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Editor: Vinicius Musselman Pimentel

Autores: Emilio Garofalo Neto, Heber Campos Jr, Jonas Madureira e


Vinicius Musselman Pimentel
Transcrição: Débora Oliveira e Karina Vilete.
eBook: João Fernandes
Todos os textos foram generosamente cedidos pelos autores e utilizado com
permissão. A introdução, “Somos todos apologetas”, e o capítulo 2, “O Mal e
o Mundo Sofrido”, foram adaptados do apêndice do livro “O Triunfo da Fé”
de Heber Carlos de Campos Junior (São José dos Campos, SP: Fiel, 2012). O
capítulo 1, “A Graça e o Mundo Caído”, foi adaptado de uma exposição de
Vinicius Musselman Pimentel. O capítulo 3, “O Prazer e o Mundo
Hedonista” por Emilio Garofalo Neto foi adaptado da revista iPródigo nº 1 –
A Parábola do Filho Pródigo (Brasília: iPródigo, 2011).
PREFÁCIO

O século atual é uma feira de cosmovisões. A hegemonia cultural da qual a


fé cristã desfrutou alguns séculos atrás afundou, arrastada pela âncora da
implausibilidade em um mar de pluralidade. Para a mente secular, o
cristianismo é somente um dos inúmeros caminhos existentes. Hoje, em uma
mesma classe da universidade, encontraremos ateus militantes, muçulmanos
secularizados, marxistas culturais, deístas libertários, budistas
ocidentalizados e evangélicos não praticantes.
Neste contexto, os jovens cristãos são bombardeados por cosmovisões
concorrentes a todo momento. A cada clique na internet, a cada série na TV,
a cada aula na faculdade, eles estão em guerra espiritual e intelectual. A
máquina da propaganda moderna afirma “Viva a diferença”, mas nas
entrelinhas pode-se ler “enquanto não for diferente do que pensamos.”
Ironicamente, elas desafiam os jovens a serem diferentes enquanto buscam
conformá-los a uma subcultura que se expressa por suas mercadorias de
produção em massa. “Seja diferente, use nossos produtos (como milhões de
outros jovens)”. “Diferença” no mundo é um conformismo a novos moldes.
Infelizmente, poucas igrejas ou ministérios de jovens preparam o
adolescente e o jovem para o que enfrentarão, preparando-lhes para o
desafio apologético e evangelístico que está à frente. Só que esse não é um
problema não novo. Paulo, há quase dois milênios alertou os cristãos de
Roma para que eles não vivessem “conforme os padrões deste mundo”, mas
que deixassem “que Deus os transforme pela renovação da mente”. Só dessa
forma poderiam viver experimentalmente “a boa, agradável e perfeita
vontade de Deus” (Rm 12.2, NAA).
Hoje o chamado continua. O mundo continua a tentar moldar nosso
pensamento e nós somos continuamente chamados a rejeitar os padrões do
mundo e sermos transformados por Deus, sua Palavra e seu Evangelho.
Mais do que ter uma divisão entre o sagrado e o secular, entre o que
aprendemos na igreja e o que aprendemos na academia, é enxergar todas as
coisas pela perspectiva dos olhos de Deus, ler todas as linhas pela
compreensão da Escritura. É ter uma visão de mundo, uma cosmovisão
genuinamente cristã, bíblica e evangélica (no melhor sentido do termo) pela
qual podemos analisar todas as coisas. Como C. S. Lewis bem expressou:
“Creio no cristianismo assim como creio que o Sol nasceu, não apenas
porque eu o vejo, mas porque por meio dele eu vejo tudo mais.”
Vendo a carência nesta área e buscando equipar os jovens cristãos a
defenderem e testemunharem sua fé, o Ministério Fiel compreendeu que
seria importante estimular a conversa sobre o assunto através de uma
conferência. Sendo assim, dos dias 31 de maio a 3 de junho de 2018,
acontecerá a Conferência Fiel Jovens 2018 com o tema “Inconformados” e
os preletores Emilio Garofalo, Jonas Madureira, Heber Campos Jr., Mack
Stiles e Vinícius Musselman.
Para já estimular a reflexão, consideramos que seria útil aos jovens
aquecerem suas mentes através de um livreto preliminar. Este material busca
investigar a maldade e a bondade, o sofrimento e o prazer, o conhecimento e
a tolice que há no mundo sob a lente da Escritura com abordagens diferentes
e complementares (expositiva, bíblico-teológica filosófica e apologética).
Na introdução, Heber Campos Jr. analisa 1 Pedro 3.15-16 e argumenta
como todo cristão é chamado a se preparar para a obra apologética e se
engajar na defesa da fé. Com este incentivo, o capítulo 1, escrito por
Vinicius Musselman Pimentel, estimula o leitor a olhar os efeitos da
depravação total e da graça comum neste mundo caído com base no
exemplo paradigmático de Caim e seus descendentes em Gênesis 4. Essa
cosmovisão ajudará a analisar averiguar a produção do conhecimento
humana sob um realismo bíblico e discernimento sábio.
No capítulo 2, Jonas Madureira analisa os efeitos da queda na mente
humana, levando o homem à tolice, e argumenta que, para o cristão, a
inteligência humilhada é uma condição que não pode ser evitada. No
capítulo 3, Heber Campos Jr. trata sobre o problema do mal e o problema do
bem, interagindo com os argumentos ateístas contra a fé cristã. E no capítulo
4, Emilio Garofalo Neto trata sobre o prazer e o lazer sob uma cosmovisão
bíblica. Por fim, os dois apêndices trazem transcrições de duas conversas
entre Vinicius, Heber e Jonas e que lidam com o jovem e os desafios da
sociedade secularizada e da ideologia de gênero.
É nossa esperança que motivado pelas misericórdias do evangelho, o leitor
deste libreto possa renovar sua mente pela Palavra de Deus. Pois, só assim,
será inconformado com o mundo e poderá ser transformado para viver a
boa, agradável e perfeita vontade de Deus.
INTRODUÇÃO

SOMOS TODOS APOLOGETAS


HEBER CAMPOS JR.*
Somos testemunhas em um mundo cético para com Deus e, como tais,
devemos nos portar como apologetas, defensores da verdade revelada. O
apóstolo Pedro escreveu que deveríamos estar “sempre preparados para
responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança que há em vós,
fazendo-o, todavia, com mansidão e temor” (1Pe 3.15-16). De imediato,
podemos fazer três observações ao texto.
PREPARADOS PARA RESPONDER
Em primeiro lugar, o cristão precisa constantemente estar preparado para
responder (apologia) aos questionamentos do mundo. O cristão é chamado a
conhecer a Bíblia Sagrada para ser um defensor de sua mensagem. O crente
que não pondera sobre questões difíceis estará sem defesa diante das
perguntas de um cético inteligente. Assim como Paulo, o cristão está
“incumbido da defesa [apologia] do evangelho” (Fp 1.16). Uma fé que não
questiona em busca de respostas sólidas é como um corpo sem anticorpos,
despreparado para os ataques doentios dos inimigos de Deus.
William Lane Craig faz uma crítica ao ministério que muitas igrejas
realizam com os seus jovens:
Em vez de fornecer a eles um bom treinamento na defesa da fé cristã,
nós ficamos envolvidos em lhes proporcionar experiências de louvor
carregadas de emoção, ficamos nos preocupando com suas
necessidades e em entretê-los. Não é à toa que eles se tornam presas
fáceis para um professor que racionalmente ataca a sua fé.1
Precisamos estar mais preparados para esses ataques à nossa fé.
Parte do preparo para esse tipo de conversa religiosa é perceber que todos
discutimos a partir de pressuposições. Ninguém argumenta a partir de
neutralidade. Toda a nossa interpretação da vida, nossa leitura do mundo
(cosmovisão), influencia como argumentamos em prol daquilo que cremos.
Ou seja, partimos de nossa fé para defender nossa fé. Isso é inevitável.
Porém, é tremendamente libertador saber que não só podemos como de
vemos argumentar a partir de verdades bíblicas. Como diz John Frame, isso
seria “santificar a Cristo como Senhor em nosso coração” (cf. 1Pe 3.15), isto
é, ter a verdade de Deus como nosso compromisso de coração, nossa
confiança última na qual nos colocamos para defender a verdade de Deus.2
O reconhecimento de que não somos neutros também é revelador para
melhor entendermos o cético. Ele também precisa ter suas pressuposições
expostas e consequentemente avaliadas. Assim como crentes buscam pela
razão de sua fé, os céticos precisam aprender a descobrir a fé por detrás de
sua razão. Afinal, todo questionamento contra o cristianismo parte de outro
pressuposto de fé, de outro conjunto alternativo de crenças. Dizer “não pode
haver só uma religião verdadeira” é um ato de fé, algo que não se prova
empiricamente. Quando os céticos são confrontados com as crenças por
detrás de seus questionamentos, perceberão que seus argumentos não são tão
sólidos quanto parecem. 3
RAZÃO DA ESPERANÇA
A segunda observação sobre o texto de 1 Pedro 3 é que nossa apologia
precisa dar “razão da esperança”. Isto é, sua esperança não é infundada, mas
possui evidências, provas que mostram que a fé cristã é razoável.4 Jesus
deixou evidências de sua ressurreição (Jo 20.24-31; 1Co 15.1-11), Paulo
apresentou evidências de seu apostolado (Gl 1.11-12; 2Co 12.11-12).
A Escritura nunca pede aos seus leitores que creiam em algo irracional.
Por isso o cristão demonstra que sua fé é racional, faz sentido não só para
ele, mas para qualquer um que se rende à revelação divina.
Suas razões não só defendem o cristianismo de ataques, mas também
atacam as fraquezas do ceticismo. Essa observação é importante. A Bíblia
revela a insensatez de quem afirma não haver Deus (Sl 14.1; Rm 1.19-22). O
texto de Romanos fala de raciocínios nulos, obscurecidos, loucos. E o
próprio Paulo encoraja-nos a “destruir” fortalezas, “anular” sofismas (2Co
10.4-5), verbos que apontam para essa iniciativa bélica. Parte da apologética
cristã é demonstrar a fragilidade dos argumentos e das alternativas céticas.
Timothy Keller exemplifica como o cristão contra-ataca a alegação de que
o cristianismo tem danificado a sociedade. Ele analisa três estratégias que
céticos têm usado contra o cristianismo. A primeira é a de banir a religião.
Muitos argumentam que a religião é responsável por muita injustiça, é
reflexo de um povo menos desenvolvido. Dizem que com o crescimento
tecnológico, com o avanço da humanidade, o ser humano precisaria menos e
menos da religião. Porém, Keller rebate essa tese da secularização
demonstrando-a como falsa e contraditória. Falsa porque o crescimento
religioso, e especificamente do cristianismo, é assustador em todo o mundo
(principalmente no hemisfério sul). Contraditória porque o século XX
presenciou mais intolerância por parte daqueles que julgaram que a religião
é intolerante (U.R.S.S., China comunista). 5
A segunda estratégia dos céticos contra o cristianismo é a de relativizar a
religião. Essa estratégia tem ganhado muitos adeptos. “Todas as religiões
ensinam basicamente a mesma coisa e, portanto, são igualmente válidas”,
dizem alguns. Outros entendem que cada religião vê parte da verdade e
ilustram essa alegação com a anedota dos cegos descrevendo o elefante de
formas diferentes, conforme a parte do elefante que apalpavam. Keller refuta
esse raciocínio demonstrando a inverdade de que as grandes religiões
ensinam as mesmas coisas. Além disso, é tão mesquinho e arrogante falar
isso de todas as religiões quanto afirmar que a sua é a correta. Quanto à
ilustração dos cegos, só pode dizer que cada religião vê parte do elefante
quem vê o elefante por inteiro. A alegação é novamente arrogante. Por
último, ela é contraditória ao tentar relativizar toda e qualquer religião pois
tal projeto é calcado numa opinião absoluta.6
A terceira estratégia dos ateus e agnósticos contra o cristianismo é a de
privatizar a religião, mantê-la uma questão de preferência individual, válida
apenas na esfera privada.7 Essa que é a mais sutil das estratégias visa tirar o
cristianismo do debate público. “Discussões políticas e sociais devem ser
feitas secularmente”, dizem eles. Keller responde a essa premissa afirmando
que é impossível que um discurso público sobre qualquer tema (ex.:
casamento e divórcio) seja desprovido de uma base religiosa. Todo juízo
moral requer uma base religiosa. Afinal, todo ser humano é inerentemente
religioso. Isto não significa crença num Deus pessoal (o Zen Budismo não
crê), nem crença no sobrenatural (o Hinduísmo fala de uma realidade
espiritual dentro da material). Religião é qualquer conjunto de crenças que
explicam a vida (cosmovisão). Sendo assim, até o discurso “secular” tem
uma cosmovisão implícita.8
Esses três exemplos de apologética na ofensiva por parte de Tim Keller
demonstram a razoabilidade da esperança cristã em vista da irracionalidade
das outras alternativas.
COM MANSIDÃO E TEMOR
Pedro é muito cauteloso ao encorajar-nos na tarefa de apologetas quando
explicita o modo como devemos fazê-lo: “com mansidão e temor”. Isto
significa que o trabalho de um apologeta deve proceder de um espírito
humilde e de total dependência de Deus. Essa advertência se faz necessária
por pelo menos duas razões. A primeira é o fato de Deus não tolerar o
soberbo. Ele se agrada dos mansos, dos humildes. Você não deve ser
briguento nem convencido de que tem argumentos irrefutáveis para vencer
qualquer debate. Ele quer que você se lembre de que você não é nenhuma
sumidade de pessoa.
“Irmãos, reparai, pois, na vossa vocação; visto que não foram
chamados muitos sábios segundo a carne, nem muitos poderosos, nem
muitos de nobre nascimento; pelo contrário, Deus escolheu as coisas
loucas do mundo para envergonhar os sábios e escolheu as coisas
fracas do mundo para envergonhar as fortes; e Deus escolheu as coisas
humildes do mundo, e as desprezadas, e aquelas que não são, para
reduzir a nada as que são; a fim de que ninguém se vanglorie na
presença de Deus.” (1Co 1.26-29)
A segunda razão que torna necessária a advertência de Pedro é o temor do
Senhor. Esse temor confia que Deus não desampara os seus filhos quando
estão testemunhando dele nesse mundo. O próprio Jesus Cristo prometeu
que Deus colocaria em nossas bocas as palavras certas quando confrontados
por autoridades:
“Assentai, pois, em vosso coração de não vos preocupardes com o que
haveis de responder; porque eu vos darei boca e sabedoria a que não
poderão resistir, nem contradizer todos quantos se vos opuserem.” (Lc
21.14-15)
Nossa defesa da fé nesse mundo, portanto, deve ser feita com humildade e
também com confiança.

