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UTILIZAÇÃO DA CANNABIS

MEDICINAL PARA
O TRATAMENTO DE
TRANSTORNOS DO SISTEMA
NERVOSO CENTRAL
Elaboração

Wendell Rodrigues Oliveira da Silva

Produção

Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração


SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO....................................................................................................................................................................................... 5

ORGANIZAÇÃO DO CADERNO DE ESTUDOS E PESQUISA.................................................................................................. 6

INTRODUÇÃO.............................................................................................................................................................................................. 8

UNIDADE I
CANNABIS MEDICINAL EM TRANSTORNOS DO SISTEMA NERVOSO CENTRAL (SNC)....................................................................... 13

CAPÍTULO 1
SISTEMA ENDOCANABINOIDE E SUAS AÇÕES NO SNC.................................................................................................................... 13

CAPÍTULO 2
INVESTIGAÇÃO TRANSLACIONAL DO POTENCIAL TERAPÊUTICO DO CANABIDIOL (CBD): EM DIREÇÃO A UMA

NOVA ERA................................................................................................................................................................................................................ 29

CAPÍTULO 3
USO TERAPÊUTICO DOS CANABINOIDES EM PSIQUIATRIA............................................................................................................ 44

UNIDADE II
CANNABIS MEDICINAL NA NEUROLOGIA............................................................................................................................................................... 58

CAPÍTULO 1
O POTENCIAL TERAPÊUTICO DOS CANABINOIDES PARA DISTÚRBIOS DO MOVIMENTO............................................... 58

CAPÍTULO 2
O USO DA CANNABIS EM TRATAMENTO DE ENXAQUECA............................................................................................................... 64

CAPÍTULO 3
EXPLORAÇÃO TERAPÊUTICA DA CANNABIS NA ESCLEROSE MÚLTIPLA................................................................................. 70

CAPÍTULO 4
A BASE FARMACOLÓGICA DA TERAPIA DE EPILEPSIA COM CANNABIS................................................................................... 89

CAPÍTULO 5
CANABIDIOL EM CRIANÇAS COM ENCEFALOPATIA EPILÉPTICA REFRATÁRIA..................................................................... 98

CAPÍTULO 6
CANABINOIDES NA DOENÇA DE PARKINSON..................................................................................................................................... 103

CAPÍTULO 7
EFEITOS DOS CANABINOIDES NA ESCLEROSE LATERAL AMIOTRÓFICA (ELA).................................................................. 115

UNIDADE III
CANNABIS MEDICINAL EM PSIQUIATRIA............................................................................................................................................................... 120

CAPÍTULO 1
CANNABIS NO TRATAMENTO DE TRANSTORNO DE ANSIEDADE E SÍNDROME DO PÂNICO.......................................... 120

CAPÍTULO 2
CANABINOIDES EM TRANSTORNOS DEPRESSIVOS........................................................................................................................ 126
CAPÍTULO 3
CANNABIS NA ESQUIZOFRENIA.................................................................................................................................................................. 131

CAPÍTULO 4
CANNABIS NO TRATAMENTO DE TRANSTORNO DO DÉFICIT DE ATENÇÃO E HIPERATIVIDADE.................................. 133

CAPÍTULO 5
CANNABIS E TRANSTORNO OBSESSIVO-COMPULSIVO................................................................................................................. 136

CAPÍTULO 6
CANNABIS NO TRATAMENTO DE SÍNDROME DE TOURETTE......................................................................................................... 139

UNIDADE IV
CANNABIS MEDICINAL NA NEUROPSIQUIATRIA................................................................................................................................................. 141

CAPÍTULO 1
CANNABIS NO AUTISMO.................................................................................................................................................................................. 141

CAPÍTULO 2
CANNABIS EM DEMÊNCIAS.......................................................................................................................................................................... 149

UNIDADE V
CANNABIS EM OUTROS TRANSTORNOS DO SISTEMA NERVOSO CENTRAL......................................................................................... 161

CAPÍTULO 1
CANNABIS MEDICINAL EM CRIANÇAS..................................................................................................................................................... 161

CAPÍTULO 2
CANNABIS MEDICINAL E O FUTURO DA NEUROLOGIA.................................................................................................................... 170

CAPÍTULO 3
CANNABIS MEDICINAL E DOENÇAS RARAS......................................................................................................................................... 177

REFERÊNCIAS........................................................................................................................................................................................ 181
APRESENTAÇÃO

Caro aluno

A proposta editorial deste Caderno de Estudos e Pesquisa reúne elementos que se


entendem necessários para o desenvolvimento do estudo com segurança e qualidade.
Caracteriza-se pela atualidade, dinâmica e pertinência de seu conteúdo, bem como
pela interatividade e modernidade de sua estrutura formal, adequadas à metodologia
da Educação a Distância – EaD.

Pretende-se, com este material, levá-lo à reflexão e à compreensão da pluralidade dos


conhecimentos a serem oferecidos, possibilitando-lhe ampliar conceitos específicos
da área e atuar de forma competente e conscienciosa, como convém ao profissional
que busca a formação continuada para vencer os desafios que a evolução científico-
tecnológica impõe ao mundo contemporâneo.

Elaborou-se a presente publicação com a intenção de torná-la subsídio valioso, de modo


a facilitar sua caminhada na trajetória a ser percorrida tanto na vida pessoal quanto na
profissional. Utilize-a como instrumento para seu sucesso na carreira.

Conselho Editorial

5
ORGANIZAÇÃO DO CADERNO
DE ESTUDOS E PESQUISA

Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em unidades, subdivididas em


capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de
textos básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam
tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta
para aprofundar seus estudos com leituras e pesquisas complementares.

A seguir, apresentamos uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos
Cadernos de Estudos e Pesquisa.

Provocação
Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto
antes mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para
o autor conteudista.

Para refletir
Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma
pausa e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em
seu raciocínio. É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas
experiências e seus sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para
a construção de suas conclusões.

Sugestão de estudo complementar


Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do
estudo, discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso.

Atenção
Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam
para a síntese/conclusão do assunto abordado.

6
Organização do Caderno de Estudos e Pesquisa

Saiba mais
Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/
conclusões sobre o assunto abordado.

Sintetizando
Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando
o entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos.

Para (não) finalizar


Texto integrador, ao final do módulo, que motiva o aluno a continuar a
aprendizagem ou estimula ponderações complementares sobre o módulo
estudado.

7
INTRODUÇÃO

Figura 1. Cannabis e o sistema nervoso central.

Fonte: https://geaseeds.com/blog/pt-pt/efeito-psicoativo-que-e/. Acesso em: 03 dez. 2020.

A Convenção Única da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre Entorpecentes,


de 1961, identificou a heroína e a Cannabis sativa L como “drogas particularmente
perigosas” para o homem. Desde então, os conhecimentos científicos aumentaram
bastante e constatou-se que a Cannabis não é uma droga narcótica, como a heroína, a
morfina e o ópio, e nem é perigosa a ponto de ser comparada à heroína.

Leis de vários países retratam essa visão sobre a Cannabis, como é o caso da Lei
N.º 6368, de 1976, do Brasil.

No Canadá, na década de 1970, o número de adultos e jovens detidos por posse de


maconha aumentava bastante. Iniciou-se então, no Congresso, um debate sobre o
assunto e uma comissão de peritos foi nomeada pelo governo canadense. Ao final, o
relatório da comissão, denominado ‘Relatório Le Dain’ (em homenagem ao professor
doutor Gerard Le Dain, presidente da comissão), apresentava três conclusões: uma
majoritária, de 3 membros, sugeria a adoção de sanções administrativas; um membro
sugeria que a lei deveria ficar como estava, ou seja, punindo com prisão o usuário; e o
quinto membro da comissão sugeria a liberação do uso da maconha, com o governo
do Canadá controlando somente a produção e a qualidade do produto. Com certeza,
isso demonstra a complexidade do tema debatido. Hoje, a posse de maconha com a
finalidade de uso pessoal não é mais punível com prisão e o governo do Canadá criou
a Agência da Cannabis Medicinal, que autoriza o uso da planta e de seus derivados
para fins terapêuticos.

Nos Estados Unidos, muitos estados trocaram a pena de prisão, para usuários, por
sanções administrativas, como prestação de serviços sociais e multas. Ainda assim, as
8
Introdução

leis nos demais estados e a lei federal são severas. A verificação de que vários jovens
e adultos foram detidos na década de 1970 não alterou a situação e a pena de prisão
continua, apesar das discussões acaloradas nas últimas décadas. Os resultados dessa
situação podem ser confirmados pelos seguintes fatos:

» Nos Estados Unidos, de 1970 até hoje, houve aproximadamente 13 milhões de


detenções relacionadas à Cannabis. Aproximadamente 89% dessas detenções
ocorreram por posse da droga e por sua produção ou distribuição.
» Na atualidade, aproximadamente 77 mil “transgressores” por posse de
maconha se encontram na prisão.

Segundo o relatório mundial sobre drogas, elaborado pela United Nations Office on
Drugs and Crime (UNODC), em 2016, a maconha é a droga ilícita mais consumida em
todo o mundo (182,5 milhões de pessoas em 2014). Em se tratando de apreensões,
as Américas representam cerca de 3/4 de toda a erva de Cannabis mundial. A maior
quantidade apreendida da erva foi na América do Norte (37%), seguida da América
do Sul (24%), e os menores índices de apreensão ficaram na África (14%), no Caribe
(13%), na Europa e na Oceania, ambas com seis porcento (6%).

O uso medicinal da maconha: o Δ9-THC


como medicamento
A maconha, ou Cannabis, é usada desde o século 19 para controlar ataques epilépticos.
Marijuana é um termo coloquial dado às flores secas, aos caules e às folhas de uma erva
daninha de 1 a 5 m que se originou na Ásia. A Cannabis pertence à família de plantas
Cannabaceae, da qual derivam três espécies principais que se diferem nos componentes
bioquímicos: Cannabis sativa, Cannabis indica e, a menos conhecida, Cannabis ruderalis.
O THC tem efeitos psicoativos potentes, como sentimentos de euforia e percepção
sensorial alterada. Os sintomas de abstinência, como irritabilidade e distúrbios do sono,
resultam da interrupção abrupta do uso de THC por um longo prazo. Assim, o THC
é classificado como uma substância controlada de classe I (alto potencial de abuso e
pouco uso médico). Os esforços para desenvolver agentes terapêuticos como base em
THC produziram dronabinol (Marinol®), que é usado clinicamente para o controle de
náuseas e dor moderada na terapêutica do câncer. Os indesejáveis ​​efeitos psicoativos
e sintomas de abstinência experimentados pelo uso em longo prazo tornam o THC
uma opção terapêutica menos provável para a epilepsia. O CBD, no entanto, é outro
componente importante da Cannabis e não exerce efeitos psicoativos. Produtos que
contêm CBD concentrado foram considerados úteis para o controle de convulsões
9
Introdução

refratárias. As ações direcionadas do CBD, no cérebro, são complexas e envolvem alvos


neuronais e não neuronais, portanto os mecanismos farmacológicos do tratamento
do CBD, na epilepsia, ainda não foram totalmente elucidados. Os alvos moleculares
de THC e CBD, bem como algumas das ações exercidas por esses compostos, estão
listados na tabela abaixo:

Tabela 1. Descrição dos tipos de canabinoides.

Tipo de canabinoide Estrutura química Ações farmacológicas Alvos potenciais


Anticonvulsivante CB 1 agonista parcial

Euforia CB 2 agonista parcial

Psicoativo Agonista TRPA1

Analgésico Agonista TRPV2

Modulação cognitiva Antagonista TRPM8


∆ 9- Tetrahidrocanbinol
(∆ 9 -THC) Reduz espasmos
Potenciador α 1 βGly
musculares

Reduz a náusea Antagonista 5-HT 3A

Estimula o apetite Ativador PPAR-γ

Agonista GPR18

Agonista GPR55

Anticonvulsivante Ligante CB 1

Analgésico Ligante CB 2

Anti-inflamatório Agonista TRPA1

Antitumorigênico Agonista TRPV1-3

Neuroprotetor Agonista TRPV4

Reduz a náusea Antagonista TRPM8


Canabidiol (CBD) Modulação imunológica Antagonista 5-HT 3A

Potenciador α 3 Gly

Antagonista GPR55

Potenciador 5-HT 1A

Ativador PPAR-γ

Inibidor de recaptação
de adenosina

Fonte: Reddy (2016).

Os canabinoides, tais como o Δ9-tetraidrocanabinol (Δ9-THC) e o canabidiol (CBD),


são encontrados nas plantas da espécie Cannabis sativa. Esses compostos possuem um
10
Introdução

elevado potencial terapêutico, sobretudo por sua aplicabilidade no tratamento clínico,


como ação analgésica, diminuição da pressão ocular, estimulação do apetite, atividade
ansiolítica e antiemética. Esses efeitos ocorrem graças às suas afinidades aos receptores
canabinoides do sistema nervoso central (SNC). Para tratamentos dessas doenças, foram
desenvolvidos medicamentos à base de tais canabinoides, obtidos do extrato vegetal da
planta ou por meio de síntese química. Um exemplo de THC sintético recebe o nome
de dronabinol, o qual é comercializado como Marinol® e, há muitos anos, é vendido em
muitos países para o tratamento de vômitos e náuseas causados pelos quimioterápicos
anticâncer e para as situações de caquexia e enfraquecimento extremo devido à AIDS
e ao câncer. A presente literatura discute aspectos gerais dos canabinoides, a origem,
a composição química da planta Cannabis sativa, seu uso farmacológico, como também
as principais sínteses do THC e de seus derivados, tanto como apresenta os desafios
sintéticos para a aplicação medicinal.
Há muitas publicações disponíveis que tratam do uso de Cannabis e Δ9-THC como
medicamento.
A literatura internacional publicou centenas de artigos de revisão sobre o assunto
“maconha como medicamento”.
Cigarros de maconha padronizados são fabricados pelo governo da Holanda e vendidos
em farmácias com prescrição médica; um extrato de maconha, registrado como Sativex®,
que apresenta uma quantidade calibrada de THC e CBD, é fabricado e usado como
medicamento no Canadá e no Reino Unido.
Hoje, há muitas dezenas de trabalhos científicos que estudam os efeitos terapêuticos da
Cannabis e de seus derivados em muitas patologias, principalmente em dores espásticas
em geral e, particularmente, na esclerose múltipla.
A cada dia, surgem novas pesquisas e estudos sobre a Cannabis e sua forma terapêutica.
Aproveitamos para destacar as pesquisas realizadas pelos Doutores Raphael Mecohoulam
e Elisaldo Carlini, pois serviram de base para os conhecimentos que existem hoje.

Consumo de maconha no Brasil


Segundo levantamento feito pelo Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas
Psicotrópicas (CEBRID), da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), 6,9%
da população brasileira já usou a maconha ao menos uma vez. A posição do Brasil é
inferior à de vários países: Chile (19,7%), Espanha (19,8%), Reino Unido (25%) e EUA
(34,2%). O Brasil se situa no terço inferior da relação de países usuários da planta.

11
Introdução

O “uso na vida” (“lifetime use”) é critério utilizado no mundo para avaliar o contato
com drogas (ao menos uma vez na vida). Refere-se, assim, à experimentação e não à
dependência.

É importante salientar, porém, que o instrumento usado pelo CEBRID, para avaliar
o que se denominou de dependência, levou como base critérios americanos, os quais
são muito menos rigorosos que os critérios utilizados internacionalmente, como o
Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais (DSM).

Até 2019, não existia um conjunto regulatório que autorizasse clarear o ambiente
para o cultivo e a produção da maconha com finalidade medicinais. Devido a isso, as
reivindicações para a regulamentação do registro desses medicamentos tornaram-se
cada vez mais preeminentes.

Na Unidade I, estudaremos os conceitos relacionados ao uso da Cannabis medicinal


em transtornos do sistema nervoso central (SNC).

Na Unidade II, falaremos sobre algumas patologias neurológicas que atingem o sistema
nervoso central e que podem ser tratadas com a Cannabis medicinal.

Na unidade III, veremos a utilização da Cannabis medicinal em psiquiatria.

Na unidade IV, estudaremos o uso da Cannabis medicinal na neuropsiquiatria.

E, na Unidade IV, encerraremos nossa disciplina falando da aplicação da Cannabis


medicinal em outros transtornos que envolvem o sistema nervoso central.

Objetivos
» Atualizar os conhecimentos dos profissionais atuantes na área de utilização
da Cannabis medicinal para o tratamento de transtornos do sistema nervoso
central (SNC).

» Desenvolver uma visão integral do processo de utilização da Cannabis


medicinal para o tratamento de transtornos do SNC.

» Contribuir para a inserção do profissional na equipe multidisciplinar de


processo que envolve a utilização da Cannabis medicinal para o tratamento
de transtornos do SNC.

12
CANNABIS MEDICINAL
EM TRANSTORNOS DO
SISTEMA NERVOSO UNIDADE I
CENTRAL (SNC)

CAPÍTULO 1
Sistema endocanabinoide e suas ações
no SNC

A Cannabis medicinal possui mais de 500 substâncias, dentre elas os canabinoides,


os terpenos e os flavonoides. Essas substâncias interagem com o corpo e o cérebro.
O sistema endocanabinoide é um sistema endógeno composto por receptores e
enzimas que se ligam a endógenos, os quais atuam na regulação de diversas funções.
Dentre as substâncias encontradas, e com uso promissor, estão o canabidiol (CBD) e
o delta-9-THC (ou THC), ambos com grandes potenciais medicinais e terapêuticos.

As substâncias identificadas na planta Cannabis sativa, como o Δ9-THC, são classificadas


como canabinoides naturais ou fitocanabinoides. Além destes, há mais três classes
de canabinoides; os endocanabinoides ou canabinoides endógenos, sintetizados pelo
próprio corpo humano para a proteção de funções biológicas.

O canabinoide é, portanto, um termo genérico utilizado para descrever substâncias,


naturais ou artificiais, que estimulam os receptores canabinoides do tipo CB1 ou CB2.

Os canabinoides contêm:

» Fitocanabinoides – Elementos encontrados na planta Cannabis e


estruturalmente relacionados com o tetraidrocanabinol (THC).

» Endocanabinoides – Elementos achados nos sistemas nervoso e imunológico


dos animais e seres humanos e que também ativam os receptores canabinoides.

» Canabinoides sintéticos – Diversidade de substâncias que se ligam a


receptores de canabinoides.

Os canabinoides sintéticos são considerados perigosos porque não são conhecidas


muitas informações sobre as suas propriedades biológicas e os seus efeitos colaterais.

13
Unidade I | Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC)

Os canabinoides miméticos replicam as ações dos canabinoides nos receptores CB1


e CB2.

Na década de 1980, foi desenvolvida a hipótese de que os canabinoides teriam ação nos
organismos vivos por meio de um conjunto de diferentes receptores. Os receptores
canabinoides, localizados em lugares específicos nos neurônios, apresentariam
a função de receber o princípio ativo e apresentar ações no sistema nervoso.
Os receptores canabinoides foram chamados pela União Internacional de Farmacologia
Básica e Clínica (International Union of Basic & Clinical Pharmacology – IUPHAR), de
acordo com sua ordem de descoberta, como receptores CB1 e CB2. Os receptores
canabinoides pertencem à superfamília dos receptores de membrana acoplados à
proteína G, porque foi mostrado, em 1986, por Howlett, que o Δ9-THC inibia a
enzima intracelular adenilato ciclase e que essa inibição só acontecia na presença
de um complexo de proteínas G.

Os ligantes endógenos desses receptores são denominados endocanabinoides e ajudam


também a inibir a enzima adenilato ciclase. Eles são considerados neuromoduladores e
neurotransmissores, responsáveis pela ligação endógena que acontece nos receptores
canabinoides. Os mais conhecidos são o éster 2-araquidonilglicerol (2-AG) e a
anandamida (Figura 2).

No momento em que a Cannabis é utilizada, Δ9-THC, como um agonista parcial, liga-se


ao CB1 e age de maneira menos seletiva na inibição da liberação de neurotransmissores.
Ainda, pode intensificar a liberação de glutamato, dopamina e acetilcolina em algumas
regiões do cérebro e, provavelmente, impede a liberação de um neurotransmissor
inibitório como o GABA. Dependendo da região em que ocorrem as ligações no
cérebro, podem produzir ações fisiológicas muito complexas e diferentes, por exemplo,
os efeitos de sedação, analgesia e catalepsia.

Figura 2. Estrutura química da anandamida e do 2-araquidonilglicerol (2-AG).

Anandamida 2-araquidonoilglicerol
Fonte: Sousa (2017).

14
Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC) | Unidade I

Os receptores CB1 do sistema nervoso central estão localizados nos terminais


nervosos pré-sinápticos e pós-sinápticos, que são responsáveis por grande parte dos
efeitos neurocomportamentais dos canabinoides. Os receptores CB2 são localizados
perifericamente nas células do sistema imunológico e no sistema nervoso central,
junto com os receptores CB1, mas em menor quantidade. Os receptores são ativados
no momento que estão na presença de ligantes endógenos ou quando há presentes
outros canabinoides, como o Δ9-THC. Com base nessa interação, acontecem várias
reações que levam a um decréscimo na inibição de liberação de neurotransmissores
(Figura 3).

Os canabinoides, por causa dessa farmacodinâmica, afetam as funções motoras e


cognitivas. Suas ações particulares, por usuários crônicos, incluem instabilidade
emocional, aprimoramento de sentidos, impulsos irresistíveis, erros no tempo e
julgamento espacial, ilusões e até alucinações. São ainda relatados na literatura os efeitos
gerais, como a queda do desempenho psicomotor, a perda de eficiência na memória
de curto prazo e a interferência na atenção.

Figura 3. Receptores canabinoides CB1 e os efeitos da interação com endocanabinoides e Δ9-THC.12 Ach = acetilcolina; Glu =
glutamato; GABA = ácido gama-aminobutírico; NA = noradrenalina; e 5-HT = serotonina.

AEA
Dopamina
Ach, Glu 2-AG
Δ9-THC GABA, NA, 5-HT

Fenda Sináptica Receptor CB1

Transportador de
canabinoides

Fonte: Sousa (2017).

15
Unidade I | Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC)

A potencialidade medicinal da Cannabis se deve ao variado número de substâncias


químicas, principalmente os canabinoides, que foram identificados nessa planta.
Os compostos canabinoides podem ser classificados como terpenofenóis e podem ser
naturalmente identificados em plantas. Eles são totalmente sintetizados ou endógenos,
como é a anandamida (Figura 4).

Figura 4. Origem dos canabinoides.

Canabinoides

Vegetais Endógenos Sintéticos

THC Anandamida Win

Médio extracelular
Membrana
plasmática
Médio intracelular

Efeitos Biológicos

Fonte: Ribeiro (2014).

Na década de 1960, iniciaram-se as pesquisas sobre o mecanismo de ação dos canabinoides


como resposta a várias implicações sociais envolvidas no uso recreativo dessa planta.
As pesquisas sobre o isolamento dos canabinoides, da estereoquímica, das estruturas,
da síntese, da farmacologia, do metabolismo e dos efeitos fisiológicos dos canabinoides
se estenderam aos anos de 1980 e 1990, o que permitiu a identificação e a clonagem dos
receptores canabinoides específicos (CBRs) localizados no sistema nervoso central (CB1)
e no sistema periférico (CB2) e, ainda, possibilitou a identificação dos canabinoides
endógenos. Dessa forma, após tais descobertas, foi possível entender alguns dos aspectos
principais relacionados com a farmacodinâmica dos canabinoides e a respectiva relação
estrutura-atividade desses compostos.
16
Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC) | Unidade I

Canabinoides endógenos

O composto endógeno é produzido naturalmente pelo organismo e interage com o


receptor também endógeno, ou seja, provavelmente existe um agonista endógeno
para cada receptor biológico. Desse modo, é um composto produzido naturalmente
pelo organismo e que interage com o receptor.

A presença de receptores canabinoides em células ratifica a existência de um sistema


canabinoide endógeno. O primeiro ligante natural, o canabinoide endógeno, foi
isolado do cérebro de suínos e foi identificado como uma amida relacionada ao
ácido araquidônico; o cis-5,8,11,14-eicosatetraenóico ou anandamina. Este tinha
propriedades agonistas ao Δ9-tetrahidrocanabinol (Δ9-THC), que é extraído da
planta Cannabis sativa.

Algumas questões importantes sobre esses ligantes endógenos: a sua localização, a


sua síntese no organismo e qual é a sua ação biológica. Vários compostos endógenos,
como a anandamida e o glicerol araquidonil (2-AG), estão sendo estudados
largamente para que seja possível entender as propriedades fisiológicas dos compostos
canabinoides.

No início, pensou-se que a estrutura química do canabinoide endógeno seria similar


à estrutura do Δ9-THC, o que iria explicar a conhecida interação “chave-fechadura”, a
qual ativa o sistema de mensagem celular. Porém, vários estudos mostraram a diferença
na estrutura do Δ9-THC e da anandamida, fato que já havia acontecido com os opioides
endógenos (endorfinas), em que se verificou também que as suas estruturas químicas
eram bastante diferentes das estruturas dos opioides derivados de plantas, isto é, dos
alcaloides da morfina e do ópio.

Esses estudos revelaram ainda que existem muitos compostos com diferentes estruturas
químicas que ativam os receptores canabinoides, porém os mecanismos de interação
entre esses compostos e os receptores canabinoides ainda não estão conhecidos
completamente.

Segundo a literatura, uma área de pesquisa considerada promissora seria o planeamento


de ligantes que ativem os receptores canabinoides e potencializem a sua ação
biológica para usos terapêuticos. Dessa forma, vamos referir alguns aspectos do
canabinoide endógeno anandamida como modelo para o entendimento do modo de
ação dessas moléculas e, em um capítulo posterior, abordaremos o uso terapêutico
desse ligante.

17
Unidade I | Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC)

Anandamida
O primeiro canabinoide endógeno descoberto foi o araquidoniletanolamina, conhecido
como anandamida, cuja palavra deriva do sânscrito ananda, que quer dizer “felicidade,
prazer”. Quando comparada com o Δ9-THC, a anandamida apresenta uma afinidade
de quatro a vinte vezes menor pelo receptor canabinoide CB1 que o Δ9-THC, sendo
mais rapidamente metabolizada, pelas amidases, por hidrólise.

Em regra, a afinidade da anandamida por receptores canabinoides é de somente ¼ a


½ da afinidade pelo Δ9-THC, dependendo das células ou dos tecidos que são usados
para testes e das condições no experimento.

Apesar dessas diferenças, a anandamida apresenta quase todos os efeitos farmacológicos


do Δ9-THC.

A anandamida é formada por ácido araquidônico e etanolamina (Figura 5). O ácido


araquidônico é um precursor comum de um grupo de moléculas ativas biologicamente,
incluindo as prostaglandinas, que são compostos lipídicos os quais controlam processos
como o fluxo de sangue, a inflamação, a formação de coágulos de sangue e a indução
do trabalho de parto.

Mesmo que a anandamida possa ser sintetizada de muitas formas, a sua biossíntese é
resultado da clivagem por enzimas do N-araquidonil-fosfatidil-etanolamina (NAPE),
que produz o ácido fosfatídico e a anandamida.

Com relação aos estudos da presença de anandamida no organismo humano, ela foi
localizada em muitas regiões do cérebro humano (hipocampo, estriado e cerebelo) em
que os receptores CB1 são abundantes. Fatos estes que explicam a função fisiológica
dos canabinoides endógenos nas funções do cérebro, as quais são controladas por tais
zonas do cérebro, principalmente a memória, o alívio da fome e da dor e os padrões do
sono. Ainda é possível encontrar a anandamida no tálamo, porém em concentrações
mais baixas.

A molécula de anandamida tem efeito sobre o sistema nervoso central e periférico.


Ainda não é conhecida a região do cérebro em que a anandamida é sintetizada e que as
enzimas são produzidas. Essa conclusão é muito importante para compreender a ação
da anandamida como neurotransmissor, que poderá regular as funções específicas do
cérebro, tais como memória, cognição e humor.

18
Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC) | Unidade I

Figura 5. Biossíntese da anandamida.

Ácido araquidônico estereficado

Fosfolipase D

Ácido fosfatídico (PA)

Fosfolipase A2
Fosfatidate fosfohidrolase

PE
Diacilglicerídeo (DAG)

Diacilglicerídeo lipase

Ácido araquidônico livre

Etanolamina

Anandamida NAPE

(NAPE)=N-acilfosfatidiletanolamina, PE=(fosfatidiletanolamina)
Fonte: Ribeiro (2014).

Outro aspecto interessante relativo à localização da anandamida é a sua presença em


outras regiões do corpo, tais como o baço, em que existem altas concentrações de
receptores CB2, e no coração, em que a quantidade de anandamida é muito menor.

De acordo com as Tabelas 2 e 3, além da anandamida, existem estudos sobre outros


agonistas e antagonistas, os quais podem ser a chave para todas essas incertezas.

Tabela 2. Agonistas dos receptores canabinoides.

Composto Propriedades
Agonistas
Derivados de plantas

Principal canabinoide psicoativo encontrado na Cannabis sativa.

Δ9-THC

19
Unidade I | Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC)

Composto Propriedades

Menos potente que o Δ9-THC e muito menos abundante na planta.

Δ8-THC

Composto bioativo formado após degradação do Δ9-THC.

11-OH-Δ9-THC
Encontrados em animais

Encontrada em animais (desde moluscos até mamíferos). Estrutura


diferente dos canabinoides. Está relacionada às prostaglandinas.

Anandamida

Agonista endógeno, estruturalmente semelhante à anandamida.


Mais abundante, mas menos potente que a anandamida.

2-Glicerol araquidonil (2-AG)


Análogos ao THC

THC sintético. Comercializado nos EUA com o nome Marinol®. É utilizado


em casos de náuseas associadas à quimioterapia e para pacientes com
SIDA.

Dronabinol (Δ9-THC sintético)

Comercializado no Reino Unido com o nome Cesamet®. É usado para as


mesmas indicações que o dronabinol.

Nabilone
Fonte: Ribeiro (2014).

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Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC) | Unidade I

Tabela 3. Antagonistas dos receptores canabinoides.

Composto Propriedades
Antagonistas

Antagonista sintético do CB1

SR 141716A

Antagonista sintético do CB2

SR 144528
Fonte: Ribeiro (2014).

Receptores canabinoides
O sistema canabinoide é formado por dois subtipos de receptores canabinoides que
foram classificados como CB1 (cerebrais) e de CB2 (periféricos).

Em 1986, foi demonstrado que o Δ9-THC inibia a enzima intracelular adenilatociclase,


inibição esta que só ocorre na presença de um complexo de proteínas G, ou seja, na
presença de um receptor canabinoide, o qual é um membro típico da maior família
conhecida de receptores acoplados às proteínas G.

As proteínas G são uma família de proteínas de membrana, acopladas a sistemas efetores


que se unem à guanosina difosfato (GDP) e à guanosina trifosfato (GTP).

A proteína G é composta por 3 subunidades: alfa (α), beta (β) e gama (γ) (Figura 6).

21
Unidade I | Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC)

Figura 6. Proteína G e as respetivas subunidades: alfa (α)-amarelo, beta (β)-azul e gama (γ)-vermelho.

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Prote%C3%ADna_G. Acesso em: 03 dez. 2020.

A unidade α tem a capacidade de efetuar ligação com o GTP ou GDP. Quando um


ligante ativa o receptor acoplado à proteína G, ocorre uma alteração conformacional no
receptor, o que permite a troca do nucleotídeo guanina do local do GTP para o local do
GDP, que se encontra localizado na subunidade Gα (Figura 7). Essa ação desencadeia a
dissociação da subunidade Gα (que está ligada ao GTP) do dímero Gβγ e do receptor.
Ambas, Gα-GTP e Gβγ, podem ativar diferentes cascatas de sinalização e proteínas efetoras.
A molécula de GTP ligada é finalmente hidrolisada pela subunidade Gα, por ação de
uma cinase, tornando-se novamente GDP. Esse fato permite que a subunidade Gα se
recombine com o dímero Gβγ, de modo que é iniciado um novo ciclo.

Figura 7. Mecanismo de ação da proteína G.

Ligante

Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Prote%C3%ADna_G. Acesso em: 03 dez. 2020.

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Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC) | Unidade I

Os receptores canabinoides estão inseridos na membrana celular e ficam acoplados às


proteínas G e à enzima adenilato ciclase (AC).
De acordo com a Figura 8, quando um ligando interage com um receptor canabinoide,
ocorre a ativação das proteínas G, que são os primeiros componentes no processo de
transdução de sinais. Em seguida, ocorre a abertura ou o bloqueio dos canais de cálcio
e potássio, que originam alterações nas funções celulares. Os ligantes, tais como a
anandamida ou o Δ9-THC, inibem a AC ao ativarem os receptores. Desse modo, há a
diminuição da produção de AMPc, o que origina a abertura dos canais de potássio (K+)
e o fechamento dos canais de cálcio (Ca2+). Como resultado, limita-se a transmissão
de sinais e o decréscimo na liberação de neurotransmissores.
O resultado final da interação com o receptor canabinoide depende do tipo de célula
ligante. Existem vários tipos de agonistas para os receptores canabinoides, os quais
podem ser classificados de acordo com dois fatores: a eficácia e a potência de interação
com o receptor canabinoide que determina a dose efetiva do fármaco.
A potência e a eficácia do Δ9-THC são relativamente menores quando comparadas às
de alguns canabinoides sintéticos. Na realidade, os agonistas sintéticos são, em regra,
mais potentes e eficazes que os agonistas endógenos.
Figura 8. Sistema canabinoide endógeno como sistema neuromodulador NT, neurotransmissor; ANA, anandamida; T, transportador;
FAAH, amidohidrolase dos ácidos gordos; iR, receptor ionotrópico; mR, receptor metabotrópico; +, ativação; -, inibição.

Neurônio pré-sináptico

Ca2+k-

ANA NT

mR
Precursor iR

Ca2+

FAAH

Neurônio pós-sináptico
Fonte: Ribeiro (2014).

Os receptores canabinoides CB1 e CB2 são bastante similares, mas não tão similares
quanto outros membros de muitas famílias de receptores.
23
Unidade I | Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC)

As diferenças entre CB1 e CB2 indicam que deveriam existir substâncias terapêuticas
seletivas para atuarem somente sobre um ou outro receptor e, assim, ativarem ou
bloquearem um receptor canabinoide específico. Contudo, as diferenças entre os
receptores canabinoides CB1 e CB2 são pequenas, permitindo que a maioria dos
compostos canabinoides interaja com ambos os receptores.
Os receptores canabinoides CB1 e CB2 são particularmente abundantes em algumas
áreas do cérebro, como hipotálamo, gânglios basais, amígdala, córtex cerebral, cerebelo
e espinha dorsal. Acredita-se que os dois receptores canabinoides, CB1 e CB2, são os
responsáveis por muitos efeitos bioquímicos e farmacológicos produzidos pela maioria
dos compostos canabinoides.
A biologia e o comportamento associados às áreas do cérebro, como hipotálamo, gânglios
basais, amígdala, córtex cerebral, cerebelo e espinha dorsal, são consistentes com os efeitos
comportamentais produzidos pelos canabinoides, conforme apresentado na Tabela 4.
Os receptores CB1 também são abundantes no cerebelo, região responsável pela
coordenação dos movimentos do corpo; no hipocampo, responsável pela aprendizagem,
memória e resposta ao estresse; no córtex cerebral, responsável pelas funções cognitivas;
e nos gânglios basais, responsáveis pela coordenação motora (Tabela 4).
Assim, as células do organismo podem responder de diversas formas quando um
ligante interage com o receptor canabinoide.
Tabela 4. Regiões do cérebro em que os receptores canabinoides se encontram em concentrações abundantes ou
moderadas e suas respetivas funções associadas a essas áreas.

Regiões do cérebro em que se localizam abundantemente os receptores canabinoides


Região do cérebro Funções associadas
Gânglios basais Controle de movimentos.
Cerebelo Coordenação dos movimentos do corpo.
Hipocampo Aprendizagem, memória, stress.
Córtex cerebral Funções cognitivas.
Regiões do cérebro em que os receptores canabinoides se localizam em concentrações moderadas
Região do cérebro Funções associadas
Hipotálamo Funções de manutenção do corpo (regulação da temperatura, balanço de sal e água, função
reprodutiva).
Amígdala
Resposta emocional, medo.
Espinha dorsal Sensação periférica, incluindo dor.
Tronco cerebral Sono, regulação da temperatura, controle motor.

Fonte: Ribeiro (2014).

24
Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC) | Unidade I

Existem vários estudos cujos objetivos são identificar compostos com a capacidade de
se ligarem seletivamente a um dos receptores canabinoides. Dessa forma, seria possível
obter efeitos farmacológicos específicos.

Além dos canabinoides, temos os terpenos e flavonoides. Vamos conhecê-los!

Terpenos

Os terpenos têm papel importante nos efeitos terapêuticos e recreativos da Cannabis.


São os maiores componentes da resina da maconha, pois representam a maior
porcentagem de óleos essenciais aromáticos contidos na maioria das plantas.

São mais de trinta mil terpenos descobertos na natureza e mais de cem já foram
identificados na Cannabis. Cada variedade tem uma composição única de terpenos, o
que torna especial cada strain. Os terpenos mais conhecidos na Cannabis são:

Alfa e Betapineno

Com o aroma de pinho, o pineno é encontrado em strains como Bubba Kush, Chemdawg
91 e Trainwrech, bem como em plantas como o alecrim e o manjericão.

Linalol

A fragrância doce, usada em perfumes icônicos como o Chanel 5, pode ser encontrada
em grande variedade como a Lavender.

Cariofileno

O cariofileno está presente em muitos óleos essenciais, como o de cravo-da-índia,


Cannabis, alecrim e lúpulo da cerveja. Esse terpeno é um dos compostos químicos que
contribuem para o sabor da pimenta-do-reino e é usado como agente aromatizante em
cheiros e sabores amadeirados, apimentados e de frituras. O β-cariolifeno é relatado
como anti-inflamatório e protetor gástrico, com demonstrada ação agonista seletiva
no CB2
Limoneno

É mais encontrado em cítricos e dá a estes o seu aroma característico. Trata-se de um


terpeno muito energético e conhecido por suas propriedades antidepressivas.

Beta-mirceno

O β-mirceno é um dos terpenos mais abundantes da Cannabis e produz um aroma


particular, perceptível a qualquer um que conhece a erva. Pode ser encontrado na manga
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Unidade I | Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC)

e na erva-cidreira. O β-mirceno é relatado como anti-inflamatório, analgésico, sedativo,


relaxante muscular e como bloqueador de carcinogênese hepática, pela aflatoxina.

Conheça os compostos responsáveis por muito mais que o aroma e o sabor da Cannabis:

A característica principal dos terpenos é a interação com os canabinoides e o


efeito “entourage”, que potencializa os benefícios terapêuticos dos componentes
individuais da Cannabis. No corpo humano, os terpenos conectam-se aos
neurotransmissores, por exemplo, a dopamina, molécula da motivação, ou a serotonina,
reguladora do sono e do humor. Eles também ajudam a controlar o fluxo de THC
no cérebro.

Os terpenos apresentam várias propriedades medicinais e terapêuticas que, aliadas ao


CBD e THC, geram efeitos medicinais e recreativos interessantes.

Flavonoides
Os flavonoides são a principal razão do sabor e do cheiro da Cannabis e podem
ser encontrados em muitas plantas diferentes. Os flavonoides mais peculiares são
chamados de canaflavins, com aroma e sabor único. O canaflavin A possui efeito
anti-inflamatório mais potente que a aspirina, por exemplo. Sua principal função
é regular como nosso corpo reage ao consumo de canabinoides. Os pacientes
se beneficiam da interação dos canabinoides e de outras substâncias, como os
flavonoides, por meio do efeito entourage da Cannabis, que afetam as células nos
órgãos doentes.

Relação estrutura-atividade (REA) dos canabinoides

O grande interesse pelos efeitos dos compostos canabinoides levou ao desenvolvimento


de vários estudos com o intuito de compreender melhor as relações entre as propriedades
estruturais/eletrônicas dos canabinoides e a respectiva atividade biológica apresentada
por esses compostos. Dos resultados obtidos nesses trabalhos, é possível definir a
seguinte REA:

» A presença do sistema biciclico benzopirano é condição essencial, contudo,


isoladamente, não confere atividade ao composto. O oxigênio presente no
sistema benzopirano pode ser substituído por azoto sem perda de atividade
(Figura 10).

26
Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC) | Unidade I

Figura 10. Estruturas com os sistemas benzopirano e do THC.

Fonte: Ribeiro (2014).

» A adição de um anel A não planar ao sistema benzopirano nas posições 3


e 4 é importante para a atividade dos canabinoides (Figura 10), contudo a
adição de um outro anel planar diminui a atividade do canabinoide.
» A adição de um substituinte volumoso na posição 4 do sistema benzopirano
(Figura 10) também confere atividade à molécula.
» Diferentes substituintes podem ser introduzidos ao anel A sem perda de
atividade. Assim, o grupo metilo na posição 9, no composto Δ9-THC,
não é essencial e pode ser substituído por um grupo hidroxilo, um grupo
hidroximetilo ou uma cetona, sem perda de atividade. Também, a presença
de dois substituintes diferentes no anel A, tais como um grupo metilo
na posição 9 e uma dupla ligação no anel A, ou um grupo hidroxilo na
posição 8, mantém a atividade. Nos isômeros que contêm a dupla ligação
no anel A, a posição dessa dupla ligação no átomo C9 favorece a presença de
atividade em relação aos análogos Δ8-THC e Δ6-THC. A ordem da atividade é
Δ9> Δ8> Δ6-THCs.
» A adição de um outro anel ao sistema benzopirano pode ser substituída
por um anel heterocíclico (por exemplo, tetrahidropiridina) sem perda de
atividade.

A esterificação de grupos fenólicos no anel C (Figura 10) mantém a atividade e o


comprimento da cadeia lateral ligada ao anel C pode ser modificado sem perda de
atividade, mas uma cadeia de três carbonos é essencial para a atividade. Destaca-se
que ramificações nessa cadeia aumentam a potência. A adição de cadeias laterais
ao anel C também pode ser realizada via um átomo de oxigénio éter sem perda
de atividade.

As características farmacocinéticas dos canabinoides foram avaliadas principalmente em


pequenos estudos de farmacologia clínica. O tempo de meia-vida da fase de distribuição
27
Unidade I | Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC)

é de 0,5 horas, enquanto o tempo de meia-vida da fase final de metabolização-excreção


é da ordem das 30 horas.

O Δ9-THC administrado por inalação de Cannabis apresenta uma biodisponibilidade


entre 0,10 e 0,25% da quantidade inicial, 50% do teor de Δ9-THC é decomposto no
fumo, aproximadamente 50% do fumo inalado é exalado novamente e uma parte
remanescente do fumo sofre metabolismo no pulmão.

Apesar de o tabagismo continuar a ser a forma mais comum de ingestão de Cannabis


medicinal, a vaporização de Cannabis está a tornar-se cada vez mais popular entre os
usuários de tal substância para fins medicinais, uma vez que a percentagem libertada
de químicos nocivos é significativamente menor.

Sendo os canabinoides mais voláteis que o resto dos compostos da Cannabis, estes
últimos não são facilmente libertados por vaporização.

Administrado por via oral, o Δ9-THC tem uma biodisponibilidade que varia entre 5-20%
em ambientes controlados. No entanto, in vivo, a biodisponibilidade é muitas vezes
inferior devido à presença do meio ácido do estômago, que favorece a metabolização.

Vários estudos tiveram como objetivo normalizar as doses e as vias de administração


de Δ9-THC. Assim, é definida uma dose baixa, com menos de 7 mg de Δ9-THC; uma
intermédia, entre 7 e 18 mg; e uma dose mais elevada, como mais de 18 mg.

Quanto à farmacocinética e à farmacodinâmica, verificou-se uma grande diferença


entre as concentrações desse composto no soro e na zona cardíaca (8 min) em relação
ao sistema nervoso central (> 30 min).

Há também evidências de que o Δ9-THC se acumula facilmente no cérebro e as


concentrações séricas não estão diretamente correlacionadas com efeitos fisiológicos do
Δ9-THC, uma vez que os efeitos no cérebro duram mais tempo do que as concentrações
séricas.

Diferentes populações de pacientes podem ter diferentes respostas à Cannabis medicinal


devido às caraterísticas intrínsecas do indivíduo. As hormonas podem alterar o perfil
farmacodinâmico do Δ9-THC, como é o caso de pacientes do sexo feminino, com
elevados níveis de estrogênio, que são mais sensíveis aos efeitos da Cannabis medicinal
sobre a dor. Também se verificou que usar Cannabis concomitantemente ao tabaco
aumenta a frequência cardíaca e os níveis de monóxido de carbono no sangue.

28
CAPÍTULO 2
Investigação translacional do potencial
terapêutico do canabidiol (CBD):
em direção a uma nova era

Figura 11. Potencial terapêutico da Cannabis.

Fonte: https://jornal.fmrp.usp.br/usp-tem-a-maior-producao-cientifica-mundial-sobre-canabidiol/. Acesso em: 03 dez. 2020.

Entre os muitos canabinoides na planta da Cannabis, o canabidiol (CBD) é um composto


que não produz os efeitos subjetivos típicos da maconha.

Desde a década de 1970, vários estudos publicaram uma série de artigos científicos
mostrando os potenciais efeitos terapêuticos do CBD em diferentes modelos animais
de transtornos neuropsiquiátricos, bem como em ensaios clínicos com humanos.
Alguns demonstraram os efeitos ansiolíticos e antipsicóticos do CBD em animais,
nas décadas de 1970 e 1980, e, posteriormente, em humanos, com resultados bastante
promissores. Além das pesquisas em ansiedade e psicose, foram realizadas pesquisas
básicas e clínicas sobre outras possibilidades terapêuticas da Cannabis. Além disso,
análogos sintéticos patenteáveis ​​do CBD, com forte potencial de transferência de
conhecimento para o setor produtivo, estão sendo desenvolvidos para oferecer benefícios
a pacientes com diversas condições de saúde.

Ação ansiolítica

Estudos com modelos animais

Estudos anteriores em roedores, no início da década de 1980, indicaram que o


CBD poderia interferir nos efeitos do Δ9-THC e, mais especificamente, que o CBD

29
Unidade I | Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC)

atenuava os efeitos ansiogênicos do THC nas respostas emocionais condicionadas.


Apoiando esses achados, o mesmo grupo descobriu que o CBD foi capaz de prevenir os
efeitos ansiogênicos e psicóticos induzidos por doses elevadas de Δ9-THC. Embora os
mecanismos de ação do Δ9-THC e do CBD fossem desconhecidos na época, pesquisadores
já haviam demonstrado que o CBD poderia potencializar alguns efeitos neuroendócrinos
do Δ9-THC. Essa descoberta indicou que o CBD não era um simples antagonista do
receptor de Δ9-THC. Juntos, esses resultados sugeriram que o CBD poderia ser capaz
de causar um antagonismo fisiológico dos efeitos do Δ9-THC, com propriedades
ansiolíticas e antipsicóticas. Como mostrado mais tarde, essas propriedades foram
confirmadas em animais de laboratório e em humanos.

Os estudos iniciais nessa linha produziram resultados contraditórios. Considerando que


alguns estudos descobriram que o CBD (10 mg/kg) foi capaz de atenuar as respostas
emocionais condicionadas em ratos, outra pesquisa não encontrou nenhum efeito
do CBD (100 mg/kg) no teste de conflito de Geller-Seifter, que era tido, naquela
época, como padrão-ouro entre os modelos animais de ansiedade. Esses resultados
aparentemente contraditórios foram explicados por Guimarães et al. (1990), por
meio de um teste, recentemente introduzido, que era sensível a drogas ansiolíticas;
o labirinto em cruz elevado (LCE). Usando esse modelo e cobrindo uma curva de
dose-resposta completa, eles mostraram que, em ratos, o CBD induz efeitos do tipo
ansiolítico em doses mais baixas (2,5–10 mg/kg) que desaparecem completamente em
doses mais altas. Conforme discutido abaixo, essa curva dose-resposta em forma de
sino foi recentemente confirmada em humanos que foram testados em um modelo
clínico de ansiedade experimental.

Após trabalho inicial, vários estudos confirmaram que o CBD diminui a ansiedade em
roedores após administração única ou repetida.

