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Associação

 Nacional  dos  Programas  de  Pós-­‐Graduação  em  Comunicação  


XXV  Encontro  Anual  da  Compós,  Universidade  Federal  de  Goiás,  Goiânia,  7  a  10  de  junho  de  2016  

RECONHECER A IMAGEM, PERSEGUIR A HISTÓRIA:


crítica da visibilidade técnica no cinema de Harun Farocki 1
RECOGNIZING IMAGE, PURSUITING HISTORY: critique of
technical visibility in the cinema of Harun Farocki
Luís Felipe Duarte Flores 2

Resumo: O artigo se dedica a discutir aspectos da relação entre cinema e história


no filme-ensaio Reconhecer e perseguir (2003), do cineasta alemão Harun Farocki.
Na obra, o artista utiliza arquivos e voz off para refletir criticamente sobre o devir
tecnológico da humanidade. Ao mesmo tempo, sua crítica constitui uma operação
reflexiva sobre o funcionamento das imagens técnicas. Farocki faz uso, dentre
outros, de um tipo particular das imagens de arquivo, as chamadas imagens
operacionais, produzidas pelos próprios objetos e sistemas técnicos. Nossa análise
busca compreender os procedimentos formais utilizados na retomada ensaística
das diferentes imagens, bem como os sentidos possíveis de sua apropriação. O
método do diretor é dividido, assim, em duas figuras com valor heurístico: por um
lado, o reconhecimento da imagem, o ato de arrancá-la das instituições do poder,
por outro, a busca da história, a ressignificação das imagens em seus
relacionamentos complexos com o mundo e o tempo humano.

Palavras-Chave: Cinema. História. Técnica. Farocki.

Abstract: This paper investigates some aspects of the relationship between cinema
and history present in German filmmaker Harun Farocki’s film-essay War at a
distance (2003). The artist combines archival footage and voiceover to critically
think about humanity’s technological becoming. At the same time, his critique is a
reflective operation on the general functioning of technical images. Farocki makes
use of a particular kind of footage among others, the so-called operational images,
produced by technical systems and objects themselves. The analysis aims to
understand the formal procedures that articulate images, as well as the possible
meanings of their essayistic appropriation. The director’s method is thus divided in
two heuristic figures: on the one hand, image recognition, the act of extracting it
from institutions of power, on the other, pursuit of history, the re-signification of the
images in their complex relationships with human society and time.

Keywords: Cinema. History. Technics. Farocki.

1
Trabalho apresentado ao Grupo de Trabalho Estudos de Cinema, Fotografia e Audiovisual do XXV Encontro
Anual da Compós, na Universidade Federal de Goiás, Goiânia, de 7 a 10 de junho de 2016.
2
Doutorando em Comunicação Social pelo PPGCOM-UFMG, professor, ensaísta e tradutor,
luisfdf@gmail.com

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A imagem do real fornecida pelo cinema é infinitamente


mais significativa, pois se ela atinge esse aspecto das coisas
que escapa a qualquer instrumento – o que se trata de
exigência legitima de toda obra de arte – ela só o consegue
exatamente porque utiliza instrumentos destinados a
penetrar, do modo mais intensivo, no coração da realidade.
(Walter Benjamin)

Ontem é mistério –
Mas onde está Hoje?
Mal especulamos
O tempo nos foge
(Emily Dickinson)

1. Introdução

Em 2084 (1984), pequeno ensaio distópico composto por Chris Marker em razão dos
100 anos de sindicalismo na França3, um robô intergaláctico do futuro apresenta na televisão,
um século adiante, os três cenários possíveis da vindoura existência humana. O primeiro
cenário, denominado “a hipótese cinza” apontaria os elementos de uma crise4 da imaginação,
dominada pelo medo e pela incapacidade de inventar um futuro. O segundo cenário seria o da
“hipótese negra” de um mundo tecno-totalitário “no qual a técnica tomou o lugar das
ideologias”. Por fim, o terceiro cenário corresponde à “hipótese azul”, fundada na potência
libertadora do sonho e da imaginação humana.
Três previsões de futuro. Mas o peso da segunda hipótese, inscrito em elementos
visuais como a mise en scène futurista e o robô apresentador, é assumido formalmente
enquanto ameaça concreta dos tempos hodiernos. Com efeito, a paisagem vislumbrada por
Marker se torna cada vez mais real. A experiência radical da tecnologia pelo humano (e do
homem pela técnica), produz, para usar as palavras do filósofo Bernard Stiegler (2009), uma
“temporalidade de desorientação” extrema. A técnica “se revela, ao mesmo tempo, como a
potência do humano e o poder de autodestruição da humanidade” (STIEGLER, 1998, p. 85).
É outro cineasta, o indo-alemão Harun Farocki, certamente herdeiro de Marker e de
outros “diretores tecnólogos”, como Jean-Luc Godard, quem cumpre o papel de um dos

3
Contados a partir da aprovação na França, em 1884, da lei Waldeck-Rousseau, que autorizava a criação dos
sindicatos, em contraponto aos pressupostos da repressão social institucionalizados, anteriormente, pela lei Le
Chapelier, de 1791.
4
Na narração original, em francês, há um trocadilho entre as palavras grise (cinza) e crise (crise).

