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DA BOA-FÉ NORTE-AMERICANA
A PAR DA EVOLUÇÃO DA
EXCLUSIONARY RULE
Nº: 57133
2020/2021
Resumo:
Palavras-chave:
Abstract:
In a fragile balance between the aspiration to the truth and the respect for legality,
various doctrines have emerged in an attempt to find the best way to balance the
protection of individual rights and the discovery of the truth in criminal proceedings. It
is in this context that the exclusionary rule and the good faith exception are placed,
both pursuing the same goal of efficiency in criminal prosecution, without, however,
calling into question the protections guaranteed by the Fourth Amendment. They are,
however, approaches with very different practical effects both for individuals and for
the state itself.
Keywords:
Introdução..........................................................................................................................1
3. Os destinatários da dissuasão...............................................................................17
Conclusão........................................................................................................................24
Bibliografia......................................................................................................................26
Jurisprudência citada.......................................................................................................28
Introdução
É ponto assente que a atividade probatória não pode ser exercida no processo
penal sem um mínimo de respeito e proteção perante as garantias de defesa e os direitos
fundamentais dos indivíduos. Não obstante, continuam a existir dúvidas sobre que tipo
de limitações devem existir e qual deverá ser a consequência legal da violação destas
limitações.
Neste âmbito, a jurisprudência americana tem sido, nas décadas recentes, uma
forte influência noutros ordenamentos jurídicos, sendo um deles o ordenamento jurídico
português. Tal influência é especialmente notória no que concerne à teoria da
inadmissibilidade da prova ilícita na jurisprudência do United States Supreme Court,
também denominada exclusionary rule. A par desta, também a fruit-of-the-poisonous-
tree-doctrine (ou teoria dos frutos da árvore venenosa), e as exceções referentes à
exclusionary rule que desta decorrem, têm tido um peso significativo no direito
processual português.
Nesse sentido, o presente estudo tem como objetivo analisar a origem, evolução
e eventual expansão da exceção da boa-fé enquanto corolário do próprio fundamento da
exclusionary rule. Tal demonstra-se essencial pois, embora a solução da exclusão
probatória tenha uma importância central no processo penal norte-americano, a exclusão
de prova ilicitamente obtida mantem-se controversa na jurisprudência do USSC, sendo
que a abordagem seguida a este propósito tem sofrido uma grande transformação nas
últimas décadas.
1
entre estas duas figuras jurídicas, fazendo também referência à própria Fourth
Amendment.
Tentarei através da minha exposição analisar toda a lógica por detrás da good
faith exception, desde o seu fundamento, o modo se concretiza, os argumentos
utilizados pela jurisprudência a favor desta doutrina, o seu relacionamento com a
exclusionary rule, até à sua evolução e crescimento. O objetivo, será, portanto analisar
de modo crítico e objetivo algumas das falhas ou pontos fracos apontandos pelos
críticos da good faith exclusion, avaliando a sua eficácia e utilidade à luz dos objetivos
prosseguidos.
2
I. O contexto da good faith exception
A good faith exception , também por nós futuramente referida simplesmente como
exceção da boa-fé, encontra-se intrinsecamente relacionada com a exclusionary rule
tanto como seu corolário, como também como seu oposto.
De certa forma, podemos dizer que, de facto, estes dois regimes se complementam
no sentido em que, a aplicação de um implica necessariamente a exclusão da aplicação
do outro. Ademais, ao mesmo tempo que se trata de uma das exceção decorrente desta
regra exclusão, a exceção da boa-fé é também uma decorrência do próprio fundamento
da exclusionary rule. Isto é, originam do mesmo objetivo-base: o equílibrio entre a
proteção das garantias de defesa processuais e o princípio da descoberta da verdade dos
tribunais.
Neste sentido, cabe fazer uma análise sucinta da regra de exclusão norte-americana
e do seu fundamento, de modo a melhor compreender a origem da própria exceção da
boa-fé e de onde decorre a necessidade de tal exceção.
