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PRODUÇÃODOESPAÇOURBANO
ELUTASSOCIAIS

Lúcio Kowarick i.x.EXPLORAÇÃO DO TRABALHO


E ESPOLIAÇÃO URBANA

Em 1985, viviam na Região Metropolitana de SãoPaulo mais


ESCRITOS' de 14 milhões de pessoas.l A maioria mora em habitações precá-
rias -- favelas, cortiços e casas autoconstruídas em terrenos des-
URBANOS tituídos de serviços públicos -- e ganha poucos salários míni-
mos por ml?l revelando um acentuado grau de pauperismo e pre-
cárias condições urbanas de existência. A Região configura-se
Foto©afi« enquanto Metrópole não só pela sua extensão territorial, mas
To/z:z&Rezende também pótque é a partir dela que se organiza a dinâmica do
capitalismono Brasil, pois aí se concentra a engrenagemprodu-
tiva essencialà economia do País. Local privilegiado do período
de expansão éconõmica, durante o qual se implantaram, a partir
dos anos 1950, inúmeras empresastecnologicamentemodernas
Prof' Simone Scifoni que geraram enorme volume de excedente, ao mesmo tempo em
que os salários da maioria mantiveram-se deteriorados, a RMSP
FLG 0560 Geografia Urbana l
é agora cenário onde impera vasto contingente de desempregados:
4 ig /.4 .2.,/l)ópias as consequênciassociais da derrocada económica que se abre a

l A Região M.etropolitana de São Paulo -- RMSP -- daqui para fren


te será também designada'de Metrópole, Grande São Paulo ou Região. Com
posta de 37 milnicípios, dentre os quais destaca-seSãoPaulo, que será tam
editoraH34 ê
bém designada Cidade ou Capital. Os demais capítulos também seguem es
tas denominações.

Produção do espaço urbano e lutas sociais 19


partir de 1980 são funestas, pois a crise afeta, de modo particular, to dasjornadas e o ingresso,também significativo, de outros mem-
ocoração industrial do País. bros da família no mercado de trabalho. A mudança radical que
Deve ser enfatizado que a Grande São Paulo é o lugar privi- se abre com os anos 1980 resideno fato de que, antes, a eipan -
legiado da acumulaçãodo capital no Br?sil e as contradições que são económica gerou uma quantidade de empregos que em certa
nela se espelham não são fruto de uma urbanização que se expan- medida contrabalançou a queda dos níveis de remuneração, ao
diu no bojo de um incipiente processo de industrialização, como passo que, com o avançar da década, não só se acentuou o grau
ocorre em muitas grandes cidades brasileiras e latino-americanas. de pauperização, como também muitos nem mesmo conseguem
Ao contrário, é um caso em que o crescimento da Metrópole foi setransformar em mercadoriasuperexploradapor um capitalis-
acompanhado e decorreu, pelo menos até 1980, de intenso dina- mo que se atola no pântano da recessão:no final de 1983, havia
mismo económico: até então as exclusões sociais prementesna na Grande São Paulo cerca de l milhão de desempregados, mon-
RMSP não tinham sido, portanto, originárias da estreiteza de uma tante que corresponde a 15% da população economicamente avi-
estrutura produtiva, na qual uma massapopulacional tivessese va. O nível de empregoindustrial voltou a ser semelhanteao im-
avolumado sem que houvesse criação de empregos. perante em 1973, num contexto em que continuou acentuado o
O que importa resgatar desta discussão é que, mesmo antes incremento demográfico da Região, pois nestesdez anos sua po-
11da conjuntura de crise de 1981-1983, o modelo de crescimento pulação aumentou 38%. Ademais, a perda da oportunidade de
bl implantado no Paísalijou a imensa maioria dos benefícios de uma um trabalho permanentee regular só poderia aumentar as taxas
sociedade que teve notável desempenho económico. Não é o caso de subemprego, que passam a representar aproximadamente 20%
de repetir aqui suas funestas consequências sociais. Basta dizer que da força de trabalho.
semelhante modalidade de acumulação alicerçou-se em acentua- Como não .poderia deixar de ser, num País em que os pró-
do aumento da produtividade do trabalho, que não só deixou de 1:,riostrabalhadores -- e não o Estado -- devem sustentar aqueles
ser repassado para os trabalhadores, como também os salários de que foram parcial ou totalmente alojados das engrenagens produ-
boa parte destes,em particular dos segmentosnãó qualificados, tivas, tornaram-se dramáticas as consequências sociais e psicoló-
deterioraram-se em termos reais. Nesse sentido, aponte-se que o gicasdessemassivo problema: a diminuição drástica nos níveis de
patamaif mínimo de remuneração, entre 1959 e 1990 em São Pau- consumo, a desorganização familiar e a violência são, dentre inú-
lo, decrj:sceu em termos reais cerca de 70%. Na RMSP a renda meros outros, alguns acontecimentos que seacirraram no cenário
familiaJI em 1977 era de 550 dólares mensais, e dez anos após .da RMSP. Isso para não falar do enorme surto de pessoas que, pe-
decaíadará 290 dólares, mostrando de forma cabal o significa(io las ruas, esmolam ou procuram vender uma gama variada de ob-
do que já foi chamadode "décadamais do que perdida". Seme- jetos ãos pedestres e motoristas que circulam pela Cidade cada vez
lhante redução assumesua real significação quando se tem em mais temerosos de ser assaltados. Ao mesmo tempo, nas empresas,
conta que não setrata de uma oscilação ocasional, fruto de mo- são frequentes as dispensas, gerando um clima constante de amea-
mentos recessivas,mas de características estruturais do capitalis- ça que passou a impregnar o cotidiano não só da classeoperária,
mo brasileiro destasúltimas décadas. mas também de segmentos importantes das camadas médias, onde
Trata-se, em suma, de um capitalismo tecnologicamente mo- o desempregotambém tem penetrado de forma significativa.
derno, mas que guardou inúmeras modalidades de extração de Baixos salários, o desgastedecorrente das longas jornadas
mais-valia na sua forma absoluta, ocasionando acentuado aumen- de trabalho do período de expansão económica ou o desempre-

