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In Imagem (ir)realidade:

Comunicação e cibermídia,
D. C. Araujo (ed.), 306-327.
Porto Alegre: Sulina, 2006.
Metaimagens e imagens auto-referenciais1
Winfried Nöth

Resumo
Este ensaio examina os critérios de distinção entre linguagem, metalinguagem e linguagem auto-
referencial, apontando paralelismos e diferenças entre signos, metassignos, e auto-referência em
linguagem e imagem. Em contraste com imagens que representam objetos em um mundo não
pictórico, metaimagens são imagens que representam imagens, enquanto imagens auto-referenciais
se referem a elas mesmas. Essas categorias de representação pictórica se sobrepõem. Existem
metaimagens auto-referenciais que falam delas mesmas enquanto imagens ou sob as condições nas
quais elas foram produzidas; existem metaimagens que representam, citam, ou comentam sobre
outras imagens sem serem auto-referenciais; e existem imagens auto-referenciais que meramente se
referem a elas mesmas sem serem metaimagens. Tanto na linguagem quanto nas imagens, auto-
referência é a fonte do paradoxo, sendo a metalepse um dos modos paradoxais da auto-referência
visual e verbal.

Palavras-chaves
auto-referência, signo, imagem, metaimagem, espelho, metalepse, enquadramento, paradoxo, ícone,
índice.

Imagens, signos, objetos ausentes e presentes

Imagens são signos que representam o mundo visual ou visualmente imaginável. Desde os
desenhos rupestres, a função comunicativa da imagem se baseia na sua similaridade com aquilo que
representa. Um desenho de um elefante, uma pintura de uma paisagem, e uma fotografia de Sir
Winston Churchill são signos pictóricos que guardam similaridades com os objetos que eles
representam. Imagens que são similares ao objeto que eles representam são signos icônicos.
Linguagem, por contraste, consiste na maioria de signos simbólicos, uma vez que palavras
usualmente não contêm similaridade aos seus objetos, mas podem ser associados com o que eles se
referem a partir do conhecimento, hábito e convenção (cf. Santaella & Nöth 1998).

Apesar dessa diferença essencial entre palavras e imagens, existem também similaridades
fundamentais no sue potencial semiótico. Tanto as palavras quanto as imagens podem evocar a
imagem de, ou se referirem a, objetos ausentes. Na sua lista de características da linguagem,
Charles Hockett (1977) introduz o termo deslocamento para descrever o potencial semiótico da
linguagem para se referir a objetos remotos no tempo e no espaço (cf. Nöth 1990: 236). Derrida
(1972: 9) discute essa característica como um aspecto do signo em geral quando ele afirma: “Um
signo representa o que está presente em sua ausência”. Entretanto, a generalização de que todos os
signos referem-se a algo ausente não pode se sustentar desde que os signos podem também se
referir a algo que está presente. Imagens no espelho e sombras, apesar dos argumentos contrários de
Eco (1986), são signos indiciais, imagens que indicam a presença do seu objeto, e, como veremos
adiante, signos auto-referenciais são também signos que se referem aos seus objetos na sua
presença.

Apesar do seu potencial para indicar objetos na sua ausência ou na sua presença, seria errado
dizer que referência a, ou representação de, objetos é necessariamente a função primária de
imagens. Por exemplo, a arte rupestre pré-histórica muito provavelmente serviu a propósitos
1Textotraduzido por Adriana Amaral. Doutora em Comunicação Social pela PUCRS, Professora e Pesquisadora do
Programa de Mestrado em Comunicação e Linguagens da UTP (Universidade Tuiuiti do Paraná).
mágicos e rituais e não a representacionais (Anati 1994), e pinturas da história da arte mais recente
não são arte por causa do que elas mostram (função referencial) mas devido a como elas
apresentam (função estética). Não obstante, a partir da perspectiva da cultura da mídia atual,
deslocamento é certamente uma das características mais importantes das imagens, uma vez que é
evidentemente um pré-requisito da comunicação global.

Além do deslocamento, a evasão, ou seja, o potencial para enganar, é outra característica


semiótica que as imagens têm em comum com a linguagem. Onde o deslocamento faz a
representação dos objetos remota no tempo e no lugar possível, a evasão serve ao propósito oposto;
uma mensagem que mente representa um objeto cujas características temporais, locais ou
qualitativas não são aquelas que o signo indica. Evidentemente, a característica da prevaricação não
apenas permite que os usuários da linguagem e produtores de imagem mintam como também criem
ilusões e ficções.

O presente artigo é sobre uma outra maneira na qual a imagem pode ser não-
representacional; ele trata de metaimagens e imagens auto-referenciais. Metaimagens são imagens
sobre imagens (Mitchell 1994: 35-82; Alessandria 1996). Em vez de se referirem ao mundo dos
objetos não-imagéticos, eles se referem a outras imagens. Imagens auto-referenciais referem-se a
elas mesmas, ou seja, elas possuem os seus objetos de referência dentro e não fora do seu quadro
imagético próprio. Auto-referência é o oposto de toda a referência ou simplesmente referência, no
sentido no qual Derrida (1972: 9) tinha em mente quando escreveu a respeito da ausência do objeto e
de como os signos são tradicionalmente definidos como referentes, ou substitutos, ou algo mais, que
não é signo.

