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A RECORRÊNCIA DO CINEMA NAS CRÔNICAS MÉDICAS DE


MOACYR SCLIAR

Lemuel de Faria Diniz 1


Márcia Gomes Marques 2

No conjunto da produção literária do escritor Moacyr Scliar (1937-2011)


figuram mais de setenta livros de gêneros diferenciados, tais como romances,
ensaios, crônicas, ficções infanto-juvenis e contos. O escritor gaúcho teve suas
obras publicadas em mais de vinte nações e foi reconhecido quatro vezes com o
“Prêmio Jabuti” (em 1988, 1993, 2000 e 2009), respectivamente, pelas obras O
olho enigmático (categoria Contos), Sonhos tropicais (categoria Romance), A
mulher que escreveu a Bíblia (categoria Romance) e Manual da paixão solitária
(categoria Romance, também escolhida obra de Ficção do Ano). Além de
colaborador em vários órgãos da imprensa no país, como a Folha de São Paulo e
o Jornal Zero Hora (RS), Scliar foi membro da Academia Brasileira de Letras a
partir do ano 2003. Diversos livros do escritor foram traduzidos para o exterior. Na
França, pelo menos oito livros foram publicados, incluindo A mulher que escreveu
a Bíblia e Manual da paixão solitária.
Segundo Regina Zilberman, a obra de Scliar é perpassada por duas
influências: “uma é sua condição de filho de emigrantes; a outra é a sua formação
como médico de saúde pública, porta de entrada para a realidade social brasileira”
(ZILBERMAN, 2009). Em outra análise sobre a obra de Scliar, Zilberman destaca
que o escritor porto-alegrense é autor da tese de doutorado Da Bíblia à
psicanálise: saúde, doença e medicina na cultura judaica (1999) (ZILBERMAN,
2013, p. 10).3 Disso resulta que, por vezes, Scliar valeu-se de seus conhecimentos
1
Professor do Curso de Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Câmpus de
Coxim. Doutor em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail:
prlemuel@hotmail.com. Aluno do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens – Pós-
Doutorado – Área de concentração: Literatura, Estudos Comparados, Interartes (UFMS).
Orientadora: Profa. Márcia Gomes Marques.
2
Professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens – Pós-Doutorado – Área
de concentração: Literatura, Estudos Comparados, Interartes (UFMS).
3
Em sua condição de Doutor em ciências, Scliar foi “professor de medicina preventiva na
Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre”, conforme lê-se em A linguagem médica,
escrito pelo escritor para a Coleção Folha Explica (SCLIAR, 2002, p. 81).
2

médicos como materiais para as suas criações literárias, o que se verifica, por
exemplo, no fato de o escritor gaúcho ser autor de vinte e uma obras com temática
médica. 4
De acordo com Manuel da Costa Pinto em artigo para a Folha de São
Paulo de 28 de fevereiro de 2011, a tradição judaica aparece desde A guerra no
Bom Fim, o primeiro romance de Scliar, editado pela primeira vez em 1972. Para
Pinto, a história é outra constante na ficção de Scliar, inscrito numa linhagem de
médicos-escritores, como Pedro Nava (1903-1984) e Guimarães Rosa (1908-
1967).

A crônica e o cronista Moacyr Scliar

Prefaciando o livro que contém as Melhores Crônicas de Scliar (Editora


Global), o professor Luís Augusto Fischer explica que a palavra crônica é derivada
do latim chronica: relativo a tempo, traduz o relato ou narrativa de fatos dispostos
em ordem cronológica, histórias escritas conforme a ordem do tempo. Essa foi a
primeira definição, já que o termo “crônica” migrou desde o domínio do relato
histórico até o domínio do literário, logo depois passou a ser utilizado com sentido
generalizado na literatura em um gênero específico ligado ao jornalismo.
Mencionando outros estudiosos, Fischer comenta que, para alguns, essa
mudança é posterior a 1985, já para Afrânio Coutinho a alteração ocorreu no
século XIX, não havendo certeza se em Portugal ou no Brasil. Para Afrânio
Coutinho, a crônica brasileira começou com Francisco Otaviano de Almeida Rosa
em um folhetim do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, depois dele vieram
grandes cronistas da história brasileira, entre eles estão José de Alencar,
Machado de Assis, Olavo Bilac, etc. (FISCHER, 2004, p. 7-10).
4
As obras com temática médica são as seguintes, divididas por gêneros. Contos: Histórias de um
médico em formação; romances: Doutor Miragem, Sonhos tropicais, A majestade do Xingu;
literatura infanto-juvenil: O livro da medicina, Aprendendo a amar e a curar, Respirando liberdade;
crônicas: O olhar médico: crônicas de medicina e saúde, e Território da emoção: crônicas de
medicina e saúde, este organizado por Regina Zilberman; ensaios: Um olhar sobre a saúde
pública, Do mágico ao social: a trajetória da saúde pública, Cenas médicas, Oswaldo Cruz: cadeira
5, ocupante 2, A paixão transformada: história da medicina na literatura, A face oculta: inusitadas e
reveladoras histórias da medicina, Meu filho, o doutor: medicina e judaísmo na história, na literatura
e no humor, A linguagem médica, Oswaldo Cruz & Carlos Chagas: o nascimento da ciência no
Brasil, Saturno nos trópicos: a melancolia européia chega ao Brasil, Saúde pública: histórias,
políticas e revolta, Rubem Alves & Moacyr Scliar conversam sobre o corpo e a alma.
3

Fischer pondera que a crônica, no entanto, não se encaixava em


nenhum gênero definido por Aristóteles (o épico, o lírico e o dramático). O que
ocorria é que ela era praticada em diários, literalmente e impressas em jornais
onde eram lidas e abandonadas em seguida. Com o decorrer dos tempos,
escritores como Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Nélson Rodrigues, entres
outros, impuseram uma alteração de como a crônica era tratada. Então surgiram
dois movimentos que redefinem o quadro da crônica na cultura brasileira, um
deles tem a ver com a frequência em que grandes nomes da literatura a utilizavam
e outro porque a crônica sendo diária teria um papel enorme no amaciamento da
língua preparando-a, assim, para maiores capacidades da cultura. Considerado
um filósofo da crônica, Nélson Rodrigues assegurou a importância desta por
ressaltar que esse gênero está relacionado com a domesticação da língua o
adestramento do português – é por tudo isso que a cultura brasileira incorporou a
crônica fazendo com que não ficasse somente nos jornais diários e também fosse
parar em livros, chamando-a, assim, de crônica moderna (FISCHER, 2004, p. 9-
11).
Após a inserção da crônica na cultura brasileira poderia ela ser
considerada um quarto gênero literário, irmão do épico, do lírico e do dramático,
incorporando assim uma grande quantidade de textos já escritos aparentados da
crônica, textos estes utilizados escritos para relatar e comentar a vida real.
(FISCHER, 2004, p. 7-11).
Dentre os escritores das crônicas modernas está Moacyr Scliar,
praticante do gênero por mais de três décadas. Considerado um dos maiores
cronistas brasileiros, escrevia regularmente em jornal, primeiramente escrevia em
jornais importantes de Porto Alegre, cidade de seu nascimento, até chegar aos
jornais da grande metrópole São Paulo. Segundo Fischer, com o passar dos anos
Scliar “aprimorou a mão”, o poder de síntese e o seu olhar crítico, mas a alma do
cronista permaneceu a mesma do começo ao fim de sua carreira. O escritor
também era um grande defensor da crônica na literatura brasileira. Para Scliar, a
crônica era sim um gênero literário importante; seu uso, contudo, era mais ou
4

menos imediato, diferente da ficção (romance), gênero no qual uma boa ideia
pode ficar amadurecendo por anos (FISCHER, 2004, p. 7-17).
Os cronistas eram considerados poetas do que acontecia no dia-a-dia,
inspirados pelos eventos do cotidiano, dando-lhes um toque próprio, incluindo
elementos de ficção, fantasia e criticismo. Moacyr Scliar vai mais longe: convida o
leitor a refletir e buscar respostas. O escritor também põe em evidência a literatura
e as artes como meio de suas críticas, escrever para Scliar era indagar uma busca
por respostas muitas vezes não existentes, escrever para que seus leitores
fossem cúmplices de suas interrogações. De acordo com Nubia J. Hanciau, “a
partida de Scliar abriu uma lacuna difícil de ser preenchida por outros cronistas”
restando aos leitores “o consolo da (re) leitura da variada abordagem e
multiplicidade de assuntos que [Scliar] tratava, publicados em livros” (HANCIAU,
2012, p. 116-117).
Muitas das crônicas escritas por Moacyr Scliar foram inspiradas nas
notícias dos jornais Folha de São Paulo e Zero Hora. O processo de criação de
Scliar precisa de um elemento desencadeante e, nesse processo, a notícia
publicada no jornal é importante, conforme ele mesmo admite numa entrevista
concedida à professora Regina Zilberman:

No meu caso o processo criativo começa com algum “fator


desencadeante”, que pode ser um episódio histórico, uma pessoa que
conheci, uma história que me contaram, uma notícia de jornal... Daí em
diante é uma incógnita. Sou muito rápido escrevendo para jornal, mas
quando se trata de uma ficção mais longa é diferente; aí períodos de
rapidez se alternam com outros de muita lentidão, resultante de dúvidas
que vão desde a questão do foco narrativo até a incerteza quanto à
validade do projeto (não foram poucos os que abandonei). No caso de
Vendilhões, foram dezesseis anos desde a ideia inicial até a conclusão;
reescrevi muitas vezes. Mas isto é normal numa tarefa que, afinal, implica
uma aventura no desconhecido de nossas mentes... (ZILBERMAN, 2009,
p. 118, grifo nosso)

O fragmento supracitado é referente a uma entrevista concedida pelo


escritor gaúcho em 2009, quando para ele já era comum elaborar textos a partir de
notícias de jornais. Ocorre, porém, que há muito tempo Scliar escrevia para
jornais. Em sua autobiografia, intitulada O texto, ou: a vida: uma trajetória literária,
Scliar afirma:
5

Em 1974 comecei a escrever para o jornal Zero Hora de Porto Alegre. É


uma experiência no mínimo curiosa passar da página do livro para a
página do jornal. Sim, em ambos os casos trata-se de texto impresso,
destinado a um público, mas as diferenças são grandes, e históricas.
Para começar, o livro, tal como o conhecemos, surgiu antes do jornal; é
do século quinze, enquanto o jornal só aparece no começo do século
dezessete. [...] Os escritores escreviam para a eternidade; os jornalistas
estavam presos aos assuntos do momento, nem sempre agradáveis.
Escritores falavam mal do jornal [...] Os escritores podiam fazer
pesquisas formais, mesmo que estas resultassem em textos obscuros; os
jornalistas tinham, e têm, a obrigação da clareza. (SCLIAR, 2007a, p.
237-238)

Esse fragmento é parte do sexto capítulo da autobiografia scliariana. Na


sequência da explanação acerca do embate entre o livro e o jornal, Scliar pondera
que em nosso país “surgiu um gênero que se tornou o elo de ligação entre
literatura e o espaço jornalístico: a crônica”. No jornal, a crônica é “um
respiradouro, uma brecha na massa não raro sufocante de notícias” (SCLIAR,
2007a, p. 239). Nesse contexto, reafirma-se que Scliar tinha como hábito compor
suas obras a partir de outros textos já existentes: além de utilizar os textos
publicados em jornal o autor também utilizava textos de passagens bíblicas.

