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LIMITES DA COISA JULGADA

Igualdade para quem? Os temas 881 e 885 do STF


A coisa julgada em matéria tributária busca proteger o contribuinte contra abusos arrecadatórios do Estado

DIEGO DINIZ RIBEIRO


RODRIGO G. N. MASSUD

09/05/2022 05:30

Crédito: Unsplash

Igualdade e segurança, ninguém duvida, são sempre desejáveis, funcionando, aliás,


como pautas axiológicas do próprio direito. Talvez por isso, muitas vezes tomados
como valores abstratos e subjetivos, acabam poluindo ou falseando alguns debates
jurídicos, isso quando não são empregados de forma retórica, a pretensamente
“justificar” uma tomada de decisão previamente estabelecida, ou ainda, como ocorre
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falsear uma desigualdade evidente e, o que é pior, potencializá-la.
Esse é o caso dos chamados “processos da coisa julgada” em discussão no
Supremo Tribunal Federal (STF)[1], os quais tratam dos efeitos dos precedentes
judiciais sobre decisões finais individuais que favorecem contribuintes, casos esses
recentemente redirecionados para o plenário virtual da corte, com julgamento
previsto para a janela dos dias 6 a 13 de maio.

Envolvidos num falso dilema, coloca-se em dúvida os princípios da igualdade e da


segurança jurídica diante da contraposição de decisões finais individuais que
favorecem contribuintes, de um lado, e precedentes gerais que favorecem o fisco, de
outra banda.

Vale aqui um parêntese necessário, diferenciando interesse público arrecadatório do


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dos conflitos tributários
(função primordial do sistema de precedentes).
No contexto dessa dupla falseabilidade, quem seria contrário à adequação de
decisões individuais finais aos precedentes gerais, em nome de uma arrecadação
equânime e isonômica? Por qual razão determinados contribuintes deixariam ou
permaneceriam sem pagar tributos, enquanto outros suportariam o ônus fiscal?

Em diferente perspectiva, contudo, as mesmas questões poder-se-iam levantar em


relação aos regimes tributários especiais, benefícios fiscais customizados país afora
ou respostas às consultas tributárias individualizadas, que nem por isso
representam desigualdades e nem geram insegurança ou instabilidade jurídica.

Por qual razão, então, contribuintes que possuem decisão judicial final afastando
determinado tributo estariam em desigualdade com aqueles que não a possuem, a
justificar, portanto, a sua automática revisão com o advento de um precedente
vinculante em sentido contrário?

Assim desenvolveu-se a conhecida falácia em matéria de contencioso tributário,


segundo a qual, em nome de uma suposta igualdade, “pau que bate em Chico bate
em Francisco”, como se houvesse relação simétrica entre legalidade pública e
privada – o que, aliás, é exatamente o que prega o Parecer PGFN 492/2011.

Em outros termos: se o precedente vinculante for favorável ao contribuinte, todos


deixam de pagar o tributo; do contrário, todos passam a pagar automaticamente,
inclusive aqueles que possuem coisas julgadas em seu favor.

Tudo isso revestido com o verniz de igualdade e segurança jurídica!

Esquece-se, contudo, que o contribuinte está sujeito aos atos de império, com todos
os atributos, garantias e privilégios conferidos aos atos administrativos em geral, de
modo que, uma vez envolvido em ilegalidades, deve buscar a jurisdição, sem que se
possa cogitar da “autotutela”.

Deixar de reconhecer essa assimetria significa negar a própria função do direito


tributário, contraposta que é entre arrecadação e legalidade. Diante de uma
exigência ilegal ou pagamento indevido de tributo, o contribuinte precisa de um
abrigo jurisdicional.

A coisa julgada em matéria tributária, portanto, antes de meramente estabilizar


relações processuais, busca proteger o contribuinte contra abusos arrecadatórios
por parte do Estado, ente dotado de força cogente. Não há relação simétrica aqui: o
fisco não precisa buscar qualquer abrigo jurisdicional contra abusos dos
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contribuintes em seus planejamentos tributários, pois ele próprio lança, pune e, não
raramente, indica a instauração de investigações criminais!

Em outros termos, o fisco não tem interesse na busca pela jurisdição para compor
seus conflitos com o contribuinte, senão apenas para realizar, quando muito, via
execução fiscal, na contingência de os atos coercitivos pré-processuais ou
estímulos negativos falharem na cobrança do crédito tributário inadimplido.