1 William Lane Craig, Em Guarda: defenda a fé cristã com razão e precisão


(São Paulo: Edições Vida Nova, 2011),
2 John Frame, Apologética para a glória de Deus (São Paulo: Cultura Cristã,
2010), 15-17.
3 Timothy Keller, A Fé na Era do Ceticismo (Rio de Janeiro: Editora
Elsevier/Campus, 2009), [xvii-xix].
4 Craig, Em Guarda, 19.
5 Keller, A Fé na Era do Ceticismo, 4-6.
6 Keller, A Fé na Era do Ceticismo, 6-11.
7 Para uma excelente resposta cristã a essa tendência moderna veja Nancy R.
Pearcey, Verdade Absoluta: resgatando o cristianismo de seu cativeiro
cultural (Rio de Janeiro: CPAD, 2006).
8 Keller, A Fé na Era do Ceticismo, 11-15.
* Heber Campos Jr. é bacharel em Teologia pelo Seminário Teológico
Presbiteriano JMC, mestre em História da Igreja pelo Centro Presbiteriano de
Pós-graduação Andrew Jumper e doutor em Teologia Histórica pelo Calvin
Theological Seminary (EUA). É pastor na Igreja Presbiteriana Aliança (SP),
professor em diversos seminários e autor do livro “Tomando decisões
segundo a vontade de Deus” (Fiel) e “Triunfo da Fé” (Fiel).
CAPÍTULO 1

