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médicos como materiais para as suas criações literárias, o que se verifica, por
exemplo, no fato de o escritor gaúcho ser autor de vinte e uma obras com temática
médica. 4
De acordo com Manuel da Costa Pinto em artigo para a Folha de São
Paulo de 28 de fevereiro de 2011, a tradição judaica aparece desde A guerra no
Bom Fim, o primeiro romance de Scliar, editado pela primeira vez em 1972. Para
Pinto, a história é outra constante na ficção de Scliar, inscrito numa linhagem de
médicos-escritores, como Pedro Nava (1903-1984) e Guimarães Rosa (1908-
1967).
menos imediato, diferente da ficção (romance), gênero no qual uma boa ideia
pode ficar amadurecendo por anos (FISCHER, 2004, p. 7-17).
Os cronistas eram considerados poetas do que acontecia no dia-a-dia,
inspirados pelos eventos do cotidiano, dando-lhes um toque próprio, incluindo
elementos de ficção, fantasia e criticismo. Moacyr Scliar vai mais longe: convida o
leitor a refletir e buscar respostas. O escritor também põe em evidência a literatura
e as artes como meio de suas críticas, escrever para Scliar era indagar uma busca
por respostas muitas vezes não existentes, escrever para que seus leitores
fossem cúmplices de suas interrogações. De acordo com Nubia J. Hanciau, “a
partida de Scliar abriu uma lacuna difícil de ser preenchida por outros cronistas”
restando aos leitores “o consolo da (re) leitura da variada abordagem e
multiplicidade de assuntos que [Scliar] tratava, publicados em livros” (HANCIAU,
2012, p. 116-117).
Muitas das crônicas escritas por Moacyr Scliar foram inspiradas nas
notícias dos jornais Folha de São Paulo e Zero Hora. O processo de criação de
Scliar precisa de um elemento desencadeante e, nesse processo, a notícia
publicada no jornal é importante, conforme ele mesmo admite numa entrevista
concedida à professora Regina Zilberman:
por ocasião do lançamento de seu livro Contos reunidos. Nesta, Scliar demonstra
predileção pelo trabalho de quatro cineastas, dentre os quais, Stanley Kubrick
(1928-1999), diretor do filme O jardineiro fiel, há pouco citado. Nota-se um
ecletismo de Scliar pois ele demonstra ter conhecimento de dois cineastas norte-
americanos (Kubrick e Woody Allen [1935]), um sueco (Ingmar Bergman – 1918-
2007) e um italiano (Ettore Scola – 1931). 5 Os filmes e séries que Scliar menciona
em seus textos, inclusive em seus romances, são quase sempre premiados: O
jardineiro fiel (2006), por exemplo, ganhou o Oscar, o Globo de Ouro, o BAFTA e o
Screen Actor Guild Awards pela melhor atriz coadjuvante, além de receber o
Grande Prêmio Brasileiro de Cinema como melhor filme estrangeiro.
Na entrevista intitulada “Falar com Deus? Só se for com ligação a
cobrar”, publicada na Revista Press & Advertising (online), Scliar é indagado sobre
seu interesse pelo cinema e responde: “Sou fã, não tem semana que eu não vá”
(grifo nosso). Diante da pergunta: “O grande filme”, o escritor rio-grandense-do-sul
replica: “Espero que alguém se lembre, é um filme muito bom chamado Milagre
em Milão”. A afirmação de Scliar de que não fica uma semana sem frequentar o
cinema parece ter sido a matéria utilizada por ele na composição da crônica “E de
Esperteza”, presente no livro Dicionário do viajante insólito:
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Outra parte do corpo humano muito presente no conjunto da obra do escritor gaúcho são os pés,
conforme se nota nas crônicas “O sofrimento dos pés” (In: O olhar médico) (SCLIAR, 2005, p. 150-
152). No livro Território da emoção encontra-se compilada a crônica “Lembrem-se dos pés”,
publicada originalmente em 07 de fevereiro de 2009 em jornal não especificado (SCLIAR, 2013, p.