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principais semiólogos da vida contemporânea. Ao menos desde a realização de Como se vê


(1986), filme-ensaio sobre as relações entre produção e guerra no contexto da atividade
industrial capitalista, sua obra se dedica a investigar as origens da técnica e os seus
desdobramentos (políticos, econômicos e filosóficos) na sociedade ou na cultura. Em
Imagens do mundo e inscrição da guerra (1989), por exemplo, talvez seu filme mais célebre,
trata-se de problematizar a escritura automática da história e certo estatuto descartável da
visão face à produção excessiva das imagens técnicas na época atual.
Com efeito, Farocki desenvolve uma verdadeira arqueologia do presente ao longo de
sua carreira cinematográfica, permanecendo sempre atento às forças históricas do poder ou
do controle que atravessam a existência humana e convergem, em diferentes níveis, para as
tendências do progresso e da visibilidade técnica (BLÜMLINGER, 2014). Uma das questões
centrais de seu cinema é a das mutações imagéticas desencadeadas pelo desenvolvimento
tecnológico, bem como as consequentes transformações da percepção humana e do mundo
contemporâneo.
Em Reconhecer e perseguir (2003), o cineasta utiliza como matéria primária as
chamadas imagens operacionais – conceito cunhado na esteira de Vilém Flusser e Friedrich
Kittler –, que fariam “parte de um bloco técnico e não [seguiriam] nenhum interesse estético
primário: [...] câmeras de vigilância, reproduções informáticas visuais de scanners da íris ou
programas de rastreamento” (PANTENBURG, 2010, p. 181)5. Imagens que encontrariam um
duplo estatuto de arquivamento e controle no mundo contemporâneo, servindo, por um lado,
como prótese mnemônica para o tempo e a consciência humana em escala “global” e, por
outro, como máquinas de registro e vigilância incessante do correto funcionamento dos
sistemas técnicos6. Pouco afeitas à circulação pública, quase sempre submersas nos fluxos
hegemônicos das instituições, tais imagens se fundariam, acima de tudo, em critérios

5
Conferir, também, TOMAS, 2013. Por exemplo: “A imagem operacional é produto do desenvolvimento de
uma nova geração de máquinas inteligentes, capazes de realizar tarefas de maneira independente e automática.
Por meio de seus vários papéis, as imagens operacionais registram, mapeiam, interagem com, controlam e
regulam os parâmetros de um novo espaço visual produzido por um novo tipo de ‘visão’ não-humana: a visão da
máquina. Mas a imagem operacional pertence a uma outra cultura da máquina e a uma geração diferente de
máquinas produtoras de imagem. Pois não é necessariamente visível ao olho humano, como são as imagens
convencionais” (p. 232).
6
Sobre a constituição de determinadas imagens, especialmente no campo da publicidade, como formas de lei e
de censura, conferir excelente palestra do filósofo italiano Emanuele Coccia intitulada “Les images comme
forme de loi”, ministrada em 10 de abril de 2014, na EnsAD (École nationale supérieure des Arts Décoratifs,
Paris, França). Disponível em: https://vimeo.com/96733898.

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suplementares, como coordenadas geográficas, algoritmos computacionais, equações


matemáticas, esquemas representativos etc.
Se, como afirma Didi-Huberman, o debate “das relações do ‘real’ histórico com a
‘escrita’ que faz a história” não só “não está encerrado, como se foca habitualmente na
questão extrema – o que não quer dizer ‘absoluta’ – da Shoah” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p.
133), é preciso também levar em conta aqueles índices sensíveis marcados por outras forças
ou fenômenos históricos. Nesse sentido, o fato das imagens operacionais diferirem
substancialmente do que se costuma designar stricto sensu por imagens de arquivo – em
especial quanto à inscrição de traços ou de intenções humanas nas suas formas – não
proscreve a priori o seu entendimento ou tratamento arqueológico. Com efeito, podem haver
vários modelos teóricos envolvidos na formulação de um conceito de arquivo, como mostram
as difundidas teses de Freud e Derrida.
É preciso recordar que “a imagem não é nem nada, nem tudo” (DIDI-HUBERMAN,
2012, p. 145), que o arquivo não é nem “puro e simples ‘reflexo’ do acontecimento, nem a
sua pura e simples ‘prova’. Pois ele deve ser sempre elaborado mediante recortes incessantes,
mediante uma montagem cruzada com outros arquivos” (DIDI-HUBERMAN, 2012, p. 131),
com outras imagens. No fundo, tudo depende do “trabalho de elaboração” empenhado pelo
historiador ou dos procedimentos específicos de montagem utilizados pelo cineasta. “O
arquivo [...] só se torna significante ao ser pacientemente elaborado” (DIDI-HUBERMAN,
2012, p. 124). Veremos, assim, de que modo Farocki retoma essas imagens de arquivo
particulares, feitas com um mínimo de percepção ou de intenção estética, de modo a extraí-
las dos seus fluxos (in)sensíveis habituais e colocá-las em perspectiva crítica com relação a
outras imagens, no tecido dos rastros ou fantasmas que compõem a história humana.

