Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
desenvolvimento
1
Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).
2
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) – MT.
3
Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).
4
Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).
5
Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT).
Ao longo de duas décadas, as pesquisas do Neast (Pignati, 2019) têm demonstrado
que equipamentos e maquinários agrícolas, subsídios e imposição de nova cultura de di-
ferentes efeitos desse processo, particularmente: aumento de desmatamento, queimadas,
diminuição das chuvas e expansão de monoculturas químico-dependentes, monopólio
de sementes, fertilizantes, agrotóxicos, mercantilização da vida, transformação de ali-
mentos em mercadorias e commodities, processos de contaminação impositiva de água,
alimentos, matrizes biológicas humanas (sangue, urina e leite materno). Tudo isso se
faz sentir na geração de cenários de riscos sanitário-alimentar-ocupacional-ambiental
de diferentes escalas e gravidades, cujos impactos recaem sobre muitas populações que
têm suas vidas direta e indiretamente prejudicadas, principalmente pelas interferências
desse modelo na reprodução da vida dessas populações e pela determinação social de
doenças e agravos à saúde.
Os resultados das investigações nesse cenário implicaram em pensar o lugar da Vigi-
lância em Saúde como componente aglutinador de informação, formação e intervenção
para alteração do modelo e defesa intransigente do Direito à Saúde. Historicamente, a
Vigilância é parte das funções do Estado para desvelar e controlar doenças na população,
interrompendo seus ciclos de disseminação e intervindo em seus fatores determinantes.
A vigilância epidemiológica retrata essa forma histórica de ação em saúde pública, mas
pensar a saúde de modo ampliado no cenário desse modelo produtivo no Brasil, implica
numa expansão do foco da vigilância para integrar as determinações sociopolíticas dos
fenômenos impulsionadores dos processos saúde-doença. Isso nos leva a tomar, de modo
mais central, os determinantes sociais da saúde como focos prioritários dos múltiplos
olhares para que essa vigilância incida sobre os elementos que estão na raiz dos modos
hegemônicos de organização, produção e reprodução da vida numa dada sociedade. Há
que se considerar que o motor das modificações dessas engrenagens complexas se define
no modelo econômico-político, muitas vezes traduzido na expressão “desenvolvimento”.
Assim, uma vigilância, como caminho de defesa de melhores meios de andar a vida,
ou seja, também como proposição de ações que visam a melhorar o acesso e qualidade
da água potável, territórios livres de opressões, espaços de paz, trabalho e renda dignas,
proteção dos ecossistemas, biodiversidade, educação e formação humana, capacidade
de expressão política (porque a saúde é reduzida quando a “voz” não pode se expressar
com maior liberdade) e alimentação livre de resíduos químicos etc. – nos leva a pensar
uma Vigilância do desenvolvimento.
Desse modo, se o objeto da vigilância é o processo de desenvolvimento, as dimensões
geográficas, foco nos territórios e em processos críticos (degradação ecológica, imposição
de transgênicos e produtos químicos nos processos de produção, subsídios políticos e
financeiros para grupos econômicos, escravidão e doenças relacionadas) são alvos estra-
WANDERLEI ANTÔNIO PIGNATI, JORGE MESQUITA HUET MACHADO, MARCIA LEOPOLDINA | 353
MONTANARI CORRÊA, MARTA GISLENE PIGNATTI, LUÍS HENRIQUE DA COSTA LEÃO
saúde, dificuldades de acesso a lazer, cultura, esporte e educação; um modelo que coloca
barreiras na participação política, nos direitos humanos, na equidade e justiça social.
Uma vigilância do desenvolvimento, então, tem como horizonte ético, a realocação das
mercadorias para um plano secundário frente à reafirmação da centralidade do desen-
volvimento de sujeitos humanos em condições ecológicas que ampliam possibilidades
de vida pela satisfação das suas necessidades. Ela se coloca, portanto, em oposição ao
“des”envolvimento com as reais necessidades humanas.
As críticas históricas sobre degradação ambiental ainda no século XVIII e XIX já denunciavam a
6
visão instrumental da natureza, destruição das florestas, e também a relação escravismo, latifúndio,
monocultura e degradação ecológica (Pádua, 2002).
WANDERLEI ANTÔNIO PIGNATI, JORGE MESQUITA HUET MACHADO, MARCIA LEOPOLDINA | 355
MONTANARI CORRÊA, MARTA GISLENE PIGNATTI, LUÍS HENRIQUE DA COSTA LEÃO
Vigilância do desenvolvimento se faz em conexões entre as formas de sintetizar
nominações que expressem a ação de organizar informações que possibilitem análises
e reflexões sobre as perspectivas de um modo de vida saudável em sua perspectiva de
realização cultural, produzindo movimentos de aproximação coletiva da razão terri-
torializada.