O teste de EPM (teste de labirinto em cruz elevado) é baseado no medo inato de


espaços abertos e elevados e geralmente está associado à ansiedade geral em humanos.
Portanto, essas investigações foram expandidas sobre os efeitos do CBD para modelos
associados a outros transtornos clínicos relacionados à ansiedade, como pânico,
estresse pós-traumático (TEPT) e transtorno obsessivo-compulsivo (TOC). Também
foi descoberto que o CBD tem um claro efeito antiestresse após administração aguda
ou repetida, atenuando as consequências comportamentais e autonômicas do estresse
de contenção agudo e os efeitos ansiogênicos do estresse crônico imprevisível [ECI-].
Esses efeitos podem estar associados aos efeitos do tipo antidepressivo do CBD,
observados no estresse por natação forçada; modelos Wistar-Kyoto e bulbectomia.

30
Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC) | Unidade I

Mecanismos e possíveis locais cerebrais dos efeitos


ansiolíticos e antidepressivos do CBD

O CBD possui uma farmacologia complexa, e há diversos mecanismos propostos


para explicar sua ação. A maioria dos estudos que investigam os mecanismos de ação
do CBD tem sido feita in vitro. Contudo, há mais de 10 anos, estudos in vivo, usando
modelos animais, têm investigado como o CBD produz seus efeitos benéficos em
transtornos neuropsiquiátricos.

Para descobrir os possíveis locais subjacentes aos efeitos do CBD, uma série de estudos
foi realizada em roedores por meio da administração intracerebral de drogas em áreas do
cérebro relacionadas às respostas defensivas, como o córtex pré-frontal medial (mPFC),
a área cinzenta periaquedutal dorsal (dPAG), o núcleo leito da estria terminal (BNST), a
amígdala e o hipocampo. O CBD induziu efeitos ansiolíticos agudos quando injetado no
dPAG e no BNST. O CBD também modificou comportamentos semelhantes à ansiedade
no mPFC, evitando a expressão de condicionamento de medo contextual. No entanto,
quando o CBD foi testado no EPM, o quadro se mostrou mais complicado, pois a droga
produziu efeitos opostos quando injetada nas regiões pré-límbica ou infralímbica do
mPFC. Nessas regiões, os efeitos relatados variaram de acordo não apenas com o modelo
animal empregado, mas também com a experiência anterior de estresse. Resultados
inconsistentes foram encontrados na amígdala após a administração de CBD (dados
não publicados). Com relação ao hipocampo, embora o efeito agudo do CBD sobre essa
estrutura ainda seja desconhecido, a administração repetida da droga preveniu o efeito
ansiogênico do estresse crônico por facilitar a neurogênese hipocampal.

Os efeitos antiestresse agudos do CBD também envolvem o BNST, enquanto sua ação
antidepressiva poderia ser mediada pelo hipocampo e pelo mPFC.

Os mecanismos farmacológicos envolvidos nas propriedades ansiolíticas/antidepressivas


do CBD também foram investigados recentemente. Os efeitos agudos do CBD dependem
claramente da facilitação da neurotransmissão mediada pelo receptor 5HT1-A da
serotonina em áreas relacionadas à defesa. Nem todos os efeitos do CBD, entretanto,
estão relacionados a esse mecanismo. Como o CBD pode diminuir o metabolismo e/
ou a absorção da anandamida, que é um dos principais endocanabinoides, ele também
poderia atuar por meio desse sistema. De fato, os efeitos agudos do CBD no teste de
enterramento de bolas de gude e na reconsolidação aversiva da memória foram evitados
pelos antagonistas do receptor CB1. A facilitação das respostas mediadas por CB1 e
CB2, provavelmente devida à inibição do metabolismo da anandamida, também está
envolvida no efeito pró-neurogênico do CBD.

31
Unidade I | Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC)

Estudos humanos

De acordo com revisões abrangentes, a administração aguda e crônica de CBD, por


várias vias (oral, inalada, intravenosa), em voluntários saudáveis ​​e pacientes com
diferentes condições clínicas, não induziu efeitos adversos significativos, especialmente
porque uma conversão de canabidiol oral em THC parece não ocorrer em humanos.
Esses resultados apoiam observações anteriores de estudos em animais, segundo os quais o
CBD parece ser um composto seguro para uso humano em uma ampla faixa de dosagem.

O potencial efeito ansiolítico do CBD foi estudado pela primeira vez em voluntários
saudáveis, por meio do teste simulado de fala em público (SPST). Nesse modelo, os
indivíduos são solicitados a falar por alguns minutos na frente de uma câmera de vídeo
enquanto o estado subjetivo de ansiedade e seus concomitantes fisiológicos (frequência
cardíaca, pressão arterial, condutância da pele) são registrados. O SPST demonstrou
ser eficaz na indução de ansiedade e sensível a muitos compostos ansiogênicos e
ansiolíticos. Por meio desse teste, os efeitos do CBD (300 mg) foram comparados aos
produzidos por dois compostos ansiolíticos, ipsapirona (5 mg) e diazepam (10 mg), em
um procedimento duplo-cego controlado por placebo. Os resultados demonstraram que o
CBD e os dois outros compostos ansiolíticos atenuaram a ansiedade induzida pelo SPST.

A aparente validade do SPST é intrínseca ao transtorno de ansiedade social (TAS), uma


vez que o medo de falar em público e seus companheiros fisiológicos são considerados
aspectos fundamentais desse transtorno de ansiedade. No entanto, nenhum estudo
tratou dos efeitos ansiolíticos do CBD na ansiedade patológica até então. Assim,
investigaram esse problema em 12 pacientes com TAS, os quais foram tratados com
CBD 600 mg; 12 pacientes com TAS, que receberam placebo; e 12 indivíduos saudáveis
que completaram o SPST sem receber qualquer medicação. O grupo de pacientes
com TAS tratados com CBD apresentou níveis mais baixos de ansiedade nas fases
de desempenho e antecipação do teste, menores escores de autoavaliação negativa e
menos sintomas somáticos em comparação com os pacientes com TAS que receberam
placebo. Além disso, não foram encontradas diferenças significativas entre os pacientes
com TAS tratados com CBD e controles saudáveis, ao contrário do que aconteceu com
os pacientes com TAS, que tomaram placebo.

Zuardi e colaboradores (2018) observaram os efeitos de diferentes doses de CBD no


SPST em 57 voluntários saudáveis do sexo masculino, divididos em quatro grupos
(placebo, n = 15; CBD 150 mg, n = 15; CBD 300 mg, n = 15; e CBD 600 mg, n = 12).
Os resultados confirmaram o efeito ansiolítico do CBD e a curva de resposta à dose
em “formato de sino” ou U invertido foi observada, de acordo com os resultados dos
32
Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC) | Unidade I

estudos em animais descritos acima. Mais recentemente, confirmaram e expandiram


esse achado com indivíduos que foram designados a cinco grupos que receberam
CBD (100, 300 e 900 mg) – o benzodiazepínico clonazepam (1 mg) e placebo – e que
foram submetidos a um teste de oratória, em uma situação real (TPSRS), em que cada
voluntário deveria falar diante de um grupo composto pelos demais participantes.
Novamente, a administração aguda de CBD produziu efeitos ansiolíticos com uma
curva em forma de sino dependente da dose em indivíduos saudáveis, uma vez que as
quantidades de ansiedade pessoal foram reduzidas com CBD 300 mg, mas não com as
outras doses de CBD de 100 e 900 mg. Portanto, esses resultados destacam a necessidade
de estabelecer intervalos de dose terapêutica precisos de CBD para cada condição clínica.

Imagens dos efeitos ansiolíticos do CBD no cérebro

O primeiro estudo de neuroimagem conduzido para investigar os efeitos centrais do CBD


em humanos usou tomografia computadorizada por emissão de fóton único (SPECT)
para avaliar voluntários saudáveis ​​que receberam CBD (400 mg) ou placebo em duas
sessões de laboratório, com 1 semana de intervalo, em um crossover; procedimento
duplo-cego. Todo o procedimento induziu ansiedade, permitindo a investigação dos
potenciais efeitos ansiolíticos do CBD. Os resultados do SPECT mostraram aumento
da atividade do giro para-hipocampal esquerdo e a diminuição do complexo amigdala-
hipocampo esquerdo. Nesse sentido, o aumento da atividade do giro para-hipocampal
esquerdo estendeu-se para o córtex cingulado posterior esquerdo e hipotálamo (Figura
12). Esse padrão de atividade cerebral associado ao uso de CBD foi considerado
compatível com um efeito ansiolítico central nessas áreas.

Figura 12. Foco de rCBF significativamente aumentado (amarelo) e reduzido (azul) na área do hipocampo esquerdo em indivíduos
saudáveis (A) e em indivíduos com transtorno de ansiedade social (SAD; B) após a administração de CBD versus placebo.

A Indíviduo saudável B SAD

Fonte: https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fimmu.2018.02009/full. Acesso em: 04 dez. 2020.

33
Unidade I | Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC)

Em uma série de estudos de neuroimagem, a ressonância magnética funcional (fMRI)


foi usada para investigar os correlatos neurais dos efeitos ansiolíticos do CBD em 15
indivíduos saudáveis. Esse método permitiu a aquisição de maior número de imagens
e com melhor resolução espacial e temporal. O CBD (600 mg) modulou os padrões
de atividade cerebral enquanto os indivíduos processavam estímulos que descreviam
faces intensamente amedrontadas, atenuando as respostas no cingulado anterior e
posterior e na amígdala. Além disso, esse achado teve uma correlação direta com o
efeito concomitante do CBD na modulação das respostas de condutância da pele a
estímulos de medo. Em um estudo subsequente, também foi demonstrado que o CBD
produz seus efeitos ansiolíticos ao alterar a conectividade pré-frontal-subcortical via
amígdala e o cingulado anterior.

No primeiro estudo para examinar os correlatos neurais dos efeitos ansiolíticos do


CBD em uma amostra clínica, por meio de mesmo protocolo, mesmo desenho e
mesma dose (400 mg), assim como no estudo SPECT, com voluntários saudáveis,
descrito acima, descobriu-se que, quando comparado ao placebo, o CBD foi capaz
de reduzir as medidas subjetivas de ansiedade sem induzir sedação em pacientes com
TAS sem tratamento prévio. O efeito ansiolítico foi associado à redução da atividade
em hipocampo, para-hipocampo e giro temporal esquerdo e ao aumento da atividade
no cingulado posterior (Figura 12).

Juntos, esses resultados mostram que os efeitos modulatórios do CBD nas áreas límbica
e paralímbica são compatíveis com os efeitos dos compostos ansiolíticos em indivíduos
saudáveis e​​ em pacientes com transtornos de ansiedade.

Canabidiol e os seus efeitos antipsicóticos

Estudos com modelos animais

Usando modelos animais clássicos para avaliar os efeitos antipsicóticos, pesquisadores


fizeram uma investigação pioneira e mostraram que o CBD diminuiu a estereotipia
induzida por agonistas dopaminérgicos; efeito semelhante ao do haloperidol. Ao contrário
do último, entretanto, o CBD não induziu catalepsia, que é um comprometimento
motor associado a efeitos colaterais extrapiramidais antipsicóticos em humanos.
Além disso, o CBD apenas aumentou os níveis de prolactina em altas doses (acima de
120 mg/kg). Esses efeitos foram semelhantes aos da clozapina, sugerindo que o CBD
poderia ter um perfil antipsicótico atípico.

34
Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC) | Unidade I

Posteriormente, foi mostrado que o CBD também é capaz de diminuir, em camundongos


e ratos, o comprometimento da hiperlocomoção e da inibição do pré-pulso (PPI)
induzida pela anfetamina. As investigações foram expandidas para modelos animais
de esquizofrenia baseados em glutamatérgicos, que mostraram que o CBD diminuiu
a hiperlocomoção e o comprometimento do PPI causados ​​pelos antagonistas não
competitivos do receptor NMDA de glutamato cetamina e MK801, respectivamente.
No primeiro estudo, o CBD foi administrado cronicamente (por 21 dias) e foi capaz de
diminuir o prejuízo social e os déficits de memória induzidos pela administração repetida
de MK801. Novamente, esses efeitos foram semelhantes aos do antipsicótico clozapina.
Na verdade, refletindo achados clínicos anteriores, as doses de CBD que produzem
efeitos semelhantes aos antipsicóticos são geralmente mais altas do que aquelas com
ação ansiolítica. Curiosamente, em um estudo recente promissor, descobrimos que o
tratamento peripubertário com CBD inibiu o desenvolvimento de hiperlocomoção
induzida pelo tratamento pré-natal com poli I: C, indicando que esse canabinoide
pode ter propriedades de longa duração em um tratamento peripubertal, como uma
intervenção para prevenir a psicose exibida na idade adulta. A tradução desses achados
para indivíduos de ultra-alto risco para psicose e em indivíduos nas fases prodrômicas
iniciais da esquizofrenia é de grande importância, portanto estão em andamento
estudos nessa área.

Mecanismos e possíveis locais cerebrais dos efeitos


antipsicóticos do CBD

Foi observado que o CBD produzia um padrão de ativação neuronal (medido pela
expressão do proto-oncogene cFos) semelhante ao da clozapina, mas distinto do
haloperidol. Enquanto as três drogas aumentaram a ativação em áreas límbicas,
apenas o CBD e a clozapina aumentaram a ativação no mPFC. O haloperidol, por
outro lado, induziu um aumento significativo na expressão de cFos, no corpo estriado.
Confirmando o envolvimento de locais límbicos em seus efeitos antipsicóticos, o CBD
bloqueou o comprometimento do PPI induzido pela anfetamina após injeção direta
no núcleo accumbens.

Com relação à implicação do mPFC, na ação antipsicótica do CBD, demonstrou-se


que o CBD, assim como o antipsicótico atípico clozapina, preveniu a diminuição
da expressão de parvalbumina (uma proteína de ligação ao cálcio expressa em um
subconjunto de interneurônios GABAérgicos) e o aumento na expressão de FosB/
ΔFosB, no mPFC, após injeção crônica do antagonista NMDA MK-801. Embora esse
último resultado pareça contrastar com a evidência sobre cFos, que foi mencionada

35
Unidade I | Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC)

acima, FosB/ΔFosB é um marcador de ativação neuronal após estimulação repetida,


não aguda. Finalmente, tanto o CBD quanto a clozapina impediram o aumento no
número de astrócitos GFAP-positivos, no mPFC, e na porcentagem de células da
microglia Iba-1-positivas com um fenótipo reativo no hipocampo dorsal e mPFC
após a administração repetida de MK-801. Esse resultado sugere que a ação anti-
inflamatória do CBD pode estar relacionada às suas propriedades antipsicóticas e está
em consonância com descobertas recentes de que drogas anti-inflamatórias, como a
minociclina, podem ser úteis ao tratamento de esquizofrenia.

Estudos humanos

Em 1995, Zuardi e colegas publicaram o primeiro relato de caso de um paciente com


esquizofrenia tratado com CBD. Uma paciente do sexo feminino com efeitos colaterais
graves de antipsicóticos convencionais foi tratada com CBD, até 1.500 mg/dia, por 4
semanas, e teve uma redução significativa nos escores de sintomas positivos e negativos
da Escala de Avaliação Psiquiátrica Breve (BPRS). Em um ensaio posterior, três pacientes
do sexo masculino com esquizofrenia resistente ao tratamento foram tratados com
CBD (até 1.280 mg/dia), por 30 dias, mas apenas um teve uma melhora parcial. O fato
que pode justificar os achados é que, dos dois esquizofrênicos que não responderam,
um reduziu os sintomas psicóticos apenas com a clozapina e o outro foi resistente
até mesmo a essa droga. Nenhum paciente apresentou efeitos colaterais durante o
tratamento com CBD, como previamente observado em pacientes esquizofrênicos
que receberam CBD e foram avaliados pela responsividade eletrodérmica a estímulos
auditivos e pelo Stroop Color Word Test.

Posteriormente, três ensaios clínicos duplo-cegos controlados, que investigaram


eficácia e tolerabilidade do CBD em pacientes com esquizofrenia, confirmaram os
achados preliminares. Um estudo comparou os efeitos do CBD (até 800 mg/dia) com
a amisulprida em 42 pacientes com esquizofrenia que foram tratados por 4 semanas.
Ambos os tratamentos reduziram significativamente os sintomas psicóticos, sem
diferenças entre eles. Entretanto, o CBD induziu menos efeitos colaterais em comparação
com a amisulprida.

Os efeitos antipsicóticos do CBD também foram investigados em pacientes com


esquizofrenia. No primeiro episódio, foram tratados por 14 dias em um estudo cruzado
e controlado por placebo. O CBD diminuiu significativamente os sintomas psicóticos
após 2 semanas quando comparado ao valor basal, embora as diferenças em relação
ao placebo não tenham alcançado significância estatística.

36
Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC) | Unidade I

Mais recentemente, em um ensaio duplo-cego, pacientes com esquizofrenia foram


randomizados para receber CBD por 6 semanas (1.000 mg/dia; N = 43) ou placebo (N =
45) adicionado aos medicamentos antipsicóticos existentes. Após o tratamento, o grupo
CBD apresentou escores psicóticos positivos mais baixos e melhores sintomas cognitivos
e de doença geral. Os efeitos colaterais do CBD e do placebo foram equivalentes entre
os grupos. Uma vez que os efeitos antipsicóticos do CBD não parecem depender do
antagonismo do receptor da dopamina, esse composto pode, de fato, representar uma
nova classe de tratamento para os distúrbios psicóticos em geral e para a esquizofrenia,
em particular.

A visão de que o CBD poderia ter efeitos antipsicóticos foi ainda apoiada por estudos
em indivíduos humanos saudáveis com psicose induzida artificialmente. Em um
ensaio duplo-cego controlado por placebo, CBD (600 mg) demonstrou atenuar os
sintomas de despersonalização induzidos pelo antagonista do receptor N-metil-D-
aspartato (NMDA) cetamina, que aumenta a liberação de glutamato em baixas doses.
Esse efeito sobre os sintomas dissociativos também levantou hipóteses de potenciais
usos terapêuticos do CBD em condições como TEPT, intoxicação por Cannabis e
alguns transtornos de personalidade.

O manejo de sintomas psicóticos frequentes em pacientes com doença de Parkinson


(DP) é considerado um grande desafio para os médicos. É particularmente preocupante
porque (i) a redução das doses de medicamentos antiparkinsonianos ou a adição de
antipsicóticos convencionais piora a função motora e (ii) os antipsicóticos atípicos
podem ter efeitos colaterais significativos. Assim, considerando a pertinência de um
possível efeito antipsicótico do CBD e a falta de manejo farmacêutico eficaz e seguro
para psicose em DP, avaliou-se a eficácia e segurança desse canabinoide em pacientes
com DP, os quais apresentavam sintomas psicóticos. Em um ensaio clínico aberto com
seis pacientes ambulatoriais com DP, foi encontrada uma redução significativa nas
pontuações do BPRS e do Parkinson Psychosis Questionnaire (PPQ) com CBD (150–600
mg/dia) adicionado ao tratamento usual. Curiosamente, foi observada uma redução dos
sintomas psicóticos e motores durante o tratamento do CBD, sem piora na cognição. Esses
resultados preliminares sugeriram que o CBD poderia ter efeitos benéficos potenciais
na DP, o que levou os autores a investigar essa possibilidade em maior profundidade.

Imagens dos efeitos antipsicóticos do CBD no cérebro

Em uma série de estudos colaborativos com fMRI, os efeitos do CBD foram investigados
no comportamento e na atividade cerebral regional em várias áreas, fornecendo pistas

37
Unidade I | Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC)

iniciais sobre seus mecanismos e locais de ação. Curiosamente, foram observados padrões
de ativação cerebral opostos após a administração de CBD (600 mg) e Δ9-THC (10
mg). Em contraste com o placebo, os efeitos semelhantes aos da psicose, provocados
pelo Δ9-THC, foram associados à diminuição da ativação de:
I. o estriado dorsal durante o processamento de estímulos “bizarros”;

II. o estriado ventral e o giro cingulado anterior durante a evocação de palavras; e

III. o córtex temporal direito durante o processamento auditivo.

Em todas essas áreas (tradicionalmente associadas à psicose), os efeitos do CBD na


ativação do cérebro foram contrários aos do Δ9-THC, o que sugere que eles podem
estar envolvidos nas propriedades antipsicóticas do CBD.

Ações antiparkinsonianas, antioxidantes


e neuroprotetoras

Após um estudo aberto para avaliar os efeitos antipsicóticos do CBD em DP com


características psicóticas, esse canabinoide foi testado em pacientes com DP sem
comorbidades psiquiátricas ou demência. Foram selecionados 21 pacientes com DP,
que foram atribuídos a três grupos tratados com placebo (n = 7), CBD 75 mg/dia
(n = 7) e CBD 300 mg/dia (n= 7). Os participantes foram avaliados no início e após
o tratamento em relação aos sintomas motores e gerais (UPDRS), à qualidade de
vida, ao bem-estar (PDQ-39) e aos efeitos neuroprotetores (níveis de BDNF e H1-
MRS). O grupo tratado com CBD 300 mg/dia apresentou escores significativamente
menores no PDQ-39. Os achados sugerem que o CBD pode ser capaz de melhorar o
parkinsonismo geral em pacientes com DP e sem comorbidades psiquiátricas. Em uma
série de estudos colaborativos com animais, o CBD foi incapaz de prevenir ou reverter
a hiperlocomoção induzida pela injeção crônica de D-AMPH (2 mg/kg). No entanto,
foi descoberto que o CBD parece ter propriedades antioxidantes e neuroprotetoras,
pois aumentou os níveis de fator neurotrófico derivado do cérebro. Além disso, o
CBD aumentou o complexo mitocondrial e a atividade da creatina quinase, reverteu
os parâmetros de estresse oxidativo (formação de TBARS e carbonilas de proteína) e
preveniu deficiências cognitivas. Em outro estudo, a administração aguda e crônica
de CBD (10,0 mg / kg) foi capaz de resgatar a memória em ratos tratados com ferro.
Mais recentemente, descobriu-se que o CBD reverteu os efeitos induzidos pelo ferro,
normalizando os níveis de DNM1L hipocampal, sinaptofisina e caspase 3 em ratos.
Novamente, isso sugere que o CBD deve ser considerado um composto com propriedades
neuroprotetoras e de resgate da memória.

38
Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC) | Unidade I

Fármaco que aumenta a neuroproteção


e a neuroplasticidade

Nosso cérebro muda continuamente no curso da vida e a investigação de mecanismos


que envolvem neuroplasticidade oferece uma grande oportunidade para o estudo de
mecanismos desadaptativos que levam à doença mental e de possíveis novos alvos
para seu tratamento. Os transtornos neuropsiquiátricos podem resultar de mudanças
profundas no mecanismo relacionado às funções cerebrais, provavelmente envolvendo
a neuroplasticidade. Por exemplo, o volume hipocampal reduzido é observado em
pacientes diagnosticados com transtornos do humor, TEPT, esquizofrenia e doença
de Alzheimer.

Em roedores, há testes de exposição a protocolos de estressores crônicos, que modelam


algumas características dos sintomas de transtornos psiquiátricos, induzem alterações na
remodelação dendrítica e diminuem a neurogênese hipocampal adulta. A neurogênese
hipocampal adulta é um processo complexo de várias etapas que cobre divisão,
sobrevivência (nem todos os neurônios que se dividem sobreviverão), migração e
diferenciação de novas células no giro denteado do hipocampo. No hipocampo, esse
processo é considerado determinante em, pelo menos, algumas formas de aprendizado
e memória.

Derivados de Cannabis sp foram investigados por causa de seus potenciais efeitos na


neuroplasticidade.

Recentemente, foi demostrado que o CBD aumentou os comportamentos de


enfrentamento do estresse em um teste comportamental amplamente usado para a
triagem de drogas antidepressivas. Nesse sentido, tal fato sugere que o CBD induz um
aumento no número de células Ki67, BrdU e células duplas positivas para cortina no
hipocampo. Interessante: pesquisadores sugeriram que em usuários pesados ​​crônicos
de Cannabis, THC mais alto e concentrações mais baixas de CBD foram associadas à
diminuição da massa cinzenta no hipocampo e à redução do desempenho cognitivo,
enquanto níveis mais altos de CBD nas amostras de Cannabis consumidas preveniram
os efeitos neurotóxicos induzidos pelo THC. Em sua sessão de discussão, os autores
sugeriram que um possível mecanismo envolvido na neuroproteção do CBD seria seu
efeito de facilitar a neurogênese do hipocampo.

Os estudos também sugeriram que o CBD tem efeitos positivos na remodelação


sináptica. Em ratos submetidos à lesão cerebral induzida por sobrecarga de ferro, o
CBD normalizou a expressão da sinaptofisina, uma importante proteína vesicular

39
Unidade I | Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC)

relacionada à função sináptica adequada. O CBD pode modular as vias intracelulares


diretamente conectadas com a remodelação sináptica, como Erk1/2 e Akt, em tipos
distintos de linhagens de células cancerosas. Seus efeitos precisos em diversas regiões
do cérebro, entretanto, ainda não são claros. Por exemplo, a administração repetida
de CBD (14 dias) diminuiu as formas fosforiladas dos níveis de Erk1/2 no PFC e
melhorou as respostas condicionadas ao medo contextual. Em camundongos com
estresse crônico, a administração crônica de CBD também promoveu remodelamento
dendrítico e aumentou a expressão de Sinapsina I/II, PSD95 e p-GSK3β no hipocampo
de roedores submetidos a ECI.

O CBD também tem atividade antioxidante e atua contra a exacerbação da produção de


espécies de oxigênio/nitrogênio (ROS / RNS) e, consequentemente, contra a oxidação
do DNA, a peroxidação de ácidos graxos poli-insaturados e a nitração/carbonilação
de proteínas, que levam à lesão ou morte celular.

Em neurônios corticais de ratos, o CBD preveniu a neurotoxicidade mediada por


NMDA e o dano oxidativo por meio de um mecanismo independente do receptor
de canabinoide. O CBD diminui o dano neuronal induzido pelo depósito da proteína
β-amiloide e atenua a depleção dos níveis de tirosina hidroxilase, GABA e dopamina
ao modular a expressão da isoforma induzível da NN sintetase e reduzir a produção de
NADPH oxidases geradoras de ROS. Além disso, o CBD exerce atividades antioxidantes
contra diferentes agentes induzidos por toxicidade, como a anfetamina, e atenua a
produção de ROS mitocondrial induzida por alto teor de glicose e a expressão de
moléculas pró-inflamatórias.

O CBD parece proteger os neurônios da morte e aumenta a reciclagem de componentes


celulares velhos/danificados por meio de facilitação da ação autofágica. A autofagia,
em particular a macroautofagia, é uma via de degradação lisossomal crucial para
reciclar organelas lesadas e promover a sobrevivência celular. Ademais, protege contra
o mau funcionamento ou a morte celular em condições de estresse. Pesquisadores
demonstraram que, em um modelo de convulsão induzida por pilocarpina, os efeitos
anticonvulsivantes do CBD podem envolver a ativação da maquinaria autofágica
hipocampal.

Ação antiepiléptica
Ainda na década de 1980, os efeitos anticonvulsivantes do CBD foram uma das primeiras
propriedades farmacológicas descritas tanto em animais quanto em ensaio clínico

40
Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC) | Unidade I

preliminar em pacientes, os quais foram liderados pelo grupo brasileiro de Elisaldo


Carlini em parceria com Raphael Mechoulam. Em um estudo animal colaborativo
recente, descobriu-se que o CBD tem efeitos protetores não apenas no controle das
crises, mas também contra a morte neuronal em um modelo de epilepsia do lobo
temporal mesial induzida por pilocarpina intra-hipocampal.

Figura 13. Raphael Mechoulam.

Fonte: https://en.wikipedia.org/wiki/Raphael_Mechoulam. Acesso em: 04 dez. 2020.

Raphael Mechoulam é um químico orgânico israelense e professor de Química


Medicinal na Universidade Hebraica de Jerusalém, em Israel. Mechoulam é mais
conhecido por seu trabalho no isolamento e na elucidação da estrutura e síntese
total de Δ 9 - tetrahidrocanabinol e pelo isolamento e pela identificação dos
canabinoides endógenos anandamida do cérebro e 2-araquidonoil glicerol (2-AG)
de órgãos periféricos.

Figura 14. Elisaldo Carlini.

Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Elisaldo_Carlini. Acesso em: 04 dez. 2020.

Elisaldo Carlini foi um médico, pesquisador, fundador do CEBRID e professor


emérito da UNIFESP. Ele dedicou mais de 50 anos ao estudo de drogas psicotrópicas
no Brasil. Em especial, mediante seus trabalhos sobre a maconha medicinal,

41
Unidade I | Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC)

colocou o CBD no foco da ciência brasileira e do mundo para o tratamento de


convulsões, epilepsia, esclerose múltipla e dor crônica.

Recentemente, foram investigados dois casos de crianças com epilepsia resistente ao


tratamento que tiveram remissão completa das crises, mas apresentaram sintomas
de intoxicação por Δ9-THC e eventual recaída das crises com o uso de um extrato
enriquecido com canabidiol. Quando o extrato foi substituído por CBD puro de grau
farmacêutico, os sinais de intoxicação desapareceram e ambos os pacientes ficaram sem
convulsões. Essas observações destacam a importância dos bons processos de fabricação
para garantir o desenvolvimento de medicamentos produzidos e controlados de forma
consistente de acordo com as normas regulatórias internacionais. Mais recentemente,
ensaios clínicos abertos e duplo-cegos controlados investigaram a eficácia, segurança e
tolerabilidade do CBD em crianças e adolescentes com epilepsia resistente ao tratamento,
como Dravet, Rett, CDKL5 e Lennox-Gastaut, e confirmaram e expandiram esses
achados preliminares.

Distúrbios do sono

Um dos efeitos mais comumente observados do CBD em doses mais altas é a sedação.
O distúrbio comportamental do sono REM (RBD) é uma parassonia caracterizada por
falhas na atonia muscular durante o sono REM, associada ao comportamento ativo
durante sonhos e pesadelos. Atualmente, as opções para o manejo farmacológico da
RBD são limitadas. Com isso em mente, foi realizado um ensaio aberto envolvendo
quatro pacientes com doença de Parkinson com RBD, que é considerado um problema
comum nesse distúrbio do movimento. Todos os pacientes tiveram uma redução
eficiente e substancial na frequência de eventos relacionados a RBD.

Um ensaio cruzado dos efeitos agudos de 300 mg de CBD na arquitetura do sono


de voluntários saudáveis ​​mostrou que esse composto não interfere no ciclo do
sono. É particularmente importante, uma vez que, diferentemente dos ansiolíticos
e antidepressivos, como benzodiazepínicos e ISRSs, a administração aguda de uma
dose ansiolítica de CBD é segura e parece preservar a arquitetura do sono. Assim, o
CBD pode ser uma opção terapêutica potencialmente útil para uma ampla gama de
distúrbios.

Estabilização de humor

Dadas as ações anticonvulsivas, ansiolíticas, antidepressivas e antipsicóticas do


CBD, acredita-se que o CBD possa ter um perfil farmacológico comparável ao dos

42
Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC) | Unidade I

estabilizadores de humor. Em um estudo animal colaborativo, testou-se inicialmente


essa ideia em um modelo animal de mania induzida por injeção crônica de D-anfetamina
(D-AMPH) na dose de 2 mg/kg. Nesse modelo, entretanto, o CBD não foi capaz de
prevenir ou reverter a hiperlocomoção induzida pelo D-AMPH. Paralelamente, foi
investigada a eficácia direta do CBD em dois pacientes com transtorno afetivo bipolar
(TAB) em episódios maníacos agudos. Os pacientes não apresentaram melhora com
o CBD, o que está de acordo com o achado negativo no modelo animal de mania e
sugere que a droga não é eficaz no tratamento de episódios maníacos no TAB.

Em conclusão, o uso experimental e clínico do CBD, composto que não produz os efeitos
subjetivos típicos da maconha, os quais são induzidos pelo Δ9-THC, tem demonstrado
claramente propriedades ansiolíticas, antiepilépticas e antipsicóticas, entre outros efeitos.
Desde a década de 1970, foram publicados vários artigos científicos que mostram os
potenciais efeitos terapêuticos do CBD em diferentes modelos animais de transtornos
neuropsiquiátricos e em alguns ensaios clínicos. Surgiram investigações recentes
sobre os novos efeitos do CBD e de seus análogos sintéticos e sobre a compreensão
dos mecanismos de ação desses compostos. Consequentemente, foi possível obter
um melhor entendimento do sistema endocanabinoide. No entanto, novas questões
surgiram em relação às propriedades do CBD e de seus análogos sintéticos que estão
atualmente sob investigação, como a segurança e as faixas de dosagem precisas para
cada transtorno.

43
CAPÍTULO 3
Uso terapêutico dos canabinoides
em psiquiatria

Figura 15. Canabinoides e psiquiatria.

Fonte: https://maryjuana.com.br/2014/07/sistema-endocanabinoide-e-a-chave-para-o-tratamento-de-diversas-doencas/. Acesso em: 04 dez. 2020.

A planta Cannabis sativa é utilizada para fins medicinais há milhares de anos, por
vários povos e em muitas culturas, embora atualmente se conheçam também seus
efeitos adversos. Existem indicações da utilização da planta na China, anteriormente
à Era Cristã, para tratamento de várias condições de saúde, como dores, malária,
constipação intestinal, expectoração, tuberculose, epilepsia, entre outras. Da mesma
forma, é sabido que a Cannabis vem também sendo utilizada para o alívio de sintomas
psiquiátricos há muito tempo. Na Índia, existem descrições da sua utilidade há mais de
1.000 anos antes de Cristo, como hipnótico e tranquilizante no tratamento de mania,
ansiedade e histeria. Os assírios também inalavam a Cannabis para melhorar sintomas de
depressão. Algum tempo depois, no início do século XX, extratos de Cannabis passaram
a ser comercializados para tratar transtornos mentais, usados especialmente como
hipnóticos (em insônia, delirium tremens, manias, “melancolia”, entre outros) e sedativos.
Porém, depois da terceira década do último século, houve uma diminuição da utilização da
droga no âmbito médico, de forma geral, e, particularmente, no contexto da psiquiatria.
Isso aconteceu por vários motivos relacionados ao fato de que, na época, os princípios
ativos encontrados na Cannabis ainda não tinham sido isolados e os extratos variavam
de potência e de composição, de modo que geravam efeitos inconsistentes e causavam
diversos efeitos indesejáveis. E novas substâncias foram sintetizadas como hipnóticos e
sedativos, como o hidrato de cloral, o paraldeído e os barbitúricos. Ainda, as restrições
impostas pela determinação posterior do estado ilegal da planta limitaram mais ainda
o uso da Cannabis como medicamento em psiquiatria. No entanto, na década de 1960,

44
Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC) | Unidade I

as estruturas químicas dos componentes principais da Cannabis foram identificadas


pelo grupo do professor Raphael Mechoulam, de Israel. O ∆9-tetrahidrocanabinol
(∆9-THC) recebeu maior atenção naquele momento, pois se tratava do componente
psicotrópico da planta. Posteriormente, descobriu-se que esse composto se liga, no
sistema nervoso central, aos receptores canabinoides (CB1 e CB2). Essa descoberta foi
seguida do isolamento dos ligantes endógenos 2-araquidonoilglicerol e anandamida.
Assim, após o reconhecimento de que esse sistema endocanabinoide pode alterar vários
processos fisiológicos e, provavelmente, fisiopatológicos nos transtornos psiquiátricos,
o interesse na utilização dos canabinoides foi retomado.

Canabidiol (CBD)
Desde o início da década de 1970, é descrito que outros canabinoides interferem
nos efeitos do ∆9-THC, particularmente o CBD, presente em grande quantidade na
Cannabis sativa e destituído de efeitos típicos da planta. Em voluntários saudáveis, o
CBD (1mg/kg) administrado por via oral, simultaneamente com uma dose elevada de
∆9-THC (0,5mg/kg), atenuou significantemente a ansiedade e os sintomas psicóticos
induzidos pelo ∆9-THC. Assim, esses resultados sugeriram um efeito ansiolítico e/ou
antipsicótico próprio do CBD.

Efeito ansiolítico

Estudos em animais

Os dois estudos iniciais que investigaram um possível efeito ansiolítico do CBD,


em ratos, chegaram a resultados contraditórios. Pesquisadores, utilizando o teste de
conflito e da ingestão de alimentos suprimida pela neofobia, não encontraram efeito
ansiolítico do CBD com doses acima de 100mg/kg. Por outro lado, outros pesquisadores
mostraram que o CBD (10mg/kg) diminuiu e o ∆9-THC (2mg/kg) aumentou a resposta
emocional condicionada.

Posteriormente, diversos outros estudos vieram a reforçar a hipótese de um efeito


ansiolítico do CBD em vários modelos animais:
I. testes de conflito (comportamento de beber suprimido por choque elétrico
concomitante) em ratos privados de água;
II. respostas comportamentais e cardiovasculares no paradigma de medo
condicionado (choque nas patas) em ratos;

45
Unidade I | Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC)

III. teste do estresse por imobilização aguda;

IV. extinção de memória de medo condicionado; e

V. labirinto em cruz elevada em camundongos e ratos. Esses últimos estudos


mostraram uma curva de efeito do CBD, em “U” invertido, com aumento da
exploração nos braços abertos do labirinto, que é um efeito típico de drogas
ansiolíticas, com doses baixas, e que volta ao padrão do controle com doses
maiores. Esse resultado ajudou a entender a ausência de resposta do CBD
em estudos que utilizaram doses acima de 100mg/kg.

O CBD (20mg/kg) também demonstrou ser capaz de reverter a redução de interação social
em ratos produzida por baixas doses do ∆9-THC. Foi demonstrado em camundongos
que o uso crônico do CBD também produz ação ansiolítica.

Os efeitos ansiolíticos do CBD não parecem ser mediados pelos receptores


benzodiazepínicos, mas, por outro lado, esse canabinoide interage com os receptores
5HT1A e essa interação parece estar envolvida em sua ação ansiolítica.

Assim, o conjunto desses dados em animais sugere que doses baixas do CBD apresentam
efeito ansiolítico.

Estudo em humanos

A administração aguda de CBD (via oral, inalatória ou endovenosa) ou crônica, por via
oral em voluntários saudáveis e em diversas outras condições, não produziu qualquer
efeito adverso significativo. Assim, confirmando estudos prévios em animais, o CBD
mostrou-se um composto seguro para a administração em seres humanos, numa ampla
faixa de dosagem.

O teste de SFP tem validade aparente para o transtorno de ansiedade social (TAS),
uma vez que o medo de falar em público e seus concomitantes fisiológicos são
considerados como aspectos essenciais nessa condição. Com base no fato de não
existirem até então pesquisas que procuraram investigar os efeitos ansiolíticos do CBD
na ansiedade patológica, investigamos essa questão em pacientes com TAS (n = 24),
que foram comparados a um grupo de controles saudáveis submetidos ao teste de SFP.
Doze pacientes com TAS receberam CBD (600mg); outros 12, placebo; e o mesmo
número de controles saudáveis realizou o teste sem receber nenhuma medicação.
O grupo de pacientes com TAS que recebeu CBD, quando comparado com o grupo
com TAS que recebeu placebo, apresentou menores níveis de ansiedade nas fases

46
Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC) | Unidade I

antecipatória e de performance do teste, além de menos sintomas somáticos e menos


autoavaliação negativa. O grupo de pacientes com TAS que recebeu CBD não diferiu
significativamente dos controles saudáveis nessas medidas avaliadas, ao contrário do
que ocorreu com os que receberam placebo.

Em estudo anterior, foram avaliados os efeitos do CBD sobre fluxo sanguíneo cerebral
regional em voluntários saudáveis, por meio da tomografia, mediante emissão de fóton
único (SPECT). Nesse estudo, os indivíduos receberam CBD (400mg) ou placebo
em duas sessões experimentais, com intervalo de uma semana, num procedimento
cruzado, duplo-cego. Em cada sessão experimental, uma hora após receberem
CBD ou placebo, era inserido, em uma veia do braço dos voluntários, um cateter
que recebia o tecnécio marcado para o estudo do SPECT. A ansiedade subjetiva
foi medida por escalas de autoavaliação aplicadas antes de os pacientes receberem
as drogas e imediatamente antes da inserção do cateter e da tomografia. Todo o
procedimento mostrou-se ansiogênico, o que permitiu evidenciar o efeito ansiolítico
do CBD. Os resultados do SPECT evidenciaram um aumento de atividade no giro
para-hipocampal esquerdo e uma diminuição de atividade no complexo amígdala-
hipocampo esquerdo, estendendo-se até o hipotálamo e o córtex cingulado posterior
esquerdo. Esse padrão de atividade cerebral induzido pelo CBD é compatível com
uma atividade ansiolítica.

Posteriormente, foi usada ressonância magnética funcional (RMf), que permite a


aquisição de maior número de imagens com melhor resolução temporal e espacial.
O intuito era investigar os correlatos neurais dos efeitos ansiolíticos do CBD em
15 indivíduos saudáveis. Observou-se que o CBD (600mg) modula os padrões de
atividade cerebral enquanto os voluntários processam estímulos de reconhecimento
de faces intensamente amedrontadoras (fearful stimuli), atenuando respostas na
amígdala e no cíngulo anterior e posterior. Também verificaram que esse padrão
de atenuação se correlacionou diretamente com o efeito concomitante do CBD na
modulação das respostas de condutância da pele ao estímulo amedrontador. Os mesmos
autores demonstraram ainda que o CBD exerce esse efeito ansiolítico quando altera a
conectividade pré-frontal-subcortical via amígdala e cíngulo anterior.

O conjunto desses e de outros resultados demonstra que os efeitos modulatórios do


CBD, na ativação de áreas límbicas e paralímbicas, são consistentes com o efeito de
drogas ansiolíticas em pacientes com transtornos psiquiátricos e em pessoas saudáveis.
Do mesmo modo, tais achados sugerem que o CBD pode ter propriedades ansiolíticas
na ansiedade patológica.

47
Unidade I | Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC)

Efeito antipsicótico
Estudos em animais

Como um primeiro passo na investigação de uma possível ação antipsicótica, os efeitos do


CBD foram comparados aos do haloperidol, um antipsicótico típico, em modelos animais
habitualmente utilizados para investigar efeitos antipsicóticos de novos compostos.
Em ratos, foi observado que tanto o CBD (15-60mg/kg) como o haloperidol (0,25-
0,5mg/kg) diminuíram, de forma dose-dependente, os comportamentos estereotipados
induzidos pela apomorfina, tais como cheirar e morder repetitivamente. O haloperidol
apresentou efeito no teste da catalepsia (tempo de permanência com as patas dianteiras
apoiadas numa barra elevada), o que não ocorreu com o CBD, mesmo em doses muito
elevadas (480mg/kg). A indução de catalepsia em roedores por antipsicóticos típicos
correlaciona-se fortemente com a propensão que essas drogas possuem de provocar
sintomas de Parkinson em pacientes. Uma nova geração de antipsicóticos, os chamados
atípicos, tem baixa propensão a apresentar esses sintomas parkinsonianos. O CBD,
nesses três testes, apresentou um perfil de efeitos muito semelhante ao antipsicótico
atípico padrão; a clozapina.

Em outro experimento, estudaram-se os efeitos do CBD na hiperlocomoção induzida


pela anfetamina e cetamina em camundongos. Nesse estudo, os efeitos do CBD foram
comparados aos do haloperidol e da clozapina. Verificou-se que o CBD (15-60mg/
kg) inibiu a hiperlocomoção induzida pela anfetamina de forma dose-dependente,
concordando com os resultados obtidos com a apomorfina, uma droga agonista de
receptores de dopamina. Verificou-se também que o CBD inibiu a hiperlocomoção
induzida pela cetamina, o que estende a observação de um efeito típico de antipsicóticos
para um modelo baseado no glutamato. Tanto o haloperidol como a clozapina foram
capazes de inibir a hiperlocomoção nos dois modelos, como já era esperado. Entretanto,
o CBD e a clozapina não induziram a catalepsia, o que ocorreu com o haloperidol. Isso
reforça a sugestão de que o CBD possui um perfil compatível com um antipsicótico atípico.
Esses resultados foram posteriormente apoiados em estudo que apontou para padrões
semelhantes de ativação no sistema nervoso central entre o CBD e a clozapina, uma vez
que os dois compostos induziram a imunorreatividade Fos no córtex pré-frontal e não
no estriato dorsal, enquanto o haloperidol apresentou resultado inverso nas duas áreas.

Estudos em humanos

A utilização de modelos experimentais de psicopatologias em humanos pode fornecer


indicações importantes de efeitos terapêuticos de drogas, precedendo os ensaios
48
Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC) | Unidade I

clínicos com pacientes. Um dos modelos utilizados para avaliar um possível efeito
antipsicótico do CBD foi o da inversão da percepção de profundidade binocular
(Binocular depth inversion − BDI). Nesse modelo, o CBD diminuiu o prejuízo no relato de
imagens ilusórias produzido pela nabilona, um canabinoide sintético análogo ao
∆9-THC. Esse fato sugeriu um efeito semelhante ao dos antipsicóticos em pacientes
com esquizofrenia.

Atualmente, o uso de doses subanestésicas de cetamina tem sido proposto como


um dos melhores modelos experimentais para reproduzir estados psicóticos em
indivíduos saudáveis, pois exerce sua ação e funciona como antagonista de receptores
NMDA, e, em doses baixas, aumenta a liberação de glutamato, que pode agir em
receptores não NMDA. Nesse modelo, a droga desencadeia sintomas dissociativos,
positivos, negativos e cognitivos semelhantes àqueles característicos da esquizofrenia.
Esse modelo de sintomas psicóticos induzidos pela cetamina foi usado para comparar os
efeitos do CBD (600mg) com placebo, em 10 voluntários saudáveis, num procedimento
duplo-cego. Os voluntários foram submetidos a duas sessões experimentais, que
foram separadas por menos de uma semana. Os indivíduos receberam em cada sessão,
em ordem aleatória, CBD ou placebo. Verificamos que o CBD atenuou as elevações
produzidas pela cetamina nos escores totais de uma escala para sintomas dissociativos
(Clinician-Administered Dissociative States Scale − CADSS) e seus fatores, e que esse
efeito foi significativo para o fator despersonalização, o que reforça a hipótese de um
efeito antipsicótico do CBD. Do mesmo modo, esse possível efeito sobre sintomas
dissociativos também levanta a hipótese de um potencial terapêutico para condições
como transtorno de estresse pós-traumático, intoxicações pela Cannabis e alguns
transtornos de personalidade (Tabela 5).

Tabela 5. Possíveis indicações do canabidiol em psiquiatria.

Indicação Grau de evidência

Psicose
Esquizofrenia +++

Associada ao Parkinson ++

Induzida pela Cannabis ++

Associada à epilepsia ?

Alto risco para psicose/prodrômicos ?

Ansiedade

Saudáveis ++

49
Unidade I | Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC)

Indicação Grau de evidência

Induzida pela Cannabis ++

Transtorno de ansiedade social ++

Transtorno de estresse pós-traumático ?

Transtorno do pânico ?

Transtornos do humor

Transtorno afetivo (mania) -

Depressão +

Síndrome de abstinência

Cannabis ++

Heroína +

Tabaco ?

Outras drogas ?

Distúrbio do sono

Insônia ++

+++ forte evidência (ensaio clínicos controlados em humanos);


++ moderada evidência (estudos controlados agudos e/ou ensaios clínicos não
controlados em humanos);
+ alguma evidência (estudos em animais);
- ausência de evidência (estudo em humanos e/ou animais); e
? racional terapêutico.
Fonte: Crippa (2010).

Um recente estudo com RMf, conduzido em conjunto ao desafio farmacológico com


CBD e ∆9-THC, confirmou a ideia do potencial antipsicótico do CBD. Nesse estudo, os
autores verificaram que o ∆9-THC e o CBD apresentaram efeitos opostos na ativação
de diversas áreas cerebrais ao usar diferentes tarefas. Em um segundo experimento,
o pré-tratamento com o CBD foi capaz de prevenir a indução aguda de sintomas
psicóticos induzidos pelo ∆9-THC. Esse resultado é consistente com o achado de que
os sujeitos usuários de amostras de Cannabis, que contêm mais CBD em adição ao
∆9-THC, têm menor propensão de apresentar sintomas psicóticos do que aqueles que
fumam amostras de Cannabis sem CBD.