2. Reconhecer a imagem

A partir de 2001, especialmente interessado na questão do “processamento de imagens,


no qual a imagem de vídeo é traduzida numa imagem digital”, Farocki se volta para as
transmissões televisivas da guerra das forças aliadas contra o Iraque, em 1991. Ele observa:
naqueles dias, um novo gênero de imagem apareceu na televisão: captada pela
cabeça de um míssil lançado contra seu alvo – quando o míssil atinge o alvo, a
transmissão é encerrada. Eram imagens de armas inteligentes, dizia-se. Dez anos
depois, nem as imagens nem as armas haviam sido devidamente examinadas
(FAROCKI, 2010, p. 86).

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O trabalho do cineasta parte, portanto, da constatação de uma cegueira analítica em


relação às tecnologias de guerra à distância, não obstante o “progresso” e a difusão crescentes
das mesmas. A princípio, Farocki realiza três instalações em torno do tema, intituladas
Olho/Máquina I, II e III (2001-2003). Elas investigam, grosso modo, como as ligações
veladas entre a indústria e a guerra afetam os modos de percepção ou de existência dos entes
humanos. A investigação seria condensada e aprofundada no filme Reconhecer e perseguir
(2003), que retoma imagens e ideias das instalações a fim de questionar a zona de indistinção
entre real e virtual, presença e ausência, vivido e representado nas tecnologias da visão
militar, rupturas acentuadas pela circulação volumosa das imagens sintéticas e operacionais
na mídia internacional durante a Guerra do Golfo. “A visão é […] uma visada: não serve para
representar objetos, mas para agir sobre eles, para apontá-los. A função do olho é a da arma”
(CHAMAYOU, 2013, p. 130).
Em Reconhecer e perseguir, portanto, os materiais imagéticos produzidos pelas
máquinas de guerra são retomados, por Farocki, como rastros fundamentais para o
pensamento histórico sobre os processos humanos de produção e destruição, de violência e
trabalho7. Para isso, contudo, é preciso arrancá-los dos fluxos hegemônicos da televisão e do
poder, nos quais se encontram capturados, de peso e de hábito, pelas grandes forças e
estruturas comunicacionais.

7
Desnecessário lembrar da afinidade com as ideias de Paul Virilio, especialmente na sua célebre obra Guerra e
cinema, que aborda as conexões entre a evolução histórica do cinema e da tecnologia militar. Virilio escreveria
também um livro de crônicas dedicadas à Guerra do Golfo, Desert screen.

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FIGURA 1 – Imagens operacionais da Guerra do Golfo


FONTE – Sequência de abertura do filme Reconhecer e perseguir (Harun Farocki, 2003)
Na sequência de abertura (FIG. 1), vemos uma série de seis imagens operacionais da
Guerra do Golfo, que se repetirão ao longo de todo o filme, “imagens aéreas com a mira no
centro, transmitidas pelas pontas dos projéteis, filmadas por câmeras lançadas ao alvo”8. As
mesmas imagens, aponta Thomas Voltzenlogel, “ocuparam [por muito tempo] as telas
televisivas no mundo inteiro, e até hoje são mostradas pelos noticiários” (VOLTZENLOGEL,
2014). Mais ainda, elas reforçam duplamente certa visão de história dos vencedores, da qual
falava Walter Benjamin (1994), seja enquanto “documentos de poder, [...] signo visual do
poderio militar” (VOLTZENLOGEL, 2014), estranhos monumentos de glorificação do
progresso; seja enquanto elementos de convergência discursiva com os fluxos hegemônicos
da indústria midiática.
Sabe-se que o dispositivo televisivo tradicional é marcado pela forte presença da voz
over do jornalista, destinada, grosso modo, a oferecer um acompanhamento “explicativo” ao
espectador e delimitar sua compreensão sobre os fatos mostrados. Portanto, é bastante
8
Assim explica a narração. Em Olho/máquina, Farocki diferencia essas mesmas imagens daquelas utilizadas
pela propaganda militar.

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significativo que, na retomada ensaística desse material de arquivo, Farocki preserve uma
camada de silêncio, de incerteza, de incompletude, substituindo os comentários por reflexões
lacunares e questões indeterminadas. Esse procedimento fílmico funciona no sentido de
extrair as imagens dos lugares onde estariam capturadas, da temporalidade predominante dos
fluxos televisuais e jornalísticos, a fim de reintroduzir nelas uma dimensão de tempo e
mudança, isto é, uma brecha para a história. Por isso, é necessário subtrair “os discursos que
acompanham certo tipo de imagem midiática” (VOLTZENLOGEL, 2014) e deslocar a
organização sensível de sua circulação9.
A tarefa que se impõe, portanto, é a de (dar a) re-conhecer certas imagens estratégicas
capturadas pelos dispositivos e sistemas do poder, de modo a produzir fragmentos e
constelações possíveis. Nos concentremos, por ora, nesse primeiro gesto, embora sabendo
que ele é inseparável da ressignificação dos fragmentos recuperados por meio da fabricação
de novos fluxos sensíveis, inteligíveis, temporais. Esse segundo aspecto do método analítico
de Farocki será explorado, com maior profundidade, em um segundo momento deste ensaio.
Se Reconhecer e perseguir apresenta, predominantemente, sequências ligadas aos
fenômenos da guerra e do trabalho, cabe sublinhar que as imagens mostradas são, no mínimo,
pouco convencionais para a produção de uma obra de arte. Em atitude recorrente ao longo de
sua carreira, Farocki prefere voltar sua atenção para “conjuntos de imagens que não tinham,
de início, vocação para serem tornadas públicas” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 207), como
as gravações de câmeras acopladas em objetos bélicos, os mecanismos de treinamento e de
simulação militar, os segmentos propagandísticos dos mísseis teleguiados, os programas de
processamento das imagens operacionais, os modelos gráficos direcionados para a guerra ou
para a fábrica, as imagens autogeridas dos robôs industriais, os registros incessantes das
câmeras de vigilância, as filmagens da cadeia de produção eletrônica (de mísseis e
automóveis), etc. Em suma, elementos visuais desprovidos de real visibilidade, situados nas
entranhas dos sistemas técnicos e excluídos da linha de transmissão privado-privado da
comunicação contemporânea, esta que sobrepuja, cada vez mais, a própria possibilidade de
existência de um espaço público.
Para Didi-Huberman, “a maior ilusão produzida por [certo] ‘aparelho de Estado’ é que
nada se passa no mundo se não se passar na televisão” (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 206).

