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TEMA: LEITURA E ESCRITA

11.11.2021 - TAMARA CASTRO

O racismo está na nossa língua


Do apagamento da contribuição de povos africanos ao uso de expressões racistas, entenda o papel da
língua na manutenção do racismo e como combatê-lo

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Por Stephanie Kim Abe

Já vi que a coisa tá ficando preta! Ô, meu dengo, vem cá! Vamos


esclarecer uma coisa: eu não vejo nenhum probrema em você chegar
tarde do trabalho. Você foi promovida! Eu tenho é inveja do seu sucesso –
mas inveja branca, tá?”

Quantos erros você identifica na fala acima? Há alguma palavra mal usada, algum erro de
pronúncia, alguma expressão pejorativa? Você considera alguma das falas ofensivas? Se sim,
pra quem?

Muitas pessoas devem ter apontado o “probrema” como o primeiro – ou único – erro
identificado. Outras devem ter enxergado essa palavra como uma variante linguística. Talvez
poucas tenham percebido muitos “probremas” nessa fala, quando se identifica que ela vem
carregada de expressões racistas.

“A coisa tá ficando preta”, “inveja branca”, “esclarecer” são algumas das mais evidentes. Mas
até “dengo” e “probrema” são reflexos de como a nossa língua reflete o racismo estrutural
presente em nossa sociedade.

Para tratar da questão, o Portal Cenpec conversou com as pesquisadoras Lara Rocha e 
Sheila Perina de Souza. Lara é bacharel e mestranda em Letras pela Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), onde desenvolve
Privacidade - Termos
sua pesquisa acerca da literatura afro-brasileira e educação das relações étnico-raciais.
Sheila é doutoranda em Educação e Linguagem pela Faculdade de Educação da USP e
investiga o ensino da língua portuguesa em Angola, Moçambique e no Brasil.

Racismo na língua: entender para combater

Leia abaixo a entrevista com as duas pesquisadoras. Em seguida, confira uma lista com
diversas expressões racistas para cortar da linguagem.

Portal Cenpec: Qual a diferença entre o preconceito linguístico e o racismo linguístico?

Lara Rocha: O preconceito não tem a ver necessariamente com uma questão racial. As
variações linguísticas têm a ver com classe social, com região, com geração.

Sheila Perina de Souza: O preconceito linguístico é limitante, porque


só dá conta do desprezo pelas variedades populares. Ele não leva
em consideração a negação do caráter pluriétnico da nossa língua
pelo histórico de marginalização das línguas africanas e indígenas
em busca de um português europeu puro, que não tem marcas das
diferentes etnias indígenas ou populações africanas.

Já o racismo linguístico trata especificamente de raça, dessa


condição histórica, cultural e social de violências a que as Sheila Perina de Souza
populações majoritariamente negra e indígena foram submetidas.

Portal Cenpec: Como o racismo se manifesta em nossa língua?

Lara Rocha: Ele pode se dar de duas maneiras. Tanto por meio do
apagamento ou do não aprofundamento sobre as origens de
determinadas palavras – quando a gente ignora as contribuições
e construções linguísticas que têm a ver com essa herança
indígena e africana –, como por meio da discriminação direta
através de palavras e expressões da língua.

Ou seja, o racismo na língua pode ser com relação ao


apagamento de expressões positivas que têm a ver com essas
Lara Rocha
culturas, ou o contrário, expressões que estão há muito tempo na
nossa língua, mas que, sem a gente às vezes perceber, carregam um tom depreciativo sobre
os povos marginalizados.

Sobre variantes e preconceito linguístico, navegue pelo Mapa da oralidade


Portal Cenpec: Quais seriam alguns exemplos desse tipo de expressões?

Privacidade - Termos
Lara Rocha: O grande clássico é o “denegrir”, que é uma expressão muito comum – inclusive
em meios acadêmicos – e que tem a ver com tornar algo pior, prejudicar alguma coisa ou
pessoa. A origem da palavra tem a ver com “tornar negro”, “enegrecer” alguma coisa. Ou
seja, há obviamente uma origem racista. Então a ideia de que tornar algo negro tem a ver
com prejudicar ou estragar essa coisa é consequência e manifestação desse racismo
linguístico.

Sheila Perina de Souza: No âmbito das


contribuições que são marginalizadas ou
invisibilizadas, temos como exemplo a
palavra “dengo”, que todo mundo conhece,
todo mundo usa – mas que não se traz de
onde vem essa palavra para a sala de aula.