Moacyr Scliar e o cinema

Das entrevistas concedidas por Scliar em poucas se indagou a ele


sobre seu interesse sobre cinema, mas, quando isso aconteceu, sempre o escritor
gaúcho respondeu com muito entusiasmo, como neste depoimento concedido à
Folha de São Paulo:

Folha - Qual sua relação com o cinema? Que diretores aprecia?


Scliar – Sou vidrado em cinema. Trata-se da grande arte narrativa do
nosso tempo. O que um livro precisa de 400, 500 páginas para contar, o
cinema conta em duas horas –- isso é uma coisa que eu invejo
profundamente. Eu gosto muito do Woody Allen judaico, não quando ele
se mete a [Ingmar] Bergman. Gosto também do Stanley Kubrick, do
Ettore Scola. (SCLIAR, 1996, p. 5, grifo nosso)
O excerto supracitado faz parte da entrevista que o escritor gaúcho
concedeu a Adriano Schwartz na Folha de São Paulo em 04 de fevereiro de 1996,
6

por ocasião do lançamento de seu livro Contos reunidos. Nesta, Scliar demonstra
predileção pelo trabalho de quatro cineastas, dentre os quais, Stanley Kubrick
(1928-1999), diretor do filme O jardineiro fiel, há pouco citado. Nota-se um
ecletismo de Scliar pois ele demonstra ter conhecimento de dois cineastas norte-
americanos (Kubrick e Woody Allen [1935]), um sueco (Ingmar Bergman – 1918-
2007) e um italiano (Ettore Scola – 1931). 5 Os filmes e séries que Scliar menciona
em seus textos, inclusive em seus romances, são quase sempre premiados: O
jardineiro fiel (2006), por exemplo, ganhou o Oscar, o Globo de Ouro, o BAFTA e o
Screen Actor Guild Awards pela melhor atriz coadjuvante, além de receber o
Grande Prêmio Brasileiro de Cinema como melhor filme estrangeiro.
Na entrevista intitulada “Falar com Deus? Só se for com ligação a
cobrar”, publicada na Revista Press & Advertising (online), Scliar é indagado sobre
seu interesse pelo cinema e responde: “Sou fã, não tem semana que eu não vá”
(grifo nosso). Diante da pergunta: “O grande filme”, o escritor rio-grandense-do-sul
replica: “Espero que alguém se lembre, é um filme muito bom chamado Milagre
em Milão”. A afirmação de Scliar de que não fica uma semana sem frequentar o
cinema parece ter sido a matéria utilizada por ele na composição da crônica “E de
Esperteza”, presente no livro Dicionário do viajante insólito:

[Viajando por cidades da Europa] Chegávamos aos hotéis (aqueles hotéis


baratos, mas, como dizia o Frommer, decentes e limpos) exaustos. Uma
noite, em Londres, tive a ideia – boa ou má, ainda não sei – de dar uma
olhada no jornal antes de deitar. E ali vi anunciado um imperdível
programa de cinema: Morrer em Madri e Um Cão Andaluz. O primeiro
estava proibido no Brasil – era a época da censura; quanto ao segundo,
bem, trata-se do clássico de Buñuel.O problema era a hora da sessão
especial: duas da manhã, num cinema de arte que não ficava tão perto.
Minha mulher, Judith, não tinha condições, mas eu decidi enfrentar. Para
chegar ao lugar poderia contar com o metrô: para voltar, só a pé. Mas eu
voltaria a pé. O pequeno cinema estava quase vazio, mostrando que os
londrinos não tinham tanta dedicação pela causa cinematográfica quanto
5
Na crônica “Batalha final”, publicada originalmente em 19 de fevereiro de 2000 e compilada por
Regina Zilberman no livro Território da emoção (2013), o escritor porto-alegrense alude a um filme
do diretor Martin Scorsese (1942), ampliando assim o leque de diretores que aprecia. Novamente o
escritor gaúcho inicia seu texto falando de um filme para a partir disso discorrer sobre uma questão
médica: “O último filme de Martin Scorsese, Vivendo no limite (Bringing Out the Dead), gira em
torno de um paramédico (Nicolas Cage) atormentado pela visão de uma aeromoça que ele não
conseguiu salvar. Perder pacientes é o tormento dos paramédicos [...]” (SCLIAR, 2013, p. 58). As
películas mais conhecidas de Scorsese são: Taxi Driver, Raging Bull, Goodfellas, Casino, Gangs of
New York, The Aviator, The Departed, Hugo e The Wolf of Wall Street.
7

o jovem viajante brasileiro. O que em absoluto me importava: eu estava


ansioso para ver os filmes. Morrer em Madrid (sic) correspondeu por
inteiro à minha expectativa, mas com a enigmática película de Buñuel
começaram os problemas. Eu simplesmente não conseguia manter os
olhos abertos. Várias vezes devo ter adormecido; e adormecido, eu
sonhava; e, no meu sonho, estava vendo um filme de Buñuel chamado O
Cão Andaluz (sic). E aí acordava sobressaltado: o que estava eu vendo,
afinal – as imagens de Buñuel ou as do meu sonho? Não sei. Até hoje
não sei. Para mim existem dois filmes chamados O Cão Andaluz (sic),
aquele que eu vi e aquele com que eu sonhei. Um dilema digno de
Borges – e muito característico do viajante apressado (SCLIAR, 2011, p.
29, 30, grifo nosso).

Embora pareça já estar comprovado o interesse de Scliar pelo cinema,


é preciso avaliar com cuidado as peripécias do eu que narra a crônica exposta
acima. Isso porque ao considerá-la é preciso se levar em conta que a viagem à
Londres e a ida ao cinema possam ter ocorrido, mas também pode-se cogitar que
não. De qualquer forma, se pode sublinhar, ao menos, que Scliar sabia que Um
cão andaluz (1929) é um clássico de Luis Buñuel (1900-1983). De qualquer forma
o que se pode dizer é que, como a película é constituída o tempo todo de uma
atmosfera onírica, na parte final da crônica se amplia essa atmosfera, pois, ora
adormecido ora acordado, o narrador contempla ora as imagens de seus próprios
sonhos ora as imagens oníricas do filme. Ou seja: já conhecendo que Um cão
andaluz é uma película que trata de sonhos, Scliar articula isso com os sonhos do
narrador ampliando/delineando a dimensão onírica do referido filme na elaboração
de sua crônica. O conteúdo do referido filme encontra consonância com temas do
projeto ficcional do escritor porto-alegrense, por dois motivos: pela dimensão
onírica 6 e pela importância dada ao olho. 7
Desse modo, se no filme a cena mais
marcante é a do olho sendo cortado a navalha, na obra de Scliar a atenção ao
globo ocular é esmiuçada na crônica “Esta porta do mundo, o olho”, datada de
6
Em Os vendilhões do Templo a presença do sonho se verifica nos sonhos de alguns
personagens (SCLIAR, 2006, p. 39, 63, 151, 153). Na obra Manual da paixão solitária Judá tenta
imaginar o que está sonhando seu pai, Jacó, conforme se explicará adiante (SCLIAR, 2008, p. 48).
7
Nesse contexto, cabe salientar que, segundo Jonas Lopes e Tony Monti Um cão andaluz foi
escrito por Luis Buñuel e pelo artista plástico Salvador Dalí, inspirado em sonhos de ambos. Não
existe uma “trama definida conduzindo o filme, apenas mergulhos no inconsciente, uma
compilação não linear de imagens aparentemente desconexas [...], oníricas, fragmentárias.” O
filme é considerado por vários críticos o mais elevante curta-metragem da história e está situado na
terceira fase de Buñuel, surrealista e que consiste de “impiedosas sátiras sobre a burguesia”.
Alfred Hitchcock o considerava muito, por seu humor provocador e pela ironia destilada contra a
hipocrisia da Igreja Católica. (LOPES; MONTI, 2009, p. 102).
8

1998 e compilada no livro Território da emoção (SCLIAR, 2013, p. 117-119) e é


explorado também no conto “O olho enigmático”, texto que nomeia a coletânea
homônima publicada em 1986 e que tem o olho estampado na capa do livro. Em
Dicionário do viajante insólito, a crônica “V de Ver” também enfoca questões
relacionadas ao órgão da visão (SCLIAR, 2011, p. 115-117). Na “trilogia” de Scliar
a presença do olho é recorrente no olhar acusatório do pombo, conforme se
demonstrará adiante. 8
O apreço de Scliar pelo cinema é tão significativo que ele conhece até
mesmo particularidades de certos cineastas e diretores, conforme se depreende
na crônica “O TOC e suas incógnitas”, na qual se lê que o cineasta Woody Allen e
o diretor de cinema Howard Hughes tiveram TOC – transtorno obsessivo-
compulsivo – “um dos problemas psicológicos mais comuns em nossa época” [a
crônica é de 16 de maio de 2009]. Em seu interesse por biografias, Scliar
descobriu que Hughes “só comia ervilhas de um determinado tamanho (e usava
um garfo especial para selecioná-las”, dentre outros detalhes (SCLIAR, 2013, p.
207-208). 9
A explicação para o intesse cinéfilo de Scliar talvez esteja no livro Porto
de histórias: mistérios e crepúsculo de Porto Alegre (2000). Na orelha desse livro,

8
Outra parte do corpo humano muito presente no conjunto da obra do escritor gaúcho são os pés,
conforme se nota nas crônicas “O sofrimento dos pés” (In: O olhar médico) (SCLIAR, 2005, p. 150-
152). No livro Território da emoção encontra-se compilada a crônica “Lembrem-se dos pés”,
publicada originalmente em 07 de fevereiro de 2009 em jornal não especificado (SCLIAR, 2013, p.
150-152). Em Os vendilhões do Templo personagens realizam reflexões filosóficas sobre os pés
(SCLIAR, 2006, p. 130-131, 283-284). Em se tratando das mãos, na “trilogia” elas são comumente
usadas na prática da masturbação: em Os vendilhões do Templo isso ocorre pelo judeu errante
que conversa com o vendedor do Templo: “com as mãos eu fazia e consertava sandálias, com as
mãos eu preparava minha comida, com as mãos – é pecado, eu sei que é pecado isto que estou te
contando, mas agora tanto faz, agora posso te contar meus pecados, eles ficaram para trás –, com
as mãos eu me masturbava, quando o sexo me agoniava” (SCLIAR, 2006, p. 130-131); em Manual
da paixão solitária o uso das mãos na busca do prazer solitário está presente com o personagem
Shelá (SCLIAR, 2008, p. 90-91, 129-130) e em A mulher que escreveu a Bíblia a masturbação se
dá pela feia, valendo-se de uma pedra (SCLIAR, 2007, p. 25-26).
9
Nessa crônica, Scliar ainda observa que, antes de Hughes tornar-se obcecado por higiene, “uma
vez ficou quatro meses trancado num estúdio, vendo filmes (assistiu a um deles mais de 150
vezes), nu, comendo só chocolate e sem tomar banho ou higienizar-se. Depois [...] lavava
compulsivamente as mãos e só tocava objetos usando guardanapos. [...] [Howard Hughes], que
morreu em 1976, [foi] retratado em filme de Martin Scorsese com Leonardo di Caprio no papel
principal.” (SCLIAR, 2013, p. 208). Na crônica “O elogio dos canhotos”, Scliar também demonstra
“colecionar” informações detalhadas sobre a da vida de atores, e elenca alguns “canhotos ilustres”
do cinema: “Robert de Niro, Nicole Kidman, Angelina Jolie (e Brad Pitt, claro), Marilyn Monroe”
(SCLIAR, 2013, p. 148).
9

Luciana Villas-Boas diz que a Editora Record o convidou diversos intelectuais para
“escrever sobre suas cidades natais ou de adoção” e coube a Scliar redigir sobre a
capital gaúcha. No capítulo “Porto Alegre cultural”, Scliar menciona que nas
décadas de 50 e 60 o debate intelectual girava em torno dos livros e do cinema.