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Escritos urbanos Produção do espaço urbano e lutas sociais 21
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go e subemprego são causasque têm levado à enorme dilapidação cedenteeconómico que gera essesdois aspectosinterligados da
da energia física e mental dos trabalhadores, que são subnutri. reprodução dos trabalhadores. Eles são, contudo, mediatizados
dos, moram em habitações precárias e despmvidas de infraestru- pela ação do Estado, que regula as condições de trabalho e de
tura, não têm acessoa.serviçosmédicosadequadosou ao siste- remuneração e, de maneira direta ou indireta, gera os bens de
ma educacional, elementos, entre outros, fundamentais para a consumo coletivo essenciaisà reprodução urbana dos trabalha-
reprodução da força de trabalho. Estas últimas considerações dores: Dessa forma, mesmo quando os graus de pauperização são
abrem a possibilidade de visualizar outro ângulo que influencia mantidos inalterados, rebaixados ou minorados, os padrões de
o padrão de vida e que, apesar:de estar diretamenteligado ao reprodução urbana poderão melhorar ou piorar em razão do que
processo de exploração do trabalho, não pode ser reduzido a ele. os moradores consigam obter do poder público em termos de ser-
Trata-se de um conjunto de situações que pode ser denominado viços e equipamentoscoletivos, subsídios à habitação ou facili-
de esmo/caçãoz rba a: é a somatória de extorsões que se onera dades de acesso à terra provida de infraestrutura. Essesproces-
pela inexistência ou precariedade de serviços de consumo cole- sos variam segundo conjunturas políticas e podem ou não estar
tivo, que juntamente ao acessoà terra e à moradia apresentam- associadosàs conquistasque o movimento operário e sindical ob-
-secomo socialmentenecessáriospara a reproduçãodos traba- tenha na esfera das relações de trabalho.
lhadores e aguçam ainda mais a dilapidação decorrente da explo- Pode-se dizer, em suma, que a esmo/loção abana não é ape-
ração do trabalho ou, o que é pior, da falta desta.2Na Grande nas outra faceta do trabalhador pauperizado. Ela decorre, con-
São Paulo, sao inúmeras as manifestações dessa situação espo- vém insistir, do processode acumulação do capital mas também
liativa, que vão desdeas longas horas despendidas nos transpor- da dinâmica das lutas e reivindicações em relação ao acesso à terra,
tes coletivos até a precariedade de vida nas favelas, cortiços ou habitação e bens de consumo coletivo. Dessa forma, a questão fun-
casasautoconstruídas em terrenos geralmente clandestinos e des- damental reside na capacidadedos vários grupos e camadas so-
tituídos de benfeitorias básicas,isto para não falar da inexistência ciais de pressionar e obter do Estado esseselementos básicos para
das áreas verdes, da falta de equipamentos culturais e de lazer. sua sobrevivência nas cidades. O papel do Estado é fundamen-
da poluição ambiental, da erosão e das ruas não pavimentadas e tal, não só pelas razõesjá arroladas, mas também porque o in-
sem iluminação.
vestimento que injeta no tecido urbano é fator de intensa valori-
E preciso reafirmar que a espoliação urbana está intimamente
zação diferencial da terra, aparecendo como atar importante no
ligada à acumulação do capital e ao grau de pauperismodela processo de especulação imobiliária e segregação social.
decorrente. Isso porque os trabalhadoras assalariadose autóno-
Nesseparticular, deve-seressaltarque a principal fatia do
mos ou os desempregadossão também moradores espoliados, e, investimento público tem sido, no caso de uma metrópole como
sobretudo, porque é a dinâmica de criação e apropriação do ex- São Paulo, dirigida para áreas onde vivem e trabalham os grupos
de renda média e alta, bem como para maximizar a realização do
capital, gerando grandeparte das assimchamadascondições ge-
2 A noção de espoliação urbana foi inicialmente exposta no livro .4 rais necessáriaspara o processode acumulaçãose reproduzir em
esmo/farãourbana, São Paulo, Paz e Terra, 1979. No capítulo 6 destelivra escala ampliada. Daí decorre o que tem sido normalmente designa-
ela reaparece com novos ingredientes teóricos que visam dar elementos ex- do pela expressãocomfradfçõesurbanas, pois os investimentos pú-
plicativos para a questão das lutas sociais urbanas.
blicos em bensde consumocoletivo têm sido tradicionalmente

