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O Mundo na Sapucaí:

A construção da imagem de cinco países nos desfiles do carnaval


carioca

Guilherme Braga de Oliveira Alves

Mestrando em Políticas Públicas em Direitos Humanos pelo Núcleo de Estudos em


Políticas Públicas e Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (NEPP-
DH/UFRJ). Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro.

Pedro Allemand Mancebo Silva

Mestrando em Economia Política Internacional pelo Instituto de Economia da


Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ). Bacharel em Relações Internacionais pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
1. Introdução
Uma das grandes manifestações culturais brasileiras é, sem dúvida, o carnaval carioca.
O maior espetáculo da terra mobiliza multidões em torno dessa grande celebração e o centro
pulsante dessa comemoração é o momento dos desfiles das escolas de samba na avenida
Marquês de Sapucaí. Do momento em que saem da Presidente Vargas e entram nos 700
metros que percorrem até a Praça da Apoteose, as escolas cantam sambas, desenvolvem
enredos e expõem fantasias e alegorias que falam sobre um determinado tema que é
trabalhado durante praticamente todo o ano de atividade das escolas.
Nessa grande festa, para se falar de qualquer assunto, da cozinha mineira aos orixás
das religiões africanas, passando por celebridades como Ivete Sangalo, há a extensa utilização
de recursos narrativos e estéticos que buscam contar uma história coerente, produzida por
carnavalescos e pelas comunidades que se mobilizam em torno da escola. Nesse intuito,
vemos um verdadeiro trabalho de cultura, que busca não apenas falar do assunto específico,
mas também passa pelo pano de fundo histórico e cultural que se colocam no entorno daquele
determinado fenômeno. Um bom exemplo é o caso de desfiles que se propõem a falar sobre
celebridades. Não basta, para os sambistas, falar apenas da pessoa em si ou de seus atributos -
e seria extremamente maçante fazê-lo; é necessário falar sobre o lugar de onde aquela pessoa
veio e da cultura local, dos lugares por onde a pessoa passou e construiu sua carreira e muitos
outros aspectos que constroem uma narrativa sobre o objeto do enredo em si, mas também
sobre a relação entre esse objeto e a história na qual ela se inseriu.
Um tema particularmente curioso e recente para as escolas são os enredos baseados em
países estrangeiros. Esses constituem um objeto de pesquisa particularmente estimulante para
as Relações Internacionais. Por se tratar de um ator subnacional (na verdade, um ator local),
projetando para um público nacional um discurso sobre os outros países do mundo – por
vezes se utilizando de atores subnacionais desses países – a partir de elementos da cultura
brasileira. Essa situação específica permite que se faça uma profunda análise do discurso e
proporciona um espaço para se analisar as construções sociais e as imagens que se colocam no
imaginário brasileiro a respeito de outros países.
O presente trabalho tem por objetivo principal encarar os sambas de enredo como uma
narrativa que, como tal, se utiliza de recursos literários para construir para si e para o público
a imagem de diversos países a partir de um estilo musical e dentro de uma manifestação
cultural brasileiras. Ao perseguir esse objetivo, também será analisada as diferenças existentes
entre a construção da imagem entre os países, assim quais os elementos – se naturais, culturais
ou histórico-sociais – sobre os quais esses sambas de enredo se debruçam na construção dessa
imagem coerente e estilizada sobre um determinado país.