Com base nesses estudos, considerando as evidências de uma possível disfunção do


sistema canabinoide na esquizofrenia e as suas relações com os prejuízos típicos desse
transtorno, investigaram-se os efeitos do CBD na atenção seletiva e no padrão de
responsividade eletrodérmica a estímulos auditivos em pacientes com esquizofrenia.

50
Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC) | Unidade I

Vinte e oito pacientes foram avaliados por meio do Stroop Color Word Test (SCWT)
em duas sessões experimentais. Na primeira, não houve administração de drogas e,
na segunda, os pacientes foram divididos em três grupos que receberam dose única de
CBD 300mg, CBD 600mg ou placebo. Verificou-se que a administração aguda de CBD
em dose única não demonstrou ter efeitos benéficos sobre o desempenho de pacientes
com esquizofrenia no SCWT, embora esses dados não sejam suficientes para refutar
a hipótese de que a administração continuada de CBD possa resultar em melhora no
funcionamento cognitivo em esquizofrenia.

A ausência de efeitos tóxicos do CBD e as evidências pré-clínicas, em animais e humanos,


de um possível efeito ansiolítico e antipsicótico, tornaram aceitáveis, do ponto de vista
ético, os ensaios clínicos inicialmente abertos e com número restrito de pacientes
submetidos ao tratamento pelo CBD. Em 1995, pesquisadores relataram um estudo
de caso com uma paciente do sexo feminino, de 19 anos de idade, com diagnóstico
de esquizofrenia e que apresentava sérios efeitos colaterais com os antipsicóticos
tradicionais. Após internação integral, essa paciente permaneceu quatro dias sem
medicação e, em seguida, recebeu o CBD com aumento progressivo da dosagem,
até 1.500mg/dia, durante quatro semanas. Após esse período, o CBD foi substituído
por cápsulas com placebo, por quatro dias, e, em seguida, por haloperidol em doses
crescentes, até 12,5mg/dia. Os sintomas avaliados por meio da BPRS, tanto pelo
psiquiatra assistente quanto pelo avaliador cego, diminuíram acentuadamente com
o tratamento pelo CBD e pioraram com a suspensão da droga. Com o haloperidol,
os sintomas voltaram a diminuir, porém não ultrapassaram o efeito obtido com o
CBD. Como observado anteriormente, o CBD não produziu qualquer efeito adverso,
diferentemente do que ocorreu com o uso do haloperidol.

Posteriormente, ampliou-se o uso do CBD em mais três pacientes com diagnóstico de


esquizofrenia, do sexo masculino, com idades entre 22 e 23 anos e que eram refratários
ao tratamento com antipsicóticos clássicos. Todos os pacientes foram internados e
receberam placebo nos primeiros cinco dias de internação, CBD do 6º ao 35º dia, placebo
por mais cinco dias e, finalmente, olanzapina durante, pelo menos, 15 dias. A dose
inicial do CBD foi de 40mg/dia e foi aumentada até 1.280mg/dia. Os pacientes foram
acompanhados por um psiquiatra assistente, responsável pelo ajuste das doses, e por
dois psiquiatras cegos em relação às dosagens, os quais aplicaram a BPRS e uma escala
de efeitos adversos. Dois pacientes apresentaram uma discreta melhora com o CBD e o
outro não mostrou resposta alguma, mas todos tiveram tendência ao agravamento com
a suspensão da droga. Apenas um deles apresentou melhor resposta com a olanzapina
do que com o CBD. A melhora discreta apresentada por um dos pacientes e a ausência

51
Unidade I | Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC)

de resposta no outro pode estar relacionada ao fato de esses dois pacientes terem sido
considerados resistentes aos antipsicóticos, uma vez que um deles teve uma resposta
parcial, apenas com a clozapina, e o outro não respondeu a esse antipsicótico. Nenhum
dos pacientes apresentou efeitos adversos durante o uso do CBD.

Um recente ensaio clínico de quatro semanas, exploratório, duplo-cego, controlado, com


número adequado de pacientes, confirmou os resultados preliminares das propriedades
antipsicóticas do CBD descritos anteriormente. Nesse estudo, o CBD foi testado em
pacientes com diagnóstico de esquizofrenia ou transtorno esquizofreniforme (DSM-IV)
em episódio agudo e comparado com o antipsicótico amisulprida (antipsicótico atípico
com pequena propensão ao parkinsonismo). Quarenta e dois pacientes participaram do
estudo e ocorreu, nos dois tratamentos, redução significativa dos sintomas psicóticos
após duas e quatro semanas. Não foram observadas diferenças significativas entre
os grupos, porém o CBD induziu significantemente menos efeitos colaterais, como
extrapiramidais, aumento da prolactina e ganho de peso.

Os sintomas psicóticos são comuns em pacientes com doença de Parkinson (DP) e


o manejo dessa condição é considerado como um grande desafio para os clínicos.
Isso ocorre devido a vários fatores, tais como:

I. a redução da dose dos antiparkinsonianos geralmente provoca a piora dos


sintomas motores;

II. o uso adicional dos antipsicóticos convencionais pode piorar ainda mais o
quadro motor;

III. a clozapina, que é o antipsicótico atípico mais efetivo no manejo dessa


condição, pode causar efeitos colaterais inaceitáveis, especialmente
neurológicos e hematológicos.

Assim, devido à carência de intervenções farmacêuticas seguras e efetivas para


psicose na DP, e considerando a relevância de um possível efeito antipsicótico do
CBD, posteriormente foram avaliadas a eficácia, a segurança e a tolerabilidade desse
canabinoide em pacientes com DP e psicose.

Em um estudo piloto aberto, foi testada a administração de CBD em seis pacientes


ambulatoriais com o diagnóstico de DP e com sintomas psicóticos associados, o que
ocorreu durante, pelo menos, três meses. Os indivíduos receberam uma dose oral flexível
de CBD (começando com 150mg/dia) por quatro semanas, além de suas terapias usuais.
Tanto os sintomas psicóticos como motores foram reduzidos significativamente após

52
Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC) | Unidade I

o tratamento com o CBD e não houve piora dos sintomas cognitivos. Esses resultados
preliminares sugerem que o CBD pode ter um efeito benéfico na DP.

Efeito sedativo e sobre o sono

Um dos primeiros efeitos observados com o CBD foi sua ação sedativa. Observou-se
que esse canabinoide reduzia ambulação e comportamento operante em ratos.
Posteriormente, efeitos indutores e de aumento total do sono em ratos foram descritos.
Em um estudo, humanos voluntários, com queixa de insônia e sem outros distúrbios
físicos ou psiquiátricos, receberam CBD em três doses (40, 80 e 160mg), placebo
e nitrazepam (5mg). Cada tratamento foi realizado durante uma semana, em um
procedimento duplo-cego em ordem randomizada. Quando comparado ao placebo, o
CBD (160mg) aumentou significantemente o número de voluntários que mantiveram
o sono por sete ou mais horas. Consistente com esse achado, verificamos que vários dos
indivíduos incluídos no estudo do CBD, em pacientes com DP, descrito previamente,
relataram melhora da qualidade do sono, o que é considerado um problema comum
nesse transtorno do movimento.

Efeitos sedativos também foram consistentemente observados em voluntários saudáveis


e em pacientes com TAS, com o uso oral de altas doses de CBD (300mg a 600mg).
Num estudo realizado em voluntários saudáveis, no período da manhã, após pelo menos
seis horas de sono, foi verificado, por meio de escala analógica de autoavaliação, um
aumento significativo dos escores de sonolência, com a administração de dose única
de 300 e 600mg de CBD, comparado com placebo.

Entretanto, há descrições em animais e em humanos de que o CBD aumenta o alerta


e o despertar (wakefulness), provavelmente por meio de aumento da liberação de
dopamina. Esses achados aparentemente paradoxais em relação ao CBD no sono
podem ser explicados pelo fato de tais efeitos – assim como para a ansiedade – serem
bifásicos, pois exibem propriedades de alerta em doses baixas e ações sedativas em
doses mais altas.

Efeito antidepressivo e estabilizador do humor

Considerando-se que os efeitos ansiolíticos do CBD possam ser mediados pela ativação
dos receptores 5-HT1A e que essa modulação poderia induzir efeitos antidepressivos,
tal hipótese foi avaliada por meio do teste do nado forçado em camundongos.
Os autores verificaram que, assim como o antidepressivo padrão imipramina (30mg/
kg), o CBD (30mg/kg) diminuiu o tempo de imobilidade dos animais submetidos

53
Unidade I | Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC)

ao teste do nado forçado. Esses efeitos do CBD foram bloqueados pelo tratamento
prévio com um antagonista do receptor 5-HT1A, o que sugere, de fato, que o efeito
antidepressivo seja mediado pela ativação desses receptores.

Uma vez que o CBD demonstrou apresentar efeitos anticonvulsivantes, ansiolíticos,


antidepressivos e antipsicóticos similares aos atípicos, levantou-se a hipótese de que esse
canabinoide teria um perfil farmacológico similar a drogas estabilizadoras do humor.

Em paralelo a esse estudo com modelo animal de mania, investigou-se diretamente


a eficácia do CBD em dois pacientes com transtorno afetivo bipolar (TAB), os quais
apresentavam episódio de mania aguda. Ambos receberam placebo pelos primeiros
cinco dias de internação, CBD do 6º ao 30º dia, com dose inicial de 600mg, e alcançaram
1.200mg/dia. O primeiro paciente recebeu, entre o 6º e o 20º dia, olanzapina adjuvante
na dose de 10-15mg/dia. No 31º dia, o tratamento com CBD foi descontinuado e
trocado por placebo por mais cinco dias. Ele melhorou apenas no período no qual
estava usando CBD com o olanzapina, mas não demonstrou melhora adicional durante
monoterapia com CBD. O segundo paciente não apresentou nenhuma melhora dos
sintomas maníacos com nenhuma dose do CBD durante o estudo. Esse achado, somado
ao resultado negativo verificado no modelo animal de mania, sugere que o CBD não
seja efetivo para o tratamento de episódio maníaco no TAB.

Síndrome de abstinência de Cannabis

Dentre os diversos sintomas presentes na síndrome de abstinência de maconha, em


usuários crônicos, a ansiedade e a insônia constituem as principais manifestações, cujo
início tipicamente ocorre entre o segundo e o sexto dia. A magnitude e o tempo de
curso desses efeitos parecem ser comparáveis aos do tabaco e à síndrome de abstinência
induzida por outras drogas, o que comumente contribui para o desenvolvimento de
dependência e dificuldade na interrupção do uso.

Um recente estudo em ratos demonstrou que o CBD inibe o comportamento de busca


de heroína induzida por estímulo condicionado e normalizou os distúrbios neuronais
mesolímbicos associados. Assim, com base nesses achados, os quais foram associados
às propriedades previamente descritas do CBD para a ansiedade e para o sono, foram
investigados os efeitos desse canabinoide em uma paciente com dependência de Cannabis
e com história de episódios de síndrome de abstinência.

A paciente de 19 anos apresentava história de uso pesado e continuado de Cannabis


(quatro a oito cigarros ao dia) desde os 13 anos de idade. Negava uso concomitante

54
Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC) | Unidade I

ou dependência de qualquer outra droga, mas gastava praticamente todo o salário e


despendia enorme tempo e esforço para comprar maconha. Queixava-se de problemas de
memória, concentração e atenção, o que a atrapalhavam nos estudos e no desempenho
no trabalho. Ela havia tentado parar de usar a droga por, pelo menos, quatro vezes, mas,
sempre em torno do quarto ao sexto dia após a interrupção, apresentava dificuldade
para dormir, ansiedade, perda total do apetite, inquietação, cefaleia, irritabilidade,
pesadelos, sudorese, entre outros. A volta do uso da maconha levava à melhora imediata
dos sintomas. Nesse sentido, a paciente foi internada e recebeu, no primeiro dia,
300mg de CBD; do segundo ao 10º dia, 600mg/dia, dividido em duas tomadas; e no
11º dia, novamente 300mg. Não tomou nenhuma medicação no 12º dia e, logo após,
recebeu alta. Os níveis séricos das enzimas hepáticas e os níveis plasmáticos de CBD e
∆9-THC foram monitorados diariamente. Com o uso do CBD, a paciente não referiu
nenhum sintoma de abstinência de maconha em qualquer um dos itens avaliados por
meio da Marijuana Withdrawal Symptom Checklist e do Withdrawal Discomfort Score,
nem apresentou sintomas de ansiedade ou dissociativos avaliados pela Hamilton Anxiety
Scale (HAMA) e CADSS.

Muitas das possíveis indicações do CBD em psiquiatria e os respectivos graus de


evidência, de acordo com a medicina baseada em evidencias, são apresentadas na
Tabela 5.

Foi demonstrado, em resultados de um estudo duplo-cego com a nabilona (3mg/dia),


que pacientes com transtornos de ansiedade reduziram os sintomas após 28 dias de
tratamento. Em outro estudo cruzado e controlado por placebo, também verificaram
que o uso de nabilona (2-5mg/dia) reduzia sintomas em pacientes com transtornos
de ansiedade.

A mesma situação tem sido descrita em relação à depressão, uma vez que o ∆9-THC
pode induzir euforia em certas doses. Em pacientes com esclerose múltipla, esse
canabinoide demonstrou melhora do humor, provavelmente pela melhora da sensação
dolorosa que geralmente é acompanhada de sintomas depressivos. Em contraste com
as observações acima, em indivíduos vulneráveis a doses habituais, tem sido relatado
que o uso de altas doses de maconha pode provocar uma forma aguda e temporária
de ansiedade induzida, muitas vezes parecida com um ataque de pânico. Isso tem
sido consistentemente bem descrito em estudos experimentais em humanos e em
vários relatos de casos. Assim como para a maioria dos canabinoides, esses achados
paradoxais em relação ao ∆9-THC poderiam ser explicados pela observação de que os
seus efeitos sobre a ansiedade e o humor parecem ser dose-dependentes, com baixas

55
Unidade I | Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC)

a moderadas doses que demonstram propriedades ansiolíticas e euforizantes e doses


mais altas que são ansiogênicas. Além disso, parece que os diversos canabinoides (como
visto previamente com o CBD) apresentam individualmente propriedades distintas.

Um recente estudo testou os efeitos do ∆9-THC em pacientes com esquizofrenia.


Reconhecendo que agonistas canabinoides podem piorar sintomas psicóticos, por
questões éticas, os pacientes incluídos tinham história de autorrelato de benefícios com
o uso de Cannabis. Igualmente, foram considerados como casos graves e refratários
aos tratamentos disponíveis (inclusive clozapina), o que poderia tornar os supostos
efeitos benéficos superiores aos eventuais riscos. Os autores verificaram que o uso
oral de dronabinol (derivado sintético do ∆9-THC), na dose de 5-20mg/dia (de três
a oito semanas), em conjunto aos antipsicóticos que os pacientes estavam usando,
promoveu melhora clinicamente significativa de sintomas de esquizofrenia em
quatro de seis pacientes avaliados. Em três dos quatro pacientes que responderam,
os autores consideraram que a melhora foi decorrente da redução do conjunto de
sintomas psicóticos e não apenas um efeito calmante inespecífico. Assim, os resultados
dessa série de casos sugerem que agonistas CB1 podem causar efeitos opostos sobre
sintomas psicóticos em pacientes com esquizofrenia, o que também parece ser
verdadeiro para ansiedade, depressão e outras condições. Isso pode depender da
dose do canabinoide e de fatores genéticos e individuais que atualmente ainda não
são bem entendidos.

A terapêutica farmacológica para dependência de drogas pode ajudar no tratamento de


diversas maneiras. Uma abordagem é identificar medicamentos que possam atenuar
sintomas de abstinência, como substâncias agonistas/substitutas (por exemplo,
adesivos de nicotina para dependência de tabaco e metadona para dependência de
opiáceos). Assim, o dronabinol foi testado na dependência de Cannabis. Foi verificado
que, quando comparado ao placebo, o dronabinol, nas doses de 10 e 20mg, quatro
vezes/dia, diminuiu alguns dos efeitos subjetivos da Cannabis em usuários pesados da
droga, apesar de não ter tido impacto na autoadministração, provavelmente devido
a problemas no desenho e na composição da amostra estudada. Em estudo posterior,
compararam o dronabinol (10mg, cinco vezes/dia) ao placebo em usuários pesados
de Cannabis, os quais apresentavam sintomas de abstinência a essa droga. Os autores
verificaram que o dronabinol foi efetivo na redução de sintomas de abstinência e não
produziu efeitos subjetivos. Estudos posteriores confirmaram esses achados, com
doses baixas (10mg, três vezes/dia) e altas (30mg, três vezes/dia), em pacientes que
buscaram tratamento para dependência de Cannabis. Outros estudos confirmaram
tais resultados.

56
Cannabis medicinal em transtornos do Sistema Nervoso Central (SNC) | Unidade I

O ∆9-THC foi proposto, também, como hipnótico e, um análogo, o nabilone (0,5 e


1mg), que era administrado a pacientes com fibromialgia, antes que estes se deitassem,
mostrou-se efetivo em melhorar a qualidade de sono, a qual foi avaliada por escalas
de autoavaliação.

57
CANNABIS MEDICINAL
NA NEUROLOGIA UNIDADE II

CAPÍTULO 1
O potencial terapêutico dos
canabinoides para distúrbios
do movimento

Figura 16. O potencial terapêutico dos canabinoides.

Fonte: https://dailycbd.com/pt-br/condicoes/doenca-de-huntington/. Acesso em: 04 dez. 2020.

Como é do nosso conhecimento, há um interesse crescente no potencial terapêutico


da maconha (Cannabis) e de produtos químicos à base de canabinoides dentro da
comunidade médica, particularmente para condições neurológicas. Esse interesse é
impulsionado tanto por mudanças no status legal da Cannabis, em muitas áreas, quanto
pelo aumento da pesquisa sobre os papéis dos endocanabinoides no sistema nervoso
central e seu potencial como terapias sintomáticas e/ou neuroprotetoras.

A farmacologia da Cannabis é complexa e apresenta vários produtos químicos neuroativos


identificados até o momento. O sistema endocanabinoide modula a neurotransmissão
envolvida na função motora, particularmente dentro dos gânglios da base.
Pesquisas pré-clínicas em modelos animais de vários distúrbios do movimento

58
Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

mostraram evidências variáveis de benefícios sintomáticos, mas sugerem de forma


mais consistente os potenciais efeitos neuroprotetores em vários modelos animais de
Parkinson (DP) e doença de Huntington (DH). Observações clínicas e ensaios clínicos
de terapias baseadas em canabinoides sugerem um possível benefício dos canabinoides
para tiques. Os dados são insuficientes para tirar conclusões sobre HD, distonias
ou ataxias.

Nas últimas três décadas, os receptores canabinoides e os canabinoides produzidos


endogenamente (eCBs) foram descobertos em uma ampla gama de tecidos, incluindo
nervos periféricos e SNC. O sistema endocanabinoide (SEC) tem sido implicado
em uma ampla gama de funções fisiológicas, incluindo cognição, humor, controle
motor, comportamentos alimentares e dor. Consequentemente, as terapias à base de
canabinoides estão sendo estudadas para uma variedade de doenças. Medicamentos à
base de canabinoides, como nabilona, dronabinol e nabiximóis (Sativex®, conhecido como
Mevatyl® no Brasil) estão aprovados para indicações clínicas, incluindo dor, anorexia,
espasticidade e náusea induzida por quimioterapia. O CBD isolado (Epidiolex®) obteve
recentemente o status de medicamento órfão para a síndrome de Dravet.

A pesquisa pré-clínica sugere que os canabinoides têm potencial sintomático e


neuroprotetor para uma variedade de condições neurológicas, incluindo distúrbios do
movimento. O Subcomitê de Desenvolvimento de Diretrizes da Academia Americana de
Neurologia (AAN) avaliou sistematicamente as evidências clínicas publicadas e concluiu
que o extrato de Cannabis, utilizado via oral, é eficaz no tratamento de espasticidade
relacionada à esclerose múltipla (EM) e de dor central ou espasmos dolorosos.

Potencial neuroprotetor de canabinoides

Vários estudos em modelos animais de Parkinson e Huntington (DP e DH) sugerem que
as terapias baseadas em canabinoides podem atenuar a neurodegeneração. De fato, em 7
de outubro de 2003, a US Health and Human Services recebeu a patente US 6630507, que
lista o uso de canabinoides, encontrados na planta Cannabis sativa, em certas doenças
neurodegenerativas, como DP, doença de Alzheimer e demência causada pelo vírus da
imunodeficiência humana. Os canabinoides podem oferecer neuroproteção por meio de
mecanismos mediados por receptor e independentes de receptor. Os canabinoides são
capazes de reduzir o dano oxidativo e agem como eliminadores de espécies reativas de
oxigênio (ROS), além de aumentar as defesas antioxidantes endógenas. Essa propriedade
parece ser independente de CB1 e CB2, por modulação do receptor e restrito a certos
canabinoides, incluindo CBD, THC, canabinol, CP55,940 e o análogo de anandamida

59
Unidade II | Cannabis medicinal na neurologia

AM404. Os agonistas CB2 exercem efeitos anti-inflamatórios ao inibirem a microglia


reativa e a liberação de citocinas. Por fim, os agonistas CB1 reduzem a excitotoxicidade
ao suprimir a atividade glutamatérgica, o influxo subsequente de íons de cálcio e a
produção de óxido nítrico. No entanto, em um estudo, tanto um agonista CB1, THC,
e um antagonista CB1 seletivo e rimonabanto, exacerbaram lesões estriadas induzidas
por malonato.

Mal de Parkinson

Modelos experimentais de DP mostram aumento da atividade do SEC nos gânglios


da base, incluindo o aumento de CB1, níveis de mRNA, atividade de CB1, níveis de
anandamida e diminuição da depuração de canabinoides. Essas alterações parecem
estar associadas à supressão do movimento e podem ser revertidas pelo tratamento
crônico com levodopa. É importante ressaltar que muitos canabinoides demonstram
efeitos neuroprotetores em vários modelos de DP. Esses efeitos parecem ser
mediados por mecanismos independentes e dependentes do receptor CB, incluindo
efeitos antioxidantes, redução da ativação da microglia e modulação das interações
gliais-neurônios.

Os agonistas CB1 inibem a liberação de dopamina nos gânglios basais e espera-se que
sejam ineficazes no alívio dos sintomas motores da DP. De fato, foi demonstrado que
os agonistas CB1 exacerbam a bradicinesia em primatas lesionados por 1-metil-4-fenil-
1,2,3,6-tetra-hidropiridina (MPTP). No entanto, também foi relatado que os agonistas
CB1 melhoram as deficiências motoras, possivelmente por meio de mecanismos não
dopaminérgicos, incluindo interações com receptores A2A de adenosina. Estudos de
antagonistas CB1 são mais consistentes quanto à melhora dos sintomas motores sem
aumentar as discinesias. Esses efeitos parecem envolver mecanismos não dopaminérgicos,
incluindo liberação aumentada de glutamato estriatal, e podem ser maiores em animais
com degeneração nigroestriatal mais grave. As possíveis explicações para a variabilidade
terapêutica dos compostos baseados em CB incluem diferenças na gravidade da lesão,
no desenho do estudo, na dose e no gênero. Diferentes moduladores CB1 também
podem exibir seletividade funcional para diferentes proteínas G ou subpopulações de
receptores CB1; um fenômeno conhecido como agonismo tendencioso.

Embora os receptores CB1 e CB2 estejam diminuídos nos gânglios da base de animais
discinéticos, não se sabe se isso é compensatório ou causal. Estudos em animais
sugerem que as terapias baseadas em canabinoides podem melhorar a LID (discinesias
induzidas por levodopa) sem piorar o controle motor. Curiosamente, esses efeitos

60
Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

são relatados tanto para agonistas CB1 quanto antagonistas, embora esses efeitos
não sejam observados em todos os estudos e as doses mais elevadas de agonistas CB1
podem prejudicar a função motora. Isso sugere que os efeitos do agonista CB1 sobre
LID estão relacionados aos efeitos de supressão motora geral. Outros receptores CB
também podem estar envolvidos no LID, como URB597 (um inibidor FAAH que
aumenta os níveis de anandamida), o qual não afetou o LID como monoterapia, mas
melhorou o LID quando coadministrado com um antagonista de TRPV1. Tal fato
sugere que TRPV1 e CB1 podem ter efeitos opostos.

Em comparação com controles, os humanos com DP apresentam níveis elevados de


anandamida no líquido cefalorraquidiano e os cérebros autopsiados de pacientes com
DP apresentam expressão diminuída do mRNA CB1 nos gânglios da base. Não está
claro se essas discrepâncias refletem os efeitos da medicação, a regulação negativa do
aumento da atividade agonista ou as diferenças na gravidade da doença. Com relação
aos sintomas não motores, um estudo relatou que polimorfismos do gene do receptor
CB1 (CNR1) podem influenciar o risco de depressão em DP.

Figura 17. Dona Edna.

Fonte: https://sechat.com.br/sc-associacao-de-cannabis-medicinal/. Acesso em: 04 dez. 2020.

Dona Edna foi diagnosticada com Parkinson. Quando estava no auge da doença,
ela não conseguia mais conversar e não tinha coordenação motora. Faltava-lhe
forças até para segurar o telefone na mão. Ela fazia tratamento com remédios
convencionais, mas estes tinham pouco eficácia e os efeitos colaterais, como a
incontinência urinária, eram péssimos.

O neto de Edna conheceu o neurocirurgião Pedro Antonio Pierro Neto, por meio
da Santa Cannabis – Associação Brasileira de Cannabis Medicinal, que passou a
receitar o óleo de CBD e THC para o tratamento da senhora. Ela tomava as gotas,
via oral, de manhã, de tarde e de noite. A medicação começou a dar resultados
em menos de uma semana.

61
Unidade II | Cannabis medicinal na neurologia

Dona Edna conta que pintava tela, fazia crochê e era bastante ativa antes da
doença. O canabidiol possibilitou ela fizesse tudo novamente!

Segundo Pedro Pierro Neto, a Cannabis pode ser usada por pessoas de qualquer
idade, e para a maioria das doenças, desde que os tratamentos convencionais
não tenham apresentado resultado clínico satisfatório e que o óleo da Cannabis
medicinal seja permitido.

Doença de Huntington

Os modelos animais experimentais indicam que a DH está associada a reduções iniciais


e generalizadas no SEC, particularmente nos receptores CB1 no corpo estriado.
Os receptores CB1 medeiam a expressão do fator neurotrófico derivado do cérebro e a
perda do receptor CB1 está associada à exacerbação dos sintomas, à neuropatologia e à
patologia molecular no corpo estriado. Além disso, as terapias baseadas em canabinoides
geralmente mostram neuroproteção em vários modelos animais por meio de efeitos
mediados pelo receptor CB e independentes. Estudos terapêuticos de agentes à base de
canabinoides em modelos animais de HD sugerem que CB1 e os agonistas do receptor
endovaniloide e os inibidores da recaptação da anandamida são capazes de aliviar a
hipercinesia. É provável que esse potencial terapêutico seja realizado nas fases iniciais
da DH, devido à perda progressiva dos receptores CB1 em estágios avançados.

Distonia e tremor

Foi especulado que os agonistas CB1 reduzem a hiperatividade do globus pallidus interna
(GPi), melhoram a distonia e diminuem a recaptação de GABA. Em apoio a essa ideia,
o agonista de CB1 e CB2 WIN55,212-2 produz efeitos antidistônicos em um modelo de
distonia, em hamster mutante, aumenta a eficácia antidistônica dos benzodiazepínicos e
é revertido pelo rimonabanto, um antagonista CB1 seletivo. Modelos animais sugerem
que os canabinoides podem reduzir o tremor relacionado à esclerose múltipla, um
efeito que parece ser mediado seletivamente por receptores CB1.

Discussão e orientações para pesquisas futuras

Embora o número de estudos pré-clínicos de canabinoides para distúrbios do movimento


tenha aumentado rapidamente nas últimas três décadas, há lacunas marcantes em nosso
conhecimento sobre seus efeitos nas vias motoras. Existem também discrepâncias
marcantes e resultados conflitantes em estudos pré-clínicos, incluindo os efeitos precisos
dos canabinoides na neurotransmissão e nos mecanismos celulares de neuroproteção.
Além disso, precisam ser explicados o paradoxo de como agonistas e antagonistas CB1

62
Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

exercem efeitos semelhantes na LID e outros distúrbios hipercinéticos do movimento.


Estudos futuros devem abordar não apenas os efeitos motores e comportamentais dos
canabinoides, mas, por causa de seus efeitos comprovados no sistema sensorial, também
devem explorar seus efeitos na integração sensório-motora, que é um distúrbio cada
vez mais reconhecido como um aspecto dos distúrbios do movimento.

Vários fatores podem ajudar a explicar resultados pré-clínicos conflitantes.


Dado que os canabinoides interagem com uma ampla gama de alvos farmacológicos, as
discrepâncias nos dados obtidos em estudos pré-clínicos podem refletir parcialmente
a multiplicidade de ações dos canabinoides. A complexa localização de receptores
canabinoides em diferentes locais nos circuitos dos gânglios da base e a ampla gama de
formulações e doses usadas em estudos pré-clínicos e clínicos também podem ajudar
a explicar resultados contraditórios.

Uma mudança na classificação do Cronograma I para o Cronograma IV ou V não só


melhoraria o acesso à maconha medicinal, mas poderia facilitar o desenvolvimento
e a realização de testes clínicos para canabinoides. Futuros ensaios clínicos devem
ser alimentados de forma adequada, empregar metodologia apropriada e medidas
de resultados para o distúrbio de movimento específico estudado, além de avaliar a
adequação do cegamento. O conhecimento aprimorado sobre os canabinoides e a sua
farmacologia pode ajudar a identificar canabinoides ou combinações específicas que
proporcionem benefícios terapêuticos ou neuroprotetores a pacientes com distúrbios
do movimento.

63
CAPÍTULO 2
O uso da Cannabis em tratamento
de enxaqueca

Figura 18. Cannabis e o tratamento de enxaqueca.

Fonte: https://www.cannabisesaude.com.br/justica-maconha-enxaqueca-natal/. Acesso em: 04 dez. 2020.

A teoria da deficiência clínica de endocanabinoides (DCE) foi apresentada em 2001,


em duas publicações, mas explorada de forma mais completa no ano de 2004, em um
artigo que foi posteriormente citado com frequência na literatura. A teoria da DCE foi
baseada no conceito de que muitos distúrbios cerebrais estão associados a deficiências
de neurotransmissores e afetam acetilcolina na doença de Alzheimer, dopamina
nas síndromes parkinsonianas, serotonina e norepinefrina na depressão, e que uma
deficiência comparável nos níveis de endocanabinoides pode se manifestar de forma
semelhante a certos distúrbios que apresentam características clínicas previsíveis,
como sequelas dessa deficiência.

Todos os humanos possuem um tom de endocanabinoide subjacente que reflete os


níveis de anandamida (AEA) e 2-araquidonoilglicerol (2-AG), os endocanabinoides
de ação central, a sua síntese, o catabolismo e a densidade relativa dos receptores de
canabinoides no cérebro. Se a função endocanabinoide fosse diminuída, um limiar
de dor diminuído seria operativo, junto com distúrbios de digestão, humor e sono
entre os sistemas fisiológicos quase universais servidos pelo sistema endocanabinoide.
A teoria DCE também postula que tais deficiências podem surgir devido a razões
genéticas ou congênitas ou serem adquiridas devido a lesões intercorrentes ou doenças
que, consequentemente, produzem síndromes fisiopatológicas características com
sintomatologia particular.

64
Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

A maior evidência de DEC está presente para enxaqueca, fibromialgia e síndrome do


intestino irritável (SII). Um caso forte pode ser apresentado para unificar tendências
fisiopatológicas nas três condições:

» Todos os estados hiperálgicos manifestos devem ser diagnosticados


clinicamente com base em critérios subjetivos, pois não possuem patologia
tecidual característica ou achados laboratoriais objetivos facilmente acessíveis.
» Todos são diagnósticos de exclusão que costumam gerar extensas investigações
diagnósticas negativas.
» Eles exibem incidência elevada de ansiedade e depressão (em um dilema
do ovo e da galinha) e foram rotulados de origem psicossomática ou pior,
“diagnósticos lixo”, em um momento ou outro por médicos céticos.
» A comorbidade é bastante clara nos três diagnósticos. Cefaleias primárias
coocorreram em 97% de 201 pacientes com fibromialgia; 35,6% de 101
indivíduos com cefaleia diária crônica (enxaqueca transformada) também
se encaixam nos critérios clínicos de fibromialgia; e 31,6% dos indivíduos
com SII também foram diagnosticados com fibromialgia, enquanto 32% de
pacientes com fibromialgia também são aptos para SII.
» Embora alguns pacientes sofram de apenas uma dessas síndromes, o risco
de desenvolver outra ou todas as três é bastante comum ao longo da vida.

Uma extensa lista de outros distúrbios citados anteriormente, que podem se enquadrar
na rubrica DEC, incluiu insuficiência neonatal de crescimento, fibrose cística, causalgia,
plexopatia braquial, dor em membro fantasma, cólica infantil, glaucoma, dismenorreia,
hiperêmese gravídica, desperdício fetal inexplicável (abortos repetitivos), TEPT,
doença bipolar e possivelmente muitos outros. Todos apresentam características
fisiopatológicas ainda insondáveis e permanecem resistentes ao tratamento.

A enxaqueca é uma síndrome de cefaleia extremamente prevalente e que afeta 14%


dos americanos, com uma proporção de 3: 1 mulher: homem e custo anual de US$ 20
bilhões no país. A enxaqueca é muito mais complexa do que apenas uma dor craniana.
Tem predileção genética e predomínio feminino e se apresenta como cefaleia pulsátil
predominantemente hemicraniana associada a manifestações associadas incomuns,
como náusea, fotofobia e fonofobia, e desencadeadores hormonais e ambientais.

A possível relação da enxaqueca com o SEC é destacada por vários achados. A anandamida
produziu respostas no receptor de serotonina e consiste em 89% de potenciação de

65
Unidade II | Cannabis medicinal na neurologia

5-HT 1A e 36% de inibição de 5-HT 2A, achados estes que foram associados a perfis de
intervenções farmacológicas eficazes para a enxaqueca e que parecem apoiar a atividade
na enxaqueca aguda e crônica, respectivamente. Os epifenômenos da enxaqueca de
fotofobia e fonofobia sugerem uma hiperalgesia sensorial hiperativa, exatamente o tipo
de desequilíbrio homeostático que o SEC tende a corrigir no funcionamento do SNC.
A substância cinzenta periaquedutal é um possível gerador de enxaqueca no qual AEA
é tonicamente ativa e produz analgesia quando administrado ou hiperalgesia quando
CB1 é farmacologicamente bloqueado.

Uma grande quantidade de suporte adicional para o papel integral do SEC na


fisiopatologia da enxaqueca foi fornecida por uma série de investigações que ligam os
endocanabinoides ao sistema trigeminovascular, o qual muitos consideram estar na raiz
de sua fisiopatologia. O primeiro experimento resultou em vários achados pertinentes,
como AEA diminuiu a dilatação dos vasos sanguíneos na dura-máter induzida pelo
peptídeo relacionado ao gene da calcitonina (CGRP) 30%, capsaicina 45% e óxido
nítrico (NO) 40%. Além disso, a AEA agiu pré-sinápticamente para evitar a liberação
de NO, pelo CGRP, no músculo liso da artéria dural. AEA também foi liberada de
forma tônica e apresentou atividade modulatória no sistema trigeminovascular.

Um outro artigo enfocou fenômenos vasculares associados à enxaqueca. AEA causou


dilatação dos vasos durais dose-dependente e foi diminuída pela capsaicina, um
antagonista do TRPV1, e pelo CGRP, um antagonista do CGRP. Embora os efeitos
vasculares desse e do estudo anterior possam parecer contraditórios, deve-se notar
que a enxaqueca produz vasoconstrição ou vasodilatação em diferentes fases e que
eles são epifenômenos do distúrbio, e não sua etiologia. A concentração de AEA que
produziu os resultados foram muito mais elevadas do que o necessário para ativar o CB1.
Isso sugere a possibilidade de que a administração repetitiva com um agonista de TRPV1,
como o CBD, poderia concebivelmente dessensibilizar o receptor e, assim, aliviar esses
mecanismos fisiopatológicos, da mesma forma que a capsaicina reduziu com sucesso
a dor neuropática periférica com administração cutânea regular. A capsaicina já foi
utilizada por via intranasal como um tratamento para enxaqueca aguda e, portanto,
é razoável considerar o CBD como uma intervenção dessensibilizante alternativa e
menos nociva.

Uma terceira publicação examinou as respostas neuronais trigeminovasculares com


descobertas de que WIN 55.212-2, um potente agonista CB1, inibiu a atividade aferente
do complexo trigeminocervical A e da fibra C, que foi revogado por SR141716A, um
agonista inverso CB1. No entanto, esse achado só foi obtido com AEA após bloqueio

66
Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

prévio do TRPV1 pela capsazepina. Esses achados apoiam a possível aplicação clínica
dos agonistas CB1 na enxaqueca e na cefaleia em salvas, embora os autores tenham
alertado sobre efeitos psicoativos de agentes como o THC.

Em um modelo animal de enxaqueca, AEA reduziu a ativação neuronal induzida


por nitroglicerina no núcleo do trigêmeo caudal e na área postrema, sendo este
último um local com presença de quimiorreceptor emético. Houve também uma
indução da expressão do fator de transcrição gênica precoce imediato Fos nos núcleos
paraventriculares e supraópticos do hipotálamo, no núcleo parabraquial e na substância
cinzenta periaquedutal do tronco encefálico. Esses achados reforçam um papel importante
do SEC na geração de episódios de enxaqueca.

Vários estudos na Itália enfocaram a relação etiológica das plaquetas com a enxaqueca
em pacientes afetados. Em um dos estudos, o aumento da função no transportador de
membrana de AEA e da FAAH em plaquetas de mulheres com enxaqueca sem aura
foi observado em comparação com pacientes com tensão episódica e dor de cabeça ou
controles sem dores de cabeça. Curiosamente, não houve diferenças na densidade do
receptor CB1 nos grupos, mas a FAAH estava elevada nas plaquetas de quem sofre de
enxaqueca. A consequente diminuição dos níveis séricos de AEA poderia, teoricamente,
diminuir o limiar de dor em tais pacientes.

Em outro estudo, mulheres e homens com enxaqueca exibiram baixa atividade


plaquetária do transportador de membrana FAAH e AEA, o que se especula que
poderia ser uma possível resposta adaptativa à enxaqueca crônica ou uma reação ao
uso excessivo de analgésicos, o qual é conhecido como rebote analgésico. Um estudo
adicional mostrou que os níveis de 2-AG e AEA foram profundamente reduzidos nas
plaquetas de pacientes com enxaqueca episódica sem aura (N = 20) e EC (N = 20) versus
controles (N = 20) (p <0,0001).

Talvez, a evidência mais forte da existência de DEC na enxaqueca, ou em qualquer


distúrbio, venha de um estudo que analisou os níveis de AEA no líquido cefalorraquidiano
(LCR) de 15 pessoas com enxaqueca crônica versus 20 controles com uma diferença
estatisticamente significativa fenomenal (p <0,0001).

Níveis reduzidos de AEA no LCR de pacientes com EC sustentam a hipótese da falha


desse SEC na EC, que parece estar relacionada ao aumento da produção de CGRP
e NO nessa condição patológica. Esse achado pode ser devido a uma falha do papel
inibitório da AEA na ativação do sistema trigeminovascular.

67
Unidade II | Cannabis medicinal na neurologia

Um estudo clínico examinou 27 pacientes com cefaleia por uso excessivo de


medicamentos, um precipitante comum de exacerbação da enxaqueca. Antes do
tratamento, os pacientes exibiam limiares de somação temporal diminuídos, sensação
de dor aumentada e expressão de FAAH plaquetária reduzida (a enzima que decompõe
AEA) versus controles. Após o tratamento de retirada da medicação e a eliminação
dos efeitos rebote analgésicos, a atividade FAAH e os limiares de soma temporal
normalizaram significativamente (ambos p = 0,001), apoiando uma disfunção etiológica
do SEC nesses pacientes.

Em experimentos subsequentes em camundongos, a injeção intraperitoneal de


nitroglicerina induziu a hiperalgesia mecânica, que foi quase totalmente eliminada
pela deleção de FAAH ou administração de inibidores de FAAH (p <0,0001).

Dados de suporte adicionais sobre a relação enxaqueca-SEC são derivados da investigação


genética. O gene CB1, CNR1 mapeado no cromossomo 6q14-15, foi associado à enxaqueca
por meio de marcação haplotípica com alta significância (p = 0,008) e indicativo de
um efeito genético que altera a ativação trigeminovascular. A ligação mais forte foi
ao haplótipo HT6 (p = 0,002), que se correlacionou fortemente com os sintomas de
enxaqueca de fotofobia> náusea> deficiência.

Enxaquecas também mostraram maiores graus de neuroticismo (p <0,001), depressão


(p <0,001) e abuso de drogas/álcool (p<0,005). Ultimamente, muitas empresas
farmacêuticas têm buscado o desenvolvimento de anticorpos direcionados ao CGRP,
como um alvo terapêutico na profilaxia da enxaqueca, mas resta saber se isso representa
um alvo mais fundamental do que as estratégias com foco no SEC.

Até recentemente, apenas relatos de casos e pesquisas sobre o uso de THC e Cannabis
e seus efeitos sobre a enxaqueca foram publicados, mas um ensaio observacional mais
formal foi relatado em uma clínica voltada para a Cannabis, no estado do Colorado.
Entre 120 adultos com enxaqueca, para os quais a profilaxia de Cannabis foi recomendada,
e dos quais 67,8% dos participantes haviam usado Cannabis anteriormente, a frequência
da dor de cabeça diminuiu de 10,4 para 4,6 ataques por mês (p <0,0001). No geral,
85,1% relataram que a frequência da enxaqueca havia diminuído, com 39,7% relatando
efeitos positivos: prevenção ou redução da frequência da dor de cabeça (19,8%) ou
dor de cabeça abortada (11,6%) nessa população selecionada e não controlada. Foi
empregada uma mistura de técnicas de administração com conteúdo não analisado,
mas presumivelmente alta de THC.

68
Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

É importante lembrar que a Cannabis foi a base do tratamento da enxaqueca na Europa


e na América do Norte por um século, entre 1843 e 1943, o que apoia, de forma
semelhante, as alegações do alto grau de eficácia nos tratamentos agudos e profiláticos
da enxaqueca.

69
CAPÍTULO 3
Exploração terapêutica da Cannabis
na esclerose múltipla

Figura 19. Cannabis na esclerose múltipla.

Fonte: https://www.growroom.net/maconha-e-esclerose-multipla/. Acesso em: 05 dez. 2020.

A esclerose múltipla é a doença desmielinizante inflamatória mais comum do sistema


nervoso central. É causada por uma resposta autoimune contra a mielina, a qual,
eventualmente, leva à neurodegeneração progressiva e incapacidade. Embora o
conhecimento sobre seus mecanismos neurobiológicos subjacentes tenha melhorado
consideravelmente, ainda há uma necessidade não atendida de novas opções de
tratamento, especialmente para as formas progressivas da doença.

Dados pré-clínicos e clínicos sugerem que os canabinoides derivados da planta Cannabis


sativa podem ser usados para controlar sintomas como espasticidade e dor crônica,
enquanto apenas dados pré-clínicos indicam que esses compostos e suas contrapartes
endógenas, como os endocanabinoides, também podem exercer efeitos neuroprotetores
e retardar a progressão da doença.

Embora o sistema nervoso central (SNC) tenha sido considerado um local com
privilégios imunes, principalmente devido à presença da barreira hematoencefálica
(BBB), as atividades imunológicas ocorrem e são, às vezes, necessárias para a função
neuronal e a defesa do hospedeiro. Qualquer insulto do cérebro está associado à
inflamação aguda, caracterizada por ativação das células endoteliais, edema tecidual

70
Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

e liberação de mediadores inflamatórios, para eliminar o insulto e restaurar a função


cerebral.

No entanto, a neuroinflamação é amplamente considerada como um processo crônico


que envolve a ativação sustentada de células gliais residentes (microglia e astroglia) e
infiltração recorrente de leucócitos periféricos e mediadores inflamatórios solúveis.
Células microgliais, derivadas de precursores de monócitos mesenquimais do mesoderma
ou de precursores microgliais não hematopoiéticos no saco vitelino, os quais entram
no cérebro durante os estágios embrionários e fetais, são os sentinelas imunes do SNC.

As células microgliais são extremamente heterogêneas, porque podem existir em muitas


formas e estados de ativação diferentes, como neuroprotetor ou neurodestrutivo.
As células microgliais são críticas para o desenvolvimento e a vigilância do SNC,
moldam o fenótipo imunológico do cérebro e modulam criticamente a neuroinflamação.
Os astrócitos são, de longe, as células mais abundantes no SNC, pois regulam
virtualmente todos os processos fisiológicos, como formar fisicamente o BBB e dar
suporte nutricional à sustentação da renovação dos neurotransmissores, à plasticidade
sináptica e às funções imunes.

De fato, a ativação imune de astrócitos, em resposta a sinais liberados por neurônios


lesionados ou microglia ativada, leva à chamada astrogliose. Esta é uma característica
da neuroinflamação, que leva a cicatrizes gliais, as quais impedem a regeneração
axonal. Durante a neuroinflamação, células imunes inatas (monócitos/macrófagos
e células dendríticas) e adaptativas (linfócitos T e B) são persistentemente
recrutadas para o cérebro e liberam citocinas inflamatórias e quimiocinas que
exacerbam a neuroinflamação. Ainda, a neuroinflamação muitas vezes pode levar
à neurodegeneração, perda axonal e disfunção sináptica, e, portanto, é tipicamente
associada a vários distúrbios neurológicos, dos quais a esclerose múltipla (EM) é o
exemplo prototípico.

A EM é uma doença neurodegenerativa crônica progressiva, que afeta aproximadamente


2,3 milhões de pessoas em todo o mundo. É o distúrbio neurológico mais comum
em adultos jovens, sendo considerado uma doença autoimune na qual a inflamação
leva à desmielinização dos axônios no SNC. Embora a etiologia da EM ainda
seja desconhecida, acredita-se, quase por unanimidade, que os componentes
genéticos e ambientais desempenham um papel central no início e no desenvolvimento
da doença.

71
Unidade II | Cannabis medicinal na neurologia

A taxa de prevalência de esclerose múltipla entre mulheres e homens (2,3–3,5: 1)


aumentou acentuadamente nas últimas décadas e esse rápido aumento provavelmente
reflete uma resposta diferencial de gênero às mudanças não identificadas no
ambiente ou na nutrição. A EM é caracterizada por uma série de ataques agudos
episódicos (referidos como recidivas) e remissões, mas gradualmente leva à
neurodegeneração progressiva e à deterioração da função neurológica sem remissão
adicional.

Embora os diferentes cursos clínicos da EM (também chamados de “tipos” ou


“fenótipos”) tenham sido definidos em 1996, o Comitê Consultivo Internacional
para Ensaios Clínicos da EM, com base em avanços no entendimento do processo
da doença na tecnologia da EM e RM, classificou a EM em apenas quatro subtipos
independentes:

» Recaída remissão (RR) – Definida por recaídas imprevisíveis, com recuperação


completa ou com sequelas.
» Primário progressivo (PP) – Progride continuamente desde o início sem
ataques.
» Progressivo secundário (SP) – Segue o RR inicial e depois progride com
declínio sem remissões.
» Recaída progressiva (PR) – Caracterizada por um início de declínio constante
com ataques sobrepostos.

O RR-MS é a forma mais prevalente e responde por aproximadamente 85% de todos


os casos. No entanto, o Comitê também reconheceu a síndrome clinicamente isolada
(CIS) como um primeiro episódio de sintomas neurológicos causados ​​por inflamação
e desmielinização, que deve durar, pelo menos, 214 horas. É característico da EM,
embora ainda não atenda aos critérios para diagnóstico, pois pacientes com CEI podem
não desenvolver EM.

A patogênese e a fisiopatologia da EM têm sido extensivamente estudadas, especialmente


na encefalomielite autoimune experimental (EAE) e acredita-se que envolva inicialmente
a perturbação do sistema imunológico e das células produtoras de mielina central.
No curso da EM, o dano ao BBB e a superativação das micróglias cerebrais levam a
uma infiltração substancial de linfócitos autorreativos. Desse modo, causam a morte
de oligodendrócitos e danos axonais e, finalmente, resultam em desmielinização,
alteração sináptica e perda neuronal (Figura 20).

