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Reflexões de um Jovem sobre a Escolha de uma

Profissão
Karl Marx
10/16 de Agosto de 1835
(texto original: “Geschichte des Sozalismas und der Arbeiterbewegung, Ed. K. Grünberg, Leipzig “)

A própria natureza determinou uma esfera de atividade no qual os animais devem se mover, e eles
pacificamente se movem dentro dessa esfera, sem tentar ir além ou sequer suspeitar de outra.
Para o homem, também, a divindade concedeu um objetivo geral, o de enobrecer a humanidade e a
própria divindade. Mas ela deixou para o homem a tarefa de buscar os meios pelo qual esse objetivo pode
ser alcançado, deixou para os homens o trabalho de escolher a posição na sociedade mais adequada a cada
um, a partir da qual cada indivíduo pode elevar a si mesmo e a sociedade.
Essa escolha é um grande privilégio do homem perante o resto da criação, mas ao mesmo tempo, é
um ato que pode destruir sua vida, arruinar seus planos e fazê-lo infeliz. Uma consideração séria dessa
escolha é, portanto, a primeira tarefa de um jovem que está começando sua carreira e que não quer deixar
suas questões mais importantes ao acaso.
Todos possuem um objetivo em vista, o qual ao menos para o possuidor parece ótimo, e realmente é
quando sua mais profunda convicção, a mais profunda voz de seu coração, pronuncia que se é ótimo. A
divindade nunca deixa os homens totalmente sem um guia, ela fala suavemente mas com certeza.
Mas essa voz pode ser facilmente afogada, e aquilo que tomamos como inspiração pode ser produto
do momento, o qual outro momento pode, talvez, destruir. Nossa imaginação, às vezes, é incendiada, nossas
emoções agitadas, fantasmas voam diante de nossos olhos e nós mergulhamos de cabeça nas mais
impetuosas sugestões do instinto, as quais nós imaginamos que a própria divindade nos apontou. Mas aquilo
que nós ardentemente abraçamos logo nos repele e vemos toda a nossa existência em ruínas.
Devemos, portanto, examinar seriamente se nós realmente fomos inspirados na escolha de nossa
profissão, se nossa voz interior aprova isso, ou se essa inspiração é uma ilusão e o que tomamos como um
chamado da divindade foi apenas auto-decepção. Mas como podemos reconhecer essa ilusão sem rastrear a
fonte da própria inspiração?
O que é ótimo brilha, e esse brilho desperta ambição, essa ambição pode facilmente ter produzido a
inspiração, ou aquilo que tomamos como inspiração, mas, a razão não pode mais conter o homem que está
tentado pelo demônio da ambição e ele mergulha de cabeça no que esse impetuoso instinto sugere: ele não
mais escolhe sua posição na vida, em lugar disso, sua posição é determinada pelo acaso e pela ilusão.
Não somos chamados a adotar a posição que nos oferece as mais brilhantes oportunidades, essa não
é aquela que, ao longo dos anos que talvez a manteremos, nunca irá nos cansar, nunca irá amort ecer nosso
zelo, nunca irá deixar nosso entusiasmo crescer frio, mas aquela no qual nós, em breve, veremos nossos
desejos insatisfeitos, nossas ideias insatisfeitas e então invejaremos contra a divindade e amaldiçoaremos a
humanidade.
Mas não é apenas ambição que pode despertar entusiasmo repentino por uma profissão em
particular, nós talvez a tenhamos embelezado em nossa imaginação e embelezamento é a causa em razão da
qual isso nos parece o que a vida tem de melhor a oferecer. Nós não a analisamos, não consideramos seus
encargos totais, a grande responsabilidade que nos impõe, a vimos apenas de uma grande distância e
distância é algo enganoso.
Nossa própria razão não pode nos guiar aqui, pois ela não é baseada na experiência nem na
observação profunda, sendo enganada pela emoção e cega pela fantasia. Para quem então devemos nos
voltar? Quem pode nos ajudar onde nossa razão nos trai?
Nossos pais, que já atravessaram a estrada da vida e experimentaram a severidade do destino, nosso
coração nos diz isso.
E se mesmo assim nosso entusiasmo persistir, se nós continuarmos a amar uma profissão e crer que
somos chamados para ela, mesmo após examiná-la a sangue frio, após termos considerados seus encargos e
estarmos familiarizados com suas dificuldades, então nós devemos adotá-la, assim nem somos enganados
pelo entusiasmo e nem a precipitação nos leva embora.
Mas nem sempre somos capazes de atingir a posição para a qual acreditamos sermos chamados,
nossas relações sociais têm, até certo ponto, começado a serem estabelecidas antes mesmo de estarmos em
uma posição para determiná-las.
Nossa própria constituição física é frequentemente um ameaçador obstáculo, que não deixa ninguém
burlar seus direitos.
É verdade que podemos tentar passar por cima disso, mas então nossa queda será ainda mais rápida,
nós estaremos nos aventurando a construir em cima de ruínas, assim toda nossa vida será uma infeliz luta
entre o princípio mental e o físico. Mas quem é incapaz de reconhecer os elementos conflitantes dentro de si
próprio, como pode ele resistir ao tempestuoso estresse da vida, como ele pode agir calmamente? E, é a