Imagens e metaimagens

Imagens auto-referenciais são freqüentemente metaimagens, isto é, imagens a respeito de


imagens, mas nem todas as metaimagens são auto-referenciais. As duas categorias se sobrepõem,
mas a diferença entre elas tem sido ignorada com muita freqüência, por exemplo, por Mitchell
(1994: 35), que define “metaimagens” como “imagens a respeito de imagens – isto é, imagens que
se referem a elas mesmas, imagens que são usadas para mostrar o que é uma imagem”. Vamos
tentar distinguir metaimagens de imagens auto-referenciais em analogia com as distinções nas quais
a terminologia lingüística estabeleceu entre metalinguagem e linguagem auto-referencial.

O termo metaimagem foi cunhado depois do termo metalinguagem, que significa, linguagem
sobre a linguagem. Termos como vogal, consoante, palavra, sentença, conjugação ou declinação
são palavras metalingüísticas, signos verbais que se referem a nada além da linguagem.
Metalinguagem é o oposto de linguagem-objeto. Palavras que pertencem á linguagem-objeto são
palavras que possuem seus referentes no mundo não verbal, por exemplo, pato, amor, ou liberdade.
Por analogia, o termo metaimagem deveria designar uma imagem a respeito de uma imagem ou
uma imagem de uma imagem. O termo imagem-objeto pode ser útil para designar imagens comuns
que não são metaimagens, como a imagem de um pato voador ou um leopardo. Em vez de imagem
objeto nós podemos simplesmente usar o termo imagem toda vez que houver risco de confusão.
Alguns exemplos de metaimagens:

(1) uma imagem de uma sala com um quadro pendurado na parede


(2) uma imagem “citando” um quadro famoso em um novo estilo, como na pintura
transformada de Duchamp, da Mona Lisa de Leonardo da Vinci, com a legenda
desrespeitosa ‘L.H.O.O.Q.’
(3) uma imagem de um pintor (não em um auto-retrato) pintando o retrato de uma dama
(4) uma imagem de um fotógrafo (não em um auto-retrato) tirando fotos
(5) uma imagem ambígua, como a do cubo Necker
(6) uma imagem de uma sala com um espelho teichoscópico, mostrando uma cena da senão
invisível parte traseira da mesma sala como em ‘Au Bal-Musette’ de Brassaï de 1932 (cf.
Machado 1994: 87)

O critério de acordo com o qual essas imagens são metaimagens são os seguintes: (1) a (3)
são imagens representando outra imagem; a imagem (2) se refere tanto ao que quanto ao como a
outra imagem representa; (3) é uma imagem a respeito de pintar imagens; (4) não é uma imagem de
uma imagem mas uma imagem sobre tirar uma foto; a diferença entre as metaimagens do tipo (1)
ou (2) e (3) ou (4) podem ser descritas com Mitchell (1994: 37) como a diferença entre mostrar
mostrando e mostrar o mostrador; (5) é o caso das imagens com duas leituras em conflito (coelho
ou pato?; mulher velha ou dama elegante? etc; cf. Mitchell 1994: 47-57). Tais imagens não
representam outras imagens; elas incluem uma segunda imagem como uma leitura alternativa e
assim criam um diálogo visual entre as duas leituras; o exemplo (6) requer dois comentários
adicionais. (a) “Espelho teichoscópico” é provavelmente um neologismo; teichoscopia é o antigo
dispositivo dramático para estender as limitações do cenário dramático visível à audiência através
da introdução de um mensageiro que narra o que ele, a partir de sua perspectiva privilegiada (por
exemplo, enquanto está em pé em um muro), está discernindo na distância concedida à audiência.
Analogamente, um espelho teichoscópico é um espelho que estende o cenário imagético através da
adição de uma vista a partir de uma perspectiva que, de outra forma seria inacessível. (b) uma
imagem espelhada não é usualmente considerada uma imagem mas também não é uma cena do
“mundo-real”; em vez disso, é uma reflexão de tal cena, e como tal é um signo indicial desse campo
de visão que não é o seu próprio. Conseqüentemente, um espelho teichoscópico é certamente um
signo, e a imagem de tal espelho (na verdade de qualquer espelho) é certamente um metassigno.
Vamos incluir a imagem teichoscópica descrita na categoria de metaimagens mesmo que, conforme
mencionado acima, uma imagem de espelho não seja realmente uma imagem.

A maioria dos metassignos no contexto das imagens são mensagens verbais, mas esses não
são os tópicos desse artigo (ver Mitchell 1994 sobre “metaimagens que falam”; Santaella & Nöth
1999; Nöth 2003b). Exemplos típicos de como as palavras funcionam como signos sobre as
imagens são o título da imagem, a assinatura do pintor, a legenda de uma foto impressa, ou a cópia
física de um anúncio.

Metaimagem auto-referencial

Vamos agora introduzir o termo metaimagem auto-referencial para aquelas metaimagens


que se referem a elas mesmas em um sentido mais estreito. Tais imagens são auto-referenciais
porque são representações representando a sua própria representação, isto é, elas representam uma
imagem do que elas representam. Usualmente, uma descrição auto-referencial é apenas uma
representação parcial da imagem que ela representa. São exemplos:

(7) uma imagem mise en abyme, ou seja, uma imagem que represente uma cena que
contenha uma imagem dessa cena (cf. Owens 1978; Conant 2005)
(8) uma imagem de um pintor “citando” um trabalho seu mais antigo
(9) uma imagem de um espelho teichoscópico refletindo a sua própria imagem a partir de
outro espelho
(10) uma imagem de um fotógrafo tirando a sua própria foto em frente a um espelho
(11) uma imagem mostrando uma dama olhando para um espelho que reflete a sua própria
imagem
(12) um desenho de uma mão (Escher) ou de um homem (Steinberg) que desenha ele ou
ela mesmo
Em contraste a essas imagens (1) a (6), imagens (7) a (12) não representam outras imagens,
mas elas mesmas; (7) contém ela mesma em uma imagem menor; (8) representa ela própria em uma
imagem de seu próprio pintor; (9) é uma imagem auto-refletida do espelho; (10) é uma auto-
referência “mostrando o mostrador” de sua própria imagem em contraste à (4) que era a mostra do
mostrador de uma imagem diferente; (11) é auto-referencial sob a condição de que o retrato da
pessoa apareça duas vezes em uma visão similar (e não, por exemplo, uma vez de forma frontal e
outra vez em uma perspectiva dorsal); (12) é auto-referencial de uma maneira metaléptica (ver
abaixo): a imagem inclui a sua própria representação que parece ser o produto da sua própria
representação;

As definições preliminares de metaimagens e imagens auto-referenciais podem abundar da


comparação com as distinções entre metalinguagem, linguagem-objeto e metalinguagem auto-
referencial delineadas na lingüística. Por exemplo, dos termos metalingüísticos vogal, sílaba,
palavra, sentença ou texto, apenas o termo palavra é um termo auto-referencial metalingüístico,
uma vez que a palavra palavra é ela própria uma palavra, no entanto, sílaba não é uma sílaba, mas
sim três, e simples palavra texto não é ainda um texto. A sentença Essa sentennça contém um erro
exibe uma metalinguagem auto-referencial porque é uma sentença sobre a linguagem usando as
expressões metalingüísticas sentennça (com um erro ortográfico) e “erro”, e se refere a ela própria
através da palavra dêictica “essa” e um objeto (“erro”) que se refere de volta ao substantivo na
posição do sujeito (sentennça). Por contraste, a sentença A sentença precedente contém um erro é
metalingüística mas não auto-referencial, uma vez que se refere a outra sentença que não ela
mesma.

Metaimagens nos dão então uma evidência de uma característica semiótica que as imagens
tem em comum com a linguagem, a característica de reflexividade, como Hockett (1977) a chama,
isto é, o potencial da linguagem para criar a sua própria metalinguagem. Enquanto a linguagem
possui uma classe particular de signos que servem exclusivamente como metassignos verbais, as
imagens, com uma exceção, não possuem repertório de signos de metassignos pictóricos. A exceção
é o quadro emoldurado, um tópico para o qual nos dirigiremos adiante.

Auto-referência icônica e indicial

O vocabulário da metalinguagem consiste em signos simbólicos; palavras como palavra,


sentença ou preposição são signos que designam por convenção. Metaimagens, por contraste, são
essencialmente icônicas; uma imagem pode apenas representar outra imagem se ela lhe é similar.
Auto-referência, tanto na linguagem quanto nas imagens, é icônica e indicial. O próprio termo auto-
referência sugere dois tipos de signos. Enquanto referência é essencialmente indicial, envolvendo
um modo de apontar (referir) do signo ao objeto, auto-referência, com o seu loop que sugere um
retorno do signo de volta a ele próprio, implica iconicidade; o signo que reaparece em seu próprio
objeto é evidentemente um ícone ele mesmo. Apesar dessa dualidade de todos os signos auto-
referenciais, alguns são mais icônicos e outros são mais indiciais. Vamos examinar com mais
detalhes o papel dos ícones e índices, primeiro na linguagem auto-referencial e então nas imagens.
As palavras a seguir são iconicamente auto-referenciais por razões diferentes:

(13) cocorocó
(14) quick
(15) português
(16) longíssimo
(17) preto
(18) negrito

Todas essas palavras apresentam similaridade com o que elas se referem. Cocorocó é uma
palavra onomatopaica; a sua forma acústica é similar ao evento acústico á qual ela se refere. (14) a
(18) são palavras que contêm uma das qualidades às quais elas se referem, ou em sua pronúncia ou
na sua forma escrita. A palavra inglesa quick (rápido) tem ela mesma uma pronúncia rápida,
consistindo em uma sílaba com uma vogal curto; slow, o contrário, tem uma pronúncia longa. A
palavra português é um signo auto-referencial e metalingüístico; não é apenas uma palavra da
língua portuguesa que se refere a ela mesma (português é evidentemente uma palavra portuguesa),
mas também soa português na sua pronúncia e tem uma ortografia portuguesa. Longíssimo é
relacionalmente (ou seja, diagramaticamente) icônico: a forma do superlativo tem o dobro de
sílabas que a sua forma base longo. Preto em qualquer tipografia que não seja colorida e negrito,
digitado em negrito, são palavras iconicamente auto-referenciais nas suas formas escritas. Exemplos
de expressões indicialmente auto-referenciais são:

(19) eu, mim, nós


(20) aqui, nessa cidade
(21) agora, hoje, esse mês
(22) prometo; aceito; aposto; te peço
(23) estou chegando, estamos chegando

(19) a (21) pertencem às chamadas expressões autodêicticas (cf. Harweg 1990). Tais expressões se
referem às circunstâncias do ato de fala. Os pronomes em primeira pessoa, eu, mim, nós, são índices
que se referem ao falante, expressões tal como aqui, nessa cidade se referem ao local, e agora, hoje,
esse mês ao tempo da fala no momento da sua elocução. Outros modos de auto-referência indicial
ocorrem em atos de fala ilocucionários, tais como prometo, aceito, aposto, te peço. A própria
elocução de uma promessa constitui a obrigação à qual a promessa se refere. Finalmente, o eu que
fala numa forma contínua, como em estou chegando, não apenas se refere a algo que está sendo
feito mas também à simultaneidade do discurso sobre o que está sendo feito. A mãe que diz Estou
chegando não está apenas chegando, ela também diz (auto-referencialmente) que ela está chegando.
(O filho que diz Estou ouvindo fala auto-referencialmente? Ele pode ouvir enquanto ele está
falando?)

