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A AMPLIAÇÃO DA EXCEÇÃO DA BOA-FÉ NORTEAMERICANA

A PAR DA EVOLUÇÃO DA EXCLUSIONARY RULE


Inês de Azevedo Camilo

SUMÁRIO:
Introdução
I. O contexto da good faith exception
1. A Fourth Amendment e a proteção de direitos fundamentais
2. A exclusionary rule em defesa da Fourth Amendment
3. A evolução da exclusionary rule
4. O efeito-à-distância e a expansão da exclusionary rule
II. A boa-fé enquanto exceção à exclusionary rule
1. A flexibilização da exclusionary rule
2. O nascimento da exceção: o caso United States v. Leon
3. Razão de ser da good faith exception
III. Análise da good faith exception: os requisitos
1. Conduta objetivamente razoável
2. O balanço de custos e benefícios
3. Os destinatários da dissuasão
IV. Consequências da expansão da good faith exception ao nível da proteção da Fourth
Amendment
V. A good faith exception norte-americana à luz do direito português
Conclusão
Bibliografia Citada
Jurisprudência Citada

RESUMO: Num equilíbrio frágil entre a aspiração à verdade e o respeito da legalidade, surgem
várias doutrinas tentado encontrar a melhor forma de balançar a proteção dos direitos
individuais e a descoberta da verdade no processo penal. É neste âmbito que se colocam a
exclusionary rule e a good faith exception, ambas prosseguindo o mesmo objetivo de eficácia da
prossecução criminal, sem, todavia, colocar em causa as proteções garantidas pela Fourth
Amendment. Constituem, porém, abordagens com efeitos práticos muito diferentes tanto para os
particulares, como para o próprio Estado.

1
PALAVRAS-CHAVE: Exceção da boa-fé; Regra de exclusão probatória; Dissuasão policial;
Buscas irrazoáveis; Direito à privacidade
LISTA DE ABREVIATURAS

art(s).: artigo(s)
cf.: confira, confronte
cit(s).: citado, citada, etc., cita-se; citação, citações
CPP: Código de Processo Penal
CPR: Civil Procedure Review
CRI: Constituição da República Italiana
CRP: Constituição da República Portuguesa
Ed.: Edição
e.g.: exempli gratia (por exemplo)
et al: et aliii (e outros)
EUA: Estados Unidos da América
i.e.: id est, isto é
n.: nota
n.º, n. os: número(s)
org.: organização, organizado por
p., pp.: página(s)
séc.: século
trad.: tradução
U.S.: United States
USSC: United States Supreme Court
v.g.: verbi gratia
vol., vols.: volume, volumes
v.: versus

INTRODUÇÃO
É ponto assente que a atividade probatória não pode ser exercida no processo penal sem
um mínimo de respeito e proteção perante as garantias de defesa e os direitos fundamentais dos
indivíduos. Não obstante, continuam a existir dúvidas sobre que tipo de limitações devem existir
e qual deverá ser a consequência legal da violação destas limitações.
Neste âmbito, a jurisprudência americana tem sido, nas décadas recentes, uma forte
influência noutros ordenamentos jurídicos, sendo um deles o ordenamento jurídico português.
Tal influência é especialmente notória no que concerne à teoria da inadmissibilidade da prova

2
ilícita na jurisprudência do United States Supreme Court, também denominada exclusionary
rule. A par desta, também a fruit-of-the-poisonous-tree-doctrine (ou teoria dos frutos da árvore
venenosa), e as exceções referentes à exclusionary rule que desta decorrem, têm tido um peso
significativo no direito processual português.
Nesse sentido, o presente estudo tem como objetivo analisar a origem, evolução e
eventual expansão da exceção da boa-fé enquanto corolário do próprio fundamento da
exclusionary rule. Tal demonstra-se essencial pois, embora a solução da exclusão probatória
tenha uma importância central no processo penal norte-americano, a exclusão de prova
ilicitamente obtida mantem-se controversa na jurisprudência do USSC, sendo que a abordagem
seguida a este propósito tem sofrido uma grande transformação nas últimas décadas.
Nesta matéria é imprescindível indagar sobre o objetivo da exceção da boa-fé,
percorrendo a sua evolução e confrontando-a com o seu propósito inicial à luz do case law
existente. A jurisprudência norte-americana do United States Supreme Court tem aqui um papel
central na medida em que, num sistema de common law como o dos Estados Unidos da
América, as construções jurisprudenciais de casos concretos convertem-se em precedentes para
outros tribunais perante casos semelhantes – é o chamado judge made rule.
Analisaremos então algumas das principais controvérsias associadas a uma aplicação da
good faith exception, com a devida alusão à exclusionary rule e ao vínculo entre estas duas
figuras jurídicas, fazendo também referência à própria Fourth Amendment.
Deste modo, irei proceder, em primeiro lugar, a uma análise da exclusionary rule e do seu
fundamento no contexto da Fourth Amendment, fazendo referência aos aspetos mais relevantes
da sua evolução, como o efeito-à distância. De seguida, irei abordar a good faith exception
enquanto exceção à referida regra de exclusão probatória, analisando o âmbito de aplicação
perante uma flexibilização da exclusionary rule e relacionando com o seu fundamento. Nesta
sequência, tratarei de seguida, de fazer um maior aprofundamento da good faith exception,
analisando os seus requisitos e características fundamentais. Examinarei ainda, as possíveis
consequências da expansão da exceção da boa-fé à luz dos direitos protegidos pela Fourth
Amendment. Por último, será também útil fazer referência ao Direito Português, equacionando
se uma exceção como a da boa-fé poderia sobreviver um ordenamento jurídico como o nosso.
Tentarei através da minha exposição analisar toda a lógica por detrás da good faith
exception, desde o seu fundamento, o modo se concretiza, os argumentos utilizados pela
jurisprudência a favor desta doutrina, o seu relacionamento com a exclusionary rule, até à sua
evolução e crescimento. O objetivo, será, portanto, analisar de modo crítico e objetivo algumas
das falhas ou pontos fracos apontados pelos críticos da good faith exclusion, avaliando a sua
eficácia e utilidade à luz dos objetivos prosseguidos.

3
I. O CONTEXTO DA GOOD FAITH EXCEPTION

A good faith exception, também por nós futuramente referida simplesmente como exceção
da boa-fé, encontra-se intrinsecamente relacionada com a exclusionary rule tanto como seu
corolário, como também como seu oposto.

De certa forma, podemos dizer que, de facto, estes dois regimes se complementam: a
aplicação de um implica necessariamente a exclusão da aplicação do outro. Ademais, ao mesmo
tempo que se trata de uma das exceções decorrentes desta regra exclusão, a exceção da boa-fé é
também uma decorrência do próprio fundamento da exclusionary rule. Isto é, originam do
mesmo objectivo-base: o equilíbrio entre a proteção das garantias de defesa processuais e o
princípio da descoberta da verdade dos tribunais.

