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COMUNICAÇAO

-nJ SOCIAL
M 2000
Univers,__ ~ _
Centro de Humanidades
Departamento de Comunicação Social e Biblioteconomia
Curso de Comunicação Social
Projeto Experimental

DIÁLOGOS POSSíVEIS COM CLARICE LISPECTOR

Jornalismo e Literatura nas Entrevistas do livro De Corpo Inteiro

CONUNICAÇAO Maria Clarisse Dias Furlani


F.249
M537/00

Fortaleza - Ceará
2000
-
Universidade Federal do Ceará
Centro de Humanidades
Departamento de Comunicação Social e Biblioteconomia
Curso de Comunicação Social
Projeto Experimental

DIÁLOGOS POSSíVEIS COM CLARICE LISPECTOR

Jornalismo e LIteratura nas Entrevistas do livro De Corpo Inteiro

Monografia apresentada em condição ao


término da graduação em Comunicação
Social pela Universidade Federal do Ceará,
sob a orientação do professor Ronaldo
Salgado.

Maria Clarisse Dias Furlani

Fortaleza - Ceará
2000
--
DIÁLOGOS POSSíVEIS COM CLARICE LISPECTOR
Jornalismo e Literatura nas Entrevistas do Livro De Corpo Inteiro

Monografia apresentada por Maria Clarisse Dias Furlani

Aprovada em _ / _ / _

Banca Examinadora

Professor Ronaldo Salgado

Professor Gilmar de Carvalho

Professora Eleuda de Carvalho


Ao fim desta jornada, as palavras são poucas para expressar a
"indizível" gratidão. Ficam aqui dedicados todo o aprendizado
e toda a experiência de vida deste quatro anos, aos que, cada
um a sua maneira, foram setas neste caminho.

A Elza, minha mãe, minha maior amiga, meu exemplo de vida - por nada
menos que tudo;
a Dani, a melhor irmã do mundo - pela cumplicidade, pelo
ompanheirismo, pelo amor e apoio incondicional;
a Emílio, meu pai, que entre presenças e ausências acompanhou, à sua
maneira, alguns passos desta trilha.

A todos os colegas que se tornaram amigos inesquecíveis entre as


paredes amarelas do Pátio; aos que marcaram a minha vida de maneira
irre ersível:
à turma 96.1 - aos "agregados" e aos que seguiram outros atalhos -, pelo
aprendizado dividido diariamente e pela inevitável amizade que nos uniu;
a Gal, êga e Lena, três seres-universo tão parecidos e tão contrastantes,
que me ensinaram que amar é conhecer, respeitar e compartilhar;
a Ana, Arthur, Bel, Fabio, Fernando, Zeti, Raquel, Deubia, e tantos,
tantos outros que aprendi a amar;
a Carlinha - e "às meninas" - pelos altos e baixos de uma amizade que é
eterna;
a Clariane e Marcelo, pelo apoio fundamental nos primeiros passos.

A Gilmar de Carvalho, pela preciosíssima sugestão que fez nascer este


trabalho e por todo o apoio;
a Tadeu Feitosa, que me ensinou a ler o mundo - e a mim mesma - como
nunca antes;
a tantos mestres que apontaram direções;
a Ronaldo Salgado, mestre maior de letras, de amor e de vida, que deu
alma a este trabalho e sentido a boa parte experiências deste quatro anos.
Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escrüos.
Estão paralisados, mas não há desespero/
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-Ios sós e mudos/ em estado de dicionário.
Convive com teus poemas, antes de escrevê-tos.
Tem paciência/ se obscuros. Calma/ se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma defimtiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.


Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta/ sem interesse pela resposta/
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Carlos Drummond de Andrade


6

SUMÁRIO

SUMÁRIO 6
INTRODUÇÃO 7

I. JOR ALlSMO E ENTREVISTA 12


1.1. lOR ALISMO 13
l.l.l. Em busca de um conceito 13
l.l.2. O perene no transitório: características fundamentais do jornalismo 17
1.1.2.1. Atualidade 20
1.1.2.2. Interpretação 22
l.l.3. Categorias e gêneros no jornalismo 26
1.2. ENTREVISTA 32
1.2.1. O diálogo como estratégia discursiva 35
l.2.l.l. A conversação no cotidiano: um contrato inforrnal.. 37
l.2.l.2. A entrevista: um contrato firmado 39

2. JOR ALlSMO E LITERATURA 44


2.l. APROXIMAÇÕES ENTRE JOR ALISMO E LITERATURA .45
2.1.l. Um breve passeio pelas idéias correntes 45
2.l.2. ova busca por um conceito: literatura 48
2.1.3. O jornalismo como gênero literário segundo Alceu Amoroso Lima 56
2.1.4. Jornalismo e literatura: esferas confluentes 61
2.1. E TREVISTA NA INTERSEÇÃO E TRE JORNALISMO E LITERATURA 65
2.2.1. Personagens em cena 67

3. DE CORPO I TEIRO 71
3.1. SUPOSIÇÕES DE CLARICE LISPECTOR 72
3.1.1. A escritora por trás da jornalista 76
3.1.2. A jornalista por trás da escritora 79
3.1.3. Em busca do outro 84
3.2. OS "DIÁLOGOS POSSÍVEIS" EM DE CORPO INTEIRO 87
3.3. ENCONTROS DE CORPO INTEIRO 92
3.3.1. Recorte 99
3.3.1.1. Vinícius de Morais 102
3.3.1.2. Érico Veríssimo 105
3.3.1.3. Entrevista relâmpago com Pablo eruda 108
3.3.1.4. Um homem chamado Hélio Pellegrino 110
3.3.1.5. Dinah Silveira Queirós 112
3.3.1.6. Chico Buarque ou Xico Buark.. 114
3.3.1.7. Djanira 117
3.3.1.8. Scliar 119
3.3.1.9. Tom Jobim 121
3.3.1.10. Tereza Souza Campos 124

CONSIDERAÇÕES FI AIS 127


BIBLIOGRAFIA 130
7

INTRODUÇÃO

o contato com o outro ser através

da palavra escrita é uma glória. ( ... ). E

escrever é um divinizador do ser humano.

A Descoberta do Mundo

Este trabalho nasceu duas vezes. O primeiro "nascimento" deu-se na disciplina


Laboratório de Jornalismo Impresso, no sétimo semestre do curso de Comunicação
Social da UFC. A oportunidade que nos é dada nesse momento é certamente única: o
contato primeiro com o fazer jornalístico condizente com os ideais que nos moveram
até ali; a experiência rara de mergulhar nos singulares universos de seres a quem, muita
vezes, a grande imprensa não dá voz; todo o aprendizado a aflorar destes depoimentos,
captado nas sutilezas quase sempre escondidas atrás das cortinas do teatro rnidiático. O
crescimento, pessoal e profissional, é inevitável: aprende-se, ali, a ouvir as pessoas
como não se tinha feito até então, a ler estes seres além de suas palavras e a explorar o
universo de nós mesmos para encontrar a nossa melhor forma de expressão. O espaço
desta experiência é tamanho que parece não caber nos apressados meses de preparação,
discussão, apuração, transcrição, redação, edição e todas as demais ações cujo resultado
é a revista Entrevista. Saímos deste laboratório de vida com a necessidade de entender
melhor os nossos erros e acertos, de encontrar a direção para que este jornalismo pleno,
voltado essencialmente para o ser humano, possa encontrar-se com o nosso caminho. E,
ao encerrar os quatro anos de vivências singulares deste período acadêmico, a
entrevista, esta mescla de arte e técnica que dá à atividade jornalística uma dimensão
criadora e revolucionária - como apaixonadamente defende Cremilda Medina num dos
estudos que deram suporte a esta monografia - pareceu-nos merecedora da reflexão
proposta pelo projeto experimental de conclusão de curso.
O segundo "nascimento" deste trabalho deu-se no fim do mesmo semestre,
quando nos foi sugerido o "objeto de estudo" para o qual se voltaria esta reflexão. O
livro De Corpo Inteiro conferiu urna outra dimensão à proposta inicial de estudar a
entrevista jornalística. Primeiro, por evidenciar ainda mais um laço já aparente na
elaboração da revista Entrevista - aquele que une, costurando-se em palavras, os
fenômenos jornalístico e literário, por vezes tão díspares, apontando o eficaz - e talvez
único - caminho para uma possível expressão do universo de cada ser humano outro.
8

Depois, por inserir este estudo no vasto, rico e instigante espaço da vida e da obra de
Clarice Lispector, universo-ser de múltiplas faces sobre o qual se voltam os olhares
analíticos de diversas disciplinas, e que tanto ainda tem a explorar.
Unir estes dois "nascimentos" num espaço único pode ser uma tarefa audaciosa.
Nem de longe temos a pretensão de que esta monografia encerre em seus limites toda a
abrangência de tema e objeto. Ao contrário, desde o início e cada vez mais no decorrer
do trabalho, toma-se claro que muitas questões ficarão por ser aprofundadas, muitas
hipóteses ficarão por ser comprovadas e muitos aspectos nem mesmo serão abordados.
A nossa maior pretensão, ao final de uma discussão minimamente embasada em teorias
e depois de um olhar reflexivo sobre o objeto de estudo, é deixar alguma contribuição,
pequena que seja, para a compreensão das relações entre jornalismo e literatura, que
resultaram em tantas memoráveis obras de caráter permanente - como De Corpo Inteiro
-, e em não menos memoráveis peças jornalísticas, mas que tanto ainda têm a contribuir
para a leitura do mundo. Mais especificamente, é nosso objetivo apontar, dentro deste
privilegiado espaço interseccional entre jornalismo e literatura, o caminho da entrevista
jornalística, o diálogo possível de dimensão criadora, cujo valor inestimável reside em
contribuir para a leitura dos seres do mundo.
A nossa motivação inicial é o fazer jornalístico e dele partimos rumo à nossa
análise. O primeiro capítulo desta monografia - "Jornalismo e Entrevista" - divide-se
essencialmente em duas partes. Num primeiro momento, detemos a nossa atenção em
alguns caminhos percorridos pelo estudo acadêmico do fenômeno jornalístico - não sem
antes aceitarmos a hipótese de que, sendo um fenômeno marcado pelo mimetismo e
mutante de acordo com os sucessivos contextos sociais, o jornalismo não se prende a
um conceito rigoroso e imutável. Concordamos com Alberto Dines em dizer que o
jornalismo está sempre em busca das circunstâncias - e esta é uma possível definição-
movendo-se e mutando-se com elas. Mas identificam-se algumas características
fundamentais e, em geral, constantes. Nestas características (atualidade, variedade,
interpretação, periodicidade, popularidade e promoção), apontadas a partir do
conceito estabelecido por Luiz Beltrão sobre as raízes do pensamento de Otto Groth,
encontramos algo da essência do fenômeno jornalístico. E duas delas - atualidade e
interpretação - por sua importância na análise do objeto deste estudo, são discutidas
mais aprofundadamente, em itens específicos. Depois, a partir destas características
fundamentais, explicitamos sucintamente a forma como o estudo do jornalismo tem
,
determinado classificação das matérias jornalísticas, de acordo com gêneros e categorias
9

para, a partir da classificação de José Marques de Meio, situarmos a entrevista como um


gênero jornalístico na categoria informativa.
A partir daí, entramos no segundo momento do pnmeiro capítulo, quando a
entrevista torna-se o centro da reflexão. Partindo da concepção de entrevista como
técnica, imprescindível ao jornalismo, para a obtenção de notícias, ampliamos o olhar
para justificar a sua classificação como gênero, com natureza própria e independência
conceitual em relação aos demais gêneros jornalísticos de informação. E no espaço
próprio da entrevista-gênero, voltamos atenção particular à entrevista aprofundada,
dentro da concepção de diálogo possível proposta por Cremilda Medina. Para darmos
suporte à hipótese de que o diálogo possível pressupõe uma interação criadora, a partir
de um encontro de subjetividades que ultrapassa os limites do jornalismo "objetivo",
refletimos sobre as potencialidades do diálogo como gênero discursivo, com
características próprias. Esta reflexão, baseada essencialmente nas idéias de Leonor
Arfuch, mostra-nos que o diálogo é um contrato implícito e aceito por todos os
interlocutores e que, sobre as regras deste contrato informal constroem-se normas
específicas de um contrato firmado que caracteriza a entrevista jornalística, conferindo-
lhe a potencialidade do fluxo natural da conversa informal e o teor técnico necessário
para atingir o objetivo de levar ao leitor as informações resultantes do encontro entre
entrevistador e entrevistado.
No segundo capítulo deste trabalho, a nossa proposta é refletir sobre as relações
seculares entre jornalismo e literatura. O ponto de partida, aqui, são as noções do senso
comum, que, apesar de limitadoras e por vezes estereotipadas, denotam a íntima
proximidade entre os dois fenômenos, a notar-se até pelo olhar mais leigo. Antes de
uma análise mais embasada, também voltamo-nos sucintamente para as noções
correntes entre os profissionais do jornalismo - ora rejeitando os "floreios e
rebuscamentos" de textos pretensamente literários, ora vendo com certa lucidez as
potencialidades criadoras resultantes da confluência entre as duas atividades.
Para apontarmos as proximidades e as dissonâncias entre estes dois fenômenos,
faz-se necessário delimitar o espaço conceitual da literatura, e fazemos isto de maneira
semelhante ao procedimento adotado em relação ao jornalismo, no primeiro capítulo:
na impossibilidade de chegar-se a um conceito fixo e rigoroso, observamos os principais
pontos do caminho percorrido pela teoria em busca de uma conceituação, para a partir
deles estabelecermos pontos e hipóteses condizentes com os nossos objetivos.

'--~~ ~.4
io

Depois desta reflexão que nos dá certo embasamento teórico, a análise volta-se
para algumas das formas como foram vistas as relações entre jornalismo e literatura no
estudo acadêmico. Ressaltamos, neste sentido, a importância da argumentação de Alceu
Amoroso Lima, mas apontamos nela algumas limitações - principalmente pela hipótese
de que todo jornalismo seja um gênero literário, sob pena de ser considerado mau
jornalismo. A partir da reflexão sobre o estudo de Tristão de Athayde, tentamos apontar
a visão das inter-relações entre jornalismo e literatura que nos parece satisfatória, tendo-
se em vista o objeto deste trabalho - jornalismo e literatura são atividades
conceitualmente independentes e com espaços próprios; mas os limites entre estes
espaços não são estanques e estão em devi r constante, confluindo em alguns pontos
onde, consideramos, encaixam-se textos como as entrevistas de Clarice Lispector. Por
fim, ao final do segundo capítulo, voltamos a abordar a entrevista jornalística, desta vez
à luz da interseção entre jornalismo e literatura. A nosso ver, o diálogo possível
apontado por Cremilda Medina e coincidente com a entrevista estudada por Leonor
Arfuch carrega em si potencialidades próprias dos dois fenômenos, ocupando o espaço
do retrato do ser-outro que muitas vezes escapa às lentes de repórter e escritor.
No terceiro e último capítulo deste trabalho nosso foco volta-se para o objeto,
De Corpo Inteiro, ao qual não são raras as referências ao longo dos capítulos anteriores
- não nos parece possível agir de outra forma, uma vez que toda a nossa análise decorre
deste objeto. Aqui, em um espaço muito breve diante da imensidão posta à nossa frente,
falamos sobre vida e obra de Clarice Lispector, na tentativa de trazer à tona um pouco
de sua instigante personalidade onde não são nítidos os limites entre real e imaginário,
pessoa e personagem. A partir de amostras pequenas de sua obra e da leitura feita a ela
por vários estudiosos, tentamos apontar aspectos característicos da incessante busca
pelo "indizível" através da palavra. Tentamos mostrar que essa inquietação, marca de
toda a sua obra, também é característica de seu fazer jornalístico e, em particular, da sua
atuação como entrevistadora.
De Corpo Inteiro reúne a principal amostra desta face entrevistadora de Clarice
Lispector, em entrevistas que realizou - a maioria - como colaboradora da revista
Manchete entre 1968 e 1969, na seção "Diálogos Possíveis com Clarice Lispector",
retratando algumas das personalidades de destaque no cenário cultural e social da época;
com boa parte dos entrevistados, Clarice mantinha relações extra-profissionais
geralmente marcadas por amizade e admiração. O livro foi publicado pela primeira vez
em 1975 e, de lá para cá, teve três edições. Depois de contextualizar o objeto, fazemos
11

alguns comentários sobre a possível mudança de natureza dos "Diálogos Possíveis" a


partir do enfoque com que são lidos, diferente de acordo com o suporte, livro ou revista.
Daí, partimos para a análise das características específicas que tornam as entrevistas de
Clarice Lispector diferentes de qualquer outra, trazendo, paralelo ao retrato do
entrevistado, um reflexo da personalidade da escritora-jornalista. E por fim, apontamos
o recorte feito ao objeto - para evitar uma análise superficial ou repetitiva - e, sobre dez
dos trinta e cinco "Diálogos Possíveis", voltamos o nosso olhar numa análise iluminada
pelas hipóteses levantadas ao longo de todo o corpo deste trabalho.
Vale ressaltar, antes do início deste estudo, que os conceitos abordados aqut
(principalmente no primeiro capítulo) voltam-se essencialmente para o jornalismo
impresso - embora, pela natureza própria da atividade, alguns aspectos possam ser
adequados às manifestações jornalísticas em outras mídias - pois a confluência entre
jornalismo e literatura, objetivo fundamental desta análise, se dá exatamente a partir do
seu ponto de encontro mais nítido: a palavra escrita, através da qual se pretende a glória
do contato com o outro ser.
12

1.
JORNALISMO E ENTREVISTA
13

1.1. JORNALISMO

1.1.1. Em busca de um conceito

Eu te digo: estou tentando captar a


quarta dimensão do instante-já que de tão
fugidio não é mais porque agora tornou-se
um novo instante-já que também não é mais.
Cada coisa tem um instante em que ela é.
Quero apossar-me do é da coisa
Água Viva

o cotidiano é, ao mesmo tempo, o espaço de realização do jornalismo e a matéria-


prima com a qual ele trabalha. Ao jornalismo, cabe retratar o tempo presente -
referenciando-o ou prevendo-lhe as conseqüências, quando for o caso - para o homem
do presente. Esta âncora no agora, no hoje, é o que dificulta a precisão na hora de
formular um conceito. Para José Marques de MeIo, o jornalismo "se nutre do efêrnero,
do provisório, do circunstancial, e por isso exige do cientista maior argúcia na
observação e melhor instrumentação metodológica para que não caia nas malhas do
transitório" (MELO, 1994, p. 08).
Foi apenas entre o final do século passado e o começo deste que a imprensa
passou a ser objeto de estudos sistemáticos'. Ao longo de cerca de um século de
pesquisas, muitas foram as tentativas de apreender a essência do jornalismo, e vários
foram os conceitos formulados, seguindo diferentes enfoques. Fenômeno mimético por
natureza, o jornalismo, em cada época, apropriou-se das cores do tempo presente - e a
partir delas foi visto e definido. Passando a largo da polêmica sobre o caráter científico,
ou não, do jornalismo, o fato é que ele aproxima-se das ciências humanas no que se
refere ao objeto para o qual se volta - se estas estudam o homem e suas relações, aquele
volta-se para os fatos, as histórias e os acontecimentos que resultam destas relações e
nelas interferem. A dificuldade de capturar a prática jornalística num conceito
permanente e definitivo foi percebida por Alberto Dines:

I Segundo Marques de Meio, em 1806, a Universidade de Breslau, na Alemanha, ofereceu o primeiro


curso sobre a "ciência da imprensa". Mas, segundo o próprio autor, os estudos de jornalismo só passaram
a ser sistematizados no fim do século, quando algumas universidades européias criaram escolas e
institutos voltados para a "ciência da imprensa".
14

Técnica que se destina, antes de tudo, ao estudo e tratamento dos


fatos, é dinâmica porque lida com material mutante. Um estudo sobre o
jornalismo dos anos 20 quase nada tem a ver com estudo igual sobre o
jornalismo dos anos 70. O jornalismo acompanha, assim, as demais ciências
humanas (... ). O ser humano, imprevisível e impreciso como é, transmite às
ciências que o estudam um tom mercurial, palpitante, inacabado e fecundo.
(DINES, /986, p. 25).

