao abordar a sociedade pós-
orgia (BAUDRILLARD, 1996).
Nesse contexto, é importante encontrarmos e enfatizarmos outras coisas que
progrediram. São os dois vetores apresentados nesse trabalho: a técnica, agora denominada
técnica moderna, e a velocidade. Ambas já foram definidas como autônomas, progressivas e
alheias às vontades e domínios do ser humano. Ao que parece, é a presença de ambas ao
longo dos estágios dos simulacros que liderou as mudanças sociais apontadas. Se quisermos
traçar um paralelo entre a divisão das eras trazida por Marcondes Filho e as ordens do
simulacro, veremos que o feudalismo, quando os signos eram perfeitamente claros e
transparentes, era o período teocêntrico. O antropocentrismo se inicia com o começo da
modernidade e vemos que é ali que se inicia a primeira ordem do simulacro, de acordo com a
perspectiva de Baudrillard, segunda ordem do simulacro, marcada pela revolução industrial,
ainda está no antropocentrismo e o tecnocentrismo seria comparável à terceira ordem do
simulacro.
13
“a capitalist-produtivist society to a neo-capitalist cybernetic order that aims now at total control”.
2.6. Os imaginários e os simulacros
Além de estabelecer relações entre as ordens dos simulacros e as respectivas leis de
valor, Baudrillard propõe imaginários correspondentes a cada uma delas.De certa forma,
entender estes imaginários propostos até auxilia na compreensão das ordens dos simulacros
em si. Diz ele,
À primeira categoria corresponde o imaginário da utopia. À segunda a ficção
científica propriamente dita. À terceira corresponde – haverá ainda um
imaginário que responda a essa categoria? A resposta provável é que o bom
velho imaginário da ficção científica morreu e que alguma outra coisa está a
surgir[...]. Não há real, não há imaginário senão a uma certa distância. Que
acontece quando esta distância, inclusive a distância entre o real e o
imaginário, tende a abolir-se, a reabsorver-se em benefício exclusivo do
modelo? Ora, de uma categoria de simulacros a outra, a tendência é bem a de
uma reabsorção desta distância (BAUDRILLARD, 1991, p. 151-152).
Uma vez que os simulacros de simulação são uma cópia sem real, imitações
circulantes, modelos repetitivos que são autenticados como signos sem referência, assume-se
que já não há mais real, tudo se tornou em modelos. Aqui bem cabe a afirmação de
Marcondes Filho (2009) de que “os simulacros são um atentado contra a realidade”. Não que
essa percepção seja uma exclusividade da terceira ordem do simulacro, mas é nesse estágio
que o prejuízo se torna mais evidente. Primeiro, existia apenas uma contrafação da verdade,
que buscava utopicamente voltar a um ideal que fosse próximo à ordem natural das coisas.
Em seguida, a lógica produtiva somada à lei de mercado instaurou a replicação em série e
passou-se a imitar a realidade, de maneira que esta já poderia ser confundida com sua
representação. Finalmente, chega-se ao momento das simulações, da lei estrutural do valor,
em que o real é dispensável, pois é a perpetuação de modelos que importa circular.
O que Baudrillard parece nos apresentar é uma realidade (ou não realidade, já que esta
foi perdida) que chegou ao extremo oposto do que se via naquela da primeira ordem do
simulacro. Antes, procurava-se uma utopia – um imaginário – para fugir da realidade presente
e consertar seus problemas. Agora, parece que vivemos num imaginário e queremos voltar ao
real, que se tornou utópico.
O cinema é, para Morin, uma das formas em que se visualiza esses processos, sendo
que, conforme a circularidade dos fatos proposta anteriormente, ali nasce a alienação que
alimentará o início daqueles processos e o resultado destes é a própria realização do complexo
projeção-identificação-transferência.Para ele, o cinema confere estruturas subjetivas às
imagens objetivas (MORIN, 1970, p. 109-111).A abordagem de imaginário de Jean
Baudrillard é bastante diferente da de Edgar Morin. Enquanto o primeiro trata da progressão
histórica do imaginário em relação aos simulacros – sua proposta de explicar e entender a
sociedade, escolhida para liderar esse trabalho –, o último fala do imaginário de maneira
individual, relatando como que o ser humano posiciona sua parte subjetiva em relação ao
outro. O que toca esse trabalho nos escritos de Morin é justamente sua afirmação de que o
cinema, um objeto da técnica moderna, um lazer tão comum para a sociedade, é uma das
14
O tipo de língua portuguesa foi mantido no texto para que se preservasse a originalidade da citação.
formas mais claras de visualizar o imaginário humano, pois é ali que se projetam intenções, é
ali que quem assiste se identifica com o que vê e transfere para outras mídias o que um filme
lhe transmitiu. De igual modo, quem produz o filme passa para ele as projeções-identificações
que possui do mundo que pensa. E por aí vão inúmeras probabilidades de resultados do
complexo projeção-identificação-transferênciaentre indivíduos e cinema.
Baseado nessa constatação do papel do cinema no imaginário do ser humano e na
sociedade, e considerando que, como uma mídia, um filme traz representa uma sociedade e
re-produz uma nova sociedade, o próximo capítulo tratará da presença da primeira e da
segunda ordem do simulacro no filme “Vingadores: era Ultron”para observar, através dos
respectivos imaginários dessas ordens, qual a sociedade que emerge da observação deste
filme.