Neste sentido, cabe fazer uma análise sucinta da regra de exclusão norte-americana e do seu
fundamento, de modo a melhor compreender a origem da própria exceção da boa-fé e de onde
decorre a necessidade de tal exceção.

1. A Fourth Amendment e a proteção de direitos fundamentais

A Fourth Amendment à Constituição norte-americana, é um dos direitos fundamentais


estabelecidos no sistema jurídico norte-americano, definindo um certo nível inviolável de
proteção a todo o tipo de intrusão infundada à privacidade dos seus particulares.

É definida na Constituição norte-americana como “The right of the people to be secure in


their persons, houses, papers, and effects, against unreasonable searches and seizures, shall
not be violated, and no Warrants shall issue, but upon probable cause, supported by Oath or
affirmation, and particularly describing the placed to be searched, and their persons or things
to be seized”1.

Como tal, “uma busca é considerada injustificada, a menos que seja efectuada de acordo
com um mandado baseado num achado judicial de causa provável” 2. Tal preceito constitucional
fundamenta-se na ideia de que os esforços dos tribunais e dos agentes da justiça para a

1
Traduzindo “O direito do povo a estar seguro nas suas pessoas, casas, papéis e bens, contra buscas e
apreensões irrazoáveis, não será violado, e nenhum Mandado de Segurança será emitido, mas por causa
provável, apoiado por Juramento ou afirmação, e descrevendo, em particular, os colocados para serem
revistados, e as suas pessoas ou bens a apreender”, Fourth Amendment to the Constitution of the United
States
2
Tradução livre da autora, no original de CAMMACK, 2013: 7 “a search is considered unreasonable
unless it is carried out pursuant to a warrant based on a judicial finding of probable cause”

4
descoberta da verdade e consequente punição dos responsáveis, não devem ser alcançados a
qualquer preço, principalmente à custa do sacrifício dos princípios fundamentais que servem de
base ao Direito dos Estados Unidos da América.

2. A exclusionary rule em defesa da Fourth Amendment

Apesar desta restrição ao Estado apenas a buscas e apreensões razoáveis, a Emenda é


omissa quanto à utilização das provas obtidas no âmbito de uma busca irrazoável. É neste
sentido que surge a argumentação em Weeks v. United States, em 1914, no sentido de defender
que as provas obtidas em violação da Fourth Amendment pelo Governo Federal e as suas
agências devem ser excluídas3.

A fundamentação de Weeks v. United States assenta, deste modo, na ideia já pré-concebida,


mas ainda não totalmente realizada, de que, a busca da verdade não pode colocar em causa
direitos constitucionais do arguido, nomeadamente a privacidade do domicílio e a reserva da
vida privada sob pena da violação da Fourth Amendment.

Concebe-se, assim, um sistema de proteção da privacidade dos indivíduos contra


intromissões ilegítimas e abusivas por parte do Estado no âmbito de atividades de investigação e
persecução de crimes protegida por uma regra de exclusão e assente numa previsão
constitucional.

Podemos desde já referir que, embora pudesse ser utilizado como argumento, o facto de a
exclusionary rule poder afetar a obtenção da verdade material, temos de nos lembrar que no
ordenamento jurídico norte-americano estamos perante um sistema adversarial, prevalecendo
aqui a busca de uma verdade formal.

Isto significa que a decisão do juiz será a favor da parte que melhor demonstrou os seus
argumentos no processo, e, nesse sentido, se houver uma violação das regras de obtenção de
provas, tal “não afetou a decisão do juiz enquanto responsável por fazer justiça, dado que o seu
dever continuava a ser o de decidir de acordo com o que foi provado e alegado no julgamento

3
Neste sentido, o USSC refere “se cartas e documentos privados puderem assim ser apreendidos e detidos
e utilizados como prova contra um cidadão acusado de um delito, a protecção da Quarta Emenda,
declarando o seu direito a estar seguro contra tais buscas e apreensões, não tem qualquer valor e, no que
diz respeito aos que são assim colocados, pode muito bem ser retirada da Constituição” (trad.), no original
“if letters and and private documents can thus be seized and held and used in evidence against a citizen
accused of an offense, the protection of the Fourth Amendment, declaring his right to be secure against
such searches and seizures, is of no value, and, so far as those thus placed are concerned, might as well
be stricken from the Constitution”, Ac. Weeks v. United States de 1914

5
pelas partes e não com base no que poderia ser considerado como uma verdade material fora do
desenvolvimento do debate judicial.”4.

3. A evolução da exclusionary rule

A exclusionary rule, tem, todavia, tido um desenvolvimento jurisprudencial complexo no


mínimo, sendo que o case law dos tribunais americanos tem sido, relativamente a certas
questões, significativamente destoante. Estas alterações na interpretação jurisprudencial tem
tido um papel central na delimitação do âmbito de aplicação da exclusionary rule e,
consequentemente, no nível de proteção concedido aos arguidos.

De facto, uma destas questões é, desde logo, a valoração da regra de exclusão probatória
enquanto direito constitucional. Embora tal já não seja o entendimento atual, como adiante
iremos elaborar, na altura em que esta regra surgiu, a exclusão era considerada como
constitucionalmente exigida pela própria Fourth Amendment. Isto significa que a própria
admissibilidade de provas ilegalmente obtidas constituiria uma violação da Constituição.

A plena incidência da regra de exclusão aos Estados Federados, porém, só ocorreu aquando
a decisão do caso Mapp v. Ohio, em 1961, onde o Supreme Court afirmou que a prova ilícita
obtida por agentes federais ou estaduais seria invariavelmente inadmissível, elevando, assim, a
regra de exclusão ao nível constitucional5.

Naturalmente, o USSC tem o poder de definir as circunstâncias em que os direitos


constitucionais podem ou não ser aplicados dentro de limites restritos e, portanto, “a
caracterização da regra como um direito constitucional ou como um recurso judicial afeta
profundamente o grau de controlo que os tribunais podem exercer sobre o âmbito e a aplicação
da regra.”6.

4. O efeito-à-distância e a expansão da exclusionary rule

Umas das mais importantes referidas decorrências do escopo da exclusionary rule foi a
fruit-of-the-poisonous-tree-doctrine (ou doutrina dos frutos da árvore venenosa). Com efeito, o

4
REYES ALVARADO, 2020
5
Cf. Ac. Mapp v. Ohio de 1961
6
Cf. Tradução livre da autora, no original de CAMMACK, 2013: 12 “The characterization of the rule as
either a constitutional right or a judicially fashioned remedy profoundly affects the degree of control
courts may exercise over the rule’s scope and application.”

