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COM POBREZA, ORAÇÃO, DISCIPLINA E GRANDE REFORMAÇÃO: AS VIDAS

EXEMPLARES DAS FUNDADORAS DO MOSTEIRO DE SANTA CLARA DE


MACAU E A OBSERVÂNCIA FRANCISCANA NO SÉCULO XVII.

Igor Santiago1

Um texto anônimo, produzido por volta do ano de 1690 e localizado na seção de


manuscritos reservados da Biblioteca Nacional de Portugal, chama atenção pelos relatos de vida
que o compõem. Trata-se da Vida, e Vertudes da Venerauel Madre Leonor de S. Francisco
Primeira, e Principal Fundadora desse Mosteiro de Relligiozas de Sancta Clara de Maccao.
Embora o memorial leve no título o nome da comandante da fundação, indicando a pretensão
em se escrever uma obra dedicada a sua vida, a parte que corresponde a biografia de Leonor
condiz a 2 dos 38 fólios do manuscrito. Os relatos que são expostos na obra perseguem um fio
condutor bem delineado e que se destinava a interesses pontuais. Essas narrativas que beiram
os estilos hagiográfico e biográfico devoto trazem à tona alguns modelos de vida religiosa
feminina do período, ao passo em nos permite visualizar alguns traços da presença de mulheres
em territórios de conquista.

Até o presente momento não encontramos trabalhos que tomassem essa fonte como foco
central de análise. Na década de 60 do século XX, fr. Félix Lopes (1902-1990), ao trabalhar na
edição impressa da Conquista Espiritual do Oriente de fr. Paulo da Trindade (c.1570-1651),
cita a existência desse manuscrito.2 Em artigo publicado no ano de 1996, examinando os
caminhos pela busca da fama de santidade por religiosas em Portugal nos séculos XVII e XVIII,
Pedro Vilas Boas Tavares chega a utilizar alguns dados obtidos do documento, sobretudo para
tratar da “oração de quietação” e as práticas meditativas e contemplativas na busca feminina
pela aura santificada.3 O autor chamou atenção para como, crendo nas informações desse
memorial, esse mosteiro de clarissas “notabilizou-se pelo alto nível espiritual” das fundadoras
e “posteriormente professas”, constituindo, assim, em um espaço que desde seus primórdios

1
Mestrando em História Social pelo Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal da Bahia.
Bolsista Capes. E-mail: santiagoigorct@gmail.com.
2
TRINDADE, fr. Paulo da. Conquista Espiritual do Oriente. III Parte. Lisboa: Centro de Estudos Ultramarinos,
1967, p.528.
3
TAVARES, Pedro Vilas Boas. “Caminhos e invenções de santidade feminina em Portugal nos séculos XVII e
XVIII. (Alguns dados, problemas e sugestões)”. Via Spiritus, n.3 (1996), p. 163-215.
conheceu a presença de freiras notáveis nas práticas espirituais exortáveis no meio católico
(TAVARES, 1996, p. 194). Mais recentemente, em 2011, Elsa Penalva publicou a obra
Mulheres em Macau, na qual utilizou e transcreveu o manuscrito na sessão documental de seu
trabalho.4 Atenta às questões sociais que envolveram as mulheres naquela cidade de domínio
português, sobretudo a viuvez e o mercado matrimonial, a autora não descuida da importância
da fundação de um mosteiro feminino em Macau, relembrando como este se constituiu como
uma via de autonomia feminina naquela cidade.

Voltando ao manuscrito, vale ressaltar que nem todas as religiosas tiveram sua biografia
narrada com muitos detalhes, restringindo-se, por vezes, às informações mais básicas como o
nascimento, morte, ano de profissão e filiação. É de se considerar que isso se deu pela falta de
mais informações no cartório do convento à época da redação do texto, aspecto ressaltado na
própria narrativa ao não serem biografadas duas das seis madres fundadoras do mosteiro “pois
faltou nas creaturas por descuido” anotações que dessem conta de suas “uidas e mortes” (Vida
e Vertudes..., fl.75). Além disso, uma outra questão reside na autoria do texto. Por não ter sido
assinado e não possuir marcas de gênero na escrita, é de se considerar a possibilidade de uma
abadessa ou alguma religiosa de sua confiança ter escrito o memorial, uma vez que o acesso ao
tipo de documentação necessária para elaboração desses textos não era permitido a qualquer
religiosa da casa. Uma prática comum no mundo conventual feminino que visava, quando não
a publicação do livro, preservar a memória institucional da casa ou de religiosas falecidas em
odor de santidade, constituindo uma espécie de panteão a sustentar o carisma da própria
comunidade.