O Reino ou Império do Congo foi um Estado africano Ela é de origem da língua kikongo, um povo
pré-colonial no sudoeste da África, na região hoje oriundo do reino Kongo, na Angola. Então
correspondente a parte dos territórios de Angola,
República do Congo, República Democrática do não é só dizer que a palavra é africana. O
Congo e Gabão. Imagem: Wikipédia que significa? De que povo é essa palavra?
Quais as suas histórias? Qual a contribuição desse povo para a nossa formação?

Outro exemplo é a pronúncia do “r” no lugar do “l”, em


construções como “framengo”, em vez de “flamengo”. A Lélia
Gonzalez faz essa pesquisa, quando trabalha o conceito do
“pretuguês”, que reconhece a raiz do português falado no
Brasil como na cultura negra, indígena etc.

Muitas pessoas ouvem essa pronúncia como um erro, mas


não é. Muito pelo contrário, é uma herança africana, pois
alguns povos não tinham a pronúncia do “l” em seu
vocabulário, então ele era substituído pelo “r”.

Saber desse processo é humanizar a pessoa Lélia Gonzalez foi uma intelectual
negra. É entender que, quando ela fala “framengo” e ativista negra brasileira que
ou “probrema”, ela está carregando a forma como denunciou o racismo e o sexismo
seus antepassados falavam, uma riqueza dos como formas de violência contra
antecedentes. Quando a gente assume esses as mulheres negras.
falares como erros, estamos sendo racistas com a
nossa língua e com as pessoas que a falam dessas diferentes formas e
carregadas desse histórico.

Portal Cenpec: Como o racismo linguístico tem sido abordado na escola ou nos materiais
didáticos?

Sheila Perina de Souza: Eu vejo a escola e os livros simplesmente colocando um bloco de


palavras, em algum lugar do livro, que são de origem africana e indígena. Eles não trazem a
contribuição desses povos de fato, o histórico de transformação da língua, há quanto tempo
eles estão aqui. Não há uma tentativa ou busca de desmistificar os falares que são rejeitados
e dar legitimidade e visibilidade às palavras trazidas por esses diferentes povos, por essas 
diferentes etnias.

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Lara Rocha: Eu não vejo o assunto sendo muito fortemente discutido nos materiais didáticos,
principalmente se compararmos com o preconceito linguístico e a variação linguística – que
hoje é um dos temas que mais caem em vestibular, por exemplo. Mas, ao assumir que a
língua é viva, temos pautado e refletido mais sobre isso, ainda que pouco.

As universidades, por exemplo, ainda têm muita resistência à questão do racismo linguístico
ou mesmo à linguagem neutra. Infelizmente, esse é um tema ainda incipiente nas
licenciaturas, nos espaços de debate sobre língua entre os acadêmicos.

Eu sou professora do ensino fundamental II, e quando trago pra sala esse
tema com a turma não é algo polêmico. As(Os) estudantes acham massa,
se veem reconhecidas(os). Elas(es) percebem que não é que cometem
grandes erros, mas que tudo está em transformação. E que a língua, tanto
as suas regras quanto os seus desvios, não é aleatória. Eu sinto que tenho
mais abertura com as(os) estudantes na escola do que com as(os)
professoras(es) na universidade.

Conheça seis práticas de educação antirracista no Brasil

Portal Cenpec: Como devemos pautar esse debate nas escolas e avançar nesse combate
à língua racista?

Sheila Perina de Souza: Eu acho que a escola tem um papel muito determinante na
manutenção do racismo, e de modo específico do racismo linguístico. Porque ela é a
instituição que está habilitada a dizer o que é certo e errado dentro da língua, e ela o faz a
partir de uma única norma: a norma padrão.

Ao fazer esse movimento de apresentar somente uma única variedade possível, ela está
negando toda a heterogeneidade dos falares da população restante que não domina e
utiliza a norma padrão – e que, inclusive, é o grande público da escola pública. Ela legitima
apenas uma parcela da sociedade e, dessa forma, fundamenta a colonização linguística.
Porque essa língua que hoje é a norma padrão é a língua branca, que marginaliza e silencia
as contribuições das outras culturas que formam a sociedade brasileira, principalmente as
línguas africanas e indígenas.

Uma educação democrática que traga para a escola a contribuição dos


diferentes povos que formam o Brasil não tem como não olhar pra língua e
entender que ela é um palco de disputa, em que a matriz branca está
sendo privilegiada em detrimento das matrizes negra e indígena.