150-152). Em Os vendilhões do Templo personagens realizam reflexões filosóficas sobre os pés
(SCLIAR, 2006, p. 130-131, 283-284). Em se tratando das mãos, na “trilogia” elas são comumente
usadas na prática da masturbação: em Os vendilhões do Templo isso ocorre pelo judeu errante
que conversa com o vendedor do Templo: “com as mãos eu fazia e consertava sandálias, com as
mãos eu preparava minha comida, com as mãos – é pecado, eu sei que é pecado isto que estou te
contando, mas agora tanto faz, agora posso te contar meus pecados, eles ficaram para trás –, com
as mãos eu me masturbava, quando o sexo me agoniava” (SCLIAR, 2006, p. 130-131); em Manual
da paixão solitária o uso das mãos na busca do prazer solitário está presente com o personagem
Shelá (SCLIAR, 2008, p. 90-91, 129-130) e em A mulher que escreveu a Bíblia a masturbação se
dá pela feia, valendo-se de uma pedra (SCLIAR, 2007, p. 25-26).
9
Nessa crônica, Scliar ainda observa que, antes de Hughes tornar-se obcecado por higiene, “uma
vez ficou quatro meses trancado num estúdio, vendo filmes (assistiu a um deles mais de 150
vezes), nu, comendo só chocolate e sem tomar banho ou higienizar-se. Depois [...] lavava
compulsivamente as mãos e só tocava objetos usando guardanapos. [...] [Howard Hughes], que
morreu em 1976, [foi] retratado em filme de Martin Scorsese com Leonardo di Caprio no papel
principal.” (SCLIAR, 2013, p. 208). Na crônica “O elogio dos canhotos”, Scliar também demonstra
“colecionar” informações detalhadas sobre a da vida de atores, e elenca alguns “canhotos ilustres”
do cinema: “Robert de Niro, Nicole Kidman, Angelina Jolie (e Brad Pitt, claro), Marilyn Monroe”
(SCLIAR, 2013, p. 148).
9
Luciana Villas-Boas diz que a Editora Record o convidou diversos intelectuais para
“escrever sobre suas cidades natais ou de adoção” e coube a Scliar redigir sobre a
capital gaúcha. No capítulo “Porto Alegre cultural”, Scliar menciona que nas
décadas de 50 e 60 o debate intelectual girava em torno dos livros e do cinema.
pensamento, como expressão de uma época. Não há nenhuma prova de que Galileu Galilei (1564-
1643) tenha dito ‘eppur si muove’ [ainda que se move], mas esta simples sentença é um marco:
não é Terra que se move, é a história também, e ao mover-se deixa para trás toda a tradição
medieval. Se não foi Galileu quem falou, foi o seu tempo. [Por isso,] Colecionar citações é uma
arte” (SCLIAR, 1993, p. 9).
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No livro Histórias para (quase) todos os gostos, o texto que se refere a quem gosta de controle
remoto é “Zap”. Esse texto e o texto “A balada do falso Messias” foram selecionados por Ítalo
Moriconi para compor a antologia Os cem melhores contos brasileiros do século (MORICONI,
2000, p. 352-357, 555-556). “A balada do falso Messias” está alocada na seção “Anos 70 –
violência e paixão”, e “Zap” na seção “Anos 90 – estranhos e intrusos”.
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escritor porto-alegrense, embora nessa obra não haja uma seção relacionada ao
cinema e o referido conto esteja agrupado na seção “Maldade da infância”.
Embora no livro Histórias para (quase) todos os gostos o conto escolhido para
representar o cinema tenha sido “O dia em que matamos James Cagney”, o conto
“Shazam” também poderia ter sido inscrito na seção para quem gosta de ler sobre
cinema, pois o Capitão Marvel – sobre o qual o narrador versa – foi representado
na arte cinematográfica. Apesar disso, “Shazam” foi relacionado no segmento para
quem gosta de histórias de “super-heróis”. Embora ele seja de fato um herói, sua
disposição na seção “cinema” também seria apropriada. Nesse contexto, ainda há
que se dizer que o personagem Capitão Marvel está presente na capa do livro
Histórias para (quase) todos os gostos, juntamente com mais alguns objetos que
tematizam os textos ficcionais scliarianos que compõem essa obra.