Esse tipo de documentação, bem comum nos arquivos conventuais, servia não só para
o controle administrativo da casa, mas também como fontes para futuras obras que fossem
escritas sobre aqueles mosteiros ou sobre as custódias e províncias nas quais estivessem
inseridos. Moreno Pacheco, por exemplo, lembra que esses textos “quase sempre idealizados”,
poderiam servir “tanto para propagar a retidão das comunidades como para sedimentar um
modelo de comportamento para uso interno” (2020, p. 227). Eles poderiam ser lidos no
refeitório, como dietário, durante as refeições realizadas pelas religiosas, além de servir para as

4
PENALVA, Elsa. Mulheres em Macau: Donas Honradas, Mulheres Livres e Escravas. Séculos XVI e XVII.
Lisboa: Centro de História de Além-Mar, 2011.
governantes como ferramenta de monitoramento das que já haviam passado pela casa e as que
ainda ali viviam. De todo modo, elas constituíam uma importante fonte de exemplos virtuosos
para as noviças recém chegadas no mosteiro e para as decanas que assumiam os postos de
instrutoras destas. Sendo assim, partindo das vidas exemplares das fundadoras do mosteiro
macaense, nosso intuito aqui é perceber a conformação de modelos religiosos femininos
virtuosos no interior desse convento a luz da experiência supostamente vivida pelas religiosas
que ali habitaram. Tal empreitada nos possibilita entender quais práticas espirituais eram mais
corriqueiras na experiências daquelas clarissas, ao passo que se torna possível compreender as
possíveis redes de circulação de crenças e ideais religiosos levados a cabo por estas.

As religiosas escolhidas para a fundação partiram do Real Monasterio de la Inmaculada


Concepción de la Madre de Dios, casa feminina franciscana fundada em Manila em 1621.
Chegaram em Macau em novembro de 1633 para iniciarem a fundação do mosteiro, que durou
até abril do ano seguinte, 1634. Autores franciscanos do período chegaram a narrar a chegada
destas e algumas questões sobre as políticas de funcionamento e financiamento daquela casa.
Paulo da Trindade, frade macaense que assistiu a chegada das fundadoras, dedicou um pequeno
capítulo de sua monumental Conquista Espiritual do Oriente para tratar da chegada e instalação
destas clarissas em Macau. Um outro cronista franciscano, que se deteve com mais vagar nas
narrativas que envolveram essas mulheres foi fr. Jacinto de Deos. Em seu Vergel de Plantas e
Flores da Província da Madre de Deos dos Capuchos Reformados, o autor chega a transcrever
cartas trocadas entre as religiosas e os superiores da Ordem, além de elaborar pequenas vitae
das fundadoras do Instituto e de outras religiosas que floresceram nas virtudes dentro do
mosteiro.

Escrevendo em janeiro de 1634 ao frei António da Conceição, Ministro Provincial da


Madre de Deus, em Goa, Leonor de São Francisco dava conta da chegada dela e de suas
companheiras a Macau. Eleita enquanto abadessa na nova fundação, a religiosa afirmava que a
cidade desejava ser “a padroeira” das clarissas e oferecia “hua menstrua ordianaria de sessenta
patacas de esmola”, mas pedia “algumas condiçoens” para tal feito. A primeira era que fossem
aceitas “alguas moças sem dote”, o que a religiosa relutou em aceitar devido à necessidade
desse valor “para a fabrica do Convento” e, além disso, Leonor alertava o superior de que os
administradores da cidade desejavam “entrar à parte” da sua regência no convento. Ela
concedeu a primeira condição com “repugnacia” da segunda, pois “o governo & obediência”
da sua ordem “não podia dar a outrem mais que aos Prelados” (DEOS, 1690, p. 131). De fato,
as autoridades de Macau tinham prometido auxílio a nova fundação, como expresso no Termo
de aceitação das Freiras descalças5, lavrado na Câmara da cidade em 16 de dezembro de 1633,
pouco mais de um mês após a chegada das religiosas, onde deixavam claro que tal feito “era
couza m.to necessaria, e conveniente p.a honra, e gloria de Deos, e p.a credito, e bem desta cid.e
que ella as tomasse debaixo do seu amparo, e fosse sua protectora” (Arquivos de Macau, 1931,
I, p. 175).