Porto Alegre era uma cidade de cinéfilos; as reuniões do Clube de


Cinema, que promovia pré-estréias, eram muito freqüentadas. Também
tinham bom público as sessões especiais de alguns pequenos cinemas.
Depois da exibição, os espectadores, todos conhecidos, ficavam reunidos
horas, debatendo os filmes. [Jean Luc] Godard provocava especial furor;
um dos filmes dele, já não lembro qual, gerou uma discussão que se
prolongou horas, simplesmente porque ninguém tinha entendido nada.
Isto é porque o sentido de tempo de Godard é diferente, explicavam os
defensores do cineasta francês. Depois descobriu-se que este original
“sentido do tempo” tinha outra explicação: o homem encarregado da
projeção trocara a ordem dos rolos do filme. Esta tradição cinéfila de
Porto Alegre também explica o grande número de jovens cineastas.
(SCLIAR, 2000, 111-112)

É interessante notar que dentre os cineastas, o mais citado na obra de


Scliar é Woody Allen. No livro Do Éden ao divã: humor judaico (1990), escrito por
Scliar, Patrícia Finzi e Eliahu Toker, o cineasta norte-americano é apresentado
como exemplificativo da presença do humor judaico nos Estados Unidos. Das seis
páginas dedicadas a ele, há uma minibiografia e uma miniantologia de frases a ele
atribuídas, além de um trecho do livro Sem plumas, do cineasta (SCLIAR; FINZI;
TOKER, 1990, p. 85-91). Nesse livro sobre o humor judaico, Scliar também aponta
uma extensa lista de atores cujo trabalho está associado ao humor judaico, o qual
“continua a ocupar uma relação uma posição especial na cultura popular
americana”. Dentre estes, ele aponta os nomes de Goldie Hawn, Bette Midler, Mel
Brooks, Billy Wilder, Gene Wilder, Groucho Marx e Jerry Lewis (SCLIAR; FINZI;
TOKER, 1990, p. 75).
A apreciação de Scliar pelos atores de cinema é tão latente que em seu
livro A língua de três pontas: crônicas e citações sobre a arte de falar mal (2001),
há citações10 de muitas frases ditas por atores, como Jack Lemmon (1925-2001),
10
É interessante a maneira como Scliar concebe a citação. Em seu livro Se eu fosse Rothschild:
citações que marcaram a trajetória do povo judeu (1993), o escritor gaúcho afirma que “a citação
não figura na lista dos gêneros literários”, mas isso “trata-se de uma injustiça”. Segundo o médico-
escritor, embora a citação seja com frequência “extraída de um texto maior”. “Talvez lhe falte [falte
à citação] a autonomia de outros gêneros”, mas “a citação não é apenas a síntese de um
10

Noel Coward (1899-1973), Groucho Marx (1890-1977), Beatrice Stella Campbell


(1865-1940), Paul Newman (1925-2008), Jack Nicholson (1937), Joan Collins
(1933), Mae West (1893-1980) e Simone Signoret (1921-1985) (SCLIAR, 2001, p.
52, 114, 141, 142, 145, 146). Nesse mesmo livro, Scliar cita frases dos produtores
cinematográficos Woody Allen e Alfred Hitchcock, além de Jacques Prévert (1900-
1977), poeta francês muito popular em seu país e roteirista conhecido por ironizar
os usos e costumes, o clero, a igreja. Prévert criou os roteiros e diálogos de
grandes filmes franceses pertencentes à escola do realismo poético (SCLIAR,
2001, p. 100, 101, 115, 146). É significativo pensar que, embora Scliar tenha
compilado frases ditas por atores e cineastas, ele não tenha empregado nenhuma
delas como epígrafe de suas obras.
Nesse contexto, há que se mencionar ainda que a presença do cinema
na obra de Scliar foi reconhecida também por editoras nos quais ele publicou.
Uma delas, a L&PM, publicou em 1998 o livro Histórias para (quase) todos os
gostos. O livro foi organizado a partir de contos escritos anteriormente por Scliar.
Esses contos foram reunidos em vinte e três seções, cada uma iniciada pelos
dizeres “Uma história para quem gosta de...”, já que a proposta do livro era a de
atrair o leitor, se não por todas as histórias, ao menos pelas que pudessem atraí-lo
pela temática a qual estava associada. E, assim, foram dispostos contos para
quem gosta de “animais”, “fantasias infantis”, “caligrafia”, “profecias”, “temas
bíblicos”, “mistérios artísticos”, “parque de diversões”, “viagens”, “automóveis”,
“lacunas”, “televisores”, “controle remoto”,11 “futebol”, etc., sendo um conto para
cada categoria elencada. Dentre as histórias reunidas no livro havia aquela para
quem aprecia “cinema”. O conto escolhido para essa seção foi “O dia em que
matamos James Cagney”, o qual se faz presente também nos Contos reunidos do

pensamento, como expressão de uma época. Não há nenhuma prova de que Galileu Galilei (1564-
1643) tenha dito ‘eppur si muove’ [ainda que se move], mas esta simples sentença é um marco:
não é Terra que se move, é a história também, e ao mover-se deixa para trás toda a tradição
medieval. Se não foi Galileu quem falou, foi o seu tempo. [Por isso,] Colecionar citações é uma
arte” (SCLIAR, 1993, p. 9).
11
No livro Histórias para (quase) todos os gostos, o texto que se refere a quem gosta de controle
remoto é “Zap”. Esse texto e o texto “A balada do falso Messias” foram selecionados por Ítalo
Moriconi para compor a antologia Os cem melhores contos brasileiros do século (MORICONI,
2000, p. 352-357, 555-556). “A balada do falso Messias” está alocada na seção “Anos 70 –
violência e paixão”, e “Zap” na seção “Anos 90 – estranhos e intrusos”.
11

escritor porto-alegrense, embora nessa obra não haja uma seção relacionada ao
cinema e o referido conto esteja agrupado na seção “Maldade da infância”.
Embora no livro Histórias para (quase) todos os gostos o conto escolhido para
representar o cinema tenha sido “O dia em que matamos James Cagney”, o conto
“Shazam” também poderia ter sido inscrito na seção para quem gosta de ler sobre
cinema, pois o Capitão Marvel – sobre o qual o narrador versa – foi representado
na arte cinematográfica. Apesar disso, “Shazam” foi relacionado no segmento para
quem gosta de histórias de “super-heróis”. Embora ele seja de fato um herói, sua
disposição na seção “cinema” também seria apropriada. Nesse contexto, ainda há
que se dizer que o personagem Capitão Marvel está presente na capa do livro
Histórias para (quase) todos os gostos, juntamente com mais alguns objetos que
tematizam os textos ficcionais scliarianos que compõem essa obra.

O cinema e as crônicas médicas de Moacyr Scliar

Na apresentação do livro Território da emoção, a organizadora da obra,


Regina Zilberman, expõe que o recurso literário mais empregado por Scliar em
cada crônica é a simplicidade. Assim, no prefácio intitulado “Leitura prazerosa
sobre a saúde”, Zilberman explica que ao simplificar o entendimento acerca dos
problemas de saúde, das possibilidades de cura e das “atitudes a tomar diante de
temas em voga, ele [Scliar] não banaliza a linguagem nem incide em vulgaridade,
valendo-se da propriedade que constitui uma das marcas mais notáveis de sua
prosa: a simplicidade”. Para a estudiosa, é muito importante assinalar que
exercitar a simplicidade no ato da escrita “requer grande esforço, supondo redigir
as frases em ordem direta, evitar períodos longos, escapar à tentação do
ornamento, encarnado em adjetivos e advérbios inúteis”, o que inclui, ainda,
“empregar, sem abuso, palavras técnicas, explicando seu significado, furtando-se
ao pedantismo e à pretensão de mostrar conhecimento ao público”. Por escrever
seus textos observando a relevância da simplicidade, Zilberman pondera que
12

“Scliar vence esses desafios, fazendo com que suas crônicas médicas, tais como
os demais escritos que produziu, se apresentem na melhor forma literária
possível” (ZILBERMAN, 2013, p. 12).
As afirmações de Zilberman são bastante relevantes, mas talvez tenha
faltado à estudiosa destacar que, com frequência, as crônicas médicas de Scliar
fazem menção a filmes, séries televisivas, atores e diretores. Essa prática
escritural costuma ser tão recorrente que o próprio escritor já a tentou explicar,
ainda que mui brevemente. Na crônica “Literatura como tratamento” – inscrita em
Território da emoção – ele pondera que “no século XIX, eram os grandes
romances – aqueles de Balzac, por exemplo – que ensinavam as pessoas a viver.
Esse papel foi assumido pelo cinema e pela TV” (SCLIAR, 2013, p. 29). Se se
considerar o paratexto – data – abaixo do título, nota-se que essa concepção de
Scliar é “antiga”, pois antes de a referida crônica ser compilada no livro Território
da emoção: crônicas de medicina e saúde (2013), em 31 de maio de 2003 – dez
anos antes – o texto “Literatura como tratamento” foi publicado no Caderno Vida,
do Jornal Zero Hora, de Porto Alegre (ZILBERMAN, 2013, p. 12).
Se no prefácio do Território Zilberman não sublinhou abertamente a
presença da sétima arte na crônica scliariana, ela o faz indiretamente quando
aponta ao leitor a importância de se detectar o “território da emoção”, ou seja, “a
ponte entre literatura e medicina”. Essa detecção se dará principalmente pela
leitura da crônica “Medicina e ficção” (ZILBERMAN, 2013, p. 13). Publicada
originalmente em 2010, o referido texto traz a conclusão de que “ao menos em
termos de medicina, há uma longa distância entre a realidade e a ficção. E a
ficção às vezes ganha a briga”. Para chegar a essa ilação, Scliar começa seu
texto impressionado com a constatação de que o personagem Sherlock Holmes foi
criado há mais de um século e ainda sobrevive com vigor, conforme se constata
com o lançamento do filme homônimo, estrelado por Robert Downey Jr., vivendo
Sherlock, e Jude Law, na pele de Dr. Watson. O escritor menciona que esse filme
“é o mais novo lançamento numa longa série de filmes”. Na sequência, percorre
uma linha do tempo, por meio da qual constata que o personagem Sherlock
Holmes serviu de modelo para um famoso personagem médico de um seriado – o
13