Imagens de objetos iconica e indicialmente auto-referenciais

O critério para distinguir entre auto-referência em linguagem pode servir para elucidar a
natureza da auto-referência em imagens, em particular aquelas que não são metaimagens. Considere
os exemplos de imagens de objetos iconicamente auto-referenciais:

(24) um triângulo em um livro de geometria


(25) um monocromo pintado em vermelho
(26) uma imagem de uma forma simétrica, por exemplo, uma borboleta
(27) uma foto de uma foto

Um triângulo em um livro de geometria não só ilustra e, portanto, representa as


características dessa figura geométrica; é ele mesmo um triângulo. Pela mesma razão, um
monocromo em vermelho é auto-referencial; o quadro representa a qualidade que ele contém nele
mesma, nomeada a qualidade da vermelhidão. A auto-referência icônica é uma característica da arte
abstrata; privada da função de se referir a algo distinto, ela mostram apenas as suas próprias
qualidades cromáticas e geométricas (cf. Nöth 2003a, 2004, 2006a).

Todas as formas simétricas são auto-referenciais; a forma refletida simetricamente é um


ícone da forma refletida, que repete a si mesma. Uma fotografia de uma fotografia é auto-
referencialmente icônica em um menor nível; a mídia representante é o mesmo que a mídia
representada.
Há auto-referência indicial em uma imagem toda vez que ela indica as circunstâncias sob as
quais foi produzida (onde, quando, como). Por um lado, auto-referência pictorial é mais fraca que a
auto-referência na língua falada. O eu, o agora, e o aqui de uma “elocução” pictórica estão no
passado e não no presente imediato, como na linguagem falada. Entretanto, essa não é uma
diferença categórica entre a comunicação verbal e a visual, uma vez que imagens compartilham o
seu ser remoto (remotidão) a partir da sua origo, como Karl Bühler (1934) o chamava, com os
textos escritos. Logo, analogias entre índices pictoriais e verbais de auto-referência devem ser
desenhadas para a linguagem escrita, por exemplo, documentos que indiquem a sua autenticidade e
que são autênticos, a escrita à mão que identifica o escritor e de uma forma constituem parcialmente
a identidade do escritor; narrativas que indicam que o seu narrador não existiria sem essa narrativa,
sinais de rua que indicam e são ao mesmo tempo o nome da rua. Vamos considerar nessas linhas os
exemplos de auto-referências em imagens a seguir (que não são metaimagens):

(28) um auto-retrato
(29) o auto-retrato de Van Gogh
(30) um original de Rubens
(31) uma cena Rococo pintada por Watteau
(32) minha foto do passaporte

Qualquer auto-retrato é auto-referencial da mesma maneira que qualquer produto é um


índice do seu produtor. Um auto-retrato “mostra o mostrador” sem ser uma meta-imagem sobre
fazer imagens. Em acréscimo, o auto-retrato de Van Gogh também “mostra o seu mostrador” de
uma certa forma, o retrato, sem dúvida, contém índices da forma de pintar de Van Gogh; a imagem
indica o pintor e o seu estilo. O auto-retrato de Van Gogh não apenas representa van Goh como é
também um Van Gogh (pintura). Um estilo original é sempre indicialmente auto-referencial; ele
identifica a sua própria autenticidade, a pintura de Rubens comunica “Eu sou um Rubens”. Na cena
Rococó de Watteau existe mais um índice de auto-referência. A pintura Rococó representando uma
cena com damas elegantes vestidas na moda do tempo em que foi pintada não é apenas uma pintura
que representa uma cena Rococó; é ao mesmo tempo uma pintura Rococó. Uma foto de passaporte
é em sua origem simplesmente uma imagem indicial como todas as fotos são. Entretanto, quando eu
a uso para me identificar eu a uso de uma forma auto-referencial. Eu posso dizer: essa imagem é um
documento do raio de luz que uma vez emanou do meu corpo; além disso, é uma extensão, talvez
mesmo parte de meu corpo. Num loop auto-referencial, a imagem que é, nesse sentido, parte do
meu corpo refere-se de volta ao corpo de onde ela foi emanada. – Repare que da perspectiva oposta,
aquela do oficial da fronteira, a foto do meu passaporte pode até constituir a minha identidade: a
imagem é o documento legal, e é melhor que eu me pareça com a minha imagem no passaporte se
eu não quiser entrar em confusão. O oficial da fronteira é quem olha a foto primeiro e então olha
para o meu rosto, e quer checar como eu, a pessoa para a qual ele olha, sou e me pareço (ou seja, o
ícone) com a foto e de que maneira eu posso provar a correspondência do meu rosto com a minha
foto. A partir dessa perspectiva, a foto do passaporte não é auto-referencial de nenhuma forma. É
como um original (ou até mesmo uma peça de “realidade”) do qual eu devo ser a imagem e a cópia
verdadeira.