“Scliar vence esses desafios, fazendo com que suas crônicas médicas, tais como
os demais escritos que produziu, se apresentem na melhor forma literária
possível” (ZILBERMAN, 2013, p. 12).
As afirmações de Zilberman são bastante relevantes, mas talvez tenha
faltado à estudiosa destacar que, com frequência, as crônicas médicas de Scliar
fazem menção a filmes, séries televisivas, atores e diretores. Essa prática
escritural costuma ser tão recorrente que o próprio escritor já a tentou explicar,
ainda que mui brevemente. Na crônica “Literatura como tratamento” – inscrita em
Território da emoção – ele pondera que “no século XIX, eram os grandes
romances – aqueles de Balzac, por exemplo – que ensinavam as pessoas a viver.
Esse papel foi assumido pelo cinema e pela TV” (SCLIAR, 2013, p. 29). Se se
considerar o paratexto – data – abaixo do título, nota-se que essa concepção de
Scliar é “antiga”, pois antes de a referida crônica ser compilada no livro Território
da emoção: crônicas de medicina e saúde (2013), em 31 de maio de 2003 – dez
anos antes – o texto “Literatura como tratamento” foi publicado no Caderno Vida,
do Jornal Zero Hora, de Porto Alegre (ZILBERMAN, 2013, p. 12).
Se no prefácio do Território Zilberman não sublinhou abertamente a
presença da sétima arte na crônica scliariana, ela o faz indiretamente quando
aponta ao leitor a importância de se detectar o “território da emoção”, ou seja, “a
ponte entre literatura e medicina”. Essa detecção se dará principalmente pela
leitura da crônica “Medicina e ficção” (ZILBERMAN, 2013, p. 13). Publicada
originalmente em 2010, o referido texto traz a conclusão de que “ao menos em
termos de medicina, há uma longa distância entre a realidade e a ficção. E a
ficção às vezes ganha a briga”. Para chegar a essa ilação, Scliar começa seu
texto impressionado com a constatação de que o personagem Sherlock Holmes foi
criado há mais de um século e ainda sobrevive com vigor, conforme se constata
com o lançamento do filme homônimo, estrelado por Robert Downey Jr., vivendo
Sherlock, e Jude Law, na pele de Dr. Watson. O escritor menciona que esse filme
“é o mais novo lançamento numa longa série de filmes”. Na sequência, percorre
uma linha do tempo, por meio da qual constata que o personagem Sherlock
Holmes serviu de modelo para um famoso personagem médico de um seriado – o
13
12
Os filmes e séries que Scliar menciona em seus textos, inclusive em seus romances, são quase
sempre os que receberam alguma espécie de premiação.
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Outra série televisiva relacionada a médicos é Doutor Kildare. Scliar a cita na crônica “Erico,
literatura e medicina” quando menciona que “mesmo os ficcionistas têm dificuldades com seus
personagens médicos”, mas Erico Veríssimo – que era neto de médico e trabalhou numa farmácia
durante uma época de sua vida – “soube transformar seus personagens médicos em seres
humanos.” (SCLIAR, 2012, p. 27). Nessa mesma crônica é possível verificar o interesse de Scliar
pelo teatro, pois ele escreve sobre a peça O dilema do médico (1911), de Bernard Shaw.
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É interessante a associação que Scliar faz de Sherlock Holmes com o Dr. House. A respeito
disso, observa-se que, recentemente, Valéria Bussola Martins, professora da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, apresentou um trabalho detalhado sobre essa associação: As versões
literária e televisiva de Sherlock Holmes: um diálogo entre Comunicação, Educação e Letras. In:
Congresso Nacional Mackenzie Letras em Rede: Linguagens e Saberes, 2012, São Paulo. Anais
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tanto frisa em entrevistas, como a que concedeu à Mona Dorf e foi trabalhado
anteriormente nesse capítulo.