1
Traduzindo “O direito do povo a estar seguro nas suas pessoas, casas, papéis e bens, contra buscas e
apreensões irrazoáveis, não será violado, e nenhum Mandado de Segurança será emitido, mas por causa
provável, apoiado por Juramento ou afirmação, e descrevendo, em particular, os colocados para serem
3
Como tal, “uma busca é considerada injustificada, a menos que seja efectuada de
acordo com um mandado baseado num achado judicial de causa provável”2. Tal preceito
constitucional fundamenta-se na ideia de que os esforços dos tribunais e dos agentes da
justiça para a descoberta da verdade e consequente punição dos responsáveis, não
devem ser alcançados a qualquer preço, principalmente à custa do sacríficio dos
princípios fundamentais que servem de base ao Direito dos Estados Unidos da América.
revistados, e as suas pessoas ou bens a apreender”, Fourth Amendment to the Constitution of the United
States
2
Cf. Tradução livre da autora, no original “a search is considered unreasonable unless it is carried out
pursuant to a warrant based on a judicial finding of probable cause”, CAMMACK, M.E. “The United
States: the rise and fall of the constitutional exclusionary rule”, in: S.C.Thaman (org.), Exclusionary
Rules in Comparative Law, Dordrecht/Heidelberg/New York/London: Springer, 2013, p. 7
3
Neste sentido, o USSC refere “se cartas e documentos privados puderem assim ser apreendidos e detidos
e utilizados como prova contra um cidadão acusado de um delito, a protecção da Quarta Emenda,
declarando o seu direito a estar seguro contra tais buscas e apreensões, não tem qualquer valor e, no que
diz respeito aos que são assim colocados, pode muito bem ser retirada da Constituição” (trad.), no original
“if letters and and private documents can thus be seized and held and used in evidence against a citizen
accused of an offense, the protection of the Fourth Amendment, declaring his right to be secure against
such searches and seizures, is of no value, and, so far as those thus placed are concerned, might as well
be stricken from the Constitution”, Acórdão Weeks v. United States de 1914, pesquisável em
https://supreme.justia.com/cases/federal/us/232/383/#tab-opinion-1925421
4
Concebe-se, assim, um sistema de proteção da privacidade dos indivíduos contra
intromissões ilegítimas e abusivas por parte do Estado no âmbito de atividades de
investigação e persecução de crimes protegida por uma regra de exclusão e assente
numa previsão constitucional.
Podemos desde já referir que, embora pudesse ser utilizado como argumento
relativamente à exclusionary rule, o facto de que esta poderia afetar a obtenção da
verdade material, temos de nos lembrar que no ordenamento jurídico norte-americano
estamos perante um sistema adversarial, prevalecendo aqui a busca de uma verdade
formal.
Isto significa que a decisão do juiz será a favor da parte que melhor demonstrou os
seus argumentos no processo, e, nesse sentido, se houver uma violação das regras de
obtenção de provas tal “não afetou a decisão do juiz enquanto responsável por fazer
justiça, dado que o seu dever continuava a ser o de decidir de acordo com o que foi
provado e alegado no julgamento pelas partes e não com base no que poderia ser
considerado como uma verdade material fora do desenvolvimento do debate judicial.”4.
4
Cf. REYES ALVARADO, Y. “Proibições de prova nos sistemas de tendência inquisitiva e adversarial”,
in AMBOS, K., e MALARINO, E. (org.), Fundamentos de Direito Probatório em Matéria Penal, São
Paulo: Tirant lo Blanch, 2020
5
significa que a própria admissibilidade de provas ilegalmente obtidas constituíria uma
violação da Constituição.
Umas das mais importantes decorrências do escopo da exclusionary rule foi a fruit-
of-the-poisonous-tree-doctrine (ou doutrina dos frutos da árvore venenosa). Com efeito,
o United States Supreme Court, perante o caso Silverthorne Lumber Co v. United
States7, em 1920, argumentou que o vício da prova primária propaga-se aos seus frutos,
determinando a impossibilidade de utilização e valoração das provas secundárias, sendo
que as provas que colocam em causa direitos fundamentais protegidos
constitucionalmente, acarraterão um efeito-à-distância que torna inaproveitáveis
qualquer prova que a elas se encontre causalmente vinculada.