Uma característica indicial de auto-referência pictorial que será discutida na próxima sessão
é o enquadramento. É um metassigno ou um metassigno auto-referencial? A resposta depende da
maneira que o enquadramento é considerado como algo que é parte da imagem ou que é
considerado como algo externo à imagem. No primeiro caso, o enquadramento é um metassigno
auto-referencial, no segundo caso é um metassigno, mas não um auto-referencial. O título da
próxima sessão pressupõe a primeira das duas formas de ver um enquadramento.

Enquadramentos: metassignos pictoriais auto-referenciais

Toda imagem contém um metassigno pictorial auto-referencial na forma do seu


enquadramento, que é um signo indicial contendo uma metamensagem tal como: “Eu sou uma
imagem” (e não, por exemplo, uma paisagem vista através de uma janela). Existe uma analogia
entre esse metassigno na raiz de uma representação pictorial e um metassigno que pode ser
encontrado na raiz da comunicação verbal. Mensagens verbais, também, carregam uma mensagem
fundamental identificando a situação como uma situação comunicativa. Austin (1962) chamou o ato
do discurso no qual tais signos são produzidos como ato locutório. A sua mensagem é mais ou
menos, “Eu estou falando”. Prieto (1966), com referência aos signos em geral, o chamou de ato
sêmico. Aproximadamente, o ato sêmico identifica uma mensagem enquanto uma mensagem e
afirma “E sou uma mensagem”.

Existem duas maneiras fundamentais nas quais uma imagem pode ser dita como enquadrada.
A primeira é relacionada ao espaço que uma imagem ocupa em um campo visual. Vamos chamá-la
de enquadramento espacial. A sua mensagem é basicamente: “O espaço que eu delimito é uma
imagem.” A segunda é um enquadramento em um sentido metafórico. Ela se refere às
circunstâncias que fazem a informação pictorial uma mensagem emitida por um remetente e
endereçada a um destinatário. Em analogia à terminologia introduzida por Christian Metz (1991) no
contexto dos estudos fílmicos, esse tipo de enquadramento será chamado enquadramento
enunciativo.

O enquadramento que delimita uma imagem em um sentido espacial é tanto um


enquadramento material quanto imaterial. O enquadramento material não apenas delimita, ele
também ocupa, um espaço em si mesmo, situado entre a imagem e ao seu ambiente visual. Pode ser
um enquadramento de madeira ou metal encerrando as suas margens ou uma placa de vidro
cobrindo a sua superfície. Em imagens impressas, é o branco ou a margem colorida entre a imagem
e a borda da página que separa uma imagem da próxima na mesma página. O enquadramento
material marca as fronteiras entre a imagem e o campo visual no qual ela está inserida.

Por um lado, o enquadramento material da imagem é parte da imagem uma vez que ela
marca a imagem como um objeto de um certo valor que merece ser preservado, exibido, vendido ou
possuído. Por outro lado, o enquadramento material não é parte da imagem. Por exemplo, ele pode
ser trocado por uma nova moldura e a imagem permanecerá essencialmente a mesma. Essa
ambigüidade do material de enquadramento, que parece ser e não ser uma parte da imagem ao
mesmo tempo, cessa quando uma imagem emoldurada é descrita e então transformada em uma
metaimagem. Como parte da metaimagem, o enquadramento pintado é claramente uma imagem
objeto de um enquadramento material.

O enquadramento imaterial da imagem é o enquadramento que cada imagem possui, esteja


ela materialmente enquadrada ou não. Ele determina os limites do espaço disponível para a
representação pictorial. Cada imagem possui um enquadramento imaterial mesmo quando esse
enquadramento possa ser vago, borrado ou difícil de determinar. Ás vezes, esse enquadramento é
coextensivo aos contornos de uma figura que emerge de um suporte, por exemplo, a figura de um
herói político pintada em uma parede branca. Nesse caso, os contornos da figura constituem o
enquadramento imaterial da imagem; o suporte dessa imagem é simplesmente uma parede pintada e
não uma imagem. Sem um enquadramento imaterial no sentido de delimitação espacial da imagem,
a imagem seria coextensiva com o universo visual e perderia o seu caráter de ser uma imagem.
Mesmo uma imagem recortada de uma imagem maior é imaterialmente enquadrada.

O enquadramento enunciativo da imagem identifica o emissor como um pintor, um


fotógrafo, uma agência de publicidade, um editor, e o observador como um conhecedor de arte, um
leitor de revistas, visitante de um museu, ou um consumidor exposto à propaganda. A perspectiva é
um elemento significante do enquadramento enunciativo da imagem. Ela mostra quando o emissor
tirou ou pintou a imagem ou foto, se foi de baixou ou de cima, e tem a ver com o ponto de vista do
receptor em relação à imagem. As teorias da enunciação verbal e pictorial são intimamente
relacionadas à teoria da narratividade, com sua busca por vozes narrativas e seus leitores reais ou
implícitos.

Separada de seu enquadramento espacial, uma mensagem pictórica não contém nenhum
outro repertório sígnico “segmental” para identificar características auto-referenciais ou
metapictoriais da imagem. Ao contrário da linguagem, que possui um rico vocabulário de termos
metalingüísticos e de palavras dêicticas para identificar o emissor e o receptor no tempo e no
espaço, imagens estão sem um repertório de metassignos, e indicadores de referência de auto ou
metapictoriais devem ser inferidos pelo observador a partir de uma evidência indireta. Tais
inferências podem ser ambíguas ou desnorteadoras, e o jogo com tais ambigüidades tem sido muito
utilizado para criar imagens paradoxais, por exemplo, imagens representando janelas que parecem
ser pintadas em paredes ou o oposto, imagens que parecem janelas com a paisagem vista através
delas. Retornaremos a essas ambigüidades entre imagens e metaimagens ou entre imagens e
imagens auto-referenciais abaixo, após uma breve exemplificação das categorias analíticas
discutidas até então.