Esta natureza mutável do fenômeno jornalístico é também a idéia inicial de outro


estudo, realizado duas décadas depois do lançamento da primeira edição de "O Papel do
Jornal". Em "Sempre Alerta", de 1994, Jorge Cláudio Ribeiro começa a discorrer sobre
o trabalho jornaIístico afirmando que "uma das características mais constantes do
jornalismo é seu radical enraizamento no cotidiano, o que lhe confere diferentes
características de acordo com as sociedades e as fases históricas em que é realizado."
(RIBEIRO, 1994, p. 09)
Mesmo com as mudanças de enfoque e de contexto ocorridas ao longo do tempo,
o estudo da atividade jornalística tem mostrado que algumas características se mantém e
funcionam como pontos referenciais que permitem caracterizar como jornalística
determinada peça.
Um dos pioneiros no estudo "científico" do jornalismo, o alemão Otto Groth
(apud MARQUES DE MELO) - que, ao longo das décadas de 50 e 60, impulsionou a
"ciência da imprensa" à frente do lnstituto de Jornalismo da Universidade de Munique-
identificou o que seriam as quatro características universais de uma obra jornalística,
qualquer que seja: periodicidade, universalidade, atualidade e difusão. Explica José
Marques de Meio:

"Groth avançou em relação às variáveis contempladas


anteriormente por seus antecessores germânicos nesse campo. Abandonou a
identificação do conteúdo ou da forma e deixou de lado também a
preocupação com a linha editorial. Sua atenção ficou concentrada na
'essência' do 'processo cultural-social' que caracteriza a produção dos
jornais e revistas. A chave para apreender a identidade de seu objeto ele a
encontrou na conjugação das quatro características erigidas como
parãmetro de seu objeto" (MELO, 1994. p.14 - grifos do autor).
15

Partindo das quatro características de Groth, Marques de Meio dá a seguinte


definição para jornalismo:

"um processo social que se articula a partir da relação (periódica /


oportuna) entre organizações formais (públicos receptores) através de
canais de difusão (jornal/revista / rádio / televisão / cinema) que
asseguram a transmissão de informações (atuais) emfunção de interesses e
expectativas" (MELO, 1994. p.14)

Um conceito um pouco mais abrangente é o de Luiz Beltrão, em Iniciação à


Filosofia do Jornalismo, para quem jornalismo é "a informação de fatos correntes,
devidamente interpretados e periodicamente transmitidos à sociedade, com o objetivo
de difundir e orientar a opinião pública, no sentido de promover o bem
comum"(BELTRÃO, i992, p.67). O conceito de Beltrão traz à tona seis características,
que parecem ter sido oriundas da teoria de Groth: atualidade, variedade, interpretação,
periodicidade, popularidade e promoção. Estas características serão abordadas no
próximo item deste capítulo.
Os vários conceitos de jornalismo, formulados ao longo do tempo, foram sempre
reflexo de determinada época e lugar. Assim, sob as lentes dos estudiosos brasileiros,
por exemplo, o jornalismo - como nos mostra Alberto Dines (1986) - já caminhou
atrelado à literatura, encarado como subgênero das belas-letras; assumiu a economia de
adjetivos e a "objetividade pura" do lead no fim década de 40; contagiou-se pela
especialização científica e pela "estruturação empresarial" dos anos 60 para aproximar-
se do humanismo e das tendências multidisciplinares da década de 70, tempo presente
do estudo de Dines.
Na década seguinte e no início dos anos 90 deu-se a consolidação do "jornalismo
crítico, moderno, pluralista e apartidário" (FOLHA DE S.PAULO, L 995, p.2i)
apregoado pelos manuais de redação dos jornais-empresa - cujo exemplo maior é a
Folha de S.Paulo? Findos os anos 90, aos pesquisadores da "ciência da imprensa"
colocam-se outras questões, a maior parte delas ligadas às novas tecnologias. Pelas
ondas da Internet, a informação chega instantaneamente e aos borbotões, e o jornalismo,
mais uma vez, tem de encontrar seu lugar, adequar-se aos novos meios e às novas
demandas, assimilar e processar as características do tempo presente.

2 RIBEIRO, Jorge Cláudio. Sempre Alerta. São Paulo, Brasiliense, 1994.


16

A atividade jornalística neste fim de século é vista com pessimismo por Ciro
Marcondes Filho (1993). As novas tecnologias, principal marca desta época, são
também o aspecto que se sobressai no novo fazer jornalístico:

"A prática de jornalismo neste final de século e na passagem para


um novo milênio é marcada por traços básicos do período, que diferem
radicalmente do contexto em que se fazia jornalismo nas décadas de 50 e 60
e, mais ainda, do jornalismo do período anterior e durante as guerras. A
época hoje é a das novas tecnologias de comunicação e já não se pode mais
falar de comunicação sem mencionar ao mesmo tempo este novo quadro
marcado e influenciado por estas tecnologias" (MARCONDES, 1993, p.83)

Para o autor, para tomar-se coerente com a era das novas tecnologias, o
jornalismo abandona os critérios que o orientaram nas décadas anteriores e é marcado
por um caráter imaterial. A imaterialidade jornalistica de que nos fala Marcondes
retrata-se na superficialidade em que resultam os textos curtos e apressados, no
empobrecimento da linguagem, na "ociosidade visual" da diagramação dos veículos
impressos, no rninimalisrno da prática jornalística atual e até mesmo na falta da
"materialidade palpável" que o texto jornalístico tinha na época das laudas e das
máquinas de escrever. "O texto, agora, é apenas uma imagem, um cintilar de luzes na
tela do computador e não tem mais existência física, tornando-se, portanto, algo
abstrato" (MARCONDES, 1993, p. 99) 3.

Em toda a sua variedade e mesmo com o seu caráter mutante, existe na atividade
jornalística algo que a caracteriza como tal e que define seus limites ? É possível
encontrar uma essência que possa revelar o que está por trás das cores que o jornalismo
assume de acordo com a superfície em que se encontra? Alberto Dines foi buscar essa
essência exatamente na efemeridade do fazer jornalístico: "O jornalismo é a busca de
circunstâncias" (DINES, 1985, p.25), define. E questiona: "Então, dirá algum exegeta
de esquina, sendo 'circunstancial', o jornalismo está condenado, liminarmente, à
condição de efêmero e superficial?"

maioria das críticas do autor às novas formas de jornalismo são procedentes. Realmente, o que vemos
na mídia, dia apó dia. ão textos cada vez mais curtos e pobres, tratamentos parciais e superficiais, ao
abor do intere se do grupos econômicos e políticos ligados aos veículos, e uma linguagem
padronizada. nivelada por baixo, que confunde simplicidade com mediocridade. Mas, ao identificar os
inromas, pare -no que Marcondes ataca o vilão errado, responsabilizando, muitas vezes, os recursos
te nológi o . que ão meras ferramentas, pelas mazelas do jornalismo.
17

"Depende do significado que se atribui à palavra circunstância. (...)


Circunstância não é o oposto de substância. ao contrário. completam-se. A
substância ou essência é o que há de permanente nas coisas que mudam. sua
natureza. Esta substância fica evidente. visível e detectável por intermédio de
circunstâncias que a qualificam. O jornalismo é a técnica de investigar.
arrumar. referenciar, distinguir circunstâncias." (DINES. 1985. p.18)

Mudam, então, as circunstâncias: cada lugar e cada tempo têm sua marca, sua
identidade, sua essência, suas cores. O jornalismo mimetiza-se, assume as novas cores e
sai em busca das novas circunstâncias que qualificam o tempo presente, para arrumá-
Ias, referenciá-Ias e distinguí-Ias.
A maneira como o profissional do jornalismo lida com estas circunstâncias
também muda - de acordo com o tempo, o lugar, o veículo, as condições de trabalho e
mesmo a intenção que move o repórter.

"A humanização das circunstâncias é um dever do mediador social:


a circunstância brasileira não pode ser tratada exclusivamente por gráficos.
balanços numéricos. no esquematismo das tendências do poder ou das falas
fáceis e por demais aleatórias do povo na rua. (...) Para humanizar seu
tempo de ação. o mediador social - situado no jornalismo - tem de exercer
as virtualidades de repórter e se contaminar com o desejo dos artistas"
(MEDINA. 1990. p.32)

No trato humano às circunstâncias, como nos aponta Medina, o jornalista tem uma
alternativa diante da ditadura de um jornalismo industrializado e padronizador.
Trabalhará o texto numa enriquecedora convergência com o trabalho artístico - mas
esta é uma discussão que caberá mais adiante, no segundo capítulo deste trabalho. No
próximo item a análise volta-se para alguns dos aspectos que permanecem no caráter
circunstancial da definição de jornalismo.

1.1.2. O perene no transitório: características fundamentais


do jornalismo

A obra de Otto Groth foi fundamental não apenas pelo seu pioneirismo, mas por
estabelecer diretrizes para o estudo do jornalismo. As quatro características propostas
18

por Groth se fizeram presentes, de alguma forma, em muitas das pesquisas que
buscaram estabelecer conceitos para o fenômeno jornalístico. No Brasil, esta influência
é nítida, por exemplo, na definição de jornalismo formulada por Luiz Beltrão, já citada
no item anterior. As características propostas no conceito de Beltrão - atualidade,
variedade, interpretação, periodicidade. popularidade e promoção - assemelham-se
àquelas propostas por Groth e as ampliam.
Explicitar cada uma destas características, que o autor considera fundamentais no
jornalismo, pode trazer à tona diversas questões relevantes numa reflexão acerca da
atividade jornalística. Tendo foco no objeto deste trabalho - um livro que reúne
entrevistas realizadas e publicadas na década de 60 (e continua sendo reeditado) e que
têm características que as distanciam. em diversos aspectos, das matérias que estamos
acostumados a encontrar diariamente na maioria dos jornais e revistas - discutiremos
mais aprofundadamente duas delas: a atualidade e a interpretação.
Mas, antes, fazem-se necessários alguns comentários a respeito das outras
caracterís ticas:
Variedade diz respeito à abrangência dos conteúdos das matérias jornalísticas.
Segundo Beltrão, o campo jornalístico deve estender-se "a todos os quadrantes da
atividade humana, a todos os seres, às coisas e à natureza, a todos os domínios da
inteligência e da sensibilidade"(BEL TRÃO, 1992, p.75). Esta característica não se opõe
ao jornalismo especializado, tendência notável atualmente. Ao contrário: é o jornalismo,
em sua totalidade, que deve voltar-se "a todos os quadrantes da atividade humana"; não
o jornalista, nem mesmo o veículo. O profissional, porque corre o risco de pretender-se
o "especialista em generalidades" e tornar-se, na realidade, um "especialista em coisa
nenhuma". E o veículo porque, na tarefa de "interpretar" os fatos correntes, quanto
mais tempo, espaço e empenho forem dedicados a determinado assunto, mais
aprofundada e completa poderá ser a interpretação. Os veículos especializados devem
ser vistos como partes do todo jornalístico: enquanto aos jornais diários e mesmo aos
semanais de caráter geral é dada a tarefa de levar informações abrangendo o maior
número de temas possível para o maior número de leitores, às publicações
especializadas incumbe-se a função de dar o maior número de informações sob todos os
aspectos possíveis de um assunto específico, a um público delimitado.
Periodicidade é uma característica que vai além do aspecto temporal; é um dos
fatores responsáveis pela credibilidade do veículo. A periodicidade é um compromisso
que o veículo jornalístico assume com o público. E ele certamente sabe cobrá-lo: no
19

jornal diário, por exemplo, um atraso de poucas horas é facilmente percebido pelos
leitores, que não raramente ligam para o jornal em busca de explicações."
Popularidade refere-se ao alcance do jornalismo (equivalente à difusão de Groth).
O objetivo primeiro da atividade jomalística é informar, ou seja, é fazer seu conteúdo
chegar ao público - um fato só se toma notícia se difundido. Também aqui faz-se
presente a questão da especialização. Embora menor em número de leitores, a
popularidade também é essencial para os veículos especializados (dentro do meio a que
se destina) e também depende, como nos jornais diários e semanários gerais, da
credibilidade do veículo e da adequação aos interesses do pública.'
Quanto à promoção vale uma ressalva. Beltrão afirma que

"os relatos e as idéias expressas (sic) pelos veículos jornalisticos têm


o propósito de permitir ao homem um pronunciamento, uma decisão, de
impulsioná-lo à ação. A sociedade, como o indivíduo, não pode escapar à
evolução; o jornalismo, sem pretender traçar roteiros rígidos e exatos, atua
como propulsor da ação individual "(BELTRÃO, /992, p.99 ).

Esta é, a nosso ver, uma visão utópica ou, pelo menos, generalista. Numa análise
rápida, pode-se dizer que a função do jornalismo hoje é informar - de maneira
contextualizada e o mais aprofundada possível - e, por vezes, entreter. A "promoção do
bem comum" seria não uma função, como quer Beltrão, mas antes uma conseqüência,
mesmo que desejada. A atividade jomalística pode levar o leitor - ou um grupo de
leitores - a uma tomada de decisão ou a uma ação individual; mas essa não é sua tarefa,
e sim um passo adiante, que resulta também de um conjunto de fatores externos ao
jornalismo. Além do mais, admitir que o jornalismo seja, em última análise, como um
"incitado r" de ações individuais ou coletivas é entrar num terreno perigoso, o que pode
ter como conseqüência a legitimação de intenções manipulativas no conteúdo das
matérias jornalísticas.

~ Com a informação em tempo real, principalmente através da Internet, esta característica pode tomar uma
nova forma: num site de notícias, por exemplo, é a velocidade dos fatos que dita a periodicidade: notícias
podem ser publicadas instantaneamente, com intervalo de minutos.
5 Quanto a popularidade, uma questão relevante é o chamado jornalismo sensacionalista. Muitas vezes,
sob o disfarce de conteúdo "popular", revela-se um "jornalismo" apelativo e popularesco, com texto
recheado de palavras chulas e "enriquecido" com fotos chocantes. Este tipo de "jornalismo" costuma usar
a justificativa de "dar ao povo o que o povo quer".
20

1.1.2.1. Atualidade

Enquanto escrevo pingam os minutos


irreversíveis.
Um sopro de vida

Ao discorrermos sobre a dificuldade de se apreender a essência do jornalismo


num conceito fechado e rigoroso, aceitamos que é a efemeridade da atividade
jornalística a causa desta dificuldade. A atividade jornalística está ligada ao cotidiano, à
situação atual, por um elo que não pode ser rompido. "Mais do que os óbvios papel e
tinta, a principal matéria prima dos jornais é o hoje (ou melhor, o ontem, sob a
simulação do hoje)" (RIBEIRO, 1994, p. 10). ° jornalismo está sempre em busca do
que há de novo, dos dados mais recentes, do que aconteceu há pouco. Por isso, dizemos
que a atualidade é uma característica intrínseca a toda e qualquer obra jornalística, seja
ela publicada em qualquer tempo, lugar ou veículo.
Uma obra jornalística pode resgatar o passado ou fazer projeções sobre o futuro,
desde que estes aspectos estejam diretamente relacionados ao fato presente. Este
princípio rege a atuação dos jornalistas e está nítido em um jargão comum entre os
profissionais da área: o gancho jornalistico. Um aniversário de morte é o gancho para
se levar às páginas dos jornais os feitos de uma personalidade do século passado; um
novo plano econômico é a justificativa para que se resgate todos os pacotes e todas as
moedas que passaram pelo país nas últimas décadas e se publique especulações sobre o
que pode acontecer. ° fato novo, e só ele, dá o caráter jornalístico ao que passou e ao
que virá.
Uma idéia corrente: não é verdade que o jornal de ontem, com as notícias mais
quentes e os furos exclusivos, amanhã será, quando muito, papel de embrulho? A este
respeito, há duas considerações a serem feitas. A primeira delas refere-se à permanência
do conteúdo jornalístico. Uma edição de um jornal diário pode, já no dia seguinte, não
passar de um pedaço de papel com informações desatualizadas e sem nenhuma utilidade
mais nobre. Mas o trabalho jornalístico não pode ser visto como uma série de edições
isoladas umas das outras. Um jornal se constrói dia após dia, edição após edição, num
processo contínuo que tem início com o primeiro exemplar e só é concluído no último
dia de circulação. Uma edição, isolada, pode ter uma existência curta e rápida. Mas, ao
21

fim do dia, o seu papel já foi cumprido: viabilizar a difusão do conteúdo, cujos efeitos
permanecerão entre o público leitor.

"O jornalismo desperta o preconceito do quotidiano, do efêmero. O


que acontece, porém, é que essa transitoridade se limita à parte material,
que serve de veículo à notícia. Aquele pedaço de papel com folhas soltas,
que é substituído, no dia seguinte, por outro pedaço de papel mais
atualizado faz com que todos liguem o que está escrito à matéria que
difunde, e dêem ao sentido das palavras a vida breve que caracteriza o
jornal como papel que é rasgado e jogado fora" (OLlNTO, Antônio, apud
Beltrão, 1992, p. 73).

A eferneridade aparente do jornalismo contrapõe-se, então, a uma permanência


que caracteriza a obra jomalística como um todo e não está ligada ao meio físico em que
circulam as notícias, mas ao conteúdo, o qual, ao agir sobre a sociedade, terá efeitos
contínuos.

"É efêmera a forma, a exterioridade, o envoltório; a página que se


escreve um dia e que, salvo algum caso singular, morreu e dissipou-se no
dia seguinte. Mas a influência, a sugestão que ficam desses esforços
aparentemente perdidos e esquecidos constituem uma ação persistente e
eficaz como nenhuma, que convence, que apaixona, que destrói, que
reedifica; que forma, em uma palavra, a consciência dos povos" (RODO,
José Enrique, apud BELTRÃO, 1992, p. 74)

A segunda consideração diz respeito à confusão entre atualidade e factualidade.