A GRAÇA E O MUNDO CAÍDO

VINICIUS MUSSELMAN PIMENTEL*


Como você vê o mundo? Como você enxerga o ser humano? A sociedade?
Os avanços científicos? As produções artísticas? Você entende que os bons
dias já passaram e as coisas estão indo de mal a pior? Ou entende que a
humanidade está progredindo, evoluindo rumo a um futuro maravilhoso?
Este mundo está repleto de maldade ou cintilando em beleza? É melhor
expresso pelos terrores da guerra ou pelo sorriso de um bebê? Se você fosse
pintar o mundo em um quadro, que tons você usaria? Seria um quadro
mórbido? Seria um quadro vívido?
É bem provável que sua resposta irá depender de sua experiência de vida.
Imagino que a resposta de um investigador criminal seja bem diferente da
resposta de um sorveteiro, ou de um órfão de guerra, ou de um garoto que
acabou de voltar da Disney. Então, para termos um quadro fidedigno do
mundo, precisamos olhar de fora, tanto de perto quanto de longe. E creio
que Deus nos dá, através da Bíblia, um retrato realista deste mundo. A
Bíblia certamente não esconde as mazelas desta terra. Ela está cheia de
relatos de miséria, pobreza, doenças, estupros, traição, homicídios, guerras.
Em uma das cenas mais tenebrosas relatadas pela Bíblia, nós podemos ler
sobre pais e mães que comiam seus filhos por causa da fome advinda de um
cerco.
Porém, a Escritura também não esconde as alegrias e belezas deste mundo.
A vivacidade de um jardim frondoso em meio ao deserto, a alegria do
nascimento do primeiro filho de uma mãe estéril, a fina harmonia de
instrumentos tocados com proeza, a abundância de sabores de um banquete
real, o heroísmo supremo de dar a própria vida em favor de seus amigos.
Sendo assim, como alguém que lê a Bíblia deveria ver o mundo? Como
um cristão deveria ver o mundo? Alguns cristãos dizem: “O ser humano é
totalmente depravado e o mundo jaz no maligno; não há nada de bom nele –
tudo está contaminado pelo pecado e, dele, nada se aproveita. Cuidado com
a vã filosofia e ciência humana. Nós não somos deste mundo! O que nós
temos a ver com eles?” Outros dizem: “O ser humano foi criado à imagem
de Deus, então há verdade em seus desenvolvimentos intelectuais e beleza
em suas produções artísticas. Deus está agindo através de todos os homens,
em todos os lugares – sejam religiosos orientais, pensadores agnósticos ou
cientistas ateus. Cuidado para não cair em um novo monasticismo. Não
estamos nós neste mundo?”
Para qual dos dois grupos você se inclina mais? Creio que há um meio
termo entre esses dois grupos, esses dois extremos, o que quero chamar de
realismo bíblico. Podemos observar isso em Gênesis 4, o qual nos apresenta
dois exemplos da graça de Deus no mundo: Deus sendo gracioso com o
mundo (v. 1-16) e Deus sendo gracioso através do mundo (v. 17-26).
1 Coabitou o homem com Eva, sua mulher. Esta concebeu e deu à luz a
Caim; então, disse: Adquiri um varão com o auxílio do SENHOR. 2
Depois, deu à luz a Abel, seu irmão. Abel foi pastor de ovelhas, e Caim,
lavrador. 3 Aconteceu que no fim de uns tempos trouxe Caim do fruto da
terra uma oferta ao SENHOR. 4 Abel, por sua vez, trouxe das primícias
do seu rebanho e da gordura deste. Agradou-se o SENHOR de Abel e de
sua oferta; 5 ao passo que de Caim e de sua oferta não se agradou. Irou-
se, pois, sobremaneira, Caim, e descaiu-lhe o semblante. 6 Então, lhe
disse o SENHOR: Por que andas irado, e por que descaiu o teu
semblante? 7 Se procederes bem, não é certo que serás aceito? Se,
todavia, procederes mal, eis que o pecado jaz à porta; o seu desejo será
contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo.
8 Disse Caim a Abel, seu irmão: Vamos ao campo. Estando eles no
campo, sucedeu que se levantou Caim contra Abel, seu irmão, e o matou.
9 Disse o SENHOR a Caim: Onde está Abel, teu irmão? Ele respondeu:
Não sei; acaso, sou eu tutor de meu irmão? 10 E disse Deus: Que fizeste?
A voz do sangue de teu irmão clama da terra a mim. 11 És agora, pois,
maldito por sobre a terra, cuja boca se abriu para receber de tuas mãos o
sangue de teu irmão. 12 Quando lavrares o solo, não te dará ele a sua
força; serás fugitivo e errante pela terra. 13 Então, disse Caim ao
SENHOR: É tamanho o meu castigo, que já não posso suportá-lo. 14 Eis
que hoje me lanças da face da terra, e da tua presença hei de esconder-
me; serei fugitivo e errante pela terra; quem comigo se encontrar me
matará. 15 O SENHOR, porém, lhe disse: Assim, qualquer que matar a
Caim será vingado sete vezes. E pôs o SENHOR um sinal em Caim para
que o não ferisse de morte quem quer que o encontrasse. 16 Retirou-se
Caim da presença do SENHOR e habitou na terra de Node, ao oriente do
Éden.
17 E coabitou Caim com sua mulher; ela concebeu e deu à luz a
Enoque. Caim edificou uma cidade e lhe chamou Enoque, o nome de seu
filho. 18 A Enoque nasceu-lhe Irade; Irade gerou a Meujael, Meujael, a
Metusael, e Metusael, a Lameque. 19 Lameque tomou para si duas
esposas: o nome de uma era Ada, a outra se chamava Zilá. 20 Ada deu à
luz a Jabal; este foi o pai dos que habitam em tendas e possuem gado. 21
O nome de seu irmão era Jubal; este foi o pai de todos os que tocam
harpa e flauta. 22 Zilá, por sua vez, deu à luz a Tubalcaim, artífice de
todo instrumento cortante, de bronze e de ferro; a irmã de Tubalcaim foi
Naamá.
23 E disse Lameque às suas esposas:
Ada e Zilá, ouvi-me;
vós, mulheres de Lameque, escutai o que passo a dizer-vos:
Matei um homem porque ele me feriu;
e um rapaz porque me pisou.
24 Sete vezes se tomará vingança de Caim,
de Lameque, porém, setenta vezes sete.
25 Tornou Adão a coabitar com sua mulher; e ela deu à luz um filho, a
quem pôs o nome de Sete; porque, disse ela, Deus me concedeu outro
descendente em lugar de Abel, que Caim matou. 26 A Sete nasceu-lhe
também um filho, ao qual pôs o nome de Enos; daí se começou a invocar
o nome do SENHOR.
1. DEUS É GRACIOSO COM O MUNDO
Antes de contemplarmos o brilho da graça de Deus, entretanto,
observemos as densas trevas do mundo que contrastam com esse brilho.
Como escrevi, a Escritura é bem realista sobre a humanidade caída e os
efeitos do pecado. Como diz o sábio de Eclesiastes: “Deus fez o homem
reto, mas ele se meteu em muitas astúcias” (Ec 7:29). Gênesis 1 nos ensina
que o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. Resumidamente,
isso significa que o ser humano foi criado, de certa forma, semelhante (não
igual) a Deus e deveria representá-lo na terra. Assim como Deus é reto e
puro, o homem foi criado reto e puro. No Éden, Adão e Eva se relacionavam
em perfeita harmonia em três áreas distintas: (1) com Deus, (2) um com o
outro e (3) com a criação.
Depravação Total
Porém, com a queda, todas essas áreas foram afetadas por inimizade e
separação. Inimizade e separação entre Deus e os seres humanos, entre o
homem e a mulher, e entre os seres humanos e a terra. Todas as três áreas de
atuação do homem, espiritual, social e cultural, foram manchadas pelo
pecado. O texto de Gênesis 4 mostra isso. Vemos a inimizade e separação de
Caim com Deus: Caim não agradou a Deus (v. 5), obstinadamente
desobedeceu a Deus (v. 8) e tentou se esconder da presença de Deus (v. 14).
Vemos inimizade e separação de Caim com seu próximo: com seu irmão,
Abel, o qual ele inveja, engana e assassina (v. 5-9) e com aqueles que
poderiam encontrá-lo e matá-lo (v. 14). Vemos também inimizade e
separação de Caim com a criação: ele se tornou maldito sobre a terra (v. 11)
e o solo não lhe daria colheita abundante ou abrigo seguro (v. 12).
Tudo no homem foi maculado pelo pecado. Não há nenhuma parte do ser
humano ou área de atuação que não tenha sido afetada. Nosso corpo foi
corrompido; nossa alma, desvirtuada; nossa mente, pervertida; nossas
emoções, distorcidas. Não há absolutamente nada que o homem faça que
não esteja envenenado pelo pecado. Essa é a doutrina chamada de
Depravação Total. Essa doutrina que é ensinada aqui através do exemplo de
Caim é expressa em Romanos 8.7-8 da seguinte forma: “Por isso, o pendor
da carne é inimizade contra Deus, pois não está sujeito à lei de Deus, nem
mesmo pode estar. Portanto, os que estão na carne não podem agradar a
Deus.” Ou seja, a natureza pecaminosa (carne) está em constante inimizade
contra Deus, não se sujeita a Deus, nem pode agradar a Deus.
Essa é uma doutrina difícil de aceitar. A maioria se vê como alguém
essencialmente bom, que talvez tenha um defeitinho ou outro, mas nada
muito grave ou que não possa remediar. As pessoas pensam que é um
absurdo afirmar que tudo o que o homem é e faz está afetado pelo pecado.
Por exemplo, há cem anos, as pessoas consideravam que sua razão era
imaculada e que conseguiam pensar claramente, livres de qualquer mancha
do pecado. Contudo, as maiores maquinações do mal normalmente provêm
de pessoas de alto QI.
Já a geração atual considera que suas emoções são imaculadas e que você
deve fazer o que o faz feliz. Como fala a música da Clarice Falcão, que
passava no comercial do Pão de Açúcar: “O que faz você feliz? [...] O que
faz você feliz você que faz!” Contudo, até aqueles que defendem “mais
amor e tolerância” são marcados por um “ódio do bem”, uma “intolerância
dos tolerantes” contra aqueles que pensam diferente. Eu, você, cada ser
humano, criança ou adulto, somos essencialmente maus, corrompidos pelo
pecado. Essa é a opinião de Deus sobre a humanidade, conforme o Senhor o
diz em Gênesis 8.21: “é mau o desígnio íntimo do homem desde a sua
mocidade”.
Graça Comum
Então, como o Senhor lida com este mundo caído em maldade, rebelde em
pecado? Creio que podemos ver um paradigma da ação de Deus com o
mundo na forma como ele lida com Caim (v. 11-15). Deus tem duas
respostas para com Caim: Deus age em juízo (“és agora, pois, maldito por
sobre a terra”), mas também em bondade (“pôs o SENHOR um sinal em
Caim para que o não ferisse de morte quem quer que o encontrasse”).
Isto é surpreendente! Sejamos sinceros, se você fosse um rei, como você
lidaria com rebeldes que desacatam uma ordem direta sua? Perceba, então,
que não seria errado Deus eliminar Caim da face da terra, afinal o Senhor
mesmo disse que quem derramasse sangue, o sangue do assassino seria
derramado, pois o ser humano foi criado à imagem de Deus (Gn 9.6). Da
mesma forma, não seria errado Deus eliminar a humanidade pecadora da
face da terra.
Porém, olhe a bondade desse Deus – ele não só não extingue
imediatamente o pecador, como lhe fornece certo tipo de proteção para que
ele não seja imediatamente eliminado. A manutenção da vida em certa
segurança nesta terra é uma extensão da compaixão divina. O ar que
respiramos não é um direito natural, mas uma concessão divina. Como
Paulo diz em Atos 17.28: “pois [em Deus] vivemos, e nos movemos, e
existimos”.
Contudo, a misericórdia de Deus não se estende só na sobrevivência, Deus
possibilita que a terra forneça alimento, afinal Caim era lavrador (v. 2-3). E
não só para o sustento, mas também para o deleite. Deus não elimina as
papilas gustativas do homem. Pecadores que odeiam Deus diariamente se
deliciam de um banquete abundante que esta terra produz. E não só o deleite
gastronômico, mas também sexual e familiar. Caim coabita com sua mulher,
e ela concebe e dá à luz um menino (v. 17). Deus não elimina o prazer
sexual e a alegria de conceber um filho. É claro que todas essas atividades
possuem complicações advindas do pecado, mas suas alegrias não foram
exterminadas com a queda. E isso não é devido a qualquer mérito nosso,
mas a um favor imerecido vindo de Deus.
Além de não erradicar a vida e alegria humana, Deus também
misericordiosamente age restringindo a maldade humana. E se você acha
que há muita maldade no mundo, se não fosse pela misericórdia de Deus
com suas criaturas, o Holocausto não seria um evento na história, mas uma
realidade permanente. Em nosso texto, podemos ler como Deus impede mais
derramamento de sangue (v. 15). Deus estabelece uma lei com uma norma
(“não matar a Caim”) e uma punição para quem a violasse (“será vingado
sete vezes”). Nosso texto mostra um exemplo daquilo que Paulo fala em
Romanos 13 e Pedro fala em 1 Pedro 2: as leis e os poderes políticos foram
estabelecidos por Deus para suprimir a maldade, castigando os malfeitores.
Há outra forma em Gênesis 4 que vemos Deus agindo para restringir o
pecado. O Senhor fala com Caim, buscando alertar a consciência dele sobre
o certo e o errado (v. 6-7). Paulo, em Romanos 2.14-16, afirma que a lei
divina está gravada no coração humano e age através da consciência, ora
acusando, ora defendendo. Ou seja, é ação da misericórdia de Deus termos
leis punindo a maldade e uma consciência que fica pesada quando
cometemos maldades. Sem essa preservação de moralidade civil, seríamos
todos psicopatas e assassinos, insensíveis como Lameque que se gaba de
matar um jovem rapaz que pisou nele (v. 23).
Essa bondade divina para com o mundo pecador é o que os teólogos têm
chamado de “graça comum”. O conceito pode ser traçado desde os pais da
igreja, mas ganhou maior ênfase através de Calvino, da ala reformada da
Reforma Protestante, especialmente através dos teólogos holandeses, como
Abraham Kuyper e Herman Bavinck. “Graça” por ser um favor não
merecido; e “comum” por ser estendida a todos os seres humano, diferente
da “graça especial” que há para aqueles que são salvos em Jesus Cristo.
Nesta primeira parte do texto, podemos ver exemplificada a ação da graça
comum de duas formas. Primeiro, permitindo a existência – Deus não
elimina imediatamente Caim, protegendo sua vida na terra e, inclusive,
permitindo que ele experimente alegrias e prazeres neste mundo. E segundo,
restringindo a maldade através da lei e da consciência.
Aplicação
Como isso deveria nos impactar? Em primeiro lugar e antes de tudo, quero
convidá-lo a contemplar pela fé esse Deus gracioso e louvá-lo por tamanha
bondade. De fato, nosso Deus é “compassivo, clemente e longânimo e
grande em misericórdia e fidelidade” (Ex 34.6). Este ar que você inspirou
agora é graça. O delicioso almoço que você comeu é graça. O encanto dos
bebês é graça. As belezas naturais e as maravilhas celestes são graça.
Vivemos em um mundo caído infiltrado pela graça. Onde quer que você
olhe, você verá graça comum, em maior ou menor grau, e isso será motivo
para louvar a Deus.
Em segundo lugar, nós devemos buscar agir em amor e misericórdia assim
como Deus é gracioso. É o que Jesus nos instrui em Mateus 5.44-45: “amai
os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem; para que vos torneis
filhos do vosso Pai celeste, porque ele faz nascer o seu sol sobre maus e
bons e vir chuvas sobre justos e injustos.” O fato do Pai celestial estender
sol e chuva sobre todos é um incentivo para que seus filhos copiem sua ação
graciosa, assim como crianças imitam os pais. Devemos fazer o bem, amar e
orar inclusive pelos nossos inimigos, inclusive por aqueles que nos odeiam,
inclusive por aqueles que agem em perversidade no mundo.
Sendo assim, é fundamentalmente anticristão rir de um homossexual que
pega Aids e negar-lhe ajuda ou olhar para pessoas pedindo esmola e
pensarmos: “vagabundo, se tivesse feito isso ou aquilo não estaria nessa
situação”. Imagine se Deus pensasse o mesmo de nós e nos abandonasse em
nosso pecado. Se só de vermos a graça comum de Deus devêssemos agir em
misericórdia, quanto mais nós que experimentamos a graça especial de
Deus, quanto mais nós que sabemos que Deus sacrificou seu Filho amado
por nós quando ainda éramos “vagabundos, ímpios, indignos, fracos” (Rm
5).
A graça comum nos ensina que não devemos ajudar quem faz por merecer.
Essa é uma visão herética e pelagiana do cristianismo. Se Deus fosse enviar
qualquer tipo de socorro, seja comum ou especial, somente aos que
mereciam, bom... não teria mais ninguém mais vivo sobre a terra. Com isso,
não quero dizer que devemos agir sem sabedoria ou dar dinheiro para
pessoas com motivos escusos, porém, nosso impulso primário deve ser de
compaixão, assim como Deus é misericordioso com todos.
Assim, resumindo, podemos ver como Deus é gracioso para com o mundo
caído. Em sua graça comum, Deus possibilita a vida terrena e restringe o
mal do mundo. Isso deveria nos levar a louvá-lo e imitá-lo, amando nossos
inimigos.
2. DEUS É GRACIOSO ATRAVÉS DO MUNDO
Mas podemos ver mais sobre a graça comum em nosso texto. E agora fica
um pouco complexo, então precisamos prosseguir com atenção e cautela. O
segundo ponto que o texto mostra é que Deus é gracioso através do mundo
(v. 17-26). Repare como Deus traz progresso civilizatório através de
pecadores – graça através do mundo caído, mesmo que esses pecadores o
façam por motivos errados.
Caim edifica uma cidade e nomeia conforme seu filho, Enoque (v. 17). É a
primeira cidade mencionada na Bíblia, e é edificada para a glória do homem
e em rebeldia ao Deus que havia dito que Caim seria errante sobre a terra.
Compare essa ação de Caim com Jacó que nomeia de Betel (ou casa de
Deus) o local no qual ele teve o sonho da escada. Cidades na Bíblia são
muitas vezes relatadas como locais com alta concentração de pecado.
Porém, veja que interessante, quando Jesus voltar ele não trará o Novo
Jardim, mas a Nova Jerusalém – uma cidade glorificada.
Algumas vezes olhamos para o Jardim do Éden e imaginamos que o plano
de Deus era que Adão e Eva ficassem eternamente em um jardim ou
floresta. É uma visão de um paraíso selvagem. Porém, quando Deus traz o
paraíso pela segunda vez é a progressão da cultura humana em uma cidade
aperfeiçoada, glorificada e sem pecado. Deus não vê o desenvolvimento
tecnológico chamado cidade como algo inerentemente mau.
Nós precisamos entender que quando Deus criou o ser humano, ele deu um
mandato espiritual (relacionar-se com Deus), um mandato social (relacionar-
se uns com os outros), mas também um mandato cultural (relacionar-se com
a criação). Isso é o que chamamos dos três mandatos criacionais.
Obedecendo ao mandato cultural, Adão e Eva deveriam imitar a Deus em
dominar sobre a criação para a expansão da ordem e beleza, para o
crescimento do Jardim, para o avanço do Reino de Deus, levando a criação
ao seu potencial máximo. Eles deveriam conhecer a criação, e por isso Adão
nomeia os animais, e deveriam lavrar e cuidar do Jardim. Ou seja, o ser
humano foi criado para avançar a cultura, a arte, a ciência e a tecnologia. Se
Adão e Eva não tivessem pecado, o Jardim iria progredir em uma gloriosa e
perfeita cidade – logicamente diferente em muitos aspectos da nossa.
O interessante neste quarto capítulo de Gênesis é que esses avanços
culturais não vêm primordialmente através da linhagem justa da mulher,
mas da linhagem caída da serpente – a de Caim. Repare o que o texto fala
dos três filhos de Lameque, um dos homens mais perversos da Escritura.
1. “Jabal; este foi o pai dos que habitam em tendas e possuem gado” (v.
20). Quem mais habitava em tendas e possuía gado? Abraão, o justo.
Aliás, a peregrinação em tendas é exaltada em Hebreus 11 como um ato
de fé de Abraão por entender que ele não tinha morada aqui, mas
esperava a cidade que vinha de Deus.
2. “Jubal; este foi o pai de todos os que tocam harpa e flauta” (v. 21).
Quem mais tocava harpa? Davi, o homem segundo o coração de Deus.
Aliás, esses instrumentos são usados dentro do tabernáculo para o louvor
da glória de Deus. O Salmo 150 ordena ao povo do Antigo Testamento:
“louvai-o com saltério e com harpa. [...] com instrumentos de cordas e
com flautas”. Um instrumento e uma arte criada por pagãos é utilizada
dentro da casa de Deus para o louvor dele.
3. “Tubalcaim, artífice de todo instrumento cortante, de bronze e de
ferro” (v. 22). Aposto que você usou uma faca hoje no almoço. Esses
instrumentos seriam usados por Israel para conquistar e defender a Terra
Prometida.
Pecuária, musicologia e metalurgia têm seu princípio com pagãos,
inimigos de Deus. Contudo, não se iluda. Eles não desenvolveram aquilo
para a glória de Deus ou o bem da humanidade. Os instrumentos cortantes
eram mesmo para matar, as harpas e flautas, para o culto idólatra, e a
pecuária, para engrandecimento próprio, porém isso não nega o fato de que
Deus tira algo bom para a humanidade do desenvolvimento artístico,
cultural e científico advindos de pessoas más. Aliás, a maioria dos
desenvolvimentos tecnológicos acontecem na área militar e depois passam
para a população civil.
E o que explica, então, que tantos descrentes produzam quadros belos,
livros elaborados e pensamentos profundos? Que inimigos de Deus busquem
o bem do ser humano e da criação através da medicina, farmacologia,
veterinária, política, pedagogia, matemática, física, química, engenharia,
advocacia e tantos outros campos de estudo? Como seres humanos
totalmente depravados, contaminados em todas as áreas pelo pecado, podem
trazer tal bem civilizatório e realizar atos de bondade civil? A resposta
encontra-se não no mérito humano, mas na graça comum de Deus.
Em Atos 17.28, vemos outro exemplo disso. Paulo, argumentando diante
dos filósofos, cita um poeta pagão, afirmando que naquilo que aquele poeta
ímpio, cuja mente havia sido pervertida pelo pecado, tinha dito havia algo de
verdadeiro! Há verdades, em maior ou menor grau, nos estudos dos
incrédulos. E não só na área de exatas, que é mais fácil aceitarmos, mas
também na de humanas (afinal Paulo cita um poeta). Há elementos de
verdade nos estudos seculares da filosofia, história, economia, psicologia.
João Calvino afirmou o seguinte:
“Quantas vezes, pois, entramos em contato com escritores profanos,
somos advertidos por essa luz da verdade que neles esplende admirável,
de que a mente do homem, quanto possível decaída e pervertida de sua
integridade, no entanto é ainda agora vestida e adornada de excelentes
dons divinos.
Se reputarmos ser o Espírito de Deus a fonte única da verdade, a própria
verdade, onde quer que ela apareça, não a rejeitaremos, nem a
desprezaremos, a menos que queiramos ser insultuosos para com o Espírito
de Deus.”
Precisamos entender que as pepitas da Verdade que os incrédulos possuem
não foram criadas por suas mãos, mas escavadas das minas da Graça
Comum.
Aplicação
O que devemos fazer diante disso? É aqui que precisamos tomar um
cuidado extra para não cairmos em dois extremos perigosos. Um extremo é
o da rejeição obtusa – rejeitar qualquer coisa produzida por incrédulos (e
isso normalmente acontece no campo intelectual, por que quase ninguém
rejeita uma Neosaldina). O outro extremo é a aceitação irrestrita – aceitar
tudo que é produzido por intelectuais e artistas, dando primazia a eles sobre
a Escritura. A rejeição obtusa é uma forma moderna de monasticismo, de
isolacionismo. A aceitação irrestrita é uma forma erudita de mundanismo.
As duas doutrinas que o nosso texto ilustra devem servir de base para a
nossa interação e o nosso engajamento cultural no mundo. Precisamos
lembrar da Depravação Total. Tudo, absolutamente tudo o que o homem
produz está contaminado, em maior ou menor grau, pelo engano e pela
feiura advinda dos efeitos universais do pecado. E precisamos lembrar da
Graça Comum; tudo, praticamente tudo que o homem produz está
permeado, em maior ou menor grau, pela verdade e beleza avinda da graça
comum de Deus.
Justino Romano, um dos pais da igreja, afirmou o seguinte: “Portanto, tudo
o que de bom foi dito por eles [os pagãos], pertence a nós, cristãos, porque
nós adoramos e amamos depois de Deus, o Verbo, que procede do mesmo
Deus ingênito e inefável.”
Precisamos, então, desfrutar com discernimento da arte, cultura e
entretenimento produzidos pelo mundo; utilizar com cautela as ideias,
filosofias e ciências produzidas por pecadores. É aqui que é tão importante
termos nossos dois pés bem firmados no estudo da Escritura para não nos
conformarmos com este mundo, renovarmos as nossas mentes e
experimentarmos qual seja a boa, agradável e perfeita vontade de Deus
enquanto vivemos neste mundo (Rm 12.2). As riquezas do Egito pertencem
ao povo de Deus, porém seus ídolos não. Isso deixamos lá.
Além disso, a graça comum de Deus nos permitirá trabalhar, em maior ou
menor grau, em prol do bem, da beleza e da verdade ao lado de incrédulos.
É o que foi cunhado como cobeligerância – lutar junto em prol de algo. Ou
seja, conforme buscamos o bem geral da humanidade, nós podemos fazer
isso ao lado de não crentes. Mas atenção, isso não deve ser confundido com
ecumenismo, que é o menosprezo da verdade em prol de uma suposta
unidade.
Nós podemos lutar junto com incrédulos em prol da valorização da vida,
da ajuda aos necessitados, dos desenvolvimentos científicos, da liberdade
religiosa, da produção de remédios, da promulgação de leis mais justas e de
tantas outras formas. Veja, por exemplo, a Lava Jato e o trabalho de Deltan
Dallagnol, batista evangélico, com Sérgio Moro e outros em prol da justiça
em nosso país. Aliás, uma das grandes estratégias de Satanás para que os
cristãos perdessem a guerra cultural, como podemos ver nos museus, nos
programas de TV e nas escolas, é levá-los a se isolarem da sociedade em vez
de buscarmos ser sal da terra e luz do mundo. E isso não significa forçar
certos programas na TV aberta ou obrigar que as escolas públicas tenham
ensino religioso, mas buscarmos influenciar a produção de boas obras
culturais.
Se a cultura irá de mal a pior ou progredindo positivamente, isso está nas
mãos do Senhor da História. Porém, nós somos chamados a sermos
presenças fiéis em meio a este mundo. Estarmos no mundo sem sermos do
mundo. Sermos sal e luz.
UMA NOITE ESTRELADA
Então, volto a perguntar: como você vê o mundo? Com que tons você
pintaria o mundo? Eu imagino que se Deus fosse pintar o mundo em um
quadro, este lembraria o céu da Noite Estrelada de Van Gogh. O que me
encanta nessa obra de arte é que o pintor não retrata o céu noturno como
algo estático, mas um campo fluído de energia e brilho. Por cima das trevas
de um azul meia-noite há uma lua cintilando em tons de amarelo vivo,
estrelas pulsando em tons mais claros e mais escuros e um fluir turbulento
em uma mescla de tons mais claros de azul, marrom e verde.
No meio das densas trevas da depravação humana, nós podemos ver os
movimentos vigorosos e os pontos cintilantes da graça comum de Deus,
agindo por meio de um mundo rebelde e trazendo bondade através de um
mundo caído. Deus, em sua graça comum, possibilita a vida, restringe o mal
e promove o bem no mundo, em maior ou menor grau, conforme apraz sua
soberana vontade. Assim, aprendamos a viver neste mundo com um
realismo bíblico, sem cairmos no isolacionismo ou no mundanismo.