Dr. House. Interpretado por Hugh Laurie, antropólogo de formação, House é um


gênio do diagnóstico, porém é um homem cínico, sarcástico, que não demonstra
muita simpatia para com os pacientes. O Dr. House foi inspirado em Sherlock que
por sua vez foi inspirado no Dr. Joseph Bell. Como médico, Sir Arthur Conan
Doyle elaborou o personagem Sherlock a partir da observação de que seu colega
Bell “era capaz de fazer diagnósticos antes mesmo que os pacientes abrissem a
boca, graças a seu notável poder de observação e a seu arguto raciocínio”. Dessa
forma, a empresa cinematográfica tanto revive Sherlock em novos filmes, assim
como cria novos personagens médicos a partir de Holmes. O que resulta disso é o
vibrante interesse do espectador, verificado na constatação de que House obteve
sucesso de público, sendo “escolhida a melhor série televisiva no People’s Choice
Awards, realizado em Los Angeles” (SCLIAR, 2013, p. 33-34). 12
No conjunto da obra scliariana, uma das vertentes é a relação entre a
literatura e a medicina. Porém algo singular ocorre em algumas crônicas: a
inserção do elemento cinematográfico/televisivo. Em “Medicina e ficção”, as duas
séries que o escritor gaúcho comentou estão relacionadas ao ambiente médico, 13

evidenciando-se o fascínio de Scliar no que concerne ao fato de que

Não são poucos os médicos que se transformaram em personagens, seja


da literatura, seja do cinema, seja da TV, que gosta muito do hospital
como cenário para seus dramas e ali coloca figuras como as de Bem
Casey, do dr. Kildare, Marcus Welby, Meredith Grey (de Grey’s Anatomy).
Funciona: na Inglaterra, um curioso estudo mostrou que as pessoas
conheciam mais o dr. Kildare, e mesmo o dr. Watson [amigo de Sherlock,
ele é médico, mas não tem nenhuma habilidade especial, servindo mais
como um interlocutor], do que médicos ingleses cujo trabalho beneficiou
extraordinariamente a humanidade: Joseph Lister, que introduziu a
assepsia, e Edward Jenner, pioneiro da vacinação. (SCLIAR, 2013, p. 34)
14

12
Os filmes e séries que Scliar menciona em seus textos, inclusive em seus romances, são quase
sempre os que receberam alguma espécie de premiação.
13
Outra série televisiva relacionada a médicos é Doutor Kildare. Scliar a cita na crônica “Erico,
literatura e medicina” quando menciona que “mesmo os ficcionistas têm dificuldades com seus
personagens médicos”, mas Erico Veríssimo – que era neto de médico e trabalhou numa farmácia
durante uma época de sua vida – “soube transformar seus personagens médicos em seres
humanos.” (SCLIAR, 2012, p. 27). Nessa mesma crônica é possível verificar o interesse de Scliar
pelo teatro, pois ele escreve sobre a peça O dilema do médico (1911), de Bernard Shaw.
14
É interessante a associação que Scliar faz de Sherlock Holmes com o Dr. House. A respeito
disso, observa-se que, recentemente, Valéria Bussola Martins, professora da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, apresentou um trabalho detalhado sobre essa associação: As versões
literária e televisiva de Sherlock Holmes: um diálogo entre Comunicação, Educação e Letras. In:
Congresso Nacional Mackenzie Letras em Rede: Linguagens e Saberes, 2012, São Paulo. Anais
14

Se nesse texto Scliar não só mencionou personagens e séries médicas,


mas também teceu amplos comentários e reflexões sobre elas, o mesmo não
ocorre nas demais crônicas médicas, nos quais a menção ao cinema/TV é mais
rápida e mais discreta. Isso pode ser exemplificado com o texto “Indesejável efeito
colateral”, publicado originalmente em 22 de outubro de 2005 e posteriormente
transposto para o Território da emoção. Assim como “Medicina e ficção”, o escritor
gaúcho evidencia seus conhecimentos fílmicos, pois logo no primeiro parágrafo
Scliar menciona o nome do filme e dos atores que desempenham cada papel. Nas
duas crônicas a primeira linha já traz o filme, seguido da observação de Scliar de
que é um novo lançamento do cinema. O texto a que ora se alude inicia-se assim:
“Está estrelando nos cinemas O jardineiro fiel, dirigido pelo talentoso Fernando
Meireles, com locações em Nairóbi, no Quênia, e no Sudão” (SCLIAR, 2013, p.
199).
Ainda no primeiro parágrafo, se verifica a relação entre literatura e
medicina, já que o filme é baseado no livro homônimo de John Le Carré,
romancista britânico que escreveu sobre o potencial da tuberculose. O enredo é
apresentado por Scliar: ao investigar o falecimento da esposa, Tessa (vivida pela
atriz Rachel Weisz), o funcionário do serviço diplomático Justin (Ralph Fiennes)
chega ao conhecimento de que há “uma trama envolvendo o teste de uma droga
antituberculose pela indústria farmacêutica”, sendo que, “em regiões como a
África, e é isso que o filme quer mostrar, pessoas pobres podem servir como
cobaias humanas” para testes de novos medicamentos (SCLIAR, 2013, p. 199).
Observa-se que o texto “Indesejável efeito colateral” é dividido em três blocos,
sinalizados por um espaçamento de três toques entre eles. As alusões ao filme se
restringem ao primeiro bloco, sendo que o assunto continua sendo discutido dessa
vez tendo como “chamariz” dados retirados da Folha de S. Paulo e do The New
York Times. Nota-se que Scliar poderia ter principiado seu texto com as
estatísticas dos jornais, mas preferiu iniciá-lo mencionando o filme em lançamento,
possivelmente por acreditar numa comunicação mais direta com o leitor. Em seus
do Congresso Nacional Mackenzie Letras em Rede: Linguagens e Saberes, 2012. p. 43-44. Valéria
Bussola Martins apresentou a palestra “Sherlock House: da literatura para TV” para os alunos da
disciplina “Literatura e ficção televisiva”, ministrada pelos professores Dra. Maria Luiza Guarnieri
Atik e Dr. Alexandre Huady Torres Guimarães, no primeiro semestre de 2014.
15

estudos sobre Scliar, o teórico Luís Augusto Fischer destaca o interesse do


escritor em cativar o seu público. Dessa forma, Fischer ressalta que Scliar era
“narrativo, claro em sua sintaxe, escorreito no vocabulário” tanto para narrar sobre
sua cidade natal – Porto Alegre – como para escrever sobre “questões ligadas ao
mundo da saúde pública, que não saíram nunca de seu horizonte”. Por isso,
“desde o começo de sua longa, produtiva, bem-sucedida carreira de escritor,
Scliar encontrou linguagem e leitores”, concretizando o que realmente importa na
carreira literária: o encontro do escritor “com a linguagem e com o público”
(FISCHER, 2013, p. 52, 53). A menção à sétima arte era mais uma estratégia
inteligente de atrair a apreciação do público.

o poder se permite supor que como o cinema explora assuntos os mais


diversos, valendo-se de seus conhecimentos sobre a sétima arte Scliar
frequentemente poderá citar um filme para ilustrar ou chamar a atenção para seus
pontos de vista. Na crônica isso parece ser mais fácil de se fazer do que nos
romances.

Nessa crônica, o escritor focaliza apesar de o escritor não

protagonista da série homônima, interessa porque embora nos livros A


mulher que escreveu a Bíblia, Manual da paixão solitária e Os vendilhões do
Templo haja personagens médicos, eles são sempre secundários e sua aparição e
permanência no enredo são extremamente breves. Mesmo assim, eles nunca
recebem uma elaboração complexa, o que contrasta com os livros Sonhos
tropicais e A majestade do Xingu, protagonizados por personagens médicos. Isso
permite pensar que quando Scliar passou a compor privilegiando personagens da
Bíblia, deixou de trabalhar elaborando personagens médicos complexos. O
excerto supracitado também evidencia a relação literatura e medicina que Scliar
16

tanto frisa em entrevistas, como a que concedeu à Mona Dorf e foi trabalhado
anteriormente nesse capítulo.
Permeando a discussão sobre o preenchimento de lacunas do texto
bíblico para a elaboração das obras Manual da paixão solitária e Os vendilhões do
Templo, bem como o enfoque na condição humana em seus livros, há que se
levar em conta a estratégia de Scliar se valer do cinema para refletir sobre todas
essas questões. Esse debate está presente no texto “A inquietude de
Hemingway”, publicado por Scliar na Folha de São Paulo do dia 18 de julho de
1999, da qual se tem acesso por meio da edição de “Os assassinos”, da Coleção
“Folha Grandes Livros no Cinema”. No referido ensaio, que tinha o propósito
rememorativo dos cem anos da morte de Ernest Hemingway, Scliar, como leitor,
aprecia a capacidade de síntese narrativa do escritor norte-americano:

No meu modo de ver, Hemingway se sai melhor na ficção curta na qual a


busca pelo essencial se torna imperativa. Alguns de seus contos estão
entre os clássicos do gênero. [...] Meu favorito é “The Killers” (“Os
Assassinos”). A história é simples, brutal mesmo. Dois matadores de
aluguel entram num bar, procurando por um tal Sueco. Um garoto é
despachado para avisar o homem de que ele corre perigo. Para sua
surpresa, o Sueco diz que não mais fugirá, que é inútil. Os cineastas
tentaram desvendar o mistério que envolve o Sueco – por que ele
está sendo caçado? Por que ele não reage? –-, mas este é, no meu
entender, um empreendimento dispensável: a grandeza do texto reside
justamente nessa incógnita e na perplexidade do menino diante dela, a
perplexidade de qualquer garoto que tenta, em vão, entender o seu
pai. E o segredo da vida e da morte. (SCLIAR, 2013, p. 59-60, grifo
nosso)

No excerto acima mais uma vez é possível perceber o interesse de


Scliar pela sétima arte. Ele está simultaneamente realizando uma crítica literária –
quando discorre sobre o conto de Hemingway – e “arriscando-se” a escrever uma
crítica cinematográfica, quando assevera: “Os cineastas [no filme baseado no
conto de Hemingway] tentaram desvendar o mistério que envolve o [personagem
de Hemingway,] Sueco”. A afirmação de Scliar implica em que ele tenha assistido
ao filme Os assassinos, talvez para contrapor o conto de Hemingway com a obra
fílmica e dela extrair algo que possa ser utilizado para ressignificar seus próximos
textos. Na referida citação Scliar também comenta que na transposição do conto
17

para o filme reside “a perplexidade de qualquer garoto que tenta, em vão,


entender o seu pai”. Essa observação é digna de nota já que as conflituosas
relações entre pais e filhos constituem muitas das temáticas dos livros de Scliar,
incluindo a primeira e a terceira parte de Os vendilhões do Templo, assim como o
conto “Zap”, selecionado em Os cem melhores contos brasileiros do século, livro
organizado por Italo Moriconi (MORICONI, 2000, p. 555-556). Scliar pontua que
esse conto reflete “a amarga situação resultante da incomunicabilidade entre pais
e filhos” (SCLIAR, 2007a, p. 190). 15
Outra obra literária convertida em filme e que recebeu a análise de
Moacyr Scliar é o best-seller Como água para chocolate, de autoria da escritora
mexicana Laura Esquivel (1950). Encarregado de dirigir-se à Providence (EUA) a
fim de entrevistar a escritora, Scliar, na reportagem para a Folha de São Paulo,
limita-se diluir a fala dela nas impressões dele. Diferentemente do que fez na
análise de Os assassinos, aqui o escritor gaúcho diz: “Do filme, nem é preciso
falar: o entusiasmo das platéias brasileiras é exemplo suficiente”. Justificando isso,
Scliar se preocupa em refletir sobre como Esquivel tornou-se uma escritora best-
seller já em sua primeira novela. Atentar-se para essa reportagem pode ser ainda