15
“The arbitrariness of the sign begins when, instead of bonding two persons in an inescapable reciprocity, the
signifier starts to refer to a disenchantated universe of the signified, the common denominator of the real
world, towards which no-one any longer has the least obligation.”
16
“Counterfeiting does not take place by means of changing the nature of an ‘original’, but, by extension,
through completely altering a material whose clarity is completely dependent upon a restriction”
momento houver a tentação de pensar que esse simulacro não ocorre mais, Baudrillard (1993,
p. 51) afirma que, apesar das inúmeras revoluções e mudanças na sociedade, existe uma
crescente “nostalgia” por voltar ao referente natural das coisas. Mais adiante, essa percepção
será mais comentada ao falarmos do imaginário do simulacro de terceira ordem.
Repetindo o exemplo usado por Baudrillard (1993, p. 51) para o signo moderno, ou
seja, da segunda ordem do simulacro, compara-se o signo ao trabalho – assim como o
trabalhador da era industrial produz apenas equivalentes,ao invés de originais, o signo
emancipado produz apenas significantes equivalentes. Em outras palavras, uma vez que a
Revolução Industrial instaurou a produção seriada, em que os produtos perderam sua
unicidade, a partir de um referente, antes fabricado artesanalmente (manufaturas), fazia-se
inúmeras cópias do objeto, remetendo à ideia de um original, mas sem ligação alguma com
tal. Vale ressaltar que esse é o momento em que surgem as máquinas e, pouco a pouco, o ser
humano foi perdendo sua função na produção, tendo parte apenas em um ponto específico do
processo de produção, conferindo à máquina certo louvor.
17
“nature becomes the object of domination, and reproduction itself becomes a dominant social principle
governed by the laws of the market”.
18
“The modern sign dreams of its predecessor, and would dearly love to rediscover an obligation in its
reference to the real. It finds only a reason, a referential reason, a real and a ‘natural’ on which it will feed. This
designatory bond, however, is only a simulacrum of symbolic obligation, producing nothing more than neutral
values which are exchanged one for the other in an objective world.”
3.3. A terceira ordem do simulacro
Esse estágio do simulacro provavelmente é o mais complexo, tanto que a obra
Simulacros e Simulações (1991) de Baudrillard é praticamente toda dedicada justamente a
explorar a terceira ordem. Esta ordem é dominante no atual período, governado pelos signos e
códigos (BAUDRILLARD, 1993, p. 50), quando há apenas uma perpetuação dos modelos,
quando os signos são totalmente desligados de seus referentes e eles apenas giram em órbita
como verdade, simulando ser algo tão real que a humanidade os acata e vive a partir dos tais
mesmo suspeitando que não sejam de fato reais (BAUDRILLARD, 1996, p. 9-15).
Entendemos que tudo é imagem – vivemos na era do excesso das imagens, e Walter
Benjamim diria que isso resultou dos os avanços da fotografia que permitiram a reprodução
de tudo que se vê de maneira viral e acessível. Retomemos a categorização de Baudrillard
(1983, p. 11) sobre as quatro fases da imagem. Nesse ponto, Baudrillard (1991, p. 13) define
quatro fases da imagem, sendo que nesta ordem do simulacro cabem apenas as três primeiras:
“1) o reflexo de uma realidade profunda; 2) mascarar e deformar uma realidade profunda; 3)
mascarar a ausência de uma realidade profunda; e 4) a imagem não tem relação qualquer com
a realidade: ela é o seu próprio simulacro puro” (BAUDRILLARD, 1991, p. 13). A grande
mudança ocorre da segunda fase para a terceira,
A passagem dos signos que dissimulam alguma coisa aos signos que
dissimulam que não há nada, marca a viragem decisiva. Os primeiros
referem-se a uma teologia da verdade e do segredo (de que faz ainda parte a
ideologia). Os segundos inauguram a era dos simulacros e da simulação,
onde já não existe Deus para reconhecer os seus, onde já não existe Juízo
Final para separar o falso do verdadeiro, o real de sua ressurreição artificial,
pois tudo já está antecipadamente morto e ressuscitado (BAUDRILLARD,
1991, p. 14).
Na primeira fase, a imagem é uma boa reprodução do real, é fiel, precisa e exata, do
“domínio do sacramento”. Na segunda fase, a representação é má, a imagem pervertendo,
mascarando, alterando uma realidade, do “domínio do malefício”. Esse é o ponto da virada,
pois essas duas primeiras fases da imagem descrevem a progressão da primeira ordem do
simulacro, para a segunda e, finalmente, para a terceira. Na terceira fase, a imagem mascara a
ausência de uma realidade – o signo representa algo que não está lá, ele “finge ser uma
aparência”, escondendo que já não há ali a realidade; está sob o “domínio do sortilégio”.
Finalmente, a quarta fase da imagem: “ela não tem relação alguma com qualquer realidade,
ela é seu próprio e puro simulacro” (BAUDRILLARD, 1983, p. 11, tradução livre 19); a
imagem já nem pertence ao domínio da aparência, mas da simulação.