9
Gesto que possibilitaria, talvez, outras formas de partilha do sensível, no sentido das aproximações entre
estética e política desenvolvidas pelo filósofo francês Jacques Rancière.

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Algo próximo da zona de pós-história da qual falava Vilém Flusser, onde “nada progride e
onde nada, simplesmente, se passa” (FLUSSER apud DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 207).
Aquilo que não vemos, isto é, que não aparece na rede fechada dos fluxos e dos discursos
midiáticos, não participa da história senão como arcano, recalque, estratagema. Utilizando
procedimentos ensaísticos como os planos de comparação e a narração em off, Farocki busca
reposicionar essas imagens em combinações ou constelações explosivas, revelando o
funcionamento dos sistemas e convenções dos quais fazem parte.
Em um momento central de Reconhecer e perseguir, enquanto as cenas do ataque ao
Iraque se repetem, a narradora afirma que “os Estados Unidos publicaram muitas dessas
imagens, fazendo com que a gestão da guerra e o relato do conflito se confundissem”.
Posteriormente, quase no final do filme, a voz off problematiza o fato de que as imagens
divulgadas dos ataques não mostram nenhum ser humano em seu campo visual, mas apenas
os supostos alvos militares. “Dizem que existem imagens da Guerra do Golfo que mostram
pessoas no alvo, mas não há provas. Essas imagens são produzidas e controladas pelos
militares”. Dentre os muitos desdobramentos dessa reflexão, cabe observar a consciência de
que as instituições – o governo, o exército, a televisão – estabelecem, elas próprias,
ordenações complexas sobre aquilo que será ou não mostrado “abertamente” em seus fluxos,
mascarando, assim, os seus modos convencionais de funcionamento.
Não importa, por exemplo, o quanto os noticiários repisem o sucesso das operações de
combate, cujos alvos seriam de caráter exclusivamente “político” ou militar, descobriremos,
posteriormente, que vários dos espaços atingidos eram construções civis (hospitais, escolas,
pontes, bairros residenciais), destroçados acidentalmente pelos “ataques cirúrgicos”
(VOLTZENLOGEL, 2014) dos mísseis teleguiados. A “história dos vencedores” não passa
de uma versão da história articulada e oferecida pelas forças hegemônicas, cuja vitória não se
restringe, é certo, apenas ao momento do conflito10. Nesse sentido, é contra toda uma
temporalidade da opressão, da injustiça acumulada, dos indivíduos apagados, que Farocki se
levanta ao contrabandear imagens do inimigo e restituí-las à esfera pública. Um cinema da
profanação, um “contradispositivo que restitui ao uso comum aquilo que o sacrifício tinha
separado e dividido” (AGAMBEN, 2009, p. 45). Didi-Huberman reflete:

10
Pensamos, sobretudo, na seguinte formulação de Walter Benjamin, em sua sexta tese sobre a história: “O dom
de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que
também os mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer”.