Novamente evidencia-se a assimetria de legalidades: enquanto o contribuinte


precisa da jurisdição para compor e realizar seu conflito, sujeito ainda a regime
próprio de cumprimento de sentença e expedição do indolente precatório (afinal,
estamos tratando de interesses públicos), o fisco simplesmente exerce suas
potestades.

Transportando essas questões para o campo dos precedentes e da coisa julgada,


como sustentar, então, uma pretensa igualdade no tratamento das relações?

Ah, diria o Parecer PGFN nº 492/11: da mesma forma que o fisco retoma,
automaticamente, seu direito de cobrar, cessando os efeitos da coisa julgada
individual, o contribuinte também pode parar de pagar!

Na prática, sabemos, as coisas não funcionam bem assim. O fisco passa a lançar,
inclusive os últimos cinco anos, com multa e juros. Na situação inversa, o
contribuinte que para de pagar acaba sofrendo autuações, tendo que buscar a
jurisdição, assim se retroalimentando um circular estado de conflituosidade e
contenciosidade. Quantos contribuintes, após anos de discussões judiciais e com
decisões transitadas em julgado em seu favor, não são autuados em razão da
fiscalização entender que a amplitude da coisa julgada em concreto é distinta do
objeto da autuação?

Exatamente por isso, na hipótese de contraposição de coisas julgadas individuais,


não pode haver exigência arrecadatória enquanto não sobrevir particular decisão
desconstituindo ou revendo os efeitos desonerativos que amparam determinada
relação jurídica individual.

Essa desconstituição não pode se dar pela “aplicação” do precedente vinculante de


interesse fazendário, como se lei fosse. Não só por conta da assimetria aqui
mencionada, mas também porque (nunca é demais lembrar) precedente pode ser
tratado como fonte do direito, mas não como lei em sentido estrito, ou seja, não se
submete a uma racionalidade lógico-subsuntiva, mas sim analógico-problemática.
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Aliás, nem mesmo a lei opera dessa maneira subsuntiva sobre a coisa julgada
(lembremos da diferença entre texto legal e norma). É questão de método, estúpido!

O contribuinte, quando quer parar de pagar, precisa da tutela jurisdicional. Por qual
razão o fisco, quando quer retomar o direito de cobrar, teria a competência para,
autonomamente, interpretar, cotejar e relativizar decisões, sem qualquer intervenção
jurisdicional? Aqui, sim, aplica-se a máxima: “pau que bate em Chico bate em
Francisco”. Se nem mesmo a alteração de texto de lei é capaz de modificar,
automaticamente, a coisa julgada, por qual razão o precedente o seria?

Do contrário, institucionalizar-se-ia, agora verdadeiramente, desigualdades e


insegurança, a pretexto exatamente de realizá-las. Seria um verdadeiro paradoxo,
uma vez que uma medida laureada pelo valor igualdade serviria como fomentador
de desigualdades! Seria o mesmo que condenar alguém com base na Lei de Anistia.

Ademais, validando o discurso fazendário, o próprio instituto da modulação de


efeitos no controle de constitucionalidade ficaria comprometido, pois trata de lidar
com assimetrias perfeitamente possíveis.

Em tempos tão bicudos, é importante reiterar obviedades, o que, no caso, significa


reforçar que esse é o modelo constitucional e legal de processo, pautado pela
secular ideia de devido processo legal substancial, até então vigente e ainda imune
(assim se espera) à autocracia. Quem sabe num futuro não tão distante esse artigo
seja lido com desdém, exatamente por dizer o óbvio. Será sinal de que
verdadeiramente caminhamos para um sistema mais civilizado de contencioso,
menos judicializado e litigioso, mais consensual e cooperativo.

[1] Temas 881 (RE nº 949.297) e 885 (RE nº 955.227).

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DIEGO DINIZ RIBEIRO – Advogado tributarista e aduanerista, sócio do Daniel & Diniz Advocacia, ex-
conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento, professor de Direito Tributário, Direito Aduaneiro,
Processo Tributário e Processo Civil. Doutorando em Processo Civil pela USP e mestre em Direito
Tributário pela PUC-SP. Pesquisador do NEF da FGV-SP

RODRIGO G. N. MASSUD – Advogado tributarista, sócio do Choaib, Paiva e Justo Advogados, professor de
Direito Tributário e Processo Tributário. Mestre e doutorando em Direito Tributário pela PUC-SP

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