* Vinicius Musselman Pimentel é formado em engenharia química pela


UNICAMP e mestrando em Estudos Pastorais pelo Centro Presbiteriano de
Pós-Graduação Andrew Jumper. Em 2008, fundou o blog Voltemos ao
Evangelho ao conhecer a doutrina reformada e ser confrontado com a dura
realidade teológica do Brasil. Atualmente, trabalha como Editor Online no
Ministério Fiel.
CAPÍTULO 2

O MAL E O MUNDO SOFRIDO


HEBER CAMPOS JR.
A Bíblia não dá uma resposta precisa e completa do porque um
determinado mal atinge uma pessoa e não outra. Porém, a Bíblia nos dá
subsídios suficientes para argumentar contra aqueles que veem no problema
do mal algo insolúvel. Esse problema é abordado tanto de forma intelectual
quanto emocional. Comecemos com a abordagem intelectual.
O PROBLEMA INTELECTUAL
O argumento é de que o sofrimento se apresenta como um problema
filosófico, isto é, que coloca em cheque a existência do Deus bondoso e todo
poderoso. A primeira abordagem, também a mais antiga, é de que é
logicamente contraditório crer nesse Deus em face do sofrimento. A
segunda abordagem, mais recente e um pouco mais modesta, é de que é
improvável que o Deus da Bíblia exista. Ambos os argumentos, porém,
sofrem de ao menos dois problemas estruturais.1
Em primeiro lugar, o argumento possui uma premissa não provada: há
sofrimentos que são sem propósito. Céticos até concordam que pode haver
uma lição para nós quando sofremos – “nos tornar pessoas melhores, mais
fortes ou mais preocupadas e cuidadosas, mais humanas”2 –, mas de acordo
com eles não é sempre assim. O agnóstico Bart Ehrman argumenta contra a
ideia de que “algo de bom sempre sai do sofrimento”. Veja o seu argumento:
“A realidade é que a maior parte do sofrimento não é positiva... Há no
mundo muito sofrimento que não é redentor para ninguém. A avó de
oitenta anos de idade que é selvagemente estuprada e estrangulada; o
neto de oito semanas que de repente fica azul e morre; o jovem de 18
anos morto por um motorista bêbado a caminho do baile – tentar ver o
bem em tal mal é privar o mal de sua característica. É ignorar o
desamparo daqueles que sofrem sem razão e sem fim.”3
Observe que ele termina dizendo que há muitos sofrimentos que são sem
finalidade ou propósito.
Timothy Keller chama a atenção para uma premissa não provada nesse
argumento de males injustificáveis:
“Juntamente com a afirmativa de que o mundo está cheio de mal sem
sentido há também uma premissa oculta: a de que o mal parece sem
sentido para mim, logo ele deve ser sem sentido. Esse raciocínio
logicamente é uma falácia. Só porque alguém não consegue ver ou
imaginar um motivo para que Deus permita que algo aconteça não
significa que esse motivo inexista. Novamente identificamos no
ceticismo supostamente teimoso uma enorme fé nas próprias faculdades
cognitivas de quem fala. Se nossa mente não é capaz de explorar as
profundezas do universo atrás de boas respostas para o sofrimento,
então, ora, é porque elas não existem! Trata-se de fé cega de primeira
linha.” 4
Keller está destacando a soberba do raciocínio de ateus e agnósticos que
rejeitam a fé cristã com suas próprias premissas de fé. Dentre tantos
propósitos do sofrimento,5 a Bíblia diz até que podemos aprender com o
sofrimento alheio. Bart Ehrman é avesso a isso. “Rejeito especialmente, e
com a maior veemência”, ele diz, “a ideia de que o sofrimento de outra
pessoa tem o propósito de nos ajudar.”6 Todavia, o próprio Jesus ensinou
que catástrofes (Lc 13.1-5) e doenças (Jo 9.1-3) fazem parte da ordem
presente do mundo, mas devem levar-nos à reflexão. Observe que os textos
relatam Jesus aplicando o sofrimento a outras pessoas, não aos que haviam
sido alvos dele. Podemos e devemos aprender com o sofrimento alheio.
A verdade é que muitas pessoas, crentes ou não, reconhecem que o
sofrimento lhes traz lições, insights que não teriam em meio à bonança.
Embora não curtam a dor, são gratas pelo que aprenderam com ela.
Conseguem ver boas razões para ao menos alguns dos sofrimentos de sua
vida. Isso abre uma possibilidade para haver propósitos que ainda estão
ocultos de nós (talvez permaneçam ocultos para sempre).
Um outro problema estrutural do argumento filosófico é que ele
desconsidera as outras evidências em prol da existência de Deus. O
apologeta e filósofo cristão William Lane Craig destaca a importância de
considerar não só o sofrimento do mundo, mas o completo escopo das
evidências.
“Estou convencido de que qualquer que seja a improbabilidade que o
sofrimento possa lançar sobre a existência de Deus, isso é superado
pelos argumentos em favor da existência de Deus... Embora em um nível
superficial o sofrimento coloque em questão a existência de Deus, em
um nível mais profundo o sofrimento na verdade prova a existência de
Deus. Pois, independente de Deus, o sofrimento não é de fato mau.” 7
Além desse aspecto de valores morais mencionado por Craig, o qual
discutiremos mais adiante, existem argumentos que mostram que o início do
universo carece de que haja uma causa motora, que o ajuste preciso do
universo carece de um designer inteligente, e que para a vida ter propósito é
preciso que Deus exista. Em outras palavras, as evidências não são
contrárias à existência do Deus das Escrituras. Usar apenas o sofrimento do
mundo, por mais terrível que seja, como argumento contra a existência é
deixar de olhar para uma gama de outras evidências.
O PROBLEMA EMOCIONAL
Ainda que o argumento intelectual seja muito usado por céticos, a maior
parte das pessoas lida com o sofrimento como um problema emocional para
a fé cristã. “Como posso confiar em um Deus que permite tanto
sofrimento?”, dizem. Nesse caso o sofrimento se torna uma questão pessoal,
existencial. Incrédulos tem dificuldade com a ideia de que Deus
providencialmente protege pessoas do mal, pois isso implica no fato de que
ele não protege outras. “Por que não o faz?”, raciocinam eles. Há um senso
de injustiça que paira sobre esse argumento. Os céticos se recusam a se
submeter a um Deus que permite vidas tão sofridas. Bart Ehrman é um
exemplo disso.
Ehrman frequentemente usa repetidos exemplos chocantes como artifício
retórico em sua argumentação. Quando apresentados a tanto miséria e
maldade muitas pessoas se sensibilizam e são levadas à perplexidade. Ele
afirma que durante um culto de Natal ocorre muito sofrimento ao redor do
mundo:
mais de setecentas crianças morreram de fome no mundo; 250 outras
por beberem água contaminada, e quase trezentas pessoas morreram de
malária. Para não falar daquelas que foram estupradas, mutiladas,
torturadas, esquartejadas e assassinadas. Nem das vítimas inocentes
apanhadas pelo comércio de escravos, daqueles em todo o mundo
sofrendo com a pobreza opressiva, os boias-frias em nosso país, os sem-
teto e os portadores de doenças mentais. Para não falar do sofrimento
silencioso que muitos milhões entre os bem alimentados e bem-criados
experimentam diariamente: a dor de crianças com defeitos congênitos,
crianças mortas em acidentes automobilísticos, crianças insensatamente
atacadas pela leucemia; a dor do divórcio e de famílias destruídas; a
dor de empregos perdidos, renda perdida, perspectivas frustradas. E
onde Deus está?8
Ehrman também descreve o horror do holocausto de forma bastante vívida
durante várias páginas.9 E procura apresentar a feiura da visão bíblica de que
Deus traga fome, peste e a espada como expressão de juízo:
Nós realmente queremos dizer que Deus produz fome como uma
punição pelo pecado? Deus é responsável pelas ondas de fome na
Etiópia? Deus cria conflitos militares? Ele deve ser culpado pelo que
aconteceu na Bósnia? Deus produz doenças e epidemias? Foi ele quem
criou a epidemia de gripe de 1918 que matou 30 milhões de pessoas em
todo o mundo? Ele está matando 7 mil pessoas por dia de malária? Ele
criou o surto de Aids?10
Argumentos retóricos como esses, com números e descrições vívidas, são
repetidos em vários lugares do seu livro. Para Ehrman, tal sofrimento é
injusto.
Outros críticos do cristianismo levantam o inferno como sendo expressão
de injusta atrocidade. Novamente a questão da injustiça é trazida à tona.
Entretanto, Tim Keller demonstra como inferno é a expressão não só de
justiça, mas de satisfazer os caminhos dos ímpios. Ele diz que, em suma,
“inferno é a escolha voluntária de uma identidade apartada de Deus para
uma trajetória rumo à infinidade.”11 (p. 65). No fim, Deus os entrega ao que
eles mais desejam: liberdade de Deus. O que sempre quiseram foi se afastar
de Deus. Tudo que Deus lhes dá é o que sempre pediram. Não há nada de
injusto nisso.12
O problema deles é pessoal, isto é, com a pessoa de Deus. Tanto é que não
conseguem ter qualquer sentimento de indisposição para com outra
cosmovisão que demonstre os mesmos problemas. Céticos se opõem a Deus
porque pessoas nesse mundo sofrem e morrem, de fome ou opressão. Por
que as pessoas não contestam o evolucionismo naturalista que depende de
morte, destruição e violência para que a sobrevivência do mais apto seja
natural?13 A resposta é que o problema deles é com o próprio Deus. O
próprio salvador Jesus, por mais que tenha aliviado tanto sofrimento durante
o seu ministério terreno, foi odiado por seus compatriotas. A raiva de alguns
para com cristãos é por causa de sua indisposição para com Jesus Cristo (Jo
15.18-21; At 9.3-5).
A história do livro de Jó apresenta a dor e o sofrimento como um problema
emocional. Jó se vê injustiçado, não merecedor de todo o castigo. A solução
de Deus para seu servo não é uma série de argumentos intelectuais. Na
verdade, o livro termina nos ensinando ser esperado haver um grau de
mistério ao falar do sofrimento, principalmente aquele que não vemos razão
de ser (que não é disciplina, não é descuido, ou imoralidade, etc.). O livro de
Jó, porém, nos ensina que Deus sanou um problema pessoal com um
encontro pessoal. Ao final da história vemos Deus se mostrando a Jó e isso
basta para acalmar-lhe a alma (Jó 38-42).
É preciso ter consciência desse problema pessoal quando conversamos
com incrédulos. Dietrich Bonhoeffer é frequentemente lembrado por sua
célebre frase: “o pecado primevo da humanidade consistiu em colocar o
conhecimento do bem e do mal antes do conhecimento de Deus”.
Poderíamos comentar essa frase dizendo que esse continua sendo o
problema primordial do ser humano. O problema do homem natural é que
ele desconhece a Deus, ele não o ama (1Jo 3.1; 4.7-8). Sua indisposição é
para com Deus, não somente para com a expressão religiosa do cristianismo
ou para com o seu corpo de doutrinas. Temos que entender a limitação de
nossas argumentações, pois estamos falando com quem por natureza é
inimigo de Deus. Só o conhecimento pessoal desse Deus permite total
sossego à nossa alma.
OS CÉTICOS E O “PROBLEMA DO BEM”
Após apresentarmos o ataque dos céticos, com as devidas defesas, a
apologética cristã também se coloca na ofensiva, questionando os
pressupostos de uma cosmovisão naturalista. Possivelmente o maior
problema para o cético é não poder explicar as virtudes desse mundo
(justiça, paz, bondade, etc.), como ilustra a conversão de C. S. Lewis. Ele
diz que rejeitava a Deus pela crueldade da vida até que percebeu a fraqueza
de seu ateísmo. De onde ele tirara essa ideia de “injusto”? Injusto
comparado com o quê? Uma ideia minha de justiça? Sem referencial externo
de justiça, o argumento contra Deus caía por terra porque o mundo não fica
objetivamente injusto, mas simplesmente contra os meus próprios
caprichos.14 Em outras palavras, se céticos acham que os cristãos têm
dificuldade em sustentar sua cosmovisão em face do mal, muito maior é a
dificuldade dos céticos de sustentarem uma cosmovisão naturalista em face
do bem. Eles têm o “problema do bem”.
O dilema que precisa ser apresentado ao naturalista – isto é, tanto o que
rejeita (ateu) quanto o que desconhece e desconsidera (agnóstico) o
sobrenatural – é que sua moralidade não tem fundamento. Bart Ehrman
termina seu livro sobre o mal apelando aos leitores a duas coisas: que gozem
a vida, mas que trabalhem para aliviar o sofrimento.15 Em outras palavras,
um apelo ao hedonismo e à justiça. O problema é que ele não tem base para
dizer qual o limite de nosso prazer em face do sofrimento neste mundo. Ele
também não tem fundamento para pedir mais justiça no mundo. A ironia (e
inconsistência) está em Ehrman usar a moralidade cristã para criticar o Deus
cristão.
Deixe-me explicar um pouco mais. No naturalismo, como Deus é tirado de
cena, a ética está vinculada somente a seres humanos.
A ética é autônoma e situacionista. Isto dá margem a uma ética subjetiva.
Contudo, há muitos naturalistas antigos e modernos que sempre defenderam
princípios éticos tradicionais. Eles até se escandalizam com a imoralidade
presente. Eles não diriam que reprovar o abuso de uma criança seria uma
questão de preferência ou de opinião subjetiva. Eles veem tal ato como
objetivamente mau. Observe que o problema não é reconhecer os valores
morais, mas não ter base para eles. Essa é a antiga falácia sobre derivar o
“dever” do “ser”. Para o naturalista, o mundo simplesmente não providencia
à humanidade um senso de dever. Acontece que ética é sobre o que deve ser
e não sobre se algo é ou não é. Guerras religiosas existem. Será que elas
devem existir? Como derivar o “dever” do “ser”? É preciso haver uma regra
ética fora da “caixa” na qual estamos, para servir de parâmetro de juízo entre
os homens. Mas isto não combina com a cosmovisão naturalista que rejeita
qualquer coisa sobrenatural.
Sem um padrão ético objetivo, os homens estão sujeitos a conclusões
absurdas. Como explicar o bem se não há Deus, se não há referencial
externo? Aquilo que é útil? Roubar é útil para o ladrão. Aquilo que mexe
com o seu coração? Diga isso a um psicopata que segue as inclinações do
seu interior. Aquilo que beneficiaria o maior número de pessoas? Mas isso é
preconceito ou, pior, opressão para com minorias. Aquilo que recebe a
aprovação de pessoas? Mas isso tira qualquer senso de justiça, pois ninguém
pode ser julgado mau se ele sempre escolhe o que aprova. Note como sem o
referencial externo não há como falar objetivamente do bem.
Curiosamente, céticos querem defender direitos humanos sem reconhecer
que é a moral cristã que provê a base para tais direitos. Eles querem direitos
à parte do cristianismo. Essa é uma maneira de impor moralidade em tempos
quando o discurso é que ninguém pode impor sua verdade a outro. Porém,
defender direitos humanos não é falar de uma moralidade absoluta? Mas
qual o padrão de tal moralidade? Direito não é algo criado, mas descoberto.
Mas de onde vem esse senso nato quanto a direitos? Por mais que tentem
fugir da moral cristã, o cético sempre trabalha com capital emprestado.
Não é verdade que todos sentimos obrigados a salvar alguém que caiu no
rio e que esteja se afogando? De onde vem esse senso de obrigação moral?
O naturalismo evolucionista que fala de sobrevivência do mais apto não dá
base para tal impulso comum. Por que o ser humano sempre se indignou em
ser roubado, ou ter suas crianças mortas, ou seu cônjuge violentado? Há um
senso de justiça perene que nos move a considerar certas coisas injustas.
A verdade é que as pessoas sabem que Deus existe, mas reprimem tal
conhecimento (Rm 1.18-23, 28-32; 2.14-15). Moralidade requer um padrão
externo de juízo. Não há outra explicação para julgar algo como “imoral”
senão Deus. Por isso, todo aquele que diz “Não há deus” é insensato (Sl
14.1; 53.1).
SERVO SOFREDOR
O apologeta católico Peter Kreeft escreveu: “Um Deus que não aboliu o
sofrimento – pior ainda, um Deus que aboliu o pecado precisamente pelo
sofrimento – é um escândalo para a mente moderna.”16 Na verdade, a
mensagem da cruz sempre foi escândalo e loucura para os que não
discernem as verdades de Deus espiritualmente (1Co 1.23). Desde a profecia
messiânica de Isaías sobre o Servo Sofredor (Is 52.13-53.12), passando
pelos discursos de Jesus quanto ao seu sofrimento que suscitou a repreensão
de Pedro (Mt 16.21-23), até a explicação paulina aos gálatas de que Cristo
se fizera maldição em nosso lugar (Gl 3.13), todos demonstraram que essa
ideia estava na contramão do que pensavam os religiosos de seus dias. Os
evangelhos diziam que até os discípulos não entendiam tais prenúncios do
nazareno (Lc 18.31-34).
Pois é exatamente essa mensagem que precisamos trazer quando falamos
do sofrimento presente: Deus resolve o problema do sofrimento por meio do
seu próprio sofrimento. Toda defesa apologética precisa culminar em Cristo
e nele crucificado. Deus não é sádico, ele não tem prazer na morte do ímpio
(Ez 33.11; 2Pe 3.9). Deus não vê o sofrimento com deleite. Pelo contrário,
ele leva tão a sério nossa dor e sofrimento que resolveu assumi-los. A maior
prova disso foi a encarnação, sofrimento e morte de Jesus. Enquanto as
outras religiões têm mestres que dizem como suportar o sofrimento, nós
cremos num Deus que sofre em nosso lugar. Essa é uma das peculiaridades
mais lindas da fé cristã. A expiação de Cristo é expressão tanto da justiça de
Deus em relação ao mal quanto da sua misericórdia para com o mal (Rm
3.26).17
O verbo encarnado, Jesus Cristo, não só sofreu para se simpatizar conosco.
É verdade que tendo sofrido ele se compadece de nós (Hb 4.14-16). Porém,
a grande maravilha é que ele é poderoso para nos socorrer em meio às
nossas tentações e aflições (Hb 2.17-18; Sl 34.19). Uma das maneiras em
que o Novo Testamento descreve a obra expiatória de Cristo é a de
destruição das forças do mal (Mt 12.29; 1Co 15.24-26; Cl 2.13-15; Hb
2.1415; 1Jo 3.8). Ele se apresenta como vencedor (uma expressão latina
antiga que designava essa posição era Christus Victor) e chama a cada filho
de “vencedor” (expressão repetida em todas as cartas às igrejas da Ásia
Menor Ap. 2.7, 11, 17, 26; 3.5, 12, 21).
O próprio Paulo, na Epístola aos Romanos, enxerga os sofrimentos do
tempo presente como infinitamente menor do que a glória porvir porque já
se vê mais que vencedor (Rm 8.18, 37).
A mensagem não é completa se não falarmos da ressurreição. Anunciamos
a Cristo morto e ressurreto. Na pregação apostólica do Livro de Atos, a
ressurreição estava sempre no cerne do anúncio do evangelho. Tal doutrina é
a fonte do nosso consolo pois baseado nela é que nós teremos a restauração
desse universo para ser do jeito que tem de ser: sem lágrimas nem dor.
Todavia, ela não é confortadora no presente só porque fala de um futuro
melhor. Ela garante um futuro melhor porque já é uma realidade presente.
Os autores do Novo Testamento fizeram várias conexões entre a nossa
união com Cristo em sua ressurreição e a vida presente. A ressurreição de
Cristo é a base de nossa regeneração (1Pe 1.3), de nossa justificação (Rm
4.25), de nossa santificação (Rm 6.4; Cl 3.1-4). Portanto, ressurreição não é
só uma esperança futura, mas uma realidade presente. A morte não é apenas
um inimigo a ser destruído (1Co 15.26, 54-55), mas num certo sentido já é
fonte de lucro para o cristão (Fp 1.21-23).
É lógico que as bênçãos advindas da ressurreição ainda não são plenas,
mas já são reais. Os cristãos já fazem parte de um novo período inaugurado
na história no qual já experimentamos realidades próprias da vida porvir,
sem pecado. Ao mesmo tempo em que aguardamos a adoção de filhos (Rm
8.23), nós já somos filhos de Deus (1Jo 3.1). Ao mesmo tempo em que
ainda estamos sujeitos aos efeitos da morte física, nós já temos a vida eterna.
O ponto que estou tentando estabelecer é que, embora a melhor teodiceia
seja futura como já foi dito, a Bíblia nos autoriza a descansar no presente
pelas realidades que já fazem parte de nosso viver. Precisamos anunciar
Cristo morto e ressurreto como a grande solução cristã para o problema do
mal. Tal mensagem transformará o nosso viver presente enquanto olhamos
para a sua consumação futura.