Permeando a discussão sobre o preenchimento de lacunas do texto
bíblico para a elaboração das obras Manual da paixão solitária e Os vendilhões do
Templo, bem como o enfoque na condição humana em seus livros, há que se
levar em conta a estratégia de Scliar se valer do cinema para refletir sobre todas
essas questões. Esse debate está presente no texto “A inquietude de
Hemingway”, publicado por Scliar na Folha de São Paulo do dia 18 de julho de
1999, da qual se tem acesso por meio da edição de “Os assassinos”, da Coleção
“Folha Grandes Livros no Cinema”. No referido ensaio, que tinha o propósito
rememorativo dos cem anos da morte de Ernest Hemingway, Scliar, como leitor,
aprecia a capacidade de síntese narrativa do escritor norte-americano:
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Nesse sentido, cabe registrar o que diz Scliar em sua autobiografia, intitulada O texto, ou: a vida:
uma trajetória literária: “A relação entre pais e filhos foi uma tema ao qual voltei, constantemente,
em contos, crônicas, histórias para público jovem. É algo que nos marca profundamente e que está
sempre presente em nossas vidas, mesmo durante a nossa maturidade, a nossa velhice (e às
vezes, principalmente, em nossa maturidade, em nossa velhice). Mesmo quando o pai está
ausente (e às vezes, principalmente, quando o pai está ausente). (SCLIAR, 2007a, p. 188). Outro
texto que aborda a dificuldade dos relacionamentos entre pais e filhos é a crônica “Controle
remoto”, publicado no livro Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar (SCLIAR, 1996, p. 74-
75). Por vezes, a inserção da temática dos conflitos entre pai e filho de dá por meio de metáforas,
conforme se depreende da leitura da entrevista cedida por Scliar a Ademir Pascale. Este pergunta
a Scliar: “Como foi o processo e o porquê da criação da obra ‘A Orelha de Van Gogh’?”. O escritor
porto-alegrense diz: “O conto que dá título à obra baseia-se no conhecido incidente da vida do
pintor em que ele, num acesso de loucura, cortou a própria orelha. Mas eu uso essa orelha como
elemento de uma história que fala da relação complicada entre um filho e um pai.” Em A mulher
que escreveu a Bíblia a conflituosa relação entre pais e filhos também se faz presente, conforme
enfatiza a narradora (a feia) referindo-se ao seu pai: “era um mulherengo conhecido, desses que
não respeitam nem a mulher do próximo. Além disso, andara metido em negócios escusos – parte
de seu rebanho era, para usar um eufemismo, de procedência duvidosa. Nada disso o impedia de
posar como um guardião da moralidade. Exigia da tribo, e da família em particular, um
comportamento irrepreensível. Não tolerava a menor manifestação de vaidade das filhas. [...]
[Como pai] nunca se aproximara muito de mim.” (SCLIAR, 2007, p. 16, 20, grifo nosso). Em Os
vendilhões do Templo e Manual da paixão solitária o relacionamento também não era bom,
conforme será demonstrado no decorrer da pesquisa.
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Apesar de se pretender demonstrar em minúcias o sofrimento imputado às mulheres no último
capítulo dessa pesquisa, seguem alguns exemplos aqui. Em Os vendilhões do Templo o vendilhão
grita com sua esposa: “Cala a boca, mulher” (SCLIAR, 2006, p. 63). Em Manual da paixão solitária
quando Tamar ficou sabendo que deveria se casar com Er, mesmo sem querer e ter sua vontade
consultada, ela não teve alternativa a não ser se conter: “Contive-me, fiz o que minha mãe, e a
mãe dela, e a mãe da mãe dela haviam feito toda a vida, contive-me. Contenção era a palavra de
ordem para as mulheres.” (SCLIAR, 2008, p. 148 ). No romance A mulher que escreveu a Bíblia a
narradora afirma que seu pai “Não tolerava a menor manifestação de vaidade das filhas. [...] [Como
pai] nunca se aproximara muito de mim. (SCLIAR, 2007, p. 16, 20, grifo nosso).
