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Sal e Luz O caráter e a bem-aventurança dos cidadãos do reino foram descritos nas bem-

aventuranças. A bem-aventurança fmal era de caráter transicional. Ela descreveu a atitude do


mundo para com os crentes no Senhor Jesus Cristo. Os “dois emblemas” agora introduzidos —
sal e luz — descrevem o inverso, ou seja, a influência do reino sobre o mundo, a resposta dos
seguidores de Cristo àqueles que os perseguem. Por meio destes dois emblemas ou metáforas
revela-se a importante verdade de que essas pessoas a quem o mundo — inclusive o mundo
aparentemente piedoso dos escribas e fariseus — mais odeia são precisamente aquelas a
quem o mundo mais deve. Os cidadãos do reino, não importa quão desprezados sejam e quão
insignificantes pareçam ser, tão-somente eles, não os escribas e fariseus, são o sal da terra e a
luz do mundo. As palavras de 5.13-16 revelam quão diferentes do mundo são os crentes, e não
obstante quão relacionados com o mundo estão eles. O mundanismo ou a secularização é aqui
condenada, porém a indiferença e o isolacionismo são igualmente condenados. O sal é uma
bênção enquanto permanece sendo verdadeiramente sal; a luz, enquanto permanece sendo
realmente luz. Entretanto, o sal precisa ser espalhado sobre, ou, melhor ainda, precisa ser
friccionado na carne. A luz precisa ser deixada livre para brilhar na escuridão. Não se deve
encobri-la. No tocante ao sal, Jesus diz: 13. Vocês são o sal da terra. Ainda que o sal tenha
muitas características — brancura, sabor, aroma, poder preservativo, etc. — , talvez seja
especialmente esta última qualidade — o poder do sal como antisséptico, substância que serve
como preventivo para retardar a deterioração — sobre o que se põe a ênfase aqui, ainda que a
função subsidiária de comunicar sabor não deva obviamente ser excluída (ver Lc 2.13; Jó 6.6;
Cl 4.6). O sal, pois, tem especialmente uma função negativa. Ele combate a deterioração. De
forma semelhante, os cristãos, mostrando ser cristãos verdadeiros, estão constantemente
combatendo a corrupção moral e espiritual. Quão amiúde não acontece que um crente se
coloca de repente entre indivíduos profanos, e o chiste indecoroso é refreado, com o qual
alguém estava prestes a divertir seus companheiros, ficando sem efeito o plano perverso? E
certamente notório que o mundo é ímpio. Todavia, só Deus sabe quão mais corrupto seria ele
sem o exemplo, a vida e as orações dos santos que refreiam a sua corrupção (Gn 18.26-32; 2Rs
12.2). O sal age secretamente. Sabemos que ele combate a deterioração, embora não
possamos vê-lo realizar tal tarefa. Contudo, sua influência é muito real.

Prossegue: porém, se o sal tornar-se insípido, o que fazer para que salgue novamente? Então
já não serve para nada, senão para ser lançado fora e pisoteado pelos homens. O sal dos
charcos e lagoas ou das rochas nas imediações do Mar Morto facilmente adquire um sabor
insosso ou alcalino, em virtude de sua mistura com gipsita, etc.274 Então, ele é literalmente
“bom para nada”, a não ser para ser jogado fora e pisoteado (cf. Ez 47.11). Enquanto Jesus
caminhava pela terra, via muitos fariseus e escribas, homens que advogavam uma religião
formal e legalística em lugar da religião verdadeiramente proclamada pelos