72
Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

Figura 20. Imunopatogênese da EM.

tecido linfoide periférico Sangue circulante BBB Sistema Nervoso Central

B cell

Células plasmáticas

T cell
B cell Dendrito
s Neurônio
Astrocito

CD8 CD8
Th1

Th17 Th1

T cell

Th17
Citocinas
Quimiocinas
Microglia
Antígenos
Anticorpos

Danificar Monócito Macrófago Oligodendrócito

Fonte: Maccarrone et al. (2018).

A Figura 20 retrata que as lesões na barreira hematoencefálica (BBB) e/ou hiperativação


de células microgliais cerebrais levam a uma infiltração maciça no sistema nervoso
central de células T autorreativas (células T CD8 e CD4 auxiliares), células B e células
apresentadoras de antígenos (APCs)), incluindo monócitos/macrófagos.

No cérebro, as células T e os monócitos/macrófagos liberam citocinas e quimiocinas,


que danificam as células oligodendrogliais e, portanto, a bainha de mielina.
Concomitantemente, as células B (células plasmáticas) produzem anticorpos específicos
para a mielina, que formam complexos de ataque à membrana e danificam ainda mais
a bainha de mielina. Esses processos também levam a uma superativação de microglia
e astrócitos, que potencializam ainda mais a resposta inflamatória.

Embora a hipótese de neuroinflamação imunomediada domine a pesquisa da EM há mais


de 50 anos, evidências recentes parecem apontar para um processo neurodegenerativo
de microglia, segundo o qual a EM é primariamente uma doença neurodegenerativa
que começa no cérebro e depois se desenvolve por causa de inflamação. Isso levou aos
atuais modelos “de dentro para fora” e “de fora para dentro” da imunopatogênese da
EM. No primeiro modelo, a resposta imune, que destrói a mielina e leva à quebra da
BBB, é impulsionada por uma disfunção das células cerebrais, enquanto, no segundo
modelo, uma disfunção que reside na periferia leva a danos no BBB, ruptura da mielina
e morte axonal.
73
Unidade II | Cannabis medicinal na neurologia

Os ataques mediados pelo sistema imunológico são dirigidos principalmente por células
de imunidade adaptativa, ou seja, células T CD8 e CD4 autorreativas e específicas
de mielina (T-helper 1 e T-helper 17), com uma importante contribuição das células
B, que produzem altos níveis de autoanticorpos e que recentemente demonstraram
contribuir para a neurodegeneração e desmielinização cortical, especialmente para
folículos ectópicos meníngeos de células B.

Durante esses ataques, a bainha de mielina é danificada, o que prejudica a condução axonal
e a comunicação correta entre diferentes partes do sistema nervoso. Esses processos
são sustentados por um recrutamento subsequente de células da imunidade inata da
periferia, que amplificam ainda mais a ativação de células T patogênicas e a destruição
de neurônios e oligodendrócitos. Além disso, há uma ativação permanente de micróglias
e astrócitos residentes que potencializam ainda mais a resposta neuroinflamatória por
meio da produção de mediadores pró-inflamatórios (Figura 20).

Os oligodendrócitos são responsáveis pela produção de mielina e geram nova mielina


em um processo denominado remielinização, principalmente nas fases iniciais da
doença. A remielinização é um dos motivos pelos quais os sintomas tendem a diminuir
ou desaparecer temporariamente na EM-RR.

No entanto, os oligodendrócitos são incapazes de reconstruir completamente a bainha


de mielina, e ataques repetidos levam a uma remielinização menos eficaz, até que placas
semelhantes a cicatrizes (esclerose) se acumulem ao redor dos axônios danificados com
subsequente perda axonal. Essas cicatrizes, geralmente mais de 10, conforme visualizadas
por ressonância magnética (RM), determinam uma ampla gama de sintomas, incluindo
incapacidade física, fadiga e comprometimento cognitivo.

Aproximadamente 10 anos após o início da doença, recidivas e remissões frequentes


dão ritmo a um agravamento clínico progressivo. Essa evolução de remitente recorrente
para formas progressivas de EM certamente envolve a perda de oligodendroglia e
neurônios, o que ocorre, provavelmente, devido a vários eventos simultâneos, incluindo:

» interrupção da tolerância imunológica periférica e uma mudança subsequente


para a imunidade inata (as placas contêm mais monócitos/macrófagos e
células dendríticas e menos células T em doenças crônicas);
» redução das habilidades neurotróficas dos astrócitos nos neurônios;

» aumento da perda de células precursoras de oligodendrócitos; e

» efeitos tóxicos nos axônios.

74
Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

De qualquer forma, todos esses efeitos nocivos parecem estar causando atrofia
generalizada, cortical e subcortical da substância cinzenta desde os estágios iniciais
da doença, conforme observado por RM e análise de amostras de pacientes com EM
post mortem. A neurodegeneração leva à incapacidade permanente e crescente, com
espasticidade e dor como características importantes da doença.

As terapias atuais para a EM concentram-se na prevenção de recidivas no estágio


inicial, interrompendo principalmente os ataques imunes com medicamentos que
inibem diretamente a ativação celular e a liberação de mediadores inflamatórios ou
que impedem o recrutamento de leucócitos no SNC. No entanto, quase nenhum
medicamento que previna ou desacelere a ocorrência de neurodegeneração e progressão
da doença ainda está disponível, com exceção do anticorpo monoclonal humanizado
recentemente aprovado, Ocrelizumab (Ocrevuz®), para pacientes com EM primária
progressiva.

A aprovação de Sativex (Sativex®), uma mistura 1:1 de Δ9-tetra-hidrocanabinol (THC)


e canabidiol (CBD), ambos isolados de Cannabis sativa, para tratar espasticidade
induzida por MS, foi recentemente obtida em vários países. Como dados pré-clínicos
mostram que os canabinoides também exercem propriedades anti-inflamatórias
e efeitos neuroprotetores, é hipotetizado que essas substâncias possam limitar a
neurodegeneração progressiva na EM.

Portanto, aqui, revisaremos o papel dos canabinoides e suas contrapartes endógenas


(isto é, os endocanabinoides; eCBs) na EM, seu modo de ação e significado pré-clínico
e clínico, além de como sua modulação farmacológica pode ser útil para o tratamento
de outras doenças neuroinflamatórias.

Exploração terapêutica do sistema


endocanabinoide na esclerose múltipla
Estabelecer se um medicamento está pronto para ensaios clínicos (a chamada mudança
do banco para o leito) envolve extensos estudos pré-clínicos, que produzem informações
preliminares sobre eficácia, farmacocinética, segurança e toxicologia. O ponto de
partida de tais estudos é frequentemente a evidência de uma alteração significativa da
atividade ou expressão de um determinado alvo molecular (geralmente uma proteína)
em modelos de doenças ou em pacientes afetados in vitro (experimento e análise
realizados fora de um organismo vivo) ou ex vivo (experimento realizado dentro e
análise realizada fora de um organismo vivo).

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Unidade II | Cannabis medicinal na neurologia

Nessa linha, as evidências ex vivo acumuladas mostraram uma grande alteração dos
CB1 e CB2 em vários modelos experimentais de EM e em pacientes afetados por
diferentes formas clínicas da doença. Essa observação sugere fortemente um papel
funcional dos receptores canabinoides na patologia da EM e estimulou estudos
pré-clínicos direcionados a modular sua atividade pela administração in vivo de
canabinoides vegetais, agonistas ou antagonistas sintéticos.

O primeiro estudo pré-clínico demonstrou uma melhora no tremor e na espasticidade


em camundongos que sofrem de EAE recorrente após tratamento in vivo com THC,
metanandamida (um análogo da AEA estável e não hidrolizável) e agonistas sintéticos
CB1 ou CB2. Antagonistas seletivos de CB1 ou CB2 inibiram esses efeitos, indicando
que o sistema eCB pode participar do controle da EM.

Além do manejo dos sintomas, os canabinoides também conferiram neuroproteção via


CB1, retardando o processo neurodegenerativo que eventualmente leva à incapacidade
crônica. Além disso, causaram melhora da progressão dos sintomas, que foi mediada
por imunossupressão e promoveram remielinização também em um modelo viral de
EM. Essa neuroproteção mediada pelo receptor de CB e a interferência na progressão da
EM foram paralelizadas pela regulação negativa das moléculas de adesão e subsequente
inibição da infiltração de linfócitos T e respostas microgliais, bem como pela restauração
da autotolerância antígena da mielina.

A ativação seletiva de CB2 em células T autorreativas foi crucial para controlar a


inflamação no EAE, reduzindo a diferenciação altamente patogênica do auxiliar T17
e o acúmulo de células imunes no SNC, incluindo macrófagos/microglia ativados.
Em linha, a ativação seletiva de CB2, em linfócitos T isolados de pacientes com EM,
inibiu a proliferação celular e as respostas imunes sem induzir a morte celular.

O envolvimento dos receptores CB foi confirmado não apenas pela modulação


farmacológica de sua atividade, mas também por sua deleção genética.

Esse cenário sugeriu que a ativação do CB2 nas células T, causada por eCBs, foi
suficiente para controlar a inflamação autoimune e possivelmente para retardar a
progressão da doença. Esses estudos indicam o envolvimento de CB1 e CB2 na eficácia
terapêutica da modulação do sistema eCB. Eles também sugerem um papel diferencial
desempenhado por esses dois subtipos de receptores, em que o controle da espasticidade
é principalmente mediado pelo CB1, enquanto o CB2 parece modular respostas imunes
hiperativas e exacerbadas.

76
Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

Da mesma forma que CB1 e CB2, as enzimas metabólicas dos eCBs foram
significativamente alteradas em ambos os pacientes com EM e em modelos animais da
doença. Essas alterações dos eCBs e de seu metabolismo ainda são um tanto controversas,
provavelmente devido a diferentes modelos experimentais utilizados e variações no
recrutamento e na estratificação dos pacientes com EM. Apesar dessas controvérsias,
o papel anti-inflamatório e neuroprotetor dos eCBs é amplamente documentado em
experimentos in vivo e ex vivo, em células obtidas de modelos experimentais de EM
ou de pacientes com EM autênticos.
A administração exógena de eCBs melhorou o controle da espasticidade e protegeram
os neurônios contra danos inflamatórios, possivelmente envolvendo os receptores CB
nas células microgliais. Além disso, a inibição da captação endógena de AEA e de sua
degradação pela FAAH demonstrou melhora dos sintomas motores. Essa melhora foi
associada a respostas inflamatórias reduzidas na medula espinhal, juntamente com a
regulação negativa da função dos macrófagos e das microglias.
Em um modelo de EM induzido por vírus, a AEA inibiu a ativação microglial e diminuiu
a interleucina (IL)-23 e a liberação de IL-12, IL-1β e IL-6. A inibição das duas últimas
citocinas pró-inflamatórias foi mediada por um mecanismo que envolve a recuperação
de CB2 pelo receptor da interação entre CD200 (expresso em neurônios) e seu receptor
(expresso em macrófagos/microglia). Essa interação parece ser interrompida na
EM, expondo os neurônios à neurotoxicidade, induzida por macrófagos/microglia e
liberação de citocinas.
Recentemente, foi demonstrado que o papel anti-inflamatório da AEA na EM é
específico para o tipo celular, uma vez que inibe a produção de citocinas apenas no
mieloide de células dendríticas. Em vez disso, as células dendríticas plasmocitoides
não responderam à AEA devido a uma significativa regulação positiva da FAAH em
comparação com indivíduos saudáveis.
Curiosamente, a inibição crônica e a longo prazo da FAAH (via ablação genética)
resultou em remissão clínica e melhorou o resultado a longo prazo em camundongos
EAE. Além disso, a fase aguda da EM foi melhorada pelo aumento dos níveis de
2-AG, que inibiam a espasticidade quando administrados a 10 mg/kg e causavam um
atraso no início de modelos de EAE agudos e crônicos quando administrados por via
intraperitoneal a 100 μg. O último efeito foi provavelmente mediado pelo recrutamento
de macrófagos anti-inflamatórios.
Com base nessas ações neuroprotetoras mediadas por eCB, inibidores seletivos de
FAAH e MAGL, que degradam AEA e 2-AG, respectivamente, foram utilizados in
77
Unidade II | Cannabis medicinal na neurologia

vivo para aumentar o tônus ​​e, assim, potencializar os efeitos desses eCBs. O bloqueio
da degradação da AEA, por vários inibidores potentes e seletivos da FAAH, foi de
fato capaz de controlar a espasticidade em camundongos Biozzi ABH; outro modelo
de camundongo da EM que reproduz tanto o curso recorrente-remitente quanto os
aspectos neurológicos progressivos secundários. Da mesma forma, os inibidores da
MAGL controlaram a espasticidade e preservaram a integridade da mielina, de modo
que suprimiram a excitotoxicidade dos oligodendrócitos e a ativação microglial, além
de retardarem a progressão clínica da EAE.

Vários estudos pré-clínicos mostraram recentemente que a sinalização do eCB controla


a sinaptopatia, que é outra característica da EM e da neuroinflamação. A perda do
controle homeostático da neurotransmissão e subsequente disfunção da sinapse é
profundamente afetada pela inflamação. Sinapses excitatórias (glutamatérgicas) e
inibitórias (GABAérgicas) são locais privilegiados de ação para os eCBs e agem em
conjunto com citocinas pró-inflamatórias (em particular IL-1β e fator de necrose
tumoral-α , TNF-α).

A neuroinflamação desequilibra a transmissão sináptica em direção à excitação, que


resulta em neurodegeneração excitotóxica, e a ativação do CB1 diminui os efeitos
intensificadores do TNF-αna expressão e função dos receptores pós-sinápticos de
glutamato e reduz a frequência de correntes sinápticas espontâneas mediadas por
glutamato em neurônios estriatais, contrastando assim os efeitos da IL-1β na liberação
de glutamato dos terminais nervosos pré-sinápticos.

Nesse contexto, a deleção genética de CB1, em neurônios glutamatérgicos ou


GABAérgicos de camundongos EAE, forneceu uma demonstração conclusiva de que
subconjuntos distintos desses receptores estão envolvidos na modulação da exacerbação
pós-sináptica mediada por TNF-α

Além disso, a IL-1β inibe as sinapses de GABA e esse efeito contribui ainda mais para
o dano excitotóxico dos neurônios durante EAE e MS. De acordo com seu papel
homeostático nos distúrbios neuroinflamatórios, o CB1, nos terminais nervosos
GABAérgicos, é regulado de maneira seletiva no estriado de camundongos EAE, de
modo que os níveis aumentados de eCB, nesses animais, apenas reduzem a transmissão
excitatória sem afetar a sinalização GABA.

Por outro lado, a AEA também pode se ligar ao canal de íons vaniloide potencial
1 do receptor transitório (TRPV1), cuja ativação pode impactar negativamente a
sobrevivência neuronal. O TRPV1 também modula os efeitos sinápticos do TNF-α e

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Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

da IL-1β, dificultando os déficits sinápticos exercidos pelo TNF-α na fase de pico do


EAE e, nos estágios crônicos, melhora os defeitos GABAérgicos induzidos por IL-1β.
Esses dados sugerem que os efeitos aversivos ou protetores do TRPV1, nos neurônios
da EM, são estritamente dependentes do ambiente inflamatório.

Embora ainda não esteja claro qual é o principal tipo de célula que responde à inflamação
central por meio da liberação do eCB, as células precursoras neurais parecem boas
candidatas, porque respondem a estímulos inflamatórios e a receptores TRPV1
sensibilizados. Ademais, limitam a sináptica inflamatória dos danos causados pela
liberação do AEA. Os mecanismos pelos quais esses elementos do sistema eCB modulam
as perturbações pré-sinápticas e pós-sinápticas induzidas pela inflamação são mostrados
na figura a seguir:

Figura 21. Perturbações pré-sinápticas e pós-sinápticas mediadas por citocinas pró-inflamatórias.

Glutamato Receptor AMPA

GABA Receptor GABAA

Terminal IL-1β Receptor IL-1β


Glutaminérgico
TNF Receptor TNF

TRPV1

Receptor CB1

Mitocôndria

Terminal
GABAérgico

Site

pós-sináptico

sEPSC

sIPSC

Fonte: Maccarrone et al. (2018).

A Figura 21 nos mostra um esquema geral das perturbações pré-sinápticas e


pós-sinápticas mediadas por citocinas pró-inflamatórias e moduladas pelo sistema

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Unidade II | Cannabis medicinal na neurologia

eCB no EAE. A IL-1β aumenta a liberação de glutamato nos terminais pré-sinápticos


e o TNF induz a regulação positiva do receptor de AMPA, resultando em uma
transmissão aprimorada de glutamato. O CB1 contrasta os efeitos da IL-1β ao reduzir a
frequência das correntes sinápticas espontâneas mediadas pelo glutamato nos terminais
pré-sinápticos; por outro lado, o TRPV1 é permissivo para os efeitos sinápticos da
IL-1β na transmissão do glutamato.

No site pós-sináptico, ambos os CB1 e TRPV1 restringem a potenciação mediada por


TNF no receptor AMPA pós-sináptico. Além disso, a IL-1β promove a inibição da
função CB1 nas sinapses GABAérgicas, mitigando a redução da liberação de GABA.
Ainda, a IL-1β reduz a função do receptor GABAA pós-sináptico e proporciona a
diminuição da sinalização de GABA. Finalmente, os canais TRPV1 são permissivos
para efeitos sinápticos de IL-1β nos locais pré e pós-sinápticos.

Tomados em conjunto, os dados pré-clínicos sugerem fortemente que a modulação do


sistema eCB está ativamente envolvida não apenas no gerenciamento dos sintomas, mas
também na neuroproteção e supressão da inflamação. Essas observações estão gerando
considerável entusiasmo, pois trazem os medicamentos à base de canabinoides/eCB à
prática clínica para o tratamento das formas de EM recorrente-remitente e progressiva.

Um apoio adicional a essa perspectiva também vem da demonstração experimental de


que os canabinoides derivados de plantas limitam a neurodegeneração induzida por
inflamação, que impulsiona a incapacidade progressiva durante EAE. Por exemplo,
em dois modelos murinos diferentes de EM, o Sativex diminuiu a progressão da EM,
melhorou a atividade motora, reduziu os infiltrados no SNC e a atividade microglial,
além de promover o reparo da mielina e melhorar os déficits neurológicos e infiltrados
celulares dentro do CNS.

Esse efeito foi atribuído à ativação do THC dos receptores CB1 e não ao CBD no modelo
EAE, enquanto, no modelo viral, tanto o THC quanto o CBD foram eficazes. No entanto,
o CBD, canabinoide desprovido de atividade psicoativa e potencialmente seguro,
também foi investigado como uma alternativa eficaz para aliviar a neuroinflamação
e a neurodegeneração.

O CBD melhora os sintomas clínicos da EAE e reduz o dano axonal e a inflamação,


bem como a ativação microglial, o recrutamento de linfócitos T na medula espinhal
e a proteção das células progenitoras dos oligodendrócitos da apoptose induzida
por neuroinflamação. Essas ações anti-inflamatórias e neuroprotetoras do CBD são
duradouras, neutralizam a apoptose neuronal e interagem antagonisticamente com

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Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

a AESP (outro composto não psicotrópico) na proteção contra a neurodegeneração


e neuroinflamação.

Provavelmente, isso se deve a uma conversa cruzada entre a via PI3K / Akt / mTOR
induzida pelo CBD e à regulação positiva do PPARγ de ligação à PEA. Os efeitos mais
reconhecidos do CBD são os imunorreguladores:

» suprimindo respostas pró-inflamatórias de Th17;

» promovendo a exaustão/tolerância das células T;

» melhorando os programas antiproliferativos dependentes de IFN;

» dificultando a apresentação de antígenos; e

» induzindo meio antioxidante que resolve a inflamação.

Sinalização e CB de modelos pré-clínicos de EM


para aplicações clínicas
Uma grande quantidade de estudos pré-clínicos demonstrou, de forma convincente,
o papel neuroprotetor, neuromodulador e imunomodulador de canabinoides e eCBs,
e sua capacidade de aliviar sintomas e anormalidades comportamentais em modelos
de doenças neurológicas. Várias preparações canabinoides também foram examinadas
em estudos clínicos para avaliar sua eficácia em humanos.

Assim, preparações farmacêuticas distintas de agentes canabinoides foram ou estão


sendo testadas em inúmeras doenças humanas e, além do mencionado Sativex® e CBD,
incluem canabinoides naturais ou fitocanabinoides, como Bedrocan® (19% THC, <1%
CBD da Cannabis sativa), Bedrobinol® (12% THC, <1% CBD da Cannabis sativa), Bediol®
(6% THC, 7,5% de CBD da Cannabis sativa), Bedica® (14% THC, <1% CBD da Cannabis
indica), Bedrolite® (19% THC, <1% CBD da Cannabis sativa) e Bedropuur® (20–24% THC,
<1% de CBD da Cannabis indica).

Além disso, canabinoides sintéticos, como o Dronabinol (Marinol®, um THC sintético),


Nabilone (Cesamet®, um análogo de THC) e Levonantradol (um análogo sintético de
Dronabinol), estão sendo utilizados em seres humanos. Essas preparações podem ser
tomadas puras, misturadas com alimentos, transformadas em chá, administradas de
maneira sublingual ou tópica, ou, ainda, podem ser fumadas ou inaladas. No entanto,
essas formulações são extremamente heterogêneas por natureza, o que torna os

81
Unidade II | Cannabis medicinal na neurologia

resultados dos estudos clínicos incomparáveis e​​ contribui para evidências inconclusivas
da eficácia do canabinoide na maioria dos estudos clínicos.

Uma revisão sistemática publicada recentemente analisou os resultados de segurança e


eficácia de ensaios clínicos randomizados, os quais compararam canabinoides a placebo
em três distúrbios neurológicos (EM, epilepsia e distúrbios do movimento) e foram
publicados nos 50 anos anteriores (intervalo de 1948 a 2013). De acordo com o método
da Academia Americana de Neurologia, a evidência de qualidade foi classificada como
A (estabelecida com forte evidência como eficaz, ineficaz ou prejudicial, apoiada por
dois estudos de Classe I); B (estabelecida com evidência moderada como provavelmente
eficaz, ineficaz ou prejudicial, apoiada por um estudo de classe I); C (estabelecida com
evidências fracas como possivelmente eficazes, ineficazes ou prejudiciais, apoiada por
um estudo de classe II); ou U (dados insuficientes, inadequados ou conflitantes para
serem determinados). Essa abordagem de análise bastante rigorosa mostrou que a
evidência de eficácia dos estudos publicados é geralmente fraca, em condições clínicas
que não sejam espasticidade associada à EM e dor neuropática e no caso de preparações
que não sejam nabiximóis.

Conforme relatado em outra revisão sistemática e sob metanálise recente e rigorosa,


considerando dez condições clínicas diversas, os medicamentos à base de Cannabis foram
geralmente considerados eficazes para a maioria dos resultados clínicos explorados.
Na metanálise apresentada, apenas estudos randomizados comparando preparações
de canabinoides sem tratamento, placebo ou tratamento padrão foram considerados
e estudos clínicos não randomizados foram considerados apenas se incluíram, no
mínimo, 25 pacientes.

A depressão foi a única condição clínica em que o placebo foi relatado como mais
eficaz que os nabiximóis, em três estudos clínicos. Contudo, os medicamentos à base
de Cannabis foram confirmados como sendo mais eficazes que o placebo nos resultados
primários dos estudos selecionados em condições como espasticidade devido a múltiplas
escleroses ou paraplegia, dor neuropática, dor de câncer, anorexia secundária ao HIV/
AIDS, náusea e vômito devido à quimioterapia, distúrbios do sono, ansiedade, psicose
e síndrome de Tourette.

Apesar das limitações e da baixa qualidade da maioria dos ensaios clínicos, os resultados
positivos de alguns estudos clínicos rigorosamente conduzidos e os efeitos colaterais
aceitáveis da maioria das preparações canabinoides (os efeitos adversos mais comuns
são tonturas, sonolência e desorientação) levaram à aprovação do Nabiximol como
o único medicamento à base de Cannabis disponível no Canadá, na Nova Zelândia e

82
Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

em vários países europeus e asiáticos (mas ainda não nos EUA) para o controle da
espasticidade e dor neuropática associada à EM.

Existem poucos ensaios clínicos que avaliam a eficácia e a modulação farmacológica


de canabinoides e eCBs como tratamentos modificadores da doença. O estudo CAMS
falhou em relatar qualquer efeito dos canabinoides nos níveis séricos de citocinas
pró-inflamatórias e na ativação das células T. O estudo CUPID mostrou que o Marinol®
(aprovado como medicamento antiemético e anoréxico) não tem efeito geral sobre
a progressão da SM, mesmo em um estudo de acompanhamento em longo prazo.
Além disso, um estudo cruzado duplo mediu a função imune em pacientes com EM
progressiva e revelou um papel pró-inflamatório do Dronabinol. Embora a progressão
da EM e os danos à substância cinzenta, associados, sejam acelerados em seres humanos
portadores de uma variante genética do CB1, com expressão reduzida da membrana, os
ensaios clínicos projetados para investigar o efeito neuroprotetor de medicamentos à
base de canabinoides não mostraram impacto na modulação da progressão da doença.

Em resumo, os resultados obtidos em diferentes ensaios clínicos sugerem que os


canabinoides são capazes de controlar a espasticidade em pacientes com EM, mas
não conferem neuroproteção na EM progressiva. Curiosamente, apesar dos potentes
efeitos anti-inflamatórios e neuroprotetores do CBD e de sua baixa psicoatividade,
todos os ensaios clínicos para MS envolvem formulações com misturas de THC e CBD,
mas nenhuma formulação apenas com CBD. A GW Pharmaceuticals está buscando
aprovação do FDA para disponibilizar comercialmente o Epidiolex (uma formulação
oral de CBD 99% puro derivado de plantas) para o tratamento de várias formas de
epilepsias e síndromes raras associadas à epilepsia. Contudo, não há ensaios clínicos
com esse medicamento ou estão sendo planejados para o EM.

Quanto aos medicamentos direcionados especificamente aos receptores CB, após


a retirada do Rimonabant (um agonista inverso do CB1) por seus efeitos colaterais
potencialmente graves, algumas estratégias alternativas seriam desenvolver novos
ligantes CB1 que sejam periféricos restritos (isto é, incapazes de atravessar a barreira
hematoencefálica) e/ou exibam antagonismo neutro ou, eventualmente, levem os
agonistas do CB2 à prática clínica. Todas essas estratégias são objeto de intensa pesquisa.

Vários ensaios clínicos foram relatados ou estão em andamento com inibidores de


MAGL e FAAH. Por exemplo, o inibidor irreversível do MAGL ABX-1431 concluiu
com êxito os ensaios clínicos da fase 1a, de modo que agora está sendo avaliado para
a síndrome de Tourette (fase 1b) e está programado para um estudo de fase 2 em
pacientes com EM. O inibidor da FAAH PF-04457845 também exibiu um perfil de

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Unidade II | Cannabis medicinal na neurologia

segurança favorável nos ensaios clínicos de fase 1 e 2, mas foi ineficaz no tratamento
da dor em pacientes com osteoartrite. Atualmente, o composto está sendo avaliado
para o tratamento da síndrome de Tourette, de respostas ao medo e de abstinência
de maconha.

O desenvolvimento de inibidores da FAAH sofreu um grande revés com o ensaio


clínico de fase 1 da BIA 10-2474, que levou à morte de um voluntário e a sintomas
neurológicos leves a graves em outros quatro. Recentemente, foi demonstrado que
o BIA 10-2474 é um medicamento promíscuo, que inibe várias lipases, incluindo
a Neuropathy Target Esterase, que não são direcionadas pelo inibidor da FAAH,
altamente seletivo e clinicamente seguro PF-04457845. O BIA 10-2474, mas não
o PF-04457845, produziu alterações substanciais nas redes lipídicas dos neurônios
corticais humanos, o que sugere que o BIA 10-2474 tem o potencial de desregular
as vias metabólicas no sistema nervoso. Portanto, é altamente improvável que
a inibição da FAAH tenha causado efeitos adversos em voluntários saudáveis.
Até agora, nenhum desses medicamentos, nem qualquer outro inibidor seletivo da
degradação do outro eCB importante, o 2-AG, tem sido utilizado na prática clínica
em formas recorrentes ou progressivas de EM.

Figura 22. O caso do paciente Gilberto Castro.

Fonte: https://www.cannabisesaude.com.br/como-a-cannabis-mudou-a-vida-de-um-paciente-com-esclerose-
multipla/. Acesso em: 05 dez. 2020.

Um dos primeiros ativistas pelo uso medicinal da Cannabis, o designer Gilberto


Castro abandonou a cadeira de rodas após iniciar o tratamento com tal substância.

Aos 26 anos, Gilberto Castro perdeu toda a sensibilidade do pescoço para baixo.
Eram os primeiros sinais da esclerose múltipla. Os médicos disseram que ele teria
mais cinco anos de vida saudável e que, aos poucos, perderia os movimentos e
parte da visão.

Ainda sem causa definida, a esclerose múltipla é considerada uma doença


autoimune, que acontece quando o organismo destrói a bainha de mielina, a
qual reveste os neurônios, e provoca os processos inflamatórios e os sintomas
da doença.

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Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

Sem cura, o diagnóstico assusta e o tratamento também, pois os efeitos colaterais


são muitos. Nos primeiros anos, Gilberto chegou a tomar cinco remédios por dia
e a gastar mais de 600 reais, por mês, na farmácia.

“Era remédio para controle da irritabilidade, outro para amenizar a fadiga, um para
tontura, outro para insônia, e outros para controle da dor. As dores neurológicas
vêm com a sensação de choque ou queimação, ou de dor muscular mesmo. Você
toma um remédio para um tipo de dor, depois para outra e outra. E os efeitos
podem ser terríveis. Se você ler a bula, você nem toma”, relata Gilberto Castro.

Quando soube das perspectivas negativas do futuro, Gilberto se voltou aos estudos
da doença e encontrou relatos e pesquisas sobre os benefícios da Cannabis em
pacientes com EM. Levou a descoberta aos médicos, os quais não se mostraram
favoráveis, já os neurologistas o apoiavam.

Naquela época, Gilberto recorreu ao mercado ilegal, com maconha prensada.


“Usei por um tempo. Ajudou um pouco, mas não muito. Então comecei a preparar
minha casa para fazer minha própria plantação”, relata Gilberto Castro.

Sinalização de eCB como terapia potencial para


outras doenças neurodegenerativas
com componente inflamatório
Apesar de a etiologia (quando conhecida) e a patogênese de outras doenças
neuroinflamatórias serem divergentes e heterogêneas, como a doença de Alzheimer
(DA), a doença de Parkinson (DP), a doença de Huntington (HD) e a esclerose lateral
amiotrófica (ALS), pode-se afirmar que a neuroinflamação é uma marca comum
para todas elas. É importante notar que todos esses distúrbios são caracterizados
por uma perda progressiva da estrutura ou função dos neurônios encontrados em
circuitos específicos e áreas cerebrais. Todos eles mostram semelhanças histopatológicas
subcelulares, que incluem depósitos proteicos atípicos e morte celular. Além disso, o
termo ‘neuroinflamação’ classicamente envolve a infiltração de células imunes periféricas
no SNC, mas seu uso atual se expandiu para incluir as doenças neurodegenerativas
em que, embora o recrutamento de leucócitos não seja uma característica crítica,
sinais celulares e moleculares de inflamação (ou seja, expressão de citocinas e outros
mediadores inflamatórios e ativação glial) não apenas são presentes, mas provavelmente
contribuirão para a patogênese da doença e progressão.

O papel do sistema eCB nesses distúrbios foi extensivamente revisado em artigos recentes.
Da mesma forma que na EM, foram relatadas perturbações de diferentes componentes
do sistema eCB. Os níveis de CB1, CB2 e eCB aumentaram ou diminuíram em diferentes
áreas do cérebro (especialmente para CB1), tipos celulares específicos ou estágios da

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Unidade II | Cannabis medicinal na neurologia

doença. Por exemplo, a estimulação do CB1 leva a uma excitotoxicidade geralmente


induzida pelo glutamato e a uma viabilidade neuronal aprimorada, enquanto um aumento
na expressão do CB2 está geralmente associado a microglia e astrócitos ativados e sua
ativação induz efeitos anti-inflamatórios e neuroprotetores na DA, PD, HD e ALS.
Além disso, os níveis de eCBs, em particular o 2-AG, aumentam principalmente com
lesão neuronal. Em geral, parecem exercer efeitos neuroprotetores. Consequentemente,
a inibição farmacológica e/ou genética das enzimas degradantes do eCB levou à
diminuição da neuroinflamação e neurodegeneração em vários modelos animais dessas
doenças neuroinflamatórias. Estudos recentes indicam que a inibição da biossíntese
ou degradação do 2-AG também pode exercer efeitos antineuroinflamatórios, que
ocorrem por meio de um mecanismo independente do CB1 e CB2. A prevenção da
degradação de 2-AG mediante inibidores seletivos de MAGL no cérebro de camundongos:

» Aboliu a formação de prostaglandinas pró-inflamatórias que promovem


neuroinflamação.
» Reduziu a liberação de TNF-α e IL-1β.

» Suprimiu ativação de astrócitos microglial.

» Promoveu neuroproteção independentemente dos receptores CB em


diferentes modelos animais de DA e DP. Por outro lado, a inibição da
biossíntese de 2-AG, por meio do DAGL, reduziu as citocinas pró-
inflamatórias estimuladas por lipopolissacarídeos.

Embora esses resultados pré-clínicos pareçam promissores, poucos ensaios clínicos


com medicamentos baseados no eCB foram realizados em pacientes afetados por
essas doenças neuroinflamatórias, implicando exclusivamente o uso de Dronabinol
ou Nabiximol.

Estudos pré-clínicos e clínicos destacaram a complexidade dos canabinoides, eCBs,


seus receptores e suas enzimas metabolizantes, que formam uma rede intricada com
múltiplas ações biológicas no SNC e na periferia. Notavelmente, muitos dados clínicos
e pré-clínicos provaram que os medicamentos à base de canabinoides reduzem os
sintomas de espasticidade na EM e também em outras doenças neurodegenerativas,
provavelmente por meio da modulação dependente do CB1 da atividade sináptica e da
neurotransmissão. No entanto, os mecanismos moleculares subjacentes à desregulação
dos circuitos neuronais na EM são provavelmente diferentes daqueles de outras doenças
neuroinflamatórias. Esse fato é o motivo da aprovação comercial desses medicamentos,
até a presente data, apenas para a EM.

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Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

Além disso, os medicamentos à base de canabinoides são ineficazes para interromper


a neurodegeneração e a progressão da doença para qualquer um desses distúrbios
neuroinflamatórios nos pacientes. Essa falta de eficácia permanece pouco clara e pode
ser relacionada com:

» Administração de dosagem e incertezas.

» Fase de progressão da doença dos pacientes.

» Incapacidade de modular, no CB2, ações anti-inflamatórias e neuroprotetores


dependentes. Esses estudos também são afetados pelo uso de escalas subjetivas,
como pontos finais, e por um forte efeito placebo. Portanto, considera-se
necessário iniciar grandes ensaios clínicos randomizados, controlados por
placebo, com objetivos finais, a fim de obter resultados conclusivos sobre
os efeitos benéficos dos canabinoides e medicamentos baseados no eCB.

Além disso, geralmente é permitido aos pacientes autotitularem a dose do medicamento


à base de canabinoides para reduzir os efeitos colaterais adversos associados à ativação
do CB1. Será que o CB1 está perdido com a progressão da doença? Nesse caso, a
terapia baseada em canabinoides deve começar mais cedo. Será que a dose é muito
baixa para estimular o CB2? Agonistas seletivos de CB2 seriam, portanto, candidatos
a medicamentos ideais para serem testados nas fases inicial e progressiva da EM.
Alternativamente, o aprimoramento dos níveis endógenos de eCBs, ao inibir FAAH
e/ou MAGL, parece uma oportunidade a ser testada em pacientes com EM, pois se
espera controlar os sintomas de espasticidade, fornecer neuroproteção e exercer ações
anti-inflamatórias. Essas opções podem representar uma emocionante fronteira
de tradução para a obtenção de medicamentos para o tratamento de doenças
neurodegenerativas, associadas a inflamatórios, direcionadas a diferentes elementos
do sistema eCB.

É concebível que coquetéis de medicamentos à base de eCB, ou sua combinação com


terapias convencionais, possam ter efeitos mais benéficos e agir sinergicamente.
No entanto, um possível obstáculo a essa abordagem sinérgica poderia ser a plasticidade
heterogênea das células imunes, especialmente aquelas pertencentes ao compartimento
inato. As células imunes inatas, como macrófagos/micróglia, por um lado, podem
impedir respostas imunes e autoimunidade hiperativas, promovendo um ambiente
tolerogênico e secretando fatores de crescimento neurotróficos. Por exemplo, da mesma
forma que os macrófagos periféricos, a microglia também possui diferentes estados de
ativação, os quais vão do fenótipo ativado e pró-inflamatório ao fenótipo alternativo

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Unidade II | Cannabis medicinal na neurologia

e resolvido, e o fato de os eCBs parecerem críticos para induzir a microglia a adquirir


a proteção. O estado sugere que a sinalização de eCB poderia ser explorada para gerar
um ambiente reparador em doenças neurodegenerativas. Assim, à medida que o papel
das células imunes inatas residentes ou infiltradas se tornar mais bem definido, será
possível projetar terapias destinadas a direcionar sua plasticidade em favor de uma
atividade anti-inflamatória e neuroprotetora.

Notavelmente, elementos distintos do sistema eCB podem ser biomarcadores úteis para
fins de diagnóstico e capazes de prever a evolução da doença em pacientes com EM.
Por exemplo, os níveis de AEA, no líquido cefalorraquidiano, são surpreendentemente
indicativos de fases ativas da EM, mesmo assintomáticas, associadas à ruptura aguda
da barreira hematoencefálica e à infiltração de linfócitos. No entanto, protocolos
padronizados e otimizados para a determinação dos níveis de eCB, em fluidos biológicos
e biópsias humanas, são necessários para minimizar a variabilidade na determinação
de seu conteúdo.

Em uma nota final, a SM e outras doenças neuroinflamatórias são multifatoriais e


fatores ambientais também desempenham um papel importante. Nesse contexto,
devido à forte interação entre os genes e o meio ambiente, uma “terapia epigenética”
baseada no eCB poderia fornecer uma nova abordagem, com o objetivo de projetar
drogas epigenéticas mais específicas, desprovidas de efeitos em todo o genoma ou
fora do alvo. Nesse contexto, a fisioterapia ganhou espaço como um novo tratamento
capaz de resgatar várias funções em pacientes com EM e que apresentem incapacidade.
Ademais, também apresenta a possibilidade de mitigar as alterações neuropatológicas
associadas.

A evidência de que o exercício físico modula a sinalização de eCB, por exemplo,


aumentando os níveis de eCB no cérebro e sensibilizando CB1 em sinapses centrais,
sugere que seus efeitos benéficos podem ser mediados, em parte, pela modulação
epigenética da sinalização de eCB. Uma maneira de fundamentar bioquimicamente
essas observações seria encontrar a função CB1 regulada geneticamente, a fim de
prever a resposta clínica ao tratamento da espasticidade por canabinoides e melhorar
a estratificação do paciente como uma ferramenta para a reabilitação personalizada
de indivíduos com EM e que apresentem deficiência.

88
CAPÍTULO 4
A base farmacológica da terapia
de epilepsia com Cannabis

Figura 23. Cannabis no tratamento da epilepsia.

Fonte: https://blog.drcannabis.com.br/cannabis-no-tratamento-da-epilepsia/. Acesso em: 05 dez. 2020.

A epilepsia é uma doença de hiperexcitabilidade crônica que se origina de vários


defeitos nas redes neuronais do cérebro e provoca convulsões recorrentes. As crises
epilépticas são descargas elétricas anormais que podem se originar de uma variedade
de regiões do cérebro e podem causar alterações de comportamento, consciência e
sensações. A epileptogênese é o processo pelo qual um cérebro em funcionamento
normal se torna progressivamente epiléptico devido a uma lesão ou outros fatores de
risco, como acidente vascular cerebral, infecção ou convulsões prolongadas. A epilepsia
também pode se desenvolver por causa de uma anormalidade na fiação neuronal, que
é um desequilíbrio entre os neurotransmissores excitatórios e inibitórios ou mesmo
uma combinação dessas dinâmicas. Em pacientes com epilepsia, as crises espontâneas
surgem de uma rede neural superexcitada e hipersíncrona e geralmente envolvem
estruturas corticais e subcorticais. Devido à grande variação nos tipos de epilepsia,
esta é classificada como um transtorno de espectro. As crises epilépticas podem ser
classificadas em crises parciais ou generalizadas. As crises parciais começam focalmente
em um local cortical do cérebro e são responsáveis ​​por aproximadamente 60% de
todas as epilepsias, enquanto as crises generalizadas envolvem ambos os hemisférios,
desde o início da epileptogênese, e são responsáveis ​​pelos 40% restantes dos tipos
de epilepsia. A epilepsia pode ser dividida em dois grupos; primária e secundária.
A epilepsia primária (50%) é idiopática (causa desconhecida). A epilepsia secundária

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Unidade II | Cannabis medicinal na neurologia

(50%), também conhecida como epilepsia adquirida, pode resultar de uma série de
condições, incluindo neurotoxicidade, lesão cerebral traumática, anorexia, desequilíbrios
metabólicos, convulsões prolongadas atribuíveis à abstinência de drogas, tumores ou
encefalite.

As pessoas portadoras de epilepsia do tipo refratária devem ter seu ritmo de aprendizagem
e sua adaptação social adequados às suas condições de saúde. A sua inserção no contexto
social é importante para a superação das dificuldades diárias.

A maioria dos novos diagnósticos de epilepsia ocorre com mais frequência em crianças
e idosos.

Os tratamentos medicamentosos não possibilitam a cura para epilepsia, mas pode-se


obter controle e qualidade de vida satisfatória para até 70% dos casos, especialmente,
para os pacientes que não possuem epilepsia refratária.

Pessoas com epilepsia, cujas convulsões não podem ser controladas por meio de
medicamentos, têm ainda a opção de realizar uma ressecção cirúrgica ou neuroestimulação.
“Vencer o estigma da epilepsia é o primeiro passo para o paciente ter uma
vida próxima do normal” (doutor Li Min. - FCM/UNICAMP)

Há uma grande necessidade não atendida de novas terapias que forneçam controle
eficaz da epilepsia resistente a medicamentos ou refratária e não interfiram na função
normal. Essa tarefa é mais desafiadora em certos tipos de epilepsia, como as de Lennox-
Gastaut, Doose, Dravet, CDKL5, Rett, West, Ohtahara, Landau-Kleffner, entre outras.

Nas encefalopatias epilépticas, a atividade epiléptica é tão intensa que contribui para
o comprometimento cognitivo e comportamental.

Veja alguns tipos de encefalopatias epilépticas e suas características:

Tabela 6. Encefalopatias epilépticas.

Tipos de
encefalopatias Características
epilépticas
• Início no primeiro mês de vida (até 3 meses).
• EEG: surto-supressão.
Encefalopatia
• Prognóstico ruim, crises refratárias, atraso do DNPM.
mioclônica precoce
• Muita mioclonia, crises focais e tônicas.
• Associada a erros inatos do metabolismo (hiperglicinemia não cetótica).

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Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

• Encefalopatia epiléptica precoce.


• Crises tônicas neonatais.
Síndrome de Ohtahara • EEG: surto-supressão.
• Etiologia: malformação do SNC.
• Muitos evoluem par síndrome de West.

• Acomete tanto meninas quanto meninos.

Epilepsia com crises • Início nos primeiros 6 meses de vida.


focais migratórias da • EEG interictal é multifocal. EEG mostra crises com início em várias regiões cerebrais.
infância (Veja EEG)
• Evolui com crises refratárias, microcefalia, atraso global do DNPM.

• Início geralmente entre 4 a 10 meses de idade.


• Espasmos epilépticos, em salva, início do sono ou despertar. EEG apresenta hipsarritmia.
Síndrome de West (Veja EEG)
• Atraso do DNPM.
• Tratamento: vigabatrina, ACTH, prednisolona em altas doses.

• Epilepsia mioclônica severa do lactente.


• Início com convulsão febril, geralmente no primeiro ano de vida.
• Evolui com crises afebris e grande sensibilidade à febre baixa.
Síndrome de Dravet
• Crises podem ser CTCG, miocônicas, ausência, clônicas, focais.
• Fotossensibilidade.
• Crises refratárias. Evolui com atraso do DNPM.

• Início: 7a-8a (pico2a-6a).


• Crises generalizadas multiformes, predomínio de crises mioclônicas, mioclônico-atônicas.
Síndrome de Doose • CTCG febril ou afebril como 1º sintoma (60% casos).
(epilepsia com crises EEG interictal mostra ritmo teta monomórfico.
mioclônicas atônicas,
(Veja EEG)
anteriormente
astáticas) • Deterioração neuropsicomotora.
• Refratariedade ao tratamento medicamentoso.
• Uma evolução razoavelmente boa também pode ocorrer.

• Início entre 3 e 5 anos.


• Deterioração cognitiva.
Síndrome de Lennox-
• Múltiplos tipos de crise (tônica, atônica, CTCG, focal, ausência, mioclonia).
Gastaut
• EEG muito útil no diagnóstico.
(Veja EEG)

• Início entre 2 e 12 anos de idade.


EEG: atividade epiléptica no sono > 85% do traçado.
Epilepsia com estado (Veja EEG)
de mal elétrico do sono
(POCS, CSWS, ESES) • Deterioração cognitiva.
• Distúrbio do comportamento.
• As crises, muitas vezes, são de fácil controle.

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Unidade II | Cannabis medicinal na neurologia

• “Afasia adquirida”.
• Início entre 2 e 8 anos.
Síndrome de Landau-
Kleffner • Criança previamente normal. Começam as crises epilépticas e a dificuldade de linguagem
(agnosia auditiva).
• EEG: piora no sono, com atividade epiléptica contínua.

Fonte: https://www.fcm.unicamp.br/fcm/neuropediatria-conteudo-didatico/epilepsia/encefalopatias-epilepticas#Doose. Acesso em: 05 dez. 2020.

Recentemente, os canabinoides foram sugeridos como potenciais alternativas


terapêuticas para alguns pacientes com convulsões refratárias. Os estudos clínicos
experimentais e pilotos emergentes sugerem que o canabidiol, um constituinte não
psicoativo encontrado na planta da Cannabis, pode atuar como um agente antiepiléptico
eficaz. As redes sociais criaram muita consciência e compartilhamento de informações.
Existem muitos grupos de defesa, incluindo pais de crianças com epilepsia refratária,
que defendem tratamentos de CBD e estratégias adicionais. Com o aumento dos dados
pré-clínicos e casos publicados de cepas de maconha medicinal ricas em canabidiol,
grupos de defesa tornaram-se mais claros sobre a possibilidade do uso de Cannabis para
o tratamento sintomático da epilepsia, especialmente em grupos de pais com filhos
que continuam a ter crises refratárias.

Figura 24. Charlotte Figi.

Fonte: https://sechat.com.br/entidades-e-agentes-do-setor-canabico-prestam-homenagens-a-charlotte-figi/.
Acesso em: 05 dez. 2020.

Charlotte Figi (18 de outubro de 2006 - 7 de abril de 2020) foi uma menina
estadunidense com síndrome de Dravet, um tipo de epilepsia refratária de difícil
controle, mesmo com uso de medicamentos halopáticos. Ela e sua irmã gêmea
nasceram em 2006. Charlotte teve sua primeira convulsão aos três meses de
idade e, aos cinco anos de idade, andava de cadeira de rodas para se locomover.
Tinha até trezentas convulsões por semana e problemas na fala.

Em 2012, Paige, mãe de Charlotte Figi, descobriu o óleo de maconha CBD para
o tratamento de sua filha. Paige começou a retirar o óleo da planta de maconha,
chamada “Hippie’s Disappointment”, que continha baixo nível de THC. Mais tarde,
esse óleo foi batizado de “Charlotte´s Web”, em homenagem a Charlotte Figi, sua filha.