À luz desta doutrina, portanto, toda e qualquer prova obtida como consequência
causal da violação da Fourth Amendment será presumivelemente inadmissível, pois não
5
Cf. Acórdão Mapp v. Ohio de 1961, pesquisável em
https://supreme.justia.com/cases/federal/us/367/643/#tab-opinion-1943405
6
Cf. Tradução livre da autora, no original “The characterization of the rule as either a constitutional
right or a judicially fashioned remedy profoundly affects the degree of control courts may exercise over
the rule’s scope and application.” CAMMACK, M.E., The United States: the rise and fall of the
constitutional exclusionary rule, cit. (n.2), p. 12
7
Cf. Acórdão Silverthorne Co v. United States de 1920, pesquisável em
https://supreme.justia.com/cases/federal/us/251/385/
6
faria sentido proibir buscas despropositadas, se os frutos dessas buscas pudessem, ainda
assim, assegurar as condenações desejadas 8.
8
Cf. Neste sentido “os factos desse caso não definem o alcance total da regra de exclusão da Quarta
Emenda, uma vez que limitar a exclusão aos frutos imediatos da má conduta oficial comprometeria
seriamente se não viciasse totalmente a eficácia da regra" (trad.), no original “The USSC has made clear,
however, that the facts of that case do not define the full reach of the Fourth Amendment exclusionary
rule, since limiting exclusion to the immediate fruits of official misconduct would seriously compromise if
not entirely vitiate the rule’s effectiveness.”, CAMMACK, M.E., The United States: the rise and fall of
the constitucional exclusionary rule, cit (n.2), p.12
7
uma prática mais específica, apenas relativa a provas obtidas por violação flagrante ou
deliberada de direitos.
9
E. g. Acórdão United States v. Calandra de 1974, pesquisável em
https://supreme.justia.com/cases/federal/us/414/338/
10
Cf. No mesmo sentido “o Tribunal, nos casos de excepção de boa fé, deixou de ver a supressão como
parte intrínseca da Quarta Emenda para se preocupar com os custos sociais da regra de exclusão” (trad.),
no seu original “the Court in the good faith exception cases shifted from viewing suppression as an
intrinsic part of the Fourth Amendment to concerns about the social costs of the exclusionary rule”,
MCDONALD HENNING, K., “”Reasonable” Police Mistakes: Fourth Amendment Claims and the
“Good Faith” Exception After Heien”, St. John’s Law Review, Vol. 90, n.º 2, 2016, disponível em
""Reasonable" Police Mistakes: Fourth Amendment Claims and the "Good Fa" by Karen McDonald
Henning (stjohns.edu) (acedido a 30 de janeiro de 2022), p.290
11
Tradução livre da autora, no original “the rule is a judicially created remedy designed to safeguard
Fourth Amendment rights generally through its deterrent effect, rather than a personal constitutional
right of the party aggrieved”, Acórdão United States v. Calandra de 1974, pesquisável em
https://supreme.justia.com/cases/federal/us/414/338/
8
nova estabelecida lógica de dissuasão para abrir caminho para as exceções à regra de
exclusão12.
Foi à luz deste novo entendimento sobre a exclusionary rule como um recurso
judicial ligado à dissuasão de condutas abusivas, ao invés de uma proteção
constitucional, que o United States Supreme Court desenvolveu a good faith exception13.
Com efeito, embora a exclusionary rule tenha começado por ser uma parte
fundamental da proteção constitucional, o seu papel diminuiu consideravelmente nas
últimas décadas do séc. XX, particularmente pelo facto de a dissuasão ter passado a ser
a única razão para a existência de exclusão probatória por parte do United States
Supreme Court, o que logicamente levou a um enfraquecimento da sua dimensão de
aplicação.