6
United States Supreme Court, perante o caso Silverthorne Lumber Co v. United States7, em
1920, argumentou que o vício da prova primária se propaga aos seus frutos, determinando a
impossibilidade de utilização e valoração das provas secundárias, sendo que as provas que
colocam em causa direitos fundamentais protegidos constitucionalmente, acarretarão um efeito-
à-distância que torna inaproveitáveis qualquer prova que a elas se encontre causalmente
vinculada.

À luz desta doutrina, portanto, toda e qualquer prova obtida, como consequência causal da
violação da Fourth Amendment, será presumivelmente inadmissível, pois não faria sentido
proibir buscas despropositadas, se os frutos dessas buscas pudessem, ainda assim, assegurar as
condenações desejadas8.

O efeito-à-distância tem, deste modo, exatamente o mesmo propósito que a regra de


exclusão probatória: impedir a utilização de provas obtidas pelas entidades de prossecução
criminal com recurso a um uso abusivo e reprovável dos meios de produção de prova. Se assim
não fosse, a eficácia da tentativa de dissuasão de práticas ilegais ficaria debilitada.

II. A BOA-FÉ ENQUANTO EXCEÇÃO À EXCLUSIONARY RULE

1. A flexibilização da exclusionary rule

Contudo, e apesar do surgimento da dogmática do efeito-à-distância, a jurisprudência do


Supreme Court da regra de exclusão probatória sofreu, por volta da mesma altura, uma
reviravolta muito significativa. Ao mesmo tempo que a própria exclusionary rule ia ganhando
terreno e crescendo, também as suas limitações foram começando a ser delineadas, havendo
agora espaço para exceções à sua amplitude prática. Foram surgindo, neste contexto, cada vez
mais limitações que se desenvolviam em função do cumprimento (ou não) do fim prosseguido
pela regra de exclusão.

Contra-argumentava-se agora que o âmbito de aplicação genérico da regra de exclusão até


então empregue, nem sempre faria sentido à luz do objetivo em causa. O objetivo benéfico da
regra de exclusão – a proteção de direitos de privacidade e liberdade e prevenção de situações

7
Cf. Ac. Silverthorne Co v. United States de 1920
8
Cf. Neste sentido CAMMACK, 2013: 12 “os factos desse caso não definem o alcance total da regra de
exclusão da Quarta Emenda, uma vez que limitar a exclusão aos frutos imediatos da má conduta oficial
comprometeria seriamente se não viciasse totalmente a eficácia da regra" (trad.), no original “The USSC
has made clear, however, that the facts of that case do not define the full reach of the Fourth Amendment
exclusionary rule, since limiting exclusion to the immediate fruits of official misconduct would seriously
compromise if not entirely vitiate the rule’s effectiveness.”

7
abusivas de obtenção de provas através da dissuasão dos meios de prossecução criminal –
poderia ser suficientemente realizado através de uma prática mais específica, apenas relativa a
provas obtidas por violação flagrante ou deliberada de direitos.

O Tribunal começava agora a entender que, pragmaticamente, a regra de exclusão existe


porque, e apenas porque, dissuade as violações da Fourth Amendment e, como tal, a exclusão
deveria prevalecer apenas quando os benefícios da dissuasão excederem os custos de uma
supressão9.

Aos poucos foi começada a ser rejeitada a ideia de que a Constituição ou a necessidade de
integridade judicial implicava sempre a uma supressão de toda e qualquer prova decorrente da
conduta abusiva10. Nesta lógica, aquilo que não servisse o propósito da proteção concedida pela
exclusionary rule não justificava o custo da sua aplicação.

De acordo com o USSC em United States v. Calandra, em 1974, a exclusão não seria um
direito conferido pela Fourth Amendment, pois, nada no texto indiciava a obrigatoriedade de
uma exclusão nesse sentido.

Em vez disso, a exclusão seria uma solução destinada a efetivar esses direitos que eram
protegidos pela Emenda. Nas palavras do Supreme Court “a regra é um recurso judicial
destinado a salvaguardar os direitos da Fourth Amendment em geral através do seu efeito
dissuasor, em vez de um direito constitucional pessoal da parte lesada” 11.

Assim, gradualmente, foi-se retrocedendo a ampla afirmação de direitos da Fourth


Amendment que tinha sido previamente estabelecida em Mapp v. Ohio, usando esta nova
estabelecida lógica de dissuasão para abrir caminho para as exceções à regra de exclusão 12.

Foi à luz deste novo entendimento sobre a exclusionary rule como um recurso judicial
ligado à dissuasão de condutas abusivas, ao invés de uma proteção constitucional, que o United
States Supreme Court desenvolveu a good faith exception13.
9
E.g. Ac. United States v. Calandra de 1974
10
Cf. no mesmo sentido MCDONALD HENNING, 2016: 290 “o Tribunal, nos casos de excepção de boa fé,
deixou de ver a supressão como parte intrínseca da Quarta Emenda para se preocupar com os custos
sociais da regra de exclusão” (trad.), no seu original “the Court in the good faith exception cases shifted
from viewing suppression as an intrinsic part of the Fourth Amendment to concerns about the social
costs of the exclusionary rule”
11
Tradução livre da autora, no original Ac. United States v. Calandra de 1974 “the rule is a judicially
created remedy designed to safeguard Fourth Amendment rights generally through its deterrent effect,
rather than a personal constitutional right of the party aggrieved”
12
YAGLA, 1987: 176
13
Cf. Ainda neste sentido YAGLA, 1987: 179 refere que “antes de qualquer ataque frontal poder ser
lançado contra a regra de exclusão no que respeita à exceção de boa-fé, era necessário que o Supremo
Tribunal soltasse lentamente os fundamentos constitucionais que tinham vindo a apoiar a regra de
exclusão tal como existia sob a sua decisão no Mapp” (trad.), no original “Before any frontal assault
could be launched against the exclusionary rule as regards the good faith exception, it was necessary for
the Supreme Court to slowly loosen the constitutional underpinings which had come to support the

8
2. O nascimento da exceção: o caso United States v. Leon

Com efeito, embora a exclusionary rule tenha começado por ser uma parte fundamental da
proteção constitucional, o seu papel diminuiu consideravelmente nas últimas décadas do séc.
XX, particularmente pelo facto de a dissuasão ter passado a ser a única razão para a existência
de exclusão probatória por parte do United States Supreme Court, o que logicamente levou a um
enfraquecimento da sua dimensão de aplicação.