1 O filósofo iluminista David Hume (1711-1776) popularizou o raciocínio do


antigo filósofo grego Epicuro (341-270 a.C.): “As antigas perguntas de
Epicuro permanecem sem resposta. Quer ele (Deus) impedir o mal, mas não é
capaz de fazê-lo? Então ele é fraco (i.e., não é onipotente). Pode ele fazê-lo,
mas não o deseja? Então ele é malévolo. Não é ele tanto poderoso quanto o
deseja fazê-lo? De onde, pois, procede o mal?” Citado em Sayão, O Problema
do Mal no Antigo Testamento, 26.
2 Ehrman, O problema com Deus, 140.
3 Ehrman, O problema com Deus, 140-141.
4 Keller, A Fé na Era do Ceticismo, 20. O filósofo cristão Alvin Plantinga diz
que não há nada de irracional em pensar que Deus tenha de fato uma razão
para o sofrimento embora não saibamos qual ela seja. Alvin Plantinga, God,
Freedom, and Evil (Grand Rapids: Eerdmans, 1974), 11.
5 John Frame destaca vários desses benefícios biblicamente explicitados: “Na
Escritura, Deus usa o mal para testar os seus servos (Jó; 1Pe 1.7; Tg 1.3),
para discipliná-los (Hb 12.7-11), para preservar suas vidas (Gn 50.20), para
ensiná-los paciência e perseverança (Tg 1.3-4), para redirecionar suas
atenções a que é mais importante (Sl 37), para capacitá-los a confortar outros
(2Co 1.3-7), para capacitá-los a trazer testemunho poderoso da verdade (At
7), para dá-los maior alegria quando o sofrimento é substituído pela glória
(1Pe 4.13), para julgar o ímpio, tanto na história (Dt 28.15-68) quanto na vida
porvir (Mt 27.41-46), para trazer recompensa a crentes perseguidos (Mt 5.10-
12), e para demonstrar a obra de Deus (Jo 9.3; cf. Ex 9.16; Rm 9.17). O bojo
de todos esses argumentos é que embora o mal deva ser deplorado em si
mesmo, há alguns aspectos no qual ele torna o mundo melhor.” John Frame,
The Doctrine of God (Phillipsburg: P&R, 2002), 170.
6 Ehrman, O problema com Deus, 140.
7 William Lane Craig, Em Guarda: Defenda a fé cristã com razão e precisão
(São Paulo: Vida Nova, 2011), 179-180.
8 hrman, O problema com Deus, 15.
9 Ehrman, O problema com Deus, 27-32.
10 Ehrman, O problema com Deus, 52-53.
11 Keller, A Fé na Era do Ceticismo, 65.
12 Keller, A Fé na Era do Ceticismo, 66. É claro que a ideia de deixar os
pecadores voltados para si (Rm 1), que é um tipo de juízo, não exclui um
infringir positivo de agonias também.
13 Keller, A Fé na Era do Ceticismo, 22.
14 Para a opinião de C. S. Lewis sobre o tema, veja O Problema do
Sofrimento (São Paulo: Mundo Cristão, 1983).
15 Ehrman, O problema com Deus, 242-243.
16 Citado por Colson e Pearcey, E agora como viveremos?, 248.
17 Paul Helm ressalta a beleza desse plano ao escrever: “Em Cristo, o mal
como punição e o mal como disciplina estão unidos, e a sua expiação é tanto
a certeza da punição do mal moral quanto a fonte de renovação. Finalmente,
sem a permissão do mal moral e sem a expiação de Cristo, o próprio caráter
de Deus não seria plenamente manifesto.” Helm, A Providência de Deus,
193.
CAPÍTULO 3