12
Cf. YAGLA, C.A., “The Good Faith Exception to the Exclusionary Rule: The Latest Example of “New
Federalism” in the States”, Marquette Law Review, Vol. 71, Issue 1, Fall 1987, pp. 165-199, disponível
em "The Good Faith Exception to the Exclusionary Rule: The Latest Example " by Carolyn A. Yagla
(marquette.edu) (acedido a 30 de janeiro de 2022), p. 176
13
Cf. Ainda neste sentido refere-se que “antes de qualquer ataque frontal poder ser lançado contra a regra
de exclusão no que respeita à exceção de boa-fé, era necessário que o Supremo Tribunal soltasse
lentamente os fundamentos constitucionais que tinham vindo a apoiar a regra de exclusão tal como existia
sob a sua decisão no Mapp” (trad.), no original “Before any frontal assault could be launched against the
exclusionary rule as regards the good faith exception, it was necessary for the Supreme Court to slowly
loosen the constitutional underpinings which had come to support the exclusionary rule as it existed
under its decision in Mapp.”, YAGLA, C.A., The Good Faith Exception to the Exclusionary Rule: The
Latest Example of “New Federalism” in the States, cit (n. 12), p.179
9
United States v. Leon, em 1984, foi um desses casos onde se debateu a questão de
saber se a regra de exclusão probatória norte-americana deveria ser modificada por uma
exceção de boa-fé, linha de pensamento já mencionada previamente em outras
jurisprudências, mas nunca diretamente.
A premissa aqui será, então, que um agente policial que age de boa-fé não
poderia ter, e nesse sentido, não terá no futuro, o seu comportamento alterado pela
exclusão porque a ilicitude da sua conduta não decorreu da sua falta de diligência ou
cuidado.
Do exposto acima pode concluir-se que, a tese sustentada pela good faith exception
assentará então na situação em que o agente obtém provas de forma irregular, mas fá-lo
15
Cf. CAMMACK, M.E., The United States: the rise and fall of the constitutional exclusionary rule, cit.
(n.2), p. 19
16
Tradução livre da autora, no original “Once the warrant issues, there is literally nothing more the
policeman can do in seeking to comply with the law, and penalizing the officer for the magistrate's error,
rather than his own, cannot logically contribute to the deterrence of Fourth Amendment violations”,
Acórdão United States v. Leon de 1984, pesquisável em
https://supreme.justia.com/cases/federal/us/468/897/#tab-opinion-1955733
11
na convicção válida e razoável de que estava a agir em conformidade com a lei e que,
portanto, determina que as provas não deverão ser suprimidas.
Para além disso, e como foi argumentado em Leon, mesmo quando efetivamente a
eventual exclusão probatória possa ter um efeito dissuasivo ou criador de incentivos à
adesão das ordens da Fourth Amendment, tal não significa necessariamente que deva
haver uma supressão: “quando um agente, agindo de boa-fé objetiva, obteve um
mandado de busca de um juiz ou magistrado e agiu dentro do seu âmbito, não há, na
maioria dos casos, nenhuma ilegalidade policial e, portanto, nada a dissuadir”18.
17
No mesmo sentido “O objetivo da regra de exclusão é dissuadir a polícia de comportamento
inconstitucional. Quando a regra não tem efeito dissuasor, uma vez que não é um requisito constitucional,
não deve ser implementada. Quando tiver sido emitido um mandado de detenção devidamente autorizado,
que posteriormente seja declarado inválido, a regra não tem efeito dissuasor e, por conseguinte, não deve
ser aplicada.” (trad.), no original “The purpose of the exclusionary rule is to deter the police from
unconstitutional behavior. When the rule has no deterrent effect, since it is not a constitutional
requirement, it should not be implemented. When there has been a duly authorized facially valid warrant
which is later declared invalid, the rule has no deterrent effect, and thus, should not be given force ”,
MILLER, J. M., “The Good Faith Exception to the Exclusionary Rule: Leon and Sheppard in Context”,
Criminal Justice Journal, Vol. 7, 1984, disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?
abstract_id=926189 (acedido a 30 de janeiro de 2022), p.195
18
Tradução livre da autora, no original “when an officer acting with objective good faith has obtained a
search warrant from a judge or magistrate and acted within its scope there is in most cases no police
illegality and thus nothing to deter”, Acórdão United States v. Leon de 1984, pesquisável em
https://supreme.justia.com/cases/federal/us/468/897/#tab-opinion-1955733
12
Neste sentido, não deverá ser apenas a existência de uma possível dissuasão que
decidirá a aplicação ou não da exclusionary rule. Há uma multiplicidade de elementos
que se relacionam com os requisitos da good faith exception e que analisaremos de
seguida.