Face a este propósito, começava-se agora a colocar em confronto certos casos em que se
questionava se a exclusão em causa efetivamente iria cumprir com esta finalidade. Isto é, se a
supressão daquela prova no caso iria, idealmente, conduzir a um desencorajamento deste tipo de
condutas abusivas – estes casos dariam lugar às exceções à exclusionary rule.

United States v. Leon, em 1984, foi um desses casos onde se debateu a questão de saber se a
regra de exclusão probatória norte-americana deveria ser modificada por uma exceção de boa-fé
– linha de pensamento já mencionada previamente em outras jurisprudências, mas nunca
diretamente.

Neste caso jurisprudencial, estava em questão uma busca domiciliária e de automóveis e


consequente apreensão de drogas, com base num mandado que não se baseava numa causa
provável (como é exigido pela Fourth Amendment), mas em cuja validade o agente policial, que
obteve as provas ilícitas, erroneamente acreditava.

Aqui a problemática seria, então, decidir se deveria a exclusionary rule ser modificada no
sentido de não impedir a admissão de provas apreendidas de boa-fé e de forma razoável, com
base num mandado de busca que seja posteriormente considerado defeituoso.

O Supreme Court respondeu, aqui, no sentido de que, no contexto da Fourth Amendment, a


regra de exclusão pode ser modificada moderadamente sem pôr em causa a sua capacidade de
desempenhar as suas funções previstas14. A função prevista a que o U.S. Supreme Court se
referia é, exatamente, o já referido objetivo de dissuadir as violações de direitos da Fourth

exclusionary rule as it existed under its decision in Mapp.”


14
Nas palavras do USSC no Ac. United States v. Leon de 1984 “A aplicação da regra de exclusão deve
continuar sempre que uma violação da Quarta Emenda tenha sido substancial e deliberada, mas a
abordagem de equilíbrio que evoluiu ao determinar se a regra deve ser aplicada em diversos contextos -
incluindo julgamentos criminais - sugere que a regra deve ser modificada para permitir a introdução de
provas obtidas por agentes que confiem razoavelmente num mandado emitido por um magistrado
destacado e neutro.” (trad.), no seu original “Application of the exclusionary rule should continue where
a Fourth Amendment violation has been substantial and deliberate, but the balancing approach that has
evolved in determining whether the rule should be applied in a variety of contexts -- including criminal
trials -- suggests that the rule should be modified to permit the introduction of evidence obtained by
officers reasonably relying on a warrant issued by a detached and neutral magistrate.”

9
Amendment. Objetivo este que então deveria ser ponderado com os custos sociais substanciais
exigidos pela aplicação inflexível da sanção de exclusão que inevitavelmente iriam pôr em
causa o apuramento da verdade.

Isto porque, logicamente, violações substanciais e deliberadas exigem uma sanção


severa de modo a dissuadir as infrações policiais, mas na ótica do USSC, seria pouco provável
que tal dissuasão seja significativa quando os agentes policiais tenham agido de boa-fé
objetivamente razoável, em conformidade com um mandado. Esta improbabilidade seria ainda
maior, se a prova ilícita decorrer de um mandado insuficiente ou inválido provocado pelo
exercício indevido dos magistrados, e, portanto, não do exercício dos agentes.

A exceção da boa-fé determinaria, como defende a jurisprudência de Leon, que as


situações em que a prova, em princípio ilícita por violar a Fourth Amendment, baseada num
mandado inválido, poderá ser considerada legítima e válida quando o agente policial
responsável pela sua obtenção tenha agido de boa-fé, acreditando equivocadamente que o seu
agir estava suportado pela lei15.

A premissa aqui será, então, que um agente policial que age de boa-fé não poderia ter, e
nesse sentido, não terá no futuro, o seu comportamento alterado pela exclusão porque a ilicitude
da sua conduta não decorreu da sua falta de diligência ou cuidado.

O Supremo Tribunal Norte-Americano concluiu, assim, que quando os agentes agiam


de boa-fé objetivamente razoável e com base num mandado, haveria um enfraquecimento
particularmente notório da lógica de dissuasão. Como tal, “penalizar o agente pelo erro do
magistrado, e não o seu, não pode logicamente contribuir para a dissuasão das violações da
Fourth Amendment”16.

Nestas circunstâncias, a supressão de provas obtidas nos termos de um mandado só


deveria ser ordenada nos casos invulgares em que a exclusão efetivamente promoverá o objetivo
da regra de exclusão.

3. Razão de ser da good faith exception

Do exposto acima pode concluir-se que, a tese sustentada pela good faith exception,
assentará, então, na situação em que o agente obtém provas de forma irregular, mas fá-lo na

15
Cf. CAMMACK, 2013: 19
16
Tradução livre da autora, no original Ac. United States v. Leon de 1984 “Once the warrant issues, there
is literally nothing more the policeman can do in seeking to comply with the law, and penalizing the
officer for the magistrate's error, rather than his own, cannot logically contribute to the deterrence of
Fourth Amendment violations”,

10
convicção válida e razoável de que estava a agir em conformidade com a lei e que, portanto,
determina que as provas não deverão ser suprimidas.

Esta solução compatibiliza-se com o objetivo e fundamentação da exclusionary rule na


medida em que, a supressão de provas ilícitas obtidas nestas circunstâncias não será uma
decisão suscetível de ser desencorajada, pelo facto de ter sido praticada de boa-fé.

É esta a razão de ser da good faith exception: a ausência de necessidade de dissuasão da


conduta policial incorreta de obtenção de provas no caso concreto.

Isto porque, nestes casos específicos, as forças de investigação tomam todas as medidas
razoáveis e necessárias e, como tal, a supressão de provas não serviria o seu objetivo último e o
efeito prático da exclusão seria nulo pela ausência de uma relação substancial entre a referida
supressão e a prova em causa 17. A supressão não estará, pois, relacionada com a natureza
duvidosa ou questionável da prova, mas sim com o mecanismo de persuasão ao cumprimento de
determinadas disposições constitucionais em causa.

Para além disso, e como foi argumentado em Leon, mesmo quando efetivamente a eventual
exclusão probatória possa ter um efeito dissuasivo ou criador de incentivos à adesão das ordens
da Fourth Amendment, tal não significa necessariamente que deva haver uma supressão:
“quando um agente, agindo de boa-fé objetiva, obteve um mandado de busca de um juiz ou
magistrado e agiu dentro do seu âmbito, não há, na maioria dos casos, nenhuma ilegalidade
policial e, portanto, nada a dissuadir”18.

Neste sentido, não deverá ser apenas a existência de uma possível dissuasão que
determinará a aplicação ou não da exclusionary rule. Há uma multiplicidade de elementos que
se relacionam com os requisitos da good faith exception e que analisaremos de seguida.