15
Nesse sentido, cabe registrar o que diz Scliar em sua autobiografia, intitulada O texto, ou: a vida:
uma trajetória literária: “A relação entre pais e filhos foi uma tema ao qual voltei, constantemente,
em contos, crônicas, histórias para público jovem. É algo que nos marca profundamente e que está
sempre presente em nossas vidas, mesmo durante a nossa maturidade, a nossa velhice (e às
vezes, principalmente, em nossa maturidade, em nossa velhice). Mesmo quando o pai está
ausente (e às vezes, principalmente, quando o pai está ausente). (SCLIAR, 2007a, p. 188). Outro
texto que aborda a dificuldade dos relacionamentos entre pais e filhos é a crônica “Controle
remoto”, publicado no livro Minha mãe não dorme enquanto eu não chegar (SCLIAR, 1996, p. 74-
75). Por vezes, a inserção da temática dos conflitos entre pai e filho de dá por meio de metáforas,
conforme se depreende da leitura da entrevista cedida por Scliar a Ademir Pascale. Este pergunta
a Scliar: “Como foi o processo e o porquê da criação da obra ‘A Orelha de Van Gogh’?”. O escritor
porto-alegrense diz: “O conto que dá título à obra baseia-se no conhecido incidente da vida do
pintor em que ele, num acesso de loucura, cortou a própria orelha. Mas eu uso essa orelha como
elemento de uma história que fala da relação complicada entre um filho e um pai.” Em A mulher
que escreveu a Bíblia a conflituosa relação entre pais e filhos também se faz presente, conforme
enfatiza a narradora (a feia) referindo-se ao seu pai: “era um mulherengo conhecido, desses que
não respeitam nem a mulher do próximo. Além disso, andara metido em negócios escusos – parte
de seu rebanho era, para usar um eufemismo, de procedência duvidosa. Nada disso o impedia de
posar como um guardião da moralidade. Exigia da tribo, e da família em particular, um
comportamento irrepreensível. Não tolerava a menor manifestação de vaidade das filhas. [...]
[Como pai] nunca se aproximara muito de mim.” (SCLIAR, 2007, p. 16, 20, grifo nosso). Em Os
vendilhões do Templo e Manual da paixão solitária o relacionamento também não era bom,
conforme será demonstrado no decorrer da pesquisa.
18

mais relevante se se considerar o primeiro tópico que Scliar observa no livro de


Esquivel:

A primeira coisa a assinalar é que “Como Água...” representa uma


virada na ficção latino-americana. Já não temos as obras fortemente
políticas de um [Gabriel Garcia] Márquez ou de um [Júlio] Cortázar; há
pouco clima para tal nesta época de confusão ideológica. Mas temos a
emergência de novas vozes, no caso da voz da mulher, sempre tão
pouco representada em nosso machista continente. No caso, há uma
perfeita correspondência entre forma e conteúdo; Laura fala de mulheres
e como fala de mulheres usa uma linguagem que as mulheres conhecem
há gerações (e os homens mais recentemente), a linguagem das receitas
culinárias. (SCLIAR, Moacyr. Esquivel dá nova voz à ficção latino-
americana. São Paulo: Folha de São Paulo, 27 out. 1993, p. 4, grifo
nosso. (Caderno “Folha Ilustrada”)).

Ao enfatizar seu contentamento pelo fato de a mulher estar sendo


representada no livro Como água para chocolate o escritor porto-alegrense está
agindo em consonância com o que realiza em seu projeto ficcional. Em O texto,
ou: a vida, Scliar diz que uma das possíveis interpretações para seu conto “A
vaca” é “uma reflexão sobre a condição da mulher”, já que metaforicamente a
vaca pode representar a exploração sofrida pelo elemento feminino (SCLIAR,
2007a, p. 104). Nas obras A mulher que escreveu a Bíblia, Os vendilhões do
Templo e Manual da paixão solitária os narradores denunciam situações
degradantes por que passam as mulheres, conforme será demonstrado no último
capítulo dessa tese. 16
Outra situação recorrente no projeto escritural scliariano são os
narradores relatarem estarem presentes em cinemas. Isso se dá no romance
Doutor Miragem, publicado originalmente em 1978, no qual se lê que “enquanto
Cyd Charisse rodopiava na tela, ele a beijou” (SCLIAR, 2010, p. 60). O narrador

16
Apesar de se pretender demonstrar em minúcias o sofrimento imputado às mulheres no último
capítulo dessa pesquisa, seguem alguns exemplos aqui. Em Os vendilhões do Templo o vendilhão
grita com sua esposa: “Cala a boca, mulher” (SCLIAR, 2006, p. 63). Em Manual da paixão solitária
quando Tamar ficou sabendo que deveria se casar com Er, mesmo sem querer e ter sua vontade
consultada, ela não teve alternativa a não ser se conter: “Contive-me, fiz o que minha mãe, e a
mãe dela, e a mãe da mãe dela haviam feito toda a vida, contive-me. Contenção era a palavra de
ordem para as mulheres.” (SCLIAR, 2008, p. 148 ). No romance A mulher que escreveu a Bíblia a
narradora afirma que seu pai “Não tolerava a menor manifestação de vaidade das filhas. [...] [Como
pai] nunca se aproximara muito de mim. (SCLIAR, 2007, p. 16, 20, grifo nosso).
19

de Os voluntários, romance lançado em 1979, menciona diversas peripécias no


“Cine-Teatro Coliseu”. Nesse caso, o cinema é um espaço em se busca encontrar
mulheres para o ato sexual (SCLIAR, 2011, p. 36). A remissão aos cinemas
parece ter sido inaugurado no romance de estreia de Scliar, A guerra no Bom Fim.
Nessa obra o narrador menciona o Cinema Baltimore, no qual Joel corria “para
olhar os cartazes do filme que veria na matinê de domingo; sempre era de guerra
e sempre era bom” (SCLIAR, 2013, p. 35). O cinema Baltimore tem muita
importância para o narrador, que o cita outras vezes, como um local cujos filmes
exibidos despertavam que era possível vencer qualquer inimigo militar: “[...] [a]
serpente nazista: ela não era imortal. Ela podia ser vencida. Gibi Mensal, Globo
Juvenil, Cinema Baltimore, Cinema Rio Branco provavam isso constantemente”
(SCLIAR, 2013, p. 38, 47). 17
No romance o cinema também tem uma importância
cultural, assim evidenciada nas palavras do narrador: “Um dia arranjamos um
dinheirinho e fomos ver um filme. Que filme era aquele! Triste e colorido, fazia a
gente chorar.”; “[Rosa e Daniel] Foram ao cinema; na volta tomaram chá”
(SCLIAR, 2013, p. 54, 76). Outro cinema mencionado no livro é o Rio Branco
(SCLIAR, 2013, p. 47). Nos contos, o narrador do texto “Filme” relata o conflito
entre um pai que apreciava ir ao cinema, e sua filha Berenice que não gostava
nenhum pouco disso. “Cinema era coisa que ele [o pai] adorava, sempre sonhara
em se tornar cineasta”, conta o narrador (SCLIAR, 1995, 1995, p. 121-122). Se a
partir das declarações de Scliar em entrevistas se puder supor que o interesse do
escritor gaúcho pelo cinema e suas vivências relacionadas a este possam ter sido
utilizadas na composição de muitos de seus textos, será interessante considerar a
seguinte afirmação de Scliar acerca da presença do elemento autobiográfico em
seu projeto ficcional:
Sempre me perguntam se os meus livros são autobiográficos – e eu
sempre respondo a mesma coisa: todo escritor, quando começa, é
autobiográfico. Com o tempo ele acaba se libertando de suas lembranças
17
Um dos filmes que Scliar conhece sobre o nazismo é A queda. Na crônica “Médicos ou
monstros?”, publicada originalmente em jornal no dia 14 de maio de 2005 e compilada por Regina
Zilberman no livro Território da emoção (2013), se lê: “Há exatos sessenta anos terminava a
Segunda Guerra Mundial, mas filmes como A queda, sobre os últimos e enlouquecidos dias de
Adolf Hitler, mostram que o espectro do nazismo ainda nos acompanhará, e nos perturbará,
durante muito tempo. A crueldade do regime hitlerista não foi só obra do ditador e de seus
comparsas. Muitos outros participaram nos crimes de guerra, médicos inclusive.” (SCLIAR, 2013,
p. 72).
20

pessoais e aprende a criar personagens que adquirem existência


autônoma. Isto não quer dizer que a gente não se volte para o próprio
passado em busca de inspiração. Vale a pena, sim, lembrar a nossa
própria história, quando há nela passagens que podem interessar a
todos. (SCLIAR, 2002, p. 7)

A citação acima, presente nas páginas iniciais do livro Um sonho no

caroço do abacate, encontra-se em consonância com outras entrevistas

concedidas pelo escritor porto-alegrense, no que se refere ao fato de ele afirmar

se valer de tudo para compor seus textos. Na continuação da sua declaração

Scliar diz que em sua condição de imigrante sofreu muito preconceito. Tal qual ele

menciona no início do livro Um sonho no caroço do abacate, no enredo do referido

livro, o protagonista passa por muitas situações em que sofre preconceito.

Embora nenhuma obra da “trilogia” mencione personagens

frequentando cinemas e vivenciando neles fortes emoções – o que certamente

causaria quebra de verossimilhança porque os romances se passam nos tempos

bíblicos – Shelá, o narrador da primeira parte de Manual da paixão solitária,

almeja ganhar dinheiro abrindo o que seria um “cinema dos tempos do Antigo

Testamento”:

Ah, a caverna e as suas sombras fantásticas. Filho de Judá, uma vez [eu,
Shelá] pensei em transformar aquilo num empreendimento. Colocaria,
naquele recinto, assentos, cobraria entrada de espectadores.
Acenderia a lamparina, e quando as sombras começassem a se mover,
narraria, com voz grave: “Eis a caravana dos camelos mágicos. Neste
momento eles se dirigem para a costa, para o mar...”. E a partir daí
narraria histórias. Poderia ganhar um dinheirão com isso. Mas franquear
a caverna a estranhos, mesmo mediante boas somas, significaria abrir
mão da minha privacidade, do meu segredo, da magia que ali reinava. E
isso eu não faria. Nem mesmo a meus irmãos falava daquele reduto de
fantasias. (SCLIAR, 2008, p. 36, grifo nosso)
21