Como tal, o tribunal deveria inquirir se, por exemplo, o mandado era de tal forma
superficialmente defeituoso que o oficial deveria ter reconhecido a sua inadequação, ou,
19
Tradução livre da autora, no original “The deterrence purpose of the exclusionary rule necessarily
assumes that the police have engaged in willful, or at the very least negligent, conduct. For that reason,
where the officer’s conduct is objectively reasonable, excluding the evidence will not further the ends of
the exclusionary rule in any appreciable way”, Acórdão United States v. Leon de 1984, pesquisável em
https://supreme.justia.com/cases/federal/us/468/897/#tab-opinion-1955733
13
se o mandado era de tal forma desprovido de causa provável que uma crença na sua
validade seria irresponsável.
Isto significa que só haverá lugar a uma aplicação da exclusionary rule se, no caso
em concreto, os custos associados a supressão de provas superarem os benefícios de
uma potencial dissuasão da má conduta policial, ou seja, se uma redução do princípio da
descoberta da verdade e da prossecução criminal poder ser justificada pela proteção
efetuada aos direitos protegidos pela Fourth Amendment.
Na prática, isto significa que o resultando deste balanço será a admissão das provas,
desde logo, porque normalmente estarão em causa simples erros de conduta e não
20
Tradução livre da autora, no original “unbending application of the exclusionary sanction to enforce
ideals of governmental rectitude would impede unacceptably the truth-finding functions of judge”
Acórdão United States v. Payner de 1980, pesquisável em
https://supreme.justia.com/cases/federal/us/447/727/
14
violações gravosas a direitos fundamentais. Como tal, “quando se trata de erros, a
exclusão é exagerada. A regra de exclusão tem um pesado custo: suprime provas
fiáveis, coloca os culpados em liberdade e prejudica a reputação pública dos
tribunais”21.
Para além disso, há ainda outra argumentação relevante neste ponto: a natureza da
exclusionary rule. Sendo que, a exclusionary rule tem a natureza de um remédio
judicial, e não de um comando constitucional, é ónus do juiz justificar a expansão da
proteção conferida23.
21
Tradução livre da autora, no original “when it comes to mistakes, exclusion is overkill. The
exclusionary rule exacts a heavy toll: it suppresses reliable evidence, sets the guilty at large, and impairs
the public reputation of the courts”, “Toward a General Good Faith Exception”, Harvard Law Review,
Vol. 127, n.º2, 2013, 773-794, disponível em vol127_good_faith_exception.pdf (harvardlawreview.org)
acedido a 30 de janeiro de 2022), p.782
22
Cf. REYES ALVARADO, Y., Proibições de prova nos sistemas de tendência inquisitiva e adversarial,
cit (n.4)
23
Cf. Mais neste sentido “Mesmo que a exclusão se mantivesse apenas nos tribunais nacionais, este fardo
seria pesado: regras que mantêm provas relevantes e fiáveis fora do tribunal não deveriam ser criadas
levianamente nem interpretadas de forma ampla, pois estão em derrogação da procura da verdade. Mesmo
o Congresso, armado com poder expresso para aplicar a Décima Quarta Emenda, só pode impor medidas
corretivas aos Estados depois de fazer uma demonstração rigorosa da sua necessidade. Os tribunais
federais, incapazes de reivindicar qualquer mandado textual deste tipo para escorar a Constituição,
dificilmente devem ser mantidos a um nível inferior.” (trad.), no seu original “Even if exclusion held sway
only in the national courts, this burden would be a heavy one: rules that keep relevant and reliable
evidence out of court should be neither lightly created nor expansively construed, for they are in
derogation of the search for truth. But the lift is heavier still because the federal rule of exclusion binds
the states. Even Congress, armed with express power to enforce the Fourteenth Amendment, may impose
remedial measures upon the states only after making rigorous demonstration of their necessity. Federal
courts, unable to claim any such textual warrant for shoring up the Constitution, should hardly be held to
15
Portanto, a questão será se a necessidade de dissuasão adicional é tão imperiosa que
justifica um custo-benefício que acaba por ser desequilibrado para a prossecução
criminal, colocando em causa o propósito do processo penal. Pelo menos, quanto a erros
que não sejam violações gravosas da Fourth Amendment a resposta do Supreme Court
parece clara no sentido de que não se justificará. Na visão atual do USSC, “não pode
haver exclusão sem dissuasão, e os benefícios de dissuasão devem compensar os custos
da exclusão”24.