III. ANÁLISE DA GOOD FAITH EXCEPTION: OS REQUISITOS

17
No mesmo sentido MILLER, 1984: 195 “O objetivo da regra de exclusão é dissuadir a polícia de
comportamento inconstitucional. Quando a regra não tem efeito dissuasor, uma vez que não é um
requisito constitucional, não deve ser implementada. Quando tiver sido emitido um mandado de detenção
devidamente autorizado, que posteriormente seja declarado inválido, a regra não tem efeito dissuasor e,
por conseguinte, não deve ser aplicada.” (trad.), no original “The purpose of the exclusionary rule is to
deter the police from unconstitutional behavior. When the rule has no deterrent effect, since it is not a
constitutional requirement, it should not be implemented. When there has been a duly authorized facially
valid warrant which is later declared invalid, the rule has no deterrent effect, and thus, should not be
given force”,
18
Tradução livre da autora, no original Ac. United States v. Leon de 1984 “when an officer acting with
objective good faith has obtained a search warrant from a judge or magistrate and acted within its scope
there is in most cases no police illegality and thus nothing to deter”,

11
1. Conduta objetivamente razoável

Como referido pelo USSC, em United States v. Leon, “o objetivo dissuasivo da regra de
exclusão pressupõe necessariamente que a polícia se tenha envolvido numa conduta intencional,
ou no mínimo negligente. Por essa razão, quando a conduta do agente for objetivamente
razoável, a exclusão das provas não irá favorecer de forma apreciável os fins da regra de
exclusão”19.

Daqui se extrai que, de modo a afastar a regra de exclusão probatória, e, consequentemente,


aplicar a good faith exception, deverá existir uma conduta ‘objetivamente razoável’ por parte do
agente, agindo este em boa-fé.

Ora, a boa-fé tradicionalmente é um termo indicativo de um estado mental subjetivo, ou


seja, se o agente acreditava que o mandado era válido. Contudo, e embora o termo seja um
pouco enganoso, a avaliação da boa-fé não dependerá da apreciação do estado mental subjetivo
do agente. Depende sim de uma simples pergunta: era razoável que o agente atuasse daquela
forma diante das circunstâncias?

Como tal, o tribunal deveria inquirir se, por exemplo, o mandado era de tal forma
superficialmente defeituoso que o oficial deveria ter reconhecido a sua inadequação, ou, se o
mandado era de tal forma desprovido de causa provável que uma crença na sua validade seria
irresponsável.

É importante ainda sublinhar que, em situações em que o erro sobre o mandado decorra da
própria conduta negligente ou mal-intencionada do agente, ou, em situações em que existiu
fabrico ou exagero de factos de modo a persuadir o juiz a emitir um mandado, não poderá
existir uma exceção de boa-fé como é natural.

Portanto, o que é que poderá ser considerado um erro objetivamente razoável? O USSC
nunca deu uma resposta clara a esta questão. Ao invés, foi simplesmente adicionando novos
tipos de erro ao catálogo através da jurisprudência, o que gera uma grande ambiguidade porque
dependerá sempre do entendimento do tribunal em questão, muitas vezes também se
confundindo a linha entre o objetivo e subjetivo.

2. O balanço de custos e benefícios


19
Tradução livre da autora, no original Ac. United States v. Leon de 1984 “The deterrence purpose of the
exclusionary rule necessarily assumes that the police have engaged in willful, or at the very least
negligent, conduct. For that reason, where the officer’s conduct is objectively reasonable, excluding the
evidence will not further the ends of the exclusionary rule in any appreciable way”

12
Para além, de uma conduta objetivamente razoável, o Supremo Tribunal Norte-Americano
refere que, como “a aplicação inflexível da sanção de exclusão para impor ideais de retidão
governamental impediria inaceitavelmente a função de apuramento da verdade do juiz” 20, a
aplicabilidade da regra de exclusão deve ser determinada através de uma ponderação dos
benefícios dissuasivos da exclusão contra os custos em termos de provas perdidas, como já
anteriormente referido em Calandra.

Isto significa que, só haverá lugar a uma aplicação da exclusionary rule se, no caso em
concreto, os custos associados a supressão de provas superarem os benefícios de uma potencial
dissuasão da má conduta policial. Explicando noutros termos: se uma redução do princípio da
descoberta da verdade e da prossecução criminal pode ser justificada pela proteção efetuada aos
direitos protegidos pela Fourth Amendment.

Na prática, isto significa que o resultando deste balanço será a admissão das provas. Desde
logo, porque normalmente estarão em causa simples erros de conduta e não violações gravosas a
direitos fundamentais. Como tal, “quando se trata de erros, a exclusão é exagerada. A regra de
exclusão tem um pesado custo: suprime provas fiáveis, coloca os culpados em liberdade e
prejudica a reputação pública dos tribunais”21.

No caso de se poder cumprir o pressuposto do desincentivo destas condutas abusivas


sem existir uma exclusão da prova, então esta deverá ser admitida. Isto porque, a prevenção,
muitas vezes, consegue ser alcançada através da imposição de sanções administrativas, ou
mesmo penais, àqueles que excedem os limites do exercício das suas funções, sendo esta forma
gravosa para o processo. Haveria, neste sentido, mais consequências negativas do dever do
Estado na repressão de crimes, do que benefícios que derivariam do evitar que estas condutas
irregulares pudessem ser repetidas futuramente 22.

Para além disso, há ainda outra argumentação relevante neste ponto: a natureza da
exclusionary rule. Sendo que, a exclusionary rule tem a natureza de um remédio judicial, e não
de um comando constitucional, é ónus do juiz justificar a expansão da proteção conferida 23.

20
Tradução livre da autora, no original Ac. United States v. Payner de 1980 “unbending application of
the exclusionary sanction to enforce ideals of governmental rectitude would impede unacceptably the
truth-finding functions of judge”
21
Tradução livre da autora, no original de “Toward a General Good Faith Exception”, 2013: 782 “ when it
comes to mistakes, exclusion is overkill. The exclusionary rule exacts a heavy toll: it suppresses reliable
evidence, sets the guilty at large, and impairs the public reputation of the courts”
22
Cf. REYES ALVARADO, 2020
23
Cf. Mais neste sentido em “Toward a General Good Faith Exception”, 2013: 782 “Mesmo que a
exclusão se mantivesse apenas nos tribunais nacionais, este fardo seria pesado: regras que mantêm provas
relevantes e fiáveis fora do tribunal não deveriam ser criadas levianamente nem interpretadas de forma
ampla, pois estão em derrogação da procura da verdade. Mesmo o Congresso, armado com poder

13
Portanto, a questão será se a necessidade de dissuasão adicional é tão imperiosa que
justifica um custo-benefício que acaba por ser desequilibrado para a prossecução criminal,
colocando em causa o propósito do processo penal. Pelo menos, quanto a erros que não sejam
violações gravosas da Fourth Amendment, a resposta do Supreme Court parece clara no sentido
de que não se justificará. Na visão atual do USSC, “não pode haver exclusão sem dissuasão, e
os benefícios de dissuasão devem compensar os custos da exclusão” 24.