O PRAZER E O MUNDO
HEDONISTA

EMILIO GAROFALO NETO *


“A vida até parece uma festa,” assim começa a música Diversão do grupo
de rock Titãs. O refrão é muito interessante: “Às vezes qualquer um, faz
qualquer coisa por sexo, drogas e diversão, e tudo isso só aumenta a
angústia e a insatisfação; às vezes qualquer um enche a cabeça de álcool,
atrás de distração, mas nada disso às vezes diminui a dor.” Esse refrão
atinge importantes verdades que devemos tratar pelas lentes das escrituras.
Todos os homens buscam diversão, buscam jogar, brincar, se entreter—se
não em extremos pródigos, no mínimo em doses pequenas. Isso pode ser
observado em qualquer idade e em qualquer cultura da Terra. Somos
fascinados pelas coisas boas da Terra.
A parábola do filho pródigo (Lc 15) fala acerca de um homem que deixou
sua família e sua terra para ir atrás de viver prodigamente. Ele julgou que o
melhor para si era aproveitar e curtir a vida de maneira despreocupada, em
busca de quaisquer formas de diversão que desejasse. Nesse artigo iremos
tratar desse desejo humano. A verdade é simples: gastamos enorme parte de
nosso tempo, nosso dinheiro e nossas vidas em busca de diversão. Como
aquele homem poderia ser tão tolo em deixar sua família, sua casa, sua
comunhão para levar uma vida que resulta em miséria e destruição? Mais
sério ainda, nós fazemos o mesmo, seja em grande ou pequena escala:
quando optamos por clicar no site que não devemos, quando utilizamos
substâncias que teoricamente vão nos fazer curtir mais a festa ou a viagem
ou quando negligenciamos nossa família por coisas que prometem nos dar
alegria. Veremos que a busca por diversão tem raízes na criação, é distorcida
pela queda e mesmo assim aponta para a redenção.
A BUSCA POR DIVERSÃO E A CRIAÇÃO
O filho pródigo fez uma coisa que todos nós já fizemos em algum ponto de
nossas vidas, em verdade, algo que fazemos todos os dias: buscou diversão,
quis satisfazer seus desejos por lazer. Mas de onde vêm tais desejos? Eles
são necessariamente pecaminosos em sua raiz? Não, o interesse por
recreação é um elemento criado no homem. Temos algumas pistas bíblicas
que apontam para isto; iremos apontar algumas direções, mas não será um
tratamento exaustivo.
A Bíblia não tem uma passagem clara dizendo “Podeis brincar.” O caso a
favor de diversão, jogos e brincadeira é feito através de diversos textos que
tocam no assunto tangencialmente e por temas relacionados. Trataremos
brevemente de alguns destes elementos.
Um componente importante é o do descanso, uma grande parte da
diversão. Ao criar o homem Deus o fez com necessidade de descanso; de
fato, estabeleceu a regra de que deveria trabalhar seis dias e descansar no
sétimo. Este dia desde o princípio envolvia culto, mas vai além disto,
tratando-se de um dia para celebrar a Deus e sua criação e descansar dos
afazeres da semana. Como diz Leland Ryken: “Assim como o descanso de
Deus, o lazer nos liberta de uma necessidade de produtividade e nos permite
aproveitar o que já foi feito.”1 . Os diversos festivais de Israel no Antigo
Testamento apontavam também para tempo de alegria e descanso na
providência de Deus. Os profetas falam de instâncias onde brincadeira é
vista como uma coisa natural e, principalmente, como parte de situações nas
quais se mostra a bênção restauradora de Deus. Isaías profetizou acerca de
uma convivência pacífica durante o reino do cordeiro em um período de
reconciliação entre Deus e homem que se reflete na reconciliação entre
homem e criação—e isto envolve até mesmo crianças brincando com
animais ferozes (Is 11:6-10). Zacarias fez promessas parecidas; ao falar
acerca da restauração de Jerusalém ele diz que “as praças da cidade se
encherão de meninos e meninas, que nelas brincam” (Zc 8:5).
Jesus em certas ocasiões (mesmo fora do Sábado) se retirou para descansar
e se recompor. Curiosamente, Jesus foi acusado de ser um glutão e beberrão;
estas acusações eram falsas, mas foram motivadas pelo fato de que era
comum que Jesus gastasse tempo em comunhão e comida junto com as
pessoas. Seu primeiro milagre público envolveu assegurar que uma festa não
se encerrasse pela falta de vinho (o que não nega os profundos significados
bíblico-teológicos desse feito). A própria parábola do filho pródigo aponta
para música e dança como reações apropriadas para alegria (Lc 15:25).
Temos ainda Paulo usando figuras esportivas para ilustrar suas asserções em
diversos momentos. Paulo não estava com isto dizendo que tínhamos de nos
tornar maratonistas ou atletas, mas há uma aceitação tácita de que o mundo
esportivo tinha para oferecer no mínimo figuras válidas para a caminhada
(ou corrida!) cristã.
Deus nos criou com instintos naturais para desejar descanso, interação e
lazer; coisas que a Bíblia não condena se feitas dentro de seus parâmetros.
Deus fez um mundo que vai além de simplesmente satisfazer as
necessidades humanas de sobrevivência, ele criou diversidade, beleza,
deleite; ele fez um mundo prazeroso ao homem intelectualmente e
sensorialmente; um mundo para ser aproveitado. Não haveria nenhuma
restrição a Adão e Eva quanto a nadarem nos rios, brincarem com os
elefantes, comerem quase todos os frutos ou aproveitarem a companhia um
do outro em sua tarefa de povoar a terra.
Outro elemento importante nesta discussão é que fomos criados à imagem
de Deus e isto implica que somos receptivamente criativos.2 Isso significa
que Deus nos criou semelhante a ele com a capacidade de criarmos coisas
com nossas mentes e mãos. Todas as nossas criações necessariamente
refletem a criação original em certos pontos, pois não somos criadores
autônomos, mas criamos dentro do campo de possibilidades que Deus criou.
Ninguém pode imaginar uma cor que Deus não imaginou antes, ninguém
pode criar um universo fantástico que surpreenda a Deus com sua
criatividade. Trabalhemos com uma noção útil e interessante: nossos
produtos culturais de lazer e diversão são subcriações, feitas diante de Deus
parte em rebelião parte em submissão à sua vontade. Nosso interesse por
diversão envolve o fato de que em nossos jogos e brincadeiras exercemos
nosso chamado a sermos subcriadores. Em eventos grandes como as
Olimpíadas ou a Copa do Mundo podemos encontrar diversos pontos de
contato entre nossas criações e a criação divina. 3 Mas mesmo em coisas
menores como um filme, uma peça de teatro ou uma história infantil
encontraremos sempre elementos que remetem à forma e estrutura pela qual
Deus criou o mundo; seja afirmando e repetindo o que Deus fez, seja
negando e distorcendo tudo isto ou mesmo elaborando sobre o original.
Ocasiões mais simples e corriqueiras refletem a criação de Deus em menos
pontos, mas continuam refletindo (positiva ou negativamente): quando
amigos se juntam para jogar pingue-pongue ou assistir um episódio de Dr.
Who eles estão se deleitando num mundo com suas próprias regras, com
seus valores, suas noções de certo e errado, regras de relacionamento e
satisfação.
Por que buscamos diversão? Por que ali encontramos coisas para as quais
fomos criados como descanso, alegria e relacionamentos. Porque na
recreação temos a possibilidade de exercer nosso papel como subcriadores.
Não sabemos exatamente o que a parábola implica a respeito de como era a
vida dissoluta do filho pródigo, por certo envolvia gasto de dinheiro com
prostituição (v. 30) e provavelmente não estava muito longe do refrão da
música dos Titãs. Quando o filho pródigo buscou diversão, recreação e
descanso, ele fez seguindo desejos embutidos em seu coração desde a
criação; o problema é que esses desejos foram distorcidos pela queda.
A BUSCA POR DIVERSÃO E A QUEDA
A queda de Adão e Eva teve efeitos catastróficos. O maior deles é a
separação entre Deus e o homem. Ela resultou ainda na corrupção do
coração humano; todos nascem pecadores e isso afeta nossos desejos,
pensamento e ações. Pela escolha que nossos pais fizeram nós sofremos e
habitamos numa realidade cheia de erro aonde nossas atividades são
naturalmente corrompidas.
Nossa busca por diversão é natural e criada por Deus, mas em nossa
rebelião espiritual nós pegamos as coisas boas criadas por ele e distorcemos
segundo nossos desejos pecaminosos para nossas finalidades. Utilizamos as
boas coisas deste mundo para o mal. Essas distorções se mostram em todo
tipo de coisa. Por exemplo, distorções em diversão e sexualidade. Deus nos
criou para amarmos e fazermos sexo, dentro das limitações que ele criou.
Mas nossa cultura sexualiza toda sorte de coisa. Nossos esportes, nossos
filmes, nossas interações no Facebook, nosso tempo de relaxamento na
internet, tudo isso é fortemente influenciado por uma sexualização fora dos
padrões estabelecidos por Deus. Vamos além dos limites que Deus
estabelece no uso de bebida, de comida, e outras coisas – liberdade cristã se
torna, facilmente, escravidão. Coisas que deveríamos usar para celebrar a
bondade de Deus em sua criação acabam servindo para destruição, para
escândalo e causam o tropeço de nossos irmãos.
Outro tipo de distorção aparece na questão de violência e crueldade.
Passamos a amar algo que é resultado da queda como se fosse original. Não
entenda errado; em certas passagens bíblicas Deus comanda a violência e ele
mesmo pune seu Filho de maneira violenta no lugar de seu povo. Mas essa
violência existe apenas porque o pecado existe. Nossa diversão nesse mundo
é misturada com violência pois o mundo é caído; e nós gostamos disso. Para
alguns, esse interesse não passa de filmes e videogames violentos, para
outros vai além e envolve machucar, matar e afligir pessoas ou animais por
diversão. Assim, por exemplo, nosso desejo legítimo de jogar bola com os
amigos pode ser usado para impressionar e levar meninas para a cama, para
nos deliciarmos machucando o adversário ou expressando ódio e raiva e
mesmo preconceito étnico. Somos enormemente criativos em utilizar as
criações de Deus e as nossas para o mal.
Uma maneira especialmente perniciosa pela qual a queda afeta nossa
diversão é ao utilizarmos nossas subcriações para pecar de maneira que não
pecaríamos no mundo real. Dentro destas subcriações muitas vezes nos
sentimos mais livres para exercer nossos desejos pecaminosos do que fora
delas. Por exemplo, há muitos homens que não adulteram fisicamente, mas
que julgam que podem brincar com pornografia pois ela “não afeta
ninguém”, mas com isto estão adulterando no coração. Ou o pai que não
permite que o filho xingue, mas que no estádio não vê problema que isso
ocorra; a pessoa que não rouba em seu trabalho, mas não vê problema em
roubar no jogo de banco imobiliário, pois o jogo não é “pra valer.”
O filho pródigo buscou viver de maneira a dar vazão a seus desejos criados
e distorcidos pelo pecado; o resultado foi de miséria, no bolso e no coração.
Ele foi criado para desejar sexo, mas deu vazão a seu desejo fora da esfera
de permissão bíblica. Ele foi criado para desejar descanso e alegria; mas
para isso gastou tudo o que tinha e deixou sua família.
Por que buscamos diversão? Pois por meio dela podemos satisfazer
diversos desejos pecaminosos e exercer nossa pretensa autonomia em criar
nossos mundinhos onde fazemos o que queremos.
A BUSCA POR DIVERSÃO E A REDENÇÃO
Além de sermos receptivamente criativos somos ativamente redentivos.
Isto quer dizer que mesmo em nosso estado de queda ainda temos impulsos
de criar coisas boas e de consertar coisas ruins. Isto está ligado ao fato de
que o homem é a imagem de Deus (Gn 1:27) e porque ele tem a eternidade
em seu coração (Ec. 3:11). O homem caído é uma inconsistência ambulante;
ele proclama que Deus não existe mesmo sabendo que ele existe (Rm 1:18-
23). Ele tenta se ver livre de Deus, mas opera num mundo criado por Deus
com mente e corpo criados por Deus e vivendo segundos as leis físicas de
Deus. Ele deseja fugir de Deus em sua arte, trabalho e diversão, mas não
consegue deixar de refletir aquilo para qual foi criado.
Nossos filmes, novelas e revistas em quadrinhos estão repletos de temas
como reconciliação, justiça, recompensa, graça, salvação e nova vida.
Seguindo o pensamento de Cornelius Van Til, vemos que o homem, mesmo
negando a verdade de Deus, se utiliza dela em tudo o que faz. Van Til usou
a ideia de “capital emprestado.” O descrente, de qualquer cultura, não é
consistente com sua rebelião. Criado para refletir e glorificar a Deus em
tudo o que faz, o homem é incapaz de se comprometer completamente à sua
cosmovisão rebelde. Van Til frequentemente usava a figura de uma criança
que só é capaz de esbofetear seu pai pois este a segura no colo. O homem
rebelde tenta, mas não consegue se desvencilhar de Deus e da noção da
eternidade.4
O homem usa a criatividade, a matéria-prima, os temas e estruturas da
criação de Deus para suas subcriações (filosóficas, científicas, literárias,
cinematográficas...); essa ideia de capital emprestado é muito importante
para analisarmos qualquer produto cultural como filmes, literatura, rituais e
tudo o mais que se possa imaginar, pois o homem criado diante de Deus é
incapaz de negar plenamente que é imagem de Deus com a eternidade
gravada em seu coração. Cada uma de suas criações necessariamente
conterá relances, fragmentos da verdade eterna que aponta para o passado no
Éden e para o futuro eterno. Nosso lazer e entretenimento estão imiscuídos
com temas, estruturas e promessas que são semelhantes aos nossos desejos
mais profundos de libertação do mal, liberdade de medo e dor, eternidade,
reconciliação e assim por diante. Uma das razões pela qual buscamos
diversão é porque ali encontramos coisas como redenção, reconciliação, paz,
alegria e união. Claro, sempre de maneira imperfeita e manchada pelo
pecado. O homem busca na diversão suprir a necessidade que tem de Deus e
de sua eternidade. Voltado a Eclesiastes, parte integral da mensagem do
livro é que o homem busca satisfazer seu desejo por coisas maiores por meio
de todo tipo de coisa criada, mas isso tudo é apenas vapor que não mata a
sede. Blaise Pascal escreveu bem que
“O que essa busca e inquietação revelam, senão que havia um dia em
nós verdadeira alegria, da qual o que resta é apenas um esboço e traços
vazios? O homem tenta sem sucesso preencher o vazio com tudo o que o
cerca, buscando em coisas ausentes a ajuda que não encontra nas que
são presentes, mas todas são incapazes de fazê-lo. Este abismo infinito
só pode ser preenchido com um objeto infinito e imutável, quer dizer; o
próprio Deus. Apenas ele é nosso verdadeiro bem. Desde o tempo que o
largamos, é curioso que nada foi capaz de tomar seu lugar: estrelas,
céu, Terra, elementos, plantas, repolho, alho-poró, animais, insetos,
bezerros, cobras, febre, pragas, guerra, fome, vício, adultério, incesto.
Desde o tempo em que perdemos o verdadeiro bem o homem pode vê-lo
em todo lugar, mesmo em sua própria destruição, embora seja tão
contrário a Deus, a razão e a natureza. Alguns buscam este bem último
na autoridade, outros na busca intelectual por conhecimento e outros
no prazer”.5
Os Titãs estavam certos, “tudo isso só aumenta a angústia e a
insatisfação.” Deus nos fez com a capacidade de criar, mas nossas
subcriações não foram feitas para assumir o lugar de Deus e nem mesmo da
criação em nossas vidas; pois ao tentarmos criar mundos onde nos
divertimos sem Deus estamos apenas nos enganando. Podemos detectar
resquícios da realidade suprema e pensamos que eles são a própria
realidade; em nossa rebelião achamos que seremos mais felizes se pudermos
viver de acordo com nossas tolas paixões em nossas fantasias, ao invés de
nos regozijarmos em Deus em sua criação e em submetermos a Ele nossas
subcriações. Isto ocorre, pois como disse Agostinho em suas “Fizeste-nos
para ti e nosso coração só encontra paz ao repousar em ti”.6
Nós buscamos lazer e diversão pois achamos que ali encontraremos o que
buscamos. Pensamos que dançando com os amigos, boiando no oceano,
correndo atrás de uma bola, fantasiando numa partida de RPG, brincando
com nossas crianças encontraremos um pouco daquela alegria e finalidade
para a qual fomos criados. E de fato podemos vislumbrá-la, podemos quase
apalpá-la em nossas atividades. Como falou C. S. Lewis acerca de sua busca
por alegria e beleza: “Os livros ou música em que achávamos que estava a
beleza irão nos trair se esperarmos neles; não era neles, era através deles, e o
que vinha através deles era um anelo. Estas coisas — a beleza, a memória de
nosso passado—são boas imagens daquilo que realmente desejamos; se as
confundirmos com a coisa em si, eles se tornam ídolos mudos e vão partir o
coração de seus adoradores. Pois eles não são a coisa em si, são apenas o
aroma da flor que não encontramos, notícias de um país
que ainda não visitamos” (Lewis, 2001, 29).
No uso autônomo de fé-amor-esperança o homem rebelde a Deus põe sua
fé em si mesmo e em seus feitos, exercitando seu amor em dedicação a
diferentes formas de diversão na esperança de que através de jogar e brincar
ele encontrará significado e satisfação. O teólogo Herman Bavinck falou
acerca dessa situação complexa: “O homem almeja a verdade, mas é falso
por natureza. Anela por descanso e se lança em uma diversão após a outra.
Suspira por uma bênção permanente e eterna, porém, se agarra aos prazeres
do momento. Ele busca a Deus mas se perde na criatura. Nasce filho da casa
mas se alimenta dos sabugos dos porcos numa terra distante...” .7
Buscamos diversão pois ali encontramos um pouco do que sabemos que a
eternidade redentiva reserva para nós; nas nossas subcriações tentamos
replicar estas realidades sem ter de nos submetermos ao Deus criador,
tolamente achando que estas coisas podem ser separadas.
CONCLUSÃO
Os Rolling Stones por décadas têm rugido “não consigo satisfação, e eu
tento, eu tento eu tento” – nunca
irão encontrar enquanto procurarem onde procuram; vão achar coisas que
parecem satisfazer, mas que o fazem de maneira imperfeita e temporária.
Um ídolo cruel. O filho pródigo se deu conta que em sua situação não havia
mais satisfação – sua solução foi voltar. Será que ele percebeu que havia
satisfação verdadeira na casa do pai ou ele simplesmente continuava
olhando com os mesmos olhos, apenas buscando outra fonte? Ele achou que
seu problema era falta de recursos financeiros. Lembrou que na casa de seu
pai havia recursos e que mesmo os empregados comiam melhor que ele e
resolveu voltar. Quando confrontado com o amor do pai é que percebeu que
ali é que estava a verdadeira vida, numa festa onde graça se mostra para
quem não merece. Seu problema na verdade era achar que podia viver em
sua autonomia pecaminosa. A tragédia é que em nossa rebelião idólatra
tentamos atribuir à subcriação o lugar que é do Criador; buscamos adorar a
criação no lugar do Criador e terminamos com um paliativo por vezes
saboroso, mas que não satisfaz a fome.
Muitos cristãos são totalmente avessos ou críticos à diversão como se fosse
sempre pecaminosa ou no mínimo um mau uso do tempo. Outros buscam
sua diversão, mas escondidos dos irmãos por vergonha ou incompreensão. A
música do Titãs começa com a frase “A vida até parece uma festa.” De fato,
nossa vida é marcada por festas formais ou informais. Festas de casamento,
de aniversário, de promoção, de estação, de aprovação, de fim-de-semana.
Festas em que temos de fato um aperitivo de uma festa maior, reservada
para os que são recebidos pelo pai gracioso pelo único caminho do Filho que
se entregou por filhos pródigos e por filhos que se achavam obedientes.
Compreender que nossa busca por diversão está enraizada na nossa noção
imperfeita de uma realidade superior irá nos ajudar a encontrar o caminho de
retorno. Entendendo primeiro a redenção maravilhosa comprada por Cristo
poderemos então aplicá-la neste mundo caído redimindo o tempo e o
mundo, enquanto caminhamos não para a criação original, mas para a
recriação de todas as coisas onde enfim teremos perfeito descanso, trabalho
e adoração.