Quando dizemos que o jornalismo está ligado ao cotidiano por um elo que não pode ser
quebrado, referimo-nos não apenas aos fatos ocorridos ontem ou hoje, mas a todas as
questões que possam ter relevância na sociedade atual.
No jornalismo diário, a factualidade é uma característica marcante, presente na
maior parte do conteúdo. O que se faz, no dia-a-dia, é um jornalismo essencialmente
noticioso, marcado por um notável caráter temporal, que busca retratar o fato mais
recente - sempre que possível, atrelado aos seus antecedentes e às prováveis
implicações. Mas não é esta factualidade a marca indelével do jornalismo, e sim a
atualidade, referente à relevância do conteúdo relatado. Atual não é apenas o que
aconteceu nas últimas horas; são atuais também as questões permanentes em todas as
22

sociedades, os assuntos de interesse humano e universal, os valores, as histórias de vida,


que também podem figurar em obras jomalísticas. Beltrão explica: '" Atual' é
rigorosamente o que 'atua' em nós, o que de potência se converte em 'ato'"
(BELTRÃO, 1992, P.72).
Este caráter permanente da matéria jornalística é extrínseco à forma ou ao tempo
de produção, e não se refere também ao veículo de publicação - está fundamentalmente
ligado ao conteúdo das matérias. Pode ser observado no citado jornalismo noticioso,
mas é característico das grandes reportagens - publicadas em veículos típicos da
imprensa, como jornais e revistas, ou em outro veículo qualquer. É nas questões
atemporais que reside a atualidade de obras de caráter inegavelmente jornalístico, como
os livros-reportagem, por exemplo. São estas questões, também, que fazem do objeto
deste estudo - o livro De Corpo Inteiro - uma obra jomalística. Publicadas na revista
Manchete, no fim da década de 60, as entrevistas de e De Corpo Inteiro podiam se
encaixar no jornalismo factual, por trazer à cena personalidades em destaque na época.
Reunidas num livro, que pode ser lido a qualquer tempo, quando muitas das
personagens podem já ter perdido a evidência, a atualidade - e o caráter jornalístico - se
perderia, não fosse pelos temas universais levantados nos diálogos, relevantes à época
em que foram travados, hoje e no por vir.

1.1.2.2. Interpretação

Mas já que se há de escrever, que ao

menos não esmaguem as palavras nas

entrelinhas

A Descoberta do Mundo

Nos primórdios da história da imprensa, a opinião - mais do que a informação-


é a característica primeira do jornalismo. Os periódicos são, antes de mais nada,
veículos de difusão de idéias e pensamentos de determinados grupos; os fatos, as
informações, são não mais que coadjuvantes dentro de um discurso argumentativo,
apaixonado e partidário.

"Até a primeira metade do século XIX não havia preocupação, por


parte do editor e do leitor, com equilíbrio imparcialidade. Como a
imprensa era sobretudo político-partidária, comprava-se (assinava-se)
23

jornal para saborear a versão parcial dos acontecimentos e para se ler as


críticas aos adversários. quase sempre pessoais (...)" (AMA RAL. 1996.
p.26)

Segundo Manuel Carlos Chaparro (1998), o conceito de objetividade jomalistica


é inaugurado pelo periódico britânico The Daily Courant, fundado em maio de 1702.
Para superar a crise financeira que abateu o jornal logo nos primeiros tempos de
circulação, o jornalista Samuel Buckley adotou uma estratégia pouco comum à época:
separar informação de opinião nas páginas do jornal, e privilegiar a apuração rigorosa
de informações, como forma de fornecer credibilidade à publicação.

"Mesmo que sem tal intenção, Bucklev introduziu no jornalismo o


conceito da objetividade. tornando-se o primeiro jornalista a preocupar-se
com o relato preciso dos fatos. tratando as notícias como notícias. sem
comentários (...). Podemos supor que Samuel Buckley pretendia agregar ao
seu jornal uma imagem de credibilidade e independência. como condição de
sucesso. O que se sabe da experiência do Dailv Courant permite admitir que
os cuidados maiores eram com a apuração dos fatos. principalmente no que
toca ao rigor na escolha das fontes. Ao comentar as virtudes do jornalismo
do Courant, Smith usa a palavra acurácia (accuracy), termo que a cultura
jornalistica tomou emprestado da Matemática e da Física para definir a
virtude vital da informação: exatidão garantida pelo rigor dos
procedimentos de apuração e verificação" (CHAPARRO, 1998)

Mesmo que a estratégia de Buckley não tenha surtido os efeitos esperados (o


artigo continuou sendo o gênero jornalístico dominante e o Courant desapareceu em
1735), a postura inaugurada pelo periódico inglês influiu sobremaneira nos caminhos
que a atividade jornalística seguiu nas décadas posteriores. Têm raízes na atitude de
Buckley a divisão do jornalismo nas categorias informativo e opinativo, aceitas até hoje
no estudo acadêmico do jornalismo - o próximo item deste capítulo trata da questão dos
gêneros jornalísticos - e a crença, por muito tempo aceita, de que o jornalista deve
exercer sua profissão seguindo uma objetividade absoluta, furtando-se a qualquer tipo
de interferência pessoal no seu relato e descrevendo os fatos tal como eles aconteceram.
Esta po tura teve forte influência no jornalismo norte-americano - que por sua
vez definiu. muitas ezes, as tendências da atividade jornalística em outros países, entre
eles o Brasil. Ela pressupõe que, ao jornalismo, cabe transcrever os fatos para a
24

linguagem escrita, num relato que corresponde à realidade; o jornalista, testemunha dos
fatos, deve informá-los ao público sem neles interferir, para evitar qualquer tipo de
influência sobre a opinião do leitor. "Por trás da noção de que é possível uma
reportagem objetiva está a idéia de que a informação pode ser apresentada de tal
maneira que seus receptores sejam capazes de formar suas próprias opiniões"
(KUNCZIK, 1997, p. 227).
Hoje, aceita-se que a objetividade pura não passa de um mito e que o jornalista
não pode, como ser humano que é, despir-se de todos os seu valores, de sua bagagem
cultural, de sua identidade, ao transmitir um fato. Qualquer mensagem jornalística, antes
de chegar ao público receptor, passa por uma série de interferências, desde a formulação
e angulação da pauta aos comentários e explicações inseridos no texto, onde a
interpretação vai sobressair-se. E isso não é um ruído, não é algo a ser evitado a
qualquer custo, como já quiseram alguns. Interpretar é também uma finalidade do
jornalismo.
Ainda assim, a idéia de que a objetividade é, pelo menos, um ideal a ser
atingido, permanece no meio jornalístico.

"Trata-se de uma noção presente a cada fase do processo


jomalistico, desde a pauta de assuntos a serem cobertos até o tamanho, a
apresentação gráfica e a natureza do espaço que o texto vai ocupar no
jornal. Uma questão de honra, um ideal a ser atingido ou uma paixão do
jornalismo do século XX (. ..). " (AMARAL, /996, p.l S).

Mas a que nos referimos quando falamos em objetividade? O que é esta


objetividade apontada, há tanto tempo, como um ideal do jornalismo?

"Uma das características do conceito de objetividade é que


freqüentemente ele é discutido sem ser definido. Supõe-se simplesmente que
todos conheçam o seu significado. Para a maioria dos jornalistas
americanos (...), que dão grande prioridade à objetividade, ela é sobretudo
sinônima de justiça e equilíbrio" (KUNCZIK, 1997, p. 22S).

O conceito de objetividade é freqüentemente ligado à relação entre o relato


jornalístico e a realidade. Sob este prisma, a realidade e sua representação (o relato
jornalístico) seriam perfeitamente equivalentes se fosse possível atingir uma
objetividade plena. Mas, pelas limitações humanas do jornalista, só se pode aspirar a
25

um grau máximo possível de objetividade, que, se atingido, resultaria numa cobertura


isenta, imparcial, 'justa e equilibrada" de determinado assunto.
Nesta postura, fica banida da atividade jornalística, tanto quanto possível, a
subjetividade - ela é inevitável, mas deve ser levada a níveis mínimos. Aceita-se que a
subjetividade do jornalista está presente desde a seleção da pauta até a escolha das
palavras usadas no texto, mas que ela fique escondida nas apenas entrelinhas. A
primeira pessoa está fora do relato jornalístico - só aos famosos colunistas é dado
expressar uma opinião pessoal. A eliminação do "eu" dos textos jomalísticos seria a
melhor forma de garantir a imparcialidade e a justiça.
São várias as reações a essa postura. Luiz Amaral diz que, já na primeira metade
deste século, os próprios jornalistas americanos levantaram críticas ao ideal da
objetividade em vigor na imprensa dos Estados Unidos.

"Condena-se o esforço de objetividade por implicar no


distanciamento do profissional com a notícia - obediência cega à
objetividade torna os repórteres simples moços de recado. Desabafo de
Kenneth M. Stewart: Se a objetividade é ausência de convicção, disposição
de deixar a natureza seguir seu curso, aceitação passiva das coisas como
elas são, ao diabo com ela." (AMARAL, 1996, p.62)

A objetividade é, ainda, um ideal do jornalismo, principalmente quando nos


referimos ao jornalismo noticioso - que corresponde a maior parte da produção diária
das redações - corno forma de garantir o equilíbrio e a imparcialidade. Mas a
subjetividade - não aquela inevitável, mas uma subjetividade consciente e intencional -
encontra seu lugar dentro da atividade no espaço das grandes reportagens, dos
suplementos culturais, das revistas, dos livros-reportagem, onde a interferência pessoal
do repórter, seus valores, sua bagagem cultural, trabalham a favor da qualidade do
relato jornalístico. Nestes espaços, é comum encontrar textos diferenciados, com traços
que caracterizam a autoria do texto." Acreditamos que esta subjetividade intencional
ainda tem espaço para expandir-se dentro dos jornais, ultrapassando a fronteira dos
segundos cadernos e estabelecendo uma convivência pacífica e enriquecedora com o
tão discutido ideal de objetividade - encarada, aqui, como tratamento justo e imparcial,
mas não impessoal, dos fatos.
26

A discussão acerca da objetividade jornalística - e, por conseqüência, da


subjetividade - envolve questões abrangentes, pois trata-se, antes de mais nada, de
decidir o que é uma representação fiel da realidade e da verdade; o que é a própria
realidade; se existe uma verdade absoluta e se podemos conhecê-Ia. São questões que
têm ocupado a filosofia ao longo dos séculos, e que certamente não estarão encerradas
enquanto houver um pensar sobre a existência humana.

1.1.3. Categorias e gêneros no jornalismo

Desde que news (notícias) e comments (comentários) separaram-se fisicamente


nas páginas dos jornais, foram-se impondo, aos poucos, divisões equivalentes para fins
de estudo da atividade jornalística. Se o meio acadêmico se propõe a uma reflexão
elucidativa a respeito do fenômeno jomalístico, faz-se necessário compreender as
diversas manifestações do fenômeno e separá-Ias devidamente - observando as
características próprias de cada uma destas categorias como critério para a separação -
antes que se possa dizer que (e por que), a despeito das diferenças de forma e conteúdo,
todos os grãos pertencem ao mesmo saco; uma nota direta e precisa, um artigo repleto
de adjetivos e advérbios de intensidade, uma coluna marcada por comentários ácidos,
uma entrevista intirnista e pouco formal e uma reportagem ampla e explicativa têm, no
fim das contas, uma natureza comum: a condição de texto jomalístico. Assim, na
pesquisa científica do jornalismo, foram freqüentes as preocupações em estabelecer
categorias jomalísticas e, dentro delas, apontar os gêneros em que os diversos textos se
encaixam.
Para Crernilda Medina (1978), a mensagem jomalística desdobra-se em três
categorias: informação, informação ampliada e opinião. No "núcleo quantitativo e
qualitativo" da atividade jornalística está a notícia, como forma excelente que a
informação assume dentro do jornalismo e centro deste estudo de Medina. A próxima
categoria, representada principalmente pela reportagem, vem "da evolução histórica e
dinâmica do próprio fenômeno" e seria a notícia em profundidade, que corresponde à
categoria de informação ampliada. A terceira categoria - e a mais antiga das três - é a
opinião, preponderante nos jornais pioneiros onde os juízos de valores e as posições

6 Esta presença da subjetividade no texto - inegável em De Corpo Inteiro, objeto deste trabalho -
aproxima o jornalismo da seara da literatura. A proximidade destes relatos jomalísticos com o texto
literário é assunto do segundo capítulo deste trabalho.
27

ideológicas explícitas davam a tônica do jornalismo, e que hoje, em tese, estaria


basicamente confinada às chamadas páginas editoriais. Esta classificação tem em vista
as três grandes categorias adotadas em boa parte dos estudos acadêmicos do jornalismo:

"Chega-se a um quadro de tendências, já expresso em nomes de


disciplinas curriculares como Jornalismo Informativo, Jornalismo
Interpretativo. Jornalismo Opinativo. Ou em termos mais adequados -
informação, informação ampliada e opinião expressa". (MED/NA, /978,
p.71 - grifas nossos)

Estas são também as três categorias elencadas por Luiz Beltrão, apontado por
José Marques de Meio como o único pesquisador brasileiro, até então, a se preocupar
sistematicamente com a questão da classificação dos gêneros jornalísticos. Para
Beltrão, são três as categorias e dez os gêneros jornalísticos: Jornalismo Informativo
(notícia / reportagem / história de interesse humano / informação pela imagem);
Jornalismo Interpretativo (reportagem ampliada) e Jornalismo Opinativo (editorial /
artigo / crônica / opinião ilustrada / opinião do leitor) (MARQUES DE MELO, 1994).
É na classificação de Beltrão que Marques de Melo se baseia para propor o seu
esquema de categoria e gêneros. Antes de apresentar este esquema vale relatar, em
linhas gerais, duas das ressalvas que Marques de Melo faz à proposta de Beltrão e que
nos parecem relevantes 7. Melo discorda do conceito de história de interesse humano,
que, para ele, pode ser incluída dentro da definição de reportagem. "Trata-se de um fato
que foi notícia (matéria quente) e que o jornalista retoma na sua dimensão humana para
suscitar o interesse e a atenção do público" (MARQUES DE MELO, 1994, p.60).
A outra crítica feita à proposta de Beltrão diz respeito à uma das três categorias
estabelecidas, o jornalismo interpretativo. ° argumento de Marques de Meio, que nos
parece procedente, é de que as definições de reportagem e reportagem em
profundidade não são diferenciadas, sob um ponto de vista conceitual, de maneira
convincente. A diferença não é senão prática: a reportagem, colocada por Beltrão
dentro da categoria informativa, seria mais superficial devido às limitações impostas

7 Marques de Meio faz. no total, quatro ressalvas à classificação formulada por 8eltrão: quanto ao
conceito de histórias de interesse humano, quanto à categoria de jornalismo opinativo caracterizada pelo
gênero de reportagem em profundidade, quanto à autonomia da informação através da imagem e quanto
à ampliação dada à noção de opinião do leitor. Seguindo a nossa proposta de manter o foco no objeto
deste estudo, abordamos aqui apenas as referências às histórias de interesse humano - conceito em que as
entrevistas de Clarice Lispector poderiam se adequar - e à categoria de jornalismo interpretativo,
28

pelo pouco tempo para a pesquisa. Oferecidas as condições ideais, é então viável a
reportagem em profundidade ou a grande reportagem, situadas numa suposta categoria
interpretativa. "Na prática, afiguram-se-nos como espécies de um mesmo gênero - a
reportagem" (MARQUES DE MELO, 1994, p.60).
A partir destas ressalvas, Marques de Melo propõe uma classificação baseada
em apenas duas categorias jornalísticas - informação e opinião. A interpretação é vista
não como uma categoria, mas como uma das atribuições da atividade jornalística -
cumprida pela categoria informativa (o próprio Beltrão apontou a interpretação como
uma atribuição do jornalismo quando a incluiu como uma das características
fundamentais da atividade, explicitadas no item 1.2.). Da mesma forma, o aspecto do
entretenimento, apontado por alguns autores como possível categoria jornalística - o
"jornalismo diversional" - não possui a autonomia necessária para constituir-se em
uma classe separada. É apenas um aspecto que pode ser identificado ora em um, ora em
outro gênero das duas categorias apontadas por Marques de Meio.

"Entendemos que a interpretação (enquanto procedimento


explicativo, para ser fiel (sic) ao sentido que lhe atribuem os norte-
americanos) cumpre-se perfeitamente através do jornalismo informativo. O
mesmo ocorre com a diversão, mero recurso narrativo que busca estreitar
os laços entre a descrição da realidade, apesar das formas que sugerem sua
dimensão imaginária" (MARQUES DE MELO, 1994, p. 63)

Divididos em duas grandes correntes, os doze gêneros jornalísticos, de acordo


com a proposta de Marques de Melo, organizam-se da seguinte maneira:
Jornalismo Informativo - Nota, notícia, reportagem e entrevista.
Jornalismo Opinativo - Editorial, comentário, artigo, resenha, coluna, crônica,
caricatura e carta.
A entrevista - gênero que será abordado neste estudo - situa-se, portanto, dentro
do universo do jornalismo informativo, mantendo uma autonomia conceitual em
relação às outras sub-classes informativas (nota, notícia e reportagem). Assim, mais do
que técnica para a obtenção de informações, a entrevista é uma das formas que o texto
jornalístico pode assumir e, na condição de gênero, reveste-se de todas as
potencialidades próprias da atividade jornalística - informar, entreter, seduzir,

correspondente ao gênero reportagem em profundidade que pode encontrar equivalência nas entrevistas
de De Corpo Inteiro.
29

interpretar, emocionar, humanizar. Esta condição da entrevista como forma de


manifestação do jornalismo será assunto do item 2 deste capítulo.
Mas, antes de encerrarmos a reflexão acerca das categorias jornalísticas, ainda
há uma observação a ser feita. Aceitamos que informação e opinião são, cada uma, o
centro de uma das duas categorias que dividem o fenômeno jornalístico: jornalismo
opinativo e jornalismo informativo. Contudo, é preciso esclarecer que a separação entre
informação e opinião não é tão radical quanto o didático esquema de Marques de Melo
pode sugerir. A intenção de se manter news e comments em espaços fisicamente
separados - que teve início com o Daily Courant e permanece visível até hoje,
materializada, por exemplo, nas páginas editoriais dos jornais diários - nunca se tornou
inteiramente bem sucedida. Informação e opinião continuam dividindo não apenas os
mesmos veículos ou as mesmas páginas. Elas, por vezes, estão juntas nas mesmas
linhas - e entrelinhas - nas mesmas palavras, nas mesmas expressões. Manuel Carlos
Chaparro aponta para o problema da ilusão criada pela crença na separação definitiva
entre opinião e informação nos veículos jornalísticos:

"Dogmatizado o paradigma, desenvolveram-se, como valores


definitivos, conceitos que iludem os leitores, como esse de levá-Ias a
acreditar que a paginação diferenciada dos artigos garante notícias com
informação purificada, livre de pontos de vista, produzida pela devoção à
objetividade. Como se tal fosse possível, e até desejável." (CHAPARRO,
1998)

Não há como negar que um artigo, um ensaio ou um editorial podem - e devem


fornecer grandes quantidades de informações para embasar a argumentação
apresentada. As colunas, espaço do jornalismo opinativo, estão entre as principais
fontes de informação, não raro trazendo o dado mais recente, a notícia exclusiva. Da
mesma forma, uma simples nota pode conter uma opinião sutilmente apresentada, e
uma reportagem - nas revistas semanais não faltam exemplos - é um canal bastante
usado para a divulgação das posições do repórter ou do veículo.
Se mencionarmos, mais uma vez, as entrevistas reunidas em De Corpo Inteiro
poderemos constatar que, mesmo inseridas dentro da categoria do jornalismo
informativo, elas têm um forte caráter opinativo - há, nos diálogos, mais do que uma
troca de conceitos e acontecimentos, um intercâmbio de valores, idéias, posições
30

perante os fatos da vida, onde fluem opiniões de e para todos os lados (do entrevistado
à entrevistadora, desta para o primeiro, de ambos para o público).
O que, então, caracteriza um texto como informativo ou opinativo? Podemos
dizer que é a predominância de informação ou opinião no referido texto, ou ainda a
tarefa a que a peçajornalística se propõe - uma reportagem tem o objetivo principal de
informar, de relatar fatos e descrever contextos, enquanto um artigo pretende,
principalmente, apresentar uma posição e desenvolver os argumentos que a sustentam.
Naquela, a opinião estaria, em tese, em segundo plano; neste, a informação seria
coadjuvante.
Chaparro defende a tese de que a divisão entre jornalismo informativo e
jornalismo opinativo pode conter um erro na sua origem. Para ele, a diferença entre um
artigo e uma reportagem, por exemplo, não está no conteúdo do texto (informativo ou
opinativo), mas na forma como ele se apresenta.