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O que fazer para restituir alguma coisa à esfera pública para além dos limites
impostos por esse aparelho? É preciso instituir os restos: tomar nas instituições o
que elas não querem mostrar – o rebotalho, o refugo, as imagens esquecidas ou
censuradas – para retorná-las a quem de direito, que dizer, ao “público”, à
comunidade, aos cidadãos (DIDI-HUBERMAN, 2015, p. 206).
Assim, para fabricar contrapontos a essa temporalidade hegemônica, o cineasta se vale
sobretudo da reapropriação ensaística de certas imagens mascaradas pelas forças da história,
seja por meio do excesso – como nas sequências da guerra analisadas –, seja por meio do
apagamento. Com efeito, a hipermnésia decorrente dos excessos da retenção tecnológica –
isto é, da chamada memória terciária – pode ser tomada como dimensão radical do
esquecimento no mundo contemporâneo (STIEGLER, 2011). Godard, principal referência
cinematográfica de Farocki, já perguntava, em Elogio do amor, de 2001: “Não é estranho
como a história foi substituída pela tecnologia?”. No mesmo filme, uma resposta possível:
“Os americanos não possuem um passado de verdade [...]. Não possuem memória própria.
Suas máquinas, sim. Mas não eles, pessoalmente. Então eles compram o passado dos outros.
Especialmente daqueles que resistem”. Dos bósnios, dos palestinos, dos iraquianos.
Além da Guerra do Golfo, pensamos em todo um espectro de imagens operacionais
que, como afirma a voz narradora, “não se dedicam a dizer algo sobre o sistema de produção,
mas fazem parte integrante desse processo. Tais imagens deveriam revelar uma outra visão
do mundo que estão a mostrar”. Ao retomar os registros das fábricas, por exemplo, as
conexões dialéticas da montagem e as camadas de reflexões narrativas oferecem diferentes
graus de legibilidade sobre o funcionamento obscuro do maquinário do progresso.
Nas sequências dos modelos de rastreamento dos mísseis, por sua vez, o esforço é de
destrinchar certa noção de história envolvida nos próprios esquemas gráficos, cujas
representações apagam ou reduzem os traços humanos para privilegiar os elementos técnicos.
Em ambos os casos, as imagens são contrabandeadas dos circuitos fechados da visibilidade
tecnológica, a fim de devolvê-las ao direito público e abrir sua compreensão analítica
enquanto rastros da escritura de uma história pós-humana.

3. Perseguir a história

Desnaturalizar as formas convencionais da indústria midiática exige um meticuloso


trabalho na imagem, que passa, fundamentalmente, pela operação cinematográfica da
montagem. Assim, não é nada gratuita a escolha das imagens de trabalho como o principal

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material de contraste ao trabalho ensaístico-reflexivo das imagens de guerra. Ainda na


sequência de abertura, após as imagens da Guerra do Golfo, surge um operário a manejar
uma máquina na linha de produção da fábrica, acompanhado pela seguinte frase da narradora:
“uma relíquia da era mecânica”. Depois, junto a um trecho retirado do material de divulgação
do míssil teleguiado Taurus, a narradora acrescenta: “a era eletrônica criou o míssil”. O
trabalho do filme será o de perseguir – de maneira sutil, desprovida de ênfase – os
desdobramentos históricos dessa passagem entre eras e contextos tecnológicos, na medida em
que, como afirma Vilém Flusser (2013, p. 37), “as fábricas são lugares onde sempre são
produzidas novas formas de homens: primeiro, o homem-mão, depois, o homem-ferramenta,
em seguida, o homem-máquina e, finalmente, o homem-aparelhos-eletrônicos. Repetindo:
essa é a história da humanidade”11.
De um modo geral, Farocki busca restituir à esfera pública os rastros de uma história
interdita, retraçando as origens da técnica – no caso, industrial e militar – para evidenciar
suas ambivalências ou bifurcações históricas. Um gesto fundamentalmente arqueológico, que
“convoca, a partir de situações precisas, agenciamentos sociais dos quais Farocki revela as
funções e o funcionamento, seguindo-os no fio do desenvolvimento histórico e inscrevendo-
os [...] na evolução da técnica” (BELLOUR, 2015, p. 70). Cabe proceder, assim, pelos rastros
improváveis da imagem, localizados de maneira incerta no limiar da presença e da ausência,
e desconstruir, com eles, uma certa visão oficial (e “normativa”) do desenvolvimento e do
tempo tecnológico. Os avanços da ciência, da indústria, da computação, do próprio cinema,
monumentos apoteóticos de uma cultura do progresso, são mapeados pelas suas imagens
operacionais, destinadas não mais ao olho humano, ao espectador doméstico, ao registro
histórico ou artístico, mas aos objetos e operadores dos sistemas técnicos.

11
Vale dizer que a influência de Flusser sobre o pensamento de Harun Farocki sobre a imagem é decisiva, sendo
que o cineasta chegou fazer um filme na companhia do filósofo, Schlagworte - Schlagbilder. Ein Gespräch mit
Vilém Flusser (1986), no qual ambos se debruçam sobre a capa do jornal alemão Bild para analisar os modos de
composição das imagens e dos textos nela contidos.

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FIGURA 2 – Planos de comparação: míssil e gestos dos operários


FONTE – Filme Reconhecer e perseguir (Harun Farocki, 2013)

Utilizando um procedimento recorrente em seu trabalho – e reflexo da sua vasta


experiência com montagem em vídeo – Farocki introduz um plano de comparação composto
por duas “telas” mostradas simultaneamente e situadas em diagonais opostas do quadro
fílmico (FIG. 2). Em uma delas, o míssil Taurus continua a voar telefericamente, como que
guiado pelas batidas delirantes da música eletrônica. Na tela do outro canto, decorrem
imagens do trabalho, primeiro dos pés de uma operária e, a seguir, do mesmo homem que
anteriormente manejava a máquina. Bem no começo desse quadro duplo12, no qual a música
do material de divulgação continua a tocar em segundo plano, a narração lança uma
expressão que condensa todo o pensamento visual da sequência inicial: “deve haver uma
relação entre produção e destruição”.
Essa afirmação, aparentemente simples, adquire profundidade por meio do elaborado
trabalho visual realizado pelo filme. A relação proposta – produção e destruição – se coloca
através de camadas, passando pelo estatuto da imagem e pela sua tradição. Mais do que
pensar nas conexões possíveis entre o trabalho e a destruição no nível da realidade
(supostamente) material e concreta do mundo, é preciso perguntar até que ponto esse trabalho
não se inscreve na própria história das imagens (técnicas), da representação (midiática), da
substituição (espetacular). Haveria, nos seus processos de fabricação e recepção, um
princípio latente de aniquilação, de morte, de esquecimento? Como afirma Didi-Huberman:

12
Para Bellour (2013, p. 71), “o quadro duplo possui […] como tal uma virtude própria para as confrontações
entre o velho e o novo”.