Lara Rocha: Primeiro, é preciso falar do assunto sempre. Não é só em um dia do ano, ou só
com uma série específica. Devemos falar disso toda vez que falarmos de língua, toda vez
que uma palavra de cunho racista aparecer, toda vez que pensarmos e discutirmos a origem
do nosso português. Só incorporando realmente esse olhar das relações étnico-raciais para
conseguirmos construir uma educação que faça sentido às(aos) estudantes e transforme a
realidade.  

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O nosso grande ganho é compreender, em todas as esferas, inclusive na acadêmica (que
ainda é muito resistente em relação a esse tema), que rever certas expressões não é negar a
língua ou querer militar em cima de algo que está dado.

É assumir que a língua é viva e que do mesmo jeito que a gente cria
expressões, que antes não existiam e usamos hoje em dia, a gente pode
deixar de usar outras. Não precisamos usar “mercado negro” para falar de
comércio ilegal. Lista negra, inveja branca, magia negra… todas essas
expressões têm uma origem que não tem a ver com uma cultura
democrática e inclusiva e o olhar para as relações raciais que a gente
defende.

Saiba mais sobre o racismo estrutural na escola e a importância de uma


educação antirracista

Expressões racistas para parar de usar já!

A lista abaixo foi construída durante as formações realizadas pelo projeto


Educação para as relações étnico-raciais da Comunidade Cenpec em parceria
com cinco Centros de Educação Infantil (CEIs) da região da Penha, na capital
paulista, em 2020. Confira algumas expressões racistas e seus significados:

“Meia tigela”: As(Os) negras(os) que trabalhavam à força nas minas de ouro nem
sempre conseguiam alcançar suas “metas”. Quando isso acontecia, recebiam
como punição apenas metade da tigela de comida e ganhavam o apelido de
“meia tigela”, que hoje significa algo sem valor e medíocre.

“Mulata”: Na língua espanhola, referia-se ao filhote macho do cruzamento de


cavalo com jumenta ou de jumento com égua. A enorme carga pejorativa é ainda
maior quando se diz “mulata tipo exportação”, reiterando a visão do corpo da
mulher negra como mercadoria. A palavra remete à ideia de sedução,
sensualidade.

“Cor do pecado”: Utilizada como elogio, se associa ao imaginário da mulher


negra sensualizada. A ideia de pecado também é ainda mais negativa em uma
sociedade pautada na religião cristã como a brasileira.

“Não sou tuas negas”: A mulher negra como “qualquer uma” ou “de todo mundo”
indica a forma como a sociedade a percebe: alguém com quem se pode fazer
tudo. Escravas negras eram literalmente propriedade dos homens brancos e
utilizadas para satisfazer desejos sexuais, em um tempo no qual assédios e
estupros eram ainda mais recorrentes. Portanto, além de profundamente racista, o
termo é carregado de machismo. 

Privacidade - Termos
“Denegrir”: Sinônimo de difamar, possui na raiz o significado de “tornar negro”,
como algo maldoso e ofensivo, “manchando” uma reputação antes “limpa”.

“A coisa tá preta”: A fala racista se reflete na associação entre “preto” e uma


situação desconfortável, desagradável, difícil, perigosa.

“Serviço de preto”: Mais uma vez a palavra preto aparece como algo ruim. Desta
vez, representa uma tarefa malfeita, realizada de forma errada, em uma
associação racista ao trabalho realizado por pessoas negras.

“Mercado negro, magia negra, lista negra e ovelha negra”: Entre outras
inúmeras expressões em que a palavra ‘negro’ representa algo pejorativo,
prejudicial, ilegal.

“Inveja branca”: Mais uma expressão que associa o negro ao comportamento


negativo. Inveja é algo ruim, mas se ela for branca é suavizada.

“Amanhã é dia de branco”: Essa expressão tem muitas explicações. De acordo


com estudiosos e por explicações do senso comum, tal afirmação foi criada em
alusão ao uniforme da marinha. Outra explicação se refere à nota de mil cruzeiros,
que possuía a estampa do Barão do Rio Branco, que usava trajes brancos.
Resumindo, dizer que o dia posterior é “de branco” significa que é um dia de
trabalho ou de ganhar dinheiro. Mas tal dito popular foi ganhando sentidos
preconceituosos, uma maneira de demonstrar a “inferioridade das pessoas
negras”.

“Criado-mudo”: O nome do móvel que geralmente é colocado na cabeceira da


cama vem de um dos papéis desempenhados pelas(os) escravizadas(os) dentro
da casa dos senhores brancos: o de segurar as coisas para seus “donos”. Como
a(o) criada(o) não poderia fazer barulho para atrapalhar os moradores, era
considerada(o) muda(o).