antigos profetas 110 nome do Senhor. Assim, de uma maneira geral, o sal havia perdido seu
sabor na vida religiosa de Israel. Muitos “filhos do reino” seriam lançados fora (Mt 8.12). A
implicação é evidente. Assim como o sal que perde o seu sabor não pode ser restaurado,
tampouco aqueles que foram treinados no conhecimento da verdade, contudo se puseram
decididamente contra as exortações do Espírito Santo e se tornaram empedernidos em sua
posição, são renovados para arrependimento (Mt 12.32; Hb 6.4-6). Portanto, aquilo a que se
denomina sal, que seja realmente sal! Existem tantas pessoas que jamais leram a Bíblia,
contudo estão nos lendo constantemente! Se a nossa conduta não corresponde ao nosso
chamamento, então nossas palavras serão de pouquíssimo valor. Já vimos que, em primeiro
plano, 0 sal tem uma função de negação e age secretamente. A luz, por outro lado, tem uma
função positiva e brilha aberta e publicamente. Portanto, as duas metáforas se
complementam. No tocante à luz, Jesus diz: 14a. Vocês são a luz do mundo. A luz, nas
Escrituras, indica o verdadeiro conhecimento de Deus (SI 36.9; cf. Mt 6.22,23); a bondade, a
justiça e a veracidade (Ef 5.8,9); deleite e alegria, verdadeira felicidade (SI 97.11; Is 9.1-7; cf.
60.19). Ela simboliza o que há de melhor no campo da sabedoria, do amor e do riso, em
contraste com as trevas, ou seja, 0 que há de pior no campo da ignorância, da depravação e do
desespero. Quando a luz é mencionada, às vezes enfatiza-se uma qualidade — por exemplo, 0
conhecimento revelado; em outros casos põe-se a ênfase em alguma outra qualidade,
dependendo do contexto em cada caso. Em certos casos, 0 significado da palavra “luz” pode
ainda ser mais amplo do que alguma das suas qualidades individuais poderia indicar. Pode ser
suficientemente ampla para incluir todas as bênçãos da “salvação” (cf. SI 27.1; Lc 1.77-79).
Talvez seja esse também 0 caso aqui em 5.14. A afirmação: “Vocês são a luz do mundo”
provavelmente signifique que os cidadãos do reino não só foram abençoados com essas
dádivas, mas são também 0 meio usado por Deus

para transmitir as mesmas aos homens que os cercam. Os possuidores da luz se transformam
em transmissores da luz. Os crentes, coletivamente, são “a luz”. Individualmente, são “luzes”
(luminárias, estrelas, Fp 2.15). E possível que ambas as idéias tenham sido incluídas nessas
palavras ditas por Jesus, embora a ênfase esteja no coletivo. Entretanto, os cristãos jamais são
luz em si e por si mesmos. Eles são luz “no Senhor” (Ef 5.8). E Cristo que é a “luz do mundo”,
verdadeira e original (Jo 8.12; 9.5; 12.35,36,46; 2Co 4.6; cf. SI 27.1; 36.9; 43.3; Is 49.6; 60.1; Lc
1.78,79; 2.32). Os crentes são “a luz do mundo” num sentido secundário ou derivado. Jesus é
“a luz que ilumina” (Jo 1.9); os crentes são “a luz refletida”. Jesus é o sol; os crentes são
semelhantes à lua, que reflete a luz do sol. Sem Cristo eles não podem brilhar. A lâmpada
elétrica não pode emitir luz por si mesma. Ela comunica luz somente quando é conectada e
ligada à corrente elétrica, de modo que esta corrente gerada na central elétrica lhe transmita a
energia. Assim também no tocante aos seguidores de Cristo, quando permanecem em vivo
contato com a luz original, para que sejam luz para os outros (cf. Jo 15.4,5). Ora, visto que o
dever da igreja é brilhar por Jesus, então ela não deve deixar que seja desviada de seu curso.
Não é tarefa da igreja se especializar em emitir todos os tipos de pronunciamentos referentes
a problemas econômicos, políticos e sociais. “A grande esperança para a sociedade hodierna
está em que haja um número crescente de cristãos individuais. Que a igreja de Deus se
concentre nessa tarefa e não desperdice seu tempo e sua energia em questões que estão fora
de sua alçada.”275 Isso não significa que é sempre condenável um pronunciamento
eclesiástico sobre o posicionamento do evangelho no tocante a este ou aquele problema que
não é especialmente teológico. Pode haver situações em que um testemunho público
iluminador seja aconselhável e até mesmo necessário, pois o evangelho precisa