Fr. Jacinto de Deus (1612-1681) ao tratar desse convento, chamou atenção para a figura
exemplar da líder da fundação, Leonor de São Francisco. Segundo o cronista, aquela madre
havia bebido do “leyte da reformaçam do Convento de Toledo em companhia da Madre
Jeronyma da Ascensaõ”, tendo fundado a casa clariana da China “na devaçaõ da Conceiçam da
Virgem Mãy de Deos, em altissima pobreza, sem possessaõ alguã, em grande reformaçaõ, muita
oraçam, rigurosa abstinencia, & asperas disciplinas”. Leonor não admitiu “servidoras na
clausura, sendo as proprias senhoras cozinheiras, fazem os mais officios da humildade” (DEOS,
1690, p. 134). A abadessa realizava, assim, o desejo de sua mãe espiritual. Fundou o convento
com a invocação da Conceição e instituiu na casa a Primeira Regra de Santa Clara. As adeptas
a esse estilo de vida, como salientou Maria Margarida Lalanda, diziam buscar “viver em inteira
dedicação a Deus, humildade, penitência, pureza, afastamento do mundo secular e
despojamento de bens materiais pessoais. Além disso, na profissão deveriam realizar os “votos
solenes de obediência, castidade e pobreza em clausura” (LALANDA, 2000, p. 353).

Junto a Madre Leonor de São Francisco (1583-1651), partiram de Manila Madre


Magdalena de la Cruz (1575-1653), eleita ao cargo de vigária, Madre Belchiora da Trindade
(1611-1652) como mestra das noviças, Madre Joanna da Conceição (†1634) enquanto rodeira
e porteira, Madre Clara de São Francisco, ocupando o cargo de vigária do coro e Madre
Margarida da Conceição sendo preferida a sacristã e torneira. Além delas, duas meninas foram
levadas para fazerem profissão no mosteiro. Nos primeiros anos de funcionamento da casa,
essas mesmas mulheres circularam entre esses cargos e formaram, assim, uma espécie de

5
Arquivos de Macau [1931], «Termo de aceitação das Freiras descalças, p.a esta Cid.e fer fua protectora e as ajudar
para sua fustentação na ordinãcia - 1633» de 16 de dezembro de 1633, 1° série, vol. III, n. 4, p. 175-176.
conjunto de modelos que as novas integrantes daquela família conventual poderiam se espelhar.
Suas vidas foram bem detalhadas no manuscrito aqui trabalhado, sendo exortadas enquanto
fieis seguidoras de Jerónima de la Asunción e piedosas instrutoras.

Cabe aqui uma breve sondagem do cotidiano idealizado por essas freiras na condução
das atividades do convento e do modelo de religiosas que buscaram instruir as noviças que
passaram pelo mosteiro em seus governos. Cotejaremos, junto ao memorial do mosteiro, uma
pequena vitӕ de Magdalena de la Cruz, localizada no primeiro tomo de sua obra Floresta
Franciscana de Ilustraciones Celestiales, escrita por seu confessor fr. António de Santa Maria
Caballero (1602-1669).

Analisando os textos escritos pelos frades da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho
sobre o processo de fundação do Convento de Santa Mônica de Goa, primeiro mosteiro
feminino erigido no ultramar português, Rozely Oliveira chamou atenção para o recorrente uso
da figura de suas fundadoras “como exemplo de vida santa que se levava dentro dos muros do
claustro”. Dessa forma, continua a autora, o convento “seria reformador de um modelo de
virtude a ser seguido pelas mulheres cristãs goesas, fossem elas cristãs-velhas ou convertidas
(OLIVEIRA, 2012, p. 157). Essa tática cumpria uma dupla função. De um lado exortava a vida
cotidiana no convento servindo de exemplo para as mulheres seculares e símbolo de prestigio
a capital do Estado da Índia, ao passo que conduzia modelos específicos e costurados aos
princípios reformadores tridentinos dentro do próprio mosteiro, visando normatizar as condutas
das próprias residentes daquela casa. Não obstante, no caso conventual macaense, o uso dos
estilos de vida observados nas madres fundadoras visava também incutir traços específicos da
espiritualidade da Ordem naquele território e na região que o circundava.