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Scliar diz que em sua condição de imigrante sofreu muito preconceito. Tal qual ele
almeja ganhar dinheiro abrindo o que seria um “cinema dos tempos do Antigo
Testamento”:
Ah, a caverna e as suas sombras fantásticas. Filho de Judá, uma vez [eu,
Shelá] pensei em transformar aquilo num empreendimento. Colocaria,
naquele recinto, assentos, cobraria entrada de espectadores.
Acenderia a lamparina, e quando as sombras começassem a se mover,
narraria, com voz grave: “Eis a caravana dos camelos mágicos. Neste
momento eles se dirigem para a costa, para o mar...”. E a partir daí
narraria histórias. Poderia ganhar um dinheirão com isso. Mas franquear
a caverna a estranhos, mesmo mediante boas somas, significaria abrir
mão da minha privacidade, do meu segredo, da magia que ali reinava. E
isso eu não faria. Nem mesmo a meus irmãos falava daquele reduto de
fantasias. (SCLIAR, 2008, p. 36, grifo nosso)
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Nós quatro. Era nisso que ele [Matias] pensava: nós quatro. Nós quatro
no palco, nós quatro na rua, nós quatro num bordel, nós quatro numa
grande empresa como executivos. Ele queria fazer parte dos quatro; que
fosse o quarto, e muito distante dos outros três, não lhe importava, o que
importava era o número, mágico. Quatro eram, por exemplo, que,
naquele filme, OK Corral, enfrentam os bandidos no duelo final. (SCLIAR,
2006, p. 258)
atriz é citada por sua influência: “Quando Ingrid Bergman apareceu num filme
elogiando homens que apreciam charutos, ficou claro que daí em diante a
sociedade teria de aceitar esse hábito. Que nem mesmo Fidel Castro rejeitou.”
(SCLIAR, 2001, p. 102). É necessário observar ainda o quanto Scliar se aproveita
de detalhes dos filmes para compor efeitos desejados: o narrador de Pega pra
Kaputt! se refere à longa capa usada por Humphrey Bogart na produção
Casablanca; o narrador da terceira parte de Os vendilhões do Templo associa a
intensidade de Matias fazer parte do grupo escolar à necessidade urgente do
xerife de OK Corral poder contar com seu amigo pistoleiro Doc Holliday no
confronto decisivo com os bandidos. Em suas crônicas, como “Os segredos do
spa” – compilada na obra A face oculta – o escritor gaúcho demonstra o quanto
cada detalhe fílmico, até mesmo o ambiente das cenas, pode ser aproveitado para
produzir determinados efeitos em seu texto, o que pode implicar efeitos de ilustrar
suas afirmações na referida crônica, por exemplo:
Alguns desses hotéis ficaram famosos pelo luxo barroco; num desses,
Alain Resnais filmou o famoso O ano passado em Marienbad, um filme
cult dos anos 60, no qual os famosos corredores serviam de metáfora
para os labirintos da paixão. Iraí, no Rio Grande do Sul, sempre foi um
equivalente modesto, mas digno. (SCLIAR, 2001, p. 14, grifo nosso)
Don’t want a short dick man, não quero um homem de pênis pequeno, diz
uma canção não muito refinada, mas, numa época, muito famosa. Para
um homem com pretensões a machão, não pode haver maior ofensa. O
que foi cruamente retratado na cena inicial de um violento western, Os
Imperdoáveis (The Unforgiven): num bordel, homem tem ataque de fúria
e retalha à faca o rosto de prostituta, porque ela riu de seu pênis,
achando-o minúsculo. (SCLIAR, 2001, p. 42, grifo nosso)
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Embora o que Ana Mello afirma se refira aos contos, os romances, principalmente
os da “trilogia”, estão na mesma condição de análise da estudiosa.