Três leopardos em um?

Vamos examinar em mais detalhes as características de metaimagens e imagens auto-


referenciais na mensagem pictorial da metade superior de uma publicidade para o provedor
brasileiro de internet, Terra (Figura 1). Enquanto a parte inferior dessa publicidade contém uma
mensagem verbal com informações sobre os serviços da companhia, a metade superior mostra a
imagem de um leopardo. A única conexão entre ambos é a qualidade da rapidez que é descrita
explicitamente aos serviços de internet oferecidos pelo provedor e implicitamente ou por
pressuposição ao leopardo que é mostrado correndo em uma alta velocidade. A discrepância entre
os campos semânticos da natureza animal e a alta tecnologia leva o leitor à conclusão de que o
leopardo pode ser interpretado como uma metáfora visual da rapidez. Nenhuma outra conexão entre
o provedor de tecnologia e o animal na selva parece ser plausível. Como uma metáfora visual, a
imagem do leopardo é uma metaimagem, uma imagem que serve para ilustrar outra coisa, a saber, a
idéia de rapidez. No que diz respeito a isso, a imagem do leopardo é uma imagem aloreferencial e
não uma metaimagem auto-referencial.

Figura 1. Uma metaimagem sobre a imagem de um leopardo (Veja 38.33 [Ago. 17], 2005, p. 140).
A mensagem pictórica dessa publicidade mostra uma pilha de três imagens sobrepostas,
cada uma delas representando um leopardo. A imagem no topo é uma foto instantânea incompleta
de um leopardo, tirada em um disparo cujo foco cortou a cabeça e o rabo do leopardo nas suas
margens esquerda e direita. Abaixo, as outras duas imagens complementam as partes que faltam
com a sua sobreposição, de forma que a cabeça e o rabo que faltam da primeira foto são
complementares, resultando em uma imagem completa do leopardo. A segunda imagem do
leopardo no conjunto é um desenho de carvão de um leopardo do mesmo tamanho, do qual nós
vemos apenas o rabo enquanto o tronco dele está aparentemente escondido abaixo da primeira foto
que a cobre parcialmente. A imagem abaixo das duas primeiras imagens é uma pintura a óleo de um
leopardo com a assinatura do pintor no canto direito; ela serve para complementar a cabeça que
falta na foto instantânea, enquanto o resto é coberto pelas outras duas imagens sobrepostas.

A mensagem visual dessa publicidade pode ser lida de duas maneiras. Ela pode ser vista
como uma imagem de três imagens, ou ela pode ser interpretada como uma imagem construída de
três representações parciais de um leopardo. Lida como uma imagem de três imagens, a mensagem
é interpretada como uma metaimagem na qual cada imagem sozinha contém uma mensagem sobre
as outras duas imagens. Por exemplo: (1) as três imagens do leopardo complementam uma a outra
da esquerda para a direita (2) a primeira imagem do leopardo está no topo, enquanto a segunda e a
terceira estão abaixo de duas outras imagens; (3) a terceira projeta-se para a direita, a segunda para
a esquerda, etc.

Lida como uma imagem de um leopardo, a mensagem pictorial é vista como uma
metaimagem auto-referencial em dois grandes aspectos. Primeiro, é uma imagem sobre tirar fotos.
Ela mostra o que acontece quando o fotógrafo falha ao selecionar o próprio foco; ela mostra
algumas das diferenças específicas entre três gêneros pictóricos de fotografia colorida, desenho em
carvão preto e branco, e pintura a óleo; ela mostra três tipos de enquadramento, emoldurado por
uma margem branca, por um enquadramento imaterial e por uma moldura de madeira; ela cria a
imagem mental de três imagens completas do mesmo tamanho pictorial, que são signos icônicos
uma da outra, etc. Em segundo lugar, a foto no topo do conjunto é auto-referencial de uma forma
muito diferente. Ela é uma foto instantânea, o que significa, que é rapidamente produzida. Além
disso, foi tirada aparentemente muito rapidamente, pois o resultado foi, infelizmente, de uma
imagem incompleta. A rapidez de tirar a foto inscrita na fotografia com esses defeitos é uma
imagem da rapidez do leopardo em movimento rápido. A imagem que representa rapidez de uma
forma metafórica contém ela mesma a característica da rapidez, e nesse sentido, é uma imagem
auto-referencial.

Das três imagens, a foto instantânea e a pintura a óleo são claramente marcadas por um
enquadramento material que é a margem branca no caso da foto e a moldura de madeira no caso da
pintura. O desenho a carvão, por contraste, tem apenas o enquadramento imaterial, que é a borda do
papel branco. Além disso, o primeiro e o segundo enquadramentos da pilha são marcados por uma
sombra indicando a direção da sua iluminação, que vem do topo esquerdo. Os enquadramentos
enunciativos indicam o primeiro emissor pictorial como um fotógrafo, o segundo como uma pessoa
que faz rascunhos e o terceiro como um pintor. Considerada como uma imagem, o emissor é o
designer da publicidade que integrou as três mensagens em uma; é a agência de publicidade se
endereçando àqueles por quem eles foram contratados, entre outros; é o provedor de internet se
remetendo aos clientes potenciais, etc.