Perpetua-se a não realidade até que não há mais importância se ela relembra uma
realidade ainda que distante, apenas o modelo é viralizado, tendo o signo assumido todo o
valor e sido colocado em órbita. “Há uma produção desenfreada do real e do referencial,
acima e paralelo à loucura da produção material: é assim que a simulação aparece na fase que
nos toca – uma estratégia do real, do neo-real e do hiper-real cujo duplo universal é uma
estratégia de dissuasão” (BAUDRILLARD, 1983, p. 12, tradução livre20).
Defenderemos aqui que o filme Vingadores: a era de Ultron pode ser considerado um
exemplo combinado dos simulacros. No filme há marcas da utopia, da idealização, há marcas
da ficção e da produção, mas, principalmente, há uma característica marcante da simulação,
que ecoa da análise de Baudrillard a respeito da Disney: o filme faz acreditar que aquele
mundo é irreal e que o nosso é real a partir daquele, assim já não percebemos a irrealidade em
que vivemos. Vejamos o que ele fala sobre a Disneylândia,
19
“it bears no relation to any reality whatever, it is its own pure simulacrum.”
20
“there is a panic-striken production of the real and the referential, above and parallel to the panic of material
production: this is how simulation appears in the phase that concerns us – a strategy of the real, neo-real and
hypperral whose universal double is a strategy of deterrence.”
do filme, pensar: “foi apenas um filme, agora estou de volta à vida real; ainda bem que o meu
mundo é bem menos problemático e mais seguro. ”
Primeiro, o filme mascara a irrealidade da sociedade envolta pelo hiper-real, toda
baseada em signos e recheada de significações virtuais, pois a intensidade da experiência
imaginária faz com que o que é exterior ao filme pareça real. Segundo, transmite uma
sensação de que não são os mesmos problemas, pois embora haja uma identificação com as
questões tratadas no filme, a presença de elementos fantásticos tende a inibir a percepção dos
problemas cotidianos sociais. Assim como no filme, convivemos diariamente com a
desigualdade, com políticas desonestas e lutas por poder, questões humanitárias polêmicas,
dificuldades em se relacionar com o outro e um estigma de bem e mal. Pode-se até dizer que
essa semelhança é, sim, percebida, tanto que é confundível com a dita realidade – alguém
poderá até exemplificar seu problema utilizando algum caso do filme (ou de outro filme) –
mas, mais uma vez, aí está a vitória da simulação. O imaginário deste simulacro justamente
está em aniquilar a distância entre o real e o imaginário, não se pode mais diferenciar um do
outro, como diz Baudrillard (1991, p. 152-153):
Assim, notamos que o simulacro de simulação é predominante no filme, uma vez que
o filme em si simula que ele é irreal em detrimento ao nosso “mundo real”.Vingadores 2
também carrega a questão do caos, um caos que não se pode compreender porque ele existe,
mas sabe-se que está lá – um traço do mundo pós-orgia descrito por Baudrillard (1996), que
corresponde, historicamente, ao mesmo período em que a simulação é predominante. Nesse
momento, o signo é livre, circulante, mas já não imita nem mascara um referente, o filme
esconde o fato da não existência do real – “mascara a ausência de uma realidade profunda”, a
terceira fase da imagem (BAUDRILLARD, 1993, p. 50). E por que já não há mais real?
Porque tudo se converteu em signos, de nada mais importa o referente e sua natureza ou sua
produção, o que vale é a significação dada aos signos (BAUDRILLARD, 1991). Estes,
perpetuados, são modelos viralizados majoritariamente pela realidade virtual.
3.4. A progressão dos imaginários
Como foi apresentado no capítulo anterior, para cada ordem do simulacro Baudrillard
(1991, p. 151-152) apresenta um imaginário correspondente; na contrafação, o imaginário
correspondente é a utopia.Para Baudrillard (1991, p. 152), a utopia era o estado de almejar
construir uma sociedade ou um mundo melhor.
Não há real, não há imaginário senão a uma certa distância. Que acontece
quando esta distância, inclusive a distância entre o real e o imaginário, tende
a abolir-se, a reabsorver-se em benefício exclusivo do modelo? Ora, de uma
categoria de simulacros a outra, a tendência é bem a de uma reabsorção desta
distância, deste desvio que dá lugar a uma projeção ideal ou crítica
(BAUDRILLARD, 1991, p. 152).
Antes de tudo, consideremos que a grande parte dos filmes que assistimos são
narrativos, ou seja, apresenta uma história percebida pela existência de personagens,
passagem de tempo e elementos que são identificáveis para o público (AUMONT, 2012, p.
89-100). No entanto, nos primórdios do cinema não era prevista essa união da imagem com a
narrativa de forma tão forte,
A princípio, a união de ambos não era evidente: nos primeiros tempos de sua
existência, o cinema não se destinava a se tornar maciçamente narrativo.
Poderia ser apenas um instrumento de investigação científica, um
instrumento de reportagem ou de documentário, um prolongamento da
pintura e até um simples divertimento efêmero de feira. Fora concebido
como um meio de registro, que não tinha a vocação de contar histórias por
procedimentos específicos21 (AUMONT, 2012, p. 89).