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realizados em prejuízo da grande massa dos trabalhadores.3 A fim da moradia, não podendoser esquecidoque, após a ll Guerra
de obter uma visão mais precisa daquilo que estou denominando Mundial, São Paulo passa a ser receptor de volumosas levas de
de esmo/!anão n7'baba, convém explicitar alguns pontos, apro- migrantes. Nesse período, o aluguel ainda continua a ser a forma
fundando a questão da habitação popular e do acessoà terra. predominante de moradia, mas já então se esboça o espraiamen-
to da autoconstrução por embrionários centros que se espalham
por um espaço mais expandido, dispersoe rarefeito de popula-
z.z.PRODUÇÃO DOESPAÇOURBANO ção.4 Decorrente de um patamar de acumulação que se torna mais
EHABITAÇÃOPOPULAR
diversificado e complexo, fundamentalmentecom a entrada mas-
siva do capital estrangeiro no decênio de 1960, a periferização da
Até os anos 1930, quando começaa se ampliar a basepro- moradia popular foi viabilizada pela alteração prévia no sistema
dutiva ainda apoiada nos setoresrabi:is tradicionais, principalmen- de transporte, que começoua ocorrer a partir de 1940: o bonde
te a indústria têxtil e de alimentação, a-acumulação industrial se passaa ser paulatina e crescentemente substituído pelo ânibus, veí-
concentrava em poucas empresassituadas em alguns pontos da culo muito mais versátil na produção de terras habitáveis, unin-
Cidade.Nesseperíodo, a expansãoindustrial e da moradia da do casasautoconstruídas nas periferias destituídas de infraestru-
classe trabalhadora processou-se de maneira bastante adensava. tura aos locais de emprego e servindo de intensa especulação imo-
confundindo-se a vida nas fábricas e nos bairros operários. Em biliária à medida que zonaslongínquas foram transformadas em
contraponto a esta forma de crescimento mais adensada, de modo "lotes", vendidos, no mais das vezes,de forma legalmenteirre-
especial até o final dos anos 1970, ocorreu acentuada desconcen- gular. Enquanto estefenómeno ocorria nasperiferias que se mul-
tração das moradias dos trabalhadores, que, de alguns poucos tiplicavam, as áreas mais próximas dos centros, em grande parte
bairros sediados em torno dos antigos centros fabris -- Brás, Be- já equipadas, eram retidas para fins especulativos. Esseprocesso
lém, Barra Funda, Mosca -- irradiam-se para inúmeras árc:asda originou os assim chamados "vazios urbanos", que, mais cedo ou
Capital e depois para vários pontos da Grande SãoPaulo, origi- mais tarde, passarama serservidospor infraestrutura urbana ge-
nando o que se tem denominado padrão periférico de ocu])ação rada pelo Estado, o qual, por esta via, valorizou enormemente um
do solo urbano. Aponte-se, nesseparticular, que a mancha urba- vasto estoque de terrenos que permanecera vedado à moradia da
na da Região Metropolitana possuía mais de 1.700 quilómetros população.
quadrados, área dez vezessuperior à imperante em 1930, e que A produção do espaçogera, portanto, zonas que por causa
somente na década de 1980 se.expandiu em 500 quilómetros qua- do preço da terra só podem ser destinadas às camadas de maior
drados, por uma forma de ocupaçãoaltamenteespeculativae pre-
datória. Ela decorreu de vários fatores interligados, dos quais o
principalresidiu no próprio avançoda industrialização,que sees- 4 Os domicílios alugados em São Paulo de 1920 correspondem a 79%
palhou por novos núcleos, seguindo os eixos ferroviáriQ$.e, Pos- do total de unidades habitacionais então existentes; em 1940, eles engloba-
teriormente, os rodoviários. Simultaneamente ocorre a dispersão vam 75%; dez anos depois, 68%; em 1970, a parcelade moradias de alu-
guel caía para 38a%o.
Em 1980 sobe para 40% e em 1991 cai para 29%, o
que é consequência não do incremento da casa própria, mas do enorme cres-
3 Conforme Christian Topalov, l,a #rbanfzación caP la/fofa, Cidade do cimento da população favelada, que atinge, como será visto no capítulo se-
México, Edico1, 1979. guinte, cerca de 20% da população paulistana em meados dos anos 1990.

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poder aquisitivo: nelas, a um custo económico alto corresponde quadrado de terreno, na Capital, entre 1959 e 1990, aumentou
em mais de 150%. Essaé a principal razão, como se verá a se-
um ânus social -- medido em termosde infraestrutura e serviços
públicos -- praticamente nulo. Por outro lado, nas zonas onde guir, do aumento de moradoresem favelase cortiços ocorrido du-
esseselementos são praticamente inexistentes-- que são as úni- rante o final da décadade 1970, em momento, portanto, antcrior
cas a que a população pauperizada teh acesso--, o custo econó- à derri)Cada económica de 1981-1983.
mico é relativamente baixo, mas emcontrapartida o ânus social De toda forma, a "casaprópria" foi até 1980 a forma pre'
medido em termos de espoliaçãourbana é extremamente alto. ponderante de habitação popular na Grande São Paulo, onde se
Deve-se dizer que com a chegada de melhorias urbanas em estima que 63% das moradias foram confeccionadas a partir do
áreas antes desprovidas, eleva-seseupreço económico à medida processo autoconstrutivo. Não obstante essemontante variar, o
que decai seu ânus social. No momento em que ocorre essepro- percentual é significativo em todas as áreas, inclusive em SãoPau-
cesso de valorização, essas áreas, antes acessíveis a faixas de re- lo. onde a metade das residências permanentes foram erguidas por