1 RYKEN, Leland. 1987. Work and leisure in Christian perspective.


Portland, OR: Multnomah Press. p. 183
2 Devo a meus mentores Wadislau e Davi Gomes as expressões
“receptivamente criativo” e “ativamente redentivo.”
3 Para um tratamento mais longo da questão do amor humano por diversão e
de como a Copa do Mundo é uma subcriação que reflete a criação divina ver
minha dissertação: The 2010 Soccer World Cup as Sub-creation: An analysis
of human play through a theological grid of creation-fall-redemption. 2011.
Reformed Theological Seminary.
4 VAN TIL, Cornelius. 2007. An introduction to systematic theology:
Prolegomena and the doctrines of revelation, scripture, and God. 2nd ed. Ed.
William Edgar. Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed Publishing. p.
153.
5 PASCAL, Blaise. 1999. Pensées and other writings. Trans. Honor Levi.
Oxford World’s Classics. Oxford, UK: Oxford University Press. p. 52.
6 AGOSTINHO. 1998. Saint Augustine’s Confessions. Trans. Henry
Chadwick. Oxford World’s Classics. Oxford, UK: Oxford University Press.
p. 3.
7 VAN TIL, Cornelius. 2007. An introduction to systematic theology:
Prolegomena and the doctrines of revelation, scripture, and God. 2nd ed. Ed.
William Edgar. Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed Publishing. p.
22
* Emilio Garofalo Neto completou seu Ph.D. no Reformed Theological
Seminary, nos EUA. É ministro presbiteriano e pastor da Igreja Presbiteriana
Semear em Brasília, professor de teologia sistemática e pastoral no Seminário
Presbiteriano de Brasília, professor visitante em teologia pastoral no CPAJ e
autor do livro “As Boas Novas em Rute” (Monergismo).
APÊNDICE A

DESAFIOS PARA O JOVEM


CRISTÃO EM UMA SOCIEDADE
SECULARIZADA

O texto a seguinte é uma transcrição adaptada do VEcast, um podcast


publicado pelo site Voltemos ao Evangelho no dia 11 de Outubro de
2017, no qual Vinicius Musselman conversou com Heber Campos Jr e
Jonas Madureira sobre os desafios para o jovem cristão em uma
sociedade secularizado.
Vinicius: Quais são os desafios dos dias atuais que os jovens cristãos têm
enfrentado nessa sociedade secularizada? Quais os conselhos que eles
deveriam receber a fim de tomarem cuidado quando estiverem diante dessas
questões?
Heber: A primeira compreensão necessária é entendermos um pouco do
que se trata essa secularização. O filósofo Charles Taylor, em seu famoso
livro sobre secularização, escrito há 10 anos, fala sobre “um mundo
moderno que perdeu o encanto”, que enquanto na era medieval havia a
crença em Deus – e por muito tempo esse era o padrão – hoje parece que
agora o padrão se tornou contrário. Quero fazer uma ligação desta definição
de Taylor com a que Tim Keller apresenta. Enquanto Taylor expõe seu
argumento do ponto de vista de um católico romano, Keller fala de uma
perspectiva protestante e de uma maneira fácil do jovem entender. Ele diz
que, na verdade, o que acontece nesse suposto desencanto não é a ausência
de religião, é a substituição de religião. Se o ser humano é essencialmente
religioso, ele só vai ter outro deus, outro molde de adoração, outros valores
ético-morais.
É importante que o jovem cristão saiba disso, porque ele tem a impressão
de que estar em um mundo secularizado significa que as pessoas não têm
religião. Então se ele falar sobre Deus, isso mataria qualquer conversa. E
isso não é verdade. O pensamento errôneo formado é que as pessoas não
irão ouvir se ele pregar o evangelho e por isso ele deve convencer as pessoas
por outros meios. Esse é um tipo de entendimento errado da secularização.
Ela não é que agora a religião não tem um lugar, mas que agora a religião
mudou. O ser humano não consegue deixar de ser religioso e adorador.
Então, se o jovem tivesse isso em mente, ele entenderia melhor como
enfrentar os desafios do secularismo.
Vinicius: Isso traz um ponto interessante. O jovem quando ele entra no
mundo, ele não lida com um mundo imparcial. O mundo secularizado gosta
de se colocar como imparcial e neutros, enquanto os religiosos são parciais
que acreditam em uma fábula.
Heber: Quando as pessoas secularizadas querem simpatizar com alguma
religião, eles dizem que ela é uma questão da esfera privada. Inclusive, eles
podem até dizer: “Eu também tenho a minha religião, meus pais me
legaram”, mas isso é uma coisa o que ele faz esporadicamente. Na verdade,
quando eles impõem uma maneira de pensar na esfera pública, eles impõem
uma religiosidade que possui valores.
Um exemplo bem interessante disso é quando as pessoas falam sobre
moral e certos padrões de conduta que não são aprovados pela moral cristã,
eles dizem que a moral é um assunto complicado que não temos como
determinar com afinco. Eles são contra um estabelecimento ético formal,
mas são essas mesmas pessoas que chamam os cristãos de discriminadores.
Discriminação pressupõe um valor ético acima do indivíduo. Qualquer tipo
de codificação de discriminação pressupõe que se tem o conceito de moral.
No final das contas, a moral só serve na hora que interessa, pois ela é
relativa; no momento que é para defender os direitos de um indivíduo, ela
passa a ser discriminação – que é a apropriação de determinada ética para
falar de justiça, direitos, etc. Isso é para mostrar que é errada a ideia de que
o mundo secular é um mundo sem entrada, na qual não podemos usar a
Bíblia na esfera pública. O primeiro entendimento, então, é que estamos
tratando de pessoas religiosos por natureza. Precisamos aprender a mostrar
que eles têm uma religiosidade, mas que não é admitida.
Jonas: Eu concordo. O caráter religioso do secularismo é o ponto
nevrálgico nesta discussão. Ou seja, o secularismo não pode ser observado
como uma cosmovisão que não envolva um comprometimento do coração.
Existe comprometimento religioso e do coração. E, eu diria, ainda mais um
detalhe que completa essa avaliação. Em primeiro lugar, é o fato do
secularismo não ser neutro, pois ele tem um posicionamento. Porém, mais
do que isso, ele é um movimento religioso anticristão. Em geral, as pessoas
acham que o secularismo é uma reação contra tudo que é religioso, mas não
é.
Por exemplo, se você está na universidade, o budismo é aceito e
considerado glamoroso. Contudo, o secularismo tem uma reação muito mais
emotiva e beligerante contra o cristianismo. Prova disso é que em qualquer
universidade europeia, por exemplo, as pessoas estudam o universo islâmico
dedicando-se à filosofia árabe. Então, é interessante perceber como o
discurso do secularismo não afronta o islâmico. Enquanto o secularismo
amedronta os cristãos e é um problema para eles, os muçulmanos não ligam
para o secularismo. Ou seja, o que dá a entender é que o secularismo parece
ser uma reação ao cristianismo muito mais especial do que a qualquer
religião como um todo.
Heber: O que faz sentido diante do que a Bíblia fala. As Escrituras sempre
têm histórias de como a criatura herda ou recebe coisas do Criador e depois
se volta contra o Criador com os presentes que o Criador lhe deu. Na
verdade, o secularismo ocidental se apropria do capital gerado pela estrutura
cristã e o utiliza contra essa fé cristã.
Jonas: É por isso que não funciona com o muçulmano, porque o capital é
cristão; ele usa a ética cristã. É parasitário, nesse sentido.
Heber: São utilizados o senso de direito, os aspectos sociais, políticos e
até mesmo econômicos herdados da tradição cristã. Então, é interessante
enxergar como existe esse elemento anticristão, porque é uma reação às
coisas que o Senhor Deus nos proporciona. E, é nisso que podemos perceber
a história bíblica se repetindo – o homem se voltar contra o Criador com os
presentes que o próprio Criado lhe legou.
Jonas: Presenciei uma cena na PUC em que os próprios estudantes, numa
universidade católica, faziam no pátio da cruz uma performance cortando
uma representação do Papa Bento XVI. Eles deceparam com uma serra
elétrica a cabeça do Papa, enquanto outros celebravam explodindo uma
bomba na cruz.
Vinicius: Mas estudando na PUC...
Jonas: Essa é a incoerência do ateu que nega a existência de Deus usando
a razão que Deus lhe deu. Esse contrassenso é muito claro. E isso gera em
nós uma espécie de sensibilidade para não entrar no jogo de usar uma
apologética de guerra, de simplesmente vencer o debate e não entender o
porquê a pessoa secularizada está fazendo esse movimento e fazer questões
que sejam reveladoras. O universo secularista por ser tão questionador,
jogou-nos para um lado reativos e por isso não conseguimos mais fazer
nenhum tipo de pergunta.
Heber: Alguns autores sabiamente nos lembram que a apologética tem um
lado ofensivo, que anula sofismas, como o apóstolo Paulo fala. Ela não deve
ser belicosa, no sentido de ofender alguém, mas de mostrar a incoerência de
pensamentos alheios. Parece que alguns cristãos não percebem que estão
minando suficiência das Escrituras e da cosmovisão que advém delas
quando querem alguma coisa para complementar. Por exemplo, o
entendimento dessas pessoas é que a Bíblia para a escola dominical é ótima,
mas na universidade “isso não funciona, precisamos aprender filosofia e
outras ciências”, como se ele fosse aprender algo completamente diferente.
Na verdade, elas precisam aprender a enxergar o mundo com os óculos
bíblicos.
Vinicius: O mundo secular está compulsoriamente perseguindo o viver em
comunidade. Vemos no mundo de hoje a comunidade gay, etc. e há uma
deturpação daquilo que Deus propôs em Cristo Jesus da comunidade que é a
igreja de Cristo. É possível observar que as pessoas buscam uma
comunidade...
Jonas: Uma igreja sem Deus, ética sem Deus, política sem Deus, etc.
Vinicius: Igrejas sem Deus já existem lá na Europa – igreja ateísta. Eles
buscam imaginar um mundo em unidade, sem céu, sem inferno, mas essa
busca não dá em nada, pois eles não acham o ponto unificador que Cristo
traz – o novo homem em Cristo Jesus – e caem em uma intolerância dos
tolerantes, como Carson afirmou.
Heber: Os reformados do passado nos ensinaram acerca do que foi dito,
que todas as vezes que se propõe uma comunidade alternativa sem Deus,
igreja sem Deus, ética sem Deus e assim por diante, mostra que o ser
humano é capaz de distorcer radicalmente a ordem criacional de Deus, mas
ele nunca consegue erradicá-la. O ser humano, do jeito que ele foi feito, não
consegue viver sem o senso de comunidade. A proposta de um casamento
gay mostra que ele não consegue viver sem senso de família, de casamento,
de união. Ele distorce, mas não consegue pensar num mundo paralelo.
Jonas: Isso me lembrar de um texto de Herman Dooyeweerd que diz que a
consciência secular não destruiu a direcionalidade do homem a Deus ou o
impulso do homem para Deus. Assim como o pecado, ela redirecionou o
indivíduo para um ídolo, que pode ser a própria sexualidade, a questão do
dinheiro e do poder.
Vinicius: Podemos perceber nos movimentos esquerdistas que eles
mesmos possuem um fervor equiparável a uma religiosidade pautada em
novos termos nessa busca pelas novas categorias.
Jonas: A figura messiânica de um político, por exemplo, representa a
redenção, ou seja, isso é típico de um movimento que é religioso do homem,
mas ao mesmo tempo distorcido.
Heber: A busca por redenção é constante, pois o ser humano sem a
verdade bíblica tem uma noção do ideal, do mundo como ele deve ser e eles
têm a noção de que o mundo não é o que deveria ser, por causa da queda,
mas se pedirmos para eles darem uma solução veremos a distorção
completamente marcada pela apostasia. É por isso que o que os jovens
devem perceber é que novos evangelhos têm surgido o tempo todo. Novas
boas-novas que não são o verdadeiro evangelho. Eles podem acertar em
alguma descrição de como o mundo é, pois a graça comum permite isso;
eles podem até acertar também quando detectam que as coisas não andam
bem; mas eles nunca vão acertar a proposta de redenção.
Vinicius: Como foi mencionado antes, não estamos entrando num campo
em que eles falam uma língua e a gente outra; eles têm propostas religiosas e
nós também temos.
Heber: Embora os conceitos sejam os mesmos, alguns de nós temos
falhado em não aprender a dialogar com eles. Então é valido esse alerta de
que temos que aprender a traduzir o que nós cremos para uma linguagem
que eles entendam, só que isso de forma de desafiá-los a pensar nas suas
premissas.
Vinicius: Inclusive traduzindo os termos deles para os nossos, a fim de
mostrar que eles estão cunhando ideias religiosas.
Heber: Quando entendemos que cosmovisão é um apego do coração,
entendemos que religiosidade não é necessariamente sobre Deus e o
sobrenatural, mas sobre aquilo que nos move nesta vida, as causas que nos
deixam apaixonados – ou seja, ligar-se a algo de forma religiosa.
Jonas: No livro Cristianismo Puro e Simples disse que não é porque você
é cristão que todas as outras religiões estão erradas. É possível que as outras
religiões digam o que também dizemos como cristãos. No entanto, todas as
vezes que o cristão, baseado na Palavra de Deus, que diz algo e as outras
religiões dizem outra coisa, seja o cristianismo verdadeiro e todas as outras
falsas. Essa maneira de encarar as leituras hoje é importante, porque ela não
é aquela coisa que a gente pode simplesmente olhar sem, por exemplo, a
chave da Graça Comum. Mas, às vezes podemos deixar escapar pelos dedos
e simplesmente partir que uma relação de luta, de batalha e de vencer porque
não há nada ali que expresse de alguma forma a Soberania de Deus.
Portanto, tudo que existe no mundo expressa de alguma forma essa
submissão ao senhorio de Cristo.
Nós, muitas vezes, temos a dificuldade de encarar essa submissão da
realidade a nossa volta a Cristo, pois nós ainda não conseguimos refinar essa
diferença entre o discurso de uma pessoa e o real. O fato de alguém repetir
inúmeras vezes que Deus não existe, não significa que ele não exista. A
questão do real e a questão do mundo como um todo ser fruto de uma
apreensão real das coisas, ela foi deixada de lado. E então entramos sempre
na discussão das ideias, dos pensamentos e da opinião. “Isso é sua opinião;
esta é a minha opinião.”
Heber: A falácia disso é que quando alguém diz “essa é a sua opinião”, ela
afirma ter uma noção do todo. Essa é a falácia é a história do elefante, do
cego que apalpa a parte do elefante. Ou seja, para alguém dizer que você só
apalpou uma parte do elefante, ela precisa pressupor que tem um todo.
Então, todo mundo que diz que é só possui uma parte na verdade afirma ter
uma noção do todo. Ele soberbamente está dizendo isso.
Vinicius: Teria muito mais para conversarmos e eu estou empolgando com
a possiblidade de trabalharmos este e outros assunto na Conferência Fiel
Jovens 2018.
APÊNDICE B

IDEOLOGIA DE GÊNERO:
COMO UM CRISTÃO DEVE
PENSAR SOBRE O ASSUNTO?