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à maneira de Aby Warburg, que passou a vida obcecado com a dialética daquilo que
ele chamava de monstra e astra – uma dialética que, de acordo com ele, guardava
inteiramente a “tragédia da cultura” – e de Theodor Adorno, constantemente
preocupado com a dialética da razão autodestrutiva, Harun Farocki coloca sem
cessar uma terrível questão [...]: por que, em que e como a produção de imagens
participa da destruição dos seres humanos?” (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 46).
Colocar essa questão de maneira profunda exige escavar as camadas movediças do
tempo – passado, presente e futuro – acumuladas na superfície das imagens técnicas.
Portanto, deve-se tomar esses elementos de arquivo como substratos lacunares, índices,
fragmentos da leitura e da escritura da história13. E, vice-versa, entender que a história só é
possível levando-se em conta os seus componentes e pontos de vista não-humanos14. A
própria condição da historicidade, afirma Bernard Stiegler, é a constituição de uma camada
epifilogenética, cujos rastros são acumulados na matéria inorgânica organizada composta
pelos objetos tecnológicos. “A história das possibilidades do rastro como unidade de um
duplo movimento de protensão e retenção” (DERRIDA, 206, p. 104) escaparia, assim, do
circuito metafísico da presença e da ausência, permitindo a compreensão da temporalidade
como um fenômeno determinado por diferentes agentes ou rastros, inclusive involuntários.
Vale repetir: o duplo gesto de Farocki em Reconhecer e perseguir é, por um lado,
libertar os rastros de natureza tecno-imagética de seu fluxo habitual de sentidos, de sua norma
histórica e, por outro, perseguir as vibrações desses rastros liberados, rumo à possibilidade de
uma escritura crítica da história. Durante todo o filme, ele busca não somente tornar visível
aquilo que não era, mas, sobretudo, associar esses restos sensíveis na mesa de montagem,
como uma estranha tábua de semelhanças e colisões, “uma forma de ver o mundo e de
percorrê-lo segundo pontos de vista heterogêneos associados uns aos outros” (DIDI-
HUBERMAN, 2010, p. 7). A combinação dos diferentes tipos de registro – tecnologias de
guerra, robôs industriais, câmeras de vigilância, comerciais de armamentos, modelos gráfico-
computacionais, imagens de arquivo, etc. – segue um poderoso princípio de sideração
dialética, no qual os signos ou temas convocados são continuamente deslocados, arrancados
das armadilhas institucionais nas quais estavam capturados.

13
Sabemos, desde Benjamin, que os rastros (ou vestígios) são índices para a escritura ou leitura da história, algo
próximo da legibilidade dos traços mnemônicos em Freud. Cf. JANZ, 2012, p. 21. Em Archive fever, Jacques
Derrida também retoma o discurso freudiano para desconstruir o conceito tradicional de arquivo com base em
suas relações originárias com a história e a consciência.
14
Afinal, como afirma Jacques Derrida (1998, p. 11) “não existe arquivo sem um lugar de consignação, sem
uma técnica da repetição, e sem certa exterioridade. Não existe arquivo sem fora”.

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Com efeito, o cineasta realiza uma crítica complexa de certa utopia do progresso
tecnológico, do progresso científico desenfreado, cujo culto político já era objeto de forte
suspeita por parte de Walter Benjamin. O filósofo alemão analisou, em mais de um ensaio, as
relações de imbricação entre guerra e desenvolvimento tecnológico, entre barbárie e cultura:
Léon Daudet, filho de Alphonse, ele próprio um escritor importante, líder do
Partido Monarquista francês, publicou certa vez em sua Action Française um relato
sobre o Salão do Automóvel, cuja síntese, embora talvez não nessas palavras, era:
"L’automobile c’est la guerre". O que estava na raiz dessa surpreendente associação
de palavras era a ideia de uma aceleração dos instrumentos técnicos, seus ritmos,
suas fontes de energia, etc., que não encontram em nossa vida pessoal nenhuma
utilização completa e adequada e, no entanto, lutam por justificar-se. Na medida em
que renunciam a todas as interações harmônicas, esses instrumentos se justificam
pela guerra, que prova com suas devastações que a realidade social não está madura
para transformar a técnica em seu órgão e que a técnica não é suficientemente forte
para dominar as forças elementares da sociedade (BENJAMIN, 1994, p. 61)15.
A particularidade da crítica farockiana é que ela se faz pelas imagens e por meio das
imagens, continuamente submetidas a variações sutis e deslocamentos operados pelo ritmo da
montagem, pelos planos de comparação ou pela narração em off. Os comentários cirúrgicos e
as construções dialéticas contribuem para instaurar um ponto de vista de “suspeita”, como na
primeira sequência da fábrica, na qual a narradora aponta a superação do humano pela
máquina, ou nas sequências da indústria automobilística, nas quais o homem é mostrado
como um elemento totalmente supérfluo, diante dos robôs capazes de tomar decisões
inteligentes. Para seguir com Didi-Huberman:
uma crítica das imagens não pode dispensar o uso, a prática e a produção de
imagens críticas. Não importa o quão terrível é a violência que instrumentaliza as
imagens, estas não estão completamente ao lado do inimigo. Desse ponto de vista,
Harun Farocki constrói outras imagens que, ao confrontar as imagens do inimigo,
estão destinadas a fazer parte do bem comum (DIDI-HUBERMAN, 2010, p. 46).
Nesse sentido, trata-se de perseguir “as convergências entre guerra, economia e política
no interior do espaço social” (BLÜMLINGER, 2010, p. 156), isto é, subverter o modus
operandi dos próprios mecanismos automatizados responsáveis por organizar a “civilização
(pós) industrial e suas técnicas” (BLÜMLINGER, 2010, p. 156). O filme mostra bem que um
mesmo princípio teleológico – justamente a expressão que dá nome à obra – pode estar
envolvido de forma ambivalente em atividades diversas, seja a inteligência artificial de um