muneração mais baixa, tendem a expulsar a maioria dos locatá- essamodalidade de construção.6 As formas de construção da mo-
rios, os proprietários que não puderem pagar o aumento de ta- radia variam, mas as pesquisasinformam que, na maior parte dos
xas e impostos, transformando-se em zonas para camadas melhor casos,o encargo recai sobre a família autoconstrutora. Tanto é
remuneradas. Ademais, elas sefechampara o contingente de no- assim que a metade das pessoas envolvidas nessa modalidade ha-
vos moradores pauperizados, que deverá procurar em outros lo- bitacional na Grande SãoPaulo declaranão ter utilizado mão de
cais, desprovidos de benfeitorias, uma habitação para alugar ou obra remunerada.7 Isso é necessárioporque são poucos os que têm
comprar um terreno para construir a sua "casa própria":5 repro- recurêóspara planejar o andamento da obra de modo a assalariar
duz-se, assim, um padrão de periferização que aumenta enorme- trabalhadores de maneira regular. Produzida por técnicas rudi-
mente os assim denominados custos de urbanização, pois sempre mentares,a casaserve como abrigo, uma vez que sua finalidade
são geradas novas áreas longínquas e rare(eitas de população que é gerar um componente indispensável para subsistir nas cidades
deverão ser -- algum dia -- providas com um mínimo de servi- e nãoobter lucro por sua venda. É preciso enfatizar que essetipo
ços públicos. Reproduz-se também uma forma de expansão ur- de produção de moradia supõe,de um lado, um tempo de traba-
bana extremamente dilapidadora para aqueles que não têm recur- lho suplementarno processoprodutivo, que se traduz na amplia-
sos económicos e políticos para pagar o preço de um progresso ção da já normalmente extensa jornada de trabalho, venda de fé-
altamente espoliativo. rias, Übicos" e outros expedientesqueos trabalhadores precisam
As dificuldades para a aquisição de um terreno por parte dos desenvolver para levar adiante a realização de sua casa própria.
trabalhadores são crescentes.Como já apontamos, enquanto o va-
lor dos salários foi reduzido de modo drástico, o preço do metro ! SuzanaPasternak Taschner e Yvonne Mautner, A/fernaffuas babf-
[aciaMfs pata a popa/anãode baila ren(ü, SãoPaulo, FAU-USP,s.d.(mi-
meo.)! p. 15.

5 A argumentação aqui desenvolvida baseia-se em Cardos Nelson Fer-


:7Secretaria da Economia e Planejamento do Estado de São Paulo,

reira Santos,"Velhas novidadesnos modosde urbanizaçãobrasileira". In: "Construção de moradias na periferia de São Paul(i: aspectossociais, eco-
nõhicbs e institucionais". In: Estudose Pesquisas,n. 30, SãoPaulo, 1979,
Lida do Prado Valladares (org.), Habffaçãoem questão, Rio de Janeiro,
Zahar, 1980,p. 25. tabela n' 59.

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28 Escritos urbanos Produção do espaço urbano e lutas sociais
A ampliação do tempo de trabalho propriamente dito implica, deve ser entendido como uma alternativa altamente espoliativa.
também, um tempo de trabalho suplementar na ampliação e cons- Consegue realiza-la quem dispõe de energia física para aumentar
tante reparação da moradia. Esta labuta no canteiro de obras não
a jornada de trabalho vários dias por semana a fim de conseguir
é, obviamente, um trabalho excedente.É, isso sim, um sobrefra- uma sobra que permita realizar paulatinamente a obra nas "ho-
ba/bo graf#ifo que serve para produzir um meio de subsistência ras livres". Consegue realiza-la, ainda, quem diminui as despesas
para sereproduzir Pomomão de obra pauperizada;peloproces- básicase quem dispõe de braços na família também submetidos
so produtivo.8 Essetempo de trabalho extra, retirado do que iro- a essesprocessos:Ppara os autoconstrutores, além dos enormes
nicamente se chama de "tempo livre", é um tempo necessárioà sacrifícios para erguer a casa,surge uma moradia destituída de
sobrevivência nas mefrópo/es do snbdesenz/o/z/fmezzfo /ndusfr/a- serviçospúblicos, de péssimaqualidade habitacional e, na maio-
//gado, que decorre do fato de a remuneração ser extremamente
ria das vezes,longe do local de emprego. Para o poder público
baixa. Assim, a autoconstrução, por seruma fórmula que exclui representa gastos e ausência de recursos crescentes para enfren-
dos custos da habitação o valor da força de trabalho, constitui tar uma expansão urbana rarefeita, onde pipocam, como severá
vigorosa fonte para manter os salários permanentes deprimidos, a seguir, as reivindicações e lutas por melhorias urbanas.
à medida que barateia os custos de sua reprodução. Fórmula só Possuir uma moradia é, sem dúvida, uma necessidade da po-
paradoxal na aparência, pois ao mesmotempo exclui o$ traba- pulação trabalhadora, pois, dadas as intempéries do sistema eco-
lhadores do mercado formal de moradias e os obriga a construí- nómico, representa a possibilidade de não pagar aluguel. Mas nem
-las. Isso no caso de poderem e quererem escapar dos cortiços ou todos podem ou querem construir suasmoradias. Não podem pelo
das favelas.
elevadopreço dos terrenos e não querem porque os sacrifícios de
As pesquisasrealizadasindicam também os enormessacri- confeccionar uma casa,as horas gastasno transporte coletivo e a
fícios que os autoconstrutores precisam fazer para erguer suas precariedadedos bairros periféricos podem parecer muito mais
moradias. Contudo, essascondições, quando comparadas ao alu- elevados do que a insegurança presente ou futura. Por isso é que
guel, surgem como compensadoras, pois a situação de não pro- proliferaram os cortiços, na décadade 1970, nas áreasmais cen-
prietário representauma vulnerabilidade ainda mais acentuada. trais de SãoPaulo, onde o tempo e o custo do deslocamentosão
posto que a casaprópria é, até certo ponto, garantia para os fre- bem menoresdo que os vivenciados numa situação de moradia
quentes momentos de crise, doenças, acidentes e o desemprego, nas áreasperiféricas. Ambientes insalubres e superlotados, mis-
problemas que constantemente afetam boa parte dos trabalhado-
tura desexos e idades, são características comuns no seu cotidia-
res. Além disso serve como uma espécie de passaporte de boa con- no, mas, pelos crescentesónus inerentes à autoconstrução, mui-
duta, contrapondo a condição de proprietário, aqueleque ven- tos são levados a essa condição de moradia. Assim, proliferam os
ceu na vida, aosindivíduos que vivem na promiscuidade dos cor-
cubículos: velhos casarões são adaptados para receber o maior
tiços e favelas.Não obstantetal fato, o "vale a penaconstruir" número possível de inquilinos e, não raras vezes, muitas constru-