92
Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

No Brasil, o caso de Charlotte Figi chegou ao conhecimento de muitas mães que


buscavam tratamentos para seus filhos e outras pessoas. Por meio do poder público
e com a ajuda de seus médicos, pressionaram a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa) para que seus filhos pudessem ter acesso aos medicamentos
fabricados nos Estados Unidos.

Figura 25. Anny Bortoli Fischer e família.

Fonte: https://www.uol.com.br/ecoa/ultimas-noticias/2019/12/06/mae-que-foi-pioneira-em-trazer-canabidiol-ao-
pais-festeja-decisao-da-anvisa.htm. Acesso em: 05 dez. 2020.

Anny tinha, em média, de 60 a 80 crises epilépticas por semana. Sua condição de


saúde fez Anny viver um retrocesso em seu desenvolvimento e nas habilidades
adquiridas com a fisioterapia.

Em 2014, Anny começou a usar o canabidiol e o número de convulsões zerou. No


entanto, no ano seguinte, Anny teve de fazer uso de um remédio para verminoses,
o que provocou alterações em seu sistema canabinoide, reduziu a ação do CBD no
tratamento da epilepsia e provocou um pequeno retrocesso. Algum tempo depois,
com o ajuste da dose do canabidiol, suas crises voltaram a ser controladas. Hoje,
Anny apresenta um outro tipo de convulsão, mas muito mais leve do que as que
tinha antes.

Segundo o pai de Anny, o canabidiol salvou a vida de sua filha, e sem ele seria
difícil que sua filha estivesse viva. A história de Anny foi uma de tantas outras
que marcou a luta pela maconha medicinal no Brasil.

Figura 26. Sofia.

Fonte: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2017/03/12/nos-submetemos-ao-trafico-
para-aliviar-a-dor.htm. Acesso em: 05 dez. 2020.

93
Unidade II | Cannabis medicinal na neurologia

Sofia tem a Síndrome CDKL5; um tipo de epilepsia grave e que não tem cura. Quando
sua mãe, Margarete Brito, descobriu a doença da filha, buscou tratamentos médicos.
Dos tratamentos experimentados, o mais eficiente foi o processo terapêutico com
o óleo extraído da Cannabis sativa.

Após a descoberto dos benefícios da maconha no tratamento de sua filha, o


desafio seguinte era obter a autorização judicial. Margarete foi a primeira mãe a
conseguir plantar maconha em casa sem correr riscos de ser presa. Hoje, o sonho
de legalizar a planta no Brasil se transformou em sua luta. “Quando eu descobri
que maconha poderia ser o remédio, ao contrário de muitas mães, eu achei melhor.
Pensei que seria melhor do que dar a ela os outros remédios todos que dava na
época”, diz Margarete.

Sofia faz o tratamento com remédios tradicionais e com o óleo do canabidiol, que
ajuda ao poder terapêutico, pois age no cognitivo e controle parcial das convulsões.

Segundo Margarete, a maconha não opera milagres. É um processo terapêutico


que varia de pessoa para pessoa. Para algumas, funciona incrivelmente; para
outras, funciona parcialmente; e para outras, não funciona.

Margarete decidiu entrar na Justiça para poder plantar a maconha em sua


própria casa, em função do alto custo de importação do óleo e da burocracia
existente para conseguir os remédios fora do pais. Além disso, o êxito do caso
de sua filha poderia possibilitar precedente para que outras famílias pudessem
também conseguir a autorização judicial para cultivo da maconha em suas casas
e fazer o tratamento, uma vez que o alto custo dos medicamentos inviabilizaria
o processo.

E deu certo! Aos poucos, mesmo que lentamente, as famílias vão recebendo
autorizações judiciais para o cultivo no Brasil. Os juízes estão reconhecendo que
é possível plantar e fazer o próprio remédio para tratamento.

Desse modo, Margarete decidiu transformar sua luta em profissão e se dedica


integralmente ao ativismo pela maconha. Agora, busca educar famílias sobre o
uso da maconha. Por meio da Associação de Apoio à Pesquisa e Pacientes de
Cannabis Medicinal (Apepi), ela buscar ajudar famílias a viabilizar o tratamento
à base de Cannabis medicinal, independentemente de sua renda.

Após a elucidação das estruturas fitocanabinoides na década de 1960, sua farmacologia


foi lentamente revelada (Figura 27). Vários componentes foram testados para
atividades anticonvulsivantes com resultados de ED50 em ratinhos de 80 mg/kg para
o tetrahidrocanabinol (THC), 120 mg/kg para o canabidiol (CBD) e 200 mg/kg para
um ácido tetrahidrocanabinólico (THCA-A), o precursor de ácido carboxílico para
THC, que é encontrado em flores de Cannabis crua. Embora a dose-resposta tenha sido
testada, não estão claras quais doses foram avaliadas e, dadas as tendências bifásicas dos
canabinoides, é possível que os efeitos positivos de doses mais baixas tenham passado

94
Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

despercebidos. O CBD foi considerado um excelente candidato para o desenvolvimento


de novas terapêuticas, pois não provoca a psicoatividade do THC.

Figura 27. A farmacologia dos fitocanabinoides pertinente ao tratamento de doenças neurodegenerativas.

Flor de Cannabis

Ácido Δ9- tetrahidrocanabinólico


Ácido canabidiólico
AntiTNF-α Agonista 5-HT1a
Decarboxilação
Anticonvulsivante Antiemético
Antineoplásico Anticonvulsivante Descarboxilação
Agonista PPARƔ Antineoplásico?

canabidiol
Δ9-tetrahidrocannabinol
Antioxidante neuroprotetor
Neuroprotetor Agonista CB2 Anticonvulsivante
Anticonvulsivante Anti-inflamatório Antineoplásico
Relaxante muscular
Antibiótico/antiacne
Pró-microbiome Β-caryophyllene Agonista PPARƔ
Agosnista PPARƔ
Fonte: https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fnint.2018.00051/full. Acesso em: 06 dez. 2020.

A investigação subsequente demonstrou que o limiar convulsivo é mediado pelo SEC e


que o THC produziu uma redução de 100% nas convulsões, mas não o fenobarbital e a
difenilhidantoína. Além disso, estudos em animais demonstraram aumentos agudos na
produção de endocanabinoides e uma regulação positiva de longo prazo da produção
de CB1, como efeitos compensatórios aparentes contra a excitotoxicidade do glutamato,
e que o efeito anticonvulsivante estava presente em níveis subsedativos.

Seguiram-se relatos esporádicos de casos de utilização bem-sucedida de THC em


convulsões associadas a condições neurológicas graves em crianças na Alemanha, mas
o foco principal voltou ao CBD devido aos fortes resultados anticonvulsivantes em
investigação laboratorial, o que gerou um programa de desenvolvimento farmacêutico.
Rapidamente, o público leigo tomou conhecimento desses desdobramentos, com
divulgação do conceito por meio do Projeto CBD e de publicidade associada ao
caso de Charlotte Figi e melhora significativa nas convulsões associadas à síndrome
de Dravet, conforme retratado no documentário “Weeds”, da Cable News Network.
Os resultados positivos da pesquisa foram moderados, no entanto os estudos sugerem
um forte viés de averiguação no relato dos pais sobre a frequência de convulsões: a taxa
de resposta para famílias que se mudam para o estado do Colorado, para tratamento
com canabidiol, foi de 47% contra apenas 22% para aqueles que já moravam lá, e foram
95
Unidade II | Cannabis medicinal na neurologia

três vezes maiores para aqueles que relataram> 50% de resposta. Estudos observacionais
mais cuidadosos com um extrato oral de canabidiol padronizado com THC removido
(Epidiolex®) forneceu resultados mais convincentes com uma redução média de 55% nas
convulsões em pacientes com Dravet e síndrome de Lennox-Gastaut (LGS) em altas
doses. Os resultados subsequentes da Fase III, na síndrome de Dravet, com CBD 20 mg/
kg/d mostraram forte significância estatística na frequência das crises e na Impressão
Global de Mudança do Cuidador. Estudos mais recentes reforçaram as evidências de
segurança e eficácia da preparação em ambas as condições. Como resultado, recebeu
a aprovação da Food and Drug Administration, dos EUA, em junho de 2018.

Curiosamente, extensas observações de outros profissionais pareceram indicar sucessos


terapêuticos semelhantes com doses muito mais baixas de CBD quando utilizado em
preparações à base de Cannabis com pequenas quantidades concomitantes de THC,
THCA e linalol, um componente terpenoide da Cannabis. O melhoramento seletivo
de Cannabis, por meio de técnicas mendelianas, aumenta a possibilidade de produzir
quimiotipos com múltiplos componentes anticonvulsivantes, os quais podem produzir
benefícios sinérgicos. THCA é uma questão intrigante, pois, à medida que há debates
sobre sua capacidade de abrigar atividade em CB1, o ácido canabidiólico (CBDA) também
demonstrou recentemente atividade anticonvulsivante, possivelmente atribuível à sua
atividade serotonérgica, em que CBDA demonstra afinidade 100 vezes maior para o
receptor 5-HT1A em comparação com o CBD.

Base farmacológica do uso de Cannabis na epilepsia

Apesar do interesse terapêutico generalizado na Cannabis, a lógica mecanicista para o


uso da substância na epilepsia permanece um enigma. Os mecanismos farmacológicos
subjacentes a tais alegações terapêuticas para ataques epilépticos são mal compreendidos.
No âmbito dos sistemas, é provável que o CBD ou constituintes relacionados na
Cannabis possam afetar o sistema endocanabinoide e, assim, modular as redes neurais
envolvidas na geração ou disseminação de hiperexcitabilidade e ataques epilépticos.
Nesse contexto, a especificidade e a inespecificidade das ações da Cannabis no SNC são
aspectos importantes para a terapêutica da epilepsia. Essa distinção entre mecanismos
de drogas específicos e não específicos é, muitas vezes, difícil de definir no caso do
uso de Cannabis ou mesmo de produtos com predominância de CBD, principalmente
por causa de dados limitados sobre a relação dose-resposta do medicamento para a
eficácia terapêutica pretendida. A dinâmica terapêutica torna-se ainda mais complexa
se o medicamento tiver um amplo espectro de alvos, o que pode resultar em atividade
imprevisível caso o medicamento contenha vários compostos ativos ou não seja

96
Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

produzido de acordo com as práticas de fabricação padrão. Embora o controle das


crises epilépticas seja o objetivo ao administrar um produto derivado de Cannabis,
os potenciais efeitos fora do alvo podem causar outros efeitos colaterais indesejados.

Dois estudos importantes aumentaram a compreensão do sistema endocanabinoide e


mostraram que ele é ativado imediatamente após a atividade convulsiva. O primeiro
mostrou que o bloqueio do receptor CB1 em ratos epilépticos levou a um aumento na
frequência e duração das crises. Esse estudo significou que a ativação do CB1 é uma
resposta à atividade convulsiva, em vez de uma causa, considerando que essa resposta
não foi induzida em ratos controle. Em apoio a esse insight, os pesquisadores descobriram
que o nível de 2-AG aumentou no hipocampo 15 minutos após uma única convulsão
induzida pela pilocarpina. Outro estudo demonstrou que neurônios glutamatérgicos,
no prosencéfalo, são predominantemente responsáveis ​​pela proteção mediada por
canabinoides contra convulsões.

Agosnistas CB2 específicos são sugeridos como possíveis alvos terapêuticos para o
tratamento da inflamação e da dor, especialmente a dor neuropática. Um estudo
revelou que os agonistas canabinoides sintéticos dos receptores CB2 exibem alterações
nos níveis de cAMP e causam inibição da sinalização das células T. Descobriu-se que
o agonista CB2 JWH-015 ativa macrófagos para remover a proteína β- amiloide de
tecidos humanos congelados. Essa evidência sugere que os receptores CB2 também
podem ter potencial terapêutico para doenças neurodegenerativas, como a doença de
Alzheimer.

97
CAPÍTULO 5
Canabidiol em crianças com
encefalopatia epiléptica refratária

Figura 28. Cannabis na epilepsia.

Fonte: https://www.ma10.com.br/2020/09/23/saude-pode-incluir-no-sus-drogas-a-base-de-canabidiol/. Acesso em: 06 dez. 2020.

As encefalopatias epilépticas são um grupo de distúrbios convulsivos que se iniciam na


infância e são caracterizados por convulsões frequentes e padrões de EEG marcadamente
anormais, os quais estão associados a distúrbio progressivo da função cerebral que
se manifesta como estagnação ou regressão do desenvolvimento. Essas epilepsias
costumam ser resistentes aos regimes de tratamento médico convencional e as crianças
com essas condições invariavelmente apresentam deficiências neurológicas e cognitivas
que prejudicam gravemente sua qualidade de vida (QV).

Em 2013, pesquisadores relataram os resultados de uma pesquisa, de 24 pontos, em um


grupo do Facebook, o qual é composto por pais que usam produtos de Cannabis ricos
em CBD para tratar seus filhos com epilepsia refratária. Dos 20 entrevistados, 84%
relataram que os produtos de Cannabis ricos em CBD resultaram em uma diminuição
na frequência de convulsões em seus filhos e mais da metade de seus filhos ficaram
livres das convulsões ou tiveram uma redução superior a 80% em sua frequência de
convulsões. Tão importante quanto, a maioria dos pais relatou uma melhora nos
índices de QV, como vigilância, sono e humor. Desde então, foram relatados vários
ensaios clínicos abertos e randomizados duplo-cegos de tratamentos baseados em
CBD, em crianças com encefalopatia epiléptica, incluindo a síndrome de Dravet e a
síndrome de Lennox-Gastaut. Esses estudos encontraram uma frequência reduzida
98
Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

de crises convulsivas e eventos adversos leves de sonolência e elevação das atividades


das enzimas hepáticas. Infelizmente, houve uma variação considerável na dosagem
e nos tipos de formulação de CBD usados, pois três estudos utilizaram um produto
com CBD isolado (Epidiolex) e um estudo empregou um extrato integral de Cannabis.
A variação considerável nas doses CBD e a falta de dados farmacocinéticos resultaram
em nenhuma orientação sobre as posologias apropriadas para essa população de
pacientes pediátricos.

O CBD pode ser derivado de preparações farmacêuticas puras ou de extratos de


Cannabis sativa ou Cannabis indica. A composição dos extratos de Cannabis pode variar
dramaticamente devido a diferenças em cultivares, condições de cultivo e processos
de extração e descarboxilação. A falta de padronização ou garantia de qualidade na
preparação e administração da dose desses produtos limita muito o estudo científico das
preparações à base de plantas de Cannabis. A disponibilidade de Cannabis comercial e de
extratos de um produtor de maconha medicinal licenciado que use bons processos de
fabricação, com composição de canabinoides testada, garante a segurança do paciente
e a dosificação confiável e permite avaliação científica.

Foi conduzido um estudo aberto de escalonamento de dose de extrato de Cannabis,


rico em CBD, em pacientes pediátricos com encefalopatia epiléptica resistente ao
tratamento. Como não havia dados farmacocinéticos pediátricos disponíveis para os
canabinoides, incluindo CBD e THC, a posologia usada no estudo foi extrapolada com
base em dados previamente descritos na literatura. Foi levado em consideração o fato
de que o produto do estudo era derivado de um extrato de planta inteira que contém
Δ9-THC, entre outros canabinoides e terpenos potencialmente biologicamente ativos.

No estudo, a maioria das crianças que tiveram uma resposta positiva ao CBD estava
tomando uma dose que variava de 8 a 14 mg/kg/dia. Outros pesquisadores usaram uma
dose de 20 mg/kg/dia em seus participantes randomizados para receber o medicamento
do estudo, mas a substância era CBD purificado com concentrações desprezíveis de
Δ9-THC. Os participantes de um outro estudo receberam uma dose de CBD de <10
mg/k/dia ou 10–20 mg/kg/dia fornecida na forma de extrato de Cannabis rico em CBD.

Um objetivo secundário do estudo foi determinar a relação entre o aumento da dose


e as concentrações mínimas de estado estacionário de canabinoides bioativos e, se
possível, relacionar esses níveis com efeitos terapêuticos e adversos. Para atingir esse
objetivo, um método de cromatografia líquida-espectrometria de massa (LC-MS /
MS) foi validado de acordo com as diretrizes do FDA dos Estados Unidos. O sangue
coletado em heparina de lítio Barricor vacutainers® (BD Canadá, Mississauga, ON),

99
Unidade II | Cannabis medicinal na neurologia

em cada visita, é centrifugado (10 min a 1500 rpm), o plasma aliquotado em tubos de
microcentrífuga claramente rotulados e colocados a -80°C até a análise. As concentrações
plasmáticas de THC, CBD e THC-OH (11-hidroxi-THC) nas amostras de plasma
dos participantes foram determinadas por análise LC-MS/MS. Resumidamente,
soluções estoque (1 mg mL - 1) de canabinoides e seus respectivos padrões internos
marcados com isótopos estáveis ​​(Cerilliant Corp., Round Rock, TX) foram preparados
em metanol e armazenados a -20°C. As soluções de trabalho foram preparadas por
diluição, em série da solução estoque em plasma humano em branco, para produzir
curvas de calibração padrão apropriadas. Os critérios de aceitação para cada corrida
analítica foram baseados em padrões de controle de qualidade (CQ) de baixa, média
e alta concentrações. Amostras de calibração e CQ eram preparadas em cada dia de
análise de amostra. Uma análise de regressão de mínimos quadrados linear, usando 1/
X2 como fator de ponderação, foi conduzida para determinar a linearidade da curva de
calibração. A extração da amostra de plasma envolveu a adição de 10 μL da solução de
trabalho do padrão interno e 600 μL de acetonitrila fria a 200 μL de plasma, seguido
por mistura em vórtice e centrifugação a 20.000 g por 10 min a 4 ° C. 700 μL de
sobrenadante e, por fim, secos sob ar filtrado por 15 min a 37°C. As amostras foram
reconstituídas por meio de fase móvel de 200 μL. O sobrenadante era transferido
para inserções de HPLC e 5 μL injetados em uma coluna de proteção Zorbax Eclipse
XDB-C18 de furo estreito 2,1 × 12,5 mm 5 μm e coluna de guarda Zorbax Eclipse XDB-C8
de furo estreito 2,1 × 12,5 mm 5 μm com temperatura da coluna mantida em 30°C.
Os canabinoides eram separados por intermédio de uma bomba binária Agilent série
1290 (Agilent Technologies, Mississauga, ON, Canadá) com um desgaseificador on-line
e amostrador automático ajustado em 4° e uma fase móvel de 80% de metanol e 20%
de solução B (0,1 mM de formato de amônio ) a uma taxa de fluxo de 250 μL/min. As
injeções ocorreram em intervalos de 13,5 min e incluíram gradientes lineares para
90% de metanol 10% de solução B em 3,5 min a 10 min e retorno para 80% de metanol:
solução B a 20% de 10 min a 10,5 min.

Hemogramas completos e química clínica

Em cada visita, os participantes tinham uma avaliação laboratorial dos componentes do


sangue para que fosse avaliada a toxicidade hepática, renal ou hematopoiética realizada
no laboratório do hospital local. Os testes realizados incluíam: um painel completo
de contagem de células sanguíneas com diferencial celular automatizado de três ou
cinco partes, eletrólitos, glicose, creatinina, ureia, alanina transaminase, aspartato
transaminase, albumina, gama glutamiltransferase e lipase. Os eventos adversos de cada
participante eram avaliados como resultados laboratoriais que excediam os intervalos
100
Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

de referência específicos da idade do laboratório local. Se os participantes estivessem


em uma dieta cetogênica durante o estudo, o teste de cetona na urina seria realizado
para avaliar a consistência da cetose em cada visita.

Níveis mínimos de anticonvulsivantes

Os participantes permaneceram tomando medicamentos anticonvulsivantes


pré-existentes durante todo o período de estudo do óleo de Cannabis. Amostras de soro
eram coletadas dos participantes em cada visita e os níveis mínimos de medicamentos
anticonvulsivantes séricos eram determinados por LC-MS/MS, pelo Roy Romano
Provincial Laboratory Regina, SK, Canadá. As amostras de soro foram coletadas e
armazenadas a -20°C antes da análise. Os eventos adversos foram considerados se os
participantes necessitaram de uma mudança na medicação anticonvulsivante durante
o ensaio.

Avaliação de qualidade de vida

O instrumento escolhido foi a Qualidade de Vida na Epilepsia Infantil (QOLCE-55).


O QOLCE é uma medida de qualidade de vida relacionada à saúde realizada por
pais/substitutos, desenvolvida especificamente para crianças com epilepsia. Possui
várias subseções com vários itens, bem como uma série de classificações globais. A
ferramenta original foi projetada para indivíduos entre 4 e 18 anos de idade, uma
das faixas etárias mais amplas para um instrumento desse tipo. A ferramenta permite
que o avaliador indique que um item não é aplicável caso seu conteúdo esteja acima
da idade ou do nível de desenvolvimento da criança que está sendo avaliada. Isso
torna o QOLCE potencialmente robusto diante de questões como menor idade e
deficiência intelectual.

O QOLCE-55 apresenta boa consistência interna e validade de critério, bem como


é adequado para teste-reteste, dependendo do subteste ou item envolvido. As áreas
cobertas abrangem características físicas (incluindo limitações físicas e fadiga), bem-
estar (incluindo depressão, ansiedade, desamparo e autoestima), cognição (incluindo
atenção, memória, linguagem e cognição geral), envolvimento social (incluindo
interações, atividades e estigma) e comportamento. O QOLCE também se mostrou
sensível à atividade convulsiva e a outras variáveis clínicas e psicossociais associadas
à epilepsia e aos benefícios de tratamentos, como a cirurgia. Por fim, o QOLCE tem
sido utilizado no estudo de condições epilépticas com atrasos cognitivos associados
e deficiência intelectual e já demonstrou sua utilidade em amostras com deficiência
intelectual. Enquanto o QOLCE-55 não foi exclusivamente positivo na redação de seus

101
Unidade II | Cannabis medicinal na neurologia

itens. A maioria dos itens foi afirmada de forma positiva, causando menos sofrimento
por parte de quem completou a medida.

As avaliações no QOLCE são feitas em uma escala de 5 pontos, em que 1 representa


“muito frequentemente” e 5, “nunca”. Os itens invertidos são recodificados ao pontuar
de forma que pontuações mais altas signifiquem resultados mais positivos. Essas
pontuações são, então, recodificadas da seguinte forma: 1 = 0, 2 = 25, 3 = 50, 4 = 75
e 5 = 100. Encontra-se a média para cada uma das subescalas ao somar esses valores
e dividi-los pelo número de itens não marcados como não apropriados. A pontuação
total da escala é a média não ponderada das quatro subescalas.

102
CAPÍTULO 6
Canabinoides na doença de Parkinson

Figura 29. Canabinoides na doença de Parkinson.

Fonte: adaptado de https://cientistasfeministas.wordpress.com/2018/03/28/a-terapia-de-estimulacao-cerebral-profunda-e-a-doenca-de-


parkinson/. Acesso em: 06 dez. 2020.

Já em 1888, Gowers observou os benefícios do “cânhamo indiano” em uma síndrome


parkinsoniana. Devido à densidade de receptores canabinoides nos gânglios da base,
a DP tem sido uma área de pesquisa ativa, mas com resultados terapêuticos mistos.
Um extrato oral de THC: CBD não mostrou benefícios significativos na discinesia,
ou em outros sinais, em dezessete pacientes, mas o CBD foi útil para cinco pacientes
que possuem DP com psicose; para vinte e um pacientes com mais sintomas gerais; e,
mais especificamente, no distúrbio do sono de movimentos oculares rápidos em quatro
pacientes. Um estudo observacional mostrou que 22/28 pacientes toleraram Cannabis
fumada (presumivelmente com predominância de THC) e mostraram benefícios
agudos em tremor, rigidez e bradicinesia. Cinco dos nove pacientes que usam Cannabis
relataram grande melhora, particularmente no humor e no sono.

Uma pesquisa cuidadosamente elaborada com 339 pacientes tchecos, que usaram folhas
de Cannabis orais, relatou alívios significativos de vários sintomas, particularmente
aqueles indivíduos que usaram o tratamento por três ou mais meses. Houve melhora na
função geral (p <0,001), em repouso tremor (p <0,01), bradicinesia (p <0,01) e rigidez
(p <0,01), com poucos efeitos colaterais.

Enquanto a DP é comumente atribuída à perda de células na substantia nigra, com


acronicidade, a patologia generalizada é a norma. Em comum com a doença de Alzheimer
(DA), as proteínas tau, que regulam a montagem dos microtúbulos, a integridade
do citoesqueleto e o transporte axonal nos neurônios, desenvolvem emaranhados
103
Unidade II | Cannabis medicinal na neurologia

neurofibrilares. Curiosamente, os nabiximóis reduziram esses emaranhados em


camundongos com expressão de tau humana nula de Parkinson, com melhora em
metabolismo da dopamina, função glial e estresse oxidativo, bem como redução de
ansiedade e autolesão.

Vários medicamentos baseados em canabinoides (CB) estão atualmente aprovados, em


vários países, para indicações clínicas, incluindo dor, anorexia, espasticidade, náuseas
induzidas por quimioterapia e graves encefalopatias epileptogênicas refratários da infância.

O sistema endocanabinoide (SEC) está altamente representado nos gânglios da base e


foi encontrado com alterações em vários distúrbios de movimento, incluindo doença
de Parkinson (DP). Pesquisas pré-clínicas sugerem que a modulação da sinalização
CB pode melhorar os sintomas motores. Entre os sintomas motores, as discinesias
induzidas por levodopa (LIDs) complicam dramaticamente a farmacologia de longo
prazo do tratamento em pacientes com DP.

Sistema endocanabinoide e dopamina

O SEC é constituído por endocanabinoides (eCBs), enzimas para síntese (N-araquidonoil-


fosfatidiletanolamina Fosfolipase D específica de [NAPE] e diacilglicerol [DAG] lipase-a)
e para degradação (amida de ácido graxo hidrolise [FAAH] e monoacilglicerol lipase
[MAGL]) enzimas e receptores CB (CBRs).

Os eCBs mais bem caracterizados (N-arachidonoiletanolamina [AEA] ou anandamida


e 2-araquidonoilglicerol [2-AG]) interagem com os dois receptores (CB1R e CB2R),
assim como com outros receptores, incluindo o receptor transitório potencial vaniloide
canal catiônico tipo 1 (TRPV1), o canal de ligação ao GTP receptor acoplado à proteína
GPR55 e o receptor ativado por proliferador de peroxissoma (PPAR).

Os eCBs regulam a transmissão sináptica e produzem um mecanismo de feedback


biológico destinado a prevenir um excesso de excitação ou inibição. Essa ‘’sinalização
retrógrada’’ resulta na supressão induzida pela despolarização de inibidores nas sinapses
GABAérgicas e na supressão de excitação induzida pela despolarização (DSE) em
sinapses glutamatérgicas. A localização pré-sináptica do CB1R também permite que os
eCBs modulem diretamente outros neurotransmissores, incluindo peptídeos opioides,
acetilcolina e 5-hidroxitriptamina (5-HT).

Embora os neurônios dopaminérgicos nigroestriatais pareçam não expressar CB1R,


eles são significativamente afetados pela ativação ou pelo bloqueio do SEC. Esses efeitos
são provavelmente mediados por CB1R, que é localizado em outras subpopulações
104
Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

neuronais, ou seja, GABAérgica, gluta-neurônios e opioidérgicos localizados próximos e


conectados a neurônios dopaminérgicos. Na verdade, deve ser lembrado que os neurônios
dopaminérgicos podem, por sua vez, produzir eCBs com base em seu corpo físico e em
dendritos, facilitando a sinalização retrógrada em sinapses excitatórias e inibitórias.

Mecanismos diretos adicionais foram propostos para explicar a modulação de


eCBs na transmissão dopaminérgica. Alguns eCBs, incluindo AEA, interagem com
receptores TRPV1, que são expressos em neurônios dopaminérgicos. CB1R pode
formar heterômeros com outros receptores metabotrópicos, incluindo o receptor
dopaminérgico D1 e D2. Finalmente, CB2R foram identificados em neurônios
dopaminérgicos nigroestriatais humanos. Isso pode apoiar um papel direto de eCBs
na modulação de transmissão dopaminérgica.

Interações entre canabinoides e dopamina nos gânglios


da base

A ativação do SEC foi associada à inibição motora e redução da atividade dopaminérgica.


Em condições hipercinéticas, o tônus de eCB reduzido acompanha o aumento da atividade
dopaminérgica, enquanto, em distúrbios de movimento hipocinéticos, o padrão oposto
é observado. Em modelos experimentais de DP, os eCBs podem potencializar os efeitos
hipocinéticos dos agentes depletores de DA e reduzir os efeitos das drogas que produzem
hiperestimulação dos receptores dopaminérgicos. Em particular, foi proposto que a
inibição motora produzida pela estimulação do CB1R é mediada pela regulação do estado
de fosforilação de um mediador crítico da ação da dopamina nos neurônios estriados,
fosfoproteína regulada por dopamina e cAMP de 32 kDa (DARPP -32).

No âmbito celular, as interações entre os endocanabinoides e a dopamina parecem


ser muito mais complexas. Primeiro, a transmissão dopaminérgica pode influenciar
os níveis de eCBs no estriado, conforme mostrado pelo aumento dos níveis de AEA
após estimulação do receptor D2. Esse efeito depende tanto da estimulação de sua
síntese quanto da inibição de sua degradação, conforme sugerido pela capacidade
dos agonistas do receptor tipo D2 em modular a atividade da NAPE-fosfolipase D e
FAAH. Essa atividade eCB, estimulada por DA, pode contrariar a ação da ativação
do receptor D2 no corpo estriado e sugere um mecanismo de feedback inibitório que
visa limitar o efeito hipercinético da dopamina. Para adicionar mais complexidade,
uma ação cooperativa dos receptores CB1 e D2 também foi proposta pelas descobertas
de que AEA produzida por estimulação DA pode aumentar os efeitos da ativação do
receptor D2. De fato, a inibição da transmissão de GABA, por meio de receptores
semelhantes a D2, pode ser parcialmente evitada pelo bloqueio de CBR, o que sugere
105
Unidade II | Cannabis medicinal na neurologia

que eCBs podem atuar como efetores a jusante de receptores D2. Consequentemente,
os receptores D2 e CB1
​​ são expressos nos terminais GABA do corpo estriado.

A complexa interação entre a dopamina e os eCBs (Figura 30) explica bem a reorganização
desses sistemas, tanto na DP idiopática quanto na experimental. Estudos anteriores em
DP experimental mostraram atividade aumentada de eCBs nos gânglios da base, incluindo
níveis aumentados de mRNA de CB1, atividade de CB1, níveis de AEA e diminuição da
depuração de CB. Consequentemente, o nível aumentado de AEA foi demonstrado no
líquido cefalorraquidiano de pacientes com DP não tratados. Além disso, foi relatado aumento
da expressão de receptores CB1 nos gânglios da base. Essas alterações estão associadas à
supressão do movimento e podem ser revertidas pelo tratamento crônico com levodopa.
Figura 30. Mecanismos esquemáticos das interações entre o sistema canabinoide e a transmissão dopaminérgica no âmbito
dos gânglios basais.

GABA

DARPP-32 Glu

GABA

DARPP-32
DA
GABA A1
5HT
A2A

SNC

Glu
GABA

CB1R D1 NMDAR Glu


DA
CB2R CBs
D2
GABAR GABA
TRPV1

Fonte: https://www.liebertpub.com/doi/10.1089/can.2017.0002#. Acesso em: 06 dez. 2020.

106
Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

Na Figura 30, podemos observar os mecanismos esquemáticos que explicam as interações


entre o SEC e a transmissão dopaminérgica no âmbito dos gânglios basais. No círculo
vermelho estão representados receptores adicionais envolvidos na sinalização de
canabinoides. A1, receptor de adenosina A1; A2A, receptor de adenosina A2A; CB1R,
receptor canabinoide tipo 1; CB2R, receptor canabinoide tipo 1; CBs, canabinoides;
D1, receptor de dopamina tipo 1; D2, receptor de dopamina tipo 2; DA, dopamina;
DARPP-32, DA- e cAMP regularam fosfoproteína de 32 kDa; Glu, glutamato; GABAR,
receptor do ácido y-aminobutírico; GABA, ácido y-aminobutírico; Receptor 5HT,
5-hidroxitriptamina; NMDAR, receptor de N-metil- d- aspartato; TRPV1, canal de
cátion do tipo 1 vaniloide receptor transitório.
Enquanto algumas dessas alterações podem refletir mecanismos compensatórios
endógenos que visam limitar os efeitos da perda de dopamina nos gânglios da base,
outras provavelmente contribuem para a geração dos sintomas motores parkinsonianos
típicos.

Plasticidade dos gânglios da base em discinesias


induzidas por levodopa
A dopamina desempenha um papel fundamental na produção de duas formas opostas
de plasticidade sináptica corticostriatal: depressão de longo prazo (DLP) e potenciação
de longo prazo (PLP). DLP torna as sinapses glutamatérgicas menos excitáveis ​​para
estimulação futura e PLP fortalece as conexões entre os neurônios corticais e estriados.
A reversão de PLP é chamada de despotenciação (D-PLP) e opera para redefinir a
transmissão sináptica ao estado inicial. Embora tanto a despotenciação quanto o PLP
reduzam a força da transmissão sináptica, a despotenciação por si só é incapaz de
deprimir sinapses não potencializadas e requer a ativação dos receptores NMDA. Na
DP experimental, os LIDs estão associados à plasticidade corticostriatal aberrante, em
particular, LTP corticostriatal é favorecida em relação ao LTD e também é anormalmente
estável e refratária à despotenciação.
A despotenciação pode seguir mecanismos diferentes, como D-PLP homossináptica
exigindo a ativação das mesmas vias que desencadearam PLP; inversamente, o D-PLP
heterossináptico envolve entradas diferentes daquelas contidas no PLP. Estudos
anteriores mostraram que D-PLP heterossináptico envolve CB1, GABA-A e receptores
de adenosina A1 e sinalização ERK 1/2 e p38 MAPK, e também mostraram que eCBs
desempenham um papel complexo nas alterações pré-sinápticas e pós-sinápticas.
É importante notar que a ativação dos receptores de adenosina A1 também está
envolvida em outras formas de PLP e despotenciação.
107
Unidade II | Cannabis medicinal na neurologia

Estudos pré-clínicos

Estudos pré-clínicos com diferentes modelos de DP experimental investigaram os


efeitos tanto de agonistas quanto de antagonistas do CBR, usados ​​isoladamente ou
como coadjuvantes.

Os agonistas CB1 inibem a liberação de dopamina nos gânglios basais e, portanto,


espera-se que sejam ineficazes no alívio dos sintomas motores da DP. Os agonistas
CB1 exacerbaram a bradicinesia em primatas lesionados por 1-metil-4-fenil-1,2,3,6-
tetra-hidropiridina (MPTP). No entanto, também foi relatado que diferentes agonistas
CB1 melhoram o comprometimento motor, possivelmente por meio de mecanismos
não-dopaminérgicos, incluindo interações com receptores de adenosina A2A e 5-HT.

Estudos de antagonistas CB1 mostraram de forma mais consistente uma melhora dos
sintomas motores. Bloqueio de CB1R com rimonabanto ou com outros antagonistas
reduziu a acinesia e o comprometimento motor em modelos experimentais de DP,
embora alguns outros estudos tenham mostrado resultados conflitantes. Além disso, o
rimonabanto foi mais eficaz quando usado em doses baixas e em fases muito avançadas
da doença, que são caracterizadas por dano grave à substancia negra. Esses efeitos
parecem envolver mecanismos não dopaminérgicos, incluindo aumento da liberação
de glutamato estriatal.

O SEC pode estar envolvido em LIDs, mas os resultados são controversos. Embora esse
sistema seja modulado em diferentes modelos experimentais de DP e em resposta ao
tratamento crônico com levodopa, não se sabe se essas alterações são compensatórias ou
causais. Estudos pré-clínicos mostraram que tanto os agonistas quanto os antagonistas
do CB1R representam agentes antidiscinéticos potencialmente úteis.

Os efeitos antidiscinéticos dos agonistas CBR são mediados por uma normalização da
sinalização de cAMP/PKA e estão associados a uma fosforilação DARPP-32 aumentada.
No entanto, como doses mais altas de agonistas CB1 podem prejudicar a função
motora, foi sugerido que os efeitos nos LIDs podem estar relacionados a uma inibição
motora global. Em um estudo, os inibidores FAAH falharam em reproduzir os efeitos
benéficos dos agonistas CB quando administrados isoladamente. Como os inibidores
de FAAH mostraram propriedades antidiscinéticas apenas quando combinados com
um antagonista do receptor TRPV1, é concebível que os receptores CB1 e TRPV1
operem em direções opostas para controlar os LIDs. Um estudo recente acrescentou
mais complexidade ao sugerir que certos eCBs (por exemplo, AEA) podem reduzir
LIDs quando ativam o PPAR-γ. Efeitos benéficos também foram relatados para o

108
Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

ligante lipídico endógeno do receptor PPAR-α oleoiletanolamida, embora o efeito


antidiscinético tenha sido atribuído ao bloqueio dos receptores TRPV1 em vez da
ativação dos receptores PPAR-α.

Estudos clínicos

Estudos observacionais sugerem que os CBs podem melhorar alguns sintomas motores
e não motores associados à DP. Em duas pesquisas publicadas com pacientes com DP,
foi relatado que a Cannabis fumada produzia algum benefício nos sintomas motores
e não motores, embora esses estudos apresentem várias limitações que podem ter
influenciado os resultados. Uma pequena série de casos não mostrou benefícios para o
tremor após uma única administração de Cannabis fumada. Em contraste, um pequeno
estudo aberto, que avaliou o exame motor 30 minutos após a Cannabis ser fumada,
relatou melhora em tremor, rigidez, bradicinesia, dor e sono. Com relação aos sintomas
não motores, um pequeno estudo aberto de 4 semanas com CBD para psicose em DP
encontrou melhora na Escala de Avaliação Psiquiátrica Breve e no Questionário de
Psicose de Parkinson, e outra pequena série de casos relatou benefícios para o distúrbio
comportamental do sono REM.
Poucos estudos clínicos controlados exploraram os efeitos dos CBs nos sintomas
motores e não motores em pacientes com DP. Um pequeno ensaio randomizado
cruzado, duplo-cego, controlado por placebo (Classe III) e avaliando a eficácia em
LIDs com nabilona (CB1 e agonista CB2) mostrou redução da Escala de Discinesia
Rush e do tempo LID total. Um pequeno estudo cruzado duplo-cego randomizado de
4 semanas (Classe I) explorou o efeito de Cannador® (extrato de Cannabis oral: 1,25
mg de CBD e 2,5 mg de THC) nas LIDs. A Cannabis não conseguiu melhorar os LIDs.
Além disso, nenhuma mudança significativa foi observada para outros resultados
secundários, incluindo sintomas motores (Escala Unificada de Avaliação da Doença de
Parkinson [UPDRS-III]), qualidade de vida (Questionário da Doença de Parkinson-39
[PDQ-39]) ou sono. Porém, deve-se considerar novamente que algumas questões
comprometeram os resultados (ou seja, 71% de identificação correta do tratamento).
Mais recentemente, 21 pacientes com DP foram randomizados para receber placebo,
CBD 75 mg/dia ou CBD 300 mg/dia em um ensaio de 6 semanas. Embora nenhuma
mudança significativa tenha sido encontrada para o UPDRS total, alguma melhora
foi observada no grupo de CBD 300 mg/dia, no que diz respeito à qualidade de vida
(pontuação PDQ-39 total e subescores de atividades da vida diária).
Os dados de alguns estudos sugerem que alguns sintomas motores na DP, em particular
os LIDs, podem responder às terapias à base de Cannabis. De fato, vários fatores (isto

109
Unidade II | Cannabis medicinal na neurologia

é, estágio da doença e tratamento com levodopa, falta de métodos padronizados) pode


explicar os achados conflitantes. Embora nenhum evento adverso grave tenha sido
relatado, os efeitos colaterais incluíram hipotensão, vertigem, alucinações visuais,
tontura e sonolência. Mais estudos são necessários, os quais devem utilizar diferentes
doses, formulações ou sintomas-alvo (por exemplo, distonia, psicose, sono).

Nos últimos anos, um crescente corpo de literatura abordou o papel dos CBs em
condições fisiológicas e patológicas. Em distúrbios do movimento, os estudos
pré-clínicos contribuíram fortemente para aumentar o conhecimento da interação
entre CBs, DA e outras vias de sinalização, o que adicionou novos insights sobre
fisiopatologia e contribuiu para identificar novos alvos farmacológicos.

Efeito da Cannabis medicinal na dor de pacientes


com doença de Parkinson

A doença de Parkinson (DP) é caracterizada por sintomas motores e não motores.


A dor é um dos sintomas não motores mais comuns, com uma prevalência de 40–80%.
Pode aparecer antes ou anos após o início dos sintomas motores e nem sempre
responde aos medicamentos antiParkinson ou aos agentes analgésicos convencionais.
A dor na DP pode ser classificada por tipo em dor musculoesquelética, dor radicular,
distonia, acatisia e dor central. Dor parkinsoniana central é o termo usado na prática
clínica e em pesquisas, mas ainda carece de uma definição adequada e de critérios
validados.

O teste sensorial quantitativo (QST) para limiares térmicos (método de Marstock)


foi introduzido em 1976. O QST é usado para avaliar a função sensorial do receptor
ao córtex e pode indicar a competência das vias sensoriais neuronais periféricas e
centrais. Ele fornece informações sobre o nível e o mecanismo subjacente da dor de
várias etiologias. Estudos com QST, em pacientes com DP e dor central primária,
relataram processamento prejudicado da dor, com limiares de dor por calor mais
baixos do que em pacientes com DP sem dor. Limiares de dor por calor também foram
mais baixos na mão mais afetada do que na mão menos afetada. Alguns não notaram
diferença na intensidade da dor causada pelo calor entre os estados ‘ligado’ e ‘desligado’
em pacientes com flutuações motoras, o que sugere que os resultados do QST não
foram afetados pela dopamina. Outros, no entanto, descobriram que medicamentos
dopaminérgicos aumentaram o limiar de dor causada pelo calor em pacientes com
DP e dor central primária. Ademais, identificaram que a levodopa diminuiu a dor
nociceptiva e normalizou a resposta à dor no estado ‘ligado’.

110
Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

A Cannabis medicinal é conhecida por seus efeitos antinociceptivos e analgésicos no


sistema nervoso periférico e central. Atua por meio de vários mecanismos, como
inibição da atividade do nervo aferente primário, diminuição da resposta neuronal a
um estímulo nocivo e inibição da degranulação de mastócitos. Ainda é controverso
o efeito das drogas, relacionadas aos canabinoides, nos sintomas da DP. Um estudo
em uma clínica de distúrbios do movimento mostrou que o tratamento com Cannabis
medicinal foi associado a uma diminuição nos escores motores e de dor, bem como a
uma melhora na qualidade do sono.

Foi utilizado um desenho de estudo observacional não controlado e aberto. Foram


incluídos 20 pacientes com DP atendidos na Clínica de Distúrbios do Movimento do
Rabin Medical Center, um hospital terciário em Israel. Todos os médicos eram licenciados
pelo Ministério da Saúde de Israel para usar Cannabis medicinal como uma terapia
complementar aos medicamentos antiParkinson em indicações de dor e/ou tremor.
Dezoito pacientes fumaram e dois vaporizaram a Cannabis. Pacientes com diabetes (n
= 2), que pode causar comprometimento sensorial, completaram as avaliações motoras
e questionários de dor, mas não realizaram o QST.

Os dados de base (idade e sexo, duração da doença, pontuação Hoehn e Yahr) foram
derivados dos arquivos médicos. No dia do estudo, os pacientes foram instruídos a
tomar seus medicamentos antiParkinson em casa, normalmente, e a consumir 1 g da
maconha prescrita na clínica. A dose do composto ativo foi uma aproximação, pois
os pacientes estavam recebendo diferentes cepas de Cannabis, de diferentes safras, e o
composto ativo não é monitorado pelo controle de qualidade farmacêutica.

Na clínica, os pacientes foram avaliados antes do consumo de Cannabis e trinta minutos


depois. A função motora foi avaliada com a parte motora da Unified Parkinson’s Disease
Rating Scale (UPDRS). O exame foi gravado em vídeo e os achados foram avaliados de
forma independente pelo médico que examinou os pacientes (RD) e por um segundo
médico que assistiu ao vídeo (NR) e não tinha conhecimento do tratamento. O nível
de dor foi avaliado com o Índice de Avaliação de Dor Total (PRI) e a Escala Visual
Analógica (VAS) do questionário McGill Pain Questionnaire (primeira e segunda seções)
e por um dispositivo QST térmico (Medoc TSA‐ 2001, Ramat Yishai, Israel).

Para o teste sensorial, um termodo de contato foi anexado à eminência tenar, com
pequenas modificações, de acordo com a anatomia do participante para garantir o
contato ideal. O método dos limites foi aplicado por meio de um estímulo de 32°C que
foi então diminuído/aumentado sucessivamente a uma taxa de 1°C/s. A temperatura
mínima foi de 0°C e a máxima, 50°C. Foram geradas quatro categorias de estímulos:

111
Unidade II | Cannabis medicinal na neurologia

sensação de calor e sensação de frio (quatro estímulos sucessivos cada) e dor de calor
nociva e dor de frio nociva (três estímulos sucessivos cada). Os pacientes foram
instruídos a pressionar um botão com a mão não testada no ponto em que a sensação
de calor/frio/dor fosse alcançada e o resultado fosse registrado. O limite final foi
calculado como o valor médio de todos os testes para cada categoria em cada mão.
Para o presente estudo, os resultados foram organizados de acordo com o membro mais e
menos afetado. O membro mais afetado foi definido como o lado do início da doença.

Para validar as duas medições consecutivas do QST, duas séries do teste foram realizadas
em um intervalo de 30 minutos, em 12 pacientes com DP, os quais nunca haviam sido
tratados com Cannabis.

Os questionários de dor e QST foram repetidos no grupo de estudo após, pelo menos,
10 semanas de uso continuado de Cannabis. O intuito era avaliar o efeito, em longo
prazo, da exposição à Cannabis. Durante esse período, os pacientes foram orientados
a tomar uma dose diária de 1 g de Cannabis (fumar ou inalar).

Resultados

A idade média dos pacientes tratados com Cannabis foi de 62,4 ± 9 anos (variação de 43-
78). A duração média da doença foi de 6,8 ± 3,5 anos (intervalo de 2–14) e a pontuação
média de Hoehn e Yahr foi de 2,2 ± 0,8 (intervalo de 1–4). Quatorze dos vinte pacientes
foram tratados com preparações de levodopa, com uma dose equivalente de levodopa
média de 608 ± 410 mg (intervalo de 250-1000). Cinco pacientes foram tratados com
agentes anticolinérgicos; seis, com agonistas da dopamina; três, com amantadina; e cinco,
com rasagilina. Seis pacientes apresentaram flutuações motoras. Nenhum dos pacientes
teve uma pontuação <24 no mini exame do estado mental durante o ano anterior ao
estudo. No grupo de controle, a idade média dos pacientes foi de 70 ± 7,2 anos (variação
de 59–82) e a duração média da doença, de 6 ± 2,6 anos (variação de 2–12). Onze dos doze
pacientes foram tratados com levodopa, com uma dose média equivalente de levodopa
de 477 ± 143 mg (intervalo 300–625). Dois pacientes apresentaram flutuações motoras.

Todos os pacientes tratados com Cannabis preencheram os critérios para dor


parkinsoniana central, como segue: aparecimento de dor antes do início dos sintomas
motores; primeiro aparecimento de dor no lado em que surgiram os sintomas motores;
dor abdominal ou genital inexplicável; dor que não poderia ser explicada por outras
causas, relacionadas ou não à DP (artrite, dor musculoesquelética ou distônica). Oito
pacientes também apresentaram dor musculoesquelética e dois pacientes apresentaram
dor distônica.
112
Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

Todos os pacientes completaram a avaliação dos sintomas motores e os questionários


de dor no início do estudo, e dezoito deles também foram submetidos ao QST, de
acordo com os critérios de inclusão. Quinze pacientes completaram a avaliação de
acompanhamento. A avaliação de acompanhamento foi realizada entre 10–40 semanas
após a avaliação inicial (mediana de 14 semanas).