15
Não custa recordar que Theodor Adorno, um dos principais interlocutores de Benjamin, retoma, embora sem
os devidos créditos, várias das ideias benjaminianas acerca da proximidade do progresso e da destruição. Por
exemplo, Adorno (2006) afirma que “a maldição do progresso irrefreável é a irrefreável regressão” (p. 40) e que
“a racionalidade técnica hoje é a racionalidade da própria dominação. Ela é o caráter compulsivo da sociedade
alienada de si mesma. Os automóveis, as bombas e o cinema mantêm coeso o todo e chega o momento em que
seu elemento nivelador mostra sua força na própria injustiça à qual servia” (p. 100).

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míssil de guerra, o funcionamento de um robô de usina ou a vigilância das fábricas, das ruas,
das prisões16. Não basta comparar a visibilidade industrial ao maquinário militar. É preciso,
ao mesmo tempo, retraçar as origens da tecnologia de guerra, perseguir os seus traços
escondidos sob o programa numérico das imagens eletrônicas.
Observemos, por exemplo, a sequência que reforça o pertencimento histórico da bomba
atômica à era industrial (FIG. 3). Primeiro, um pequeno trecho de vídeo didático mostra a
trajetória e a explosão de um míssil nuclear. Em seguida, a mão de um operário insere peças
na máquina – a imagem da abertura é retomada – enquanto a narradora sugere: “Se fizermos
uma ligação entre guerra e produção, a bomba atômica pertence mesmo à era industrial. O
máximo de energia, o máximo de efeito”. Novamente, a imagem do cogumelo de fumaça
gerado pelo míssil nuclear é mostrada, seguida por um plano de comparação bastante sutil,
com duas imagens do mesmo operário a utilizar máquinas ligeiramente diferentes em seu
trabalho. De fato, pode-se perceber que a cena do canto superior esquerdo possui um ritmo de
produção mais veloz17, algo que a narração não tarda em formular: “antes de ser suprimido, o
trabalho da mão-de-obra é simplificado e acelerado”.

FIGURA 3 – Bomba atômica e era industrial


FONTE – Filme Reconhecer e perseguir (Harun Farocki, 2013)

16
Temas tratados em filmes como Imagens da prisão (2000), filme ensaístico composto, dentre outros
materiais, por uma vasta coleção de imagens produzidas pelas câmeras de vigilância das prisões; Achei que
estava vendo condenados (2000), videoinstalação baseada no filme da prisão; e Contra-música (2004), que
estuda as imagens operacionais utilizadas em sistemas de controle da vida urbana.
17
Durante cerca de 6”, o operário “de cima” introduz 7 peças na sua máquina, enquanto o outro coloca apenas 4.

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Agora, os dois planos são mostrados em sequência, desacelerados para enfatizar os