“Entre as flores de Hyeronima, e entende-sse as Nouiças, que a que mais agradaua, hera
a morenica que hera Leonor”. Nascida em Toledo, no ano de 1583, professou em 1603 no Real
Monasterio de Santa Isabel de los Reyes, mesmo mosteiro que Jerónima viveu na Espanha. Ali
teve a madre como sua instrutora no noviciado e, após a profissão, enquanto companheira
espiritual. Leonor “hera toda Espirito” e “com seu corpo era muy áspera, e riguroza”. Toda sua
vida dormiu em uma tábua “com huma esteira uelha, e sua almofada, um duro pão”, além de
jejuar “de tal modo que nem nos Domingos deixaua o jejum”. Nessa prática foi bem austera e
extremada, jejuando apenas a “pão e agoa, e nos mais dias comia muito pouco”. Em Manila
exerceu o ofícios de vigária, mestra das noviças e abadessa “sendo nisso hum retrato da
Matriarcha Santa Clara”, pois era “extremada em sua pobreza” e “mui pontual e zeloza da
observância Regular, e por qualquer transgressão publica da Regra, ou Constituiçoes,
penitenciaua as súbditas, e depois hia a uer aquella que hauia penitenciado, e a consolava muy
amorosamente” (Vida e Vertudes..., fl. 57). Sua imagem foi, de certa forma, consolidada
enquanto exímia comandante do grupo e assertiva em suas decisões. Articulou a fundação
conventual com base no estilo de vida perpetuado por sua antecessora e instruiu suas filhas para
observarem a Regra, prezarem a humildade, simplicidade e pobreza, cumprindo os votos de
obediência, castidade e clausura.

Caminho similar seguiu uma outra pupila de Jerónima de la Asunción, embora tenha
saído de um outro convento em Espanha. Magdalena de la Cruz nasceu em Pinto, a “tres legoas
de Madrid”, no ano de 1575. Seu pai era chamado António Gonzales de Ávila, “notario de la
santa Iquisicion” e sua mãe Gerónima Romana, “personas virtuosas y muy deuotas de la Orden
de N. P. S. Francisco” (Svmario..., fl. 4r) Aos quatro anos de idade já lia “experramente em
qualquier libro”, tendo mostrado, desde cedo, vocação para a vida conventual. Quando pequena
eram “seus brincos ajuntar meninas e meninos de seu baixo aos grandes ensinaua a doutrina
cristã” (Vida e Vertudes..., fl. 58r). Chegou a entrar em um convento de bernardas, mas sua
vocação a levou ao de Cubas de la Sagra, pertencente à família franciscana reformada, onde
viveu humildemente e teve grande destaque devocional. Jerónima de la Asunción a escolheu
para a fundação do convento em Manila e em 1633, já naquela paragem, ela partiu com outro
grupo de freiras para fundar uma casa em Macau. Ali sua carreira enquanto mística escritora
ganharia contornos mais elevados. Já na nova casa conventual, estando uma vez “comiendo con
la comunidad en el refertorio en buena disposicion repentinam[en]te la sobreuino un accidente
que la dexo mortal”. Nesse momento de arrebatamento súbito, teve uma“formidable vission”
que se caracterizou como início de um processo de aguçamento na escrita, guiada pelo divino,
dos mistérios da Imaculada Conceição (Svmario..., fl. 11). Foi impulsionada pelo seu confessor
a escrever sobre esses mistérios, o que resultou na Floresta Franciscana de Ilustraciones
Celestiales, produzida entre os anos de 1640 e 1647.

Madre Belchiora da Trindade (1611-1652), nascida em Manila em 1611 e professa no


convento filipino, passou a nova fundação ocupando o cargo de mestra das noviças, tendo
apenas 22 anos de idade. Nesse ofício, atuou “com tanta prudencia, discripção, e amor que mais
parecia May Amoroza, e Caritatiua do que mestra de disciplina Regular”, ensinando “mais com
o exerciçio das vertudes, do que com palauras e rigor, sendo sua uida e nos exercícios da
Religiao huma perpetua lição sua pessoa (Vida e Vertudes..., fl. 60r). Além disso,