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Sobre a presença do erótico na obra do autor gaúcho, salienta Dirce Cortes Riedel na orelha do
livro Os melhores contos de Moacyr Scliar. 6. ed. São Paulo: Global, 2003, organizado por Regina
Zilberman: “Esta fusão do erótico, do mágico e do sagrado, no buscar e no penetrar do amor, é
uma tônica no texto de Scliar... Esse é o desafio: levantar interrogações, com respostas a meio do
caminho.”
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O mito da vagina dentada parece manter um viés contemporâneo. Em 01 de julho de 2014 uma
das notícias mais veiculadas no Facebook era esta: “O estupro tornou-se um problema endêmico
na África do Sul, então uma técnica da área médica, chamada Sonette Ehlers desenvolveu um
produto que imediatamente chamou a atenção nacional. Ehlers nunca se esqueceu de uma vítima
de estupro lhe dizendo, "Se ao menos eu tivesse dentes lá embaixo." Algum tempo depois, um
homem chegou ao hospital no qual Ehlers trabalha com uma dor terrível, por conta do zíper que
havia fechado sobre seu pênis. Ehlers misturou as duas imagens e desenvolveu um produto
chamado Rapex. O produto parece um tubo, com fisgas dentro. A mulher o coloca como um
absorvente interno, através de um aplicador, e qualquer homem que tentar estuprar a mulher irá se
rasgar com as fisgas e precisará ir a um hospital para remover o Rapex. Quando os críticos
reclamaram que se tratava de uma punição medieval, Ehlers respondeu, ‘Uma punição medieval
para uma atitude medieval.’” Nesse dia, essa notícia teve mais de 106 mil compartilhamentos e
mais de 187 mil pessoas haviam curtido essa reportagem, o que demonstra uma preocupação da
sociedade contemporânea para temática degradante por que passam muitas mulheres no mundo.
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sentimental, não conceitual, não cognitiva” (SCLIAR, 2008, p. 16). Se nesse trecho
está diluído o livro A educação pela pedra (1966), de João Cabral de Melo Neto
(1920-1999), em outro trecho de Manual da paixão solitária parece estar dissolvido
o título de uma obra de Guerra Junqueiro (1850-1923), A velhice do pai eterno
(1885) (SCLIAR, 2008, p. 139). A diluição dos títulos dessas obras no corpo do
romance de Scliar não é gratuita, pois se o trecho que pode ser associado ao livro
de João Cabral de Melo Neto está num contexto que dialoga com a obra do poeta
nordestino, o mesmo ocorre quando a narradora (Tamar) da segunda parte de
Manual da paixão solitária menciona, diluído em seu discurso, o título do livro do
poeta português realista Guerra Junqueiro, uma vez que o referido livro foi
elaborado num contexto de denúncia da hipocrisia da crença religiosa e o
romance de Scliar também segue nessa “linha”. Segundo explica Massaud Moisés
em A literatura portuguesa através dos textos, o livro de Guerra Junqueiro
“primitivamente se intitulava A Morte de Jeová” e “consta de uma série de quadros
líricos em tôrno (sic) de alguns dos principais aspectos da história do Catolicismo”.
Moisés ainda expõe que a obra A velhice do pai eterno (1885) corresponde “à
segunda parte de uma trilogia poética iniciada pelA morte de D. João (1874), e
que teria seqüência (sic) com o Prometeu Libertado, que ficou incompleto”. No
terceiro livro, Junqueiro “cantaria a liberdade de Prometeu, pois ela ‘significa o
desaparecimento de tôdas (sic) as tiranias, e a ressurreição de Jesus, a morte de
todos os dogmas’” (MOISÉS, 1979, p. 319). 20
20
Em seu projeto ficcional, Scliar também dilui versos conhecidos de Fernando Pessoa e Camões,
conforme se nota nestes excertos de Manual da paixão solitária: “Não posso ir embora, não posso
(ainda que navegar seja preciso) partir em busca de terras desconhecidas.”; “Mata-me, pois; pelo
menos assim a minha vida terá sentido, serei daqui por diante a rainha-mártir, aquela que depois
de morta continuou rainha” (SCLIAR, 2008, p. 128, 129, grifo nosso). A predileção por Camões
também pode ser sentida nas epígrafes do romance Os voluntários, editado originalmente em