ser proclamado “em toda a sua plenitude” e não estreitamente limitado à salvação das almas.
Porém, o dever primário da igreja permanece sendo o de difundir a mensagem de salvação,
para que os perdidos possam ser encontrados (Lc 15.4; ICo 9.16,22; 10.33), os encontrados
possam ser fortalecidos na fé (Ef 4.15; lTs 3.11-13; lPe 2.2; 2Pe 3.18) e Deus venha a ser
gloriíicado (Jo 17.4; ICo 10.31). Os que. por meio do exemplo, da mensagem e das orações dos
crentes, se converteram, demonstrarão o genuíno caráter de sua fé e amor ao exercerem sua
influência para o bem em todas as esferas. E prossegue: 14b-16. Uma cidade situada sobre
uma colina não pode ficar escondida. Tampouco os homens acendem uma lâmpada e a
colocam debaixo do cesto de medida, e, sim, no candelabro, e assim ilumina a todos os que se
acham na casa. Assim brilhe a luz de vocês diante dos homens, para que vejam as suas boas
obras e glorifiquem a seu Pai que está no céu. Em conexão com o símbolo da luz, duas idéias
são combinadas aqui: os seguidores de Cristo devem ser visíveis e radiantes. Eles devem estar
“na luz”, e devem também emitir raios de luz. A primeira idéia sugere uma cidade situada
sobre uma colina. Tal cidade, com seus muros e fortalezas, “não pode ficar oculta”. Ela
permanece claramente visível a todo mundo. A segunda idéia é gerada pela figura da lâmpada
posta no candelabro. Essa lâmpada “fornece luz”; ela “brilha”. As lâmpadas daquele tempo
podem ser vistas hoje em qualquer grande museu e em muitas coleções particulares. O autor
neste momento está olhando para um desses objetos de terracota em forma de pires. Este
tem uns quatorze centímetros de comprimento, dez de largura e uns quatro de altura. Numa
extremidade tem uma asa; noutra tem uma extensão em forma de bocal com orifício para
pavio. Na parte superior da lâmpada há dois orifícios, um para o óleo e o outro para o ar.
Portanto, o que Jesus está dizendo é o seguinte: ninguém seria tão tolo que acendesse uma
dessas lâmpadas — evidentemente com o propósito de iluminar todo o ambiente — e em

seguida a cobrisse com um cesto de medida.276 Qualquer pessoa inteligente poria esta
lâmpada acesa sobre um candelabro. O candelabro era geralmente um objeto muito simples.
Podia ser uma saliência que se estendia de uma coluna no centro do aposento (a coluna que
sustentava a viga transversal do teto plano), ou uma simples pedra que se projetava da
parede, ou uma peça de metal visivelmente colocada e usada de forma similar. A idéia é que a
lâmpada, já acesa e colocada num lugar de destaque, fornecia luz a “todos os que se
encontram na casa”. Isso se torna compreensível à medida que se lembre que as casas dos
pobres, as pessoas mesmas a quem Jesus se dirigia (Lc 6.20), tinham apenas um aposento. Ora,
à semelhança do papel que uma lâmpada exerce numa casa, o seguidor de Cristo deve
igualmente exercer no mundo. Uma lâmpada acesa deve ter a oportunidade de iluminar com
seus raios. Os seguidores de Jesus, igualmente, devem “deixar sua luz brilhar” a fim de que os
homens possam ver sua conduta e suas “boas obras”. É precisamente sobre essas obras,
consideradas como produto da fé (ver a exposição do v. 17), que o Senhor põe ênfase,
porquanto “as ações falam mais alto que as palavras”. Não é de forma alguma necessário, nem
mesmo aconselhável, neste contexto, fazer separação entre as obras feitas em obediência à
primeira tábua da lei e as realizadas em consonância com a segunda. No ensino de Jesus estas
duas vão juntas, embora seja verdade que a primeira é básica (Mt 22.34-40; Mc 12.30,31; Lc
10.25-28). Quando essas excelentes obras, qualquer que seja sua natureza, são feitas em
gratidão pela salvação obtida pela graça por meio da fé, então elas se tornam agradáveis a
Deus. Isso é verdadeiro se elas consistem em se apoiar em Deus em oração (Mt 6.6; cf. Is 64.7)
e confiar nele (Mt 6.24- 34) ou em socorrer aqueles que se acham necessitados (Mt 25.34- 40)
e em amar ainda que seja os próprios inimigos (Mt 5.44).