“ensinaua a todas suas nouiças, não só o quotidiano exerciçio da Religião,


senão o seguimento da uida espiritual ensinando a meditar, orar e contemplar
e isto com tanta suauidade, e amor que atrahia a sua deuoção os ânimos e
vontades de todas. Em reprehender, e castigar era tão suaue e branda que para
não chegar a castigar ella mesma buscaua medianeiras que so licitassem o
perdão para as defeituozas. Foi sempre muy zelloza, e diligente em acudir com
suas Nouiças a tempo que lhe restaua, em ensinar a rezar, cozer e laurar e em
rezar o offiçio de nossa Senhora o Coros, e os Psalmos penitenciaes
mostrando-sse em tudo verdadeira filha de nossa Madre Santa Clara cuias
vertudes e exemplos bebeo como em fonte perene, no seguimento das pizadas
da segunda Clara no espiritu a muy Santa, e venerauel Madre Hyeronima da
Asumpção” (Vida e Vertudes..., fl. 60r).

Leonor, Magdalena e Belchiora foram representadas, no memorial, como os principais


exemplos de mulheres virtuosas e modelos de instrução feminina no convento. As informações
sobre as outras religiosas fundadoras foram bem parcas, devido à falta de documentação no
cartório da casa. Madre Joanna da Conceição (†1634), ocupou os cargos de rodeira e porteira,
mas faleceu poucos meses após a chegada na cidade de Macau, em março de 1634. Seu
falecimento foi muito sentido “assim das Companheiras, como de todo pouo, por ser Religiosa
de singular espiritu, e solida Vertude, de quem geralmente auia tanta satisfação”. Joanna “tinha
licença para comungar todos os dias” e no seu sepultamento “concorreo muita gente”, entre elas
“o gouernador, Ordens e clerezia” (Vida e Vertudes..., fl. 60v). As vidas das madres Margarida
da Concepção e Clara de São Francisco não foram desenvolvidas na narrativa por conta da falta
de informação documental sobre elas, mas “as memorias que deixarão neste Mosteiro forão de
grande zello, e feruor com que ajudarão a plantar este jardim, para diliçias do supremo Rey da
gloria”. Sabemos apenas que voltaram para Manila, juntamente com Magdalena de la Cruz, em
1641, após a aclamação de João IV (Vida e Vertudes..., fl. 61r).
Percebemos nesses breves relatos o apelo aos princípios da Observância Franciscana
em voga na época. Esse movimento espiritual, iniciado em finais do séculos XIV, ganhou
impulso em Portugal e na Espanha entre finais do século XV e início do século XVI. Os
observantes ou capuchos, como foram conhecidos os frades e as freiras do ramo reformado,
diziam buscar observar integralmente a regra de vida franciscana, praticando “a austeridade e a
pobreza na simplicidade dos edifícios e no passadio quotidiano, privilegiando a oração mental
e a pregação popular” (MOREIRA, 2000, p. 274). Dessa forma, advogavam serem os mais
legítimos herdeiros do espírito do patriarca São Francisco, levando a cabo um estilo de vida
mais voltado a humildade e a santa pobreza. Na Primeira Regra de Santa Clara, regimento que
as clarissas observantes seguiam, ficava claro a recomendação em adotar os princípios
exortados por S. Francisco, pois “as irmans nenhuma cousa tomem, nem aproprie a sy, nem
casa, nem lugar, nem cousa alguma; mas, como peregrinas, & estrangeiras neste mundo,
servindo ao Senhor em pobreza, & humildade” (Constituiçoens, 1639, p. 12).

As religiosas que partiram para a fundação de Macau levaram adiante esses princípios
que diferenciava essa Ordem das demais, segundo as narrativas de cronistas e escritores do
Instituto. Leonor de São Francisco implementou a reforma nessa casa através da adoção da
Primeira Regra, mas também por meio de preceitos espirituais que aprendeu junto a Jerónima
de la Asunción, em Toledo e em Manila. No novo convento, ficou expresso, através dos relatos
das que ali habitaram, o recorrente uso do argumento da pobreza tanto para inspirar outras a
seguir aquele caminho como para conseguir as licenças e financiamentos necessários para a
construção do mosteiro e, posteriormente, manutenção do mesmo. A cada cinco anos, por
exemplo, as freiras deveriam aceitar uma professa sem dote em troca de “hum candorim por
cento” anual, que a cidade oferecia para o sustento da comunidade, além da esmola
disponibilizada para a construção da nova habitação das freiras (Arquivos de Macau, 1931, I,
p. 177). No que diz respeito às vivências e as práticas espirituais empreendidas por essas
mulheres, os jejuns, as mortificações corporais e a oração mental se constituem como traços
mais recorrentes entre elas.