É preciso compreender que “qualquer objeto, qualquer paisagem, por mais estático
que sejam, encontram-se, pelo simples fato de serem filmados, inscritos na duração e
oferecidos à transformação” (AUMONT, 2012, p. 91). Sendo assim, qualquer objeto ganha
uma representação que deverá passar uma mensagem de forma que o objeto não é mais
apenas ele, mas executa um papel representativo no filme e fazem parte da narrativa de forma
significativa. Se ampliarmos esse conceito retomando o pensamento de Hagemeyer (2010),
compreende-se que até mesmo os personagens possuem uma função alegórica e sua existência
na trama pretende passar uma mensagem e se identificar com o público, pois tudo que é
exposto ao público está sujeito que este crie sua própria narrativa a respeito das imagens
vistas (AUMONT, 2012, p. 90-92).
Aumont (2012, p. 98) afirma ainda que “o cinema é concebido como o veículo das
representações que uma sociedade dá de si mesma”, pois ele é capaz de reproduzir “sistemas
de representação ou articulação sociais”, assim, “a tipologia de um personagem ou de uma
série de personagens pode ser considerada representativa não apenas de um período do
cinema como também de um período da sociedade.” Se passarmos para um estágio ainda
21
Seria válida uma reflexão a respeito dessa afirmação de Aumont, indicando a possibilidade de que a técnica
também mudou a forma de fazer filmes e o obrigou a perder, de certa forma, a espontaneidade e o interesse
ingênuo da arte pura, pois passou a atender a uma série de normas impostas. Porém, será uma discussão
extensa e que não faz parte do escopo desse trabalho.
maisprofundo, serão encontradas também ideologias22 no filme. E, para o autor, a análise
destas deve ser construída levando em conta uma combinação entre as representações sociais
passadas no filme e as regulagens psíquicas do espectador (AUMONT, 2012, p. 99).
O autor se utiliza da perspectiva psicanalítica para explicar o processo de identificação
do espectador com o filme. Para ele, utilizando como base Jacques Lacan e Freud, essa
identificação é resultante da construção imaginária do eu.Aumont (2012, p. 246) faz uma
analogia entre o espelho e a tela, dizendo sobre ambos: “temos diante de nós, em ambos os
casos, uma superfície emoldurada, limitada, circunscrita. Essa propriedade do espelho (e da
tela) é provavelmente o que lhe permite fundamentalmente isolar um objeto do mundo e, ao
mesmo tempo, constituí-lo em objeto total.” Frente às duas telas nos colocamos imóveis,
utilizando a visão intensamente, reconhecendo os outros corpos – ora o nosso próprio corpo
refletido (fase do espelho, primordial na infância), ora o corpo dos outros na tela.
Para falar sobre o processo de identificação e criação do imaginário do eu, é
trabalhado o conceito das relações edipianas de Freud. Para este, esta identificação é
carregada de uma ambivalência, pois nela há o ser e o ter – o desejo de ser como o outro (pai
ou mãe) ou de ter o outro, possuí-lo. Segundo Aumont (2012, p. 251), relação semelhante
pode ser estabelecida no filme. Através do jogo de câmeras e da decupagem, o personagem
está “preso em uma oscilação semelhante, ora sujeito do olhar (é ele quem vê a cena, os
outros), ora objeto sob o olhar de um outro (um outro personagem ou o espectador).”
O período edipiano se resolve a partir do processo de identificação construído. À
medida que são abandonados os investimentos nos pais, criam-se identificações secundárias
para com eles, onde são estabelecidas as diferenças entre si e o outro antes desejado. O
imaginário do eu se torna então um recorte daquilo que ficou da primeira identificação com
os pais, depois de seus afastamentos e da soma das experiências de identificação ao longo da
vida com a cultura, a comunidade e a arte. Aumont (2012, p. 252) reforça que o romance, o
teatro e o cinema são “experiências culturais de forte identificação (pela encenação do outro
como figura do semelhante)” e “vão desempenhar um papel privilegiado nessas identificações
secundárias culturais.”
Figura 1 e 2: Diálogo entre Tony Stark e Steve Rogers vestidos como civis.
O desenvolvimento extremo de uma ideia (que leva a ideia para além de seus
próprios limites, finalidade ou ponto final, um estado de „ex-terminação‟)
pode por esse meio destruí-la – como, por exemplo, o sexo é destruído pela
pornografia, que é mais sexual que o sexo; o corpo pela obesidade, que é
mais gordo do que a gordura; a violência pelo terror, que é mais violenta que
a violência; a informação pela simulação, que é mais real que o próprio real;
o tempo pela instantaneidade, que é mais presente que o „ao vivo‟; e, em
Watchman, o herói é destruído pelo super-herói, que é mais heroico que
qualquer herói, porém os seus heroísmos não são mais reconhecidos como
heróicos.