"Quando Samuel Bucklev decidiu separar as notícias (news) dos


comentários (comments) não levantou qualquer barreira entre opinião e
informação, ainda que tivesse pensado fazê-to. ° que ele separou foram dois
tipos de texto, um com estrutura formal argumentativa, outro com estrutura
formal narrativa. Nos conteúdos, porém, e nas intencionalidades, lá estão
informação e opinião, substâncias que permanecem, interativas, na
totalidade do jornalismo, para que nele se conserve a característica
essencial, a de ser linguagem asseveradora" (CHAPARRO, /998)

O que muda, na realidade, é a estratégia de discurso adotada: para a reportagem,


adota-se a narração, como melhor forma de se relatar um fato. Para o artigo, a
argumentação é a escolha apropriada.

"No 'policiamento' da opinião, que os crentes da objetividade


fazem, é claramente identificâvel um viés moralista, como se a opinião, só
por si, tornasse suspeita a informação. E a questão não é moral nem ética,
mas de estratégia interlocutória: para o relato dos acontecimentos, a
narração é mais eficaz. Ao relatar-se, conta-se uma história, com suas
complicações e seus sucessos, mas os juizos de valor lá estão, implícitos, nas
intencionalidades das estratégias autorais, e explícitos, nas falas
(escolhidas) dos personagens, às vezes até nos títulos." (CHAPARRO, 1998)
31

As questões apontadas por Chaparro são relevantes. Embora a proposta do autor


pareça um tanto radical - romper com o "paradigma" que estabelece a divisão do
jornalismo nas categorias informativa e opinativa -, os aspectos por ele apontados
podem levar a uma reflexão mais aprofundada da questão dos gêneros jornalísticos, que
ultrapasse os simples "esquemas didáticos" como o proposto por Marques de Melo e
leve em consideração outros aspectos que não apenas a separação - por vezes ilusória-
entre opinião e informação.

"Há que dar início a uma nova discussão sobre a teoria dos
gêneros jomatisticos, ancorando-a nas ciências da linguagem. Porque
gêneros são formas do discurso. Na visão pragmática, formas de dizer. para
fazer - o que explica, no jornalismo, a importância da eficácia."
(CHAPARRO, 1998 - grifas do autor)

A despeito das esquematizações e tentativas de classificação a que se pode


recorrer, o fato é que a convivência entre informação e opinião nos espaços editoriais
assume muitas formas - algumas mais outras menos transparentes. A opinião no
jornalismo (aqui não como uma categoria, mas como a expressão de um ponto de vista,
de comentários valorativos) pode aparecer explícita ou implícita em textos informativos
e opinativos, e também na identidade que o veículo assume, no conjunto de suas
atuações, através da linha editorial. Clara principalmente nos editoriais - voz autorizada
da instituição jornalística - e às vezes explícita nos manuais de redação, a linha editorial
reflete-se em maior ou menor grau em todo o conteúdo que preenche as páginas do
jornal - mesmo nas formas gráficas, como ilustrações, fotografias, charges e a própria
diagramação. É a linha editorial que rege desde a seleção dos assuntos a serem
veiculados até o espaço e a localização que as matérias vão ocupar nas páginas,
passando pelo enfoque nas pautas, pelas palavras escolhidas para as manchetes e
influenciando até mesmo as decisões dos repórteres e editores na escolha das fontes.
Cremilda Medina (1978) chama de angulação a primeira força do processo de
produção de notícias, que se dá em três níveis: grupal, nível-massa e pessoal. A
angulação grupal é determinada pelos interesses econômicos e/ou ideológicos das
empresa de comunicação - é, portanto, a linha editorial. Esta forma de angulação é uma
das maneiras mais eficientes de veiculação implícita da opinião, manifestando-se

c
32

sorrateiramente nos gêneros informativos, desde a captação das informações à


formulação estilística dos textos.

"Nem sempre é fácil chegar a esse componente, porque ele não se


apresenta claramente. Estudar a presença difusa e subjacente da empresa
jornalística na mensagem expressa ou mesmo no comportamento do repórter
que aí trabalha é uma tarefa de pesquisas que envolvem instrumental
econômico, sociológico e psicológico" (MED/NA, /978, p.74)

A angulação em nível-massa é a tendência dos veículos que compõem a "grande


indústria da informação" de adaptar seu conteúdo - assim como a sua forma - a um
gosto médio, que corresponderia a um leitor padrão/consumidor padrão.
Ao repórter, resta a angulação pessoal - que, segundo Medina, sena um
pri vilégio conferido principalmente às "estrelas" do jornalismo, profissionais
reconhecidos a quem é dada a liberdade de desenvolver um estilo próprio. Mas qualquer
jornalista, ao escrever uma matéria, deixará nela suas marcas pessoais - vimos, já, que a
tal "objetividade" pura é inalcançável - mesmo que escondidas sob as marcas da linha
editorial e do nivelamento médio.

1.2. ENTREVISTA

Gosto de pedir entrevista - sou


curiosa. E detesto dar entrevistas, elas me
deformam.
De Corpo Inteiro

A entrevista está presente na composição de quase todas as peças jornalísticas. É


através dela que se consegue a maior parte das informações, seja para uma simples
notícia, seja para uma grande reportagem. Esta é a noção de entrevista como técnica
operacional para se obter informações a partir de uma fonte. Luiz 8eltrão define
entrevista jornalística simplesmente como "a técnica de obtenção de matéria de
interesse jornalístico, por meio de perguntas a outrem" (apud ERBOLATO, 1991,
p.lS7). É esta técnica que dá ao jornalismo olhos e ouvidos quase onipresentes: através
dela, o jornalista pode apurar as informações necessárias para o relato de fatos que não
presenciou, a partir de testemunhos das pessoas envolvidas com o acontecimento.
33

o jornalismo não pode prescindir da entrevista: mesmo quando a informação é


obtida através de outra técnica ou a partir de uma fonte não-humana, buscam-se as
declarações que preencherão o espaço entre as aspas, garantindo a veracidade dos dados
colhidos perante o leitor. Colocam-se as palavras na boca da fonte, pois a ela são
permitidos comentários bombásticos, opiniões controversas, adjetivos inquietantes,
juízos comprometedores - as posições pessoais do jornalista, geralmente, fluem no
discurso das entrelinhas posto em linhas bem arrumadas e editadas em linguagem
pseudo-objeti va.
Segundo Mário L. Erbolato, a técnica da entrevista incorporou-se ao jornalismo
em 1836, quando um repórter do New York Herald inquiriu pessoas durante a
investigação de um assassinato. Mas com o desenvolvimento da técnica veio a
percepção de suas potencialidades e o papel da entrevista dentro do fenômeno
jornalístico teve sua dimensão consideravelmente ampliada. Erbolato, citando Juarez
Bahia, afirma que "a entrevista no jornalismo (...) adquiriu uma expressão própria,
particular, especializada. É conhecida também como reportagem provocada"
(ERBOLATO, 1991, p.158).
A entrevista deixa de ser apenas um meio para a obtenção de informações ou
declarações que servirão de matéria-prima na construção do texto jornalístico. Toma-se
um fim em si própria; agora, a entrevista é o texto jornalístico. Uma entre as quatro
sub-divisões da categoria informativa, na classificação de Marques de Meio, a entrevista
passa a ter uma dimensão bem além da técnica: ela não é apenas um instrumento para se
extrair informações que serão base para uma matéria jornalística; é, ela mesma, um
gênero jomalístico com expressão própria e independência conceitual.
A entrevista como gênero jornalístico é o centro do estudo que Cremilda Medina
desenvolve no livro "Entrevista - O diálogo possível" (1991). Mas, mesmo alguns
textos que podem ser encaixados dentro do conceito de entrevista-gênero podem não
corresponder ao que a autora chama de diáLogo possivel e que aponta como um caminho
para um jornalismo humanizador e não-sensacionalista: a entrevista seria dialógica
somente quando ultrapassasse as barreiras de um questionário pré-estabelecido e
alcançasse a interação plena entre entrevistador e entrevistado (sem excluir o terceiro
elemento dessa relação, o público). Os critérios para definir o que seria esta entrevista
aprofundada são tão subjetivos quanto o jornalismo que se busca; o diálogo é possível
quando se rompem as barreiras de uma pauta/camisa-de-força, quando se resgatam
valores humanizadores, quando se atinge o encontro do EU-TU e não do EU-ISTO;

)
G
34

quando todas as partes envolvem-se e comprometem-se com o fluxo de palavras e idéias


e deixam-se por ele modificarem.

"Eis algumas das possibilidades de enriquecimento informativo na


entrevista aberta, sem a camisa-de-força do questionário fechado: o centro
do diálogo se desloca para o entrevistado; ocorre liberação e
desbloqueamento na situação inter-humana e esta relação tem condições de

fluir; atinge-se a auto-elucidação", (MED INA, 1995, p.ll)

No diálogo possível - a entrevista como forma de comunicação plena - há um


encontro das subjetividades de entrevistador e entrevistado (e, numa concepção mais
ampla, também do receptor).

"Ocorre, com iimpidez, o fenômeno da identificação, ou seja, os


três envolvidos (fonte de informação - repórter - receptor) se interligam
numa única vivência. A experiência de vida, o conceito, a dúvida ou o juizo
de valor do entrevistado transformam-se numa pequena ou grande história
que decola do indivíduo que narra para se consubstanciar em muitas
interpretações" (MEDINA, /995, p.5/6).

Nas páginas dos jornais e revistas, a entrevista-gênero pode aparecer em texto


corrido - o entrevistador nalTa o encontro e relata os pontos relevantes tocados durante a
entrevista, além de contextualizar o leitor a respeito da vida e dos feitos do entrevistado.
Aqui, a entrevista-gênero pode aproxima-se da reportagem aprofundada - e de fato nem
sempre os limites entre os gêneros jornalísticos são rígidos e invioláveis - mas,
geralmente, a ênfase dada às opiniões do entrevistado ou às informações que só ele e
mais ninguém pode oferecer caracteriza a entrevista. São típicos exemplos os perfis
humanizados onde o repórter, geralmente através de um texto marcado por recursos
oriundos da literatura, tenta retratar a história e a personalidade do entrevistado - assim
como as condições do encontro entre os dois.
Outra forma freqüente que a entrevista-gênero assume nos veículos impressos é
a reprodução total ou parcial do diálogo travado entre entrevistado e entrevistador - o
exemplo mais claro são os conhecidos pingue-pongues. Essa forma de texto pode ser
bastante eficiente - talvez a mais apropriada - para representar, da forma mais
aproximada possível, a conversa que se deu. Mas, para isso, é preciso que o repórter
35

seja extremamente ngoroso e ético na edição do material. Nenhum texto será a


reprodução exata do diálogo tal como ocorreu; sempre serão necessários ajustes, cortes
e até interferências posteriores - seja para adequar o texto final ao espaço que lhe é
destinado, seja para melhorar a compreensão do texto como um todo.
Na tentativa de se manter fiel ao que se deu no encontro entre entrevistado e
entrevistador e, ao mesmo tempo, fazer chegar ao leitor toda a complexidade da
personalidade que está sendo retratada - ou dos assuntos em discussão - a melhor opção
para o repórter é, a nosso ver, uma combinação entre estas duas formas. A narração do
repórter, além de apresentar o entrevistado ao leitor, fornecendo fatos, datas e outras
informações relevantes, dará conta de impressões pessoais do jornalista a respeito
daquela personalidade e da situação em que ocorreu o encontro - o leitor poderá tomar
emprestados os seus sentidos para conhecer os cheiros, sentir a temperatura ambiente,
apreender as trocas de olhares e experimentar as emoções despertadas durante a
conversa. As perguntas e respostas transportarão o leitor - já a par das condições - para
dentro do diálogo, dando-lhe a oportunidade de ouvir, da voz do entrevistado, os fatos e
suas versões. Fazendo-se em "abre", o perfil humanizado insere o leitor no contexto -
real e simbólico - do diálogo que será reproduzido no pingue-pongue.
Esta mescla de formas, em condições plenas, é rara na imprensa atual. O espaço
é pouco, o tempo é curto, o repórter prende-se à exigência de um posicionamento
distante e "objetivo", o diálogo torna-se impossível. Mas há exceções, e nelas fomos
buscar o objeto deste trabalho. Em sua maioria, os "Diálogos Possíveis com Clarice
Lispector", publicados na revista Manchete e mais tarde reunidos em De Corpo Inteiro,
são, coincidentemente ou não, exemplos do diálogo possível que Cremilda Medina nos
incita a buscar. E a nossa tentativa aqui é debruçar-nos sobre este gênero que constitui
um dos caminhos para o jornalismo pleno e humano que muitas vezes deixamos de
fazer.

1.2.1. O diálogo como estratégia discursiva

O diálogo foi o caminho escolhido por Sócrates - e, mais tarde, confirmado por
Platão - para alcançar o conhecimento. O filósofo grego, que de nada sabia além de sua
própria ignorância, encontrou neste fluxo informal de palavras e idéias o caminho da
verdade - ou ao menos de uma reflexão sobre a verdade. Questionando, levantando
36

dúvidas e apontando contradições em confrontos diários com vários interlocutores,


Sócrates conseguir abalar os conceitos estabelecidos na secular sociedade ateniense e,
com isso, apontou trilhas por onde ainda hoje se aventuram a filosofia e a ciência.
O que levou Sócrates a adotar o diálogo, entre as inúmeras possibilidades de
discurso, como forma ideal - e única, visto que ele não deixou um escrito sequer - para
expressar seu pensamento? Por que Platão, o mais famoso discípulo de Sócrates e ele
mesmo uma baliza nos rumos da filosofia, optou por manter a estrutura dialógica (ainda
que adaptada para a linguagem escrita) ao registrar - ou criar sobre - o pensamento de
seu mestre, ao invés de transcrevê-Io ou interpretá-Io através de outra estratégia
discursiva qualquer?
As razões podem ser muitas - não nos cabe apontá-Ias. Mas interessa aqui um
aspecto da estratégia discursiva do diálogo que pode apontar para uma destas inúmeras
razões: a acessibilidade da estrutura dialógica.
Explica-se: o diálogo é a forma mais natural que o discurso pode assumir - e
provavelmente a mais freqüente. Ele está permanentemente presente em nossas
vivências cotidianas, desde o momento primeiro em que entramos em contato com o
vasto universo da linguagem oral e, posteriormente, escrita. Assim, é o diálogo a forma
de discurso mais acessível a qualquer ser humano, em condições corriqueiras. Presume-
se que à conversação, familiar como nenhuma outra estratégia discursiva, não se
impõem barreiras: qualquer indivíduo, independente de sua formação, de suas
tendências ideológicas e de seus valores morais, pode acompanhá-Ia (não nos referimos
aos conteúdos abordados, mas tão somente à forma, que a caracteriza como uma
estratégia singular entre outras tantas). Para que o diálogo flua, em tese, basta que tal
indivíduo compartilhe do mesmo código lingüístico adotado por seu(s) interlocutor(es).
Leonor Arfuch afirma que essa naturalidade com que se encara a conversação
pode ter sido um dos fatores que retardaram o interesse científico sobre o diálogo.
Experimente-se aproximar dos olhos, o máximo possível, um texto qualquer: quanto
menor a distância, mais embaralhadas parecem as letras; menos compreensível toma-se
o objeto.

"(. ..) a pesar de su familiaridad; o quizâ justamente por ella, (a


conversação) fue tardiamente abordada como objeto de estudio. En efecto,
fueron en principio los géneros literarios y posteriormente el discurso
religioso, político o massmediâtico los que alimentaron una verdadera
37

obsesión en los analistas, tanto desde Ia óptica lingüística como discursiva e


comunicacional" (ARFUCH, /995, p. 36)

Além da apontada familiaridade, Arfuch afirma que outro aspecto pode ter
contribuído para que o interesse científico sobre a conversação fosse tardio.

"Probablemente tuvo que ver com esta demora Ia abrumadora


diversidad de situaciones, protagonistas, niveles de lenguaje, esse desorden
primordial que evocara el concepto de 'habla', acuiiado por Ferdinand de
Saussure para designar 10 inabordable, 10 que se quedaba afuera de ta
'lengua', único objeto de estudio por entonces formalizable en una ciencia
lingüística en su "primera fundacion" (ARFUCH, 1995, p.36)

Mas a complexidade do diálogo, em algum ponto, finalmente fisgou a aguçada


curiosidade dos analistas preocupados com as formas de discurso, tomando-se, em sua
naturalidade, um desafio instigante para a ciência. "La conversación es uno de esos
objetos que plantean un desafío discreto a Ia ciencia porque son asistemáticos y tomam
u valor, si pudiera decirse, de su pereza formal" (BARTHES apud ARFUCH, 1995, p.
37).
Não é nosso objetivo, aqui, fazer uma abordagem aprofundada do estudo do
diálogo - levado à frente não apenas pela lingüística, mas também pela sociologia ou
pela psicologia, esferas quem não raro, mesclam-se numa visão multidisciplinar. A
tarefa a que nos propomos, neste momento, é apenas traçar, em linhas gerais, alguns
aspectos que podem caracterizar o diálogo como estratégia discursiva adotada pela
entrevista-gênero jomalístico, mais especificamente o diálogo possível que Cremilda
Medina defende e que nós identificamos no objeto deste trabalho.