Nesse contexto, a vigilância em saúde se insere como práxis sanitária transformadora
dos modos de vida em contato com os modos de produção e reprodução social em que
a vigilância do desenvolvimento se articula a um processo de vigilância em saúde de
base territorial integrada e participativa no qual o componente de vigilância popular
em saúde se destaca como essência de um modelo de governança, como um impulsio-
nador de ações para além do setor saúde, integrando outros setores, mas principalmente
movimentos sociais e populares.
Essa concepção de uma vigilância do desenvolvimento vem sendo estruturada diante
de um olhar sanitarista ao ambiente e ao trabalho implantados, especialmente no Mato
Grosso, que se forjou como principal estado do agronegócio brasileiro. A perplexidade
da devastação da biodiversidade, a transformação espacial radical e predatória, como,
por exemplo, com as queimadas associadas ao modelo agropecuário, a ocultação do
trabalho, a progressiva e paradoxal insegurança alimentar, a contaminação sistêmica
dos componentes ambientais e o empobrecimento das administrações municipais pela
evasão fiscal é o ponto impulsionador para definição de uma vigilância que seja capaz
de abordar as diferentes escalas dessa realidade em sua complexidade.
Definimos a vigilância do desenvolvimento como aparato de política social interse-
torial e participativa, produtor de uma territorialização de deslocamento fundamentada
na transformação das bases econômicas do modelo de acumulação da cadeia produtiva
do agronegócio para um modo de produção em ciclos de vida, de promoção da saúde
em territórios saudáveis e sustentáveis. Trata-se da realização estrutural econômica e
social de transposição do trabalho em sua dimensão de reprodução social em que o
cuidado se articula com o modo de produzir.
Será que a vigilância em saúde de base territorial integrada e participativa, um
dispositivo de resiliência, com suas técnicas e espaços institucionais são capazes de
promover uma perspectiva de ação transformadora do cenário de abuso socioambiental
derivado do agronegócio sem limite?
7
A lógica de definição produtiva de um dado território, extrapola os aspectos geográficos e se estende
às relações sociais e de poder que determinam o uso e ocupação dos espaços. Milton Santos discute
o conceito e definição de território, como mais que um espaço geográfico delimitado, ampliado
para as relações sociais estabelecidas pelas populações entre si e com o espaço (Santos, 2001). É no
território que se dão as relações sociais e de poder, os modos de vida, as formas de reprodução social
determinando seu processo de ocupação e legitimação. Atualmente os territórios tendem a sofrer
uma “compartimentação generalizada”, na qual a interface entre os movimentos gerais da sociedade
global e os movimentos particulares de cada ação local e regional se confrontam (Santos, 2001, p. 37),
movimentos que, segundo o autor, retiram a capacidade de decisão das pessoas sobre seus destinos.
WANDERLEI ANTÔNIO PIGNATI, JORGE MESQUITA HUET MACHADO, MARCIA LEOPOLDINA | 357
MONTANARI CORRÊA, MARTA GISLENE PIGNATTI, LUÍS HENRIQUE DA COSTA LEÃO
A aproximação metodológica de pesquisa-ação/formação e informação-ação parte
fundamentalmente da análise do “território”, sobretudo ao concretizar as práticas sociais,
conduzindo ao entendimento diferenciado dos usos desse território, revelando contextos
vulneráveis para a saúde e contribuindo para a tomada de decisão e apoio a processos
de reterritorialização (Haesbaert, 2004).
A luta pela territorialização, ou seja, o processo pelo qual populações, pessoas, gru-
pos, organizações e instituições se fixam em um espaço, em determinado tempo e no
qual organizam e estabelecem relações sociais que permitem criar identidade, vínculo,
pertencimento ao lugar e processos de educação territorializadas, são fortalezas do pre-
sente e potencializadores do futuro (Gondim e Monken, 2017). A educação popular em
saúde, em diálogo com as experiências da educação contextualizada, podem se fortalecer
mutuamente, tanto no marco teórico quanto em ações territorializadas.
A informação para ação, base da operação das atividades de vigilância em saúde,
propõe estruturar um modelo conceitual de formação, ação local/territorial e governança.
Incluem o desenvolvimento de indicadores e ferramentas de apoio a processos para o
compartilhamento e circulação de informações. Em uma aproximação de viés epide-
miológico, da observação e análise do fenômeno e da dinâmica sanitária dos lugares,
inclui a coleta, armazenamento, tratamento e disponibilização de dados secundários
e primários sobre processos, determinantes e impactos na saúde e sustentabilidade,
relacionados ao território.