O estudo sugere que o tratamento com Cannabis pode diminuir os sintomas motores e
a dor subjetiva em pacientes com DP e dor parkinsoniana central. A melhora no escore
motor UPDRS pode ser explicada pela abundância de receptores canabinoides (CB1)
no globo pálido e na substância negra. O tremor também melhorou, talvez porque
os canabinoides induzem uma diminuição na acetilcolina, pelo menos em modelos
animais. Esses resultados estão de acordo com um estudo anterior de pacientes com
DP, em que UPDRS e escores de dor (PPI e VAS) diminuíram após o tratamento com
Cannabis. A análise quantitativa mostrou uma diminuição no limiar da dor causa pelo frio
no membro mais afetado após a exposição imediata à Cannabis e diminuição no limiar
da dor causada pelo calor no membro mais afetado após a exposição de longo prazo.

A regulação da dor ocorre por meio de vias ascendentes e descendentes ao nível da


medula espinhal, cinza periaquedutal, tálamo e córtex. Dor imediata e sensação de frio
são transmitidas para a medula espinhal por meio de pequenas fibras Aδ mielinizadas,
enquanto a dor tardia e a sensação de calor são transmitidas para a medula espinhal por
meio de pequenas fibras C amielínicas. Os receptores de canabinoides estão espalhados
por todas as vias da dor, incluindo axônios das fibras Aδ e C, mais excessivamente nas
primeiras. Com esses dados, há duas explicações possíveis para os achados:

1) O calor e a dor causados pelo frio são regulados de forma diferente após o uso
imediato ou crônico de Cannabis. Há rápida ativação dos receptores Aδ, daí o efeito
imediato na sensação de frio, que causa hipoalgesia ao frio, e um efeito tardio nos
receptores de fibra C, que são responsáveis pela dor causada pelo calor.

2) Diferentes receptores estão envolvidos na dor causada pelo calor e pelo frio: os
receptores CB1 são responsáveis pela transdução da dor ocasionada pelo frio e os
receptores TRPV1 são responsáveis pela transdução da dor provocada pelo calor. Pode
ser que, após o uso crônico, a Cannabis cause uma liberação de substância P mediada
por TRPV1 e proteína relacionada ao gene da calcitonina (CGRP), que leva à excitação
dos neurônios ganglionares da raiz.

A dor é uma sensação complexa, afetada por fatores fisiológicos, psicológicos, ambientais
e genéticos. Estudos demonstraram uma correlação entre certos polimorfismos de

113
Unidade II | Cannabis medicinal na neurologia

nucleotídeo único (SNPs) associados a moléculas relacionadas a canabinoides com


variáveis ​​de dor. Por exemplo, a presença do SNP rs2295633, no gene que codifica
FAAH, desempenha um papel na sensibilidade à dor causada pelo frio de curto prazo
em uma coorte de homens europeus ‐ americanos. No presente estudo, 10 dos 18
pacientes tratados com Cannabis foram submetidos a QST e examinados para SNPs
no gene FAAH. Dentre esses indivíduos, cinco tinham SNP rs2295633.

Os estudos descobriram que a Cannabis teve um efeito benéfico notável em várias


medidas de dor, mas não teve nenhum efeito na resposta a estímulos de calor nocivos
logo após o tratamento. Em alguns estudos, todos os pacientes tratados com Cannabis
apresentaram dor parkinsoniana central. Isso também pode explicar a discrepância
entre a diminuição da dor após a exposição à Cannabis de acordo com as respostas do
questionário e as mudanças dissociadas na sensação de dor provocada pelo calor e pelo
frio, conforme os resultados do QST. A percepção central da dor pode ser influenciada
pelo efeito psicoativo da Cannabis, que é conhecido por melhorar a autopercepção do
bem-estar geral e da experiência de dor. Assim, é possível que os parâmetros QST não
reflitam os variados efeitos psicotrópicos centrais da Cannabis.

A dopamina pode modular os limiares sensoriais em pacientes com DP por um efeito


antinociceptivo ou de modulação da dor. Nos estudos, o exame de todos os pacientes
durante o uso de medicamentos tornou possível isolar o efeito da Cannabis no limiar da
dor. Além disso, os pacientes em uso de medicamentos podem ter melhor capacidade
cognitiva global e impulso motivacional durante os testes. Também é digno de nota que
a importância desse fator é diminuída devido à resposta de longa duração à levodopa
em pacientes com DP.

114
CAPÍTULO 7
Efeitos dos canabinoides na esclerose
lateral amiotrófica (ELA)

Figura 31. Cannabis e ELA.

Fonte: https://blog.drcannabis.com.br/doenca-de-crohn-e-cannabis-medicinal/. Acesso em: 06 dez. 2020.

A esclerose lateral amiotrófica (ELA) é uma doença neurodegenerativa que resulta na


degeneração dos neurônios motores corticais e das espinhais. Ademais, é caracterizada
por uma paralisia muscular progressiva. Envolve características do neurônio motor
superior e do neurônio motor inferior, como dificuldade em fala e deglutição, atrofia
muscular progressiva e fraqueza muscular. Mutações genéticas causais, das quais pelo
menos 25 mutações genéticas foram identificadas, são responsáveis por 5–10% dos
casos de ELA, enquanto o restante é idiopático.

O mecanismo de degeneração dos neurônios motores na ELA é multifatorial. As teorias


incluem redução da captação de glutamato, alterações no processamento e metabolismo
do RNA, disfunção na proteostase e controle da qualidade da proteína, disfunção
mitocondrial, hiperativação da microglia, defeitos da dinâmica do citoesqueleto nos
axônios motores e terminais distais, e comprometimento sináptico. Esses mecanismos
são conhecidos por prejudicar a função dos neurônios motores que podem levar
à excitotoxicidade, ao dano oxidativo, à ativação de processos inflamatórios e,
consequentemente, à apoptose neuronal.

Canabinoides são conhecidos por possuírem propriedades antiexcitotoxicidade,


antioxidante e anti‐inflamatória, e, consequentemente, foram propostos como potenciais
115
Unidade II | Cannabis medicinal na neurologia

agentes terapêuticos para ELA. Relatórios sugeriram a necessidade de realizar ensaios


clínicos com canabinoides em pacientes com ELA. No entanto, não houve uma
avaliação sistemática e rigorosa dos estudos pré-clínicos para fornecer evidências que
apoiariam esses ensaios.

Estudos com camundongos e canabinoides, principalmente agonistas do receptor de


canabinoides tipo 1 e tipo 2 (CB1R e CB2R) atrasaram significativamente o declínio da
função motora. O declínio da função motora de camundongos tratados com canabinoides
foi preservado por até 10 dias quando comparado ao grupo controle. Além disso, o
declínio motor foi preservado por até 22 dias para alguns ratos. A função motora
também foi significativamente preservada em camundongos tratados com canabinoide
em comparação com controles. O tempo para iniciar o tratamento não afetou a
desaceleração do declínio da função motora, no entanto isso ocorreu por causa de
doses mais altas de canabinoides.

Os estudos demonstram a eficácia potencial dos canabinoides de prolongar a sobrevivência


e retardar a progressão da doença em modelos animais de ELA.

O CBD modula a ativação de CBRs e amplia sua janela terapêutica, o que pode
afetar a melhora significativa da sobrevida e desaceleração da progressão da ELA.
Existem também benefícios conhecidos do CBD, como propriedades anti‐inflamatórias,
neuroprotetoras e ansiolíticas. Com base nessas evidências, pode-se argumentar que
um ensaio clínico com uma combinação de Δ9‐THC baixo e alto CBD é a intervenção
mais apropriada para investigar pacientes com ELA.

No geral, estudos recentes mostraram que os canabinoides inibem a liberação de


citocinas pró-inflamatórias e quimiocinas em modelos pré-clínicos neurológicos,
suprimindo a resposta inflamatória. Apresentam também ação potente na inibição
do estresse oxidativo e nitrosativo, modulam a expressão do óxido nítrico sintetase e
reduzem a produção de espécies reativas de oxigênio (ROS). Além disso, descobriu-se
que os canabinoides exercem ação antiglutamatérgica ao inibir a liberação de glutamato
e aumentar o efeito do neurotransmissor inibidor ácido gama-aminobutírico (GABA).
Quase todas as propriedades exibidas por esses compostos levaram os pesquisadores
a investigar seus potenciais efeitos terapêuticos na ELA e forneceram resultados
interessantes.

Como já comentado, o sistema canabinoide parece estar envolvido na patogênese


da ELA. A medula espinhal de pacientes com ELA demonstra danos nos neurônios
motores marcados por microglia/macrófagos CB2-positivos. Além disso, um estudo

116
Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

recente, que analisou a microglia ativada da medula espinhal em pacientes humanos


com ELA, demonstrou um aumento dos receptores CB2. Portanto, todos esses dados
mostram como a edição de processos mediados por CB2 pode alterar a progressão da
ELA e o quanto o SEC está potencialmente envolvido na redução de neuroinflamação,
excitotoxicidade e dano celular oxidativo. A possibilidade de que os canabinoides
possam fornecer efeitos terapêuticos na ELA também foi investigada no âmbito clínico.
No entanto, o pequeno número de pessoas com ELA, que relatou usar Cannabis, e os
poucos estudos realizados em ELA humana dificultam a interpretação dos resultados
alcançados. No entanto, acredita-se que a Cannabis possa ser útil para o tratamento
sintomático da ELA.

De acordo com um único estudo observacional de pacientes com ELA, apenas 10%
que admitiram consumir Cannabis revelaram alívio moderado de vários sintomas,
incluindo perda de apetite, depressão, dor e salivação.

Além disso, a espasticidade também é um grande problema para pacientes com ELA,
os quais relataram que a Cannabis pode melhorar subjetivamente essa condição. Além
disso, um estudo cruzado duplo-cego randomizado, que investigou a segurança e
tolerabilidade do Δ9-THC em pacientes com ELA, revelou que a administração oral
de Δ9-THC foi bem tolerada, mas uma atenuação não significativa da frequência
e intensidade da cãibra foi encontrada. Outros estudos confirmaram os mesmos
resultados, demonstrando que a Cannabis é extremamente segura, sem possibilidade
de overdose.

Até agora, não há estudos clínicos, amplamente apoiado por estudos experimentais,
que tenham tentado provar o potencial dos canabinoides como terapias modificadoras
da doença. Portanto, essa hipótese continua sendo um grande desafio para pesquisas
futuras.

À luz dos relatos, há uma justificativa válida para propor o uso de compostos canabinoides
no manejo farmacológico de pacientes com ELA. Os canabinoides, de fato, são capazes
de retardar a progressão da ELA e prolongar a sobrevivência. No entanto, a maioria
dos estudos que investigaram o potencial neuroprotetor desses compostos na ELA foi
realizada em modelo animal, enquanto os poucos ensaios clínicos que investigaram
medicamentos à base de canabinoides focaram apenas no alívio dos sintomas relacionados
à ELA, não no controle de progressão da doença. Este continua sendo o maior desafio
para o futuro e pode ser facilitado pela recente aprovação do primeiro medicamento
à base de canabinoide disponível para uso clínico.

117
Unidade II | Cannabis medicinal na neurologia

Figura 32. Dona Valda.

Fonte: https://www.cannabisesaude.com.br/cannabis-tratamento-esclerose-lateral-amiotrofica/. Acesso em: 06


dez. 2020.

Dona Valda começou a cair; “a perna sumia”. Após a realização de exames, Dona
Valda Alves foi diagnosticada com a esclerose lateral amiotrófica (ELA), uma
doença degenerativa, sem cura e que afeta movimentos, fala e funcionamento
dos órgãos.

Segundo seu filho farmacêutico, Luciano Alves, a doença causa a degeneração


da bainha de mielina, que é o revestimento dos neurônios, e causa perda de
movimentos. Como a doença não tem cura, a família buscou um tratamento
alternativo e fizeram aposta na Cannabis medicinal. Hoje, aos 73 anos, Dona Valda
diz que a enfermidade foi freada.

Apesar da gravidade, a doença de dona Valda tem uma forma leve, o que fez o
diagnóstico demorar bastante. Alves conta que a notícia foi dada com a presença
de psicólogo e fisioterapeuta, pois não é uma notícia fácil de absorver. Apesar do
impacto, ele conta que a força da família veio da própria Valda: “Sei que é difícil,
mas essa doença não vai me derrubar”.

O tratamento conta com o apoio de fisioterapeuta, fonoaudiólogo, pneumologista,


nutricionista e com o medicamento próprio para desacelerar a progressão da
doença: o Riluzol, distribuído pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

O tratamento com a Cannabis foi feito com um blend de 6% de CBD e 2% de THC,


que Alves importou.

Além da Cannabis, Valda toma vitaminas, minerais e faz reposição hormonal.


A alimentação dela também foi adaptada e, em consequência disso, da família
toda. Cortaram a farinha de trigo e o milho, e substituíram o leite de vaca pelo
de búfala e cabra.

Hoje, Valda toma apenas três alopáticos: o remédio para tireoide, o Riluzol e
um antidepressivo, que auxilia nas dores que a ELA causa. A Cannabis é um
adjuvante dos tratamentos, ou seja, uma substância que aumenta a eficácia de
outros medicamentos. É tomada junto com vitaminas e minerais. Alves conta que
já conseguiram retirar alguns alopáticos.

118
Cannabis medicinal na neurologia | Unidade II

Com um ano de tratamento de Cannabis, a médica pediu o acréscimo de um isolado


de CBD, para ajudar na preservação da bainha de mielina.

Ela mantém as sessões de fisioterapia e exercícios com o andador, que foi feito pelo
marido. Caminha e faz seus exercícios respiratórios. Como a doença é degenerativa,
Luciano entende que há dias em que a voz da mãe está mais fraca, mas se alegra
por terem conseguido estagnar a piora da doença.

119
CANNABIS MEDICINAL
EM PSIQUIATRIA UNIDADE III

CAPÍTULO 1
Cannabis no tratamento de transtorno
de ansiedade e síndrome do pânico

Figura 33. Cannabis na ansiedade.

Fonte: https://linhacanabica.com/blog/beneficios-da-maconha/maconha-util/. Acesso em: 06 dez. 2020.

Devido às suas ações analgésicas, antieméticas e tranquilizantes, há séculos a erva


Cannabis sativa tem sido usada com propósitos medicinais. Os efeitos típicos da Cannabis
são amnésia, sedação e sentimento de bem-estar, que é descrito como “felicidade”.
Na metade do século passado, identificaram o Δ9-tetrahidrocanabinol (Δ9-THC) como
o seu principal ingrediente psicoativo. Sua natureza lipídica colocou um obstáculo
significativo às experiências químicas, o que poderia explicar o porquê a descoberta dos
fitocanabinoides ocorreu tardiamente em comparação com outros compostos naturais
(e.g. a morfina foi isolada do ópio no século 19). A estrutura molecular sugeria que o
120
Cannabis medicinal em psiquiatria | Unidade III

Δ9-THC exercesse seus efeitos primariamente por meio da alteração das características
físico-químicas das membranas celulares. Portanto, foi uma surpresa a identificação de
sítios específicos de acoplamento no cérebro dos mamíferos, seguidos por isolamento
e caracterização das substâncias ligantes endógenas, denominadas endocanabinoides.
O desenvolvimento de novos compostos farmacológicos, que tinham como alvo os
receptores ou a síntese e a degradação dos ligantes, revelou várias funções cerebrais
complexas, que são estritamente controladas pelo sistema endocanabinoide.

Os neurotransmissores clássicos, tais como a acetilcolina, os aminoácidos (e.g. glutamato,


GABA) ou as monoaminas (e.g. dopamina, serotonina), preenchem os seguintes
critérios:

1. Os transmissores são sintetizados nos terminais pré-sinápticos por meio de


precursores específicos e armazenados em vesículas sinápticas.
2. Eles são liberados na fenda sináptica após um influxo de cálcio.

3. Há mecanismos específicos para que finalizem suas ações, incluindo a


captação e a degradação enzimática.

Esses critérios tornam os endocanabinoides mensageiros atípicos, que medeiam a


transferência das informações dos terminais pós aos pré-sinápticos de uma forma
retrógrada: os endocanabinoides são sintetizados sob demanda e não são armazenados em
vesículas. As sínteses ocorrem nos neurônios pós-sinápticos após o influxo de cálcio e a
subsequente ativação das fosfolipases (fosfolipase D, no caso da anandamida, e diaciglicerol
lipase, no caso da 2-AG), que convertem os fosfolipídeos em endocanabinoides.
Eles parecem atingir imediatamente a fenda sináptica por meio da difusão livre ou
assistida e se acoplar aos receptores CB1 pré-sinápticos. Por meio de uma rede complexa
de processos de sinalização intracelular, a ativação dos receptores CB1 resulta, finalmente,
em uma diminuição no influxo de cálcio nos terminais axônicos e, dessa forma, na
diminuição da liberação do transmissor. Ademais da ativação do CB1, a ativação dos
receptores TRPV1, pela anandamida, leva à despolarização aumentada das membranas
pós-sinápticas. Portando, a ativação do CB1 e do TRPV1 parece exercer efeitos opostos.

Assim como no caso dos neurotransmissores clássicos, as ações dos endocanabinoides


são limitadas por um processo em duas etapas: internalização seguida por catabolismo.
A primeira etapa ainda não está clara, já que é debatido se a internalização dos
endocanabinoides ocorre passivamente por meio da difusão ou por transportadores
específicos. Após a internalização, os endocanabinoides sofrem hidrólise enzimática.
As principais enzimas responsáveis pela hidrólise da anandamida e da 2-AG são a amida
121
Unidade III | Cannabis medicinal em psiquiatria

hidrolase de ácidos graxos (FAAH) e a lipase monoacilglicerol (MGL), respectivamente.


É intrigante que os dois endocanabinoides sejam degradados tanto de forma pré-sináptica
(2-AG) como pós-sináptica (anandamida). Tanto a FAAH quanto a MGL emergiram
como importantes alvos farmacológicos com potencial terapêutico promissor.

Estudos em modelos animais forneceram evidências mais diretas sobre o envolvimento


do sistema endocanabinoide na ansiedade e na depressão.

As alterações nos níveis de endocanabinoides estiveram de acordo com os dados


comportamentais. Por exemplo, vários estressores causaram um aumento nos níveis
de endocanabinoides na amígdala ou substância cinzenta periaquedutal. Ao mesmo
tempo, eles os reduziram em outras estruturas, como o hipocampo. A regulação
divergente da síntese da anandamida versus 2-AG e das alterações tônicas versus fásicas
ilustram a complexidade desses processos. As alterações da sinalização endocanabinoide
no hipotálamo podem contribuir para as consequências modulatórias do sistema
endocanabinoide na regulação das respostas hormonais ao estresse.

Poucos estudos mediram os níveis de endocanabinoides em transtornos psiquiátricos


até hoje: as concentrações séricas basais de AEA e de 2-AG estavam significativamente
reduzidas em mulheres com depressão maior, o que sugere um papel de tal sistema
nesse transtorno. Além disso, os pacientes com esquizofrenia apresentaram níveis
aumentados de anandamida no líquido cérebro-raquidiano. No entanto, devido à
complexidade da sinalização endocanabinoide intracelular mencionada antes, as medidas
de endocanabinoides em amostras sanguíneas, e até do líquor, poderiam ser de valor
limitado para a nossa compreensão sobre o envolvimento do sistema endocanabinoide
nos distúrbios de humor. No conjunto, com poucas exceções, a maioria dos dados
pré-clínicos e clínicos dão suporte a um cenário em que a sinalização atenuada de
endocanabinoides promove a ocorrência de sintomas semelhantes aos da ansiedade
e da depressão.
As diversas substâncias que interferem no sistema endocanabinoide e na sinalização
do CB1 foram extensamente estudadas em animais, em termos da eficácia e dos efeitos
colaterais na regulação do humor e da ansiedade. Os próximos parágrafos discutem as
vantagens e limitações de cada uma das estratégias de tratamento.

1. Agonistas de receptores de canabinoides:

Doses baixas de Δ9-THC e seus análogos sintéticos exercem efeitos semelhantes


aos ansiolíticos em modelos animais que apresentam transtorno de ansiedade
generalizada. Ademais, os canabinoides prejudicaram a formação do medo
122
Cannabis medicinal em psiquiatria | Unidade III

contextual, mas facilitaram a sua extinção. Além das atividades assemelhadas às


ansiolíticas, os canabinoides demonstraram propriedades assemelhadas às dos
antidepressivos. No âmbito comportamental, eles aliviaram as consequências
dos estressores inevitáveis em modelos animais da depressão. Além disso,
os canabinoides aumentaram os níveis de neurotrofinas, induziram a
neurogênese hipocampal e suprimiram a secreção do hormônio do estresse.
Alguns autores defendem que, ainda que se possam vislumbrar aplicações
terapêuticas para essas substâncias, há grandes obstáculos que limitam sua
aplicabilidade na prática clínica. Por exemplo, o tratamento com canabinoides
pode causar adição e tolerância, induzir efeitos sedativos e prejudicar o
aprendizado e a memória. Em geral, doses baixas de THC tendem a reduzir
ansiedade, ao passo que doses mais altas podem induzir efeitos opostos.
As razões para essas diferenças ainda estão por ser determinadas. Elas poderiam
ser atribuídas às ações dependentes da dose em diferentes regiões cerebrais
e populações neurais. Ademais, altas concentrações de THC podem levar à
dessensibilização/internalização de receptores CB1, resultando em menor
sinalização de endocanabinoides. É tentador supor que tais processos são
responsáveis pelos efeitos paradoxais do consumo de Cannabis nas respostas
emocionais, como episódios de ansiedade e pânico.

2. Compostos que potencializam a ação endocanabinoide:

A principal diferença entre as ações exógena e endógena dos canabinoides é


a ativação por demanda do sistema endocanabinoide de uma forma temporal
e espacialmente restrita. As drogas que ampliam a ação endocanabinoide
foram extensamente estudadas em modelos animais de ansiedade e
depressão. Por exemplo, o bloqueio da captação de endocanabinoides pelo
AM404 induziu efeitos similares aos dos ansiolíticos e facilitou a extinção
do medo condionado. O tratamento com o inibidor da FAAH URB597
também exerceu efeitos semelhantes aos dos ansiolíticos similares e dos
benzodiazepínicos. O URB597 apresentou também ações assemelhadas às
dos antidepressivos, em modelos animais da psicopatologia relacionada
ao estresse. É notável que o URB597 tenha aumentado a atividade dos
neurônios monoaminérgicos que se projetam do mesencéfalo para o
córtex pré-frontal, um efeito similar aos observados após o tratamento
crônico com drogas antidepressivas. Deve-se destacar que alguns
compostos farmacológicos bem estabelecidos, tais como a aspirina ou
o paracetamol, dependem, pelo menos parcialmente, da sinalização de

123
Unidade III | Cannabis medicinal em psiquiatria

endocanabinoides. Isso pode contribuir para seus efeitos animadores


do humor.

Em resumo, a captação e/ou hidrólise da anandamida representa alvos


farmacológicos promissores para o desenvolvimento de novas estratégias
terapêuticas da depressão e dos transtornos de ansiedade. Os efeitos induzidos
por esses “potencializadores de endocanabinoides” diferem, em vários
aspectos, daqueles efeitos dos agonistas diretos de CB1: primeiro, eles evitam
a ativação ubíqua do receptor, mas promovem a ação endocanabinoide de
uma forma temporal e espacial restrita. Segundo, eles apresentam uma janela
terapêutica mais ampla. Terceiro, estudos pré-clínicos apontam para um
risco significativamente menor de adição, de susceptibilidade ao abuso e à
tolerância. Quarto, a ocorrência de efeitos paradoxais bifásicos nas respostas
emocionais foi menos evidente.

A aplicabilidade dos “potencializadores de endocanabinoides” está limitada


pelas capacidades promíscuas de acoplamento da anandamida, por exemplo,
o acoplamento ao TRPV1 parece exercer efeitos opostos àqueles mediados
via CB1. Assim, o bloqueio simultâneo de FAAH e TRPV1 pode representar
um enfoque razoável para obter drogas ansiolíticas e/ou antidepressivas
mais eficazes. De fato, o composto araquidonoil serotonina (AA5HT), que
preenche esses objetivos, induziu efeitos similares aos dos ansiolíticos, em
ratos, com maior eficácia do que o URB59764.

3. Antagonistas de receptores de canabinoides:

O desenvolvimento de novas gerações de antagonistas de receptores CB1 com


acesso restrito ao cérebro pode possibilitar a exploração dos efeitos benéficos
do bloqueio da sinalização de endocanabinoides em tecidos periféricos (e.g.
hepatócitos ou adipócitos) no diabetes ou na síndrome metabólica, sem os
efeitos colaterais devastadores no humor e na cognição.

O mau funcionamento do sistema endocanabinoide pode promover o desenvolvimento


e a manutenção de transtornos psiquiátricos como a depressão, as fobias e o transtorno
de pânico. Assim, espera-se que os agonistas de CB1 ou os inibidores da hidrólise de
anandamida exerçam efeitos antidepressivos e ansiolíticos. Estudos futuros devem
considerar:
1. o desenvolvimento de antagonistas de CB1 que não possam ultrapassar
facilmente a barreira hematoencefálica;
124
Cannabis medicinal em psiquiatria | Unidade III

2. alterações no equilíbrio da sinalização de CB1 versus TRPV1;

3. o sítio alostérico do receptor CB1; e

4. o envolvimento potencial do receptor CB2 na regulação do humor.

125
CAPÍTULO 2
Canabinoides em transtornos
depressivos

Figura 34. Cannabis na depressão.

Fonte: https://drbarakat.com.br/cbd-no-tratamento-da-depressao/. Acesso em: 06 dez. 2020.

Vários estudos têm demonstrado que não tem mais como “dissociar” o THC das
demais terapias. Vários achados demonstram que pode ser bem indicada uma maior
concentração de THC, em combinação com CBD, como linha terapêutica para várias
patologias.

Além da sua aplicação no tratamento de doenças, como doenças inflamatórias do


intestino (como a doença de Crohn), fibromialgia, AVC, dor e, inclusive, câncer,
evidências demonstram que o CBD tem uma interação positiva com receptores de
serotonina, o que o torna muito promissor no tratamento para depressão e ansiedade.
Mais pesquisas são necessárias, porém os estudos iniciais têm sido bem positivos,
principalmente com a utilização do CBD como um antidepressivo de ação rápida e
com menos efeitos colaterais que os medicamentos tradicionais.

O CBD está associado à regulação do humor e, nesse sentido, uma disfunção no SEC
causaria a diminuição na concentração de canabinoides, o que foi associado à depressão
e a distúrbios do humor em algumas pesquisas. De acordo com estudos, o CBD pode
ter propriedade para diminuir a tendência à ansiedade. Isso pode ser explicado pelo
fato de os endocanabinoides modularem a resposta dos neurotransmissores, como a

126
Cannabis medicinal em psiquiatria | Unidade III

serotonina e a dopamina, auxiliarem na sensação de bem-estar e promoverem efeito


antidepressivo e ansiolítico.

Existem ainda estudos que mostram que o CBD tem propriedade de induzir alterações
neuroplásticas no córtex pré-frontal e no hipocampo (estruturas envolvidas no
desenvolvimento da depressão) e, assim, corroboram mais uma vez com seu potencial
terapêutico.

Os antidepressivos comerciais demoram cerca de duas a quatro semanas para exercer


efeitos significativos em pacientes com sinais de depressão. Ainda, esses medicamentos
são ineficazes em alguns pacientes.

Estudos mostraram que uma única aplicação de canabidiol em ratos com sintomas
depressivos resultou em efeitos muito significativos, com remissão de sintomas de
depressão no mesmo dia e a manutenção dos efeitos benéficos por sete dias.

A pesquisa corrobora com estudos anteriores de que o canabidiol apresenta potencial


terapêutico promissor no tratamento da depressão, de amplo espectro, em modelos
pré-clínicos e humanos.

Apesar de extraído da Cannabis, como já comentado, o canabidiol não causa dependência


nem efeitos psicotrópicos. A substância na Cannabis que é responsável por tais efeitos
é o THC. Porém, ocorre o oposto com o canabidiol, pois ele exerce ação bloqueadora
sobre alguns efeitos do THC.

As pesquisas dos efeitos do canabidiol procuram encontrar fármacos com potencial


antidepressivo que ajam mais rapidamente no tratamento e diminuam o período de
latência que é observado nos antidepressivos convencionais.

Figura 35. O canabidiol induz rápido aumento dos níveis de BDNF (fator neurotrófico derivado do cérebro), que é uma
neurotrofina importante para a sobrevivência neuronal e a neurogênese.

Fonte: https://jornal.usp.br/ciencias/ciencias-da-saude/pesquisa-investiga-uso-de-canabidiol-para-reduzir-sintomas-de-depressao/. Acesso


em: 06 dez. 2020.

127
Unidade III | Cannabis medicinal em psiquiatria

Os antidepressivos disponíveis no mercado obtêm resultados em aproximadamente


60% dos pacientes, de modo que aproximadamente 40% dos pacientes permanecem
sem ter acesso ao tratamento adequado, mesmo depois de tentarem várias opções
por muitos meses. Isso mostra a necessidade de encontrar novos tratamentos e com
potencial terapêutico mais eficaz.

Um experimento foi feito com linhagens de ratos e camundongos selecionadas por


cruzamento para desenvolver sintomas de depressão. Foram feitos testes e analisados
os comportamentos de 367 animais, submetidos a situações de estresse, como o teste
de nado forçado.

Antes do teste, uma parte dos animais recebeu uma injeção de canabidiol (com dosagens
de 7, 10 e 30 mg/kg) em solução salina, enquanto outra parte dos animais, o grupo de
controle, recebeu apenas a solução salina.

Após 30 minutos, os animais foram colocados por 5 minutos em cilindros (25 cm de


altura por 17 cm de diâmetro) com 30 cm de água (no caso dos ratos) ou 10 cm de
água (camundongos).

Essas alturas impedem que eles apoiem a cauda no chão, forçando-os a nadar.
No entanto, os animais aprendem a boiar após um tempo de nado e não se afogam.
Quando estão boiando, os movimentos são mínimos, apenas para manter a cabeça
fora da água e garantir que não se afoguem. É justamente isso que é considerado
imobilidade, ou seja, quando param de nadar e boiam.

O teste de nado forçado é utilizado para avaliar o efeito de drogas antidepressivas,


uma vez que todos os antidepressivos conhecidos diminuem o tempo de imobilidade
durante o teste (aumentam o tempo de nado). Portanto, a diminuição do tempo de
imobilidade nesse teste é interpretada como efeito ‘tipo antidepressivo’”.

Os cientistas constataram que o canabidiol induziu efeitos semelhantes a antidepressivos


agudos e sustentados nos camundongos submetidos ao teste de nado forçado.

No entanto, foi realizado um controle de atividade locomotora de modo a assegurar


que esse resultado não seria decorrente apenas do aumento da atividade locomotora
em decorrência de um efeito psicoestimulante que levaria, por exemplo, os animais
a nadar mais.

Fizeram o teste do campo aberto, que consiste em colocar o animal para explorar
livremente um ambiente novo, enquanto foi registrada sua atividade locomotora e

128
Cannabis medicinal em psiquiatria | Unidade III

exploratória. Para dizer que uma droga tem potencial efeito antidepressivo, ela deve
ser capaz de reduzir o tempo de imobilidade (aumentar o tempo de nado) no teste
do nado forçado, sem aumentar a atividade locomotora no campo aberto, pois isso
indicaria que os efeitos no teste do nado forçado não seriam secundários a alterações
inespecíficas de atividade locomotora.

A conclusão do trabalho foi que o tratamento com canabidiol, em animais submetidos


a diferentes modelos de depressão (incluindo modelos de estresse e modelos de
suscetibilidade genética), induz efeitos rápidos e sustentados, os quais permanecem
por até sete dias após uma única administração.

Os dados encontrados foram reproduzidos em três modelos animais diferentes, em


laboratórios na FCFRP e na FMRP, ambos na USP, e na Aarhus University.

Ao estudar os mecanismos envolvidos nesses efeitos, observou-se que o tratamento com


canabidiol induz rápido aumento dos níveis de BDNF (fator neurotrófico derivado do
cérebro), uma neurotrofina importante para sobrevivência neuronal e neurogênese,
que é o processo de formação de novos neurônios no cérebro. Também foi observado
no córtex pré-frontal dos animais o aumento da sinaptogênese, que é o processo de
formação de sinapses entre os neurônios do sistema nervoso central.

Sete dias após o tratamento, foi possível observar aumento do número de proteínas
sinápticas no córtex pré-frontal, o qual está intimamente relacionado à depressão
em humanos. Com esses resultados, acredita-se que o canabidiol inicie rapidamente
mecanismos neuroplásticos que contribuem para recuperar circuitos neurais que estão
prejudicados na depressão.

Mas a atuação benéfica do canabidiol não se restringe ao córtex pré-frontal. Em outro


trabalho, foi demonstrado que o efeito do canabidiol também envolve mecanismos
neuroplásticos que ocorrem no hipocampo, que é outra estrutura envolvida na
neurobiologia da depressão.

Acredita-se que o resultado do estudo do uso de canabidiol em ratos venha a ser


também observado em humanos, uma vez que o canabidiol já é usado em humanos
para outros problemas de saúde.

Existem estudos para ver se o canabidiol seria eficaz também para pacientes que não
respondem à terapia convencional ou se poderia haver uma melhora dos sintomas
quando essa substância fosse associada aos antidepressivos. Outro trabalho demonstrou
que o tratamento com canabidiol facilita a neurotransmissão serotoninérgica no

129
Unidade III | Cannabis medicinal em psiquiatria

sistema nervoso central e que a sua combinação com doses baixas de antidepressivos
inibidores seletivos da recaptação de serotonina, como a fluoxetina, induz significativo
efeito antidepressivo.

Existe a possibilidade de que o tratamento combinado de canabidiol com inibidores


da receptação de serotonina permita que essas substâncias sejam usadas em menores
doses. Isso diminuiria, possivelmente, os efeitos adversos desses fármacos, mas materia
o efeito terapêutico observado em doses maiores.

Diante disso, os autores do estudo estimam que o canabidiol tenha potencial efeito
antidepressivo para induzir resposta mais rapidamente do que os fármacos convencionais
e que, quando associado a tais fármacos, seja capaz de melhorar a resposta dos
antidepressivos.

Evidências indicam que esses efeitos ocorreriam porque induziriam alterações


neuroplásticas no córtex pré-frontal e no hipocampo, que são estruturas envolvidas
no desenvolvimento da depressão.

130
CAPÍTULO 3
Cannabis na esquizofrenia

Figura 36. Cannabis na esquizofrenia.

Fonte: https://www.emerenciano.com.br/blog/index.php/2020/01/30/anvisa-reduz-burocracia-para-importar-canabidiol/. Acesso em: 06 dez. 2020.

O termo psicose é o nome dado a um estado mental patológico caracterizado pela perda
de contato do indivíduo com a realidade, o qual passa a apresentar um comportamento
de isolamento social, muitas vezes com delírios e alucinações.

As causas da psicose ainda são motivo para muita discussão e, dentre as psicoses
funcionais, a mais importante é a esquizofrenia, a qual é definida como uma psicopatologia
crônica de origem desconhecida e que se apresenta como um misto de sintomas de
doenças diferentes que se manifestam concomitantemente. Os sintomas são mudança
de comportamento abrupto (comportamento ambíguo), isolamento social e alteração
de afeto. A prevalência da esquizofrenia em nível mundial é de 1 caso a cada 1.000
habitantes.

O desenvolvimento dos antipsicóticos, também conhecidos como neurolépticos ou


antipsicóticos, é representado com um dos mais importantes avanços da história da
psicofarmacologia e da psiquiatria. Antes da descoberta dos medicamentos atuais, era
utilizada a planta Rauwolfia serpentina para o tratamento de distúrbios mentais.

Alguns medicamentos antipsicóticos podem ajudar a controlar alguns sintomas, como


alucinações e delírios. Essas drogas também podem ajudar a estabilizar os padrões
de comportamento e pensamento do paciente. Os antipsicóticos são classificados
como atípicos e típicos, cuja distinção se dá pelo perfil de afinidade com os receptores
serotonérgicos e dopaminérgicos e em razão da tendência de causar efeitos extrapiramidais.

131
Unidade III | Cannabis medicinal em psiquiatria

Os antipsicóticos típicos (haloperidol e flufenazina) têm uma elevada afinidade pelo


receptor dopaminérgico do tipo 2 (D2) e, com frequência, produzem efeito motores
graves, como o parkinsonismo farmacológico e a discinesia tardia. A primeira hipótese
farmacológica que tentou diferenciar os antipsicóticos atípicos foi proposta por Meltzer
e seus colaboradores, em 1989. Observaram que os antipsicóticos atípicos (clozapina
e risperidona) têm uma afinidade menor pelo receptor dopaminérgico do tipo 2(D2)
e apresentam efeitos colaterais menores do que os dos antipsicóticos típicos.

Pesquisas realizadas em ratos, camundongos e um grupo de voluntários relatam que


a utilização do canabidiol tem efeito colateral quase nulo em comparação ao remédio
mais utilizado e eficaz, o haloperidol.

Estudos demonstram que tanto o CBD quanto os antipsicóticos típicos, o haloperidol


e o atípico clozapina, revertem a hiperlocomoção induzida por anfetamina, contudo
apenas o haloperidol induz a catalepsia. Essa característica sugere que o CBD apresenta
efeito neurofarmacológico similar ao dos antipsicóticos atípicos.

Crippa e colaboradores (2010) realizaram um estudo com seis pacientes diagnosticados


com esquizofrenia, durante três meses, em que foi administrada a dose de canabidiol
(CBD) de 150 mg/dia durante quatro semanas, além do tratamento diário de cada
paciente. Foi observado que, com o uso do canabidiol (CBD), os sintomas psicóticos
e motores foram reduzidos significativamente.

Segundo Pedrazzi e colaboradores (2014), ainda é obscuro o mecanismo de ação


do canabidiol (CBD) nessa doença. O canabidiol (CBD) auxilia na sinalização dos
endocanabinoides por meio do impedimento da recaptação ou da quebra da anandamida.
Logo, especula-se que a sua propriedade antipsicótica esteja relacionada com a habilidade
do canabidiol (CBD) para disponibilizar a anandamida.

132
CAPÍTULO 4
Cannabis no tratamento de transtorno
do déficit de atenção e hiperatividade

Os transtornos do déficit de atenção são condições neurológicas comuns que alteram


nossa capacidade de se concentrar em uma determinada tarefa por períodos longos
de tempo.

O transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) é um transtorno neurológico


que acomete aproximadamente uma em cada 15 crianças e um em cada 20 adultos.

Essas condições são várias vezes debilitantes, de modo que é praticamente impossível
para os portadores concluírem atividade simples na escola ou no trabalho.

Tanto o transtorno do déficit de atenção (TDA) quanto o TDAH são mais comuns
em crianças, mas também podem afetar adultos.

Um estudo publicado em 2006 encontrou correlação entre uma baixa expressão dos genes
do neurotransmissor dopamina e o TDAH. Isso sugere que o TDAH é caracterizado
por uma baixa função da dopamina. Embora esse fato seja questionado, ele fornece
material de pesquisa aos profissionais. É por esse motivo que as crianças com TDAH
recebem com frequência medicamentos destinados a estimular as concentrações de
dopamina.

Às vezes, isso não funciona, pois há vários fatores diferentes que corroboram para
o TDAH. A condição é, muitas vezes, considerada como uma gama de sintomas, em
vez de uma doença.

Sintomas do TDA/TDAH:

» Inquietação.

» Movimentação constante.

» Fala frequente.

» Interrupções frequentes (na fala dos outros).

» Hábitos intrusivos.

» Insônia.

» Incapacidade de prestar atenção.

133
Unidade III | Cannabis medicinal em psiquiatria

» Mudanças de humor.

» Irritabilidade.

» Esquecimento.

» Autoimagem negativa.

Algumas pessoas com TDAH experimentam


o que se chama de hiperfoco

Isso envolve entrar com frequência em um estado de foco intenso, com uma incapacidade
de prestar atenção a qualquer coisa fora dessa atividade.

Esse é um sintoma raro e contraditório da condição, porém, ainda assim, ele existe
em algumas pessoas com TDAH.

O TDA e o TDAH são mais comuns em crianças. Às vezes, pode ser difícil detectar
o TDAH imediatamente. No entanto, quanto mais cedo for feito o diagnóstico, mais
cedo poderão ser feitas mudanças na estrutura de aprendizado, na dieta, no estilo de
vida e nos medicamentos ou suplementos.
As causas do TDAH podem incluir:
» Fatores genéticos.

» Exposição química em uma idade jovem.

» Dieta rica em carboidratos refinados.

» Alergias.

» Lesões traumáticas na cabeça.

» Deficiência de vitamina B.

» Deficiência de zinco.

O tratamento convencional para o TDAH é realizado com a utilização de medicamentos


dito “estimulantes”, como Concerta ou Adderall e Ritalina, auxiliados com mudanças
na alimentação.

Devido aos efeitos colaterais desses medicamentos, existe uma demanda crescente por
outros tratamentos. Devido aos seus vários benefícios à saúde e às recentes alterações
em seus regulamentos, o CBD vem emergindo como uma alternativa promissora aos
medicamentos tradicionais.
134
Cannabis medicinal em psiquiatria | Unidade III

Existem várias evidências de que o CBD melhora os sintomas do TDAH, mas isso
depende do indivíduo, de seus sintomas e objetivos de saúde.

O CBD tem a propriedade de regular o sistema nervoso caso este se encontre


excessivamente ativado. Ele promove um equilíbrio mais eficiente entre o sistema
nervoso simpático (SNS) e o sistema nervoso parassimpático (SNP).

No caso do TDA sem surto de hiperatividade, o CBD oferece somente uma ajuda
leve para a falta de atenção em si, porém pode trazer benefícios para outras condições
associadas ou outros sintomas.

Para o tratamento de TDAH, o CBD pode ter muito a oferecer em relação ao desequilíbrio
neuroquímico e aos sintomas manifestos.

Primeiramente, deve-se identificar se o TDAH está relacionado ao SNS ou se é o SNP


que está mais ativo.

O CBD é melhor para TDAH com predominância do SNS

De maneira geral, é mais provável que o CBD beneficie as formas de TDAH com
predominância do SNS. Ele trata a maioria dos sintomas comuns e, em alguns pacientes,
até a causa subjacente.

Como utilizar o CBD para os sintomas do TDAH

No tratamento de TDA ou TDAH, é importante ser consistente com o CBD, assim


como com outros medicamentos. Pode levar semanas de uso regular até o momento
da melhora dos sintomas, mas outros pacientes encontram alívio dos sinais e sintomas
quase instantaneamente. Desse modo, depende do indivíduo.

O CBD é um suplemento excelente para relaxar o sistema nervoso, apoiar a homeostase


e tratar sintomas mais específicos.

Sendo assim, ele é útil no combate a alguns dos sintomas do TDAH e pode proporcionar
benefícios adicionais para pacientes que apresentem dominância do sistema nervoso
simpático.

135
CAPÍTULO 5
Cannabis e transtorno obsessivo-
compulsivo

Pesquisas sugerem que um sintético de THC pode ajudar no tratamento de transtorno


obsessivo-compulsivo (TOC).

Uma pesquisa, realizada pela Universidade de Columbia, reuniu estudos que tentavam
compreender como funciona o cérebro de pessoas com TOC e o efeito da Cannabis no
sistema nervoso central. Foram selecionados 150 estudos que falavam sobre os dois
temas, porém, quando cruzados, podiam nos trazer algumas conclusões interessantes.

Os pesquisadores detectaram as principais maneiras como o TOC se manifesta.


Geralmente, pacientes que apresentam o transtorno sentem ansiedade e medo em
quantidade exagerada e criam comportamentos repetitivos. O próximo passo foi
entender como a Cannabis age frente nessas situações.

Medo e ansiedade
Os pesquisadores encontraram coerência na associação medo e/ou ansiedade mais
Cannabis. De uma forma geral, as pesquisas mostravam que derivados de Cannabis
tendiam a acalmar os usuários.

A relação entre canabinoides, medo e ansiedade tem sido bastante explorada nas
pesquisas clínicas. Os resultados têm mostrado que o canabinol e o dronabinol (sintético
de Cannabis) diminuem os estímulos de medo recebidos por nosso cérebro.

Comportamentos compulsivos
O TOC, porém, não é conhecido pelo medo de seus portadores. O que geralmente
caracteriza o transtorno são as ações repetitivas. Porém, elas não se mostram apenas
entre os diagnosticados com essa condição específica. Foi justamente em portadores
de outros transtornos que os pesquisadores conseguiram identificar um maior número
de estudos para análise.

Os próprios cientistas envolvidos no relatório da pesquisa realizada na Universidade


de Columbia confessam que há pouquíssimas pesquisas que relacionam diretamente o
efeito da Cannabis a portadores do transtorno. “Até hoje, apenas três estudos reportaram
os efeitos de canabinoides em sintomas do TOC”, afirma o texto. Apesar de ser uma
amostra muito pequena, os resultados foram bons.
136
Cannabis medicinal em psiquiatria | Unidade III

A primeira das pesquisas girou em torna de uma mulher de 38 anos diagnosticada


com depressão e TOC. Durante 10 dias, cientistas acrescentaram dronabinol ao seu
antidepressivo. Ao fim do estudo, ela havia caído de 20 para 10 pontos na Escala
de Yale-Brown (principal método para avaliar pacientes obsessivos compulsivos).
Na prática, isso significa que ela passou de “moderada” para “amena”.

O segundo teste envolveu um homem de 36 anos com esquizofrenia e TOC. Durante


12 dias, também recebeu doses de dronabinol, um THC sintético. Caiu de 25 para 15
pontos na mesma escala.

O terceiro estudo avaliou o caso de um homem de 24 anos que desenvolveu TOC


após um derrame. Por duas semanas, tomou dronabinol e, ao final dos testes, tinha
passado de 39 para 10 pontos.

Um outro estudo, conduzido por pesquisadores da Washington State University e publicado


no Journal of Affective Disorders, sugere que a Cannabis medicinal pode servir como um
tratamento viável para pessoas afetadas pelo TOC. Os pesquisadores trabalharam com
87 indivíduos que se identificaram com a doença. Os participantes “acompanharam a
gravidade de suas intrusões, compulsões e/ou ansiedade imediatamente antes e depois
de 1.810 sessões de uso de Cannabis durante um período de 31 meses”, de acordo com
resumo do estudo.

Os pacientes relataram uma redução de 60% nas compulsões, de 49% nas intrusões e
de 52% na ansiedade depois de inalar Cannabis. Concentrações mais altas de CBD e
doses mais altas ocasionaram reduções maiores nas compulsões. O número de sessões
de uso de Cannabis ao longo do tempo previu mudanças nas intrusões, de forma
que as sessões posteriores de uso de cannabis foram associadas a reduções menores.
A gravidade dos sintomas de base e a dose permaneceram bastante constantes ao
longo do tempo.

Usando um grande conjunto de dados de usuários de Cannabis medicinal, os quais se


automedicam para sintomas de TOC, descobriu-se que, para a grande maioria das sessões
de uso de Cannabis, os indivíduos relataram reduções nas intrusões (pensamentos ou
impulsos indesejados), nas compulsões e na ansiedade. Resultados indicaram que, depois
de inalar Cannabis, as avaliações de intrusões foram reduzidas em 49%; compulsões,
em 60%; e ansiedade, em 52%.

Desse modo, o estudo sugere que a Cannabis inalada pode reduzir agudamente os
sintomas do TOC, enquanto observam que, coletivamente, os resultados indicam
137
Unidade III | Cannabis medicinal em psiquiatria

que a substância pode ter efeitos benéficos de curto, mas não de longo prazo, sobre
os sintomas do TOC.

Poucos estudos avaliaram a eficácia potencial da Cannabis para a mitigação dos sintomas
do TOC. Como tal, essas descobertas, embora um tanto limitadas pelo desenho do
estudo, indicam que a Cannabis – e, em particular, variedades com alto teor de CBD
– é uma promessa como uma opção terapêutica para pacientes com TOC e deve ser
examinada em um ambiente controlado e rigorosamente projetado.

Os pesquisadores acreditam que novos estudos devem ser feitos, para que seja possível
chegar a uma conclusão, mas se mostraram confiantes de que produtos à base de
Cannabis podem ter efeitos positivos entre pacientes.

