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Igor Santiago1
Até o presente momento não encontramos trabalhos que tomassem essa fonte como foco
central de análise. Na década de 60 do século XX, fr. Félix Lopes (1902-1990), ao trabalhar na
edição impressa da Conquista Espiritual do Oriente de fr. Paulo da Trindade (c.1570-1651),
cita a existência desse manuscrito.2 Em artigo publicado no ano de 1996, examinando os
caminhos pela busca da fama de santidade por religiosas em Portugal nos séculos XVII e XVIII,
Pedro Vilas Boas Tavares chega a utilizar alguns dados obtidos do documento, sobretudo para
tratar da “oração de quietação” e as práticas meditativas e contemplativas na busca feminina
pela aura santificada.3 O autor chamou atenção para como, crendo nas informações desse
memorial, esse mosteiro de clarissas “notabilizou-se pelo alto nível espiritual” das fundadoras
e “posteriormente professas”, constituindo, assim, em um espaço que desde seus primórdios
1
Mestrando em História Social pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal da Bahia.
Bolsista Capes. E-mail: santiagoigorct@gmail.com.
2
TRINDADE, fr. Paulo da. Conquista Espiritual do Oriente. III Parte. Lisboa: Centro de Estudos Ultramarinos,
1967, p.528.
3
TAVARES, Pedro Vilas Boas. “Caminhos e invenções de santidade feminina em Portugal nos séculos XVII e
XVIII. (Alguns dados, problemas e sugestões)”. Via Spiritus, n.3 (1996), p. 163-215.
conheceu a presença de freiras notáveis nas práticas espirituais exortáveis no meio católico
(TAVARES, 1996, p. 194). Mais recentemente, em 2011, Elsa Penalva publicou a obra
Mulheres em Macau, na qual utilizou e transcreveu o manuscrito na sessão documental de seu
trabalho.4 Atenta às questões sociais que envolveram as mulheres naquela cidade de domínio
português, sobretudo a viuvez e o mercado matrimonial, a autora não descuida da importância
da fundação de um mosteiro feminino em Macau, relembrando como este se constituiu como
uma via de autonomia feminina naquela cidade.
Voltando ao manuscrito, vale ressaltar que nem todas as religiosas tiveram sua biografia
narrada com muitos detalhes, restringindo-se, por vezes, às informações mais básicas como o
nascimento, morte, ano de profissão e filiação. É de se considerar que isso se deu pela falta de
mais informações no cartório do convento à época da redação do texto, aspecto ressaltado na
própria narrativa ao não serem biografadas duas das seis madres fundadoras do mosteiro “pois
faltou nas creaturas por descuido” anotações que dessem conta de suas “uidas e mortes” (Vida
e Vertudes..., fl.75). Além disso, uma outra questão reside na autoria do texto. Por não ter sido
assinado e não possuir marcas de gênero na escrita, é de se considerar a possibilidade de uma
abadessa ou alguma religiosa de sua confiança ter escrito o memorial, uma vez que o acesso ao
tipo de documentação necessária para elaboração desses textos não era permitido a qualquer
religiosa da casa. Uma prática comum no mundo conventual feminino que visava, quando não
a publicação do livro, preservar a memória institucional da casa ou de religiosas falecidas em
odor de santidade, constituindo uma espécie de panteão a sustentar o carisma da própria
comunidade.
Esse tipo de documentação, bem comum nos arquivos conventuais, servia não só para
o controle administrativo da casa, mas também como fontes para futuras obras que fossem
escritas sobre aqueles mosteiros ou sobre as custódias e províncias nas quais estivessem
inseridos. Moreno Pacheco, por exemplo, lembra que esses textos “quase sempre idealizados”,
poderiam servir “tanto para propagar a retidão das comunidades como para sedimentar um
modelo de comportamento para uso interno” (2020, p. 227). Eles poderiam ser lidos no
refeitório, como dietário, durante as refeições realizadas pelas religiosas, além de servir para as
4
PENALVA, Elsa. Mulheres em Macau: Donas Honradas, Mulheres Livres e Escravas. Séculos XVI e XVII.
Lisboa: Centro de História de Além-Mar, 2011.
governantes como ferramenta de monitoramento das que já haviam passado pela casa e as que
ainda ali viviam. De todo modo, elas constituíam uma importante fonte de exemplos virtuosos
para as noviças recém chegadas no mosteiro e para as decanas que assumiam os postos de
instrutoras destas. Sendo assim, partindo das vidas exemplares das fundadoras do mosteiro
macaense, nosso intuito aqui é perceber a conformação de modelos religiosos femininos
virtuosos no interior desse convento a luz da experiência supostamente vivida pelas religiosas
que ali habitaram. Tal empreitada nos possibilita entender quais práticas espirituais eram mais
corriqueiras na experiências daquelas clarissas, ao passo que se torna possível compreender as
possíveis redes de circulação de crenças e ideais religiosos levados a cabo por estas.