1.2.1.1. A conversação no cotidiano: um contrato informal

Conversas estão permanentemente presentes no cotidiano. Podemos dizer que


no diálogo está um dos pilares da organização social do homem, pois é através da fala,
das conversas diárias, que ele interage com seu semelhante, estabelecendo regras de
convivência, fazendo promessas, firmando acordos, expressando emoções. O universo
do diálogo é vastíssimo: debates políticos ou científicos, conversas de mesa de bar,
discussões acaloradas, entrevistas para empregos, entrevistas jomalísticas,
38

interrogatórios policiais, sabatinas de tribunal, promessas de amor, brigas de marido e


mulher ... A lista é infindável. A idéia de que esses exemplos, por vezes tão díspares,
sejam regidos por princípios comuns que os tomam "cientificamente" parte de uma
mesma categoria pode parecer, a princípio, estranha. O diálogo, de tão familiar, pode
nos parecer algo tão banal, tão corriqueiro, tão intuitivo que não seria passível de
qualquer teorização.
Mas, mesmo em toda a sua diversidade e naturalidade, o diálogo encerra
características que, da situação mais corriqueira à mais formal, fazem dele um gênero
do discurso.
A noção de gênero discursivo tem raízes no estudo dos gêneros na literaturl.
Tratamos, neste capítulo, dos gêneros jomalísticos que, na concepção de Marques de
MeIo (L 994), são tipos de textos que seguem determinadas características, encaixando-
se como subdivisão das duas categorias jomalísticas (informação e opinião). Os
gêneros do discurso tratados aqui cabem numa definição mais ampla, ligadas não tanto
às características textuais mas, sobretudo, aos usos, às práticas em que tal gênero se
realiza. Explica Leonor Arfuch:

"La noción de género discursivo amplía considerablemente em


horizonte, al incluir no solamente a la literatura sino a cualquier tipo de
discurso, pero com un propósito bien diferente: el de dar cuenta de las
práticas sociales que se juegan en cada esfera de la comunicación, sin
pretensión normativa o clasificatoria. La atenciôn se desplazará entonces de
las regias formales a Ia multiplicidad de los usos de Ia lengua, los contextos
elos usuarios o enunciadores. Más que a productos fijos, acabados, el
género remire aqui a estabilidades relativas, a processos en permanente
tensiôn entre repetición e innovaciôn" (ARFUCH, 1995, p.33)

Toma-se mais fácil, então, encararmos o diálogo como um gênero discursivo


dentro deste conceito ampliado, onde sua naturalidade e flexibilidade não se põem
como obstáculo à análise, mas antes como elementos da mesma. Ainda assim, é
importante apontar o que, no uso cotidiano da estrutura dialógica de discurso, faz dela
um gênero. Trata-se, aqui, de observar o funcionamento da conversação cotidiana, o
que rege o agir das partes envolvidas, seja qual for a forma do diálogo. E o que se

8Alceu Amoroso Lima discute a noção de gênero literário ao classificar o jornalismo como um deles.
Esta discussão será abordada no segundo capítulo, no item 2.1.3.
39

percebe, nesta tentativa, é que um diálogo toma forma a partir de um contrato implícito
na interação entre os envolvidos. Mesmo que silencioso, este contrato, como qualquer
outro, obedece a regras conhecidas e aceitas por todas as partes. Ainda que nada disso
esteja claro, explícito, firmado e registrado, são as regras do contrato dialógico que
possibilitam a comunicação efetiva entre as pessoas - do contrário, seriam sucessivas
discussões entre surdos.

"(. ..) Diversas indagaciones orientadas ai análisis de los usos


cotidianos fueron revelando que Ia conversación, mas aliá de sus infinitas
variaciones, estaba sujeta no solam ente a normas dei lenguaje sino también
a una trama lógica de relaciones .v a ciertas regias próprias de
funcionamento que Ias frecuentes infraciones ni hacian sino confirmar"
(ARFUCH, 1995, p.38)

Arfuch coloca cinco cláusulas para o contrato dialógico: que tua contribuição
contenha tantas informações quantas sejam requeridas (quantidade); que fales o que
crês verdadeiro (qualidade); que tuas afirmações sejam relevantes (relação); e, por fim,
que fales com claridade e evites ambigüidades (modalidade) (1995, p. 38). Arfuch
reconhece que a definição destes princípios não é rígida e inquestionável e que, por
vezes, eles são simplesmente deixados de lado - mas a regra, mais do que nunca, é
confirmada pela exceção. Segundo a autora, expressões populares correntes
demonstram que a quebra das regras do acordo é facilmente reconhecida: "é um
mentiroso", "disse bobagens", "falou, falou e não disse nada", diz-se, quando as
expectativas não são preenchidas pela contribuição de uma das partes. Os princípios do
diálogo são, então, aceitos e reconhecidos - a prova disto é que, quando um deles é
contrariado, nota-se logo que a conversa não atingiu o que dela se esperava e
reconhece-se quem não cumpriu o estabelecido e o que ficou a desejar.

1.2.1.2. A entrevista: um contrato firmado

O diálogo é um contrato informal regido por cláusulas aceitas e conhecidas -


ainda que implicitamente - por quaisquer pessoas que estejam inseridas num ambiente
social, interagindo, através da linguagem oral ou escrita, com seus semelhantes. Esta
acessibilidade da estratégia discursiva facilita a assimilação do conteúdo expresso por
tal discurso. Seu enraizamento no cotidiano faz do diálogo um canal ideal de
40

informações e opiniões, tomando-as mais assimiláveis e credíveis. Desta acessibilidade


e credibilidade, que pode ter feito do diálogo a opção do pai da filosofia para transmitir
seu legado à humanidade, também o jornalismo aproveita-se. Tomando para si a
estrutura dialógica, a entrevista jomalística - principalmente quando é publicada sob a
forma de perguntas e respostas, como em De Corpo Inteiro - apresenta-se aos leitores
como uma conversa, que lhes parece tão natural e familiar como suas próprias
conversas cotidianas, o que lhe confere um caráter de autenticidade.

"Habituados al oficio de la conversacián - quizâ el que ejercitamos


com mayor assiduidad - no somos ajenos a esa palavra pública, mas bien
estamos inc/uidos desde el principio en su dinâmica, que moviliza nuestras
proprias creencias v sentimentos, v nos sucita Ia réplica o la objeciôn"
(ARFUCH, 1995, p. 29)

Ou seja, ao apresentar-se na forma de uma conversa, o texto jomalístico


aproxima-se como nunca das formas de discurso habituais no dia-a-dia do público
leitor. O público pode reconhecer-se no diálogo, recebendo as informações ali passadas
como se ele mesmo as tivesse soLicitado. O discurso direto fornece autenticidade às
informações, dando a sensação de que o leitor as recebe em primeira mão do
entrevistado, sem intermédios.
A entrevista é, então, uma forma de diálogo com um fim bem específico:
transmitir informações de uma fonte para o público de uma maneira acessível e
convincente. As condições em que se realiza e os seus objetivos lhe conferem
características próprias que a colocam como um objeto específico, como um gênero
discursivo diferenciado. Leonor Arfuch coloca o diálogo em suas formas cotidianas
dentro do espaço dos gêneros discursivos primários, enquanto entre os secundários ou
complexos está a entrevista jomalística. (ARFUCH, 1995, P.33).
Como forma de diálogo, a entrevista é também um contrato - com cláusulas
mais rígidas e bem delineadas que uma conversação informal do cotidiano. Alguns
termos deste acordo podem ser discutidos previamente - não raro, em entrevistas
jornalísticas, são estabelecidos os temas de que se vai falar e, muitas vezes, o
entrevistado só concorda em conceder a entrevista sob a condição de que certos
assuntos ou fatos não serão mencionados. Mas, independentemente dos termos
específicos acertados entre entrevistador e entrevistado em cada ocasião, podemos

o
41

apontar três aspectos constantes em qualquer entrevista jornalística, que a diferenciam


de uma conversação cotidiana.
Em primeiro lugar, na entrevista, os papéis são fixos9: sabe-se, de antemão, que
a uma das partes cabe fazer as perguntas e levantar as questões; à outra, oferecer
explicações, narrar fatos, fornecer informações. Esta seria a primeira cláusula do
contrato da entrevista: ambas as partes concordam que ao entrevistador é dada a tarefa
de inquirir, enquanto o entrevistado está ali para ser sabatinado. Ao contrário de uma
conversa informal, não há uma suposta igualdade entre as partes; não se espera que as
opiniões dos interlocutores envolvidos tenham o mesmo valor, nem que seus
argumentos tenham pesos iguais. Cada um está ali cumprindo um papel pré-
estabelecido, e sua postura no diálogo é determinada por este papel.
O segundo aspecto específico da entrevista vem em decorrência do primeiro:
neste diálogo com papéis pré-estabelecidos, espera-se de uma das partes - o
entrevistador - uma preparação prévia para exercer tal papel. O repórter está ali na
condição de técnico do diálogo; supõe-se que ele passou por um treinamento e deve
estar preparado para conduzir a conversa e obter do entrevistado as informações
desejadas. Como explica Leonor Arfuch:

"Plantear com claridad Ias perguntas. reperguntar, volver sobre un


tema o cuestión que quedó pendiente, resumir. glosar o desarrollar 10
substantial de Ias afirmaciones dei outro. hacer avanzar el diálogo. anular
el silencio. aprovechar elementos inesperados pero relevantes. dar um giro
radical si es necessario, abrir una polémica, son algunas de Ias habilidades
pragmáticas que resume el concepto de formulating (formulacián) propuesto
por Garfinkel Y Sacks para este tipo de intercambios, que suponen una
prática inusual en la charla cotidiana" (ARFUCH. 1995. p. 49)

Do preparo do entrevistador, geralmente, vai depender o êxito da entrevista.


Pode-se conseguir apenas respostas satisfatórias para uma série de perguntas pré-
formuladas; ou se pode atingir uma interação construtiva, um diálogo pleno. Nas
palavras de Crernilda Medina, o repórter,

9 Não são raras as inversões de papel durante uma entrevista - em De Corpo Inteiro podemos apontar
diversos trechos onde Clarice responde perguntas dos entrevistados e faz colocações pessoais. No entanto,
como for dito do diálogo cotidiano, a exceção confirma a regra: os papéis na entrevista são tão claros para
todos que mesmo o leitor leigo percebe quando eles foram invertidos.

e
42

"(. ..) dinamicamente, do ponto de vista de vida, e tecnicamente, do


ponto de vista da profissão, sabe encaminhar com agilidade o que, no
princípio, era o questionário básico de pauta. Desenvolver o encadeamento
de perguntas, interferências, interrupções, re-orientações no discurso do
entrevistado é, sem dúvida, a demonstração de um desempenho maduro do
repórter. E dessa evolução da entrevista vai depender, em grande parte, o
resultado final quando ela for montada na matéria comunicacional"
(MEDINA, 1995, p.29)

Ao contrário do que se pode pensar, a condição de técnico do diálogo não exige


do jornalista que ele atue como mero coadjuvante numa cena onde o entrevistado, como
protagonista, é o único com direito a voz e a uma posição pessoal. Ao contrário, a
personalidade do repórter é decisiva nos rumos que o diálogo toma. Cremilda Medina,
citando José Bleger, afirma que o entrevistador exerce um papel de "observador
participante" e aponta para a "presença decisiva de sua personalidade,
desmistificando, com isso, a pretensa objetividade de quem pergunta ou encaminha a
conversação, ou ainda de quem ouve as resposta do entrevistado". Segundo a autora, "o
entrevistador deve investir, de imediato, na própria personalidade para saber atuar
numa inter-relação criadora" (MEOrNA, 1995, p.LO).
O terceiro diferencial da entrevista corresponde a um terceiro participante do
diálogo, que tem um papel atípico: o público. Embora, no momento em que o diálogo
ocorre, só estejam "fisicamente" presentes entrevistador e entrevistado, este terceiro
sujeito da entrevista - o público - não está fora do processo; ao contrário, ele dá sentido
ao diálogo, é por ele e para ele que todo o discurso é construído. O público se faz
presente por meio do jornalista que está ali como intermediário entre as informações
que o entrevistado detém e o desejo de saber de seus leitores. "En el caso de Ia
entrevista, (...) el diálogo se construye precisamente por esa mutua adecuación de
hablar no solamente para e sino por un outro." (ARFUCH, 1995, p.31) Mais uma vez,
ressaltamos que o papel de intermediário não anula a presença do jornalista. Pelo êxito
da entrevista, o repórter deve fazer seus os anseios do público; somente se estiver
realmente curioso sobre aquilo que o entrevistado pode lhe oferecer é que o
entrevistador saberá conduzir eficientemente a conversa e extrair dela o que há de
relevante. E a sua curiosidade deve partir não apenas de seus interesses pessoais, mas
sobretudo dos interesses do público que representa.
43

"Todo comunicador deve vestir a pele de um representante (através


das leis da universalidade e difusão) de um grande número de pessoas (o
maior e mais heterogêneo possível). Nesse sentido, ele tem de se esforçar
não por satisfazer a própria curiosidade, mas o que, pressente. a audiência
quer saber. Enquanto ficar exposto e frágil perante os lobbies ou suas
preferências estritamente pessoais, não terá como pesquisar, intuir,
conscientizar aquilo que lhe está pedindo a grande demanda social"
(MEDINA, 1995. p.38 - grifo da autora)

As potencialidades da entrevista como gênero jornalístico são ampliadas se


considerarmos suas aproximações com o ato criativo literário. Estas aproximações,
apontadas por Cremilda Medina e por Leonor Arfuch em seus estudos, são reflexo de
uma relação já centenária - e centro de acaloradas discussões - entre os fenômenos
jornalístico e literário. o próximo capítulo, faremos uma reflexão sobre estas relações,
a partir das idéias de alguns estudiosos que já se voltaram para o assunto, para então
tentar apontar na entrevista jornalística alguns pontos em comum entre jornalismo e
literatura.

A ~ _____"J
44

2.
JORNALISMO E LITERATURA
45

2.1. APROXIMAÇÕES ENTRE JORNALISMO E LITERATURA

2.1.1. Um breve passeio pelas idéias correntes

o jornalismo, reza o senso comum, é o primo pobre da literatura. Aparentado,


pois comunga com ela da palavra - matéria-prima, ferramenta de trabalho, suporte de
todas as suas formas de expressão. Empobrecido, fincado que é no dia-a-dia, no
corriqueiro, no cotidiano, pois não compartilha da nobreza das belas letras - não lhe é
dado o caráter de arte. À literatura, o requinte, o rebuscamento, a liberdade de criação, a
palavra culta. Ao jornalismo, o colóquio, a objetividade, as amarras da realidade factual,
a palavra leiga.
A despeito de toda a estereotipação que transborda nesta noção corrente - por
certo, as relações entre jornalismo e literatura são bem mais complexas, e é nosso
objetivo neste capítulo refletir sobre elas - dela podemos tirar uma conclusão ao mesmo
tempo simples e essencial: nem aos olhos leigos do saber geral escapa a similitude entre
estas duas atividades. Ao contrário: o senso comum pode ignorar os termos em que se
dá a discussão acadêmica a este respeito, mas reconhece desde o princípio que
jornalismo e literatura são ramos distintos de uma mesma árvore genealógica e,
"primos" que são, guardam semelhanças e diferenças.
Destacada esta constatação, passemos do saber geral a um senso um pouco mais
especializado: a idéia vigente no meio jornalístico. Aqui, a proximidade entre as
atividades jornalísticas e literárias têm, não raro, uma conotação não menos
estereotipada que aquela do senso comum, ainda que aponte na direção oposta. Como
nos lembra o jornalista-escritor Eric Nepomuceno, num ensaio publicado na revista
Jornal dos Jornais (outubro de 99), uma das primeiras lições que o jovem repórter ouve
dos colegas mais experientes é jaça jornalismo, e não literatura. Com isso, a orientação
é para que o texto seja claro, objetivo, vá direto ao ponto, esquivando-se dos floreios e
rebuscamentos que caracterizariam um texto literário. O sumo desta noção nos fica
claro: o suposto "caráter literário" de um texto jornalístico denunciaria sua má
qualidade, e iria de encontro a sua finalidade primeira - informar claramente, sem
interferências, da maneira mais eficaz e direta possível. A qualidade de uma peça
jornalística seria conferida em razão de sua adequação às corretas e castradoras normas
46

técnicas ditadas, em maior ou menor grau, pelos manuais de redação, como ilustra o
texto abaixo, extraído do capítulo referente a "texto" do Novo Manual da Redação da
Folha de São Paulo:

Um bom texto jornalistico depende, antes de mais nada, de clareza


de raciocínio e domínio do idioma. Não há criatividade que possa substituir
esses dois requisitos.
Deve ser um texto claro e direto. Deve desenvolver-se por meio de
encadeamentos lógicos. Deve ser exato e conciso. Deve estar redigido em
nível intermediário, ou seja, utilizar-se das formas mais simples admitidas
pela norma culta da língua. Convém que os parágrafos e frases sejam curtos
e que cada frase contenha só uma idéia. Verbos e substantivos fortalecem o
texto jornalístico, mas adjetivos e advérbios, sobretudo se usados com
freqüência, tendem a piorá-to.
O tom dos textos noticiosos deve se sóbrio e descritivo. Mesmo em
situações dramáticas, é essa a melhor maneira de transmitir o fato da
emoção." (FOLHA DE S. PAULO, 1992, p.47J.

Na contra-mão desta idéia vão muitos dos aspectos discutidos no capítulo anterior,
quando tratávamos do conceito e das características do jornalismo, em especial no item
1.2.2., referente à interpretação. A presença - não só inevitável, mas sobretudo
desejável - da subjetividade do repórter não pode ser encarada, conforme já vimos,
como um fator empobrecedor, vez que, na medida certa, ela humaniza o texto e
aproxima-o do leitor. Assim, o "caráter literário" tomado como indício de má qualidade
da peça jornalística e da incompetência de seu autor, pode, ao contrário, conferir ao
texto aquela nobreza própria da literatura. Não é a maior ou menor quantidade de
adjetivos e advérbios que vai determinar a qualidade de uma obra, quaisquer que sejam
os rótulos a ela atribuídos. Eis a posição de Nepomuceno em relação à-crítica feita pelo
veterano ao jovem repórter:

"Entendo que com isso se pretenda dizer que determinado texto esteja
parco de objetividade e, possivelmente, transbordando adjetivos e floreios
desprezíveis. Mas jamais entendi que, por estar ruim, um texto jornalístico
mereça o selo de 'literatura', disparado com desprezo fulminante. Afinal, só
existem dois tipos de texto: o bom e o ruim. Para mim, vale o mesmo para
um texto de jornal que para um texto de ficção: será bem ou mal escrito, e
47

assim cumprirá ou não a sua função" (JORNAL DOS JORNAIS, 1999, p.