O texto a seguinte é uma transcrição adaptada do VEcast, um podcast


publicado pelo site Voltemos ao Evangelho no dia 6 de Dezembro de
2017, no qual Vinicius Musselman conversou com Heber Campos Jr e
Jonas Madureira sobre os desafios para o jovem cristão em uma
sociedade secularizado.
Vinicius: Um dos moldes que tem se levantado contra o jovem cristão é a
questão da ideologia de gênero, que hoje é muito forte nas escolas, na
opinião pública, nas molduras do Facebook de pessoas que apoiam essas
questões. Contudo, antes de prosseguirmos com o assunto, é necessária uma
definição: O que é ideologia de gênero?
Heber: Ideologia de gênero é uma nova maneira das pessoas legitimarem
anseios antigos. Por exemplo, veja o movimento feminista anos atrás
abrindo porta para a igualdade de direitos, mas também querendo fazer da
mulher não mais o sexo frágil e tornando-a capaz de fazer tudo o que o
homem faz. Isso proporcionou uma abertura para uma reestruturação
familiar; e isso ajudou o movimento homossexual ou fez com que ele
pegasse carona com o feminismo.
Na década de 90, com o desenvolvimento da genética, uma das principais
estratégias para o movimento homossexual foi tentar achar a base biológica
e encontrar o gene homossexual. Porém, as pesquisas nunca tenham
resolvido o assunto. Isso se deve ao fato de que quando se pesquisavam
gêmeos univitelinos, por exemplo, não era possível ver padrões semelhantes.
Então, tanto o aspecto biológico quanto o social não normatizavam
determinado comportamento. Chegando agora na definição de ideologia de
gênero, podemos dizer que ela é uma nova maneira de legitimação dos
anseios que as pessoas possuem.
Agora, os indivíduos não vão mais para o campo da biologia, mas para os
elementos românticos: “sexo é o que eu nasci, eu nasci homem, eu nasci
mulher e eu tenho essa definição em termos sexuais; gênero é o que eu sou
internamente; são os meus desejos, aquilo que eu gostaria de ser, a minha
identidade.” Então, entendemos que ideologia de gênero é uma palavra mais
recente, mas ela pega carona em tentativas frustradas anteriores e nas novas
ideias que vêm surgindo. Portanto, acreditamos que ela é uma nova maneira
de legitimar os anseios que há muito tempo estão tentando buscar entrada e
tentando justificar o seu comportamento.
Jonas: A relação do anseio joga toda a discussão da ideologia de gênero
do mundo real para o mundo ideal, ou seja, para o mundo imaginário. Não é
o que a pessoa é no mundo real, mas como ela se vê, como ela se imagina,
como ela constrói a sua realidade. Por isso que é a ideia de um constructo
social, de um constructo cultural e que, portanto, o ser homem, o ser mulher
ou o ser homossexual, todos eles são constructos sociais, questões culturais,
questões de ordem interpretativa e imaginativa.
Tudo isso é fruto de uma espécie de ruptura do senso comum. Hoje, mais
do que nunca, precisaríamos resgatar as teses desenvolvidas pelo filósofo
Thomas Ride, que inclusive foi um pastor presbiteriano, o qual desenvolveu
uma filosofia muito interessante acerca do senso comum, ou seja, as pessoas
não conseguem mais olhar as coisas e dizer que as coisas são aquilo que elas
estão vendo. As pessoas estão sempre duvidando do real e das coisas
concretas. Elas vão julgando as coisas não mais com base numa confiança
baseada na apreensão comum da realidade.
Então, hoje, se você tem um corpo, ele não diz tudo o que você é, porque,
na verdade, o corpo que você tem pode não representar o que você é. Há
uma ruptura do ser e do corpo e uma revolta e uma sabotagem da alma com
relação ao próprio corpo. O sujeito diz: “esse corpo não combina, não me
representa”. Junto com esse movimento que nega o corpo porque a alma é
diferente, há um outro movimento contraditório ao primeiro que afirma: “eu
faço o que eu quero com o meu corpo’’. Ou seja, esse corpo não é meu, não
me representa, mas eu faço com ele o que eu quero.
Heber: Uma outra contradição é que todas as vezes que essas pessoas
falam que ser homem e ser mulher é um constructo social, elas estão
dizendo que é um abuso de poder e que os outros estão impondo a estrutura
do que acreditam sobre elas. Entretanto, é muito curioso que eles gostem de
construir a sua própria identidade. Isso é uma ironia, pois o constructo social
dos outros não serve, mas o meu serve. Essas pessoas constroem alguma
coisa que dará sentido àquilo que querem. Então, o que nem sempre é dito, é
que, com isso, ao construírem sua identidade elas também estão impondo,
havendo, assim, uma questão de troca de poder.
Jonas: De alguma forma alguém irá impor. Por isso que nessa discussão
ainda que a gente discuta a questão do gênero, no fundo essa é uma
discussão teológica, ou seja, essa discussão é a de quem dá a palavra final.
Quem vai, no final das contas, dizer: isto é um homem, isto é uma mulher?
Vinicius: No campo filosófico as coisas podem ser um pouco mais certas,
mas quando partimos para a internet, onde as coisas são bem mais
bagunçadas, o que se vê bastante é uma tentativa de justificar sentimentos
ou afetos desregulados buscando qualquer argumento. Nas postagens do
Voltemos ao Evangelho que tratam sobre a homossexualidade, encontramos
pessoas argumentando que é uma construção social, outras dizendo que
nasceram assim, outras afirmando “o corpo é meu e eu faço o que eu quero”
e outras declarando que religião não se impõe (mas eu posso impor a
minha). Assim, nós vemos que não é um todo coerente, mas uma tentativa
de encontrar argumentos quer sejam biológicos, filosóficos ou sociológicos
para impor isso à sociedade.
Heber: Uma outra coisa que mostra esse tipo de desejo por controle, é que
as mesmas pessoas que estão lutando por “libertação’’ para defender seus
direitos homossexuais, não acreditam em conversão de alguém que era gay e
agora se tornou heterossexual, por exemplo. Esse fato é contraditório, pois
se é uma questão de identidade, se é uma questão de construção, porque eles
lutam contra uma pessoa que quer descontruir a identidade seguindo por
outra direção?
Vinicius: Jonas você disse que é questão teológica, então a Bíblia trata
desse assunto?
Jonas: Antes de tratar essa questão bíblica, faz-se necessário explicar
porque a ideologia de gênero é, no fundo, uma questão teológica. No livro
Cristianismo Puro e Simples, do C. S. Lewis, no capítulo que ele se dedica
às questões éticas, ele divide o primeiro movimento e explica os 3 aspectos
da moralidade, que seriam: o que é o eu, o outro e o sentido da vida. Então,
ele explicou a moralidade humana dos dias de hoje da seguinte maneira: “Eu
não ferindo o outro, vale tudo! Desde que eu não fira o outro e tenha um
sentido na vida, vale tudo!” Assim, eles chegaram ao seguinte raciocínio:
“Eu posso fazer com o meu corpo o que eu quero, porque se eu fizer algo
com o meu corpo, não estou agredindo o outro, então, tudo bem; isso é
moralmente aceitável.”
Porém, isso é aceitável se no outro não houver Deus, porque se você tem
Deus, sendo um cristão, por exemplo, nessa esfera do outro você tem Deus,
e se você tem Deus, no horizonte do outro, eu já não posso dizer: “o corpo é
meu e eu faço o que eu quiser com ele”. Um cristão, por exemplo, teria
muita dificuldade de estabelecer a moral dele com base nessa tríade mais
comum, do tipo: “Não fazendo mal para o outro, eu posso fazer o que eu
quero, desde que eu encontre um sentido na vida e paz naquilo que eu estou
fazendo.” Contudo, quando esse outro envolve não somente as pessoas, mas
a Deus, por mais que elas não sejam donas do seu corpo, Deus é.
Todavia, quando essa questão é discutida na esfera pública, Deus está fora!
Então, um cristão que está no contexto público e entra nessa discussão, a
opinião dele sempre fica incompreensível porque, para qualquer pessoa na
esfera pública, Deus não entra nesse jogo do outro, Deus não é esse outro.
Ou seja, no fundo a discussão é com pessoas ateístas; mesmo que não sejam
professos, e simplesmente não estão considerando o fato de que se Deus
existe, eu não posso de forma alguma dizer: “o corpo é meu e faço com ele o
que eu quero”.
Heber: O elemento teológico traz o maior dos argumentos, de que Deus
fez todas as coisas, de ir de encontro à estrutura criada por Deus. Mas a
Graça Comum permite que, às vezes, algumas pessoas sem a luz do
evangelho, tenham insights interessantes. Um tempo atrás li sobre
movimentos de pessoas de diferentes religiões, notando que o movimento
homossexual como um todo e a proposta de ideologia de gênero e tudo
aquilo que veio como resultado da Revolução Sexual de 60 em diante, é que
existe um egocentrismo não proclamado, isto é, meio velado. A impressão
que se tem é que as pessoas que optaram por essa proposta de viver a vida
sexual conforme elas desejam são do bem. Sendo assim, elas fazem
caridade, só que nunca é um bem em detrimento do que eu quero. Elas
aprendem a fazer o bem para “ficar bonita na foto”. Na verdade, nunca é um
movimento que lhe priva de certas coisas, por isso que é necessário falar aos
jovens e às outras pessoas que o cristão não pode ser alguém que
primordialmente defende os seus direitos. Caso contrário, ele também
estaria sendo um egocêntrico como os outros.
Jonas: Um livro que saiu em 2015, chamado “Da Leveza”, de Gilles
Lipovetsky, fala sobre a questão da cultura da leveza e da necessidade de se
librar dos pesos. Zygmunt Bauman já havia levantado o assunto ao falar a
respeito da cultura do peso. Nesse paradigma, a visão bíblica da cultura
cristã sobre a sexualidade e sobre a privação por conta do pecado de
determinadas satisfações faz as pessoas olharem o cristianismo e a leitura
bíblica do mundo como um elemento castrador e um impedimento para
terem uma vida feliz – e isso é uma religião de peso. A cultura da leveza diz
que tudo o que é mais leve é interessante, ou seja, as pessoas querem tirar o
peso do telefone, querem tirar o peso das relações, querem tirar o peso de
um compromisso, ou seja, tudo tem que ser muito leve. Isso se traduz no
corpo, pois o ideal é o corpo magro e as pessoas o tempo todo buscam de
alguma forma se livrar dos pesos. O que autor do livro percebeu é que essa
busca pela leveza se tornou pesada, a pessoa tem que ser leve, ela tem que
produzir as coisas com leveza, ela tem que ser feliz. Ou seja, ela tem que
estar satisfeita o tempo todo; ela não pode ser triste. No entanto, isso acabou
se tornando um peso: “seja feliz o tempo todo, senão você não será feliz.”
Heber: Quando se fala de algo teológico é porque Deus tem algo para nos
ensinar nas Escrituras que achamos que de fato são significativas e uma
delas é o texto de Romanos 1. Ele é um texto clássico para falar sobre esse
assunto, pois trata da importância de nós não sermos guiados por paixões
desordenadas. Ele está querendo dizer o seguinte: você precisa, como
cristão, partir do pressuposto de que os seus sentimentos, seus sonhos, seus
interesses e suas emoções muitas vezes são dominadores ao ponto de
prejudicá-lo. Assim, o texto nos ensina a não sermos escravos das nossas
emoções, dos nossos sonhos, dos nossos desejos. Então, paixões
desordenadas mostram que sempre que alguém buscou “liberdade” acabou
se tornando escravo de novo. Esse é um insight bíblico interessante e por
isso que é teológico, por que é Deus dizendo: “Não pense que você sabe o
que é melhor para a sua vida!”
Jonas: Gênesis 3 diz que para o homem desejar ser Deus ou ser como
Deus, ele precisa negar a si mesmo; ele precisa já não se aceitar. Não há
nada mais adâmico do que não aceitarmos a nossa própria identidade. A luta
contra a nossa verdadeira identidade está ali expressa pelas Escrituras. A
luta que muitos tem é contra ser aquilo que os outros querem que sejamos.
Então, eles dão um basta e afirmam que eles irão decidir ser quem querem
ser. Ou seja, eu não aceito o que eu sou, mas eu imagino o que eu quero ser
e vou me tornar aquilo que eu quero ser; e para isso eu preciso negar o que
eu sou. O encontro com o Evangelho, o encontro com Cristo é o que
promove o resgate dessa identidade. O verdadeiro resgate não é ser aquilo o
que os outros querem que sejamos ou o que nós mesmos queremos ser (não
é trocar um tirano pelo outro), mas é conhecer o Deus que revela a tua
verdadeira identidade. Essa questão da negação do ser não é tratada porque
ela não é considerada biblicamente. O que está sendo dito é que o real é
bíblico, a Bíblia não é um constructo social, a visão bíblica do mundo não é
um constructo de cristãos sobre a realidade. A visão bíblica do mundo
reflete o mundo como ele é.
Heber: Aprecio a maneira como o Jonas conecta essa discussão com o
problema adâmico, pois uma das coisas que devem ser ditas aos jovens a
respeito de todo esse debate, e também aos que são mais velhos, é que se
existe um certo grau de sabedoria que a gente tem que aprender ao olhar
para a cultura de hoje em aprender as novas estratégias daqueles que são
contrários à verdade de Deus, é que existe um elemento de repetição dos
mesmos anseios. E é aqui que deveríamos aprender a boa teologia do
passado, compreender as Escrituras e entender que a raiz da pecaminosidade
lá no nosso íntimo são importantes e formadoras de uma visão de mundo
bíblica. Assim, jovens que estão enfrentando esse problema, não procurem
só novas estratégias, mas lembrem que a fé que nos legaram continua sendo
importante para ser proferida hoje. Ela precisa ter a sapiência de entender os
argumentos mais recentes e dar resposta a eles, embora seja um problema
antigo.
Vinicius: Um dos argumentos que podemos ver na atualidade é o de que
Jesus nunca falou a respeito da questão homossexual ou sobre outras
questões (um argumento do silêncio), mas é interessante que Jesus cita
Gênesis quando Deus colocou um homem e uma mulher. Em Gênesis é
interessante quando notamos que após a queda a questão da sexualidade
vem piorando gradativamente. Temos um homem e uma mulher em perfeita
unidade; depois da queda, percebemos uma disfunção no casamento; em
seguida, temos Lameque e a sua poligamia e vemos isso crescendo até que
temos um incesto envolvendo as filhas de Ló e tudo só vai piorando.
Heber: Dizer que Jesus nunca disse é um problema antigo; é cânon dentro
do cânon, pois Paulo disse, Moisés disse no Pentateuco, ou seja, vários
lugares tratam a respeito disso e o próprio Salvador endossa o texto que fala
da união entre o homem e a mulher. Então, toda vez que alguém diz que
Jesus não tratou da questão está trazendo uma heresia antiga, um cânon
dentro do cânon. O que Jesus disse é o que estamos lendo pelas lentes de
Mateus, de Marcos, de Lucas e de João e que são apóstolos como Paulo era.
Vinicius: Há muito mais para tratar sobre este assunto, mas creio que
demos uma boa introdução o assunto, a fim de trabalharmos melhor na
Conferência Fiel Jovens 2018.
INSCREVA-SE NA
CONFERENCIA FIEL JOVENS
2018!

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