Fr. Jacinto de Deus (1612-1681) ao tratar desse convento, chamou atenção para a figura
exemplar da líder da fundação, Leonor de São Francisco. Segundo o cronista, aquela madre
havia bebido do “leyte da reformaçam do Convento de Toledo em companhia da Madre
Jeronyma da Ascensaõ”, tendo fundado a casa clariana da China “na devaçaõ da Conceiçam da
Virgem Mãy de Deos, em altissima pobreza, sem possessaõ alguã, em grande reformaçaõ, muita
oraçam, rigurosa abstinencia, & asperas disciplinas”. Leonor não admitiu “servidoras na
clausura, sendo as proprias senhoras cozinheiras, fazem os mais officios da humildade” (DEOS,
1690, p. 134). A abadessa realizava, assim, o desejo de sua mãe espiritual. Fundou o convento
com a invocação da Conceição e instituiu na casa a Primeira Regra de Santa Clara. As adeptas
a esse estilo de vida, como salientou Maria Margarida Lalanda, diziam buscar “viver em inteira
dedicação a Deus, humildade, penitência, pureza, afastamento do mundo secular e
despojamento de bens materiais pessoais. Além disso, na profissão deveriam realizar os “votos
solenes de obediência, castidade e pobreza em clausura” (LALANDA, 2000, p. 353).
5
Arquivos de Macau [1931], «Termo de aceitação das Freiras descalças, p.a esta Cid.e fer fua protectora e as ajudar
para sua fustentação na ordinãcia - 1633» de 16 de dezembro de 1633, 1° série, vol. III, n. 4, p. 175-176.
conjunto de modelos que as novas integrantes daquela família conventual poderiam se espelhar.
Suas vidas foram bem detalhadas no manuscrito aqui trabalhado, sendo exortadas enquanto
fieis seguidoras de Jerónima de la Asunción e piedosas instrutoras.
Cabe aqui uma breve sondagem do cotidiano idealizado por essas freiras na condução
das atividades do convento e do modelo de religiosas que buscaram instruir as noviças que
passaram pelo mosteiro em seus governos. Cotejaremos, junto ao memorial do mosteiro, uma
pequena vitӕ de Magdalena de la Cruz, localizada no primeiro tomo de sua obra Floresta
Franciscana de Ilustraciones Celestiales, escrita por seu confessor fr. António de Santa Maria
Caballero (1602-1669).
Analisando os textos escritos pelos frades da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho
sobre o processo de fundação do Convento de Santa Mônica de Goa, primeiro mosteiro
feminino erigido no ultramar português, Rozely Oliveira chamou atenção para o recorrente uso
da figura de suas fundadoras “como exemplo de vida santa que se levava dentro dos muros do
claustro”. Dessa forma, continua a autora, o convento “seria reformador de um modelo de
virtude a ser seguido pelas mulheres cristãs goesas, fossem elas cristãs-velhas ou convertidas
(OLIVEIRA, 2012, p. 157). Essa tática cumpria uma dupla função. De um lado exortava a vida
cotidiana no convento servindo de exemplo para as mulheres seculares e símbolo de prestigio
a capital do Estado da Índia, ao passo que conduzia modelos específicos e costurados aos
princípios reformadores tridentinos dentro do próprio mosteiro, visando normatizar as condutas
das próprias residentes daquela casa. Não obstante, no caso conventual macaense, o uso dos
estilos de vida observados nas madres fundadoras visava também incutir traços específicos da
espiritualidade da Ordem naquele território e na região que o circundava.
“Entre as flores de Hyeronima, e entende-sse as Nouiças, que a que mais agradaua, hera
a morenica que hera Leonor”. Nascida em Toledo, no ano de 1583, professou em 1603 no Real
Monasterio de Santa Isabel de los Reyes, mesmo mosteiro que Jerónima viveu na Espanha. Ali
teve a madre como sua instrutora no noviciado e, após a profissão, enquanto companheira
espiritual. Leonor “hera toda Espirito” e “com seu corpo era muy áspera, e riguroza”. Toda sua
vida dormiu em uma tábua “com huma esteira uelha, e sua almofada, um duro pão”, além de
jejuar “de tal modo que nem nos Domingos deixaua o jejum”. Nessa prática foi bem austera e
extremada, jejuando apenas a “pão e agoa, e nos mais dias comia muito pouco”. Em Manila
exerceu o ofícios de vigária, mestra das noviças e abadessa “sendo nisso hum retrato da
Matriarcha Santa Clara”, pois era “extremada em sua pobreza” e “mui pontual e zeloza da
observância Regular, e por qualquer transgressão publica da Regra, ou Constituiçoes,
penitenciaua as súbditas, e depois hia a uer aquella que hauia penitenciado, e a consolava muy
amorosamente” (Vida e Vertudes..., fl. 57). Sua imagem foi, de certa forma, consolidada
enquanto exímia comandante do grupo e assertiva em suas decisões. Articulou a fundação
conventual com base no estilo de vida perpetuado por sua antecessora e instruiu suas filhas para
observarem a Regra, prezarem a humildade, simplicidade e pobreza, cumprindo os votos de
obediência, castidade e clausura.