23
“the extreme development of an idea (which takes that idea beyond its own limits, end, or terminus, into a
‘state of termination’) can thereby destroy it – as, for example, sex is destroyed by porn, which is more sexual
than sex; the body by obesity, which is fatter than fat; violence by terror, which is more violent than violence;
information by simulation, which is truer than truth; time by instantaneity, which is more present than the
present; and, as in Watchman, the hero is destroyed by the superhero, which is more heroic than the hero, but
whose extreme heroics are no longer recognizable as heroics”.
não apenas global. Vale ressaltar que na maioria das vezes as entidades malignas que invadem
a Terra o fazem por causa dos heróis e não por causa dos seres humanos e mesmo o grande
problema causado no filme em análise neste trabalho foi causado por dois integrantes da
equipe – a criação de Ultron. Além disso, em muitas situações drásticas, nas quais foi
necessário a intervenção dos Vingadores para salvar as pessoas, o problema foi causado
exatamente por eles, como nos estragos da cidade pelas perseguições no trânsito, a invasão no
trem que atravessa a cidade. Um desses casos é o trem desgovernado, que ficou nesse estado
por causa da luta entre Capitão América (Figura 3), Feiticeira e Mercúrio contra Ultron.
Mesmo no início do filme há uma cena em que é mostrada uma manifestação do povo
pedindo que os Vingadores “voltem para casa e os deixem em paz”, rejeitando os heróis que
outrora foram tão aclamados quando um dos autômatos da Legião de Ferro de Stark é atingido
por alguém ao avisar que aquela não é uma área segura, mas que os Vingadores estão lá para
ajudar e a população será avisada quando puderem retornar ao local. Enquanto isso, os civis
gritam: “Avangers, voltem para casa!”e lançam pedras e objetos (Figura 4).
Figura 4: Autômato da Legião de Ferro de Stark atingido por civis.
Ainda assim, os super-heróis seguem cumprindo o que eles afirmam ser sua missão –
que eles mesmos criaram? O personagem Tony Stark afirma: “Não é para isso que lutamos,
para podermos acabar com o mal e voltarmos para casa? ” Identificamos aqui uma marca da
inocência da Disney, quando o voltar para casa ainda representa aqui não apenas o local mais
seguro, mas a concretização de que os problemas todos foram extintos e o perigo maior foi
vencido. Estar de volta em casa seria o real, um possível paralelo com o imaginário da
simulação, ao Baudrillard propor que a ficção já se confunde tanto com o real e o modelo
ultrapassou de longe o real, que esse imaginário se concretiza pela busca de retornar ao real,
ao natural, ainda que de maneira inconsciente, uma espécie de utopia inversa: “E é
paradoxalmente o real que se tornou a nossa verdadeira utopia – mas uma utopia que já não é
da ordem do possível, aquela com que já não pode senão sonhar-se, como um objeto perdido”
(BAUDRILLARD, 1991, p. 153).
Semelhante ideia é percebida em um dos momentos mais tensos do filme – exceto que
nos clichês da Marvel, sabe-se que uma cena de derrota no meio do filme serve apenas para
garantir ao espectador que no final tudo terminará “bem”, ou o que se pode considerar um fim
positivo. Após a manipulação de Wanda ter afetado toda a equipe e descontrolado Hulk, o que
ocasionou num grande estrago para a cidade na qual estavam, Clint(Gavião Arqueiro), o
componente da equipe com menor aparência de herói, assume o controle da nave e leva toda a
equipe para um “lugar seguro”, sua casa (Figura 5).
Figura 5: Nave dos Vingadores pousa no quintal da casa de Clint
Ali pela primeira vez o espectador conhece a família dele, morando numa casa de
campo com aspecto bucólico, e mais uma vez vê-se o forte apelo para retornar para casa. Se
antes a ficção se esforçava para se afastar da realidade e testar suas extensões e capacidades,
agora “o processo será antes o inverso: será o de criar situações descentradas, modelos de
simulação e de arranjar maneira de lhes dar as cores do real, do banal, do vivido, de reinventar
o real como ficção, precisamente porque ele desapareceu da nossa vida” (BAUDRILLARD,
1991, p. 154-155). No entanto, sempre é necessário que eles voltem para a luta no planeta
Terra– “eles [os seres humanos] precisam de nós”, afirma a equipe. De qualquer forma, o
problema parece estar justamente na presença dos heróis, talvez sem eles o mal não
aparecesse. Porém, a extinção do mal, o fim para o qual eles lutam, extinguiria também o
propósito deles mesmos.
Todos lutam – heróis e humanos – não se sabe exatamente para que nem por que,
apenas que é necessário lutar. Tal pensamento parece ecoar do momento pós-orgia descrito
por Baudrillard (1996). Tudo já foi conquistado, não há mais nada pelo que lutar, mas é
necessário continuar para que haja uma busca para dar sentido à existência humana. Simulam-
se problemas através da repetição e colocam-nos em órbita para que sejam revividos e
viralizados para que a luta ainda exista. Levando em conta que no filme o mal que faz a luta
continuar existe de fato, embora desconhecido, poderia ser dito que existiria uma razão,
diferente da pós-orgia, porém considerando que os heróis e todo o mal são irreais e frutos do
imaginário, a luta tornaria a ser sem propósito.