É inevitável que algumas dessas boas obras sejam vistas pelos homens. Até mesmo os
incrédulos pararão para ouvir, de vez em quando, os cânticos de louvor cantados pelos filhos
de Deus. Pessoas mundanas observarão a serena confiança em Deus manifestada pelos
crentes em tempos de provação e ansiedade. As vezes, expressarão admiração ante a maneira
como os cristãos não medem sacrifícios, correndo risco de grave perigo e até mesmo
enfrentando a morte com o fim de prestar socorro aos enfermos e moribundos. Tertuliano
(cerca do ano 200 d.C.) escreveu: “Porém, são principalmente os atos de um amor tão nobre
que levam muitos a porem uma marca sobre nós. ‘Vede’, dizem eles, ‘como eles [os cristãos]
amam uns aos outros’, porque eles mesmos [os não-cristãos] estão estimulados por um ódio
recíproco; ‘vede como eles estão prontos até mesmo a morrerem uns pelos outros’, pois eles
mesmos prefeririam antes a morte” {Apologia XXXIX). E bom que essas boas obras sejam vistas
pelos homens. Isso é exatamente o que Jesus quer. Corretamente considerado, é isso mesmo
o que desejam todos aqueles que as praticam, porém não com o fim de grangearem honra
para si mesmos, no sentido de 6.1,5,16. Ao contrário, diz Jesus: “... e glorifiquem a seu Pai que
está no céu.” Portanto, o fim, e até certo ponto também o resultado, de tais obras serem vistas
é que os homens, sob a influência do Espírito de Deus, renderão a Deus a reverência que lhe é
devida, por haver acendido a luz que ora brilha nas vidas dos homens (Is 24.15; 25.3; SI 22.23;
cf. ICo 10.31).277 Uma palavra deve ser adicionada acerca desta frase que, nos Evangelhos,
aparece aqui pela primeira vez: “seu Pai que está no céu” (literalmente “nos céus”). Um autor
altamente respeitado escreve: “E verdade que, mesmo no Antigo Testamento, Deus é às vezes
referido como Pai, mas não para expressar o relacionamento pessoal entre Deus e o crente
individualmente, e, sim, como uma indicação do relacionamento entre Deus e o povo do
concerto, Israel; comparar, por exemplo, Is 63.16.”278

Não consigo ver a procedência dessa afirmação. Mesmo no Antigo Testamento Deus é
reconhecido como o Pai não apenas da nação (além de Is 63.16, ver igualmente 64.8; Ml 1.1,6;
e cf. Nm 11.12), mas ainda dos crentes individualmente, envolvendo-os em seu terno abraço e
cuidando deles: “Pai dos órfãos e juiz das viúvas, é Deus em sua santa morada" (SI 68.5). "Ele
me invocará, dizendo: Tu és meu Pai, meu Deus, e a rocha da minha salvação. Conservar-lhe-ei
para sempre a minha graça e firme com ele, a minha aliança” (SI 89.26,28). Mesmo sendo
verdade que no SI 103.13 Deus não é diretamente chamado de “Pai”, todavia a idéia de sua
paternidade em relação a indivíduos é claramente implícita: “Como um pai se compadece de
seus filhos, assim o Senhor se compadece dos que o temem.” Ele é para com eles mais
precioso que qualquer pai terreno: “Porque se meu pai e minha mãe me desampararem, o
Senhor me acolherá” (SI 27.10). Ver também 2Sm 7.14,15 (cf. lCr 28.6). Jesus, pois, edifica
sobre esse fundamento do Antigo Testamento — não foi o seu próprio Espírito quem inspirou
esse livro? — , e nos Evangelhos faz que o termo se aplique a Deus, e surja com toda a sua
ternura (“Pai”) e majestade (“que está no céu”). Ver mais sobre Mt 6.9. Todos aqueles —
sejam eles de origem judaica ou gentílica — que receberam Jesus como seu Senhor e Salvador,
ao dirigir-se a Deus, têm o privilégio de dizer: “Pai nosso que estás no céu.”

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