Ainda que circunscritas ao espaço conventual, essas mulheres acabaram servindo de


modelos exemplares para suas próprias irmãs, mas, sobretudo, para o público extramuros. A
questão da disciplina e da instrução da norma em sociedades católicas, ou que se pretendiam
assim, ganhou impulso com esses ambientes que diziam buscar uma vida inteiramente dedicada
a Deus e as obras da salvação. Captar detalhes sobre as realidades vividas por essas mulheres
não é tarefa fácil, uma vez que boa parte das informações sobre elas que chegam a nós,
perpassam o plano da idealização e do discurso masculino sobre o corpo feminino. Ainda assim,
podemos perceber quais os modelos empreendidos ou sugeridos para a vida nesses espaços. No
que se refere a Ordem de Santa Clara e seus conventos em territórios ultramarinos, há de se
considerar o peso em que a Ordem dos Frades Menores exercia na construção dos caminhos
espirituais destas. Ainda que estivessem submetidas, por Regra, aos franciscanos, as clarissas
possuíam, dentro dos espaços conventuais que ocuparam, uma certa autonomia e liberdade na
condução de suas atividades. Por vezes foram alvo da vigilância rigorosa e, até mesmo, dos
tribunais inquisitoriais. Suas imagens foram utilizadas ou idealizadas por seus confrades de
modo que contribuíssem na defesa da Ordem em territórios de conquista, mas também na
normatização das condutas e dos costumes dentro e fora dos muros conventuais.

Fontes

ANTT, Manuscritos da Livraria, n° 726 – Svmario breve de la vida y virtudes de la sierua de


Dios Soror Maria Magdalena de la Cruz Religiosa de la Orden de S.ta Clara Fundadora de
los Monasterios de Manila, y Machan en el Asia. In: CRUZ, Soror Maria Magdalena de la.
Floresta Franciscana de Ilustraciones Celestiales, fls. 3-16.

Arquivos de Macau. Macau: Imprensa Nacional, 1929/1931. 1° Série, vol. 3.

BNP, Manuscritos Reservados, Cód. 178 – “Vida, e Vertudes da Venerauel Madre Leonor de
S. Francisco Primeira, e Principal Fundadora desse Mosteiro de Relligiozas de Sancta Clara
de Maccao”, fls. 56-75.

Constituiçoens geraes para todas as freiras e religiosas sogeitas à obediência da Ordem de N.


P. S. Francisco, nesta familia Cismontana: de novo recopiladas das antigas; e acrescentadas
com acordo, consentimento, & approvação do Capítulo Geral, celebrado em Roma a 11 de
Junho de 1639. Lisboa: Na Officina de Miguel Deslandes, 1693.

DEUS, fr. Jacinto de. Vergel de Plantas e Flores da Provincia da Madre de Deus dos Capuchos

TRINDADE, fr. Paulo da. Conquista Espiritual do Oriente. I Parte. Lisboa: Centro de Estudos
Ultramarinos, 1962; II Parte. Lisboa: Centro de Estudos Ultramarinos, 1964; III Parte. Lisboa:
Centro de Estudos Ultramarinos, 1967.

Bibliografia

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de história religiosa de Portugal. Vol. 1, A-C. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000, p. 353-354.

MOREIRA, António Montes. “Franciscanos”. In: AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.).


Dicionário de história religiosa de Portugal. Vol. 2, C-I. Lisboa: Círculo de Leitores, 2000, p.
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OLIVEIRA, Rozely Meneses Vigas. No Vale dos Lírios: Convento de Santa Mônica de Goa e
o modelo feminino de virtude para o Oriente (1606-1636). 2012. 232f. Dissertação (Mestrado
em História Social) – Faculdade de Formação de Professores, Universidade Estado do Rio de
Janeiro, São Gonçalo.

PACHECO, Moreno Laborda. A mágoa do esquecimento: escrita e memória conventual no


Portugal do século XVII. Salvador: EDUFBA, CHAM, 2020.

PENALVA, Elsa. Mulheres em Macau: donas honradas, mulheres livres e escravas (séculos
XVI-XVII). Lisboa: Centro de História de Além-Mar, 2011.

TAVARES, Pedro Vilas Boas. “Caminhos e invenções de santidade feminina em Portugal nos
séculos XVII e XVIII. (Alguns dados, problemas e sugestões)”. Via Spiritus, n.3 (1996), p. 163-
215.

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