gestos, e separados apenas pelo letreiro que diz “o mesmo [gesto], depois de simplificado”18.
A sequência prossegue com a exibição de outras imagens dos trabalhadores nas (outras)
fábricas, enquanto a narração reflete sobre a transição da era industrial, marcada pelas
limitações (sensório-motoras) da mão e do olhar humanos, para a era eletrônica, na qual as
máquinas se tornam autônomas e superam a figura do operário. Assistimos, no fim da
sequência, à performance triunfal do sistema Optomat, que “coloca as peças desarrumadas na
posição desejada, comparando a forma e a posição com os modelos instalados”, sem
nenhuma intervenção de operadores humanos. “Com uma mudança no programa, qualquer
posição ou forma pode ser identificada”, procedimento que se assemelha, é claro, às técnicas
de reconhecimento bélico, cujos sistemas são retomados justamente na sequência seguinte,
acerca dos programas militares utilizados na detecção de minas terrestres.
De um modo geral, toda a montagem de Reconhecer e perseguir se faz pela alternância
dialética – não apenas derivante, mas sobretudo explosiva – entre as sequências de guerra e
de trabalho. Como afirma Elton Corbanezi:
A produção dos meios de destruição tornou-se, paradoxalmente, um fator
obrigatório da não-guerra. Círculo vicioso de tensão da Guerra Pura, o qual Farocki
demonstra em seu documentário Reconhecer e perseguir (2003) a partir da ideia da
guerra que estimula o desenvolvimento da técnica; círculo fechado entre a produção
e a destruição, as quais significam, respectivamente, a produção da destruição e a
destruição da produção (CORBANEZI, 2008, p. 50).
Cabe ao cinema, portanto, interromper esse “círculo fechado”, instaurar um
espaçamento ou intervalo que possa servir de brecha à restituição (pela imagem) de uma
imagem mais ampla ou profunda da história. À maneira do materialismo histórico de
Benjamin, o cineasta deve “escovar a história a contrapelo” (BENJAMIN, 1994, p. 225),
resistir aos modos hegemônicos de escritura do tempo e fabricar contrapontos às narrativas da
história oficial. Como nos exemplos analisados anteriormente, são várias as combinações
organizadas por Farocki para arrancar os fragmentos da clausura e perseguir uma dimensão
histórica através do corpo fabril-militar do progresso tecnológico.
Depois da sequência de abertura, um simulador de lançamento de bombas, criado na
Alemanha em 1943, é seguido por outro simulador, contemporâneo, cujas imagens projetam

18
Cabe lembrar, aqui, dos sugestivos títulos do segundo e do terceiro tópicos das “Notas sobre o gesto”, do
filósofo italiano Giorgio Agamben (2008, p. 11): “No cinema, uma sociedade que perdeu seus gestos procura
reapropriar-se daquilo que perdeu e, ao mesmo tempo, registrar a perda” e “O elemento do cinema é o gesto e
não a imagem”.

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sutilmente um presente-futuro (hoje, é bem conhecida a proximidade dos simuladores de


guerra com o universo das imagens sintéticas dos videogames19). Em outra sequência, logo
após assistirmos novamente às imagens da Guerra do Golfo, a narradora recorda que “já
existiam armas de longo alcance na Segunda Guerra Mundial, cuja trajetória era
telecomandada a partir de um avião de apoio, ou que podiam corrigir a sua rota
automaticamente”.
Em outro momento, ainda, após as cenas focadas no trabalho robotizado, na produção
de um míssil teleguiado e no sistema de reconhecimento de alvos, vemos a sequência sobre
uma das primeiras tecnologias de bombas integradas a um sistema de filmagem, na
Alemanha nazista de 1942. Bastante precário, esse aparato transmitia imagens captadas por
uma câmera na ponta do míssil a um avião de escolta, onde elas eram exibidas em monitor
televisivo. “A transmissão por televisão possibilita a aproximação visual ao alvo, mantendo
simultaneamente uma certa distância”. Sem perder de vista as reflexões sobre as imagens da
Guerra do Golfo mencionadas, cabe observar, junto à narradora, que “o desenvolvimento da
bomba equipada com uma câmera e, sobretudo, a diminuição do tamanho da câmera deram
um grande impulso à indústria televisiva”. Novamente, trata-se do ciclo de retroalimentação
entre produção e destruição, no qual o funcionamento da guerra estimula o desenvolvimento
das tecnologias tidas como produtivas, e vice-versa.
É importante reforçar que Farocki é, sobretudo, um refinado semiólogo visual, e grande
parte do seu trabalho fílmico consiste em iluminar correspondências insuspeitadas entre
gestos, figuras ou fragmentos nas imagens selecionadas. Por meio de procedimentos como a
montagem dialética das imagens e a construção de uma narração complexa, ele conecta os
processos de fabricação e funcionamento de um míssil teleguiado, por exemplo, aos modos
de operação de um modelo de produção automobilística. Seu método cinematográfico de
criação e pensamento se aproxima, talvez, da desconstrução do mecanismo da violência
convocada pelo filósofo Grégoire Chamayou (2015, p. 24) em seu recente estudo sobre os
drones: “No lugar de indagar se o fim justifica os meios, importa indagar-se o que a escolha
desses meios, por si mesma, tende a impor. Às justificativas morais da violência armada,
preferir uma analítica, tanto técnica como política, das armas”.

19
Objetos que serão explorados com maior profundidade, pelo próprio Farocki, em obras Jogos sérios (2010),
que mostra os soldados do exército americano em treinamento de simulação militar, intercalando-os com as
imagens dos próprios simuladores; e Paralelo (2014), obra composta quase que completamente por imagens
extraídas de videogames, acompanhadas por importantes comentários ensaísticos.

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Nesse sentido, Reconhecer e perseguir contribui para profanar certa concepção de


história hegemônica, além de produzir ele mesmo “documentos históricos, de uma história
recente da máquina de visão, da imagem da máquina e, particularmente, da emergência da
imagem operacional no contexto de uma cultura da vigilância” (TOMAS, 2013, p. 219). É
com essa dupla tarefa cinematográfica que Harun Farocki luta inutilmente contra as teclas, ao
desconstruir certas imagens do mundo automatizado, remontá-las com a paciência do
trabalho manual, e devolvê-las, transformadas, à possibilidade do pensamento crítico e do
viver em comum.

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