8 Franciscode Oliveira, "A economia brasileira: crítica à razão dua- 9 Mana Helena Beozzo de Lama, "Em busca da casaprópria: autocons-
lista", Estudos CEBRAP, n. 2, SãoPaulo, Editora Brasileira de Ciências. truçãona periferia do Rio deJaneiro". In: Lida do PradoValladares(org.),
outubro de 1982,p. 31.
Habitczçãoem questão, Rio de Janeiro, Zahar, 1980.

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çõessão especialmenteconfeccionadaspara essamodalidade al- maioria dos casos,parte dessapopulação sofreu um processode
M
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tamente lucrativa de aluguel. Issoocorre tanto nas áreascentrais mobilidade domiciliar descendente, pois em 45% dos casos viviam
como nas periferias, onde no restante do terreno são construídas anteriórmenté em moradias de aluguel ou em casaspróprias.''
fileiras de cubículos servidos por um único banheiro e, às vezes, Concluído este tópico, convém frisar que a crise económica
por um só poço, onde imperam a promiscuidade e a contamina- que se*abre na década de 1980 só poderia trazer essesresultados
ção ambiental. para uma população que já havia sido extremamente pauperizada
Em 1961, 18% da população da cidade vivia em cortiços.lO no período d(i assim chamado "milagre brasileiro", pois ela não
Em meados da década seguinte, quando o processo de autocons- tem seguro desemprego e, portanto, quando não consegue ven-
trução havia aumentado significativamente, 9% dos habitantes de der suã força de trabalho, precisa comprimir ainda mais os níveis
São Paulo amontoavam-se em cortiços -- casarões,porões ou de consumo, entre os quais a moradia, que constitui um elemen-
meias águas -- a uma média de três pessoas por cubículo, na quar- to ao Mesmo tempo essencial e dispendioso.
ta parte dos quais não havia janelas.ll Para anos mais recentes. É nessequadro que, no decorrer dos anos 1970, marcados
especialistas apontam que as moradias precárias de aluguel que por Hágranteautor'itarismo político, trabalhadores explorados e
continham instalaçõessanitáriasdeuso comum totalizavam 10% moradores espoliados intentaram suas primeiras reivindicações,
dos domicílios de São Paulo em 1980.Í2 Esta é uma das caracte- culminando nos grandes conflitos do final da década. A crise eco-
rizaçõesda vida em cortiço e, como sesabeque nestasituação nõmiêa e a abertura política dos anos 1980 constituem marcos
habitacional há maior adensamento de pessoaspor cómodo, não de referência para analisar as reivindicações e conflitos sociais na
é destituído de sentido afirmar que, naquele ano, mais de 850 mil RMSP, quando novas formas de aglutinação parecem estar se
pessoasmoravam nessa condição extremamente espoliativa de esboçandonos bairros e nas fábricas deste cenário metropolita-
habitação. no pleno de desigualdades e antagonismos.
Na favela vive uma população, em média, mais pobre do que
os habitantes de cortiços e das "casas precárias de periferias": o
número aumentou sensivelmente com o passar dos anos, subindo I.3. LUTAS SOCIAIS NOS BAIRROS E NAS FÁBRICAS:
de 1,1% da população da Cidadeno início dos anos 1970, para ELEMENTOSPARA DISCUSSÃO

8,9% em 1987, ou seja, mais de 812 mil pessoasque vivem em


cerca de 80 mil barracos, cuja renda familiar na metade dos casos Na.Grande São Paulo inúmeros são os grupos que se agluti-
atinge até três salários mínimos mensais.Apesar de migrante na nam para levar adiante suas reivindicações. Elas começaram a se
intengifiéar após as greves metalúrgicas de 1978, que se deram
concothitantemente ao movimento pela anistia ,política, proces-
vo M. O. Baruel Lagenest, "Os cortiços em São Paulo", Anbembi, São
Paulo,n.139,junho de 1962. so que reuniu amplos e variados segmentos sociais que visavam
ao fim da ditadura militar. Seus resultados foram lentos e relati-
ii Secretaria do Bem-Estar Social do Município de São Paulo, Düg-
nóstico sobre o fenómeno dos cortiços no Município de São Paulo, SãoPau-
lo, 1975.

lz Suzana Pasternak Taschner, Pape/ase corffços no Brasf1: 20 anos de n Suzana Pasternak Taschner, Conhecendo a cidade ifzáormíz!, s.l., s.d
pesquisa, s.l., atualizado em abril de 1997 (mimeo.), p. 17. (miméo.), p. 26; e Fat/e/as e cortiços no BrasiJ, falem.