Enquadramentos enunciativos ilusionistas e descritivos

Vamos agora retornar aos enquadramentos enunciativos de imagens e examinar alguns


exemplos que possam exemplificar melhor a sua relevância do que os exemplos prévios no qual a
sua descrição leva a alguns resultados óbvios. A relevância desses enquadramentos é mais aparente
quando há algum tipo de ambigüidade com respeito à situação enunciativa da imagem, uma
incerteza quanto aos seus emissores, receptores, ou até mesmo enquanto uma imagem como um
todo. Quatro exemplos servirão para ilustrar tais ambigüidades, (1) pinturas fotorrealistas, (2)
imitações pictoriais, (3) a cortina superilusionista de Parrhasios e (4) o cachimbo anti-ilusionista de
Magritte.

Fotorrealismo. Pode uma imagem ser uma total auto-representação, na qual a imagem
representada seja coextensiva com a representação? Parece impossível para uma imagem ser auto-
referencial em sua totalidade. Cada imagem seria auto-referencial de si mesma, e como poderíamos
distinguir entre a representação e a imagem representada se ambas são coextensivas? Não obstante,
aproximações ao caso fronteiriço da auto-representação total pictorial parecem existir. Considere
uma pintura fotorrealista. Tal pintura cria a ilusão de ser uma fotografia, mas ela finge, ao mesmo
tempo, não ser nada além de uma pintura. Sendo uma imagem completa de uma imagem, a pintura
foto-realista é uma metaimagem como qualquer cópia é, mas também é auto-referencial. É uma
imagem que se refere, ao mesmo tempo, a dois tipos de imagens que não existem realmente como
dois objetos separados. Muitas pinturas fotorrealistas não são sequer cópias de fotos existentes, e
mesmo que elas sejam, a referência delas à foto da qual elas são as cópias são completamente
marginais. Uma vez que a referência à foto é apenas mental, a imagem descritiva e descrita podem
ser chamadas de co-extensivas.

Imitações. Cópias e cópias fraudulentas (imitações) são metaimagens quando é sabido que
elas não são as originais. Ambas são imagens que representam outras imagens tão fielmente quanto
possível, mas enquanto elas não escondam o que elas são, suas designações metapictoriais como
cópia e imitações enfatizam a diferença entre a representação e a imagem representada. Uma cópia,
por assim dizer, carrega a mensagem “Eu não sou o original”. Ela ainda se refere, ao mesmo tempo,
enfatiza a sua diferença em relação ao original. Com esse distanciamento, a cópia declara ser ela
mesma uma metaimagem totalmente referencial. O mesmo acontece com a imitação que é
conhecida por ser uma imitação (falsa). Uma imitação que é tida como original, por contraste, é
vista como um original, não é uma metaimagem.

A cortina super-ilusionista de Parrhasios. Na comunicação verbal, o enquadramento


enunciativo é na maior parte do tempo uma questão de quem está falando; raramente a questão é
posta toda vez que alguém está falando. Raras são as situações na qual o falante precisa sinalizar
que ele ou ela está falando e não, por exemplo, respirando, ouvindo, assistindo, comendo ou
cantando. Enquanto a questão Você me escuta? não é incomum em uma conversação cotidiana, é
difícil de imaginar uma situação onde alguém teria que perguntar uma questão como: Você está
falando? Sons de fala não competem com os muitos sinais acústicos emitidos no ambiente de um
falante. Imagens, por contraste, estão muito mais imersas em um campo visual de signos não-
pictóricos de competição, e, não é coincidência que a questão “imagem ou não imagem?”
questionada no contexto das artes visuais como “é arte ou não é?” tenha sido um dos maiores
tópicos das artes visuais desde Dada.

É por isto que imagens parecem precisar muito mais de uma mensagem auto-referencial
fundamental do tipo “Eu sou uma imagem”. A questão já havia sido levantada na mitologia grega.
Plínio conta a lenda de dois pintores, Zeuxis e Parrhasios, que competiram por um prêmio para
melhor pintura (Nat. hist. xxxv: 65). Zeuxis expôs uma imagem de uvas tão bem pintadas que os
pássaros se aproximaram delas para pegá-las. Orgulhoso por ter iludido os pássaros a tomar sua
imagem por real, Zeuxis virou-se para o seu competidor e pediu a ele que removesse a cortina que
encerrava a pintura do competidor. Parrhasios estava triunfante. A cortina havia sido pintada, e a
sua obra de arte não tinha apenas iludido os pássaros, mas até mesmo o seu companheiro pintor, que
acreditou que a cortina pintada fosse uma cortina real. A lenda é sobre a ilusão da arte através das
imagens (cf. Moeller 2003). Ambos os pintores obtiveram sucesso em esconder a mensagem auto-
referencial básica através da qual as suas pinturas carregam a mensagem “Eu sou uma imagem”.

O cachimbo antiilusionista de Magritte. Magritte tomou o caminho oposto questionando os


enquadramentos enunciativos das mensagens. Na sua famosa imagem de um cachimbo com a
aparentemente contraditória legenda verbal Ceci n’est pas une pipe, sua estratégia era destruir o
super-ilusionismo pictorial à la Parrhasios. Lida como um comentário sobre o enquadramento
enunciativo da imagem, não há contradição em sua metamensagem verbal sobre a imagem: o objeto
representado deve verdadeiramente não ser confundido com a imagem representada.