Em se tratando das referências cinematográficas na “trilogia” é


importante pontuar que, em 2006, é publicado Os vendilhões do Templo, obra que
na terceira parte se verifica o narrador remetendo explicitamente o leitor ao filme
OK Corral. O título completo do referido filme é Gunfight at the OK Corral. No
Brasil, a tradução do título ficou sendo Sem lei e sem alma e, em Portugal, Duelo
de fogo. De acordo com Edward Buscombe, OK Corral é um filme estadunidense
de 1957, do gênero faroeste, dirigido por John Sturges, com roteiro de George
Scullin e Leon Uris, essa película conta uma versão romanceada de um fato real
ocorrido no Velho Oeste dos Estados Unidos da América: o famoso tiroteio entre
Wyatt Earp e o bando de Clanton num local conhecido como OK Corral, em
Tombstone, território do Arizona, ocorrido no dia 26 de outubro de 1881. Os
Clanton são uma quadrilha de arruaceiros e ladrões de gado. O filme foi indicado
para o Oscar nas categorias de melhor som e melhor edição (BUSCOMBE, 2013,
p. 330).
Os filmes Os assassinos e OK Corral mantêm correspondências entre
si que parecem interessar ao escritor Scliar. Em ambos, um personagem é
avisado de que será assassinado, mas não foge. Se em Os assassinos é o
personagem Sueco que se recusa a fugir, como demonstrou-se há pouco, em OK
Corral é John “Doc” Holliday que é alertado por sua mulher a evadir-se, ao que ele
terminantemente se recusa. Essa questão de não ter medo da morte se faz
presente no projeto ficcional de Scliar, conforme se verifica, por exemplo, na
epígrafe de seu romance Os voluntários, publicado pela primeira vez em 1979. No
referido livro a epígrafe só se torna mais clara devido à explicação que Scliar
escreve logo após citá-la: “Por que temer a morte? É a mais bela aventura da vida.
Charles Frohman, empresário teatral, afundando com o Lusitânia (7 de maio de
1915)” (SCLIAR, 2011, p. 7). Assim como as séries televisivas House e Grey’s
Anatomy – citadas no iníco desse capítulo – têm personagens médicos, no filme
OK Corral isso também se verifica, já que o personagem Doc Holliday é um
dentista aposentado. Nesse sentido, se pode dizer que é interessante que muitos
dos filmes e séries citados por Scliar têm personagens médicos. Há que se
mencionar ainda que no primeiro romance de Scliar, A guerra no Bom Fim, o
22

protagonista Joel é um dentista. Quanto ao trecho de Os vendilhões do Templo


em que OK Corral é mencionado, este é o seguinte:

Nós quatro. Era nisso que ele [Matias] pensava: nós quatro. Nós quatro
no palco, nós quatro na rua, nós quatro num bordel, nós quatro numa
grande empresa como executivos. Ele queria fazer parte dos quatro; que
fosse o quarto, e muito distante dos outros três, não lhe importava, o que
importava era o número, mágico. Quatro eram, por exemplo, que,
naquele filme, OK Corral, enfrentam os bandidos no duelo final. (SCLIAR,
2006, p. 258)

Na citação acima a menção ao filme OK Corral serve para fixar a ideia


de quanto Matias era um rapaz inseguro e, ansioso para fazer parte de um grupo
de colegas de sua escola, almeja muito constituir com eles um quarteto. Desse
modo, se pode dizer que na obra Os vendilhões do Templo as referências
cinematográficas não são apresentadas a esmo – elas ajudam na construção do
sentido. O diálogo com o filme faroeste se dá pelo fato de que em OK Corral
quando o xerife Wyatt Earp aceita enfrentar, num desafio armado, o grupo de
bandidos ele conta apenas com seus dois irmãos. Precisando muito contar com
um quarto elemento, especificamente Doc Holliday, um excepcional pistoleiro, o
homem da lei o procura encontrando-o numa cama, completamente abatido por
uma tosse advinda de uma possível tuberculose. Holliday passa muito mal a noite
toda, mas na manhã seguinte, embora cambaleante, vai ao encontro de Earp para
auxiliá-lo no tiroteio e eles vencem o confronto com os bandidos. Nesse contexto,
é relevante se notar que a mesma tensão pré-enfrentamento armado que permeia
o faroeste OK Corral parece estar presente no conto “Nós, o pistoleiro, não
devemos ter piedade” no que se refere aos instantes que antecedem o duelo entre
o narrador - um temível pistoleiro – e um mexicano chamado Alonso, que o
esbofeteia, incitando a provocação de um duelo, marcado para o dia seguinte. O
clímax desse conto, publicado no livro O carnaval dos animais, se dá nesses
termos: “Colocamo-nos frente a ele. Vê um pistoleiro de olhar soturno, o
mexicano. Seu riso se apaga. Vê muitas mortes em nossos olhos. É o que ele vê.”
(SCLIAR, 1995, p. 92), mas o final guarda uma inesperada surpresa. Além disso,
há que se notar que do início ao final do conto este se assemelha muito ao início
do faroeste OK Corral.
23

O filme faroeste OK Corral evidencia uma amizade improvável entre


Earp, um homem da lei, e Holliday, um ex-dentista que se tornou pistoleiro e
ganha a vida em apostas de jogos de cartas. No filme, Holliday, o quarto
elemento, é decidido, seguro, tem muita autoconfiança e é procurado para fazer
parte do quarteto. Já no romance de Scliar, é Matias que suplica para fazer parte
do grupo, embora seja totalmente dispensável em sua explícita vulnerabilidade e
medo constantes. No filme, Holliday, mesmo aparentemente tuberculoso, não
busca ajuda médica, mas no romance de Scliar Matias aceita ser submetido aos
cuidados da medicina. Ao final do filme, apesar da tosse, Holliday permanece vivo,
jogando cartas; já no romance Matias morre no meio da história.
Em OK Corral os personagens são muito másculos: Wyatt Earp e Doc
Holliday são representados, respectivamente, pelos galãs holywoodianos Burt
Lancaster e Kirk Douglas. É significativo que no filme apenas o líder (Earp) e o
quarto elemento (Holliday) têm destaque, pois os demais componentes do grupo
têm pouca visibilidade. Em Os vendilhões do Templo o enredo não se procede
assim, pois apesar de inicialmente o líder do grupo, Félix, demonstrar-se forte, no
final da história ele acaba preso pela polícia por agredir um dos elementos do
grupo. Félix é egoísta, ao contrário de Earp que aceita o desafio para vingar um de
seus irmãos que fora morto pelo grupo de bandidos.
A contraposição do trecho acima com o fragmento do texto de Pega pra
Kaputt! aponta que, dentre os narradores das obras de Scliar, as referências não
se limitam aos filmes muito conhecidos no passado, pois também explícita ou
implicitamente se refere aos atores que protagonizaram as respectivas obras
fílmicas. Nesse sentido, parece que o narrador de Scliar prioriza seu destaque a
atores, e não atrizes, conforme se depreende do destaque dado aos conhecidos
personagens de admirada masculinidade como Humphrey Bogart, Kirk Douglas,
Burt Lancaster e Johnny Weissmuller (1904-1984), famoso por atuar em Tarzan.
Apesar de Scliar priorizar atores, em seu conjunto de obras também há menções à
atrizes consagradas na história do cinema, como Ingrid Bergman (1915-1982), a
exemplo do que se lê na crônica “O primeiro cigarro a gente não esquece” em A
face oculta: inusitadas e reveladoras histórias da medicina (2001). Neste texto, a
24

atriz é citada por sua influência: “Quando Ingrid Bergman apareceu num filme
elogiando homens que apreciam charutos, ficou claro que daí em diante a
sociedade teria de aceitar esse hábito. Que nem mesmo Fidel Castro rejeitou.”
(SCLIAR, 2001, p. 102). É necessário observar ainda o quanto Scliar se aproveita
de detalhes dos filmes para compor efeitos desejados: o narrador de Pega pra
Kaputt! se refere à longa capa usada por Humphrey Bogart na produção
Casablanca; o narrador da terceira parte de Os vendilhões do Templo associa a
intensidade de Matias fazer parte do grupo escolar à necessidade urgente do
xerife de OK Corral poder contar com seu amigo pistoleiro Doc Holliday no
confronto decisivo com os bandidos. Em suas crônicas, como “Os segredos do
spa” – compilada na obra A face oculta – o escritor gaúcho demonstra o quanto
cada detalhe fílmico, até mesmo o ambiente das cenas, pode ser aproveitado para
produzir determinados efeitos em seu texto, o que pode implicar efeitos de ilustrar
suas afirmações na referida crônica, por exemplo:

Alguns desses hotéis ficaram famosos pelo luxo barroco; num desses,
Alain Resnais filmou o famoso O ano passado em Marienbad, um filme
cult dos anos 60, no qual os famosos corredores serviam de metáfora
para os labirintos da paixão. Iraí, no Rio Grande do Sul, sempre foi um
equivalente modesto, mas digno. (SCLIAR, 2001, p. 14, grifo nosso)

Chama a atenção o fato de que embora os filmes citados em Os


vendilhões do Templo contenham violência, nas partes em que o narrador os
menciona ele o faz por outros motivos que não estão relacionados diretamente
com cenas violentas. No conjunto da obra de Scliar, por vezes ocorre o contrário,
como se nota na crônica “Pequeno? Nem tanto”, compilada no livro A face oculta:
inusitadas e reveladoras histórias da medicina:

Don’t want a short dick man, não quero um homem de pênis pequeno, diz
uma canção não muito refinada, mas, numa época, muito famosa. Para
um homem com pretensões a machão, não pode haver maior ofensa. O
que foi cruamente retratado na cena inicial de um violento western, Os
Imperdoáveis (The Unforgiven): num bordel, homem tem ataque de fúria
e retalha à faca o rosto de prostituta, porque ela riu de seu pênis,
achando-o minúsculo. (SCLIAR, 2001, p. 42, grifo nosso)
25

Nessa crônica, embora o foco seja comentar as questões relacionadas


ao tamanho do pênis, também figura, em segundo plano, a preocupação com a
condição da mulher – recorrente na “trilogia” de Scliar –, conforme se depreende
da agressão sofrida pela prostituta. Nas entrelinhas há também a questão do riso,
que foi o fator desencadeante da violência sofrida pela meretriz. Todas essas
questões se fazem presentes em Manual da paixão solitária: na primeira parte
desse romance, Shelá afirma que as mulheres da sua aldeia não podiam sorrir ou
rir; na segunda parte desse mesmo livro, é a própria Tamar que revela que, em
sua condição feminina, ela não podia rir ou sorrir em sua comunidade:

. Segundo Ana Maria Lisboa de Mello no ensaio “Moacyr Scliar,


contista”, em Scliar a apresentação da temática da violência pela violência difere
da maneira como é feita por muitos dos outros escritores brasileiros
contemporâneos, como Rubem Fonseca (1925):

Scliar não se detém, como Rubem Fonseca, na questão da violência


escancarada, fruto de uma sociedade de classes que faz com que
situações brutais, como as vividas pelos protagonistas do conto “Feliz
ano novo” [Fonseca, 1989], sejam tão rotineiras que não mais
surpreendem os leitores, quando eles leem notícias de acontecimentos
semelhantes nos jornais. Scliar aproxima a lente e mostra como o
egoísmo está presente nas relações mais próximas, até entre irmãos, de
tal modo que, iniciando nas relações familiares, pode facilmente expandir-
se por toda a sociedade como uma espécie de doença. (MELLO, 2004, p.
138)

Embora o que Ana Mello afirma se refira aos contos, os romances, principalmente
os da “trilogia”, estão na mesma condição de análise da estudiosa.