Será então que no mundo contemporâneo a existência de heróis se tornou
desnecessária? É a discussão que Thomson (2011, p. 10-11) parece sugerir ao levantar a
questão de que talvez a nossa cultura esteja vivendo num período “pós-heroico”. Propondo
um diálogo entre Isaiah Berlin e Kant, ele cita o posicionamento daquele acerca do heroísmo
romantizado, o qual ele afirma ter carregado uma tendência de louvor aos heróis que
influenciou os pensamentos fascistas. Mediante essa visão, Berlin afirma que quando olhamos
para os horrores do Holocausto torna-se ridículo pensar em heroizar algum ser humano e, a
partir do que Kant chama de “destino essencial da natureza humana”, ele diz que precisamos
crescer e deixar nossos pensamentos infantis, como os heróis, e pensar por nós mesmos.
Thomson, no entanto, contrapõe-se a essa visão de Berlin indagando se mesmo essa tentativa
de nos afastarmos dos heróis não é uma demonstração da “inextinguível necessidade humana
por algo melhor: esperança, ideais, um futuro que digno de ser buscado e heróis para nos
conduzir até lá?” E se apagarmos todas as nossas histórias de heróis, o que nos restaria? “Pode
sequer existir uma história significativa – uma história digna de ser vivida – sem os heróis?”
(THOMSON, 2011, p. 11, tradução livre24).
24
“an inextinguishable human need for something better: Hope, ideals, a future worth pursuing, and heroes to
lead us there?”; “Can there even be a meaningful history – a history worth living – without heroes?”
25
“the development of its heroes, but rather by developing its heroes precisely in order to desconstruct the
very idea of the hero, overloading and thereby shattering this idealized reflection of humanity and encouraging
us to reflect upon its significance from the many different angles of the shards left lying on the ground.”
transcendente” (BAUDRILLARD, 1991, p. 151-152), uma vez que os heróis são a imagem de
um ser humano perfeito – mais parecido com Deus – e buscam um ideal. No entanto,
observando os personagens de Vingadores, já influenciados pelo padrão contemporâneo em
que mesmo os heróis não são perfeitos, podemos ver algumas diferenças entre o objetivo da
existência dos componentes da equipe. O contraste deve ser considerado com o simulacro da
produção e seu imaginário da ficção científica, de “prolongamentos mecânicos ou
energéticos”. A diferença mais marcante entre ambos é que “No universo limitado da era pré-
industrial, a utopia opunha um universo alternativo ideal. Ao universo potencialmente infinito
da produção, a ficção científica acrescenta a multiplicação de suas próprias possibilidades”
(BAUDRILLARD, 1991, p. 152).
Figura 7: Thor
26
É importante ressaltar que para facilitar a discussão sobre os personagens, falaremos da história deles como
é descrita nos filmes feitos pela Marvel, ciente de que as histórias originais dos quadrinhos apresentam
diferenças mais detalhes.
terráqueos, o uso de seu machado, signo que autentica sua adjetivação de digno, o coloca
numa posição idealizada.
Considerando esse fato da criação das máquinas e da forma como eles lidam com os
tais, vemos traços da era humanista e antropocêntrica, conforme a divisão de Ciro Marcondes
Filho (2009) – o pensamento de que é possível ter controle sobre a vida e se tornar invencível
por meio das máquinas, criações do próprio ser humano, conferindo a este o domínio sobre o
futuro. Sendo assim, talvez possamos assumir que o personagem do Homem de Ferro é uma
representação que se encaixa na segunda ordem do simulacro. Vale ressaltar ainda que a
relação do Homem de Ferro com a técnica, sendo o herói quase como um amálgama que soma
homem e máquina – isso até o momento apresentado aqui, excetuando a criação de Ultron e
do Visão, na qual ele teve parte – não retrata a técnica de forma negativa. Isso é
principalmente visível, como já foi mencionado antes, em ter a técnica subordinada a ele, de
27
“That is, the series: the very possibility of two or n identical objects. The relation between them is no longer
one of an original and its counterfeit, analogy or reflection, but is instead one of equivalence and indifference.
In the series, objects become indistinct simulacra of one another and, along with objects, of the men that
produce them. The extinction of the original reference alone facilitates the general of equivalences, that is to
say, the very possibility of production.”
forma que ela imediatamente responde ao que ele deseja ou precisa fazer. Recorrendo ao
pensamento de Baudrillard a respeito da técnica, deve ser lembrado que ao longo de sua obra
houve dois momentos: 1) considerar que a técnica estava sob o domínio do homem e que seu
crescimento dependia do capital, e 2) a percepção de que a técnica se multiplica por si só e
independe do ser humano, trazendo uma visão mais crítica e apocalíptica sobre ela
(RÜDIGER, 2010). Poderia ser dito que a forma como a técnica é retratada no personagem de
Tony Stark parece estar em concordância com sua primeira visão acerca dela, um pensamento
mais predominante na era moderna, com o advento da revolução industrial, a ascensão da
produção seriada e o avanço das máquinas.
28
“The end of labor. The end of production. The end of political economy. The end of the dialetic
signifier/signified which permitted the accumulation of knowledge and of meaning, the linear syntagm of
cumulative discourse. The end simultaneously of the dialetic of exchange value/use value, the only one to
make possible capital accumulation and social production. The end of linear dimension of discourse. The end of
linear dimension of merchandise. The end of the classic era of the sign. The end of production.”
entretenimento e do conhecimento – substituíram a produção industrial e a economia política
como o princípio organizador da sociedade” (KELLNER, 1989, p. 61, tradução livre29).