32 Escritos urbanos Produção do espaço urbano e lutas sociais 33


vos, pois o poder central guardou muitos instrumentos discricio- lo que pode ser designado como uls/b//idade socfa/ e po/#im. So-
nários, a fim de manter as decisõesestratégicasrestritas a um cial, no sentido de que são vistos como problemas que se enrai-
minguado círculo que, autoritária e repressivamente, governou o zam como necessidadesque, não atendidas, são, no entanto, perce-
País depois do golpe de 1964.Com as eleiçõesde 1982,.nas quais bidas por amplo contingente como demandas legítimas, direitos
os partidos da oposição foram vitoriosos em vários estados.in- a seremconquistados. Política, na acepçãode força organizativa
clusive em SãoPaulo, onde foi eleito um governador pelo PMDB, que pressiona, por vários canais, os centros decisórios, em parti-
e com os massivos comícios pelas eleições diretas que se desenro- cular os órgãos do Estado.
laram por todo o Paísdurante 1984, houve um aumento nas ex- E preciso reafirmar que, na maior parte das vezes, os estu-
pectativas dos grupos populares que visavam escolher, pt:lo voto dos que analisaram os movimentos sociais deixaram de perceber
direto e universal,o próximo presidenteda República.Visavam as conexõesentre as lutas que se operam no mundo do trabalho
também, por esseprocesso de extensão da cidadania política, à e aquelasque seprocessamno âmbito dos bairros. Malgrado as
diminuição das vastas iniquidades ligadas aos direitos sociais e especificidades das reivindicações de moradores espoliados e tra-
civis, que continuam uma das principais promessasnão cumpri- balhadores explorados, pesquisasde maior profundidade mostra-
das da democracia brasileira.
ram que semelhantesegmentação era muito mais analítica do que
Antes de abordar estetema, creio ser importante retomar em real, na medida em que se verificou que várias greves foram cons-
suas grandes linhas as trajetórias do movimento operário e po- truídas e se apoiaram nas expor/ê/zclas de /ufa sedimentadas em
pular que lentamente ressurgedurante a décadade 1970. Neste organizaçõesde moradores, bem como observou-se que os em-
particular, é conveniente ressaltar de imediato que, além das rei- bates operários tiveram grande repercussão nas reivindicações das
vindicações e conflitos que decorrem do processo de exploração associações de bairro.14É o caso, por exemplo, da grevemeta-
do trabalho e de espoliação urbana, muitos são os grupos que se lúrgica deflagrada em São Paulo em 1978, cuja trajetória come-
organizaram em torno de uma gama variada de demandas, entre ça anos antes, em lutas moleculares, que passam por aglutinações
as quais se destacamo movimento feminino e o das minorias ra- de bairro ligadas à lgrela católica e só mais tarde pela oposição
ciais, principalmente os negros, que procuraram colocar em xe- sindical metalúrgica. As lutas levadas adiante por inúmeros gru-
que uma situação secular de subalternidade, exclusão e precon- pos que reivindicaram melhorias urbanas construíram, também,
ceitos de várias ordens e matizes. Sem menosprezar a capacidade práticas organizativas que serviram para o surgimento dessepri-
reivindicativa dessasaglutinações e semafirmar que são teórica meiro grande conflito operário após um decêniode autoritarismo.
e praticamente secundárias ou dependentesde outras formas de cujo vigor não pode serexplicado apenasa partir das fábricas ou
luta, não resta dúvida de que, no contexto da Grande São Paulo do sindicato, que, muito ao contrário, neste caso posicionou-se
daquela época, os movimentos operário-sindicais: e aqueles que contra a greve.
seprocessaram em torno do acessoà terra, moradia e bens de con-
sumo coletivo foram os que demonstraram maior vigor nas suas
iniciativas de luta. Presentesde maneira dramática no cotidiano
14Utilizo o termo "experiência" na acepção de Edward P. Thompson,
de milhões de pessoas, as consequências da exploração do traba- Tradiêión, reuuelta y conciencia de clave: estádios sobre la crisesde la socie-
lho e da espoliação urbana afloram, mais do que outros, como dad Frei d sfrlaJ, Barcelona, Crítica, 1977. Esta questão será detalhada a
problemas coletivos, adquirindo no cenário metropolitano aqui- seguir, no Capítulo 4.