A sinopse desse filme parece manter correspondência com o que faz o


escritor porto-alegrense em seus textos. Segundo Milton Hatoum, em seus textos
“Moacyr Scliar explora situações absurdas, que lembram certas parábolas de
Kafka” (HATOUM, 2003, p. 5). Em “(No começo)”, Regina Zilberman testemunha
que “os fatos [narrados por Scliar] são, no mínimo, fora do comum. Se não são
26

fatos que escapam ao usual, estranho é o modo de apresentá-los” (ZILBERMAN,


2003, p. 7). 18
Portanto, a situação absurda vivenciada pela protagonista do filme
parece se adequar de tal modo aos conteúdos que podem ser utilizados para a
criação scliariana que um dos mitos mais utilizados na produção de Scliar é o mito
da vagina dentada. 19
Esse mito está presente no romance de estréia do escritor,
na pele de uma personagem que tem dentes na vagina e só sente e proporciona
prazer por meio da felação. Esse mito é novamente utilizado no romance Manual
da paixão solitária. Outro argumento que pode tornar mais crível a hipótese de a
expressão “garganta profunda” no trecho do romance de Scliar ter sido utilizada
intencionalmente como alusão ao filme homônimo é o emprego do título do filme
Toda nudez será castigada – que, embora não seja um filme pornográfico como
Garganta profunda, tem um forte apelo erótico – na elaboração de uma crônica de
mesmo título, conforme se demonstrará adiante. Nesse último caso, apesar de a
crônica não se referir expressamente ao filme guarda com este correspondências
temáticas referentes às relações entre sexo e nudez, tal qual no filme Toda nudez
será castigada. Nesse ínterim, é importante mencionar que esse método de
compor parece fazer farte do projeto ficcional de Scliar, já que por vezes o escritor
gaúcho dilui títulos de obras literárias nos seus textos, a exemplo do que se nota
em Manual da paixão solitária, no trecho em que o narrador se pergunta:
“Educação pela pedra? Sim. Educação pela pedra. Insólita educação; educação

18
Sobre a presença do erótico na obra do autor gaúcho, salienta Dirce Cortes Riedel na orelha do
livro Os melhores contos de Moacyr Scliar. 6. ed. São Paulo: Global, 2003, organizado por Regina
Zilberman: “Esta fusão do erótico, do mágico e do sagrado, no buscar e no penetrar do amor, é
uma tônica no texto de Scliar... Esse é o desafio: levantar interrogações, com respostas a meio do
caminho.”
19
O mito da vagina dentada parece manter um viés contemporâneo. Em 01 de julho de 2014 uma
das notícias mais veiculadas no Facebook era esta: “O estupro tornou-se um problema endêmico
na África do Sul, então uma técnica da área médica, chamada Sonette Ehlers desenvolveu um
produto que imediatamente chamou a atenção nacional. Ehlers nunca se esqueceu de uma vítima
de estupro lhe dizendo, "Se ao menos eu tivesse dentes lá embaixo." Algum tempo depois, um
homem chegou ao hospital no qual Ehlers trabalha com uma dor terrível, por conta do zíper que
havia fechado sobre seu pênis. Ehlers misturou as duas imagens e desenvolveu um produto
chamado Rapex. O produto parece um tubo, com fisgas dentro. A mulher o coloca como um
absorvente interno, através de um aplicador, e qualquer homem que tentar estuprar a mulher irá se
rasgar com as fisgas e precisará ir a um hospital para remover o Rapex. Quando os críticos
reclamaram que se tratava de uma punição medieval, Ehlers respondeu, ‘Uma punição medieval
para uma atitude medieval.’” Nesse dia, essa notícia teve mais de 106 mil compartilhamentos e
mais de 187 mil pessoas haviam curtido essa reportagem, o que demonstra uma preocupação da
sociedade contemporânea para temática degradante por que passam muitas mulheres no mundo.
27

sentimental, não conceitual, não cognitiva” (SCLIAR, 2008, p. 16). Se nesse trecho
está diluído o livro A educação pela pedra (1966), de João Cabral de Melo Neto
(1920-1999), em outro trecho de Manual da paixão solitária parece estar dissolvido
o título de uma obra de Guerra Junqueiro (1850-1923), A velhice do pai eterno
(1885) (SCLIAR, 2008, p. 139). A diluição dos títulos dessas obras no corpo do
romance de Scliar não é gratuita, pois se o trecho que pode ser associado ao livro
de João Cabral de Melo Neto está num contexto que dialoga com a obra do poeta
nordestino, o mesmo ocorre quando a narradora (Tamar) da segunda parte de
Manual da paixão solitária menciona, diluído em seu discurso, o título do livro do
poeta português realista Guerra Junqueiro, uma vez que o referido livro foi
elaborado num contexto de denúncia da hipocrisia da crença religiosa e o
romance de Scliar também segue nessa “linha”. Segundo explica Massaud Moisés
em A literatura portuguesa através dos textos, o livro de Guerra Junqueiro
“primitivamente se intitulava A Morte de Jeová” e “consta de uma série de quadros
líricos em tôrno (sic) de alguns dos principais aspectos da história do Catolicismo”.
Moisés ainda expõe que a obra A velhice do pai eterno (1885) corresponde “à
segunda parte de uma trilogia poética iniciada pelA morte de D. João (1874), e
que teria seqüência (sic) com o Prometeu Libertado, que ficou incompleto”. No
terceiro livro, Junqueiro “cantaria a liberdade de Prometeu, pois ela ‘significa o
desaparecimento de tôdas (sic) as tiranias, e a ressurreição de Jesus, a morte de
todos os dogmas’” (MOISÉS, 1979, p. 319). 20

Retomando a questão do mito da vagina dentada, observa-se que


segundo explica Rafael Camorlinga Alcaraz no ensaio “Mito literário e mito
religioso” que o mito é dotado de um caráter simbólico, traço este que o aproxima

20
Em seu projeto ficcional, Scliar também dilui versos conhecidos de Fernando Pessoa e Camões,
conforme se nota nestes excertos de Manual da paixão solitária: “Não posso ir embora, não posso
(ainda que navegar seja preciso) partir em busca de terras desconhecidas.”; “Mata-me, pois; pelo
menos assim a minha vida terá sentido, serei daqui por diante a rainha-mártir, aquela que depois
de morta continuou rainha” (SCLIAR, 2008, p. 128, 129, grifo nosso). A predileção por Camões
também pode ser sentida nas epígrafes do romance Os voluntários, editado originalmente em
1979. Nesse livro, todos os muitos capítulos são antecedidos de epígrafes de versos de Camões.
Nesse mesmo romance, o narrador menciona ter assistido ao filme Gilda (1946) três vezes e cita
atrizes famosíssimas do passado, conforme demonstra o seguinte trecho: “Sim, Lana Turner era
mais provocante, e Claudette Colbert mais meiga, e Bette Davis tinha aquele olhar de desafio, e de
Rita Hayworth então nem se fala, era minha loucura, minha perdição, vi Gilda três vezes. Mas as
estrelas estavam longe, Elvira [prostituta] estava ali.” (SCLIAR, 2011, p. 38).
28

da Literatura. Nesse caso, o “simbolismo não é exclusivo do mito; ele é


onipresente no universo das artes. Mas no mito se manifesta de uma maneira
especial, sendo ele próprio um símbolo”. A aproximação natural existente entre o
símbolo e o mito permite concluir que o aspecto plurissignificativo do símbolo
permite ao mito estabelecer um caráter “dual”: “o mito se caracteriza pela
ambigüidade (sic), em virtude da qual, revela velando, descobre cobrindo,
manifesta ocultando” (ALCARAZ, 2005, p. 46), e isto se dá pela evocação e/ou
pela sugestão, práticas adotadas pelos simbolistas como formas indiretas de dizer
as coisas. 21
No ensaio “A questão dos gêneros literários”, Graça Paulino, Ivete
Walty e Vera Casa Nova salientam que o mito é “uma narrativa de caráter sagrado
que conta como as coisas passaram a existir”, é “a narrativa por excelência, a
épica dos deuses, o narrar coletivo a que todos têm direito, mesmo havendo
mediadores, que são os encarregados de sua transmissão e divulgação”. De
caráter cosmogônico, por deter o poder de explicar a existência do mundo, trata-
se “de uma memória do princípio, do illo tempore”. (PAULINO; WALTY; CASA
NOVA, 1994, p. 40-41). Dentre os três livros scliarianos que estão sendo
enfocados nessa pesquisa, um deles, o Manual da paixão solitária traz um outro
mito - este explica a polução noturna:

De repente, porém, algo aconteceu comigo, algo que minha mãe


atribuiria a um demônio ou à ação daquela maligna Lilith, a primeira
mulher de Adão que, rebelde, abandonara-o para entregar-se ao demônio
Samael. A Lilith que à noite voava sobre as casas, introduzia-se
subrepticiamente nas casas e tinha relações com maridos adormecidos –
essa perversa astúcia resultando nas vergonhosas, humilhantes,
mortificantes poluções noturnas. (SCLIAR, 2008, p. 165-166)

O projeto ficcional scliariano mantém-se em diálogo aberto com outras


mídias, pois o escritor gaúcho se mostra favorável não somente à transposição de
A mulher que escreveu a Bíblia para as artes cênicas, como também prontamente
concordou com a transposição de sua obra Sonhos tropicais para o cinema. Em

21
GOMES, Álvaro Cardoso. O Simbolismo. São Paulo: Ed. Ática, 1994, p. 62.
29

entrevista concedida a Adriano Schwartz, o romancista respondeu do seguinte


modo a pergunta “Contos seus já foram adaptados, não?”:

Dois contos meus viraram curtas, alguns outros foram feitos na TV.
Agora, por coincidência, esteve aqui [na casa dele, de Scliar, onde foi
feita a entrevista] o cineasta André Sturm, que quer fazer um longa do
“Sonhos tropicais”, o que me pareceu uma ideia muito boa. Hoje eu
assinei a opção para ele fazer o filme. (SCHWARTZ, 1996, p. 5).

A resposta de Scliar é significativa pois o escritor porto-alegrense não


revela apenas o que o entrevistador quer saber. Scliar parece querer ir mais
adiante, ao procurar destacar – e, talvez, simultaneamente divulgar – que seu
romance Sonhos tropicais ganharia não uma versão para um curta nem para um
programa televisivo, mas uma adaptação para o cinema. 22
Outro aspecto que
chama a atenção é que a referida entrevista era para divulgar o lançamento dos
Contos reunidos de Scliar, mas, das dezoito perguntas que o jornalista faz ao
ficcionista, apenas as duas primeiras estão de fato relacionadas ao livro recém-
lançado do escritor gaúcho. O resultado disso é que as questões levantadas pelo
jornalista possibilitam ao escritor discorrer sobre diferentes facetas de sua
produção literária. Desse modo, o título e o “subtítulo” da entrevista – “A literatura
do conflito: Moacyr Scliar fala sobre seus ‘Contos reunidos’” – não condizem de
fato com o que se propõe.