partir da calma, sozinha, que grandes atos podem surgir, ela é o único solo onde frutos maduros se
desenvolvem com sucesso.
Apesar de não podermos trabalhar por muito tempo e, raramente, felizes com uma constituição física
que não é adequada à nossa profissão, o pensamento de sacrificar nosso bem-estar pelo dever, de agir
vigorosamente apesar de sermos fracos, continua a surgir. Mas se nós escolhemos uma profissão para qual
não possuímos talento, nunca poderemos exercê-la dignamente, nós logo perceberemos, com vergonha,
nossa incapacidade e diremos a nós mesmos que somos criaturas inutilmente criadas, membros da sociedade
que são incapazes de cumprir sua vocação. Então a mais natural consequência é autodesprezo, e qual
sentimento é mais doloroso e menos capaz de ser compensado por tudo o que o mundo exterior pode
oferecer? Auto desprezo é uma serpente que roí o peito, suga o sangue vital do coração e mistura-o com seu
veneno de misantropia e desespero.
Uma ilusão acerca de nossos talentos é um erro que se vinga de nós, e mesmo que não encontremos
com a censura do mundo exterior, isso faz surgir uma dor mais terrível em nosso coração do que a dor
infringida pela censura.
Se nós considerarmos tudo isso, e se as condições de nossas vidas permitirem que escolhamos
qualquer profissão que gostarmos, nós podemos adotar aquela que nos assegura maior valor (1), aquela
baseada em ideias cuja veracidade estamos completamente convencidos, que nos ofereça o âmbito mais
amplo para trabalharmos pela humanidade e para nós mesmos chegarmos perto do objetivo geral para o
qual cada profissão é apenas um significado: perfeição.
O valor de uma profissão é aquele que mais ergue um homem, o qual transmite alta nobreza à suas
ações e seus esforços, que o faz invulnerável, admirado pela massa e elevado acima dela.
Mas valor somente pode ser assegurado por uma profissão a qual não seremos apenas ferramentas
servis, mas na qual agimos independentemente em nossa própria esfera. Só pode ser assegurado por uma
profissão que não demande atos repreensivos, mesmo se repreensivos apenas na aparência, uma profissão
onde o melhor pode seguir com nobre orgulho. A profissão que assegurar essas condições, no mais alto
grau, nem sempre é a mais alta, mas sempre é a mais preferível.
Entretanto, assim como uma profissão que não nos assegura valor nos degrada, nós certamente
sucumbiremos sob os fardos de uma que se baseia em ideias que mais tarde reconheceremos como falsas.
Não temos outro recurso senão o auto-engano e a salvação desesperada, aquela obtida pela auto-traição.
Essas profissões que não são tão envolvidas com a vida como são preocupadas com verdades
abstratas são as mais perigosas para um jovem cujos princípios ainda não são firmes e cujas convicções ainda
não são fortes e inabaláveis.
Ao mesmo tempo, essas profissões parecem ser as mais exaltadas caso tiverem raízes profundas em
nossos corações e se somos capazes de sacrificar nossas vidas e esforços pelas ideias que nelas prevalecem.
Elas podem conceder felicidade ao homem que tem vocação para elas, mas destroem quem as adota
precipitadamente, sem reflexão, cedendo aos impulsos do momento.
Por outro lado, a grande consideração que temos pelas ideias as quais nossa profissão é baseada nos
dá uma alta posição na sociedade, aumenta nosso valor e torna nossas ações incontestáveis.
Quem escolhe uma profissão que valoriza muito, estremecerá a ideia de ser indigno a ela. Ele irá agir
de maneira nobre apenas se sua posição for nobre.
Mas o guia que deve nos conduzir na escolha de uma profissão é o bem-estar da humanidade e
nossa própria perfeição. Não se deve pensar que esses dois interesses possam estar em conflito, que um
tenha que destruir o outro, pelo contrário, a natureza humana é constituída de modo que ele apenas pode
alcançar sua própria perfeição trabalhando pela perfeição, pelo bem, de seus iguais.
Se ele trabalhar apenas para si mesmo, ele pode até se tornar famoso, um grande sábio, um
excelente poeta, mas ele nunca poderá ser perfeito, um homem pleno.
A história chama de grandes esses homens que se enobreceram trabalhando pelo bem comum, a
experiência aplaude como o mais feliz aqueles que fizeram o maior número de pessoas felizes, a própria
religião nos ensina que o ser a quem todos devem se espelhar se sacrificou pelo bem da humanidade, e
quem se atreveria a reduzir a nada tais julgamentos?
Se escolhermos a posição na vida a qual podemos trabalhar pela humanidade, nenhum encargo irá
nos pôr para baixo, pois esses encargos são sacrifícios pelo bem de todos, então não experimentaremos
alegria mesquinha, limitada e egoísta, mas nossa felicidade pertencerá à milhões, viveremos de ações
silenciosas mas em constante trabalho, e sobre nossas cinzas serão derramadas quentes lágrimas de pessoas
nobres.

Notas de rodapé:

(1) O valor a que se refere Marx no trecho não é o valor monetário (Value) e sim o valor pessoal (Worth). Nota da tradução.

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