3. Os destinatários da dissuasão
Esta questão mantem-se até hoje por responder, levantando algumas dúvidas a seu
respeito, apesar de ser comum afirmar-se que a dissuasão respeita a apenas a má
conduta policial, e que apenas abusos praticados por estes serão tidos em conta. Até ao
longo do nosso trabalho referimos muitas vezes a polícia como destinatário da
dissuasão. Contudo, a lógica da dissuasão é muito mais complicada.
Tendo em conta todo o percurso que fizemos até aqui, perguntamos agora se
existem e quais serão as consequências ao nível da proteção conferida pela Fourth
Amendment, colocando em perspetiva alguns dos argumentos mais importantes contra a
good faith exception. O objetivo aqui não será tentar impingir visões próprias a um
ordenamento estrangeiro que tem toda a legitimidade para conduzir o processo penal da
maneira como melhor lhe convier. Trata-se apenas de um pequeno contributo à análise
crítica deste instituto que demonstra tanta significância no sistema jurídico norte-
americano, de modo a poder colmatar algumas falhas que possam existir.
25
Tradução livre da autora, no original “the conceptual point remains that courts must consider all of the
institutional actors to assess the deterrent role of the exclusionary rule”, KERR, O. S., “Good Faith, New
Law, and the Scope of the Exclusionary Rule”, 99 Georgetown Law Journal 1077, 2011, disponível em
https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=1675115 (acedido a 30 de janeiro de 2022), p.1087
17
Como é natural, sempre que o âmbito da regra de exclusão é modificado no
interesse de uma aplicação efetiva da lei, haverá necessariamente uma mudança no
delicado equilíbrio entre o direito à privacidade e o direito a estarmos livres de ataques
criminosos.
26
Cf. YAGLA, C.A., The Good Faith Exception to the Exclusionary Rule: The Latest Example of “New
Federalism” in the States, cit (n. 12), p. 187
27
Cf. BANTEKA, N., “Police Ignorance and (Un)reasonable Fourth Amendment Exclusion”, Vanderbilt
Law Review, 2020, disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3688626 (acedido
a 30 de janeiro de 2022), p. 17
28
Tradução livre da autora, no original “The Court's interpretation of the rule's purpose has shifted from
consideration of whether the exclusionary rule is an appropriate remedy for fourth amendment violations
to whether it deters unlawful police conduct by "punishing" the offending officer”, YAGLA, C.A., The
Good Faith Exception to the Exclusionary Rule: The Latest Example of “New Federalism” in the States,
cit (n. 12), p. 187
18
que o sistema judiciário ajude a dar efeito a violações da Fourth Amendment, utilizando
provas ‘manchadas’.
29
Cf. Ainda neste sentido “O Tribunal passou da solução de exclusão óbvia e automática, para uma
grande solução mais restrita reservada aos casos excecionais de polícia flagrante culpabilidade sob uma
nova norma de razoabilidade que está desligada da Quarta Emenda à norma de razoabilidade.” (trad.), no
seu original “The Court has moved from the obvious and automatic exclusionary remedy, to a much more
restricted remedy reserved for exceptional cases of egregious police culpability under a new
reasonableness standard that is disconnected from the Fourth Amendment reasonableness standard”,
BANTEKA, N., Police Ignorance and (Un)reasonable Fourth Amendment Exclusion, cit. (n. 27), p. 17
19
flexibilização, dos valores constitucionais protegidos pela Fourth Amendment,
abandonando-se completamente a lógica inicial que deu origem à exclusionary rule,
sem, contudo, dar nenhuma explicação para tal. Esta questão só se levanta, tendo em
conta o contexto inicial onde se desenvolveu a regra de exclusão probatória, onde a
prioridade era efetivar uma proteção dos direitos previstos pela Fourth Amendment.
Afinal, não podemos deixar de nos esquecer que a obrigação fundamental das
autoridades policiais e judiciais deverá ser sempre respeitar e preservar o Estado de
Direito. Não se pode negar, a importância da penalização dos criminosos de modo a
proteger a sociedade, sendo inegável que o Estado tem um direito a perturbar a
privacidade dos indivíduos se tal se demonstrar necessário demodo a fazer cumprir as
leis penal.