Os medicamentos canabinoides têm o potencial de produzir novas farmacoterapias


muito esperadas por aqueles que sofrem os efeitos debilitantes do TOC. Porém, apenas
uma exploração mais aprofundada desse tópico determinará se os canabinoides passam
no teste mais importante: ajudar mais pacientes com TOC a alcançar seu bem-estar.

Uma revisão de 2019, publicada na Cannabis and Cannabinoid Research, sugeriu que o
sistema endocanabinoide poderia representar um novo alvo no tratamento para TOC.
Esse sistema pode modular padrões comportamentais e também respostas emocionais.

138
CAPÍTULO 6
Cannabis no tratamento de síndrome
de Tourette

Síndrome de Tourette trata-se de distúrbio neuropsiquiátrico raro caracterizado por


“tiques” nervosos variados, motores ou vocais, persistentes e que geralmente se instalam
na infância. Alterações em neurônios que utilizam o ácido gama-aminobutírico (GABA)
como neurotransmissor específico, modulado pelos receptores CB1 nos gânglios da
base, especificamente no globo pálido, estão intimamente relacionados à etiologia da
doença.

A frequência e intensidade dos tiques são variáveis e apresentam piora com o estresse,
porém, na maioria das vezes, não possuem relação o com estado emocional. Em
muitos casos, associa-se a TOC e TDAH. Os tiques são involuntários e fogem ao
controle dos pacientes e, em alguns casos, causam grande prejuízo na qualidade de vida,
desde limitação física até preconceito e estigma social. De causa ainda desconhecida,
a hereditariedade parece ter papel relevante e podem persistir por toda a vida.
Muitos casos se manifestam na infância e podem evoluir para seu agravamento ao
longo dos anos.

Vários relatos forneceram evidências de que a Cannabis pode ser eficaz não só na
supressão de tiques, mas também no tratamento de problemas comportamentais
associados à síndrome. O THC é recomendado para o tratamento da síndrome de
Tourette em adultos, quando a primeira linha de tratamentos não conseguiu melhorar
os tiques. Segundo um estudo publicado em 2003, pelo Departamento de Clínica
Psiquiatria e Psicoterapia da Escola Médica de Hannover, na Alemanha, pacientes
que sofrem de síndrome de Tourette e se tratam com THC não apresentam déficits
cognitivos agudos em longo prazo. Essa observação confirma a segurança do tratamento
com THC nesses casos.

Para tratar a síndrome de Tourette, o componente eficaz da Cannabis é o THC, que é


psicoativo. Mas esse canabinoide pode trazer alguns efeitos colaterais, como psicose,
prejuízo de memória, de aprendizado e até esquizofrenia. Por isso, o CBD (canabidiol)
também deve estar presente, pois protege o indivíduo dos efeitos colaterais do THC
e ainda combate a ansiedade e os problemas de concentração.

Há dois estudos que apontam para a eficiência do uso da Cannabis no tratamento da


síndrome de Tourette, ambos realizados na Escola Médica de Hannover pela psiquiatra
alemã Kirsten R. Müller-Vahl. Em 2003, apontaram a eficácia do THC tanto no

139
Unidade III | Cannabis medicinal em psiquiatria

tratamento dos tiques quanto nos problemas comportamentais que acompanham a


síndrome. Em 2013, confirmaram que não há efeitos colaterais significativos nem
duradouros.

Entretanto, as próprias pesquisas alemãs ressaltam que são necessários estudos mais
abrangentes para garantir a segurança e eficácia da Cannabis.

140
CANNABIS
MEDICINAL NA UNIDADE IV
NEUROPSIQUIATRIA

CAPÍTULO 1
Cannabis no Autismo

Figura 37. Cannabis e autismo.

Fonte: https://pt.formulaswiss.com/blogs/autismo/mais-fundos-de-pesquisa-para-o-cbd-e-para-o-autismo. Acesso em: 06 dez. 2020.

Os benefícios potenciais da Cannabis e de um de seus componentes, o canabidiol


(CBD), está chamando a atenção como um potencial tratamento para transtornos do
neurodesenvolvimento, como o transtorno do espectro do autismo (TEA).

O transtorno do espectro autista (TEA) é uma condição psiquiátrica de neurodesenvolvimento


comum e complexa, que encurta a expectativa de vida em até 20 anos. Além disso, estima-se
que 70% dos indivíduos autistas tenham condições concomitantes, por exemplo, epilepsia
e transtornos de humor e ansiedade. No entanto, não existem tratamentos farmacológicos
eficazes para os principais sintomas do TEA e os indivíduos geralmente respondem
mal aos tratamentos convencionais de complicações mentais ou físicas. Abordagens
alternativas de tratamento, como o CBD, são, portanto, cada vez mais exploradas.

Há relatos preliminares de efeitos benéficos da maconha medicinal no TEA.


Por exemplo, um estudo recente demonstrou que a Cannabis rica em CBD reduziu os
surtos comportamentais em crianças com ASD e problemas comportamentais graves.
No entanto, ainda temos um conhecimento limitado de como o cérebro humano típico
responde ao CBD, quanto mais o cérebro autista. Portanto, uma compreensão mais
completa do mecanismo de ação do CBD no cérebro, e de sua relevância para o TEA,
é desejável antes que haja investimento em ensaios clínicos em larga escala.
141
Unidade IV | Cannabis medicinal na neuropsiquiatria

A responsividade do cérebro a desafios farmacológicos pode, por exemplo, ser medida


por meio de imagem de ressonância magnética funcional (fMRI). As evidências de que
tais abordagens são sensíveis aos efeitos do CBD vêm de estudos em neurotípicos e
em indivíduos com esquizofrenia. Por exemplo, em neurotípicos, o CBD reduziu a FC
frontoestriatal – e diminuiu mediotemporal-pré-frontal – durante uma tarefa de saliência
visual excêntrica e aumentou o processamento de saliência. Em neurotípicos, o CBD
também interrompeu a conectividade pré-frontal-subcortical durante o processamento
de faces com medo e aumento da atividade frontoestriatal em repouso. Na esquizofrenia,
foi relatado que uma dose aguda de CBD “normaliza” a atividade cerebral em regiões
durante um paradigma de aprendizagem verbal. Da mesma forma, fMRI foi usado
como um marcador para outros desafios de drogas em TEA, como riluzol, propranolol
ou oxitocina. No entanto, a grande maioria desses estudos anteriores adquiriu fMRI
durante tarefas cognitivas.
Embora essa abordagem forneça valiosas informações específicas da tarefa, ela restringe
a análise da resposta do medicamento às regiões do cérebro relevantes para a tarefa
(e assim perde o impacto potencial de um medicamento na função cerebral total).
Além disso, em uma condição como TEA, em que o desempenho de tais tarefas
cognitivas superiores pode ser comprometido, separar os efeitos de uma droga das
demandas da tarefa pode ser desafiador. Assim, foi feito um estudo do estado de repouso
para examinar o impacto do CBD, no cérebro inteiro, em indivíduos com e sem TEA.
Em um estudo randomizado, controlado por placebo, duplo-cego e cruzado, foi adotado
um projeto de cérebro inteiro, livre de tarefas (estado de repouso) para comparar a
resposta do cérebro ao CBD em indivíduos com e sem TEA. Usou-se a fMRI em estado
de repouso para examinar a amplitude fracionária das flutuações de baixa frequência
(fALFF) (0,01-0,1 Hz) como uma medida da atividade cerebral regional espontânea.
Acredita-se que essas oscilações de baixa frequência suportem posteriormente a
sincronização da atividade entre regiões espacialmente distintas (ou seja, conectividade
funcional – FC). Portanto, nas regiões em que uma mudança significativa em fALFF
foi observada, também conduzimos uma análise secundária baseada em sementes de
FC dessa região com o resto do cérebro. Os dados foram adquiridos após uma única
dose oral de 600 mg de CBD ou um placebo compatível (com pelo menos 13 dias de
intervalo). Previu-se que o CBD alteraria o fALFF regional e também mudaria o FC
das regiões que responderam. Além disso, com base em descobertas anteriores de que
o cérebro autista responde atipicamente ao desafio farmacológico, acreditava-se que
a responsividade ao CBD fosse diferente em indivíduos autistas em comparação com
indivíduos neurotípicos.
142
Cannabis medicinal na neuropsiquiatria | Unidade IV

No resultado, os grupos não diferiram significativamente em idade (F (1) = 0,634, p


= 0,443) ou em escala completa de QI (F (1) = 3,230, p = 0,083). Não foi observado
nenhum efeito nocivo/dano subjetivo ou objetivo após a administração do medicamento
do estudo em nenhum dos participantes.

Não houve diferenças de grupo de linha de base em fALFF dentro das regiões GM
(TFCE, p FWE > 0,05), no entanto houve um efeito principal da droga. Em ambos
os grupos, o CBD (em comparação com o PLC) aumentou o fALFF no vérmis VI
cerebelar (TFCE, p FWE = 0,048, k = 4, centro de gravidade em milímetros (CoG): x =
−1, y = −65, z = −6) e no giro fusiforme direito (TFCE, p FWE = 0,041, k = 14, CoG: x
= 28,9, y = −48,7, z = −6,86), conforme representado na Figura 38. Não houve efeito
principal do grupo, nem interação droga × grupo.

Figura 38. Efeitos da droga na amplitude fracionária das flutuações de baixa frequência na massa cinzenta (canabidiol >
placebo). Os números acima das fatias indicam a localização na direção z (em milímetros). As varreduras são orientadas
em convenção neurológica, em que direita (R) é igual à direita e esquerda (L) é igual à esquerda. Os valores P (P), conforme
indicado pela barra de cores, são corrigidos para comparações múltiplas (TFCE, FWE).

Fonte: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0269881119858306. Acesso em: 07 dez. 2020.

As análises post-hoc dentro do grupo confirmaram um efeito significativo da droga no


grupo TEA (vérmis VI: TFCE, p FWE = 0,045, k = 7, CoG: x = 21,1, y = −55,7, z = −14;
fusiforme: TFCE, p FWE = 0,029, k = 19, CoG: x = 28,3, y = −51,8, z = −9,58), mas não
em neurotípicos, como mostrado na Figura 39.

Figura 39. Teste post-hoc dos efeitos da droga na amplitude fracionária das flutuações de baixa frequência dentro de cada
região de interesse (canabidiol> placebo) no transtorno do espectro do autismo.

Fonte: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0269881119858306. Acesso em: 07 dez. 2020.

143
Unidade IV | Cannabis medicinal na neuropsiquiatria

A Figura 39 representa: (A) efeitos de drogas no vérmis IV cerebelar; (B) efeitos da


droga no giro fusiforme direito. Os números acima das fatias indicam a localização na
direção z (em milímetros). As varreduras são orientadas em convenção neurológica,
em que direita (R) é igual à direita e esquerda (L) é igual à esquerda. Os valores P (P),
conforme indicado pela barra de cores, são corrigidos para comparações múltiplas
(TFCE, FWE).

Conectividade funcional (FC)


Não houve diferenças de grupo de linha de base em FC vermal ou fusiforme. No grupo
TEA, o CBD aumentou significativamente a FC verbal com o caudado esquerdo (T
(11) = 2,57, p = 0,026) e direito (T (11) = 2,26, p = 0,045); e diminuição da FC vermal
com a parte temporo-occipital do giro temporal médio esquerdo (T (11) = -2,81, p =
0,017), giro supramarginal anterior direito (T (11) = -2,73, p = 0,02), o lobo parietal
superior esquerdo ( T (11) = −2,54, p = 0,027) e giro frontal superior esquerdo (T (11) =
−2,29, p= 0,043). Em contraste, o CBD não teve efeito significativo sobre o FC vermal
ou fusiforme com quaisquer outras regiões nos neurotípicos, mas essa diferença entre
os grupos em responsividade não foi significativa.

Figura 40. Efeitos da droga na conectividade funcional do vérmis VI cerebelar no grupo TEA (canabidiol > placebo).

Fonte: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/0269881119858306. Acesso em: 07 dez. 2020.

Na Figura 40, os valores T (T) das bordas, conforme indicado pela barra colorida, são
corrigidos para comparações múltiplas no âmbito da conexão e da semente (p = 0,05
ep FDR = 0,05, respectivamente). Abreviaturas – ASD/TEA: transtorno do espectro do
autismo; CBD: canabidiol; L.Caud: caudado esquerdo; L.SFG: giro frontal superior
esquerdo; L.SPL: lobo parietal superior esquerdo; L.toMTG: giro temporal médio
esquerdo (parte temporo-occipital); R.aSMG: giro supramarginal anterior direito;
R.Caud: caudado direito; R.SPL: lobo parietal superior direito; PLC: placebo; Verm6:
vérmis cerebelar VI

144
Cannabis medicinal na neuropsiquiatria | Unidade IV

Esse estudo relatou, pela primeira vez, que o CBD ‘muda’ fALFF e FC no cérebro
humano adulto. Especificamente, o CBD aumentou significativamente o fALFF no
vérmis VI cerebelar e no giro fusiforme direito. No entanto, o teste post-hoc dentro
do grupo indicou que essa mudança foi mais proeminente no ASD, e não significativa
nos controles (observe que não identificamos um grupo significativo por interação
medicamentosa). Além disso, em TEA, mas não em controles, a mudança em fALFF
no cerebelo (mas não no giro fusiforme) foi acompanhada por mudanças generalizadas
no FC vermal, com vários de seus alvos subcorticais e corticais.

Vérmis cerebelar
No cérebro típico, entende-se que o vérmis cerebelar e o seu circuito cerebelar-
subcortical-cortical desempenham um papel crítico no movimento, na linguagem
e no processamento social. No TEA, entretanto, há relatos de anomalias funcionais
no cerebelo, que parecem contribuir para a interrupção desses processos. Porém, tais
relatos apresentam resultados inconsistentes.
Por exemplo, hipoativação verbal durante tarefas motoras simples (toque de dedo)
e durante a percepção auditiva (ouvir tons) foi observada em adultos com TEA.
Em crianças e adolescentes com TEA, a FC do vérmis com regiões sensório-motoras foi
relatada como sendo mais alta, enquanto o FC vermal, com regiões pré-frontais e motoras,
foi registrado como inferior em comparação com neurotípicos. Portanto, os resultados
dos estudos de imagem funcional em TEA podem depender da tarefa sob investigação.
Foi usado um desenho não tarefa e não foram observadas diferenças de linha de base em
fALFF cerebelar e medidas de FC (com outras regiões) em participantes com e sem TEA.
Em vez disso, descobriu-se que a atividade cerebelar e a conectividade eram modificáveis,
especialmente em TEA. Especificamente, observou-se que o aumento induzido por
CBD, em fALFF verbal, em TEA foi acompanhado por um aumento na FC cerebelar-
subcortical (estriatal). No entanto, o CBD também diminuiu a FC cortical cerebelar. Isso
sugere que, em adultos autistas, em vez de induzir uma mudança geral e unidirecional
no FC, o CBD parece ‘sintonizar’ o FC de uma maneira específica de região ou conexão.

Giro fusiforme direito


No cérebro neurotípico, o fusiforme direito é comumente associado ao processamento
visual de palavras e partes do corpo (versus objetos), por exemplo, rostos. No TEA,
o processamento facial é avassaladoramente relatado como prejudicado e isso é
consistente com uma riqueza de evidências de anomalias fusiformes funcionais.
Por exemplo, estudos de neuroimagem relataram hipoativação e FC prejudicada

145
Unidade IV | Cannabis medicinal na neuropsiquiatria

durante o processamento facial. Novamente, usando um desenho livre de tarefas,


não foram encontradas diferenças de linha de base na atividade dessa região, mas os
resultados indicam que o CBD modula a atividade fusiforme e que o grupo TEA foi
particularmente responsivo. O desenho de estudo não fala se o processamento facial
em TEA também seria alterado pelo CBD, mas indica que a dinâmica funcional dessa
região, em TEA, difere dos controles em que a atividade pode ser modulada por CBD.

Embora o CBD tenha mudado fALFF tanto no vérmis quanto no giro fusiforme direito,
ele alterou apenas a FC do vérmis (e outras regiões) e não do fusiforme (e outras regiões)
de indivíduos com TEA. A razão para isso é desconhecida. Uma provável explicação
seria que as conexões do fusiforme com outras regiões são relativamente limitadas,
certamente se comparadas ao cerebelo. O FC fusiforme (com outras regiões) pode ser
ainda mais restrito pela anatomia da região fusiforme nessa condição. Por exemplo,
observou-se que o limite de substância branco-acinzentada do giro fusiforme era
interrompido no TEA, assim como a integridade dos tratos da matéria branca (WM)
nesse local. Anormalidades nas conexões WM podem restringir o impacto do CBD
no FC mais amplo dessa semente. Em contraste, estudos anteriores do vérmis indicam
que a integridade microestrutural das conexões nessa região da WM está intacta ou
ainda maior em TEA. Portanto, pode haver mais ‘capacidade’ para FC do cerebelo com
outras regiões para mudar em resposta ao desafio farmacológico em TEA.

Base neurobiológica dos efeitos do CBD em amplitude


fracionária das flutuações de baixa frequência (fALFF)
e conectividade funcional (FC)

Os fundamentos neurobiológicos desses efeitos não são claros. No entanto, estudos


anteriores indicam que o CBD pode influenciar as vias do glutamato excitatório e do
GABA inibitório, que desempenham um papel crucial na regulação de flutuações de
baixa frequência (LFF) e FC.

Estudos pré-clínicos sugerem que o CBD tenha uma gama de ações que podem, por
exemplo, convergir em uma modulação da excitação e inibição do cérebro. Isso é
importante, porque se supõe que o equilíbrio de excitação e inibição ajude a estabelecer
e manter LFF e FC. Os interneurônios GABAérgicos fásicos inibitórios, por exemplo,
são moduladores-chave da integração e propagação temporo-espacial do sinal. Por meio
da inibição de feed-forward, esses neurônios podem sincronizar um grande número
de células piramidais e, assim, fornecer a base para disparos coordenados em regiões
distintas do cérebro. Da mesma forma, os neurônios GABAérgicos tônicos podem
moldar LFF, ajustar a condutância celular e, assim, controlar a quantidade e a duração
146
Cannabis medicinal na neuropsiquiatria | Unidade IV

da resposta de voltagem à entrada excitatória. Vários alvos de CBD no cérebro, por


exemplo, receptores TRPV1, GPR55 e 5-HT, foram ligados ao glutamato cerebral
e/ou à sinalização GABA e, portanto, podem impactar essa atividade neural. Por
exemplo, relatou-se que a ativação do TRPV1, por meio do CBD, aumenta a excitação
glutamatérgica. Em contraste, observou-se que o antagonismo de CBD, em GPR55,
aumenta o disparo de interneurônios GABAérgicos. Por fim, o CBD é um agonista
dos receptores 5-HT1A e 5-HT2A, os quais podem ser encontrados tanto em neurônios
excitatórios quanto inibitórios. Assim, a ação do CBD por meio desses receptores pode
aumentar e reduzir a transmissão excitatória e inibitória.
Uma explicação alternativa para a sensibilidade do TEA e não dos controles a um desafio
de drogas direcionado aos sistemas glutamato-GABA pode ser as anormalidades nesses
sistemas – e sua responsividade – no TEA. Por exemplo, nessa condição, há expressão
reduzida de receptores GABA no fusiforme. Da mesma forma, níveis diminuídos de
descarboxilase do ácido glutâmico (a enzima responsável pela conversão do glutamato
em GABA) e das células inibitórias de Purkinje no vérmis sugerem déficits de inibição
no TEA. Esses resultados abrem a possibilidade de que, no TEA, o CBD aumente
LFF (e FC), especialmente nas regiões em que os sistemas GABA são prejudicados.
Essa ligação proposta entre o sistema glutamato-GABA e os circuitos funcionais é
apoiada por achados anteriores de uma correlação significativa entre os níveis de
excitação-inibição cerebelar e FC cérebro-cerebelar em adolescentes e adultos com TEA.
Em resumo, esse estudo relatou a primeira evidência de que o CBD ‘muda’ o fALFF e o
FC associados ao cérebro autista adulto. Assim, o CBD pode alterar uma propriedade
crucial da função cerebral e tem como alvo as principais regiões comumente implicadas
na condição. Estudos futuros são necessários para (a) investigar se as alterações induzidas
pelo CBD de fALFF e FC impactam os processos cognitivos e comportamentos que
essas regiões modulam e (b) examinar se a resposta do cérebro, a uma dose aguda de
CBD, pode ajudar a prever a resposta ao tratamento sustentado no TEA.
Figura 41.Pedro Américo.

Fonte: https://portalcorreio.com.br/oleo-cannabis-substitui-remedios-anticonvulsivantes/. Acesso em: 07 dez. 2020.

147
Unidade IV | Cannabis medicinal na neuropsiquiatria

Veja o caso de Pedrinho, que possui TEA e epilepsia.

Pedro Américo, era uma criança que tinha até 40 crises convulsivas por dia, não
andava e nem falava. Hoje, após o uso do óleo de Cannabis, brinca, sorri e saiu da
cadeira de rodas.

Em 2015, Júlio Américo, pai de Pedrinho, declarou-se publicamente “traficante


internacional” de extrato bruto de Cannabis. O filho dele, Pedro Américo, na época
com 4 anos, tinha cerca de 40 crises de epilepsia por dia. Naquela época, o menino
já tomava uma combinação de cinco medicamentos, cerca de 16 comprimidos
por dia, na dose máxima permitida, e aquele era o melhor cenário para a criança.
Inconformados, Júlio e Sheila Geriz, pais de Pedrinho, começaram a pesquisar
alternativas para o tratamento de epilepsia e conheceram o óleo de Cannabis.
Sem autorização na época, o fundador da Liga Canábica da Paraíba importava
dos Estados Unidos os extratos de Cannabis, que chegavam ao Brasil escondidos
em caixas de lápis.

“Nosso filho não controlava o tronco, nem o pescoço, não andava, não usava as
mãos, não olhava nos olhos, não sentia nada. Ele não chorava, não sorria, não
expressava sentimentos. Começamos a fazer a administração dos óleos de Cannabis
terapêutica e, nesse período, a gente foi ajustando as doses, foi estudando a
Cannabis e descobrindo o que era melhor pra ele. Hoje, ele conseguiu desmamar
todos os remédios anticonvulsivantes”, conta Júlio Américo, pai de Pedrinho.

A infância de Pedrinho mudou. Há dois anos, ele usa apenas o óleo de Cannabis
em seu tratamento e já é capaz de fazer tarefas básicas. “Ele, que vivia numa
cadeira de rodas, hoje anda, usa as mãos, expressa sentimentos, ri, chora, toma
água sozinho. Hoje, o meu filho existe, ele demonstra sentimentos, abraça a gente,
olha no olho”, lembra Júlio Américo emocionado.

148
CAPÍTULO 2
Cannabis em demências

Doença de Alzheimer e outras demências


A doença de Alzheimer refere-se a um conjunto de sintomas e sinais associados a uma
deterioração progressiva das funções cognitivas. Os sintomas podem incluir perda de
memória e dificuldades de raciocínio, de solução de problemas ou na linguagem, bem
como mudanças de humor, percepção, personalidade ou comportamento.

De acordo com o World Alzheimer Report 2018, cerca de 50 milhões de pessoas em todo
o mundo viviam com doença de Alzheimer naquele ano. Projetou-se um aumento
para 152 milhões de pessoas até 2050. No Canadá, o número estimado de pessoas
que viviam com tal doença, em 2016, foi de 564.000, e espera-se que aumente para
937.000 até 2031. Os custos totais do sistema de saúde e os custos desembolsados para
cuidar de pessoas com doença de Alzheimer foram de $ 10,4 bilhões em 2016, com a
possibilidade de dobrar até 2031.

A doença de Alzheimer (DA) é o tipo mais comum de demência e representa cerca


de dois terços de todas as demências. Outros tipos de demência são: vascular, mista,
corpos de Lewy e frontotemporal. Os sintomas neuropsiquiátricos (NPS) são comuns a
todos esses tipos de demência e podem se manifestar como agitação, agressão, errância,
apatia, distúrbios do sono, depressão, ansiedade, psicose e distúrbios alimentares.
Os sintomas comportamentais da demência apresentam riscos significativos de lesões
a pacientes e cuidadores, reduzem a qualidade de vida e podem causar sofrimento
ou depressão.

O curso progressivo da demência não pode ser alterado, uma vez que não há cura
conhecida ou terapia modificadora da doença. No entanto, existem intervenções para
gerenciar NPS, embora sejam baseadas em evidências limitadas e díspares. O tratamento
de primeira linha da NPS compreende uma gama de intervenções não farmacológicas
baseadas na identificação de necessidades físicas e emocionais não satisfeitas, como
dor tratada de forma inadequada e estressores ambientais, que podem desencadear
os sintomas. As terapias farmacológicas representam o tratamento de segunda linha
em pacientes para os quais as intervenções não farmacológicas foram malsucedidas
e que apresentam um risco potencial de lesão para si próprios ou para terceiros.
As intervenções farmacológicas geralmente envolvem o uso off-label de antipsicóticos
atípicos ou antidepressivos de segunda geração, geralmente em combinação com as
estratégias não farmacológicas.

149
Unidade IV | Cannabis medicinal na neuropsiquiatria

Dadas as limitadas opções terapêuticas atualmente disponíveis, os seus perfis de


efeitos colaterais e as base de evidências inconsistentes, há uma necessidade de terapias
alternativas para a crescente população de pacientes com demência. A Cannabis medicinal
foi investigada como um dos potenciais tratamentos alternativos para essa condição.
Embora o mecanismo de ação da Cannabis, nesse contexto, não esteja bem elucidado,
foi demonstrado que ele interage com sistemas de neurotransmissores implicados nas
manifestações de NPS. Nesse sentido, atualmente, os pacientes que vivem no Canadá
e que têm receita de um profissional de saúde autorizado podem legalmente usar
Cannabis para fins médicos terapêuticos.

A DA é uma doença neurodegenerativa caracterizada pelo declínio cognitivo. É a forma


mais comum de demência, engloba mais de 60% dos casos e acomete mais de 33 milhões
de pessoas em todo o mundo. Com o envelhecimento da população, esse número deve
chegar a 115 milhões até 2050. A DA normalmente começa com déficits leves em memória
de curto prazo, aprendizado, comunicação e orientação espacial. No estágio moderado
da doença, os déficits começam a afetar a vida cotidiana, incluindo alimentação, roupas
e controle emocional. Nos estágios avançados da doença, ocorre uma perturbação
global da capacidade cognitiva, com graves prejuízos na fala e no reconhecimento facial,
de modo que se tornam necessários os cuidados durante 24 horas por dia. Conforme
a doença progride, os pacientes ficam cada vez mais suscetíveis a outras doenças.

A DA é classificada em dois tipos, quais sejam, DA esporádica de início tardio (> 95%
dos casos) ou DA familiar de início precoce (<5% dos casos). Embora a DA esporádica
seja a forma mais comum, ela é muito menos compreendida do que a DA familiar.
A DA familiar também é conhecida como forma genética, pois resulta de mutações
autossômicas dominantes no gene da proteína precursora de amiloide (APP) ou nos
genes da presenilina 1 e 2 (PS1 e PS2). APP é a molécula precursora que é clivada em
peptídeos β-amiloide (Aβ), enquanto PS1 e PS2 codificam os complexos γ-secretase e
β-secretase que medeiam o splicing de APP. Após o splicing do APP Aβ, podem formar-se
duas formas, Aβ40 e Aβ42. Pensa-se que o Aβ42 seja a forma mais tóxica da proteína, uma
vez que se agrega mais facilmente do que o Aβ40. A causa da DA esporádica é menos
clara e ainda não definida, no entanto pesquisas recentes indicam que ela pode resultar
de uma complexa interação entre vários fatores ambientais e vários genes suscetíveis.
Numerosos genes foram relatados como suscetíveis à DA esporádica, sendo o mais
bem documentado APOE.

Embora a DA familiar e esporádica difiram em suas causas, a progressão da doença


parece ser a mesma. Ambas as formas de DA exibem uma cascata neurodegenerativa que

150
Cannabis medicinal na neuropsiquiatria | Unidade IV

parece ser instigada pelo acúmulo de Aβ (formando placas senis) e tau hiperfosforilada, que
formam emaranhados neurofibrilares (NFTs). A cascata induz neuroinflamação e estresse
oxidativo, o que cria um ambiente neurotóxico que potencializa a neurodegeneração e,
eventualmente, leva ao declínio cognitivo. Além disso, a neurodegeneração induzida
por Aβ eleva os níveis de glutamato no fluido espinhal cerebral de pacientes com
DA e neurônios colinérgicos são perdidos em áreas do cérebro relevantes para o
processamento da memória (e acompanhados por uma diminuição na acetilcolina).

Patologia adicional à DA inclui defeitos mitocondriais funcionais, aumento de


espécies reativas de oxigênio (ROS) e espécies reativas de nitrogênio (RNS) e falha
de enzimas envolvidas na produção de energia, o que, por sua vez, produz exaustão
das células nervosas. Eventualmente, as sinapses e a ramificação dendrítica falham,
com o consequente desgaste neuronal progressivo. A demência e o declínio cognitivo
se desenvolvem e nenhum tratamento interrompe o processo. A intervenção deve
começar em um estágio pré-clínico inicial para que se tenha qualquer esperança de
sucesso. A função endocanabinoide modula os processos patológicos primários da DA
durante a fase silenciosa da neurodegeneração: enrolamento incorreto de proteínas,
neuroinflamação, excitotoxicidade, disfunção mitocondrial e estresse oxidativo.
Os níveis de CB2 aumentam na DA, especialmente na microglia em torno das placas
senis, e sua estimulação provoca a remoção de Aβ pelos macrófagos.

A América do Norte e a Europa Ocidental têm as taxas mais altas (6,4% e 5,4% aos
60 anos), depois a América Latina (4,9%) e a China (4%; viés de determinação versus
espelhar o desenvolvimento econômico e a dieta ocidental?). A prevalência é mais
baixa para os africanos nas terras natais, em oposição às taxas mais altas na diáspora da
Europa Ocidental e da América. O traumatismo craniano aumenta a deposição de Aβ e a
expressão neuronal de tau e diabetes, obesidade, gorduras trans e traumatismo craniano
aumentam o risco de DA. Dieta mediterrânea (aumento do azeite monoinsaturado e
ômega-3 dos peixes), educação e atividade física reduzem o risco para DA.

Nenhuma farmacoterapia atual está aprovada para agitação na DA. Os antipsicóticos,


antidepressivos, ansiolíticos e hipnóticos comumente usados ​​estão frequentemente
associados ao aumento da mortalidade em pacientes com demência, com um “Aviso
de caixa preta” do FDA. Quatro inibidores da acetilcolinesterase são aprovados nos
EUA para melhorar a memória: galantamina, donepezila, tacrina e rivastigmina.
Nenhum mostra forte evidências de eficácia e todos têm benefício limitado em caráter
temporário. Vários antagonistas do receptor NMDA em desenvolvimento se mostraram
amplamente ineficazes na progressão da doença. Em contraste, o tratamento com

151
Unidade IV | Cannabis medicinal na neuropsiquiatria

canabinoides parece mais promissor e benigno. Conforme demonstrado em 1998, e


objeto da patente dos EUA US09674028, o CBD é um antioxidante neuroprotetor mais
potente que o ascorbato ou tocoferol, e atua no mesmo alvo NMDA sem toxicidade
concomitante. Posteriormente, o CBD inibiu a formação da placa Aβ, evitou a produção
de ROS e a peroxidação de lipídios em células PC12 expostas a Aβ, limitou a apoptose
neuronal da redução da caspase 3 e neutralizou os aumentos de Ca ++ intracelular de
Aβ. Em um modelo in vivo, O CBD era anti-inflamatório por meio da redução do
óxido nítrico sintase induzível (iNOS) e da expressão e liberação de IL-1β. Também
inibiu a hiperfosforilação da proteína tau em neurônios PC12 estimulados por Aβ.
Posteriormente, foi demonstrado que o MOA do CBD parecia ser mediado seletivamente
via PPARγ: antagonizando de forma dependente da dose o NO pró-inflamatório,
fator de necrose tumoral alfa (TNF-α) e IL-1β. Esse efeito foi bloqueado por GW9662
(antagonista de PPARγ) e reduziu a gliose reativa por meio da inibição seletiva de
NFκB relacionada a PPARγ. Tanto AEA quanto CBD promoveram neurogênese após
exposição a Aβ.

Além de seus efeitos antioxidantes neuroprotetores, o THC inibiu competitivamente


a acetilcolinesterase, aumentando os níveis e prevenindo a agregação de Aβ por meio
da ligação à enzima em uma região crítica que afetava a produção de amiloide.

Do lado clínico, vários ensaios de THC, na DA, produziram resultados positivos.


Em 1997, em 15 pacientes institucionalizados com demência e que recusavam nutrição,
um ensaio cruzado RCT de 6 semanas, com dronabinol/THC (Marinol®) 2,5 mg, duas
vezes ao dia, levou ao aumento do índice de massa corporal (IMC), com diminuição
de Cohen – pontuações do inventário de agitação em campo (CMAI) –, melhores
pontuações de efeitos negativos e um efeito de transporte notável quando o THC foi
administrado primeiro. Em 2006, um estudo aberto de 2 semanas, com cinco pacientes
com DA e um paciente com demência vascular, os quais tomavam THC 2,5 mg às
19:00h, mostrou benefícios observados na atividade motora noturna, agitação, apetite
e irritabilidade sem efeitos adversos. Um estudo de 2015 falhou, no entanto: um RCT
em 50 pacientes com demência e sintomas neuropsiquiátricos recebeu 1,5 mg de THC
versus placebo três vezes ao dia por 3 semanas sem nenhum benefício observado para
o THC. A falta total de efeitos adversos indicou até mesmo aos autores que a dosagem
administrada era inadequada e que doses mais altas poderiam ser necessárias.

Os testes iniciais com extratos de Cannabis para DA começaram esporadicamente,


com um esforço mais focado em uma casa de saúde da Califórnia. Os pacientes foram
tratados com uma variedade de preparações: predominância de THC (2,5–30 mg

152
Cannabis medicinal na neuropsiquiatria | Unidade IV

/ dose), predominância de CBD e THCA, principalmente em tinturas. Benefícios


marcantes foram relatados em economia de drogas neurolépticas, diminuição da
agitação, aumento do apetite, agressão, qualidade do sono, humor objetivo, demandas
de cuidados de enfermagem, automutilação e controle da dor.

Com base em sua farmacologia, os componentes da Cannabis podem fornecer uma


miríade de benefícios para os sintomas-alvo nesse distúrbio complexo:

» Agitação: THC, CBD, linalol.

» Ansiedade: CBD, THC (dose baixa), linalol.

» Psicose: CBD.

» Insônia/inquietação: THC, linalol.

» Anorexia: THC.

» Agressão: THC, CBD, linalol.

» Depressão: THC, limoneno, CBD.

» Dor: THC, CBD.

» Memória: alpha-pinene + THC.

» Neuroproteção: CBD, THC.

» Reduzida formação de placa Aβ: THC, CBD, THCA.

Assim, um extrato de um quimiotipo do tipo II de Cannabis (THC / CBD), com uma


fração de pineno suficiente, parece ser um excelente candidato para ensaios clínicos.

Tratamentos atuais

Apesar do aumento em nossa compreensão do mecanismo da doença, os atuais tratamentos


aprovados para DA fornecem apenas benefícios terapêuticos limitados. Existem
alguns medicamentos aprovados disponíveis, uns são inibidores da acetilcolinesterase
(rivistagmina, donepezil e galantamina) e outros são um antagonista do receptor
NMDA (memantina). Infelizmente, todos eles foram associados a efeitos adversos.
Os inibidores da acetilcolinesterase podem causar náuseas, vômitos, diarreia e perda
de peso, enquanto a memantina é conhecida por causar alucinações, tonturas e fadiga.
Além disso, nenhum desses tratamentos previne ou reverte a progressão da doença,
mas apenas tratam os sintomas da doença com eficácia limitada.

153
Unidade IV | Cannabis medicinal na neuropsiquiatria

Os ensaios clínicos atuais para avaliar novos tratamentos têm como alvo vários aspectos,
com um grande foco nas placas Aβ. Os ensaios clínicos investigaram inibidores da
β- e γ-secretase, que desempenham um papel crucial na formação de Aβ patológico.
Infelizmente, as β-secretases são difíceis de atingir e as γ-secretases têm uma ampla
gama de funções, que resulta em efeitos colaterais adversos (por exemplo, cognição e
funcionalidade prejudicadas, toxicidade gastrointestinal e aumento da incidência de
câncer de pele). Imunoterapias ativas e passivas para direcionar placas senis e NFTs
também foram investigadas. As imunoterapias Aβ em modelos de camundongos
demonstraram potencial, pois aumentaram a fagocitose microglial de Aβ e reduziram
o declínio cognitivo. No entanto, em estudos clínicos de fase II e III, essas terapias
demonstraram eficácia limitada ou resultaram em efeitos adversos graves (por exemplo,
meningoencefalite). Um estudo recente que investigou uma imunoterapia baseada em
anticorpos para Aβ encontrou resultados promissores em estudos de fase I e fase II, mas
essa terapia ainda não foi submetida a estudos clínicos de fase III. As imunoterapias Tau
foram eficazes em modelos de camundongos com DA, mas tiveram sucesso limitado
em ensaios clínicos.
Os dados epidemiológicos mostraram que os anti-inflamatórios não esteroides (AINEs)
estão associados a um risco reduzido de DA. Além disso, estudos em animais indicaram
que o tratamento com AINH pode atenuar a patogênese da DA, propondo que a
inibição da neuroinflamação pode tardar a progressão dessa condição. No entanto,
os AINEs também foram associados a efeitos adversos graves de longo prazo (por
exemplo, problemas gastrointestinais) e mostraram apenas eficácia limitada na redução
ou prevenção de sintomas clínicos.
É improvável que qualquer droga que atue em uma única via ou alvo mitigue a
complexa cascata etipatológica que leva à DA. Portanto, uma abordagem medicamentosa
multifuncional para uma série de patologias da DA simultaneamente fornecerá benefícios
melhores e mais abrangentes do que as abordagens terapêuticas atuais. É importante
ressaltar que o sistema endocanabinoide recentemente ganhou atenção na pesquisa da
DA, pois está associado à regulação de uma variedade de processos relacionados à DA,
incluindo estresse oxidativo, ativação de células gliais e depuração de macromoléculas.

Canabidiol

O fitocanabinoide canabidiol (CBD) é o principal candidato para essa nova estratégia


de tratamento. O CBD foi considerado neuroprotetor in vitro, capaz de prevenir
a neurodegeneração hipocampal e cortical, ter propriedades anti-inflamatórias e
antioxidantes, reduzir a hiperfosforilação da tau e regular a migração das células

154
Cannabis medicinal na neuropsiquiatria | Unidade IV

microgliais. Além disso, o CBD protege contra a neurotoxicidade mediada por Aβ e


neurotoxicidade ativada pela microglia, reduz a produção de Aβ, induz a ubiquitinação
de APP e melhora a viabilidade celular. Essas propriedades sugerem que o CBD está
perfeitamente localizado para tratar uma série de patologias tipicamente encontradas
na DA. A seguir, descreveremos brevemente o sistema endocanabinoide e o perfil
farmacológico do CBD antes de discutir sobre os avanços recentes na avaliação das
propriedades terapêuticas do CBD (e combinações de CBD-THC) em modelos de
roedores in vivo com AD.

Efeitos do CBD em modelos farmacológicos


de Alzheimer em roedores

O potencial terapêutico in vivo do CBD, na DA, não foi amplamente documentado,


entretanto há uma série de estudos que relataram o efeito do CBD em modelos
farmacológicos da DA (por exemplo, inoculação com Aβ fibrilar). Esses estudos
descreveram os efeitos anti-inflamatórios e neuroprotetores do CBD. Os efeitos
anti-inflamatórios in vivo do CBD foram confirmados em modelos de camundongos
de AD, os quais receberam intra-hipocampalmente com Aβ42 humano e, em seguida,
foram tratados diariamente com injeções intraperitoneais (ip) de CBD (2,5 ou 10 mg/kg),
durante 7 dias. Os resultados desse estudo demonstraram que o CBD foi capaz de
inibir, de forma dependente da dose, o mRNA da proteína glial fibrilar ácida (GFAP)
e a expressão da proteína. O GFAP é o marcador mais conhecido de astrócitos ativados
e considerado uma das principais características da gliose reativa. Portanto, esses
resultados implicam que o CBD é capaz de reduzir a gliose reativa induzida por Aβ.
Além disso, o CBD reduziu a expressão da proteína iNOS e interleucina-1β (IL-1β) e
a liberação relacionada de NO e IL-1β. NO e IL-1β são algumas das muitas substâncias
ativas liberadas pela microglia estimulada por Aβ e, portanto, foram identificados como
moduladores potenciais de dano neuronal. O NO é um radical livre e importante para
condições neuroinflamatórias e neurodegenerativas, que incluem acelerar a nitração
de proteínas e aumentar a hiperfosforilação de tau. A IL-1β está envolvida no ciclo
de citocinas responsáveis ​​por neurodegeneração, síntese e processamento de APP,
ativação de astrócitos, superexpressão de iNOS e superprodução de NO. Dados in
vitro sugerem que o CBD pode ser capaz de reduzir a expressão da proteína iNOS e a
liberação de NO como resultado de sua capacidade de resgatar a via Wnt / β-catenina,
que desempenha um papel na hiperfosforilação de tau. Finalmente, a capacidade do
CBD de atenuar a gliose reativa pode resultar de sua capacidade de agir como um
agonista inverso no receptor canabinoide 2 (CB2), que se acredita estar envolvido na
gliose reativa.
155
Unidade IV | Cannabis medicinal na neuropsiquiatria

Os efeitos anti-inflamatórios e neuroprotetores do CBD foram investigados em


um modelo de rato de neuroinflamação relacionada à DA. Esse estudo avaliou o
envolvimento dos receptores ativados por proliferadores de peroxissoma (PPAR) nos
efeitos terapêuticos do CBD, uma vez que os receptores PPAR-γ estão aumentados
em pacientes com DA. Ratos machos adultos foram inoculados com Aβ42 humano
no hipocampo e depois tratados com CBD (10 mg/kg) na presença ou na ausência
de um antagonista do receptor PPAR-γ ou PPAR-α durante 15 dias. O CBD foi
capaz de diminuir, de maneira dependente da dose, a expressão induzida por Aβ de
iNOS, GFAP, proteína B de ligação de cálcio S100 (S100B) e anticorpos p50 e p56
em astrócitos de rato. iNOS e GFAP, conforme mencionado anteriormente, são
elementos-chave na gliose reativa e, portanto, sua redução demonstra as propriedades
anti-inflamatórias do CBD. A capacidade que o CBD possui de reduzir a gliose reativa
é ainda mais enfatizada pela inibição de S100B. S100B é uma neurotrofina derivada
da astroglia, que desempenha um papel crucial no ciclo de citocinas pró-inflamatórias
e na promoção de APP para clivar Aβ42. Também está envolvida na interrupção da
via Wnt / β-catenina e, portanto, inibe a hiperfosforilação de tau. Além disso, a
redução da expressão de p50 e p56 indica a capacidade do CBD para inibir o NF-κB
e, portanto, enfatiza a responsabilidade do PPAR-γ e do NF-κB nas propriedades
anti-inflamatórias do CBD. O benefício terapêutico do CBD foi bloqueado quando
coadministrado com o antagonista PPAR-γ (mas não o antagonista PPAR-α), o que
sugere que as propriedades anti-inflamatórias induzidas por CBD são mediadas (pelo
menos parcialmente) por meio do receptor PPAR-γ. Finalmente, o estudo descobriu
que o CBD foi capaz de restaurar os neurônios piramidais CA1 para uma integridade
semelhante à dos ratos de controle. O CBD também regulou negativamente a gliose
e reparou a neurogênese no giro dentado.

Um estudo investigou os efeitos do CBD na cognição em um modelo farmacológico


de DA. Camundongos de três meses de idade receberam intraventricularmente com
2,5 μg de Aβ fibrilar. Eles foram, então, tratados com 20 mg/kg de CBD por meio
de injeções i.p. diárias, durante uma semana e, em seguida, 3 vezes/semana, durante
as duas semanas seguintes. A aprendizagem espacial dos ratos foi então avaliada no
Morris Water Maze. O tratamento com CBD foi capaz de reverter os déficits cognitivos
de camundongos tratados com Aβ. Curiosamente, os agonistas CB2 seletivos não
preveniram o déficit cognitivo, indicando que o CBD exerce esse efeito terapêutico
por meio de outros mecanismos. O tratamento com CBD também evitou a expressão
do gene IL-6 induzida por Aβ, o que sugere que os benefícios comportamentais
documentados podem ser mediados pela modulação da ativação glial. No entanto, o

156
Cannabis medicinal na neuropsiquiatria | Unidade IV

CBD não influenciou a expressão do gene TNF-α. Os resultados in vitro desse estudo
corroboram tal achado, uma vez que o tratamento com CBD evitou o aumento do
cálcio intracelular induzido pelo ATP e promoveu a ativação da microglia em microglia
cultivada.

Efeitos do CBD em modelos de camundongos


transgênicos com doença de Alzheimer
Embora os modelos farmacológicos de DA sejam úteis na produção de sintomas
semelhantes aos da DA, é necessário investigar os efeitos do CBD em modelos de
camundongos transgênicos, pois eles resultam de mutações genéticas, que são observadas
na DA familiar (por exemplo, mutações nos genes APP, PS1 e PS2). Além disso, com base
nos protocolos farmacológicos usados, alguns efeitos do CBD podem estar relacionados
a um efeito direto do fitocanabinoide na administração de Aβ exógeno, em vez dos
efeitos de longo prazo do Aβ acumulado. Inicialmente, dois estudos foram conduzidos
para elucidar o potencial corretivo e preventivo do tratamento crônico com CBD
em camundongos transgênicos com DA. Para avaliar os efeitos corretivos do CBD,
APPxPS1 camundongos adultos e masculinos foram tratados durante 3 semanas com
CBD (20 mg/kg de CBD, injeções i.p. diárias) após o início dos déficits cognitivos e
da DA. O tratamento com CBD foi capaz de reverter déficits cognitivos na memória
de reconhecimento de objetos e memória de reconhecimento social sem influenciar
os parâmetros de ansiedade.

No estudo de tratamento preventivo, camundongos APPxPS1 machos com 2,5 meses


de idade foram tratados durante 8 meses, com 20 mg/kg de CBD, ou pellets de veículo
mediante um protocolo de administração oral voluntária diária. Isso avaliou o efeito de
longo prazo do CBD antes do “início da DA”. O tratamento de longo prazo com CBD
foi capaz de prevenir o desenvolvimento de déficits de memória de reconhecimento
social sem afetar os domínios de ansiedade em camundongos transgênicos. Esses efeitos
benéficos não foram associados a uma redução na carga de Aβ ou no dano oxidativo.
Também não houve diferença nos níveis hipocampal ou cortical solúvel e insolúvel
de Aβ40 e Aβ42 nos camundongos transgênicos independentemente do tratamento.
Além disso, os níveis de oxidação lipídica cortical não foram alterados pelo tratamento
com CBD. No entanto, o estudo relatou uma interação complexa entre o tratamento
com CBD, genótipo de AD e níveis de colesterol e fitosterol, o que sugere que eles
podem estar envolvidos nos mecanismos dos efeitos benéficos do CBD. Houve também
um impacto sutil do CBD nos marcadores inflamatórios do cérebro. Serão necessárias
mais pesquisas para elucidar os mecanismos potenciais, considerando também outros
157
Unidade IV | Cannabis medicinal na neuropsiquiatria

projetos de tratamento (ou seja, diferentes idades no início do tratamento e das doses
de CBD).

Pesquisas recentes indicaram que uma combinação de CBD e Δ9-tetra-hidrocanabinol


(THC) pode evitar os efeitos prejudiciais causados ​​pela ativação induzida por THC dos
receptores CB1 (por exemplo, psicoatividade) e, na verdade, pode fornecer maiores
benefícios terapêuticos do que qualquer fitocanabinoide sozinho. É importante ressaltar
que há controvérsias sobre quais proporções de CBD: THC devem ser usadas para
antagonizar os efeitos prejudiciais do THC. Foi relatado que uma dose >10 vezes
maior de CBD foi necessária para prevenir os indesejáveis ​​efeitos colaterais do THC.
Outra pesquisa sugere que o CBD pode até potencializar modestamente os efeitos
psicoativos do THC. No entanto, o Sativex (GW Pharmaceuticals, Salisbury, Reino
Unido), uma terapia de combinação que usa uma proporção de 1:1 de CBD e THC,
foi aprovado como um tratamento anti-inflamatório contra espasmos na esclerose
múltipla e não parece estar associado a qualquer efeito adverso do THC. Isso sugere
que o CBD bloqueia efetivamente aqueles na proporção escolhida.