1979. Nesse livro, todos os muitos capítulos são antecedidos de epígrafes de versos de Camões.
Nesse mesmo romance, o narrador menciona ter assistido ao filme Gilda (1946) três vezes e cita
atrizes famosíssimas do passado, conforme demonstra o seguinte trecho: “Sim, Lana Turner era
mais provocante, e Claudette Colbert mais meiga, e Bette Davis tinha aquele olhar de desafio, e de
Rita Hayworth então nem se fala, era minha loucura, minha perdição, vi Gilda três vezes. Mas as
estrelas estavam longe, Elvira [prostituta] estava ali.” (SCLIAR, 2011, p. 38).
28
21
GOMES, Álvaro Cardoso. O Simbolismo. São Paulo: Ed. Ática, 1994, p. 62.
29
Dois contos meus viraram curtas, alguns outros foram feitos na TV.
Agora, por coincidência, esteve aqui [na casa dele, de Scliar, onde foi
feita a entrevista] o cineasta André Sturm, que quer fazer um longa do
“Sonhos tropicais”, o que me pareceu uma ideia muito boa. Hoje eu
assinei a opção para ele fazer o filme. (SCHWARTZ, 1996, p. 5).
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Isso fica explícito na entrevista que Scliar cedeu a Danielle Sommer e Victor Brami. Diante da
primeira pergunta, “Como você começou a escrever?”, o ficcionista gaúcho apresenta sua trajetória
de iniciação e a conclui dizendo: “ Muitos livros foram traduzidos, vários foram premiados e
adaptados. A mais recente adaptação para o cinema foi “Sonhos Tropicais”. BRAMI, Victor;
SOMMER, Danielle. Entrevista: Moacyr Scliar. Disponível em: <
http://www.kehila.com.br/ShavuaTov/junho_02/17_23/moacyr.htm>. Acesso em: 07 ago. 2014.
30
23
A empolgação de Scliar para com a transposição de seu livro para filme pode ser sentida no
depoimento dele a Erika Sallum. Diante da indagação “O senhor chegou a ler o roteiro do filme
‘Sonhos tropicais’?”, a resposta do escritor foi: “Não tinha entendido porque, até agora, não haviam
feito um filme sobre Oswaldo Cruz. Eu revisei o roteiro, achei-o muito bom. O [Fernando] Bonassi é
um belo roteirista e creio que dá para fazer um grande filme.” In: SALLUM, Erika. Livro de Moacyr
Scliar é biografia romanceada. São Paulo: Folha de São Paulo, 12 abril 1997, p. 10. (Caderno
“Folha Ilustrada”). Demonstrando muito orgulho, na entrevista intitulada “Tânia Carvalho entrevista
Moacyr Scliar”, o escritor gaúcho menciona que, além de ter sido transposto para o cinema pelas
mãos do diretor André Sturm, o romance Sonhos tropicais serviria de base para o documentário
produzido por Sílvio Tenda a respeito da trajetória do médico Oswaldo Cruz. Afirma Scliar: “e agora
estão fazendo dois filmes de um mesmo livro meu, que isso é um negócio estranhíssimo. [...] De
uma maneira os dois vão se completar.” Nessa mesma entrevista, Scliar acrescenta que sua obra
infanto-juvenil Um sonho no caroço do abacate resultou no filme O caminho dos sonhos.
Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=I3fXFgFkdxw>. Acesso em: 07 out. 2014.