34
Escritos urbanos Produção do espaço urbano e lutas sociais 35
Essagreve marca a abertura de uma conjuntura de intensos tensão ainda dependia muito dos canais abertos pelas
conflitos fabris que se estendematé o final da década. O centro Comunidades Ecjesiaisde Basee outras formas de or-
nevrálgico está no setor metalúrgico da Grande São Paulo, e o ganizaçãopopular. Os trabalhos de bairro permitiram
movimento mais vigoroso, em SãoBernardo do Campo, onde as o surgimento de inúmeros militantes, coisa que só o tra-
fábricas, em 1980, ficaram paralisadaspor 41 dias. Nesseepisó- balho no interior das fábricas não garantia ou o fazia
dio, à semelhançado que ocorreu nos dois anos anteriores, é in- em escala muito reduzida. Vários são os oçemplos de
tenso o apoio que as organizaçõessedimentadasnos bairros da operários que antes de assumirem uma ação militante
Metrópole forneceram aos trabalhadores em greve.15A análise nas fábricas, passaram pelo aprendizado de organiza-
dessas paralisações ficaria enormemente empobrecida se fosse ção e luta nos bairros. Também são vários os exemplos
apenas realizada pela capacidade de organização sindical e grau de pequenas lutas desenvolvidas nas fábricas prepara'
de mobilização dos trabalhadores diretamente envolvidos no con- das por operários a partir de seu local de moradia."16
flito. Isso foi fundamental, como também foi o apoio material e
a solidariedade generalizada com a causa operária. Como será Penso que as organizações de bairro não foram mera escola
apontado no Capítulo 4, esteé um momento de /üsão em que um de conflitos que serviu para acionar as lutas operário-sindicais,
confronto que ocorre no mundo do trabalho se alimenta de múl- espéciede resíduo que teve uma razão de ser enquanto estiveram
tiplas e díspares aglutinações forjadas em lutas cotidianas centra- vedados os conflitos no espaço fabril. Ou seja, creio ser falaciosa
das nos bairros, onde vivem e reivindicam as populaçõespaupe- a afirmação segundo a qual as lutas desenvolvidas nos bairros
rizadas que lutam por melhorias urbanas. serviram apenaspara paralisar as máquinas, como pretendemas
No período anterior a 1978, fundamentalmenteno início da interpretações marxistas mais ortodoxas dos conflitos sociais. Ao
década, a forte vigilância e repressão impediam qualquer ação de contrário, além de alimentarem, como já assinalei, as lutas ope-
maior envergaduradentro das fábricas, o mesmoocorrendo com rárias do final da década, as aglutinações propriamente urbanas
os sindicatos, que então seencontravam literalmente paralisados. tiveram impacto social e político não desprezível,como atestam
Nessecontexto, o revigoramento operário ocorre nos espaçosdo as inúmeras reivindicações em torno de melhorias por transpor'
bairro, menoscontrolados, onde passarama existir iniciativas que te, água, esgoto,crechese outros bens básicospara a vida nas
visavam retomar a luta nas fábricas. É o período em que nascem cidades.
os primeiros sinais de resistência operária, no mais das vezes,fora Nestesentido, em incontáveispontos da Metrópole despon-
dos locais de trabalho. Vale a longa citação: taram, desdeo início dos anos 1970, grupos e associaçõesque dis-
cutiam as condições espoliativas da vida cotidiana, pressionando
"[...] até 1978, o principa] campo de articulação de múltiplas fomias os poderes públicos e, mais do que isso, trazen-
do movimento operário ainda seria os bairros. Sua ex- do à tona problemas que focaram uma co/zsciêncfade exclusão
que passou a ser um elo de reivindicações entre os moradores de

is Silvio Caccia Bata, "As lutas no bairro e as lutas sindicais". In: Lúcio
Kowarlçk (org.\, As lutas sociais e a cidade: São Pauta, passadoe presente, ió Veta da Silva Telles, O bairro'e a /ãbrfca; a J fa dos melalúrgfcos
São Paulo, Paz e Terra, 2' ed., 1994, pp. 253-76. em São Pa#lo, São Pauta, CIEDEC, 1982 {mimeo.), pp 19 e 20.