Um segundo olhar de aspecto comunicacional tem como propósito o fortaleci-
mento das redes locais e sua relação com outras redes acadêmicas, governamentais e
de movimentos sociais, constituindo uma base informacional sobre a qual as ações se
desenvolvem. Esse processo ocorre numa atuação por meio da articulação entre atores
locais e externos, sociais, acadêmicos, governamentais e outros que já desenvolvem ou
têm interesse e capacidade de mobilização e técnica na estruturação de núcleos e temas
relevantes ligados ao território, visando potencializar a capacidade de ação sobre os
determinantes e melhoria das condições de saúde, ambiente e autogestão. Em proces-
sos de formação e governança fundamentados em debates teóricos-conceituais e em
atividades de pesquisa de campo, espera-se que a população seja capaz de contribuir
– a partir da reflexão sobre seu local de trabalho e de moradia, de sua organização ou
movimento social – para a conformação de dinâmicas de governança territorial que
abram a perspectiva da constituição de espaços pedagógicos territorializados ou até
mesmo de territórios educadores, que possam reaplicar e intercambiar essas experiências
em outras comunidades.
A ativação de redes de governança em seu sentido mais amplo pressupõe reflexões
intersubjetivas no compartilhamento e monitoramento de agendas sociais territoria-
WANDERLEI ANTÔNIO PIGNATI, JORGE MESQUITA HUET MACHADO, MARCIA LEOPOLDINA | 359
MONTANARI CORRÊA, MARTA GISLENE PIGNATTI, LUÍS HENRIQUE DA COSTA LEÃO
em um dado território, os quais são componentes estruturais e estruturantes do processo
de reprodução social e sua expressão dinâmica da territorialização, desterritorialização e
reterritorialização dos espaços, em diferentes escalas, que se articulam. Entende-se assim
o território constituído pela dinâmica de múltiplos territórios, que para efeito da ação
de territorialização operada pela Vigilância do Desenvolvimento proposta, destacamos
como escalas de análise territorial, partindo do macro para o micro: o país, as regiões
do país, o estado, as regiões do estado, o município, os microterritórios do município
e a unidade territorial básica / comunitária e singular em contínuas e dinâmicas redes
transversalizadas.
A dinâmica territorial multiescalar e a dialética entre o trabalho abstrato/pensado
e trabalho real/concreto e território real/concretos e território abstrato/pensado, são
estruturantes e indutores do processo saúde/doença, relacionado às transformações
socioambientais (Gramsci, 1978). A representação da determinação social do PSD do
abstrato geral ao concreto comunitário – Unidade Básica Territorial em conexão com
múltiplas escalas espaciais integradas e singulares ao mesmo tempo.
Esse modelo de contexto representa a relação entre a determinação social da doença
com uma teoria geral da vigilância em saúde e seus campos de intervenção abstratos
e concretos, em que a vida e o trabalho se reproduzem social e ambientalmente em
um processo contínuo de territorialização. Fazendo um deslocamento de interação
transdisciplinar e interinstitucional da Vigilância em Saúde, é criada uma base de ação
de vigilância do modo do desenvolvimento em múltiplas escalas de abstração e de
concretudes, produzida pelo debate político e social participativo em uma construção
social, técnica e emancipatória.
As doenças do agronegócio podem ser pensadas como patologias socioecológicas, enquanto estágios
8
Referências
BRASIL. Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta, das Águas.
Brasília/DF: Ed. Ministério da Saúde, 2013. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/
publicacoes/politica_nacional_saude_populacoes_campo.pdf. Acesso em: 14 maio 2019.
BRASIL. Portaria n. 1.823, de 23 de agosto de 2012. Institui a Política Nacional de Saúde do
Trabalhador e da Trabalhadora. Diário Oficial da União, 24 ago. 2012.
DUSSEL, E. ¿Qué Marx para el siglo XXI? In: DUSSEL, E. D. et al. Marx 200: presente, pasado
y futuro. Buenos Aires: Clacso, 2020, p. 37-58.
FRANCO NETTO, G. et al . Vigilância em Saúde brasileira: reflexões e contribuição ao debate
da I Conferência Nacional de Vigilância em Saúde. Ciênc. & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro,
v. 22, n. 10, p. 3.137-3.148, out. 2017.
GONDIM, G. M. M.; MONKEN, M. Território e Territorialização. In: GONDIM, G. M. M.;
CHRISTÓFARO, M. A.; MIYASHIRO, G. Técnico de Vigilância em Saúde: Contexto e Iden-
tidade, v. 1. Rio de Janeiro: EPSJV, 2017.
GRAMSCI, A. Concepção dialética da história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.
WANDERLEI ANTÔNIO PIGNATI, JORGE MESQUITA HUET MACHADO, MARCIA LEOPOLDINA | 361
MONTANARI CORRÊA, MARTA GISLENE PIGNATTI, LUÍS HENRIQUE DA COSTA LEÃO