3. Os destinatários da dissuasão

Aplicar a exceção da boa-fé coloca uma questão preliminar de máxima importância: quem
deverá ser o destinatário da referida dissuasão? Noutras palavras: a quem é que é exigida a
conduta objetivamente razoável?

Esta questão mantém-se até hoje por responder, levantando algumas dúvidas a seu respeito,
apesar de ser comum afirmar-se que a dissuasão respeita a apenas a má conduta policial, e que
apenas abusos praticados por estes serão tidos em conta. Até ao longo do nosso trabalho
referimos muitas vezes as forças policiais como destinatário da dissuasão. Contudo, a lógica da
dissuasão é muito mais complicada.

De facto, em todos os casos jurisprudenciais em que a dúvida se levantou, o Supreme


Court considerou a alegação de dissuasão não policial pouco persuasiva e decidiu contra, sendo
que a ausência de dissuasão policial foi determinante para o resultado. Mas isto não significa
necessariamente que outro tipo de dissuasão não policial não pode ser relevante. A única coisa
que este historial prova é que os casos avaliados envolviam geralmente fracas reivindicações de
dissuasão para agentes não policiais.

É de referir, desde já, que outros atores institucionais, como funcionários judiciais,
legisladores ou magistrados, desempenham sempre um papel relevante no cálculo da dissuasão.

expresso para aplicar a Décima Quarta Emenda, só pode impor medidas corretivas aos Estados depois de
fazer uma demonstração rigorosa da sua necessidade. Os tribunais federais, incapazes de reivindicar
qualquer mandado textual deste tipo para escorar a Constituição, dificilmente devem ser mantidos a um
nível inferior.” (trad.), no seu original “Even if exclusion held sway only in the national courts, this
burden would be a heavy one: rules that keep relevant and reliable evidence out of court should be
neither lightly created nor expansively construed, for they are in derogation of the search for truth. But
the lift is heavier still because the federal rule of exclusion binds the states. Even Congress, armed with
express power to enforce the Fourteenth Amendment, may impose remedial measures upon the states
only after making rigorous demonstration of their necessity. Federal courts, unable to claim any such
textual warrant for shoring up the Constitution, should hardly be held to a lower standard.”
24
Tradução livre da autora, no seu original de TWOMBLY, 2013: 813 “There can be no exclusion without
deterrence, and the deterrence benefits must outweigh the costs of exclusion”,

14
Não obstante, na prática, estes atores institucionais encontram-se fora do alcance da lei e da
dinâmica dos tribunais de recurso e da polícia.

Porém, o facto de os tribunais ainda não terem sido persuadidos no sentido de aceitar
uma alegação de dissuasão neste sentido, não significa que não possam ser, até porque nada o
impede. Assim sendo, “o ponto conceptual continua a ser que os tribunais devem considerar
todos os atores institucionais para avaliar o papel dissuasor da regra de exclusão.” 25.

Ainda assim, pode retirar-se da jurisprudência até ao momento que normalmente o


destinatário tomado em consideração são, maioritariamente, as forças policiais, tanto enquanto
entidade coletiva, como enquanto agentes individuais, também por ser o tipo de casos mais
frequentemente apresentados.

IV. CONSEQUÊNCIAS DA EXPANSÃO DA GOOD FAITH EXCEPTION AO


NÍVEL DA PROTEÇÃO DA FOURTH AMENDMENT

Tendo em conta todo o percurso que fizemos até aqui, perguntamos agora se existem e
quais serão as consequências ao nível da proteção conferida pela Fourth Amendment, colocando
em perspetiva alguns dos argumentos mais importantes contra a good faith exception.

O objetivo aqui não será tentar impingir visões próprias a um ordenamento estrangeiro
que tem toda a legitimidade para conduzir o processo penal da maneira como melhor lhe
convier. Trata-se apenas de um pequeno contributo à análise crítica deste instituto que
demonstra tanta significância no sistema jurídico norte-americano, de modo a poder colmatar
algumas falhas que possam existir.

Como é natural, sempre que o âmbito da regra de exclusão é modificado no interesse de


uma aplicação efetiva da lei, haverá necessariamente uma mudança no delicado equilíbrio entre
o direito à privacidade e o direito à segurança, a estarmos protegidos contra criminalidade.

A existência da Fourth Amendment reflete a crença do legislador de que o combate ao


crime nunca deverá ultrapassar o direito à privacidade do indivíduo. Neste sentido, o objetivo
inicial foi balançar o interesse da segurança pública e o interesse privado da privacidade, só se
permitindo uma violação por parte do Estado quando feito de maneira razoável. Uma maneira
razoável consubstanciar-se-á, pois, em ser demonstrada existência de causa provável e de um
mandado de busca válido 26.
25
Tradução livre da autora, no original de KERR, 2011: 1087 “the conceptual point remains that courts
must consider all of the institutional actors to assess the deterrent role of the exclusionary rule”
26
YAGLA, 1987: 187

15
Muitos argumentam que, com a evolução da jurisprudência nestas matérias, foi-se
perdendo de vista a intenção do legislador de proteger direitos individuais, sendo cada vez mais
notória a negligência da eficácia da exclusionary rule enquanto reivindicadora desses direitos.

A doutrina da good faith exception representa não só uma mudança crucial na


construção da exclusionary rule, como também uma posição ideológica sobre o
desenvolvimento doutrinário da Fourth Amendment, consequentemente também limitando o seu
conteúdo27.

Ainda mais, afirma-se que “a interpretação do Tribunal sobre o objetivo da regra passou
de uma consideração sobre se a regra de exclusão é um remédio adequado para as violações da
quarta emenda, para determinar se dissuade a conduta ilegal da polícia "castigando" o oficial
ofensor.”28. O propósito da exclusão não deverá ser castigar uma determinada conduta, mas sim
restringir a força do Estado como um todo, impedindo que o sistema judiciário ajude a dar efeito
a violações da Fourth Amendment, utilizando provas “manchadas”.

Esta linha de argumentação é compreensível, tendo em conta, que o Supremo Tribunal


dos EUA tem dado uma margem de manobra significativamente cada vez maior ao governo
para utilizar provas obtidas em violação da Fourth Amendment. Há um claro favorecimento dos
órgãos de prossecução penal em geral, em detrimento de uma desproteção das vítimas de
violações constitucionais.