21)

Seria uma generalização injusta apontarmos a noção descrita acima como a única
em voga entre os profissionais do jornalismo. Há que se citar outra posição também
comum no meio jornalístico - certamente menos do que desejaríamos -, que vai no
sentido oposto à idéia que Nepomuceno rebate e vem ao encontro daquilo que
queremos que sobressaia ao fim desta reflexão: a idéia de que o jornalismo pode e deve,
em determinadas circunstâncias, valer-se dos recursos literários na tentativa de
humanizar-se, de conferir ao texto certo grau de subjetividade que, longe de afastá-lo
de seu objetivo primordial, trabalha a favor da reconstrução o mais fiel possível dos
fatos e de suas ressonâncias, da transmissão o mais eficaz possível das informações. Ser
eficaz, no caso do jornalismo, é chamar a atenção do leitor, atraí-lo e induzí-lo a
continuar a leitura até o final, organizar as informações de forma que elas tenham o
impacto que merecem e permaneçam na memória do leitor, sem com isso distanciar-se
da realidade dos fatos - nesta tarefa, alguns recursos da literatura vêm bem a calhar,
tornando a leitura prazerosa e atraente.
De fato, na produção jornalística atual, há lugar para o chamado 'jornalismo
literário". Em algumas publicações de periodicidade espaçada, nos suplementos
semanais dos jornais e no privilegiado espaço dos segundos cadernos, deparamo-nos
vez por outra com textos que fogem ao padrão uniformizado e pasteurizado do
jornalismo apregoado pelos manuais dos jornais-indústria, invertendo estruturas,
lançando mão de figuras de linguagem, imprimindo impressões, suprimindo palavras,
adjetivando e adverbiando. Destoantes da regra geral, certamente - por isso mesmo nos
chamam a atenção. Mas essa dissonância é suficiente para que reportagens, entrevistas,
artigos ou até simples notícias aspirem ao "status" de literatura (retomando a noção do
senso geral de que esta teria caráter nobre perante o primo pobre)?
É neste ponto que, depois de passarmos pelo senso comum e pelas noções
correntes no meio jornalístico, somos levados a analisar, em termos gerais, as formas
em que as relações entre jornalismo e literatura vêm sendo abordadas no meio
acadêmico. É bem verdade que, explicitados alguns conceitos e linhas de raciocínio,
nossas conclusões possam, enfim, ser bastante próximas ao que reza o senso comum ou
o saber profissional, pois é nestas searas que surgem as questões com que a reflexão
científica vai ocupar-se. Nossa intenção é deter-nos, nas páginas que seguem,
48

sobre conceitos e argumentos de alguns estudiosos do jornalismo e da literatura,


obtendo (em conjunto com o que já foi discutido desde o início desta monografia) o
mínimo referencial teórico necessário para que nossa reflexão possa voltar-se,
finalmente, para o objeto deste trabalho, o livro De Corpo Inteiro.
Nos parece óbvio que este ponto - a aproximação entre o jornalismo e a
literatura - é essencial mesmo para a análise mais descomprometida a respeito do nosso
objeto de estudo. Primeiro, porque a autora do livro é muito mais conhecida pelo seu
fazer literário e, mesmo na sua atuação como jornalista, a face constantemente
lembrada é a da Clarice cronista'". A crônica é um dos espaços mais naturais para uma
possível interseção entre os domínios do jornalismo e da literatura, mas nos parece
relevante também revelar a face pouco conhecida da Clarice-entrevistadora, e as marcas
que podem fazer da entrevista uma ponte entre estes diferentes domínios 11. Segundo,
porque o material aqui analisado foi publicado originalmente num espaço jornalístico -
a revista Manchete - mas nos chega às mãos no veículo literário por excelência - o
livro. A questão do suporte - e das possíveis mudanças no caráter do texto em
decorrência - será discutida no terceiro capítulo, dedicado à análise de De Corpo
Inteiro.

2.1.2. Nova busca por um conceito: literatura

Iniciamos nosso trabalho detendo-nos por um breve momento sobre o estudo


acadêmico do fazer jornalístico. Na tentativa de delimitar o conceito de jornalismo,
deparamo-nos com várias definições, com diferentes enfoques, chegando a uma
conclusão frustrante - pelo menos num primeiro momento: enraizado no cotidiano e
teoricamente marcado por uma efemeridade inerente, o jornalismo não se deixa capturar
facilmente por um conceito. Toma para si as cores do seu tempo, dissemos. Dança
conforme a música. É a busca por circunstâncias - no amplo conceito de Alberto Dines
-, e são as circunstâncias que definem seus rumos. Para não recorrer a um cômodo
relativismo, voltamos o nosso olhar àqueles aspectos - trazidos à tona pelo conceito de

10 Outro livro de Clarice Lispector, "A Descoberta do Mundo", reúne crônicas publicadas originalmente

no Jornal do Brasil. Esta obra é objeto de estudo de outro trabalho acadêmico, desenvolvido
simultaneamente ao nosso, pelo colega Amauri Arrais.
11 As marcas literárias na entrevistajornalísticajá foram tema de outro trabalho de graduação do curso de
Comunicação Social da UFC. Em "Entrevista - ponte de interdisciplinariedade com literatura, expressão
de um jornalismo humanizador" (1992), importante fonte de pesquisa do presente trabalho, Gabriela

e
49

Luiz Beltrão - que parecem permanecer sob as multi-cores assumidas pelo mimético
fenômeno jornalístico, priorizando uns e pincelando outros, tendo sempre em vista o
objeto deste estudo.
Com o mesmo enfoque, faz-se necessária uma nova busca, desta vez pelo
conceito de literatura, também essencial para os objetivos deste trabalho. Se o rótulo da
efemeridade se coloca como um obstáculo à conceituação precisa e permanente da
atividade jornalística, e à literatura é dada a consagração da imortalidade, poderíamos
acreditar que seria mais fácil, pois, chegar a um resultado bem delimitado nesta segunda
jornada.
Tal conclusão estaria notoriamente equivocada. A discussão que gira em tomo
da conceituação de literatura, no meio científico, mostra-se por certo mais complexa do
que os caminhos da definição de jornalismo. Não poderia ser diferente: a literatura está
sob as lentes dos analisadores há um sem-fim de tempo - Aristóteles já foi um veterano
com a sua "Poética" - enquanto o estudo do jornalismo é relativamente recente. Mais: a
origem da literatura, ela própria, perde-se na história do homem, mesclando-se com a
filosofia, com a ciência, com o processo criativo que é da natureza humana; a origem do
jornalismo é bem posterior, tempo e lugar de suas formas primárias podem ser
apontados com um aceitável grau de precisão.
A bibliografia a respeito do fenômeno literário é vasta: ensaios, teses, manuais e
dicionários dão conta dos mais variados aspectos relacionados à teoria da literatura.
Escolas e correntes que ora se completam, ora entram em conflito; noções intuitivas e
definições dentro de rigoroso padrão científico; história, datas, nomes e tendências;
análises de discurso, análises ideológicas e análises apaixonadas; esquemas,
classificações, critérios - a amplitude deste campo não é mensurável, dos possíveis
objetos perde-se a conta, os enfoques são tão variáveis quanto possível.
Ao que toca este trabalho, objeto e enfoque já foram mencionados e
atisfatoriamente explicitados, e é somente a partir deles que nos interessa a discussão
em tomo do conceito de literatura - como de resto todas as discussões possivelmente
abordadas aqui. Nosso centro está, pois, em alguns contornos das principais noções
atribuídas à literatura ao longo do tempo - vale esclarecer que não nos prendemos com
rigor a uma sucessão cronológica - que possam nos dar subsídios para identificar, em
primeira instância, as marcas de uma possível interseção entre esta seara e a do

Reinaldo aponta, na revista Entrevista (publicação do próprio curso), o potencial humanizador deste
gênero jomalístico que recorre a recursos literários.
50

jornalismo; e, num segundo momento, os pontos que dão às entrevistas originalmente


jornalísticas da Revista Manchete o "status" literário que acreditamos merecer o livro
De Corpo Inteiro. Depois deste alongado "nariz de cera", vejamos alguns destes
contornos.
Uma questão está por trás de grande parte das tentativas de definição de
literatura: o que faz de determinado texto uma obra literária? Onde a proximidade entre
a poesia marginal de Leminski e o romance romântico de José de Alencar? Que há de
comum entre Camões e Sidney Sheldon, Joyce e Clarice, Drummond e o vizinho da
frente que rabisca versos em cadernos velhos? Em que ponto é conferida a (nem
sempre) desejada "aura" literária ao texto que freqüenta diariamente o segundo caderno
do jornal?

Com formas tão diferentes de produção e circulação de


objetos igualmente denominados Literatura, será que é possível
defini-ta? Vamos chamar igualmente de literatura os romances
de autores consagrados como Érico Verissimo e as produções
quase anônimas de cantadores de feira e autores marginais?
Vc70para o mesmo saco (de gatos ...) best-seLLers escritos quase
que de encomenda e requintadas obras de vanguarda que
apenas poucos eleitos entendem? (LAJOLO, 1985, p. 12/13)

Para estas perguntas, o senso geral tem respostas comuns e cada um tem
respostas em particular. Os analistas têm respostas, os críticos têm respostas; cada
corrente tem uma resposta, cada escola tem várias respostas. A ciência e os
academicistas têm muitas respostas - e, afinal, têm resposta nenhuma. A professora
Marisa Lajolo resume a questão: "Tudo isso é, não é e pode ser que seja literatura.
Depende do ponto de vista, do sentido que a palavra tem para cada um, da situação na
qual se discute o que é literatura" (LAJOLO, 1985, p.l5 - grifos da autora) .
Concordamos então com a impossibilidade de se chegar a um conceito exato,
definitivo e imutável. A busca, no entanto, não é vã: de maneira semelhante com o que
ocorre em relação ao estudo do jornalismo, a questão segue aberta e definições vão
sendo feitas e refeitas de acordo com os diferentes contextos. Ainda segundo Lajolo:
"C..) as definições propostas para literatura importam menos que o caminho percorrido
para chegar a elas". (LAJOLO, 1985, p. 27). É também o que diz Tzvetan Todorov, ao
51

introduzir a questão da noção de literatura: "(...) Quem nos dirá se o caminho seguido
não tem mais interesse do que o ponto de chegada?" (TODOROV, 1980, p.ll).
Desviemos, então, o olhar do ponto de chegada, voltando-o para algumas das pedras que
compõem este caminho. Nos interessam não apenas as respostas dos acadêmicos, mas
em igual valor as respostas do senso geral - o limite entre elas, diga-se de passagem, é
por vezes não muito mais do que formal.
A primeira noção de literatura a ser citada é a que a diz que uma obra literária é
necessariamente uma obra de ficção - "escrita que não é literalmente verídica"
(EAGLETON, 1997, p.Ol) . Esta definição, que ainda hoje tem raízes profundas no
senso comum, predomina nas teorizações sobre literatura desde a Antigüidade até
meados do séc. XVll. Calcada na noção de arte desse período - "arte é uma imitação,
diferente conforme o material que utilizamos" (TODOROV, 1980, p.13) - esta
definição determina que um texto literário resulta exclusivamente da imaginação
criativa do autor, que usa a palavra como material de sua arte-imitação. Além disso, é
necessariamente uma narrativa, um relato criado do que não aconteceu no mundo
concreto.
A fragilidade desta noção fica patente quando Todorov argumenta que, se
adequa-se razoavelmente bem a uma parte da literatura (alguns gêneros em prosa, como
as novelas, os romances, o teatro), o critério da ficcionalidade deixa a desejar quando
contemplada outra parte igualmente importante: a poesia, que não é e nem deixa de ser
ficção, vez que nada conta. Ela não imita, não inventa, não relata fatos imaginários -
pelo menos não necessariamente; basta-se em si mesma, não impondo qualquer
referência externa. E quem levantaria a voz para questionar a literariedade da poesia?
Outras críticas podem ser feitas a essa noção, e, de fato, já o foram. O teórico
inglês Terry Eagleton aponta que, em determinados períodos (em específico na
passagem do século XVI para o século XVII) os limites entre real e ficção estavam
diluídos não apenas nos espaços genuinamente literários, como os romances, mas
também em notícias de jornais. "A distinção entre 'fato' e 'ficção', portanto, não parece
nos ser muito útil, e uma das razões para isto é a de que a própria distinção é muitas
vezes questionável" (EAGLETON, 1997, p.02) Outro ponto: assim como nem toda
literatura é ficção, é possível constatar, na mão oposta, que nem toda ficção é literatura.
"C ..) Se a literatura inclui muito da escrita factual (detalhe importante), ela chega a
excluir muito da ficção. E não é para menos: quadrinhos não são considerados literatura,
assim como muita ficção vendida em bancas de jornais também não são." (SALES,
52

1999, p.14). Eagleton ainda aponta para a possibilidade de se ler determinada obra
como ficção, quando ela teria sido escrita como registro verídico, ou o contrário:

"Certamente Gibbon achava que escrevia a verdade histórica, e


talvez também fosse esse o sentimento dos autores do Gênese; tais obras,
porém, são lidas hoje como 'jatos" por alguns, e como "ficção por outros;
(...)" (EAGLETON, 1997, p.02)

Neste caso, o caráter literário é determinado também pela leitura que se faz dele
- e esta, em sua vez, é determinada por uma série de fatores diversos, como tempo,
contexto social, valores culturais, condição da leitura, etc. Essa "fragilidade" que
Eagleton aponta para a definição de literatura como ficção pode estender-se facilmente a
outras definições - o que talvez resulte em relativismo, pois, em fim de contas, qualquer
texto pode ser lido como literatura.
Mesmo que predominante no período acima determinado, a presença desta
concepção de literatura como ficção transparece também em definições bem mais
recentes. Massaud Moisés fala de literatura como recriação da realidade - conceito que
tem raízes em Aristóteles - através de símbolos lingüísticos escritos. Sendo recriação, a
literatura resulta da imaginação e é, portanto, ficção. O conceito vai além: a recriação
simbólica da realidade é a forma em que esta realidade se dá a conhecer.

"Dado ser impossível captar a realidade por via direta, só resta


conhecê-Ia por meio de um sinal que a represente, não como tal, visto ser
impossível, mas como pode ser expressa, ou seja, enquanto se submete à
expressão" (M01SÉS, 1974, p.314)

Literatura seria, então, uma forma de conhecimento, intermediada pelo signo


verbal (palavra) polivalente - correspondente a mais de uma conotação e, portanto,
metafórico. O que leva Moisés a definir literatura como "a expressão dos conteúdos da
ficção, ou da imaginação, por meio das palavras poli valentes, ou metáforas" (MOISÉS,
1974, p. 314). Neste enfoque, o conceito toma-se mais facilmente aceitável quando se
tem em mente, por exemplo, a poesia, que também é uma forma de "recriar" a realidade
e onde a representação metafórica é constante - muito embora a palavra ficção ainda
nos pareça inadequada, pois que limitadora.
53

Uma outra definição a ser apontada é a que emerge mais tarde (principalmente a
partir do séc. XVIII) e não é apenas uma reformulação ou uma correção da primeira,
mas um conceito novo. Este seria que a literatura, como uma forma de arte, é um fim,
um valor em si mesma: sua realização plena dá-se dentro da sua própria expressão.
Quaisquer fins externos são secundários (o que não significa que não possam existir). É
a arte pela arte, a palavra pela palavra, o discurso não-pragmático. "( ...) Ela (a
literatura), em si própria, encerrana uma espécie de desinteresse por motivações
supostamente obrigatórias, afastando-se de qualquer praticidade, de uma finalidade
imediata de suas elaborações" (SALES, 1999, p.14). Base para muitas das correntes
literárias que se seguem - e coexistem - na tarefa de determinar os critérios científicos e
racionais que determinam o grau de literariedade de cada obra, esta é uma noção ainda
recorrente hoje. Bem próxima a ela está a proposta de Alceu Amoroso Lima, para quem
literatura é a arte da palavra, "palavra com valor de fim e não apenas com valor de
meio" (AMOROSO LIMA, 1990, p.34).12 Da mesma natureza, nos parece, é a noção de
literatura ligada ao conceito filosófico de beleza - esta afastada por Amoroso Lima por
ser "uma concepção muito alta e muito pura de literatura, mas que a afasta da Vida e a
reduz a uma seleção afinal empobrecedora" (AMOROSO LIMA, 1990, p.36) . Aqui, o
meio palavra é fim essencialmente ligado à estética, ao conceito filosófico e absoluto de
Beleza.
Assim como a primeira noção em destaque, esta definição também deixa a
desejar e é passível de críticas. Se o critério de ficcionalidade volta-se demasiadamente
para o romance, a novela ou o teatro, a noção da palavra-fim como condição para a
literariedade de um texto parece ter em vista, fundamentalmente, a poesia. Em relação a
esta alçada da literatura em particular, nos parece razoável afirmar que a palavra tem
nela mesma sua finalidade essencial. Como na obra de um escultor, o conteúdo está na
forma que toma a matéria-prima - no caso da escultura, o barro, a pedra, a madeira; na
literatura, a palavra. Pode-se contra-argumentar que à poesia é dado exercer um papel
social, destinar-se a transmitir a mensagem apaixonada dos namorados; propor-se à
tarefa de abalar estruturas culturais estabelecidas ou exercer o papel de válvula de
escape das emoções do poeta - são fins a que se podem somar outros e mais outros, ao
infinito. Mas a natureza essencial da poesia está na maneira como se combinam as
palavras que dão forma ao conteúdo; só a partir daí os demais objetivos podem aspirar à

12 As idéias de Amoroso Lima, pela sua fundamental importância na discussão acerca das relações entre
jornalismo e literatura no cenário nacional, estarão em foco no próximo item deste capítulo.

? rl
54

realização. Dos alexandrinos e redondilhas maiores e menores à materialidade quase


palpável da poesia concreta, esta categoria literária tem sempre no seu meio - a palavra
- o seu fim. É, portanto, linguagem centralmente sistemática, não-pragmática,
encaixando-se nos limites impostos por esta segunda noção de literatura.
Mas o que dizer, por exemplo, do romance? Parece-nos estranho aceitar a noção
de palavra-fim em determinadas narrativas literárias, cujo discurso transborda em
pragmatismo. Não enxergamos aí a palavra como finalidade primeira, como fim em si
mesma - ainda que se cuide da forma com esmero, as referências externas são da
essência de algumas obras, sendo mesmo, em alguns casos, seu objetivo primordial.
Sobre isto, diz Todorov:

"Seria qualquer texto literário sistemático. intransitivo, opaco?