Contudo, apesar do uso do termo pós-modernismo pelo autor, é interessante notar que
Baudrillard não fala que a técnica foi revogada ou substituída por algo novo, mas que ela
tomou uma dimensão diferente, como se ela superasse seus próprios limites e circulasse
apenas num plano sígnico. Assim é o que se entende dos imaginários relativos aos simulacros,
como anteriormente explicado. O imaginário da produção, a ficção, foi superado de tal forma
que o imaginário da simulação trouxe uma inversão na lógica social – sendo o real o álibi do
imaginário, quando chegamos a uma espécie de utopia reversa, em que se almeja retornar ao
real, o qual é tido como um “objeto perdido” (BAUDRILLARD, 1991, p. 153). Nesse sentido,
parece ser interessante fazer uso do termo cunhado por Gilles Lipovetsky (2007)
“hipermodernidade”, ao invés de pós-modernidade, em sua obra “Sociedade da decepção”.
Juremir Machado, no prefácio da obra, resume o conceito de Lipovetsky dizendo que a
hipermoderidade é a “exacerbação da modernidade”, intensificando o incentivo à mudança, ao
consumo, à atividade.
Ao olhar para o filme com esses conceitos em mente, a criação de Ultron parece
sugerir o caos do período descrito.Ele surge por meio dos estudos e experimentos de Stark e
Banner, somando a parte tecnológica elaborada pelo primeiro e a parte neurológica pelo
segundo.Assim que seu carregamento se completa, ele tem uma discussão com J.A.R.V.I.S. e
aparente extingue esse outro sistema (Figura 10).
29
“new tecnologies – media, cybercultural models and steering systems, computers, information processing,
entertainment and knowledge industries and so forth – replace industrial production and political economy as
the organizing principle of society.”
Ele é um sistema de inteligência artificial que se move por todas as conexões
eletrônicas, consegue movimentar as máquinas, possui consciência e se incorpora num corpo
de ferro que ele mesmo juntou e consegue controlar alguns autômatos e criar seus próprios.
Ele foi designado para combater os problemas da humanidade, porém, assim que “nasce”,
percebe a dialética existência dos Vingadores e os identifica como um obstáculo para ele. Sua
aparição física se dá exatamente na discussão sobre quem é digno durante a festa em
comemoração pela captura do cetro de Loki e os acusa de hipocrisia – pois apesar de se
aclamarem salvadores do mundo, não deixam de ser assassinos e culpados pela maior parte
dos problemas contra os quais eles lutam na Terra. Ele afirma que sua missão é trazer “paz em
seu tempo” e ser “uma armadura ao redor do mundo”, frases aprendidas de Stark (Figura 11).
Figura 13: Visão que Wanda tem da mente de Ultron – o sonho de Ultron
30
“Deterrence excludes war – the antiquated violence of expanding systems. Deterrence is the neutral,
implosive violence of metastable or involving systems. There is no subject of deterrence any more, nor
adversary, nor strategy – it is a planetary structure of the annihilation of takes.”
1983, p. 60, tradução livre31) – seja essa inexistência pela aniquilação física por meio da
explosão ou pelo cerco que criou-se na necessidade de segurança e na transformação de tudo
em dados. Ultron foi criado na intuição desse contexto, feito para proteger o mundo, criado e
nascido por meio da tecnologia excedendo o humano. Porém, diferente da suposta
intencionalidade apenas dissuasiva dita por Baudrillard, ele não tinha medo de destruir, pelo
contrário, ele fala sobre a beleza do fogo e da purificação que é feita através deste.
Em contraponto com Ultron, surge o personagem Visão. Igualmente criado através de
inteligência artificial, ele foi idealizado por Ultron e criado pela Dra. Cho, sob sua
manipulação. Seu corpo foi feito de Vibranium (o mesmo material do escudo do Capitão
América), a partir da junção deste metal com células humanas para criar tecido. No entanto,
após os Vingadores roubarem o recipiente que continha o corpo ainda em formação. Stark e
Banner começam a carregar a J.A.R.V.I.S. nele e, em meio a intensas discussões sobre se
deveriam de fato trazê-lo à vida ou não, Thor aparece e descarrega a energia de seu martelo e
completa a formação – nasce Visão. Em sua testa está a joia da mente, que estava antes
escondida no cetro de Loki. Enquanto todos os vingadores temiam suas intenções, ele pegou
facilmente o martelo de Thor, provando ser “digno”.Quando perguntam quem ele é, a resposta
obtida é um tanto intrigante, ele apenas diz: “Eu sou” (Figura 14). Essa resposta é uma
referência à maneira como Deus se define na Bíblia, o que daria conferiria ao personagem um
papel messiânico, redentivo, a esperança de salvar o mundo do mal – representado por Ultron.