Não se coloca aqui em causa a validade e importância de uma exceção como a da boa-
fé. Apenas se questiona o modo de emprego, eventualmente até abusivo, desta argumentação
em prejuízo de valores e direitos que inicialmente eram visados pela proteção da exclusionary
rule – proteção esta que anteriormente era considerada constitucional como é importante não
esquecer.

A good faith exception desenrolou-se de tal maneira desmedida que, o que começou
como uma exceção, e, portanto, com um âmbito inerentemente diminuto, hoje em dia se
encontra facilmente aplicável, sendo que, em jurisprudência mais recente, só uma conduta
deliberada, imprudente ou grosseiramente negligente irá desencadear a exclusão de provas 29.
27
BANTEKA, 2020: 17
28
Tradução livre da autora, no original de YAGLA, 1987: 187 “The Court's interpretation of the rule's
purpose has shifted from consideration of whether the exclusionary rule is an appropriate remedy for
fourth amendment violations to whether it deters unlawful police conduct by "punishing" the offending
officer”,
29
Cf. Ainda neste sentido BANTEKA, 2020: 17 “O Tribunal passou da solução de exclusão óbvia e
automática, para uma grande solução mais restrita reservada aos casos excecionais de polícia flagrante
culpabilidade sob uma nova norma de razoabilidade que está desligada da Quarta Emenda à norma de
razoabilidade.” (trad.), no seu original “The Court has moved from the obvious and automatic
exclusionary remedy, to a much more restricted remedy reserved for exceptional cases of egregious
police culpability under a new reasonableness standard that is disconnected from the Fourth Amendment
reasonableness standard”

16
Ora, compreendemos a importância e relevância da prossecução da descoberta da
verdade, pois, de facto, não raramente, a aplicação da regra de exclusão leva à paralisia da
administração da justiça, uma vez que muitos casos não poderão ser devidamente resolvidos
sem as provas excluídas, o que, por sua vez, leva ao não cumprimento pelo Estado do seu dever
de perseguir e punir o crime.

Porém, o Supreme Court demonstra uma certa visão sobre a aplicação da exclusionary
rule apenas como um meio para um fim, quase não valendo por si própria. Tal não deixa de
transparecer uma certa indiferença, ou, pelo menos uma grande flexibilização, dos valores
constitucionais protegidos pela Fourth Amendment, abandonando-se completamente a lógica
inicial que deu origem à exclusionary rule, sem, contudo, dar nenhuma explicação para tal.

Esta questão só se levanta, tendo em conta o contexto inicial onde se desenvolveu a


regra de exclusão probatória, onde a prioridade era, de facto, efetivar uma proteção dos direitos
previstos pela Fourth Amendment.

A consequência, como já vimos, é quase de uma subversão da exclusionary rule aos fins
do Estado da prossecução criminal quase a todo e qualquer custo.

Há que reconhecer que o dever de resolver crimes e punir os respetivos responsáveis


destes só poderá existir, contudo, dentro dos limites próprios de um Estado de Direito. Assim
sendo, muitos ainda defendem que “as autoridades policiais e judiciais não estão autorizadas a
realizar o seu trabalho a qualquer preço e que, em caso algum, podem recorrer aos mesmos
métodos utilizados por aqueles que enfrentam.”30.

Afinal, não podemos deixar de nos esquecer que a obrigação fundamental das
autoridades policiais e judiciais deverá ser sempre respeitar e preservar o Estado de Direito. Não
se pode negar, a importância da penalização dos criminosos de modo a proteger a sociedade,
sendo inegável que o Estado tem um direito a perturbar a privacidade dos indivíduos se tal se
demonstrar necessário de modo a fazer cumprir as leis penal.

Não obstante, parece até contraproducente a certo ponto, que tal seja feito a custo da
desproteção dos próprios cidadãos contra possíveis abusos por parte de funcionários do Estado.
Tal é inevitável quando se permite que provas proibidas tenham valor judicial em situações que
não deviam, porque o Estado parece estar a incentivar, ou pelo menos desvalorizar, atitudes
abusivas, tendo apenas em vista o combate ao crime.

É impossível prever exatamente o impacto que a good faith exception irá ter daqui em
diante relativamente à Fourth Amendment. Não obstante, penso que é seguro afirmar sem

30
Cf. REYES ALVARADO, 2020

17
receios que uma expansão inconsequente e exponencial da exceção da boa-fé, seguramente irá
colocar em causa o âmbito de proteção essencial desta Emenda, não nos podendo esquecer que
há limites que nunca deverão ser ultrapassados.

V. A GOOD FAITH EXCEPTION NORTE-AMERICANA À LUZ DO


DIREITO PORTUGUÊS

Apesar da disparidade entre o sistema de common law e civil law, é possível reconhecer
que, ainda assim, a jurisprudência portuguesa, tem sofrido uma influência a certo nível da
jurisprudência norte-americana, especialmente no que concerne à aceitação do efeito-à-distância
e às exceções à regra de exclusão probatório.

Neste contexto, faz sentido equacionar-se se uma exceção deste tipo poderia sobreviver
num ordenamento jurídico com o português, especificamente com o conteúdo atual da good
faith exception que acabámos de analisar.

Ora, podemos adiantar desde já, que, da nossa perspetiva, não nos parece muito
plausível tal transposição da regra de boa-fé norte-americana, dada o contexto legal que iremos
agora referir sucintamente.

Desde logo, tendo em conta a previsão legal do artigo 126.º n. º3 do CPP relativo aos
métodos proibidos de prova: “Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não
podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na
correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.”.

Daqui podemos, desde já, extrair que a lei portuguesa proíbe expressamente as provas
que violem ilicitamente a privacidade, sendo que as proibições de prova dão lugar a provas
nulas (art. 32.º, n. º8 CRP).

Destas situações excluem-se como refere o artigo 126.º, n, º3 em “ressalvados os casos


previstos na lei”, situações em que o órgão de polícia criminal pode efetuar revistas e buscas
sem mandado da autoridade judiciária (artigo 174.º CPP).

São estes os referidos casos: situações onde existam fundados indícios da prática
iminente de crime que ponha gravemente em risco a vida ou a integridade física no âmbito de
terrorismo ou criminalidade violenta (alínea a); situações de consentimento documentado do
visado (alínea b) e parte final do n. º3, do art. 126.º); e detenção em flagrante delito por crime

18
punível com pena de prisão (alínea c) 31. Toda e qualquer prova que viole a intimidade da vida
privada fora deste âmbito será, portanto, considerada nula.

A conjugação do art. 126.º, n.º 3 CPP e do art. 32.º, n.º 8 CRP determina então que uma
prova obtida intromissão na vida privada será sempre nula, e como tal, não poderá ser utilizada,
a não ser que o indivíduo em causa consinta em tal.