Paradoxos verbais e auto-referências metalepticas em imagens

Auto-referência é uma das fontes de paradoxo em linguagem. Considere Epiménides, de


Creta, que dizia: “Todos os cretenses são mentirosos”. A expressão cria o famoso paradoxo de
acordo com o qual Epiménides tanto diz a verdade e então falsifica a afirmação de que todos os
cretenses mentem, como todos os outros cretenses, mas então a sua proposição renegaria a ela
mesma e significaria: “É uma mentira que todos os cretenses são mentirosos”, que, por negação
dupla, significaria o oposto, a saber, que nenhum cretense mente. A fonte desse paradoxo está na
sua natureza auto-referencial: a expressão daquele que fala se refere ao ato de fala do falante, mas o
nível semântico da proposição entra em conflito com o nível pragmático do que o falante expressa e
o escopo a que ele se refere, que é parcialmente o que os outros dizem, parcialmente o que ele
mesmo diz.

O paradoxo de Epiménides exemplifica um modo de auto-referência verbal que não é


metalingüístico no sentido estreito, uma vez que os cretenses não dizem nada sobre fonemas,
palavras e sentenças e tampouco diz algo sobre as línguas gregas e latinas. É verdade que o conceito
de metalinguagem é também ocasionalmente estendido a um sentido maior que inclui também atos
de fala auto-referenciais como os de Epiménides, e, num sentido mais amplo, alguém poderia
argumentar que o paradoxo de Epiménides é também metalingüístico. No entanto, há uma diferença
importante entre metalinguagem num sentido estreito e metalinguagem nesse sentido mais amplo.
Enquanto termos metalingüísticos tais como palavra ou sentença sempre se referem explicitamente
á linguagem, o paradoxo de Epiménides é apenas implicitamente auto-referencial. A fonte da auto-
referência verbal está no ato ilocucionário não expresso que pode ser tornado explícito na forma de
paráfrase metalingüística: “Eu, cretense, digo que todos os cretenses dizem coisas não verdadeiras”.

Existe um paralelo bem conhecido entre o paradoxo de Epiménides e a representação


pictorial: a mão de Escher que pinta a si mesma. Nessa imagem, o tipo de auto-referência com a
qual nós somos confrontados é a auto-referência metaléptica (cf. Ryan 2004). Metalepse, um
conceito emprestado da retórica, é um dispositivo narrativo através do qual um narrador começa a
participar na vida dos personagens que não são nada além da sua criação, ou vice-versa, os
personagens criados pela narrativa do próprio autor começam a entrar em diálogo com o autor
(como em Seis personagens em busca de um autor de Pirandello). A natureza auto-referencial da
metalepse narrativa tem sua explicação no enquadramento enunciativo: o emissor se torna um
receptor auto-endereçado. O elemento metaléptico na imagem da mão que pinta ela mesma consiste
na transformação da mão pintada em uma mão que pinta. A mensagem de Escher parece conter essa
mensagem paradoxal: “Eu, a mão do homem que faz rascunho, estou desenhando uma mão que
desenha a si mesma”. O dispositivo da metalepse pictorial ganha alguma popularidade no gênero
dos desenhos onde as figuras ás vezes começam a mudar sua aparência através da adição,
apagamento ou mudança delas mesmas através dos próprios desenhos de suas linhas de desenho.

Conclusões e prospecções

As diferenças e sobreposições entre metaimagens e imagens auto-referenciais foram o tópico desse


artigo. Apesar das muitas distinções propostas nesse estudo, ela permanece para ser apontada, pois
ainda há diversas outras formas de auto-referências pictoriais que merecem ser discriminadas (cf.
Nöth 2006b). Além disso, o estudo de categorias estabelecidos nesse artigo pode revelar a
necessidade de admitir transições graduais entre metaimagens, imagens auto-referenciais, e
metaimagens auto-referenciais. A partir de uma perspectiva semiótica mais geral, pode até ser
verdadeiro que todas as metaimagens contenham algum tipo de auto-referência e que todas as
imagens auto-referenciais possam ser, de alguma forma, metaimagens. Apesar de tudo,
metaimagens são imagens de imagens, o que sugere um certo loop auto-referencial. Ambas
metaimagens e imagens auto-referenciais convidam reflexões sobre a natureza da representação
pictorial. Entretanto, os denominadores gerais muito comuns de metaimagens e de imagens auto-
referenciais não invalidem distinções mais sutis que podem e devem ser desenhadas entre elas.

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Winfried Nöth é professor de Lingüística e Semiótica e diretor do Centro Interdisciplinar de
Estudos Culturais da Universidade de Kassel, professor visitante na Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo (PUC/SP), membro honorário da Associação Internacional de Semiótica
Visual e presidente da Associação Alemã de Semiótica (2000-2004). Livros: Handbook of
Semiotics (1990; 2a ed. rev. alemã 2000; trad. croata, 2004; trad. port., no prelo, 2006 [EDUSP]),
Panorama da semiótica de Platão a Peirce (1995), A semiótica no século XX (1996), Semiotics of
the Media (1997), Imagem: Cognição, semiótica, mídia (1998, 4ª ed. 2005, com Lucia Santaella),
Landkarten [Mapas…] als synoptisches Medium (1998, com D. Schmauks), Medientheorie und die
digitalen Medien (1998, com K. Wenz), Semiótica: Bibliografia comentada (1999, com Lucia
Santaella), Semiotics of Nature (2001, com K. Kull), Crisis of Representation (2003, com C.
Ljungberg) e Semiótica e comunicação (2004, com L. Santaella). <http://www.uni-
kassel.de/~noeth>

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