O papel de Visão é bastante interessante, pois apenas com ele os Vingadores serão
capazes de derrotar Ultron, deixando a possibilidade de concluir que apenas outra máquina
31
“but this sofistication exceeds any possible objective to such an extent that it is itself a symptom of
nonexistence.”
seria capaz de destruir uma máquina. Contudo, há nesse ponto uma divergência com todo o
pensamento que vem sendo construído acerca da técnica: é deixada a sensação de que há uma
técnica boa, representada por Visão, e uma técnica ruim, representada por Ultron. Vale ainda
ressaltar que ambos foram criados por Tony Stark e Bruce Banner, no entanto os resultados
tomaram dimensões bastante diferentes daquelas esperadas. Assim, embora haja certa glória
no mérito pelas criações, é bastante visível a resposta da técnica, mostrando a fragilidade do
conhecimento humano, que não consegue prever exatamente o resultado daquilo que ele
produz. Além disso, repete-se o ciclo mencionado anteriormente – os heróis criaram um mal
e, por isso, precisaram criar um bem para vencê-lo; ganham crédito por salvarem o mundo,
mas salvar do problema que eles mesmos criaram.
Há ainda no filme o exemplo do que foi feito aos gêmeos Maximoff. O cientista
Strucker, que aparece apenas no início do filme, fazia testes de aprimoramento em seres
humanos, sendo que os únicos sobreviventes ao teste foram Pietro e Wanda – ele ganhou a
habilidade de se mover numa velocidade ultra rápida e ela a de manipular a realidade e a
percepção. A chegada de Ultron e Visão, totalmente desenvolvidos por meio da inteligência
artificial, reforça a discussão sobre o aprimoramento humano e suas consequências. Kellner
(1989, p. 82) aponta que para Baudrillard a sociedade da simulação possui um imaginário
cibernético, carregada de uma lógica dissuasiva inclusive para afirmar o que é o real, como o
exemplo da Disney32. A presença da cibernética e a lógica da simulação culminam no
conceito de Baudrillard de hiperreal: “a própria definição do real se torna, aquilo a partir do
qual se pode produzir um equivalente. [...] No limiar desse processo de reprodutibilidade, o
real não é apenas aquilo que pode ser reproduzido, mas aquilo que já foi reproduzido. O
hiperreal” (BAUDRILLARD, 1983, p. 164, tradução livre33). Vendo Ultron e Visão como
uma reprodução do ser humano, porém da forma como imaginaríamos que ele seria melhor –
imortal, com mais inteligência e capacidade lógica, poderes e força – e ainda na criação
puramente tecnológica deles, encontramos nesses dois personagens a representação do
simulacro de terceira ordem – o simulacro de simulação. Não esquecendo, no entanto, que,
como já foi discutido em tópicos antecedentes, o próprio filme é da ordem da simulação.
32
Exemplo explicado no tópico 3.3.
33
“The very definition of the real becomes: that of which it is possible to give an equivalent reproduction. *…+
At the limit of this process of reproductibility, the real is not only what can be reproduced, but that which is
already reproduced. The hyperreal.”
4.4. Bruce Banner e Natascha Romanoff: a cura pelo toque humano
É bastante interessante a interação construída entre os personagens de Bruce Banner, o
Hulk, e Natascha Romanoff, a Viúva Negra. Ele se tornou um monstro por causa de erros em
experiências laboratoriais e cada vez que tem seu humor alterado se torna o Hulk e destrói
tudo que vê pela frente, sempre dando trabalho à equipe para trazê-lo de volta ao normal. Ela,
por sua vez, foi criada como uma agente para matar e passou até mesmo por uma operação
que a deixou estéril para que ela não tivesse laços e pudesse executar os trabalhos sem
preocupações.Um fato interessante acontece no filme. Os vingadores se deram conta de que a
única que era capaz de acalmar o Hulk de maneira rápida e sem danos era a Viúva
Negra.Nesses casos, ela o chama: “Ei, grandão! O sol está abaixando”, estende sua mão para
que ele a toque com sua e, então, ele se acalma e aos poucas volta a ser simplesmente Bruce
Banner. Percebe-se que há alguma relevância a ser considerada nesse fato pelo enfoque
especial dado a esta cena no filme (Figura 15).
A frase cantarolada constantemente por Ultron diz algo sobre os laços. Ele repete: “eu
tinha cordas, mas agora eu sou livre”, mas ao final, enquanto ele atira de sua nave mirando no
garoto que se perdeu de sua mãe e está sendo salvo pelo Gavião Arqueiro, ele ri em tom de
zombaria da atitude amável e solidária do herói e canta: “Eu não tenho cordas, então me
divirto; não estou amarrado a ninguém” (Figura 17).
O final do filme é um relevante diálogo entre Ultron e Visão. Este último explica ao
anterior porque ele pretende salvar a humanidade ao invés de destruí-la. Ultron insiste que o
ser humano está condenado por ele mesmo e que o mundo acabará por sua causa e chama
Visão de ingênuo, diante da resposta de que, apesar de ele também saber que não há solução
para a humanidade, “há graça em seus erros. É um privilégio estar entre deles” (Figura 18).
Figura 18: Visão em diálogo com Ultron
LEMOS, A. Cibercultura: Alguns pontos para compreender a nossa época. In: CUNHA, P
(orgs.). Olhares sobre a Cibercultura. Editora Sulina, Porto Alegre, 2003; p. 11-23.
_________________. Perca tempo: é no lento que a vida acontece. São Paulo: Paulus, 2010.