24
Informações retiradas de: SALLUM, Erika. Revolta da Vacina vira ‘Sonhos Tropicais’. São Paulo:
Folha de São Paulo, 12 abril 1997, p. 10. (Caderno “Folha Ilustrada”). O filme Sonhos tropicais, de
120 minutos de duração, teve como roteiristas André Sturm, Fernando Bonassi e Victor Navas.
Sturm (1966) é o atual diretor do Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS-SP) e o filme
baseado na obra de Scliar foi seu primeiro longa-metragem. Sturm também dirigiu outros filmes,
como Bodas de papel (2008), drama romântico bem recebido pelo público. Quanto a Fernando
Bonassi (1962), este é um escritor, roteirista, dramaturgo e cineasta brasileiro. Em cinema,
também merecem destaques suas co-autorias dos roteiros das obras fílmicas Cazuza - O Tempo
Não Pára e Carandiru. A sinopse do filme Sonhos tropicais é a seguinte: no mesmo navio estão o
sanitarista Oswaldo Cruz, que retorna ao país após anos de estudo na Europa, e Esther, judia que
veio ao Brasil na promessa de se casar. Cruz logo consegue emprego como médico, enquanto
Esther não tem a mesma sorte, logo descobrindo que a proposta de casamento era apenas uma
farsa. Cruz começa sua ascensão na medicina local, assumindo o comando do Instituto
Soropédico de Manguinhos, onde pesquisa a cura de doenças como a peste e a febre amarela. As
medidas de Cruz se mostram eficazes. Até que, na tentativa de extinguir a varíola, propõe que
maiores de 6 meses sejam obrigados a se vacinarem e desencadeia a Revolta da Vacina.
31
Cinema não é livro. Eu acho que está para nascer o escritor que fique
plenamente satisfeito com a adaptação de um livro seu para a tela. Eu
não sei fazer roteiro de cinema, então, quando eu cedo os meus livros
para adaptação, eu dou liberdade para fazerem o que quiserem. Tem
personagens que o diretor quer dar mais importância do que foi dada no
livro. É o que aconteceu com Sonhos Tropicais, a prostituta judia foi mais
enfatizada do que no livro. Eu simplesmente entrego o livro e depois vou
lá ver o filme. Às vezes eles me consultam no meio do filme, mas a regra
é o escritor não tem muita voz no processo de adaptação, com exceções.
(BRAMI; SOMMER)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Na literatura infanto-juvenil a referência ao cinema se enuncia já no título da obra Câmera na
mão, O Guarani no coração. Neste livro, Um grupo de adolescentes participa de um concurso de
vídeo filmando O guarani, de José de Alencar. Para isso estudam a obra e a comparam com nossa
atualidade. Mas não apenas isso: os garotos vivem também a emoção de fazer cinema pela
primeira vez, filmando as cenas mais marcantes do livro de Alencar. No livro O mistério da casa
verde, num dos diálogos entre André e Arturzinho, este encoraja o colega lembrando-o dos filmes
de ação que ele assiste: “- Ora – disse Arturzinho. – Na pior das hipóteses, vamos ter de correr de
novo. Mas no mínimo é uma aventura. Você não gosta de aventuras? Você que só vê filmes de
ação? Faça de conta que está num filme: O mistério da Casa Verde.” (SCLIAR, 2008, p. 23).
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É interessante que nesse livro está compilada a crônica “História de mãe”, datada de 08 de maio
de 1988, na qual Scliar menciona a novela Mandala e ao final homenageia sua mãe, Sara Scliar
(SCLIAR, 2012, p. 211-212). Em outro de seus livros, Meu filho, o Doutor: medicina e judaísmo na
História, na Literatura – e no Humor, Scliar dedica a obra a seus pais: “À memória de meus pais,
José e Sara Scliar” (SCLIAR, 2001, p. 5). Nessa dedicatória, ele se vale do itálico, opção presente
nos prefácios de seus romances A mulher que escreveu a Bíblia e Manual da paixão solitária.
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REFERÊNCIAS
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