Estudos avaliaram a eficácia de uma combinação de CBD e THC em processos


relacionados à DA in vivo. Um estudo realizado por Casarejos et al. (2013) investigou
os efeitos do Sativex em um modelo de tauopatia em camundongo. Esse modelo de
camundongo foi antes de tudo um modelo de demência frontotemporal, parkinsonismo
e doença do neurônio motor inferior. O estudo constatou que o Sativex diminuiu a
gliose, aumentou a proporção de glutationa reduzida/oxidada e reduziu os níveis de
iNOS, apresentando propriedades neuroprotetoras e antioxidantes. É importante notar
que o Sativex reduziu a deposição de Aβ e tau em hipocampo e córtex cerebral, bem
como aumentou a autofagia. Esse fato implica que, embora o modelo do camundongo
não esteja diretamente relacionado à DA, os benefícios terapêuticos estão.

Outro estudo conduzido por Aso et al. (2015) comparou o efeito de CBD, THC e uma
combinação de CBD-THC no modelo de camundongo APPxPS1, na fase sintomática
inicial (~ 6 meses). Esse estudo descobriu que todos os tratamentos melhoraram
os déficits de memória na tarefa de reconhecimento de dois objetos, mas apenas a
combinação CBD-THC evitou o déficit de aprendizagem visto na tarefa de evitação
ativa. A combinação de CBD-THC também diminuiu os níveis de Aβ42 solúvel e mudou
a composição da placa, enquanto o CBD e o THC individualmente não o fizeram.
Finalmente, astrogliose reduzida, microgliose e moléculas inflamatórias relacionadas
foram mais pronunciadas após o tratamento com a combinação CBD-THC do que
qualquer fitocanabinoide individualmente. Isso sugere que, quando o CBD e o THC

158
Cannabis medicinal na neuropsiquiatria | Unidade IV

são combinados, pode haver um efeito somativo ou um efeito de interação entre os


compostos, o que potencializa seus efeitos de tipo terapêutico. Nesse contexto, deve
ser mencionado que, embora todos os tratamentos tenham características de melhoria
da cognição na tarefa de reconhecimento de objetos, o THC sozinho teve um efeito
prejudicial sobre a cognição em camundongos de controle. Desse modo, é necessário
ter cautela ao considerar o THC como uma terapêutica. No entanto, camundongos
de controles tratados com a combinação de CBD-THC não mostraram quaisquer
déficits cognitivos, o que sugere que o CBD pode ser capaz de antagonizar os efeitos
prejudiciais do THC.

Em um estudo de acompanhamento muito recente, Aso et al. (2015) também investigou


o efeito do tratamento da combinação de CBD-THC na memória e na patologia
cerebral de camundongos machos APPxPS1 idosos e controles de ninhada (12 meses),
bem como controles sem idade e camundongos de controles de 3 meses de idade.
Em comparação com os controles sem idade, os camundongos idosos tratados com
veículo demonstraram cognição prejudicada na tarefa de reconhecimento de dois
objetos. Curiosamente, a combinação de CBD-THC restaurou o déficit de memória
de APPxPS1, mas não o de camundongos de controle tipo selvagem (wild type –WT).
Em comparação com seu estudo anterior, realizado com camundongos APPxPS1 mais
jovens, a combinação de CBD-THC não influenciou a carga de Aβ ou a reatividade
glial relacionada em camundongos transgênicos idosos.

Figura 42. Ivo.

Fonte: https://razoesparaacreditar.com/filho-pai-alzheimer-cannabis-medicinal/. Acesso em: 07 dez. 2020.

Seu Ivo foi diagnosticado com Alzheimer. A família, que vive em Goiás (GO),
relata o sofrimento diário com as mudanças de humor e comportamento. Com o
avanço da doença, seu Ivo se tornou uma pessoa agressiva e infeliz. Não sabia
mais mastigar uma refeição nem reconhecer as pessoas de seu convívio diário.

159
Unidade IV | Cannabis medicinal na neuropsiquiatria

Segundo Solange, sua esposa, a doença o fez uma pessoa totalmente dependente
e agressiva. Ele, que antes era uma pessoa doce, passou a ficar violento em alguns
momentos, como se tivesse perdido a própria identidade. O corpo dele estava
presente, mas a mente tinha ido embora.

“A partir do momento que colocou uma gotinha de maconha dentro dele, parece
que começou a funcionar de novo. Parece que religou ele. Não dá para falar ponto
A ou B que melhorou, porque foi muita coisa melhorando ao mesmo tempo”, conta
o filho, Filipe Suzin.

160
CANNABIS EM OUTROS
TRANSTORNOS DO
SISTEMA NERVOSO UNIDADE V
CENTRAL

CAPÍTULO 1
Cannabis medicinal em crianças

Figura 43. Cannabis medicinal em crianças.

Fonte: https://cannalize.com.br/convulsao-infantil-riscos-e-beneficios-no-uso-de-cannabis/. Acesso em: 07 dez. 2020.

A Cannabis influencia substancialmente o comportamento das pessoas, melhora a


comunicação interpessoal e a convivência diária. Semelhante a outras plantas, a
Cannabis contém centenas de compostos, incluindo terpenos e flavonoides, muitos
dos quais têm um efeito neurológico conhecido ou presumido. A Cannabis também
contém mais de uma centena de compostos exclusivos chamados fitocanabinoides
(canabinoides derivados de plantas).

Como já vimos aqui, os dois principais fitocanabinoides são o canabidiol (CBD) e o


Δ9-tetrahidrocanabinol (THC). Esses compostos foram caracterizados em 1963 e 1964,
respectivamente, pelo professor Raphael Mechoulam e colegas de Israel. Mechoulam
descobriu que o THC é o principal componente psicoativo da planta, responsável pela
sensação de “euforia”. Esse efeito no cérebro é mediado por um abundante receptor
acoplado à proteína G, que o professor chamou de receptor canabinoide tipo 1 (CB1).
Um segundo receptor, que também é diretamente ativado pelo THC, foi isolado
mais tarde de macrófagos no baço e foi denominado receptor canabinoide tipo 2
(CB2). Consequentemente, o principal efeito mediado pelo CB2 é imunomodulação.
161
Unidade V | Cannabis em outros transtornos do Sistema Nervoso Central

Esse receptor não é significativamente expresso no cérebro em condições normais,


mas pode ser encontrado nas células gliais em várias patologias cerebrais.

A Figura 44 demonstra o sistema endocanabinoide. Os endocanabinoides são produzidos


“sob demanda” nos neurônios pós-sinápticos e agem como mensageiros retrógrados
de sinalização em circuitos cerebrais hiperativos. Ao ativar o CB1 em neurônios
pré-sinápticos, eles modulam a liberação sináptica de neurotransmissores na fenda
sináptica e atenuam a atividade sináptica nesse circuito. Após a recaptação dos
endocanabinoides para o neurônio pré-sináptico, por intermédio do transportador
da membrana endocanabinoide, eles são imediatamente hidrolisados.

Figura 44. Sistema endocanabinoide.

Neurônio pré-sinaptico Neurônio pós-sinaptico


THC

CB1R
CBD
EMT
AEA

AEA
TRPV1

PPARs
FAAH CB1R
Nucleus
Glicerol

AA Etanolamida
2-AG
GPR55

MAGL
DAGL

2-AG
EMT

Fonte: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC7000154/. Acesso em: 07 dez. 2020.

Na Figura 44, observamos a biossíntese, a degradação e a ligação ao receptor de AEA


e 2-AG.

AEA é sintetizada por meio de fosfolipídios de membrana no neurônio pós-sináptico


por NAPE-PLD. Ele cruza a sinapse “contra o tráfego” e ativa o CB1 e TRPV1 no
neurônio pré-sináptico. Após a recaptação do neurônio pré-sináptico pelo EMT, a
AEA ativa os receptores nucleares – PPARs –, de modo que é degradada pelo FAAH.

THC ativa diretamente CB1; o CBD inibe FAAH e EMT (aumentando os níveis de
AEA), que é o ligante endógeno de CB1. Como AEA, o CBD ativa PPARs e TRPV1.
162
Cannabis em outros transtornos do Sistema Nervoso Central | Unidade V

Enquanto o THC ativa diretamente o sistema endocanabinoide por meio do CB1, o


CBD não ativa o CB1 diretamente e não é psicoativo. O canabidiol tem um limiar de
toxicidade relativamente alto e parece ter propriedades ansiolíticas, antipsicóticas
e neuroprotetoras, as quais podem ser mediadas por receptores como serotonina
5-HT1A, glicina α3 e α1, TRPV1, GPR55 e PPARγ, e inibem a recaptação de adenosina.
O canabidiol também inibe a enzima amida hidrolase de ácido graxo (FAAH) que
degrada a anandamida, que é o ligante endógeno do CB1, e, portanto, pode ativar
indiretamente o sistema endocanabinoide (Figura 44).

Enquanto os canabinoides 99% puros são mais reprodutíveis e padronizados do que o


extrato da planta inteira e, portanto, preferidos como uma droga para estudo, vários
estudos sugerem um efeito sinérgico para os numerosos compostos de Cannabis
presentes no extrato da planta inteira.

Estudos futuros devem avaliar diretamente os efeitos dos canabinoides puros versus
extratos de plantas inteiras, em vários distúrbios, entre diferentes populações-alvo.

Principais riscos da Cannabis para crianças


O conhecimento atual sobre os efeitos colaterais de longo prazo dos canabinoides é
baseado principalmente no acompanhamento longitudinal de usuários recreativos de
Cannabis. Vários grandes estudos demonstraram que os principais riscos de diminuição
da motivação, da dependência, do declínio cognitivo leve, e da esquizofrenia estão
diretamente relacionados às concentrações de THC e CBD na cepa usada, ou seja,
quanto maior a proporção de THC para CBD, maior o risco.
Existe um risco elevado entre aqueles que iniciam o uso ainda muito jovens (<18 anos)
e na presença de outros fatores de risco, como história familiar de esquizofrenia e
uso concomitante de álcool e tabaco. Notavelmente, esses estudos continham poucos
participantes com menos de 10 anos de idade e não avaliaram o uso diário de Cannabis
medicinal.
Estudos de acompanhamento longitudinal em crianças com epilepsia, as quais receberam
CBD puro, sugerem alta tolerabilidade e segurança, mas esses estudos incluíram poucos
participantes com menos de 5 anos de idade.
Estudos em animais sugerem que o uso de CBD puro e seu análogo canabidivarina
(CBDV), durante o desenvolvimento inicial, é relativamente seguro, enquanto o uso
de THC, com ou sem CBD, mostrou-se prejudicial à estrutura e à função do cérebro
durante o desenvolvimento inicial.
163
Unidade V | Cannabis em outros transtornos do Sistema Nervoso Central

Os eventos adversos de curto prazo de CBD puro ou extratos de plantas inteiras ricos
em CBD incluem sonolência, perda de peso e aumento das transaminases hepáticas.

Cannabis medicinal para crianças com epilepsia


Apesar da disponibilidade de muitos medicamentos antiepilépticos eficazes, cerca de um
terço dos pacientes epilépticos continuará a ter convulsões refratárias ao tratamento.
Se um paciente continuar a ter convulsões, apesar dos testes de tratamento apropriados
com três medicamentos, a probabilidade de obter a liberação das convulsões com os
medicamentos subsequentes é inferior a 3,5%. Nesses casos, as opções de tratamento
incluem cirurgia epiléptica, estimulação do nervo vagal ou dieta cetogênica. No entanto,
para os numerosos pacientes que não são elegíveis para cirurgia ou não respondem a
esses tratamentos, a Cannabis medicinal pode oferecer mais esperança de redução de
convulsões em comparação com outras intervenções farmacológicas.

Os principais neurologistas do século XIX, Sir John Russell Reynolds e Sir William
Richard Gowers, usaram esporadicamente a Cannabis rica em THC para tratar
convulsões. O uso dessa substância para epilepsia cessou gradualmente após a introdução
do fenobarbital, em 1912, e da fenitoína, em 1937. Pequenos estudos, principalmente
de Cannabis rica em THC para crianças com epilepsia, ressurgiram na década de 1970
e apresentaram resultados mistos. Após a descoberta do sistema endocanabinoide, na
década de 1990, e seu papel principal na neuromodulação, incluindo a atenuação de
circuitos cerebrais hiperativos, estudos em modelos animais e anedotas de tratamento
bem-sucedido em casos de epilepsia refratária começaram a se acumular. No entanto,
estudos clínicos em ampla escala de canabinoides na epilepsia foram realizados apenas
nos últimos anos. Esses estudos se concentram no canabinoide mais seguro, o CBD,
que parece ter mais efeito antiepiléptico do que o THC em estudos pré-clínicos.

Um composto de CBD puro derivado de planta (nome comercial: Epidiolex) foi aprovado
pela Food and Drug Administration (FDA) dos EUA, em 2018, para o tratamento de
duas formas graves de epilepsia – síndromes de Dravet e Lennox-Gastaut – seguindo
uma série de procedimentos de segurança e estudos de eficácia.

Uma recente revisão sistemática e uma metanálise da eficácia e tolerabilidade do CBD


puro e da Cannabis medicinal rica em CBD revelaram que o CBD é mais eficaz do que
o placebo para a epilepsia resistente ao tratamento, independentemente da etiologia
da síndrome epiléptica. Os eventos adversos incluíram sonolência, diminuição do
apetite e peso, irritabilidade, aumento da frequência das crises e diarreia (em alguns
dos estudos). As anormalidades laboratoriais incluíram elevação das transaminases

164
Cannabis em outros transtornos do Sistema Nervoso Central | Unidade V

hepáticas em pacientes que também receberam ácido valproico. Os eventos adversos


de curto prazo foram considerados semelhantes para CBD puro e Cannabis medicinal
rica em CBD. Os eventos adversos foram mais frequentes no início do tratamento
em comparação com o acompanhamento de longo prazo. Os médicos também devem
estar cientes da reatividade cruzada entre CBD ou Cannabis medicinal rica em CBD
e medicamentos antiepilépticos que também são metabolizados pelo complexo do
citocromo P450. Notavelmente, os metabólitos ativos dos benzodiazepínicos aumentam
significativamente com o uso concomitante de CBD e Cannabis medicinal rica em CBD.

Cannabis medicinal para crianças com transtorno


do espectro autismo
O transtorno do espectro do autismo (TEA) afeta até 2,5% das crianças em todo o
mundo, de modo que é um grande desafio para a saúde pública.
Pessoas com TEA apresentam algumas dificuldades relacionadas às questões de saúde,
como o convívio social, a comunicação, a cognição e o comportamento. Nesse sentido,
faz-se necessário um acompanhamento dos pais e de seus cuidadores, para que a criança
consiga lidar com as situações do dia a dia, ser inserida e se sentir aceita pelas pessoas
de seu convívio.
É muito importante que pais e cuidadores saibam lidar com as crianças e os adolescentes
de TEA, especialmente com as questões comportamentais (raiva, agressão, não
cumprimento e automutilação), para evitar que elas se isolem e sintam-se tristes.
É preciso que pais e cuidadores transformem a angústia do convívio com seus entes
queridos em desafios diários a serem superados juntos.
O tratamento padrão para o TEA é baseado em intervenções comportamentais
combinadas com medicamentos, como antipsicóticos atípicos e estabilizadores de
humor. Observa-se que tanto a eficácia quanto a tolerabilidade da farmacoterapia em
crianças com TEA são menos favoráveis do que entre crianças com desenvolvimento
típico e com sintomas semelhantes.
Mesmo com as intervenções comportamentais e os tratamentos médicos, observa-se
que 40% das crianças e dos jovens com TEA continuam a ter dificuldades em se adaptar
ao meio social em que vivem e sua qualidade de vida acaba sendo prejudicada. Isso faz
com que os pais busquem ajuda na medicina complementar e alternativa.

A epilepsia é uma das comorbidades mais comuns no TEA e afeta de 10% a 30%
das crianças e dos jovens com essa condição, e vários processos fisiopatológicos

165
Unidade V | Cannabis em outros transtornos do Sistema Nervoso Central

estão implicados em ambos os processos da doença. Portanto, o efeito positivo dos


canabinoides em pacientes refratários é relevante para indivíduos com TEA.

O CB1 é altamente expresso no córtex frontal e em áreas subcorticais associadas ao


funcionamento social. Os receptores CB1 e seus ligantes endógenos anandamida e
2-AG regulam o jogo social e a ansiedade social em modelos animais e em humanos.

A ativação do sistema endocanabinoide no nucleus accumbens (mobilização da


anandamida e consequente ativação dos receptores CB1), impulsionada pela ocitocina,
a qual é um neuropeptídeo que reforça os laços sociais, demonstrou ser necessária
e suficiente para expressar as propriedades recompensadoras da interação social. A
atividade endocanabinoide reduzida foi demonstrada em vários modelos animais de
TEA, incluindo modelos monogênicos (X-frágil, neuroligina 3), poligênicos (BTBR)
e ambientais (ácido valproico em rato). A ativação do sistema endocanabinoide
e a administração de CBD restauraram os déficits sociais em alguns modelos.
Uma única administração oral de 600 mg de CBD a 34 homens (17 neurotípicos
e 17 com TEA) aumentou a atividade do ácido gama-aminobutírico (GABA) pré-
frontal em neurotípicos e diminuiu a atividade do GABA naqueles com TEA.
Além disso, descobriu-se que crianças com TEA apresentam níveis mais baixos de
endocanabinoides periféricos.

Portanto, a desregulação do sistema endocanabinoide pode desempenhar um papel


importante na fisiopatologia do TEA e pode representar um alvo para intervenção
farmacológica.

Quatro estudos prospectivos não controlados, incluindo 60, 188, 53 e 18 crianças com
TEA e problemas comportamentais graves, relataram alta tolerabilidade e eficácia
de cepas artesanais de Cannabis ricas em CBD. Na maior coorte, a coleta de dados
foi parcial, e também havia uma sobreposição desconhecida entre as três primeiras
coortes. A maioria dos participantes foi acompanhada durante, pelo menos, 6 meses
e a taxa de retenção foi de cerca de 80%.

O tratamento reduziu substancialmente irritabilidade e ansiedade na maioria dos


participantes e melhorou os déficits. Ademais, contribuiu para a melhora dos aspectos
sociais em cerca de metade dos indivíduos, mas, segundo um autor de revisão de estudos
em TEA, esses resultados devem ser interpretados com cautela.

Segundo esse autor, o tratamento com canabinoides está associado a um efeito placebo
relativamente alto, em comparação com outros tratamentos farmacológicos e ainda
maior em estudos que usam avaliações comportamentais subjetivas. Portanto, estudos
166
Cannabis em outros transtornos do Sistema Nervoso Central | Unidade V

controlados por placebo são necessários até mesmo para uma avaliação preliminar
da eficácia.

A espasticidade
A espasticidade é uma alteração no tônus muscular, a rigidez do músculo, que acontece
em doenças neurológicas, contrações musculares, espasmos musculares, membros
inferiores em posição de “tesoura” (cruzamento involuntário das pernas).

A espasticidade pode ser dolorosa e provoca lesão de células do sistema nervoso, as


quais são responsáveis pelo controle dos movimentos voluntários.

Dentre as doenças neurológicas mais comuns que levam à espasticidade estão a paralisia
cerebral, a lesão medular, a esclerose múltipla, a esclerose lateral amiotrófica, o acidente
vascular cerebral, as lesões cerebrais provocadas por falta de oxigênio ou por causa de
traumatismos físicos, as hemorragias ou as infecções.

Os sintomas variam desde uma leve contração muscular até uma deformidade grave,
com permanente encurtamento muscular e posturas anômalas. Podem ser observados,
também, Clônus (rápidas e repetidas, especialmente se leva a articulação a tomar
uma posição anormal ou impede uma série de movimentos realizados por um grupo
muscular).

A espasticidade pode dificultar a realização de algumas atividades diárias, como caminhar,


escovar os cabelos, comer, escovar os dentes ou vestir-se.

Cannabis medicinal para crianças com


espasticidade e outras indicações
Um estudo aberto com 25 crianças (idades de 1-17 anos) com um distúrbio motor
complexo demonstrou melhora na espasticidade e distonia, nas dificuldades de sono,
na intensidade da dor e na qualidade de vida. Os participantes receberam uma das duas
cepas artesanais de Cannabis rica em CBD durante 5 meses; uma proporção de 20:1 de
CBD:THC ou uma proporção de 6:1. Não foram encontradas diferenças significativas
entre as duas cepas. Duas séries de casos, uma com 12 crianças com espasticidade
refratária ao tratamento relacionada a transtornos do desenvolvimento e uma com 7
crianças com neurodegeneração associada a pantotenato quinase (PKAN), relataram
melhora na espasticidade e distonia em algumas das crianças após o tratamento com
dronabinol (espasticidade) ou várias cepas de Cannabis (PKAN). Relatos de casos de

167
Unidade V | Cannabis em outros transtornos do Sistema Nervoso Central

crianças que receberam Cannabis para outras indicações incluíram dor neuropática e
transtorno depressivo maior comórbido (dronabinol, n = 2), ansiedade, sono em TEPT
(CBD, n =1) e síndrome de Tourette (THC, n =1). São necessários maiores estudos
abertos e estudos randomizados antes do uso clínico de Cannabis para essas indicações.

O interesse público no tratamento à base dessa substância está crescendo rapidamente,


especialmente para transtornos com necessidades substanciais não atendidas, como
TEA pediátrico e epilepsia refratária. Nos estudos acima, os eventos adversos
incluíram sonolência e redução do apetite. Interações importantes com medicamentos
antiepilépticos incluem um risco aumentado de hepatotoxicidade com ácido valproico
e um nível aumentado de metabólitos ativos com benzodiazepínicos, o que contribui
para a sonolência e, potencialmente, para a sua eficácia.

Embora alguns estudos sugiram que as cepas artesanais com uma proporção muito
alta de CBD: THC (por exemplo, 20:1) sejam tão seguras e potentes quanto o CBD
puro, essa questão deve ser avaliada em estudos futuros.

Figura 45. Mara Gabrilli.

Fonte: http://www.portalnews.com.br/_conteudo/2018/09/cidades/87221-mara-gabrilli-vai-representar-brasil-na-
onu.html. Acesso em: 07 dez. 2020.

A senadora Mara Gabrilli (PSDB-SP) ficou tetraplégica ao quebrar o pescoço


ainda jovem. Atualmente, usa remédios à base de THC.

Em depoimento no Congresso Nacional, a senadora disse que mexe muito pouco


o pescoço, mas que já mexe mais do que antes. Vivia numa cama e respirava numa
máquina, além disso, não falava, não sentava, não sentia e não se mexia.

Durante o tempo em que ficou sem o THC, ela desenvolveu uma epilepsia refratária.
Infelizmente, muitos pacientes têm crises epiléticas por não ter acesso a esse
tipo de medicamento.

168
Cannabis em outros transtornos do Sistema Nervoso Central | Unidade V

“Eu era uma pessoa deitada, que respirava numa máquina, que não falava, que
não sentia e que não se mexia. E hoje estou aqui para defender o direito das outras
pessoas. Porque eu tenho uma condição financeira que me permite comprar o
remédio. O remédio que eu uso é aprovado pela Anvisa, tem 27% de THC e custa
R$ 3.000”, senadora Mara Gabrilli, em sessão no Congresso Nacional.

169
CAPÍTULO 2
Cannabis medicinal e o futuro
da neurologia

Figura 46. Futuro da Cannabis medicinal.

Fonte: https://www.poder360.com.br/brasil/justica-federal-autoriza-familia-a-plantar-maconha-medicinal-em-cuiaba/. Acesso em: 07 dez. 2020.

A Cannabis despontou no horizonte da medicina ocidental após sua introdução por


William O’Shaughnessy, em 1838, que descreveu sucessos notáveis ​​no tratamento de
epilepsia, dores reumáticas e até mesmo tétano universalmente fatal, tudo por intermédio
da “nova” droga. Cannabis, ou “cânhamo indiano”, foi rapidamente adotada por médicos
europeus que observaram benefícios para a enxaqueca, por Clendinning (Inglaterra),
e para a dor neuropática, incluindo neuralgia trigeminal, por Donovan (Irlanda).
Esses desenvolvimentos não passaram despercebidos aos gigantes da neurologia em
ambos os lados do Atlântico, que adotaram de forma semelhante o seu uso em tais
indicações.

Enquanto a Cannabis medicinal sofreu um período de obscuridade e quiescência,


atribuível principalmente a questões de controle de qualidade e barreiras políticas, os
dados modernos sobre enxaqueca e dor neuropática, seja central ou periférica, mostram
que é comum a aplicação por pacientes afetados, o que é adicionalmente apoiado pelas
academias nacionais de ciência, engenharia e medicina.

Foi observado por algum tempo que o tônus muscular no âmbito central é mediado
pelo sistema endocanabinoide, mas alguns anos adicionais foram necessários para trazer
essa “aspirina do século 21”. Por meio da Fase I-III, ensaios clínicos randomizados
(RCTs) e avaliação pós-marketing demonstraram sua segurança, eficácia e consistência.

170
Cannabis em outros transtornos do Sistema Nervoso Central | Unidade V

Essa preparação, nabiximóis (nome adotado nos EUA; Sativex®), obteve a aprovação
regulamentar em 30 países para espasticidade associada à esclerose múltipla (EM) e,
no Canadá, para dor neuropática central na EM e para dor oncológica resistente a
opioides. Pesquisas recentes encontraram taxas de uso de Cannabis de 20% a 60% entre
pacientes com esclerose múltipla. Uma tentativa anterior falhou na demonstração da
neuroproteção em traumatismo craniano após a administração intravenosa de doses
únicas do análogo canabinoide não intoxicante, dexanabinol, mas ainda há esperança
para outras preparações em acidente vascular cerebral e outros insultos cerebrais.

Cannabis e tumores cerebrais


Fortes evidências científicas do benefício citotóxico dos fitocanabinoides estão
disponíveis desde 1975, mas o registro histórico sugere o uso antigo por coptas egípcios
(THC e/ou THCA) com afirmações semelhantes de fitoterapeutas da Renascença,
na Europa (CBD e/ou CBDA). Os tumores cerebrais são o assunto de uma excelente
revisão atual. Para resumir a pesquisa disponível, a atividade pró-apoptótica específica
do THC no glioma C6 foi relatada e a redução de in situ tumores da linha de células de
glioma humano foi observada com CBD. A administração intratumoral de THC em
glioblastoma multiforme (GBM) produziu um leve prolongamento da vida acima das
expectativas em nove pacientes humanos. Relatos de caso, no Canadá, documentaram
a regressão total de resídua em dois astrocitomas pilocíticos em crianças após o uso
de Cannabis. A análise laboratorial cuidadosa estabeleceu benefícios sinérgicos de
combinações de THC, CBD e quimioterapia padrão com temozolomida em glioma.

A aplicação clínica do conceito foi relatada on-line em um ensaio clínico randomizado


de Fase II (RCT), de 21 pacientes com GBM recorrente em temozolomida mais
nabiximóis até 12 pulverizações por dia (32,4 mg de THC mais 30 mg de CBD mais
terpenoides) versus placebo com uma sobrevida de 1 ano de 83% versus 53% nos controles
(p = 0,042) e sobrevida superior a 550 dias versus 369 para os controles. Houve apenas
duas retiradas em cada grupo devido a eventos adversos (AEs).

Tais resultados encorajadores são complementados por um relatório recente de que


THCA é um agonista do receptor gama ativado por proliferador de peroxissoma
(PPARγ) (IC50 = 470 nM, Ki = 209 nM)> CBGA (517,7 nM) e ≫ do que CBDA,
CBD ou THC. O THCA melhorou a viabilidade neuronal em um modelo animal da
doença de Huntington (HD) e diminuiu a neurodegeneração estriatal (bloqueada pelo
antagonista PPARγ). Por esse motivo, foi sugerido como um agente terapêutico em
HD. Essa descoberta, no entanto, tem implicações muito maiores e poderia explicar as

171
Unidade V | Cannabis em outros transtornos do Sistema Nervoso Central

alegações de eficácia terapêutica na epilepsia, bem como tumores e talvez até mesmo
na depressão maior. Em contraste com outros canabinoides e terpenoides neutros,
o THCA não atravessa a barreira hematoencefálica (BBB), mas, se for verdade, esse
obstáculo pode não ser aplicável no contexto da epilepsia crônica ou em tumores
cerebrais em que essa barreira está comprometida.

Conforme revisado, os PPARs são fatores de transcrição de ligação de ligantes em


membranas nucleares que afetam a adipogênese, apoptose e muitas outras funções.
A estimulação PPARγ pode matar células cancerosas sem toxicidade para células normais,
como astrócitos, e seus efeitos são aditivos com outros agentes citotóxicos. Butirato
e capsaicina podem ser ligantes naturais. PPARγ foi identificado em muitos cânceres,
incluindo aqueles que afetam o cérebro. Nesse contexto, regula a transcrição do gene
alvo e sua ativação inibe o crescimento de células tumorais. Esses autores sugeriram
que o agonista do PPARγ pode ser útil no tratamento de tumores cerebrais e pode
se estender também a lesões “benignas”, como meningioma, em que a pioglitazona
demonstrou atividade.

Assim, uma preparação de Cannabis Tipo II, com concentração igual de THC e CBD,
combinando THC, CBD, THCA, e mesmo CBDA, junto com terpenoides citotóxicos
como o limoneno, pode ser extremamente útil no tratamento do câncer.

Cannabis e lesão cerebral traumática (TBI)/


encefalopatia traumática crônica (CTE)
Os efeitos antioxidantes neuroprotetores dos canabinoides são particularmente
relevantes em sua capacidade de neutralizar a “excitoxicidade do glutamato”, que leva
à morte neuronal após lesão cerebral traumática (TBI). Curiosamente, a Cannabis,
particularmente combinando THC e CBD, tem sido extremamente útil para o tratamento
dos sintomas da encefalopatia traumática crônica (CTE): dor de cabeça, náusea, insônia,
tontura, agitação, abuso de substâncias e sintomas psicóticos. CTE, anteriormente
conhecido como demência pugilistica, ou “síndrome do soco e bêbado”, atraiu muita
atenção devido à sua aparente frequência entre jogadores de futebol americano de longa
data. Porém, também incluía vítimas de lesões repetitivas na cabeça por causas tão
diversas como outros esportes de contato, guerra e até mesmo “cabeçada” no futebol.
Um estudo recente mostrou que 87% dos jogadores de futebol americano autopsiados
demonstraram CTE com agregados de tau em neurônios e astrócitos, emaranhados
neurofibrilares em camadas corticais superficiais e hipocampo, α-sinucleína e deposição
de Aβ. Microglia estava presente no início do curso, cujos sintomas premonitórios

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Cannabis em outros transtornos do Sistema Nervoso Central | Unidade V

incluem demência, mudança de personalidade, raiva e problemas de atenção. Noventa


e seis por cento demonstraram um curso degenerativo. Até agora, isso foi considerado
um diagnóstico patológico post-mortem, mas dois estudos atuais apoiam a capacidade de
identificação pre-mortem. A proteína CCL11 é uma quimiocina associada ao declínio
cognitivo e aumenta a produção microglial de ROS e morte celular excitotóxica. O exame
de LCR em pacientes com CTE foi elevado em comparação com controles e pacientes
com DA (p= 0,028). Correlacionado a anos de futebol jogado (p = 0,04), indica que
CCL11 pode ser um biomarcador pré-morte para a síndrome. Além disso, os níveis de
ligação de imagens PET, em um paciente com CTE antes da morte, correlacionaram-
se com a deposição de tau post-mortem (p = 0,02). A maior concentração de tau foi
observada nas áreas parassagitais e paraventriculares corticais e do tronco cerebral, o que
permitiu o diagnóstico pre-mortem e a distinção da DA. Os benefícios neuroprotetores
dos fitocanabinoides, particularmente o CBD, descritos mais detalhadamente abaixo,
fornecem suporte para os estudos desses agentes na síndrome pós-traumática e na
prevenção de CTE.

Nutrição humana, Cannabis, ECS, “acne do


cérebro” e “eixo intestino-pele-cérebro”
O intestino humano abriga 100 trilhões de microrganismos a uma concentração de 1012
bactérias/ml e excede o genoma humano 100 vezes. Isso é denominado microbioma.
Humanos obesos têm contagens de Bacteroidetes mais baixas e contagens de Firmicutes
mais altas. Uma revisão recente apoia a eficácia dos probióticos (bactérias de ácido
láctico intestinais benéficas suplementares) no tratamento da síndrome do intestino
irritável sem AEs. A microbiota regula a expressão de 5-HT1A, BDNF e NMDA,
e o transplante experimental do microbioma de pacientes com Parkinson, para
camundongos, aumentou seus déficits motores. Isso apoia a descoberta de uma disbiose
pró-inflamatória (desequilíbrio do microbioma) nesse distúrbio.

Outra revisão recente elucida descobertas adicionais de pertinência para a discussão


atual. A combinação de prebióticos (fibra dietética que serve como matéria-prima
bacteriana) e deficiente em dietas ocidentais modernas e probióticos pode ser denominada
“simbióticos”. A translocação de fragmentos bacterianos produz “endotoxemia
metabólica” dos lipopolissacarídeos bacterianos (LPS). Os probióticos podem ajudar
a controlar o PPARγ, “o regulador mestre da adipogênese” e o TNF-α na inflamação.
Pesquisas adicionais apoiam que galacto-oligossacarídeos prebióticos (com base em
grãos) diminuem a produção de TNF-α e de interleucina GPR41 e que GPR43 são
receptores órfãos para ácidos graxos de cadeia curta (SCFA), que podem aumentar a
173
Unidade V | Cannabis em outros transtornos do Sistema Nervoso Central

liberação de 5-HT e outros fatores. Além disso, os prebióticos alteram a microbiota


para reduzir a adipogênese e estabilizar a barreira intestinal. Além disso, os níveis de
CB2 se correlacionam com as concentrações de Lactobacillus e, negativamente, com
espécies de Clostridium potencialmente patogênicas.

Outros experimentos relacionam o microbioma ao ECS. Foi demonstrado um efeito


direto da cepa NCFM de Lactobacillus acidophilus via administração oral para induzir
a expressão de mRNA CNR2 (gene que codifica o receptor CB2) acima de células
epiteliais HT-29 humanas em repouso (p <0,01). Um aumento do efeito antinociceptivo
da morfina em ratos (p <0,001) também foi demonstrado, o qual foi inibido pela
administração do antagonista CB2, AM-630 (p <0,001). Além disso, o THC alterou
o equilíbrio do microbioma em camundongos DIO obesos, afetando a proporção
Firmicutes: Bacteroidetes (p= 0,021). Ademais, o THC evitou o ganho de peso, apesar
de uma dieta rica em gordura.

Fatores dietéticos adicionais incluem a função dos receptores do sabor amargo, presentes
não apenas na língua, mas no intestino e no hipotálamo, em que a interação com os
mecanismos de apetite do ECS parece estar operativo.

A dieta também é um fator-chave para a acne vulgar, cuja fisiopatologia e epidemiologia


são surpreendentemente relevantes para essa discussão. A acne não foi observada em
populações Inuit que viviam um estilo de vida tradicional por mais de 30 anos, mas
se tornou comum com a adoção de uma dieta e estilo de vida ocidentais. Da mesma
forma, nenhuma acne foi observada em Papua Nova Guiné ou Paraguai, entre os povos
indígenas tradicionais. Nenhuma população demonstrou marcadores de resistência
à insulina nem elevações de leptina. O autor então sugere que, em muitos aspectos,
a epidemiologia da acne é paralela à da DA. A relação se torna mais saliente à luz
das descobertas recentes e demonstra que a neuroinflamação é um estímulo para o
desenvolvimento da DA, sendo desencadeada por insultos infecciosos. Além disso,
os cérebros com DA demonstraram cargas bacterianas 5–10 × maiores, especialmente
com Actinobacteria, particularmente Propionibacterium acnes, Gram-positivo, um
residente aeróbio da pele, da boca e do intestino e agente patológico da acne. P. acnes
foi cultivada com base em cérebros com DA, de modo que o microrganismo pode
crescer lá e estimular a formação fibrilar de alfa-sinucleína em DP, fibrilação amiloide
em DA e formação de biofilme, que se opõe a canabinoides e terpenoides de Cannabis
limoneno, alfa-pineno.

Um paralelo adicional pertence ao receptor TRPV4. O TRPV4 é expresso em células


endoteliais cerebrais, em que medeia Ca ++ e provoca dilatação induzida por influxo

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Cannabis em outros transtornos do Sistema Nervoso Central | Unidade V

de acetilcolina. A hipoperfusão cerebral com dilatação dos vasos prejudicada é um


fator patogenético na DA. Essa função é afetada em um modelo de rato de AD, sendo
sensível ao estresse oxidativo de Aβ, que é aliviado por antioxidantes. Os autores
sugeriram TRPV4 como um alvo para o tratamento da DA.

A importância dessas relações se torna aparente à medida que esforços são feitos para
integrar segmentos díspares. Os escores de comprometimento da saúde mental em
pacientes com acne superam, surpreendentemente, aqueles com epilepsia e diabetes.
Os probióticos orais regulam as citocinas inflamatórias na pele. Microbiota intestinal,
inflamação da pele e sintomas psiquiátricos estão, portanto, entrelaçados em um “eixo
intestino-cérebro-pele”. Postula-se que os processos induzidos pela acne também
podem afetar a fisiopatologia de DP, DA e CTE (Figura 47).

Figura 47. Cannabis, o sistema endocanabinoide e o eixo intestino-cérebro-pele.

Probiótico
Prebiótico
THC
CBD
Microbiota entérica
THCA
Propionibacterium acnes CBDA

Propionibacterium acnes

Fonte: https://www.frontiersin.org/files/Articles/413977/fnint-12-00051-HTML/image_m/fnint-12-00051-g002.jpg. Acesso em: 07 dez. 2020.

Tendências futuras

É opinião de muitos que a neurologia está enfrentando paredes de tijolos terapêuticos.


O atual modelo de receptor de alvo único de farmacoterapia não se mostrou
universalmente salutar ante doenças neurodegenerativas complexas. Em vez disso,
reconsideração deve ser dada a um modelo comprovado e mais antigo de sinergia
botânica, o qual pode permitir a politerapia em preparações únicas. Tais abordagens,
combinadas com o manejo nutricional e do estilo de vida, podem tornar a neurologia
uma especialidade mais preventiva e terapêutica, em vez de meramente diagnóstica.

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Unidade V | Cannabis em outros transtornos do Sistema Nervoso Central

Ademais, pode fornecer um melhor tratamento para epilepsia, tumores, DA, DP e


TBI/CTE. As estratégias sugeridas incluem:

» Atividade aeróbia.

» Educação como estilo de vida.

» Dieta anti-inflamatória, prebiótica e probiótica com ênfase nos ácidos graxos


essenciais saturados e monoinsaturados, ômega-3, bioflavonoides (bagas),
alimentos fermentados, proteínas e carboidratos minimizadores.
» Suplementação com extratos de Cannabis que forneçam THC, CBD, THCA,
CBDA, cariofileno e outros terpenoides selecionados.

Preocupações legítimas cercam as sequelas psicoativas do THC, mas, conforme


amplamente demonstrado pelos nabiximóis RCTs e apoiadas pelos efeitos atenuantes do
canabidiol e dos terpenoides da Cannabis, as drogas à base dessa substância pressagiam
o fornecimento de tratamentos futuros que sejam seguros e eficazes para doenças
neurológicas até então recalcitrantes

176
CAPÍTULO 3
Cannabis medicinal e doenças raras

Figura 48. Cannabis em doenças raras.

Fonte: https://www.folhavitoria.com.br/saude/noticia/03/2020/cannabis-medicinal-e-opcao-terapeutica-para-pacientes-com-doencas-raras.
Acesso em: 07 dez. 2020.

Existem hoje mais de 300 milhões de pacientes diagnosticados com uma das mais
de 6 mil doenças raras identificadas no mundo, as quais atingem entre 6% e 8% da
população. Mais de 42 milhões desses pacientes se encontram na América Latina,
sendo 13 milhões deles aqui no Brasil.

Cada doença apresenta suas características particulares, porém existem algumas


características comuns à maioria, como a manifestação de sintomas desde a infância,
os efeitos na qualidade de vida e no desenvolvimento dos pacientes, os efeitos na
expectativa de vida e, algumas vezes, o prejuízo das capacidades físicas e mentais do
paciente.

De acordo com a Associação Internacional de Pacientes na América Latina, o tempo


médio entre o surgimento dos primeiros sintomas e o diagnóstico de uma doença
rara é de aproximadamente 5 anos. A falta de conhecimento torna mais difícil ainda
o diagnóstico e o acesso a tratamentos adequados, motivo pela qual as pessoas com
doenças raras enfrentam desafios relativos aos sintomas da doença, às complicações e à
redução da sua qualidade de vida. O impacto não é somente no paciente, mas envolve
também o seu círculo familiar e de cuidadores.

Algumas patologias, como a síndrome X frágil, esclerose tuberosa, síndrome de


Tourette, síndrome de Lennox-Gastaut e síndrome de Dravet se encontram entre as
investigadas pela comunidade científica no mundo todo. A síndrome do X frágil é uma
177
Unidade V | Cannabis em outros transtornos do Sistema Nervoso Central

patologia genética, ainda sem cura e de diagnóstico complexo, que utiliza análise de
DNA em amostras de sangue. Quanto antes o diagnóstico for realizado, mais efetivo
é o tratamento.
Essa patologia genética é decorrente da mutação no gene FMR1 (Fragile X Mental
Retardation 1), localizado no braço longo do cromossomo X. Quando um paciente é
acometido pela síndrome, o gene FMR1 fica comprometido e, dessa forma, ocorre a
falta ou redução na produção da proteína FMRP (Fragile X Mental Retardation Protein).
Essa ausência afeta diretamente o desenvolvimento do sistema nervoso central e causa
o surgimento das características peculiares da síndrome do X frágil.
As pessoas apresentam atraso no desenvolvimento, com características variáveis de
comprometimento intelectual, problemas de aprendizado, distúrbios de comportamento
e da capacidade de comunicação.
Entre os estudos clínicos que estão sendo realizados para conhecer tratamentos possíveis,
o uso da Cannabis medicinal tem sido apresentado como um dos possíveis coadjuvantes
no tratamento dessas doenças.
Os produtos à base de canabinoides são utilizados há muito tempo para auxiliar
na redução da dor, da espasticidade, de convulsões e de inflamações de diferentes
condições. Um estudo científico realizado com participação de 24 pacientes, os quais
têm síndrome de Tourette, apresentou um efeito terapêutico positivo sobre os tiques
motores e vocais dos indivíduos.
Dois outros estudos recentes, que pesquisaram os efeitos anticonvulsivos dos canabinoides
na síndrome de Dravet, chegaram à conclusão de que a utilização da Cannabis medicinal
estava relacionada com a redução da frequência das convulsões e com a melhoria da
qualidade de vida dos pacientes.
Um em cada cinco pacientes com doenças raras apresenta dor crônica” e as evidências
científicas demonstraram que os canabinoides ainda podem oferecer efeitos terapêuticos,
em muitos casos, na redução da dor. Ainda vale destacar que um paciente atendido
melhor nas suas necessidades pode reduzir o custo da assistência médica e farmacêutica
ao sistema de saúde do Brasil.

Doença de Huntington
A doença de Huntington é uma condição genética debilitante que afeta o cérebro. É um
distúrbio cerebral progressivo caracterizado por movimentos musculares incontroláveis,
incapacidade de controlar as emoções e uma redução gradual da função cognitiva.
178
Cannabis em outros transtornos do Sistema Nervoso Central | Unidade V

Na doença de Huntington, proteínas disfuncionais (huntingtina) se acumulam ao redor


das células nervosas e começam a impedir sua capacidade de funcionar.

É uma condição séria e vitalícia, a qual é causada por uma mutação genética.
A maioria dos sintomas envolvidos com a doença de Huntington é resultado direto
da morte neuronal.

Durante longos períodos de tempo (10 a 20 anos), isso resulta em inflamação generalizada
e morte dos neurônios. Por esse motivo, causa sintomas neurológicos graves e redução
gradual na qualidade de vida.

Uma opção de tratamento que vem ganhando muita importância é o canabidiol (CBD),
o principal canabinoide não-psicoativo.

O CBD oferece alguns benefícios exclusivos às pessoas que possuem essa condição
por causa de seus potentes efeitos anti-inflamatórios e neuroprotetores.

Embora não existam ensaios clínicos conclusivos que envolvam o CBD em pacientes
com doença de Huntington, há muitos ensaios em animais e convincentes estudos de
caso publicados.

Além disso, os efeitos do CBD são bem conhecidos e apoiam fortemente a teoria de
que o CBD pode retardar a progressão da doença e reduzir muitos dos efeitos colaterais
mais debilitantes.

Ao longo das últimas 2 décadas, fizemos pouco progresso para encontrar


tratamentos eficazes para a doença de Huntington.

A Cannabis oferece um forte potencial como agente terapêutico para tratar


o distúrbio devido ao seu papel na regulação do sistema nervoso. O CBD, em
particular, também é usado para tratar condições com processos patológicos semelhantes,
como o mal de Alzheimer e a esclerose múltipla.

O óleo de CBD é de particular interesse porque, em vez de estimular o sistema


endocanabinoide em uma direção ou outra, simplesmente torna o sistema mais eficiente
em seu trabalho.

Isso é importante em relação à doença de Huntington, pois camundongos com


essa doença apresentam menor atividade de CB1 e maior atividade de CB2.

Acredita-se que o corpo aumente a atividade do CB2 na tentativa de controlar a


condição e prevenir a morte das células nervosas.
179
Unidade V | Cannabis em outros transtornos do Sistema Nervoso Central

O CBD oferece benefícios aos pacientes ao apoiar a capacidade dos sistemas


endocanabinoides para responder e gerenciar os processos negativos que ocorrem
como consequência da doença de Huntington.

Ainda são poucas as pesquisas que envolvem o CBD para essa condição. Há apenas
um pequeno punhado de ensaios clínicos que investigaram essa relação e os registros
que temos são significativamente carentes em áreas-chave.

Eles são muito curtos, muito pequenos e envolvem pacientes com o foco errado
de sintomas.

No entanto, estamos chegando muito mais perto.

Para fazer esses ensaios clínicos grandes e caros, precisamos, primeiro, confirmar que
há benefícios do óleo de CBD para a fisiopatologia envolvida na doença de Huntington.
Isso pode ser feito por meio de culturas de células e testes em animais. O próximo
passo é conduzir pequenos testes baseados em humanos, antes de passar para testes
clínicos maiores e mais difundidos.

Já foram feitos diversos estudos em animais, muitos dos quais demonstraram que o
CBD e o THC são capazes de retardar a progressão da doença de Huntington em ratos.

Além disso, há alguns relatos de casos de pessoas com doença de Huntington que
usam CBD e THC sintético. Alguns desses relatos envolvem melhora significativa dos
sintomas, como coreia (movimento involuntário) e dificuldades na fala.

Até agora, só houve um punhado de ensaios clínicos envolvendo o CBD e a doença de


Huntington. Um desses ensaios apenas investigou o uso de CBD em pacientes que não
apresentavam o principal sintoma de movimentos involuntários. Isso é interessante,
porque as principais teorias relacionadas ao uso do CBD, para melhorar a condição,
indicam que o ideal é tratar justamente esses movimentos involuntários.

A capacidade do CBD para regular tanto a função neurológica quanto a imunológica


– ambas as quais estão altamente envolvidas na progressão da doença de Huntington
– torna-o um ótimo candidato para futuras opções de tratamento para essa condição.

Tem havido uma crescente coleção de evidências que apoiam a capacidade do CBD
para retardar a progressão da doença de Huntington e melhorar a qualidade de vida
em pessoas que sofrem dessa condição debilitante.

Assim, mais pesquisas precisam ser feitas para que seja possível entender até que ponto
esse composto pode ajudar aqueles diagnosticados com a doença.

180
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