36 Escritos urbanos 37
Produção do espaço urbano e lutas sociais
numerosos bairros das periferias da Metrópole: naquela época,
damentalmente, nas greves pelas quais, desde 1978, o movimento
em grande parte devido à açãõ da Igreja católica por intermédio
operário colocou em xeque a legislação vigente e nas ocupações
das Comunidades Eclesiais de Base (CEB), clubes de mães, asse.
de áreas urbanas que se multiplicaram em vários pontos da Me-
fiações de jovens e outras articulações ligadas às pastorais cató:
trópole, nos anos .1980. Naquela época, o direito de greve foi algo
licas, as pessoas pasmaram a se reconhecer, a perder o medo de
percebido como válido e necessário por aqueles que o praticavam
pensar e agir e, de forma ainda embrionária e fragmentada, come-
e tiveram amplo apoio em vastos e variados segmentos sociais, for-
çaram a esboçar um campo de resfslê/zc/ae organização popa//ar.
mando uma corrcnte de ações e opiniões que legitimava essafor-
Essesprocessos incipientes, baseadosnuma lenta i(ientifica-
ma ilegal de atuação. De forma menos acentuada, o mesmo pode
ção de problemas que afetam o cotidiano daspessoas,foram ge- ser dito em relação à questão da moradia, uma vez que as inva-
rando reivindicações, construindo agrupamentos e, sobretudo.
sõesde terra para construir um barraco tornaram-se, para cres-
despertando uma cozzscfênciade íns#bordfnzaç=ão
que se colocava
centenúmero, a única forma que desempregados,subempregados
contra o autoritarismo do sistemapolítico. Repita-sequantas ve-
e trabalhadores malremunerados encontravam para subsistir na
zes necessário for: o tortuoso percurso de abertura política foi em-
Grande São Paulo.
palmado .por um restrito grupo de empresários, teve ampla aco-
Nos primórdios dos anos 1980, não ocorrem mais grandes
lhida entre intelectuais, estudantes,a Igreja e a imprensa, consti-
greves setoriais que paralisam por muitos dias vasto contingente
a plataforma do partido da oposição,então o MDB, foi a
de trabalhadores. Contudo, este recuo aparente esconde uma nova
bandeira de muitas associaçõesprofissionais; mas teve, desde cedo.
qualidade de luta, posto que passou a imperar um empenho que
quando por omissão ou comprometimento muitos permaneciam
procura consolidar as comissõesde empresa,tornando o espaço
calados, forte enraizamento nas aglutinações populares sobre as
fabril local de organização que articula e dinamiza as reivindica-
quais as consequências sociais e económicas do regime autoritá-
çõesoperárias. É claro que semelhantefenómeno incide nas uni-
rio desabaramde modo mais intenso: alastrava-seum sentimen-
dadesde grande porte, onde houve enraizamento de formas orga-
to de oposição e de revolta, experimentavam-se formas variadas
nizativas que aglutinam os trabalhadores pela base. Expressão
de resistência e de reivindicações, 6'agmentadas e parciais, mas que
disto foi o grande número de greves que pipocou na Região Me-
muito iriam contribuir para asaçõesde desobediênciaciz/!/,gre-
tropolitana, obrigando as concepçõesque privilegiavam uma atua-
ves, passeatas,ocupação de terras, depredaçõese inúmeros ou-
ção controlada pelo sindicato a voltarem-se para o chão das fá-
tros tipos de manifestações organizadas ou espontâneas que pas-
bricas: foi aí que o movimento operário, na conjuntura recessiva
saram, no decorrer dos anos 1970, a desafiar abertamente a or-
dem instituída. de 1981-1983, implantou novas experiências, gestando modali-
dadesinovadoras de negociação que não só ampliaram a pauta
Deve-se frisar que a dissonância entre reivindicações sindi-
das reivindicações,como também, a seu turno, revigoraram a força
cais e populares e respostas efetivadas pelos poderes públicos, num
sindical na medida em que estruturavam a reivindicação operá-
quadro de aumento generalizado de expectativas, coincidente com
ria a partir das máquinas.
o agravamento das condições de vida, só poderia aumentar o dis-
Nos bairros, de maneira mais embrionária, auxiliados por
tanciamento entre o que é percebido como legítimo por amplos profissionais em cujo meio semesclam ativistas de várias tendên-
segmentos sociais e o aparato legal instituído pelo regime militar.
cias políticas e onde continua forte a presença de agentes da Igre-
Essedistanciamento entre o legal e o legítimo manifesta-se,fun- ja católica, em vários locais não só se reivindicam dos órgãos es-

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Escritos u)rbanos
Produção do espaço urbano e lutas sociais 39
totais serviços e equipamentos públicos, como também discutem- nessesacontecimentos,é que muitos deixaram de trabalhar por
se questõescomunitárias, geradoras,talvez, de uma nova socia- causa de discussões e decisões realizadas a partir das aglutinações
bilidade que traz à luz um discurso que reinterpreta os amplos e de bairro, mostrando novamente que greves de maior envergadura
profundos problemas coletivos. Essasaglutinações,de um lado, não podem ser apenasexplicadas como decorrência das formas
não dão as costas para o Estado, pois dele exigem serviços e equi- organizativas que se estruturam no mundo do trabalho.
pamentos e com ele estão em constante conflito e negociação. Por Os acontecimentos analisados nas páginas anteriores colo-
outro lado, procuram criar formas de representação e de gestão caram no avançar dos anos 1980 novos desaâos para o movimento
que se apoiam numa participação ampliada: sindical e, sobretudo, para partidos políticos que procuram ca-
nalizar reivindicaçõesde caráter mais coletivo. A questão crucial
" [-.] é aí que o cidadão emerge, assumindo os seus reside em saber se terão capacidade de desenvolver proletos mais
direitos e deveresde participação, na construção de suas participativos que, ao mesmotempo, se estruturam nas aglutina-
condiçõeslocais de vida, como morador, trabalhador, ções de base e respeitem sua diversidade e autonomia.
pai, educador, membro de uma CEB, sindicato, parti-
do, etc. Sobre estefulcro unificador, que é a sua ação
social e pessoal, constituiu-se a esfera ow ferrilório de
organização popular."t7

Deve-setambém mencionar que o fato de enorme contingen-


te estar desligado das engrenagensprodutivas, de per si, revigora
as organizações e reivindicações que se articulam nos.bairros po-
pulares. Isto não só porque o desemprego e subemprego rebaixam
os níveis de consumo, intensificando novas estratégias de sobre-
vivência, inclusive a ajuda mútua, mas também porque passam a
ser um problema de grandevisibilidade social, impregnandoos
debates que se desenrolam no cotidiano de inúmeros locais desta
vasta e desprovida Metrópole. Sintomático, nesseparticular, é que
durante o intento de greve geral em 1983 algumasfábricas para- 'i
ram em decorrência da atuação das comissões de empresa, outras
só o fizeram quando impulsionadas pe]a ação sindical, mas o novo,

i7 Paulo J. Krischke, "Os loteamentos clandestinos e os dilemas e al-


ternativas democráticas em movimentos de bairro". In: Paulo J. Krischke
(org.), Tara de babifaçãox ferra deesmo/loção,
SãoPaulo, Cortei, 1984, p.
86 (grifo meus.

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Produção do espaço urbano e lutas sociais

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