2. Metodologia

Para atingir o objetivo central, se faz necessária uma análise eminentemente


qualitativa, na qual serão analisadas as letras dos sambas de enredo. A análise dessas canções
permite ver as ideias iniciais para se falar de países estrangeiros, e também quais
características específicas dos países foram selecionadas para compor a canção que
acompanha a execução do desfile. Além disso, também foram levantadas informações a
respeito do patrocínio dos enredos para observarmos a possibilidade de influência do país
homenageado sobre o tipo de samba desenvolvido pela escola.
Para tornar tal análise factível, é necessário estabelecer uma amostra de sambas que
contemple determinada diversidade de países e temas, mas também de escolas de samba
analisadas, desenvolvidos em anos diferentes. Dessa forma, foram escolhidos cinco enredos,
produzidos na década de 2010, que abrangem países de quase todos os continentes do nosso
planeta. Para o continente americano, foi escolhido o samba-enredo da Unidos do Viradouro,
“México, o paraíso das cores sob o signo do Sol”. Para o continente asiático foi escolhido o
enredo “As sete confluências do Rio Han”, da G.R.E.S Inocentes de Belford Roxo, desfile
desenvolvido em 2013 para se falar da Coreia do Sul, em especial da migração de sul-
coreanos para o Brasil. Buscando um samba com temática europeia, decidiu-se analisar o
enredo da Unidos da Tijuca apresentado em 2015, “Um conto marcado no tempo: o olhar
suíço de Clovis Bornay”, em que se reconta a trajetória do carnavalesco citado no título e,
para isso, se fala a respeito de suas origens no Velho Continente (especificamente na Suíça),
mostrando o impacto desse “olhar suíço” para a trajetória do homenageado. Para mostrar a
construção social da imagem da África na Avenida escolhemos dois sambas para contemplar
minimamente a diversidade dos países, e consequentemente das representações, daquele
continente, colocando um sobre um país da África Subsaariana e outro para o Norte da África.
Na parte subsaariana, analisaremos o enredo “Um Griô conta a história: um olhar sobre a
África e o despontar da Guiné Equatorial”, polêmico samba da Beija-Flor de Nilópolis no
carnaval de 2015. Finalmente, para o Norte da África, será analisado o desfile da Mocidade
Independente de Padre Miguel do ano de 2017, “As mil e uma noites de uma ‘Mocidade’ pra
lá de Marrakech”, sobre o Marrocos.
3. Fundamentação teórica
Se as Relações Internacionais (RI) se afirmam como um olhar científico sobre o fenômeno
internacional, por muito tempo as análises ficaram restritas às análises de fenômenos de
natureza interestatal. O “estado-centrismo” característico das RI até hoje se justificam pelas
temáticas fundadoras desse ramo de estudos e das preocupações das principais teorias
produzidas a partir dele para a compreensão do mundo. Se discutimos a guerra e a paz, a
governança internacional ou a economia política internacional, as análises fatalmente terão de
se centrar sobre o estado nacional para produzir explicações coerentes para a realidade.
Recentemente, porém, uma série de novos temas têm sido incorporados ao campo de interesse
das RI, causando um alargamento que permite discussões cada vez mais interessantes sobre
dinâmicas não estatais e não nacionais, por tomarem para si objetos de estudo que, apesar de
inseridos sob a autoridade de um determinado estado- nação, não estão a ele vinculados e
muito menos dependem dele para o desenvolvimento normal de suas atividades. É o caso dos
debates a respeito de movimentos sociais, da construção dos estereótipos e dos fenômenos
transnacionais presentes no nosso mundo.
Para lidar com esses objetos é necessário montar um referencial teórico que seja capaz
de encarar fenômenos a partir das RI, mas também em interface com as diversas áreas do
conhecimento social em um processo transdisciplinar. O objeto de pesquisa em tela é um
fenômeno eminentemente cultural no qual se desvelam questões sociais, representações e
diversas outras construções sociais que atravessam a produção dos sambas. Para isso, nos
utilizamos da teoria construtivista das relações internacionais, particularmente da perspectiva
formulada por Alexander Wendt. Ainda, verificaremos de que forma o conceito de “senso
comum”, desenvolvido por Antonio Gramsci, e utilizado pelos teóricos neogramscianos de
Relações Internacionais, pode ser observado nos sambas que embalaram os desfiles
selecionados. Além disso, para empreender a análise de discurso que embasa o trabalho, nos
utilizamos de conhecimentos aproveitados da Sociologia Política, situando a construção de
um discurso de autenticidade para um público dentro da construção social de uma imagem a
respeito de um país dentro de um evento cultural. Ademais, para tratar especificamente do
objeto “carnaval” ou “desfile de escola de samba”, nos utilizamos das ideias de Luiz Antonio
Simas a respeito da história do samba-enredo, além dos conceitos dos quais ele se utiliza para
analisar a história social do samba.
A partir desse referencial teórico e munido do material de pesquisa será possível
encarar o fenômeno dos sambas-enredo com temática internacional de forma não simplista e
sendo possível analisá-lo em profundidade.
4. Discussão e resultados
Um ponto de partida para a análise dos sambas selecionados é a motivação das escolas
de samba para escolher os respectivos países como enredos. Mais precisamente, cabe verificar
se houve patrocínio, ou ao menos a promessa dele, em cada um dos desfiles.
No caso da Unidos do Viradouro, a escola não foi patrocinada por conta de seu enredo
sobre o México. Inocentes de Belford Roxo e Mocidade Independente de Padre Miguel
chegaram a contar com apoio financeiro de grupos ligados aos dois países, mas o patrocínio
não se confirmou. Já a Unidos da Tijuca e a Beija-Flor de Nilópolis receberam recursos por
conta de seus desfiles.
Após a análise dos elementos presentes em cada samba de enredo, é possível perceber
