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ReUrge, o que pode a psicanálise on-line e gratuita?


Abramovitch, S; Americano, B; Bittencourt, MV; Pardini, R

Desde As clínicas públicas de Freud1, que se iniciam em 1920 até o projeto ReUrge de 2021
⏤ Rede de atendimento on-line e gratuito para situações de Urgência ⏤, o que pode a psicanálise?
Nosso cartel é parte de um projeto de pesquisa em andamento, no qual é oferecida “escuta” a
sujeitos em situação precária e em sofrimento psíquico. Questionamos se para haver psicanálise é
preciso um pagamento, no entanto, na história da psicanálise analistas dedicaram-se a fazer clínicas
sociais sem cobrar honorários de seus pacientes.
É o caso da Viena “vermelha” do pós 1a guerra (1914-1918), que organiza um projeto
político, cultural e social de reconstrução da cidade e a psicanálise é incluída entre as ofertas de
serviços de saúde. Esse período durou cerca de 20 anos até a chegada do regime nazi-fascista ao
poder. Nesta época, Freud e os psicanalistas da primeira geração protagonizam um pacto de
retomada civilizatória. Psicanalistas ofertam tratamento psicanalítico a populações empobrecidas,
que não tinham nem o que comer e nem onde morar e muitos sofriam dos chamados “traumas de
guerra”. Destacam-se Paul Federn em Viena e Karl Abraham e Max Eitington em Berlim. Freud no
V Congresso da IPA (1918) em Budapeste, inclui em seu discurso, a neurose como questão urgente
e de saúde pública ao lado da tuberculose. Hoje a Organização Mundial da Saúde (OMS), ainda
classifica a tuberculose como "uma doença da pobreza”. E a pobreza, com seu menor acesso à
saúde, foi determinante aqui no Brasil para o agravamento da pandemia do COVID-19.
A relação entre pobreza, neurose e urgência motivou a criação do projeto ReUrge
coordenado por Maria Luiza Santana e Roberto Julio May, para atendimentos on-line e gratuitos de
urgências subjetivas em tempos de COVID. Este é um dizer que circula na pólis para oferecer
psicanálise à população precarizada, aos moradores de comunidades carentes, o que inclui alguns
grupos discriminados de nossa sociedade. Analistas sustentam o desejo de “espalhar a peste” a
lugares totalmente estranhos e desconhecidos, graças à modalidade on-line.
Quando um sujeito aceita a oferta da psicanálise e a urgência subjetiva é escutada, pode
haver retificação de discurso. Sujeitos que nunca tinham ouvido falar de psicanálise reconhecem,
com surpresa e satisfação seus efeitos. Podem reorganizar cadeias significantes que “descarrilharam
e agora retornam ao trilho”, após ruptura, quer seja por uma crise de angústia neurótica ou surto
psicótico. Em outras palavras, nós rompidos são reenodados, trazendo estabilização dos eixos do
real, simbólico e imaginário.

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A Policlínica de psicanálise foi fundada em Berlim, em 1920. O ambulatório de Viena em 1922. (Danto, 2019)
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Para exemplificar, trazemos o caso Pedro, que procura atendimento aos 45 anos, após morte
trágica da namorada. Está desempregado desde o início da pandemia e retorna a morar com a
família na comunidade. Têm poucos recursos financeiros e só estudou tardiamente, graduando-se
em História. Na juventude, trabalha em empregos informais e após a formatura “as coisas vinham
dando certo”, estava lecionando e finalmente conhece “uma mulher” e deseja ter com ela um
relacionamento amoroso “como nunca antes em sua vida”. Ficaram juntos por ano e meio. Quando
veio a pandemia, ficou vários meses desempregado, quando sua “alegria de viver foi perdida” com
a morte da namorada. Pedro se vê e se sente “desesperado”, significante privilegiado que aparece
em suas entrevistas. Não dorme e nem come, tem sonhos de repetição com a namorada que aparece
viva, lhe tirando a disposição para se levantar de manhã. A tristeza profunda chega à ideação
suicida. Pedro encontra-se perdido e não sabe como retomar a vida.

Se nos dois primeiros encontros Pedro mal consegue falar, chora, permanece silencioso e
cabisbaixo, no terceiro aparece animado, com olhar atento e começa a planejar seu futuro, pois fora
chamado para um novo trabalho, em nova cidade e está conseguindo viver sem o desespero de
antes. Seguiram-se mais três atendimentos até Pedro, se sentindo melhor, agradecer e ressaltar a
importância de ser escutado. Disse, também, que procuraria o ReUrge novamente, caso voltasse a se
sentir mal.