“Doméstica”: Domésticas eram as mulheres negras que trabalhavam dentro da


casa das famílias brancas e eram consideradas domesticadas. Isso porque as
pessoas negras eram vistas como animais e por isso precisavam ser
domesticadas através da tortura.

“Nasceu com um pé na cozinha”: Expressão que faz associação com as origens.


“Ter o pé na cozinha” é literalmente ter origens negras. A mulher negra é sempre
associada aos serviços domésticos, já que as escravizadas podiam ficar dentro
das casas grandes na parte da cozinha, onde, inclusive, dormiam no chão (sua
presença dentro da casa grande facilitava o assédio e estupro por parte dos
senhores). 

Privacidade - Termos
“Barriga suja”: Outro termo que faz relação à origem é usado quando a mulher
tem um(a) filho(a) negro(a). Isso era considerado algo impuro — como uma
“barriga suja” —, o que explica a expressão.

“Cabelo ruim ou cabelo duro”: São falas racistas mais usadas, principalmente na
fase da infância, pelos colegas. No entanto, elas se perpetuam até a vida adulta.
Falar mal das características dos cabelos afro também é racismo.

“Feito nas coxas”: A origem da expressão popular “feito nas coxas” deu-se na
época da escravidão brasileira, onde as telhas eram feitas de argila, moldadas nas
coxas de escravos.

“Samba do crioulo doido”: Título do samba que satirizava o ensino de Historia do


Brasil nas escolas do país nos tempos da ditadura, composto por Sergio Porto (ele
assinava com o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta). No entanto, a expressão
debochada, que significa confusão ou trapalhada, reafirma um estereótipo e a
discriminação aos negros.

“Crioulo/Negão”: Era a designação do filho de escravizados, termo


extremamente pejorativo e discriminador do indivíduo negro ou afrodescendente.

“Tem caroço nesse angu”: A expressão possui origem em um truque realizado


pelas(os) escravizadas(os) para melhor se alimentarem. Quando o prato era
composto de angu de fubá, o que acontecia com frequência. A escravizada que
lhes servia, por vezes, conseguia esconder um pedaço de carne ou alguns
torresmos embaixo do angu.

“Nhaca”: Desde o português do Brasil Colônia, vem sendo usada para referir-se
ao mal cheiro, forte odor, no entanto Inhaca é uma Ilha de Maputo, em
Moçambique, onde vivem até hoje os povos Nhacas, um povo Ban.

“Disputar a nega”: tem origem não só na escravização, como também na


misoginia e no estupro. Quando os “senhores” jogavam um esporte ou jogo, o
prêmio era uma escravizada negra.

“Preto de alma branca”: Tentativa de elogiar uma pessoa negra fazendo


referência à dignidade dela como algo pertencente apenas às pessoas brancas.

“Macumbeiro/Galinha de macumba/ Chuta que é macumba”: Expressão que


discrimina praticantes de religiões de matriz africana.

Por uma língua antirracista


Privacidade - Termos
Entender como o racismo se perpetua em diferentes esferas,
manifestações e expressões – entre elas a língua – em nossa
sociedade é fundamental para construirmos uma educação de fato
democrática e inclusiva.

Conhecer as origens e os significados das palavras, eliminar


expressões racistas e substituir por outras não discriminatórias faz
parte da luta antirracista. Nossa língua é rica em possibilidades. Em vez de “denegrir”,
podemos usar “ofender”. No lugar de “dia de branco”, existe “dia útil”. Em vez de “ovelha
negra”, “ovelha desgarrada”. E por aí vai.

Outro caminho é atribuir valor positivo a expressões associadas à cor preta e à raça negra.
Por exemplo, falar que “a coisa tá preta” quando algo bom foi realizado por uma pessoa
negra. Emicida, em seu livro infantil Amoras, traz um lindo exemplo em um diálogo com sua
filha. Ele diz à menina que as amoras, quanto mais pretas, mais doces. E ela conclui: “Papai,
que bom, porque eu sou pretinha também”.

Compartilhe essa ideia. Participe da campanha #PorUmaEducacaoAntirracista!

Emicida - Livro "Amoras" - Versão Animada

Mais pretuguês

OutrasPalavras: Para compreender a “Améfrica” e o “pretuguês”: artigo de Lélia


Gonzales de 1980 surpreendentemente atual

A leitura da palavra-mundo e o português influenciado pelas línguas africanas: artigo


de Sheila Perina de Souza no Portal Escrevendo o Futuro

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Petronilha B. Gonçalves e Silva: Diversidade em diálogo na educação

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