Assim sendo, não nos parece possível que diante tal proteção existente do direito à
privacidade no ordenamento jurídico português se pudesse coadunar com o conteúdo atual na
jurisprudência americana. Contudo, tal não significa que, eventualmente, com as adaptações
necessárias e dentro dos moldes certos, esta possibilidade não pudesse equacionar-se. Por
enquanto, porém, tal realidade parece distante.

CONCLUSÃO

A problemática da exclusionary rule e da good faith exception assenta,


fundamentalmente, no estabelecimento dos limites do âmbito de aplicação de cada uma destas
doutrinas. A questão centra-se, mais precisamente, no fundamento central do objetivo das
proibições probatórias no Direito Norte-Americano e da Fourth Amendment.

A evolução da exclusionary rule na jurisprudência americana e a sua completa


desconstitucionalização enquanto proteção, marcaram fortemente o percurso percorrido pela
good faith exception – existindo aqui uma relação de causa-efeito entre os dois fenómenos. Esta
desconstitucionalização decorre, pois, da consideração de que a Constituição não requere
necessariamente essa exclusão, havendo uma mudança do objetivo do instituto das proibições
de prova.

De facto, se o objetivo das proibições probatórias é orientar a conduta dos funcionários


encarregados de obter provas, dissuadindo-os de as obter através da violação dos direitos
fundamentais, é compreensível que a consequência de tais ações abusivas e impróprias seja a
aplicação de uma sanção ao infrator, que pode ser de natureza administrativa, nos casos mais
pequenos, ou mesmo criminal, nas hipóteses mais graves.

31
PINTO DE ALBUQUERQUE, 2008: 473

19
Naturalmente, privilegiar-se-á a aplicação de sanções administrativas ou penais sobre a
aplicação da regra de exclusão, com base na ponderação entre o benefício da determinação e o
prejuízo que a sua utilização causaria no processo.

Contudo, existirá sempre uma desproporção dos interesses concorrentes: por um lado, o
objetivo de dissuadir os agentes do Estado de violarem a Constituição no decurso das suas
atividades de recolha de provas, e por outro, o interesse do Estado em prosseguir os crimes e
punir os responsáveis.

Se, pelo contrário, se assumir que o propósito das proibições probatórias deve ser,
fundamentalmente, garantir o respeito pelos direitos fundamentais e, desta forma, proteger os
cidadãos dos abusos que agentes do Estado possam cometer no desenvolvimento da sua
atividade probatória, a única consequência possível – quando se demonstra que a prova foi
obtida em violação das normas constitucionais – é a sua exclusão do debate judicial. Dá-se,
assim, prioridade ao dever de respeito pelos direitos fundamentais dos indivíduos sobre o dever
de investigação e de punição de crimes.

A questão aqui é que esta mudança de visão sobre o fundamento da exclusionary rule
acabou por se traduzir numa certa aversão à exclusão probatória dos meios de prova ilegais, o
que consequentemente influenciou fortemente a evolução e expansão da good faith exception.

Existe aqui uma interdependência entre estas duas doutrinas numa mesma lógica de
delimitação das situações passíveis de exclusão probatória, sendo que a expansão de uma
implicará necessariamente a diminuição do espaço de aplicação da outra.

Perante o crescente peso da exceção da boa-fé é, contudo, importante não esquecer que
existem aqui dois princípios concorrentes, ambos válidos e necessários para uma sociedade justa
e livre e, como tal, deverá existir um compromisso entre ambos os princípios.

Torna-se crucial, portanto, que se tracem limites invioláveis em torno da Fourth


Amendment, de modo a que os objetivos de prossecução penal do Governo não deturpam e
coloquem em causa as garantias dos cidadãos conquistadas com grande custo e esforço.

BIBLIOGRAFIA CITADA

De livros:

20
ALBUQUERQUE, Paulo Pinto de,
(2008) Comentário do código de processo penal à luz da Constituição da República e da
Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª ed., Lisboa: Universidade Católica

De artigos em obras coletivas:


CAMMACK, Mark E.,
(2013) “The United States: the rise and fall of the constitutional exclusionary rule”, in: S.C.
Thaman (coord.), Exclusionary Rules in Comparative Law Dordrecht/Heidelberg/New
York/London: Springer, pp. 3-32

REYES ALVARADO, Yesid,


(2020) “Proibições de prova nos sistemas de tendência inquisitiva e adversarial”, in: Kai Ambos
e Ezequiel Malarino (coord.), Fundamentos de Direito Probatório em Matéria Penal, São
Paulo: Tirant lo Blanch, pp. 143-174

De artigos on-line:
BANTEKA, Nadia,
(2020) Police Ignorance and (Un)reasonable Fourth Amendment Exlcusion, Vanderbilt Law
Review, disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3688626
(consultado em 30/01/2022)

KERR, Orin S.,


(2011) Good Faith, New Law, and the Scope of the Exclusionary Rule, 99 Georgetown Law
Journal 1077, disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1675115
(consultado em 30/01/2022)

MILLER, Jeremy M.,


(1984) The Good Faith Exception to the Exclusionary Rule: Leon and Sheppard in Context¸
Criminal Justice Journal, Vol. 7, disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?
abstract_id=926189 (consultado em 30/01/2022)

HENNING, Karen McDonald,


(2016) “Reasonable Police Mistakes: Fourth Amendment Claims and the “Good Faith”
Exception After Heien, St. John’s Law Review, Vol. 90, n.º 2, disponível em ""Reasonable"
Police Mistakes: Fourth Amendment Claims and the "Good Fa" by Karen McDonald Henning
(stjohns.edu) (consultado em 30/01/2022)

21
YAGLA, Carolyn A.,
(1987) The Good Faith Exception to the Exclusionary Rule: The Latest Example of “New
Federalism” in the States, Marquette Law Review, Vol. 71, Issue 1, Outono de 1987, disponível
em "The Good Faith Exception to the Exclusionary Rule: The Latest Example " by Carolyn A.
Yagla (marquette.edu) (consultado em 30/01/2022)

(2013) Toward a General Good Faith Exception, Harvard Law Review, Vol. 127, n.º2,
disponível em vol127_good_faith_exception.pdf (harvardlawreview.org) (consultado em
30/01/2022)

JURISPRUDÊNCIA CITADA

Estados Unidos da América


U.S. v. Weeks, 232 U.S. 383 (1914)
U.S. v. Silverthorne Co, 251 U.S. 385 (1920)
Mapp. v. Ohio, 367 U.S. 643 (1961)
U.S. v. Calandra, 414 U.S. 338 (1974)
U.S. v. Leon, 468 U.S. 897 (1984)

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