que a Unidos do Viradouro faz uma descrição histórica do México. São citados elementos
como as civilizações pré-colombianas, a conquista espanhola e a Revolução Mexicana. Ainda,
o samba cita elementos da cultura mexicana, como o Dia dos Mortos, a tequila e a religião. A
letra compila elementos do país de uma forma bastante simplória e caricatural, sem instigar
uma leitura mais profunda ou renovada do México. Desde modo, pode-se dizer que há uma
perpetuação do senso comum sobre o país, visto que uma leitura alternativa não é proposta.
No caso da Inocentes de Belford Roxo, a tarefa de cantar a Coreia do Sul em samba é
bastante complicada, haja vista que o brasileiro médio não tem muitas referências sobre o
país. Assim, a escola da Baixada tangencia a história do país, além de citar a telefonia celular
– certamente um dos poucos elementos sul coreanos conhecidos no Brasil. Como motivação
para falar sobre o país asiático, a Inocentes usa a imigração coreana para o Brasil como
gancho. Contudo, não há referências mais profundas ao intercâmbio entre os dois povos.
Logo, pode-se afirmar que a Inocentes de Belford Roxo nem mesmo reforça um senso comum
sobre a Coreia do Sul em seu desfile – talvez porque não seja possível apontar a existência de
um pensamento coletivo consolidado sobre o país. Ao invés disso, a escola recorre a um
desfile genérico, com elementos extremamente superficiais que não contribuem para o
adensamento da consciência sobre o país asiático no Brasil.
Todavia, se o superficial parecia ruim, no caso da Unidos da Tijuca os problemas
alcançam outro nível. A escola, que tratou indiretamente da Suíça em 2015, traz no refrão
principal de seu samba de enredo uma referência ao Prêmio Nobel – elemento característico
de outro país, a Suécia. A referência, que exemplifica a falta de pesquisa básica sobre o país
cantado, foi justificada com a informação de que a Suíça é o país com mais ganhadores do
Nobel per capita. É difícil acreditar que alguém tenha se convencido com a explicação.
Ignorando a gafe, a Unidos da Tijuca também não se aprofundou em seu canto sobre a
Suíça. Os relógios, famosos produtos do país, aparece direta ou indiretamente pelo menos três
vezes no samba, o que mostra descaso por parte de seus compositores. Outros elementos
geográficos – os Alpes – ou culturais do país também são citados, numa colagem sem muito
sentido que não vai muito além de reforçar aquilo que já se sabe sobre o país.
A Beija-Flor de Nilópolis, que cantou a Guiné Equatorial em meio a uma polêmica
acerca do patrocínio do presidente do país ao desfile, foi capaz de construir uma narrativa
satisfatória sobre o país africano. Usando os negros escravizados trazidos ao Brasil como
elemento de ligação entre os dois países, a escola de Nilópolis cantou a história da Guiné
Equatorial. Contudo, sem se prender ao cliché de cantar apenas a escravidão, a Beija-Flor fala
sobre o presente da Guiné Equatorial e cita a exploração de petróleo no Golfo da Guiné como
fonte de riqueza atual para o país. Por fim, propõe um reforço dos laços entre os dois países
através da negritude. Assim, podemos dizer que a escola falou sobre a Guiné Equatorial
através de elementos conhecidos do grande público brasileiro, mas propôs uma narrativa que
foi além do convencional, ampliando o senso comum acerca daquele país.
Por último, temos a Mocidade Independente de Padre Miguel, que fez um desfile sobre
o Reino do Marrocos. Para tornar o tema palpável ao público, o samba da Mocidade foi
construído com base em uma constante dualidade entre o país da África setentrional e o
Brasil. Assim, temas como religião, geografia, musicalidade são apresentados, permitindo ao
público construir uma relação entre ambos os países.
Se esta ferramenta já qualifica o samba, é importante notar que a narrativa da canção
constrói constantemente noções de identidade locais – Vila Vintém, Zona Oeste, Saara – e
nacionais – Brasil e Marrocos – para formar um senso de unidade. A escola da Zona Oeste
carioca canta o Brasil como uma aldeia e, no fim de seu samba, faz um apelo explícito para
que o Brasil seja um país aberto às diferenças e a amizade entre os povos. Essa noção
internacionalizada do samba é ainda mais notável se tomarmos em conta que o Marrocos é um
país de maioria muçulmana, e que a islamofobia é um fenômeno crescente no mundo e
também no Brasil.
Assim, defendemos que a Mocidade rompe com o senso comum em seu samba e
assume o papel de ‘intelectual orgânico’, para usar um termo gramsciano, que se propõe a
construir uma nova consciência sobre o Marrocos. Dentre os cinco sambas analisados, o da
escola de Padre Miguel é o que mais avança na construção de uma imagem mais densa sobre
o país cantado.
5. Considerações finais

Com base nos resultados obtidos, podemos afirmar que ainda há um longo caminho a
ser percorrido pelas escolas de samba que se propõem a cantar outros países em seus desfiles
de Carnaval. Da superficialidade e repetição de clichés, indo até os erros grosseiros, estão
apresentadas evidências de que os discursos apresentados sobre países estrangeiros na
Marquês de Sapucaí são, quase sempre, mera repetição de senso comum. Contudo, também
pudemos encontrar exemplos, como o da Beija-Flor de Nilópolis e o da Mocidade
Independente de Padre Miguel, de representações que ultrapassam o limite dos conceitos já
estabelecidos e trazem novas propostas de leitura acerca de demais países.
Consideramos que outras pesquisas sobre desfiles acerca de cidades e estados
brasileiros podem auxiliar na compreensão do fenômeno de sambas de enredo acerca de
lugares. Assim, torna-se possível afirmar se a predominância dos discursos de senso comum
sobre lugares é uma especialidade dos sambas de enredo que cantam países ou se esta é uma
característica geral. Outra pesquisa desta linha que pode ser válida é a análise de outras
formas brasileiras de narrativa acerca do exterior, como as telenovelas.

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