Ficamos surpreendidos em ver mudanças a tão curto prazo e com os efeitos da pressa em
concluir casos de urgência. Sabemos que a princípio, “todo caso que chega procurando uma análise,
se houver verdadeiramente uma demanda de análise, é então uma urgência”2. No entanto, há
urgências e urgências a serem verificadas em cada caso, e os traumas vividos na pandemia do
COVID precipitaram o retorno do recalcado ou do foracluído. Testemunhamos casos de perdas que
transformaram relações com o laço social. Tivemos casos de: violência sofrida em casa ou na
cidade, discriminação de grupos LGBTs, desemprego, penúria, etc. Recebemos sujeitos em estados
ansiosos, depressivos, psicóticos das mais diversas gravidades. A experiência vem nos mostrando
que o trabalho do ReUrge causa efeitos significativos e contribui para a saída da condição urgente,
através da elaboração e implicação do sujeito em seu sofrimento e com tomada de posição diante do
inexorável.
O tempo, uma das “figuras de urgência”3, nos faz interrogar o quanto ele é necessário para o
sujeito fazer uma demanda de análise. Segundo Freud, todos os casos são casos de urgência. Pode-
se dizer que os atendimentos de urgência são entrevistas preliminares, que o tempo é lógico,
necessário para se estabelecer a transferência analítica e fundamental à entrada em análise. Tempo
2
Askofaré, S. 30/01/2021
3
Idem
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para alívio da angústia, esvaziamento do gozo e para um novo olhar frente ao real. “Este real sem
sentido, fora de toda a predicação, que ex-siste tanto ao simbólico como ao imaginário” e ao
analista, frente ao impasse com o real cabe responder à esta re-petição se comprometendo 4 e
confirma que a falta pode voltar a faltar ou novas suplências poderão advir.
Quando cessa a urgência, quando há queda da queixa que mobilizou o sujeito a procurar um
analista, ele tem alta do projeto ReUrge. Porém, há casos em que o sujeito relança sua questão e
demanda uma análise. Por sua vez, o analista pode acolher esse pedido ou encaminhar à Clínica de
FCL, ou ainda à outra instituição. Para a psicanálise, entretanto, a única política é a da escuta
analítica, porque as estratégicas são correlatas à particularidade de cada caso. Há muito que a
psicanálise já transcendeu ao setting tradicional divã/berjère, com local e hora rígidos. A clínica
impõe ao analista e ao analisante adaptações constantes. São dispositivos à beira do leito hospitalar,
em presídios e até nas ruas. Cartas, emails, telefone, WhatsApp, a psicanálise vem se colocando nas
mídias e se espalhando pela malha social, capturando sujeitos e ancorada pelo discurso
psicanalítico.
Tiramos algumas conclusões preliminares. Quanto à gratuidade, para se estabelecer
transferência não é necessário pagamento em dinheiro. Não é preciso a circulação de moedas, mas
sim do desejo, e o preço a se pagar é o “dar de si” para fazer falar o inconsciente. O desejo que
precipita falar de si, pressupõe oferta prévia de escuta.
E quanto ao online, mesmo na ausência dos corpos físicos, mesmo com o contato visual
através de uma tela de celular ou por seu áudio, uma análise pode ser empreendida. Quinet (2021)
aponta em Análise Online, de que “o analista tem muito a contribuir no tratamento do mal-estar no
sujeito, assim como no mal-estar na civilização. Para manter a psicanálise viva, o psicanalista deve
se adaptar aos dispositivos de atendimento remoto” e é o que nossa experiência tem demonstrado.
A paciente B. nos procura porque sofre de uma tristeza profunda, anterior à pandemia, mas
depois da Covid sua angústia piorou e o sentimento de mal-estar se agravou. Relata que muitas
vezes teve vontade de se jogar no riacho, que fica num abismo a caminho de seu trabalho. “Só não
me joguei pensando nas minhas filhas, porque se sentiriam abandonadas”. Decidiu, então, procurar
o ReUrge e na primeira entrevista, dirige uma demanda à analista: “eu queria ser escutada, eu não
me sinto capaz de amar, depois que assisti a traição do meu marido na minha própria cama.” Eu só
queria ser escutada...
Apesar dos casos atendidos no projeto, por vezes, não trazerem queixas ligadas à pandemia,
é inegável sua relação com o contexto econômico, político e social que afeta diretamente a
subjetividade de cada um. Vale a aposta!

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Bousseyroux, M. 2017.
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Notas
Askofaré, S.“Figures de l’urgence : entre clinique et politique”. CCPSO. Paris: Séminaire des Enseignants
30/01/2021.
Bousseyroux, M. “Responder a los casos de urgencia”. In: Lacan el borromeo. Barcelona: S&P ediciones.
2017. pp. 31-37
Danto, E. As clínicas públicas de psicanálise. São Paulo: Perspectiva, 2021. Freud (1919[1918]). “Linhas de
progresso para a teoria psicanalítica”. In: Edição Standard da Imago. Vol. XVII, 1974.
Lacan, J. “Prefácio à edição inglesa do Seminário 11”. In: Outros escritos, 2003. pp. 567-569
Quinet, A. Análise Online. Rio de Janeiro: Atos e Divãs Edições, 2021.

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