22
Isso fica explícito na entrevista que Scliar cedeu a Danielle Sommer e Victor Brami. Diante da
primeira pergunta, “Como você começou a escrever?”, o ficcionista gaúcho apresenta sua trajetória
de iniciação e a conclui dizendo: “ Muitos livros foram traduzidos, vários foram premiados e
adaptados. A mais recente adaptação para o cinema foi “Sonhos Tropicais”. BRAMI, Victor;
SOMMER, Danielle. Entrevista: Moacyr Scliar. Disponível em: <
http://www.kehila.com.br/ShavuaTov/junho_02/17_23/moacyr.htm>. Acesso em: 07 ago. 2014.
30

Provavelmente o entusiasmo de Scliar com a produção do filme 23 tenha


sido um pouco afetada pois este só foi lançado em 2001, cinco anos após o
romancista ter se manifestado favorável à transposição de seu livro para o cinema.
Os atores com que o diretor André Sturm pretendia contar também não foram os
mesmos: cogitados para representar o médico Oswaldo Cruz e a prostituta Esther,
Tarcísio Meira e a atriz francesa Emmanuelle Béart 24
foram substituídos,
respectivamente, por Bruno Giordano e pela “global” Carolina Kasting. A produção
teve a participação de outros atores bastante conhecidos e prestigiados, o que
certamente elevou a qualidade da obra fílmica. São alguns deles: Hugo Carvana,
Cláudio Mamberti, Rubens de Falco, Cecil Thiré, José Lewgoy, Flávio Galvão,
Antonio Grassi, Lu Grimaldi e Ingra Liberato. No Festival de Cinema de Recife, em
2002, o filme Sonhos tropicais foi vencedor na categoria Melhor atriz: Carolina
Kasting recebeu o Troféu Passista por sua atuação como a prostituta Esther.

23
A empolgação de Scliar para com a transposição de seu livro para filme pode ser sentida no
depoimento dele a Erika Sallum. Diante da indagação “O senhor chegou a ler o roteiro do filme
‘Sonhos tropicais’?”, a resposta do escritor foi: “Não tinha entendido porque, até agora, não haviam
feito um filme sobre Oswaldo Cruz. Eu revisei o roteiro, achei-o muito bom. O [Fernando] Bonassi é
um belo roteirista e creio que dá para fazer um grande filme.” In: SALLUM, Erika. Livro de Moacyr
Scliar é biografia romanceada. São Paulo: Folha de São Paulo, 12 abril 1997, p. 10. (Caderno
“Folha Ilustrada”). Demonstrando muito orgulho, na entrevista intitulada “Tânia Carvalho entrevista
Moacyr Scliar”, o escritor gaúcho menciona que, além de ter sido transposto para o cinema pelas
mãos do diretor André Sturm, o romance Sonhos tropicais serviria de base para o documentário
produzido por Sílvio Tenda a respeito da trajetória do médico Oswaldo Cruz. Afirma Scliar: “e agora
estão fazendo dois filmes de um mesmo livro meu, que isso é um negócio estranhíssimo. [...] De
uma maneira os dois vão se completar.” Nessa mesma entrevista, Scliar acrescenta que sua obra
infanto-juvenil Um sonho no caroço do abacate resultou no filme O caminho dos sonhos.
Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=I3fXFgFkdxw>. Acesso em: 07 out. 2014.
24
Informações retiradas de: SALLUM, Erika. Revolta da Vacina vira ‘Sonhos Tropicais’. São Paulo:
Folha de São Paulo, 12 abril 1997, p. 10. (Caderno “Folha Ilustrada”). O filme Sonhos tropicais, de
120 minutos de duração, teve como roteiristas André Sturm, Fernando Bonassi e Victor Navas.
Sturm (1966) é o atual diretor do Museu da Imagem e do Som de São Paulo (MIS-SP) e o filme
baseado na obra de Scliar foi seu primeiro longa-metragem. Sturm também dirigiu outros filmes,
como Bodas de papel (2008), drama romântico bem recebido pelo público. Quanto a Fernando
Bonassi (1962), este é um escritor, roteirista, dramaturgo e cineasta brasileiro. Em cinema,
também merecem destaques suas co-autorias dos roteiros das obras fílmicas Cazuza - O Tempo
Não Pára e Carandiru. A sinopse do filme Sonhos tropicais é a seguinte: no mesmo navio estão o
sanitarista Oswaldo Cruz, que retorna ao país após anos de estudo na Europa, e Esther, judia que
veio ao Brasil na promessa de se casar. Cruz logo consegue emprego como médico, enquanto
Esther não tem a mesma sorte, logo descobrindo que a proposta de casamento era apenas uma
farsa. Cruz começa sua ascensão na medicina local, assumindo o comando do Instituto
Soropédico de Manguinhos, onde pesquisa a cura de doenças como a peste e a febre amarela. As
medidas de Cruz se mostram eficazes. Até que, na tentativa de extinguir a varíola, propõe que
maiores de 6 meses sejam obrigados a se vacinarem e desencadeia a Revolta da Vacina.
31

Se neste caso a transposição do livro para o filme chegou a ocorrer


apesar do espaço de cinco anos entre a cessão dos direitos e o lançamento da
película, não se pode dizer o mesmo do romance O centauro no jardim, única obra
brasileira escolhida pelo National Yiddish Book Center, dos Estados Unidos, entre
as cem melhores obras de temática judaica escritas em todo o mundo nos últimos
vinte anos. Numa outra entrevista, esta cedida a Victor Brami e Danielle Sommer,
o romancista porto-alegrense menciona que os direitos do referido livro foram
comprados para a aquisição de um filme, mas ele nunca chegou a ser feito: “Uma
produtora comprou há muitos anos. Um diretor se entusiasma e compra, porque
comprar não é uma opção tão cara, caro é fazer o filme. Devem ter hesitado
devido à dificuldade de produzir um filme com um personagem irreal, imaginário.” .
Nesse contexto, é interessante pontuar que O centauro no jardim foi o livro que
Scliar afirmou ter sido o que deu mais prazer em publicar, segundo se lê na
entrevista intitulada “Falar com Deus? Só se for com ligação a cobrar”. Indagado
sobre “Como você vê a adaptação de livros para o cinema?”, Scliar respondeu
demonstrando uma visão equilibrada acerca dos limites entre as artes literária e
cinematográfica:

Cinema não é livro. Eu acho que está para nascer o escritor que fique
plenamente satisfeito com a adaptação de um livro seu para a tela. Eu
não sei fazer roteiro de cinema, então, quando eu cedo os meus livros
para adaptação, eu dou liberdade para fazerem o que quiserem. Tem
personagens que o diretor quer dar mais importância do que foi dada no
livro. É o que aconteceu com Sonhos Tropicais, a prostituta judia foi mais
enfatizada do que no livro. Eu simplesmente entrego o livro e depois vou
lá ver o filme. Às vezes eles me consultam no meio do filme, mas a regra
é o escritor não tem muita voz no processo de adaptação, com exceções.
(BRAMI; SOMMER)

CONSIDERAÇÕES FINAIS
32

As referências cinematográficas na obra de Scliar não se restringem às


crônicas, 25
mas ao que parece a predominância dessas citações se dá mesmo no
terreno da crônica. Antes de se demonstrar as referências do cinema e da TV nos
romances, pretende-se mencionar mais algumas obras da sétima arte
mencionadas nas crônicas de Scliar, como a citação do filme A laranja mecânica
no texto “Um mestre da história curta”, crônica de 2000 compilada por Regina
Zilberman no livro A poesia das coisas simples (SCLIAR, 2012, p. 52), assim como
26
a citação dos filmes O planeta dos macacos e Os pássaros, respectivamente,
nos textos “A hora e a voz do macaco” e “Os pássaros (versão brasileira)”
(SCLIAR, 2004, p. 161-162, 163), ambos compilados por Luís Augusto Fischer. O
que difere a citação dos filmes nas crônicas de Scliar selecionadas por Zilberman
com as películas mencionadas nas crônicas organizadas por Fischer é que, se
naquelas (Zilberman) os filmes e séries mencionados têm o propósito de ajudar na
construção da argumentação, nesta (compilação de Fischer) as obras fílmicas
mencionadas no corpo da crônica são antecedidas da citação da notícia da Folha
de São Paulo de onde Scliar partiu para escrever seu texto ficcional. Em ambos os
casos, Scliar parece se valer do cinema e da TV para mostrar-se mais próximo do
leitor, para demonstrar-se atualizado e, talvez, também para fazer-se mais fácil de
ser entendido. Ou seja, até mesmo quando Scliar já tinha a notícia da Folha de
São Paulo para compor seu texto ficcional o escritor gaúcho não deixava de
recorrer aos seus conhecimentos fílmicos para argumentar em suas crônicas.

25
Na literatura infanto-juvenil a referência ao cinema se enuncia já no título da obra Câmera na
mão, O Guarani no coração. Neste livro, Um grupo de adolescentes participa de um concurso de
vídeo filmando O guarani, de José de Alencar. Para isso estudam a obra e a comparam com nossa
atualidade. Mas não apenas isso: os garotos vivem também a emoção de fazer cinema pela
primeira vez, filmando as cenas mais marcantes do livro de Alencar. No livro O mistério da casa
verde, num dos diálogos entre André e Arturzinho, este encoraja o colega lembrando-o dos filmes
de ação que ele assiste: “- Ora – disse Arturzinho. – Na pior das hipóteses, vamos ter de correr de
novo. Mas no mínimo é uma aventura. Você não gosta de aventuras? Você que só vê filmes de
ação? Faça de conta que está num filme: O mistério da Casa Verde.” (SCLIAR, 2008, p. 23).
26
É interessante que nesse livro está compilada a crônica “História de mãe”, datada de 08 de maio
de 1988, na qual Scliar menciona a novela Mandala e ao final homenageia sua mãe, Sara Scliar
(SCLIAR, 2012, p. 211-212). Em outro de seus livros, Meu filho, o Doutor: medicina e judaísmo na
História, na Literatura – e no Humor, Scliar dedica a obra a seus pais: “À memória de meus pais,
José e Sara Scliar” (SCLIAR, 2001, p. 5). Nessa dedicatória, ele se vale do itálico, opção presente
nos prefácios de seus romances A mulher que escreveu a Bíblia e Manual da paixão solitária.
33

Alude as vezes a cenas de filmes, retalhos. Crônicas formadas por


bricolagens mas no todo vendo o conjunto das crônicas à distância se vê um
brilho, certos pontos de brilho apontando nessa direção, reluzindo.

REFERÊNCIAS

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Coruja, Qorpo-Santo e Jacaré: 30 perfis heterodoxos. Porto Alegre, RS: L&PM,
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FISCHER, Luís Augusto (Org.). Moacyr Scliar. São Paulo: Global, 2004. (Coleção
Melhores Crônicas / Direção Edla van Steen)

HANCIAU, Nubia. Moacyr Scliar e a crônica. In: BERND, Zilá; MOREIRA, Maria
Eunice; MELLO, Ana Maria Lisboa de (Orgs). Tributo a Moacyr Scliar. Porto
Alegre, RS: EDIPUCRS, 2012. p. 111-125.
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primeiro romance. In: São Paulo: Folha de São Paulo, 28 fev. 2011, p. 5. (Seção
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PINTO, Manuel da Costa. Moacyr Scliar. In: ___________. Literatura brasileira
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SCHWARTZ, Adriano. A literatura do conflito: Moacyr Scliar fala sobre seus


“Contos Reunidos”. São Paulo: Folha de São Paulo, 04 fev. 1996, p. 5.
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34

______ (Org.). Leituras de escritor. 2. ed. São Paulo: Comboio de Corda, 2009.
(Coleção Leituras de escritor)
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