Caminho similar seguiu uma outra pupila de Jerónima de la Asunción, embora tenha
saído de um outro convento em Espanha. Magdalena de la Cruz nasceu em Pinto, a “tres legoas
de Madrid”, no ano de 1575. Seu pai era chamado António Gonzales de Ávila, “notario de la
santa Iquisicion” e sua mãe Gerónima Romana, “personas virtuosas y muy deuotas de la Orden
de N. P. S. Francisco” (Svmario..., fl. 4r) Aos quatro anos de idade já lia “experramente em
qualquier libro”, tendo mostrado, desde cedo, vocação para a vida conventual. Quando pequena
eram “seus brincos ajuntar meninas e meninos de seu baixo aos grandes ensinaua a doutrina
cristã” (Vida e Vertudes..., fl. 58r). Chegou a entrar em um convento de bernardas, mas sua
vocação a levou ao de Cubas de la Sagra, pertencente à família franciscana reformada, onde
viveu humildemente e teve grande destaque devocional. Jerónima de la Asunción a escolheu
para a fundação do convento em Manila e em 1633, já naquela paragem, ela partiu com outro
grupo de freiras para fundar uma casa em Macau. Ali sua carreira enquanto mística escritora
ganharia contornos mais elevados. Já na nova casa conventual, estando uma vez “comiendo con
la comunidad en el refertorio en buena disposicion repentinam[en]te la sobreuino un accidente
que la dexo mortal”. Nesse momento de arrebatamento súbito, teve uma“formidable vission”
que se caracterizou como início de um processo de aguçamento na escrita, guiada pelo divino,
dos mistérios da Imaculada Conceição (Svmario..., fl. 11). Foi impulsionada pelo seu confessor
a escrever sobre esses mistérios, o que resultou na Floresta Franciscana de Ilustraciones
Celestiales, produzida entre os anos de 1640 e 1647.
As religiosas que partiram para a fundação de Macau levaram adiante esses princípios
que diferenciava essa Ordem das demais, segundo as narrativas de cronistas e escritores do
Instituto. Leonor de São Francisco implementou a reforma nessa casa através da adoção da
Primeira Regra, mas também por meio de preceitos espirituais que aprendeu junto a Jerónima
de la Asunción, em Toledo e em Manila. No novo convento, ficou expresso, através dos relatos
das que ali habitaram, o recorrente uso do argumento da pobreza tanto para inspirar outras a
seguir aquele caminho como para conseguir as licenças e financiamentos necessários para a
construção do mosteiro e, posteriormente, manutenção do mesmo. A cada cinco anos, por
exemplo, as freiras deveriam aceitar uma professa sem dote em troca de “hum candorim por
cento” anual, que a cidade oferecia para o sustento da comunidade, além da esmola
disponibilizada para a construção da nova habitação das freiras (Arquivos de Macau, 1931, I,
p. 177). No que diz respeito às vivências e as práticas espirituais empreendidas por essas
mulheres, os jejuns, as mortificações corporais e a oração mental se constituem como traços
mais recorrentes entre elas.
Fontes
BNP, Manuscritos Reservados, Cód. 178 – “Vida, e Vertudes da Venerauel Madre Leonor de
S. Francisco Primeira, e Principal Fundadora desse Mosteiro de Relligiozas de Sancta Clara
de Maccao”, fls. 56-75.
DEUS, fr. Jacinto de. Vergel de Plantas e Flores da Provincia da Madre de Deus dos Capuchos
TRINDADE, fr. Paulo da. Conquista Espiritual do Oriente. I Parte. Lisboa: Centro de Estudos
Ultramarinos, 1962; II Parte. Lisboa: Centro de Estudos Ultramarinos, 1964; III Parte. Lisboa:
Centro de Estudos Ultramarinos, 1967.
Bibliografia
LALANDA, Maria Margarida. “Clarissas”. In: AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.). Dicionário
de história religiosa de Portugal. Vol. 1, A-C. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000, p. 353-354.
OLIVEIRA, Rozely Meneses Vigas. No Vale dos Lírios: Convento de Santa Mônica de Goa e
o modelo feminino de virtude para o Oriente (1606-1636). 2012. 232f. Dissertação (Mestrado
em História Social) – Faculdade de Formação de Professores, Universidade Estado do Rio de
Janeiro, São Gonçalo.
PENALVA, Elsa. Mulheres em Macau: donas honradas, mulheres livres e escravas (séculos
XVI-XVII). Lisboa: Centro de História de Além-Mar, 2011.
TAVARES, Pedro Vilas Boas. “Caminhos e invenções de santidade feminina em Portugal nos
séculos XVII e XVIII. (Alguns dados, problemas e sugestões)”. Via Spiritus, n.3 (1996), p. 163-
215.