Não obstante, parece até contraproducente a certo ponto, que tal seja feito a
custo da desproteção dos próprios cidadãos contra possíveis abusos por parte de
funcionários do Estado. Tal é inevitável quando se permite que provas proibidas tenham
valor judicial em situações que não deviam, porque o Estado parece estar a incentivar,
ou pelo menos desvalorizar, atitudes abusivas, tendo apenas em vista o combate ao
crime.
É impossível prever exatamente o impacto que a good faith exception irá ter
daqui em diante relativamente à Fourth Amendment, mas acho que é seguro afirmar sem
receios que uma expansão inconsequente e exponencial da exceção da boa-fé,
seguramente irá colocar em causa o âmbito de proteção essencial desta Emenda, não nos
podendo esquecer que há limites que nunca deverão ser ultrapassados.
30
Cf. REYES ALVARADO, Y., Proibições de prova nos sistemas de tendência inquisitiva e adversarial,
cit (n.4)
20
V. A good faith exception norte-americana à luz do Direito
Português
Neste contexto, faz sentido equacionar-se se uma exceção deste tipo poderia
sobreviver num ordenamento jurídico com o português, especificamente com o
conteúdo atual da good faith exception que acabámos de analisar.
Ora, podemos adiantar desde já, que, da nossa perspetiva, não nos parece muito
plausível tal transposição da regra de boa-fé norte-americana, dada o contexto legal que
iremos agora referir sucintamente.
Desde logo, tendo em conta a previsão legal do artigo 126.º n.º3 do CPP relativo
aos métodos proibidos de prova: “Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente
nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida
privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o
consentimento do respectivo titular.”. Ou seja, a lei portuguesa proíbe expressamente as
provas que violem ilicitamente a privacidade, sendo que as proibições de prova dão
lugar a provas nulas (art. 32.º, n.º8 CRP).
São estes os seguintes casos: situações onde existam fundados indícios da prática
iminente de crime que ponha gravemente em risco a vida ou a integridade física no
âmbito de terrorismo ou criminalidade violenta (alínea a); situações de consentimento
documentado do visado (alínea b) e parte final do n.º3, do art. 126.º); e detenção em
21
flagrante delito por crime punível com pena de prisão (alínea c) 31. Toda e qualquer
prova que viole a intimidade da vida privada fora deste âmbito será, portanto,
considerada nula.
A conjugação do art. 126.º, n.º3 CPP e do art. 32,º, n.º8 CRP determina então
que uma prova obtida intromissão na vida privada será sempre nula, e como tal, não
poderá ser utilizada, a não ser que o indivíduo em causa consinta em tal.
Neste sentido, não nos parece possível que diante tal proteção existente do
direito à privacidade no ordenamento jurídico português se pudesse coadunar com o
conteúdo atual na jurisprudência americana. Contudo, tal não significa que,
eventualmente, com as adapatações necessárias e dentro dos moldes certos, esta
possibilidade não pudesse equacionar-se. Por enquanto, porém, tal realidade parece
distante.
31
PINTO DE ALBUQUERQUE, P., Comentário do código de processo penal à luz da Constituição da
República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2ª Ed., Lisboa, Universidade Católica,
2008, p. 473
22
Conclusão
Se, pelo contrário, se assumir que o propósito das proibições probatórias deve
ser, fundamentalmente, garantir o respeito pelos direitos fundamentais e, desta forma,
proteger os cidadãos dos abusos que os agentes do Estado possam cometer no
desenvolvimento da sua atividade probatória, a única consequência possível, quando se
23
demonstra que a prova foi obtida em violação das normas constitucionais, é a sua
exclusão do debate judicial, dando, deste modo, prioridade ao dever de respeito pelos
direitos fundamentais dos indivíduos sobre o dever de investigação e de punição de
crimes.
24
Bibliografia
CAMMACK, M.E. “The United States: the rise and fall of the constitucional
exclusionary rule”, in: S.C.Thaman (org.), Exclusionary Rules in Comparative Law,
Dordrecht/Heidelberg/New York/London: Springer, 2013, pp.3-32
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acedido a 30 de janeiro de 2022
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