Concebe-se bastante bem o sentido dessa afirmação quando aplicada ao
poema. objeto realizado em si mesmo (...); Mas. e o romance? Longe de nós
a idéia de que ele não é senão uma 'fatia de vida' desprovida de convenções
- e portanto de sistema; mas esse sistema não torna 'opaca' a linguagem
romanesca. Muito pelo contrário. esta última serve (pelo menos no romance
clássico europeu) para representar objetos. eventos. ações. personagens."
(TODOROV. /980. p. /7)

Outra questão refere-se à relatividade deste critério, vez que conferir a um texto
a condição de literariedade dependeria, em grande parte, não do texto em si, mas da
forma como ele seria lido. Da mesma maneira que se pode, ou não, ler como ficcional
determinado texto, também é possível assumir como palavra-fim a palavra de um texto
filosófico ou científico (que tem fins bem anteriores à estética), por exemplo, de acordo
com a leitura que se faça, enxergando com arte um texto que teve, em sua criação,
caráter fundamentalmente pragmático. Nesta concepção,

"(. ..) O foco da questão mover-se-ia do livro em si para a maneira


pela qual ele seria lido. Estamos falando, então. de ler como literatura. (...).
Mais: se muitas obras literárias. quando de sua confecção. realmente foram
projetadas para serem lidas como literatura. é certo que muitas outras não o
foram. Um texto inicialmente concebido como histórico ou filosófico pode
passar a ser tomado como literatura. assim como o inverso também é
possível" (SALES. 1999. p. 14/15 - grifo do autor)


55

Essa questão mereceria, no espaço adequado, uma análise aprofundada. Afinal,


podemos questionar a própria existência em si de um texto independente da forma como
é lido. Já existem reflexões sobre o papel ativo do receptor na criação textual no
momento da leitura. Uma possível conclusão para esta questão é a de que o texto é
exatamente a leitura que se faz dele. Tal análise não será encontrada neste trabalho com
o aprofundamento que lhe é devido - nos falta mesmo embasamento teórico para a
tarefa - mas não ignoramos a relevância da questão em relação ao nosso objeto; no
terceiro capítulo, precisamente no item que trata da questão do suporte, voltaremos
brevemente a esta discussão.
As duas noções de literatura mencionadas - o caráter da ficcionalidade e a
definição da palavra-fim - estão presentes, em maior ou menor grau, nas principais
tentativas de conceituação do fenômeno, que assumem características ora de uma, ora
de outra. Segundo Tzvetan Todorov, essa convivência das duas noções não se dá no
sentido de articulá-Ias, dificultando ainda mais o já tortuoso caminho em busca de um
conceito preciso.

"Em nossa época foram feitas várias tentativas para amalgamar as


duas definições da Literatura. Mas como nenhuma dentre eLas, tomada
isoLadamente, é realmente satisfatória, sua simples adição em pouco pode
nos adiantar; para remediar sua fraqueza, seria preciso que as duas fossem
articuladas em vez de serem apenas acrescentadas" (TODOROV, 1980,
3
p.17/

ão vamos descer às correntes e escolas da teoria literária responsáveis por tais


tentativas; acreditamos que os traços gerais pincelados nas duas noções que discutimos
nos oferecem, em medida satisfatória, os subsídios que procurávamos para apontar as
possíveis aproximações dos fenômenos jornalístico e literário, no enfoque a que nos
propomos. Numa das noções, podemos concluir desde já, impõe-se uma barreira
intransponível entre as duas searas: jornalismo não deve e não pode ser ficção, sob pena
de comprometer a ética do profissional e da atividade. A segunda noção reveste-se de
maior complexidade e nos deixa, por enquanto, mais questões que conclusões: a
palavra-fim literária é compatível com a palavra-meio jornalística? Atividade

13 A conclusão a que Todorov (1980) chega é a de que uma noção estrutural de literatura carece de
legitimidade e que o caminho para o estudo da atividade literária é ampliar horizontes, formando-se em
uma "teoria do discurso" realizada na análise dos gêneros discursivos e ocupando-se de todo o universo
verbal.
56

essencialmente social, tão enraizada nos problemas do cotidiano, pode o jornalismo


comprometer-se com a finalidade estética da literatura? Levando-se em consideração as
propriedades específicas desta atividade, onde destacam-se as limitações de tempo e
espaço, o texto jornalístico pode aspirar à condição "nobre" do texto literário?
Jornalismo é, afinal, literatura, todo ele? Ao contrário da postura que assumimos em
relação às questões acerca da condição literária, para estas perguntas esperamos chegar
a respostas satisfatórias, e não apenas ater-nos aos detalhes do caminho. Adotaremos
como baliza a já citada proposta de Alceu Amoroso Lima - para quem o jornalismo é
um dos vários gêneros da literatura - a que nos detemos no próximo item.

2.1.3. O jornalismo como gênero literário segundo Alceu


Amoroso Lima

Alceu Amoroso Lima é, sem dúvida, um dos primeiros nomes lembrados quando
se fala das reflexões feitas acerca das relações entre jornalismo e literatura em âmbito
nacional. O ensaio "O jornalismo como gênero literário", publicado pela primeira vez
no fim da década de 50, está entre os clássicos do estudo do jornalismo no Brasil - o
que é indício da importância da questão para a compreensão do fenômeno jornalístico.
Como nos lembra Gabriela Reinaldo (l993), Tristão de Athayde - pseudônimo
que marcou os primeiros momentos da atividade de Amoroso Lima como jornalista,
ante mesmo da segunda década deste século - viveu uma das mais marcantes fases do
jornalismo brasileiro, caracterizada por uma relação bem próxima, por vezes mesmo
dúbia. entre os fenômenos jornalístico e literário: a virada do século. O jornalismo,
orno de resto quase todas as instâncias da sociedade, experimentou uma fase de
tran ição entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX. Quando
o nome de Athayde surge nas páginas dos jornais, ainda são fortes as marcas de um
período onde não se podia definir se era jornalismo ou literatura o que ocupava tais
páginas. Ou ainda: se eram jornalistas ou escritores que assinavam tais textos.

"No século passado as redações dos jornais eram comandadas e


ocupadas pelos escritores literários e só nas primeiras décadas deste século
- com a urbanização das cidades, a incipiente industrialização e o reflexo
dessas mudanças na vida dos brasileiros -, é que se começou a pensar em
57

papéis diferenciados para o profissional de jornal e o escritor"


(REINALDO, 1993, p.40)

Nota-se, portanto, que inquestionável é a importância do citado ensaio e de seu


autor. Em uma nova virada de século - mais ainda, vésperas de um novo milênio - a
questão das fronteiras entre as atividades jornalística e literária ainda dá pano para as
mangas e as idéias pioneiras de Amoroso Lima têm relevo para destacar-se nas
discussões e, em grande parte, continuam válidas e pertinentes mesmo diante dos
argumentos que se possam erguer contra elas. Consideramos essencial recorrer à tese do
autor neste trabalho, tentando, no entanto, evitar uma postura acrítica e meramente
descritiva.
A hipótese de Amoroso Lima, explicitada já desde o título do ensaio, é a de que
o jornalismo está inserido na esfera da literatura, como um de seus gêneros, com
características gerais que lhe conferem aura Literária e características específicas que o
diferenciam dos demais. Nota-se que a noção de gênero aqui é fundamental, e é por ela
que o autor inicia seu ensaio.
Dentre as quatro concepções de gênero relatadas - clássica, integral, negativa e
l4
racional -, Amoroso Lima parte da última, retratada na citação de Welleck e Warren e
aceita pelos modernos.

"A moderna teoria dos gêneros é, claramente, descritiva. Não


limita o número dos gêneros possíveis e não prescreve regras para os
autores. Supõe que os gêneros tradicionais podem ser misturados e produzir
um novo gênero (como a tragicomédia) ... Em vez de acentuar a distinção
entre gênero e gênero, interessa-se (...) em achar o denominador comum de
cada gênero, sua participação em esquemas e finalidades literárias. O
gênero representa, por assim dizer, a soma de esquemas estéticos à mão, à
disposição do escritor e já inteligíveis ao leitor" (WELLECK E WARREN
apud AMOROSO UMA, 1990, p.30).

I~ Clássica é a noção dos antigos - Aristóteles, Quintiliano, Horácio - para quem gênero é "um tipo de
construção estética determinada por um conjunto de normas objetivas. a que toda composição deve
obedecer" (p.26). O expoente da noção integral é Brunetiere que, influenciado pelo cientificismo da
egunda metade do século XIX, aplica à teoria dos gêneros literários um raciocínio análogo à teoria da
evolução de Oarwin - "os autores e as obras se movem mas os gêneros é que os conduzem" (p.27). A
noção chamada negativa ou nominalista - exemplificada no pensamento de Croce - opõe-se ao
cientificismo, separando radicalmente arte de ciência, mas, como a anterior, considerando que o conceito
de gênero é ontolágico. A concepção adotada por Amoroso Lima é a racional, que atribui aos gêneros um
valor metodolôgico.
58

É a partir desta noção que Amoroso Lima considera jornalismo um dos gêneros
da literatura:

"O gênero literário, portanto, em vez de ser, como queriam os


antigos, um tipo de construção estética determinado por um conjunto de
normas objetivas a que toda composição deve obedecer - é um tipo de
construção estética determinada por um conjunto de disposições interiores
em que se distribuem as obras segundo as suas afinidades intrínsecas e
extrínsecas. Nesta concepção, flexível e não rígida, de gênero literário é que
podemos incluir o jornalismo"(AMOROSO LIMA, 1990, p.34)

Amoroso Lima passeia então pela noções - correntes e científicas - de literatura


para encontrar o conceito que pode abranger o jornalismo. A primeira definição de
literatura apresentada deriva do que o autor chama de sentido lato: "é toda expressão
verbal, falada ou escrita" (AMOROSO LIMA, 1990, P.34). O amplo e genérico
conceito não cabe na definição de "arte da palavra" que está na base do raciocínio do
autor. Passa-se, então, para as outras duas noções - sentidos corrente e estrito - que
estão inseri das nas definições de literatura discutidas no item anterior. O sentido
corrente - "toda expressão verbal com ênfase nos meios de expressão" (AMOROSO
LIMA, 1990, p.34) - é a palavra-fim de que falávamos; é, para Amoroso Lima, o
sentido do senso comum:

"O que todo o mundo entende por literatura é alguma coisa em que
a palavra valha por si, seja prosa, seja verso, seja monólogo, seja diálogo,
seja oral, seja escrita. O homem da rua, nesse ponto, distingue com mais
objetividade que o filósofo enredado em distinções e sutilezas" (AMOROSO
LIMA, 1990, p.35)

O sentido estrito é a palavra-fim essencialmente ligada à estética; a palavra


como fim absoluto. Este conceito, que "dá a arte da palavra uma finalidade não só em
si, mas ainda no plano da beleza" (AMOROSO LIMA, 1990, p.36), exclui
imperativamente a Ciência, a História, a Filosofia - e também o jornalismo. Assim é
que, para Amoroso Lima, a literatura é a palavra-fim - e, por conseqüência, também o é
o jornalismo - mas sem excluir outros fins.
59

"Se considerarmos a literatura como a arte da palavra com fim


puramente estético, então não podemos colocar o jornalismo como um
pretendente a essa dignidade e muito menos como um gênero literário.
Sou dos que consideram a literatura como arte da palavra. Mas
como arte da palavra compreendida no sentido do senso comum isto é, da
expressão verbal com ênfase nos meios e não com exclusão dos fins"
(AMOROSO LIMA, 1990, p.36)

o jornalismo é, então, um gênero - no sentido racional, flexível e não rígido, dos


modernos - da literatura - no sentido corrente, de arte da palavra reconhecida
intuitivamente pelo homem da rua. Mais precisamente: jornalismo é uma arte verbal -
vez que está inserido no conjunto literário; uma arte verbal em prosa - 'jornalismo em
verso é poesia. Não é jornalismo"(p.56) ; finalmente, uma arte verbal em prosa de
apreciação dos acontecimentos, inevitavelmente atrelada ao cotidiano. Esta é a posição
que o jornalismo ocupa dentro de uma literatura didaticamente esquematizada pelo
autor, onde prosa e verso são as duas grandes categorias da atividade literária, cada uma
com suas próprias subdivisões, até que se chegue aos gêneros, que estão na extremidade
de um esquema que assim pode ser resumido:

verso
de ficção de pessoas
-7 -7
literatura ----t ••Prosa, :~de apreciação ---I.~de acontecimento: jornalismo
.~ de comunicação .~ de obras

"Eis aí o quadrilátero fechado: arte verbal, em prosa, de apreciação, dos


acontecimentos" (AMOROSO LIMA, 1990, p.56).
O ponto que, ao nosso ver, confere uma certa fragilidade à tese de Amoroso
Lima está denotado justamente na palavra fechado atribuída ao quadrilátero que situa o
gênero jornalismo:

"Tudo o que não estiver dentro deste quadrilátero será o


jornalismo em sentido negativo, (....), mas não em sentido próprio, como


60

nem tudo o que está em verso é poesia, nem tudo o que é ficção é romance,
nem tudo o que se leva à cena é teatro" (AMOROSO LIMA, 1990, p.56).

o autor entra num terreno arriscado quando relaciona a condição de arte -


requisito fundamental para o ingresso no seleto time dos gêneros literários - à qualidade
do material jornalístico. O "bom jornalismo" faz jus ao status; é digno de adentrar as
fronteiras da literatura. Qualquer atividade pretensamente jornalística que estiver fora
destes limites é "mau jornalismo" (para usar os termos do próprio autor) - é transitório,
efêmero, descartável.
Parece-nos coerente a idéia de que nem todo jornalismo está inserido no
conjunto das atividades literárias - podemos dizer mesmo que, dentro do padrão que
segue a imprensa atual, a maior parte dos textos jornalísticos não está. Mas, apesar de
criticarmos a falta de espaço para o jornalismo literário - no sentido de um jornalismo
que se apropria da liberdade criativa própria da literatura para humanizar-se - nos
veículos da chamada grande imprensa, não podemos ignorar que, num texto jornalístico,
nem sempre é possível- ou mesmo desejável- o uso da "palavra com valor de fim". No
fazer jornalístico diário - onde tempo e espaço são fatores limitantes que nem sempre
podem ser burlados - muitas vezes o importante é, antes de mais nada, passar a
informação correta e claramente; e para isso, a palavra utilitária, com valor primeiro de
meio, própria da linguagem técnica que o jornalismo levou todo o tempo de sua história
para desenvolver, é por vezes a mais adequada. Aí, a palavra é um instrumento, tanto
quanto numa aula de matemática ou num compêndio de física nuclear - e quanto
melhor utilizada, mais plenamente atingirá sua finalidade de suporte da informação.
É necessário salientar que Amoroso Lima não ignora, em seu ensaio, esta face
técnica da linguagem jornalística. Ao tratar do estilo jornalístico - espaço das
características específicas que diferenciam este de outros gêneros literários - o autor dá
ênfase à relação intrínseca do jornalismo com o seu objeto (o fato), o que não ocorre na
mesma medida com os outros gêneros. O autor reconhece que essa peculiaridade impõe
ao jornalista a adoção de uma linguagem que se encaixe num padrão pré-determinado:

"O grande jornalista é aquele que escreve depressa, em face do


acontecimento do dia, com precisão e no menor número de palavras, levando
a informação exata ao leitor e formando honestamente a opinião pública.
Tudo isso são características, estilisticas ou não, do jornalismo em sua


61

própria natureza e, portanto, do estilo jornalístico em sua exigência


preliminar comum" (AMOROSO LIMA. 1990, p. 69 - grilos do autor)

o estilo jornalístico precede o estilo pessoal do autor - espaço onde cabe a


liberdade criativa que dá ao jornalismo a condição de uma arte da palavra.
Um aspecto relevante que se destaca na argumentação de Amoroso Lima é,
como dissemos, a hipótese de que todo o jornalismo - ou pelo menos aquele que pode
ser qualificado de bomjomalismo - está inserido na esfera da literatura.
Não nos parece apropriado chamar de "arte" a notícia redigida dentro do rigor
técnico a que muitas vezes o jornalismo se presta - bem retratado no modelo clássico do
lead, que deixa pouco espaço para a liberdade criativa do autor. Nem tampouco parece-
nos justo tachar de "mau jornalismo" tal notícia, se ela não carece de correção
gramatical e cumpre sua função de informar, dentro dos limites éticos. Trata-se de
jornalismo apenas - em uma das múltiplas cores de que pode revestir-se.

2.1.4. Jornalismo e literatura: esferas confluentes

Reconhecendo a importância das idéias de Amoroso Lima, ao apontar a relação


íntima que os fenômenos jornalístico e literário mantêm, chegamos a um ponto em que
parece incoerente a afirmação de que jornalismo é uma subespécie da literatura.
Poderíamos, no máximo, concordar em afirmar que determinados textos jornalísticos -
e, ainda assim, sob determinadas condições - podem entrar no rol das obras literárias.
Contudo, ao negar a condição de gênero literário ao jornalismo - se encarado em
sua totalidade - é necessário cuidar para não irmos direto ao outro extremo, ou seja,
excluir a possibilidade de qualquer interseção entre as duas searas, adotando o
raciocínio de que a condição de literatura opõe-se ao caráter de jornalismo - e vice-
versa. É este o caminho que toma Massaud Moisés (1994), ao rebater a condição de
gênero literário defendida por Amoroso Lima.
Moisés resolve a questão da literariedade do texto jornalístico encaixando-o
entre as formas híbridas de literatura. Em sentido estrito, o jornalismo "situa-se fora do
âmbito das letras" (MOISÉS, 1994, p. 156). Latu sensu, possui um caráter anfíbio,
exibindo uma dicotomia. É relevante a distinção feita pelo autor entre os textos
jornalísticos e aqueles que "publicados no jornal como poderiam ser noutros veículos
menos perecíveis, caracterizam-se por uma temperatura lingüística notoriamente
62

literária" (MOISÉS, 1994, p. 157). De fato, há os textos que, mesmo publicados em


espaço editorial de um jornal e ainda que assinados por um jornalista, podem ser
essencialmente literatura - basta que assumam a palavra com o fim estético da
concepção estrita a que se refere Amoroso Lima, esquivando-se das características
específicas do jornalismo. Ao lado destes, estão os textos híbridos (exemplificados por
Moisés em formas opinativas como crônicas, resenhas e críticas, mas em cujo conceito
acreditamos caber outros gêneros, como a entrevista, na forma em que aparece em De
Corpo Inteiro) "estribados no evento diário, - o que lhes garante a fisionomia
tipicamente jornalística, - mas vazados em linguagem metafórica, criativa, - o que
denota um à-vontade semelhante ao do ato criador" (MOlSÉS, 1994, p. 157).
O raciocínio de Moisés parece-nos, antes de um reconhecimento dos pontos em
comum das naturezas jornalística e literária, uma concessão ao "primo pobre" - o "à-
vontade" jornalístico apenas assemelha-se ao ato criador. Mais ainda: se um texto
jornalístico ultrapassar os limites da efemeridade característica da atividade, ganhará o
privilégio de obra literária; contudo, terá sido mal sucedido em sua missão jornalística.
as palavras do autor:

"(. ..)Graças à linguagem e à liberdade que a envolve, (os textos


jornalisticos) podem aspirar, ainda que secretamente, a permanecer para
além do jornal. Mesmo nessa hipótese, levarão sempre a chancela da
anfibologia originária, pois quando se reúnem em livro, nem por isso se
despojam da feição jornalistica. A grande obsolescência de tais escritos está
na razão direta da sujeição à efemeridade da imprensa diária. De onde,
quanto mais resistirem ao tempo, menos jornalisticos terão sido, e vice-
versa, quanto mais cumprirem sua missão tanto mais cedo se tornam
peremptos. Sua utilidade é seu fim, no duplo sentido de objetivo e morte."
(MOISÉS, 1994, p. 157)'5

Nesta hipótese, uma matéria jornalística tanto menos jornalismo será quanto
rnars literária for - de onde concIuir-se-á que o jornalismo em essência, exercendo
plenamente sua função, não admite aproximação alguma com a literatura. Tal
jornalismo pleno está fadado à transitoriedade. Se permanece e aproxima-se da
imortalidade dos literatos, não terá sido jornalismo em sua plenitude. Eis aí o extremo

15 No capítulo, no item "Os 'Diálogos Possíveis' em De Corpo Inteiro" recorreremos mais uma vez à
visão de Massaud Moisés sobre as relações entre jornalismo e literatura, quando discutiremos
63

oposto à tese de Amoroso Lima, para quem a condição de arte verbal determina o bom
jornalismo.
Parece-nos que estas duas esferas - jornalismo e literatura - têm, na verdade,
naturezas distintas. O jornalismo não é o primo pobre, não é uma sub-esfera e nem
tampouco um fenômeno híbrido; a literatura não o abrange nem a ele se opõe. O
jornalismo não é bom apenas quando se reveste de arte da palavra, nem se afasta de
sua natureza e de seus objetivos quando aproxima-se da literatura. Cada uma destas
duas atividades ocupa um espaço próprio. Mas não são espaços estanques; ao contrário,
influenciam-se mutuamente, reagem a estas influências, aproximam-se e afastam-se,
fundem-se e opõem-se, transformam-se constantemente. Não se trata de uma relação
entre categoria e gênero, entre conjunto e subconjunto. É, antes, uma relação entre
conjuntos cujos domfnios coincidem em alguns pontos e excluem-se em outros; e que,
ainda, mantêm - ambos - relações de interseção e exclusão com terceiros conjuntos - e
quartos, e quintos, ao infinito. Uma relação que pode ser enriquecedora e até
revolucionária, como constata Cremilda Medina:

"Que bom que assim seja: literatura e jornalismo não competitivos,


não provocadores de invejas mútuas, mas complementares, ou melhor,
dialógicos entre eles e trialógicos junto às camadas oscilantes da audiência,
em confronto aos entraves do poder estabelecido" (M EDINA, 1990, p.3l)

Encontrando-se na palavra e no domínio da linguagem escrita primeiras


similitudes que se notam entre os dois fenômenos - literatura e jornalismo distanciam-
se, por exemplo, em suas relações com os leitores. Para a primeira, o público é um alvo
- as vezes distante - sem influências imperativas sobre o trabalho do autor. No
jornalismo ele é o objetivo imediato; o compromisso do jornalista com o leitor é o
primeiro e mais importante limite de seu trabalho.

"O escritor pode se dar ao (sic) luxo de alegar que abstrai o seu
leitor, o jornalista não. Com este limite, a criatividade na linguagem da
comunicação social esbarra em qualquer ambição de vanguardismo, de total
livre-expressão, sob contexto da grande audiência" (M EDINA, 1990, p.27)

rapidamente as influências do suporte - a revista (Manchete) e o livro (De Corpo Inteiro) - na natureza
(jornalística/literária) das entrevistas de Clarice Lispector.

-
64

Afastando-se na natureza de seu compromisso com o leitor, jornalista e literato


novamente se encontram no esforço de fazer da palavra a sua forma de atuação na
sociedade; suas missões convergem num esforço criador que usa a palavra como
matéria bruta que toma forma em suas mãos:

"Se no plano mais imediato da competências técnicas, ao elaborar


um texto literário ou uma matéria jornalistica. podemos dissecar
carpintarias próprias, no plano das simbolizações essenciais - e, portanto,
míticas - jornalista e escritor se vêem desafiados pelo esforço criador."
(MEDINA, 1990, p.28)

É uma relação complexa e, sobretudo, dinâmica, pOIS os próprios limites da


esfera jornalística e da esfera literária estão em constante movimento - o jornalismo, no
seu mimetismo, assumindo as cores e formas de seu tempo e seguindo sempre no rastro
das circunstâncias; a literatura, não menos espelho da realidade em que se insere,
fazendo-se objeto do olhar questionador de analistas e intelectuais de todos os tempos, e
apresentando-se aos olhos do mundo sob variadas formas, ora apenas distintas, ora
antagônicas.
Trata-se, pois, de recolocar a questão. Ao invés de perguntar se jornalismo pode
ser inserido na esfera da literatura, se ele pode aspirar à condição nobre de arte da
palavra, a melhor alternativa seria tentar entender como estes dois fenômenos se
relacionam, se inter-influenciam; ir a procura dos pontos onde os dois conjuntos se
encontram e das conseqüências que há para os textos nesta complexa relação.
Ao longo do tempo, desde que o jornalismo ensaiava seus primeiros passos e a
literatura já ia em longa caminhada, as trajetórias destes aparentados fenômenos
entrecruzam-se constantmente; ora a jornada se dá lado a lado, ora um segue os passos
de outro; em momentos, embarcam no mesmo vagão, adiante, um vai à sela de outro -
mas, na verdade, raros são os momentos em que se perdem de vista.
Há espaços onde o encontro entre jornalismo e literatura é encarado como
natural, ou pelo menos identificado com uma certa freqüência - a crônica, que levou à
trilha da literatura profissionais do jornalismo como o célebre João do Rio e que trouxe
ao espaço dos jornais e revistas nomes imortalizados nas belas letras, como Machado ou
a própria Clarice Lispector; a reportagem, onde recursos estilísticos e liberdade criativa
- em espaços jornalísticos que consideramos privilegiados - unem-se ao instinto
65

detetivesco do jornalismo na tarefa de informar e formar; e, ainda, o livro-reportagem,


este objeto jornalístico-literário por excelência, que encontrou sua identidade a partir do
novo jornalismo norte-americano, mas cujas raízes podemos encontrar em obras
anteriores, como o clássico de Euclides da Cunha.
Há outros espaços onde o encontro, se não é tão notório, encerra possibilidades
equivalentes. Em particular, vai nos interessar neste trabalho a entrevista, que aceitamos
como um gênero jornalístico de informação. Se aqui a interseção entre jornalismo e
literatura não se faz, a princípio, clara como nos outros gêneros citados, também não é
menos rica ou instigante, como veremos no próximo item. Como na crônica, na
reportagem, no livro-reportagem ou em qualquer outro possível espaço, quando o
encontro entre jornalismo e literatura se dá de maneira plena e explora toda a sua
potencialidade, o resultado é um texto de qualidade inquestionáveL. Não importam os
rótulos: jornalismo humanizado ou literatura embebida no cotidiano, o material que
ocupar o território diplomático onde convivem estes dois domínios certamente será
bem sucedido no seu objetivo jornalístico de formar e informar e, ao mesmo tempo,
digno das encadernações em púrpura e dourado da melhor literatura.

2.1. A ENTREVISTA NA INTERSEÇÃO ENTRE JORNALISMO E


LITERATURA

Alguém já disse que há um livro na vida de cada ser humano. Cada pessoa, na
sua singularidade, é um universo inteiro de experiências reais e imaginárias - fatos
cornqueiros, aventuras fantásticas, sonhos impossíveis, pequenas realizações,
sentimentos, desejos, valores, crenças, Lições. Há séculos, os literatos vêm debruçando-
se sobre estes universos - o seu e o do outro - e imortalizando em prosa e verso o corpo
e a alma humana. Para registrar estes universos - da forma singular como os viram, os
sentiram, os desejaram ou os imaginaram - valem-se da fantasia, da ficção - e até da
realidade -, do seu dom, da essência simbólica da linguagem, das transgressões e
rebeldias que cabem na criação literária.
Mas quantas vidas deixaram - e deixam - de ser contadas? A quantos destes
universos únicos e voláteis foge o olhar perenizador das letras? Quantos livros deixam
de ser escritos? O caráter simbólico e representativo confere à Literatura uma amplitude
que lhe dá a pretensão de abranger o real e o imaginário, a forma e a essência do ser
66

humano; mas ela não é onipresente e, ocupando-se da essência, muitas vezes lhe foge o
singular, o particular, aquilo que torna cada pessoa única; o universo que, sob um olhar
questionador, poderia ser retratado no livro - ou nos vários - que deixou de ser escrito.
Enquanto o literato ocupa-se da essência, valendo-se de toda a subjetividade que
lhe permitem os elásticos limites da criação artística, o jornalista, no outro lado, está às
voltas com a "objetividade" quase fria que lhe impõem as normas estritamente técnicas
aplicadas às "notícias quentes". Não percebe, por vezes, o olhar privilegiado que lhe
permite a sua posição; ligado ao dia-a-dia, ao fato corrente, ao devir diário dos
acontecimentos e, conseqüentemente, também aos seus sujeitos, escapam-lhe muitas
vezes, os universos singulares que estão em cada esquina. Se ao literato, mergulhado em
sua própria subjetividade, muitas vezes não sobra espaço para um olhar questionador
sobre aqueles que lhe cruzam o caminho aleatoriamente, o jornalista, concentrado que
está na tarefa de relatar "objetivamente" os fatos do cotidiano, por vezes passa reto pela
particularidade de suas "fontes" que, além de sujeitos dos acontecimentos, caberiam
elas próprias num relato que muito diria das circunstâncias de que o jornalismo está
sempre à busca.
Vazio do olhar do escritor imerso no universo de sua própria subjetividade (o
que, ressaltemos, não é pouco) e tampouco ocupado pelo repórter atarefado com o
relato diário e quase instantâneo dos fatos cotidianos (tarefa por vezes hercúlea) o
espaço para possíveis retratos do "eu" singular de cada ser humano, nobre ou plebeu,
sob as lentes das letras é exatamente o lugar que reivindicamos para a entrevista
jornalística - fazendo coro a tantos jornalistas-literatos ou escritores-repórteres que
perceberam a riqueza que silenciosamente aflora de cada pessoa. Não qualquer
entrevista; referimo-nos à entrevista aprofundada, resultante do diálogo possível de que
fala Cremilda Medina (1995), ao encontro modificador entre subjetividades, ao "olhar o
outro" com a curiosidade e o respeito que se devem a cada sujeito. Falamos,
especificamente, dos "Diálogos Possíveis com Clarice Lispector", representados a
princípio no espaço essencialmente jornalístico da revista semanal e depois
transformados em uma obra literária que se dá à tarefa de imprimir aspectos de alguns
destes universos singulares sob o olhar da escritora que emerge da sua subjetividade -
sem abandoná-Ia por completo - para ocupar-se com o relato dos encontros
circunstanciais típicos do fazer jornalístico.
A entrevista, quando resulta de uma bem sucedida aventura do jornalista no
universo das belas letras ou quando origina-se na intenção do literato de ver o mundo e
67

o outro pelo ângulo do repórter, é um daqueles textos que se encontram na interseção


entre os domínios da literatura e do jornalismo. Ao lado da reportagem, da crônica, do
livro-reportagem, a entrevista aprofundada e não caricaturista é exemplo da
confluência entre o ato criador literário e o fazer jornalístico diário, das influências
mútuas destas duas esferas, do equilíbrio entre precisão e subjetividade, do encontro
entre arte e técnica da palavra. as páginas de jornais e revistas, a entrevista
aprofundada atingirá o objetivo de bem informar sobre o atual, passando ao leitor as
idéias e a história de personagens reais do cotidiano; no recheio das encadernações
literárias, será a arte da palavra apreciando os acontecimentos na voz de seus sujeitos,
tal como quis Tristão de Athayde.

2.2.1. Personagens em cena

São poucos os limites impostos ao ato criativo do literato. O escritor tem a


liberdade de criar cenários, fatos e pessoas fictícios para protagonizar seu enredo, dando
vida a qualquer ideal;

"não tem o compromisso expresso com o real imediato (...), vale-se


de personagens e não de seres com identidade registrada, não é obrigado a
comprovar suas induções com vozes autorizadas que representem o
conhecimento humano" (MED/NA, 1990, p.27)

Ao jornalismo, ao contrário, cabe a tarefa histórica de fazer o retrato deste


mesmo "real imediato", dever do qual o jornalista não se pode furtar. E para compor
este retrato são essenciais as "vozes autorizadas", preenchendo aspas ou sucedendo
travessões, dando o testemunho que autentica o relato do repórter. De simples técnica
para obtenção deste aval, a entrevista passou a gênero do jornalismo; percebeu-se que o
diálogo com a fonte tinha significação própria e podia ser, ele mesmo, o fato a ser
relatado. Mas também a esse gênero impõe-se o limite do real imediato; as entrevistas
que ocupam as páginas dos jornais e revistas são relatos de diálogos que se deram entre
pessoas com "identidade registrada", em dia, hora e local definidos. Ainda assim,
Leonor Arfuch refere-se aos envolvidos neste encontro como personagens, e também
são recorrentes no seu estudo sobre a entrevista jornalística termos como cena, narrador
68

e até cenografia, que senam típicos do teatro, da ficção literária, mas que soam
estranhos quando se referem à atividade jomalística.
Não se trata apenas de terminologia. Na verdade, a autora aponta características
da narrativa ficcional no discurso da entrevista:

"Este trabajo narrativo tiene cierta similaridad com Ias relatos de


ficción de Ia literatura. Aquí también son identijicables algunos de Ias
componentes canônicos de aquélla: Ia voz, y sus distinciones -
autor/narrador/personaje -, el tiempo de relato, su velocidad y ritmo, Ias
modos de Ia narraciôn" (ARFUCH, /995, p. 55)

Até pelas características próprias do diálogo que pretende reproduzir - e uma


entrevista veiculada na mídia será sempre uma reprodução menos ou mais fiel, e nunca
o diálogo em si -, na narrativa da entrevista há outros elementos significativos além das
palavras que foram trocadas. Gestos, expressões faciais e até o ritmo da respiração ora
reforçam ora contradizem as afirmações do entrevistado; suas roupas, os objetos que
traz no bolso, as marcas na pele, a maneira de sorrir denunciam aspectos relevantes de
sua personalidade; o diálogo não é conduzido apenas pela pauta que o repórter tem nas
mãos, mas também pelo teor da relação entre entrevistado e entrevistador, pelo estado
emocional dos participantes (ou "personagens") no momento do encontro, pelo
ambiente que compartilham - não meramente físico, mas em sua dimensão simbólica.
Elementos postos em cena, fundamentais para a compreensão do relato desta história.

"La escena de Ia entrevista no está desierta, no se limita ai lugar


dei encuentro (unos asientos, una mesa), sino poblada de símbolos, elegida
como Ia escenografia dei teatro o Ia ópera, no meramente el fondo donde se
muevem Ias figuras sino el âmbito que Ias semantiza, les da cuerpo y
sentido" (ARFUCH, 1995, p.73)

Este ambiente simbólico é tão amplo que, tal como a realidade em si, não é
po ível capturá-lo em toda a sua dimensão. Mas o será na medida do possível, esta
deve ser a meta do repórter. Sua percepção tem de estar suficientemente aguçada para
exercer a tarefa que é da câmera no caso das entrevistas televisivas; seu olhar tem de
capturar o gesto, a roupa, a pele; seus sentidos - quem sabe até mesmo o sexto deles -
69

devem apreender o máximo da "cena povoada de símbolos" em que se dá o diálogo


possível.
Numa etapa posterior, de posse não apenas das palavras do entrevistado
registradas em fita magnética mas de todas as impressões de que seus sentidos deram
conta, o repórter parte para o trabalho solitário de retratar em linhas impressas o
encontro dialógico e o mais que puder extrair do universo singular do entrevistado. E a
técnica da linguagem jornalística nem sempre é, por si só, suficiente para dar a este
material a forma pretendida. Como nos lembra Cremilda Medina:

"O entrevistado passeia em atalhos, mergulha e afiara, finge e é,


sonha e traduz seu sonho, avança e recua, perde-se no tempo e no espaço. O
repórter, se for um bom curtidor de papos sem limites profissionais, embarca
e se deleita. Chega então à redação e que fazer? Como montar o perfil se as
coisas não se sucederam de um jeito ordenado, como manda o figurino dos
manuais de redação? É então que ele se lembra de algum texto literário que
leu recentemente, de uma solução surpreendente no caos de determinado
personagem ficcional. Nossa! Então é possível representar um diálogo que
foge à objetividade?" (MEDlNA, 1995, p.43)

As opções narrativas que se colocam para esta representação são muitas e a


escolha cabe ao jornalista, tendo em vista os seus objetivos, bem como outras variáveis
freqüentemente impostas pela natureza do veículo - como tempo, espaço ou linha
editorial, por exemplo. A opção pelo clássico modelo jornalístico da pirâmide invertida,
onde os fatos são organizados de forma hierarquizada, partindo-se do mais importante
para as condições menos relevantes, provavelmente não dará conta da amplitude do
diálogo possivel . A reprodução literal e total da conversa também não é, na maioria das

ezes, o melhor caminho - o diálogo se dá dentro do espaço da oralidade e fazem-se


necessárias algumas adaptações para que seja compreensível na forma escrita; além
disso, aqueles elementos essenciais ao sentido do diálogo, compartilhados por
entrevistador e entrevistado, têm de ser transmitidos, de alguma forma, ao terceiro
envolvido na entrevista, o leitor, que deve sentir-se convidado a ingressar neste
ambiente simbólico.
Se no momento do diálogo há um processo de criação conjunta, que envolve
entrevistador e entrevistado, o texto final - ou seja, a matéria que levará até o leitor este
universo de idéias, emoções, informações e impressões - é de autoria exclusiva do
70

repórter. A ele cabem as decisões quanto à edição - que, sabemos, tem uma influência
inegável sobre o sentido do texto. Estas decisões vão determinar que parte do material
deve ser publicado (já que é raro haver espaço para uma publicação na íntegra), que
passagens podem ser cortadas sem prejuízos, onde cabem parênteses para explicações,
remissões ou referências. Mas o ato criador do repórter não se limita a isto; há que se
levar ao leitor informações que não estão impressas nas palavras do diálogo, sejam
dados relevantes sobre a vida do entrevistado levantados em pesquisas prévias ou
posteriores, sejam impressões e emoções do entrevistador. Apesar de existirem
"formatos-padrão" de texto - como os "abres" que antecedem o pingue-pongue e onde
normalmente constam uma apresentação breve do "currículo" do entrevistado, uma
introdução rápida aos assuntos abordados e algumas informações ligeiras sobre as
circunstâncias da entrevista -, um repórter mais ousado, se as condições permitirem,
pode usar neste espaço algo da "rebeldia" do literatos. O jornalista se vê diante da
matéria bruta e, tal qual o artesão com as mãos no barro disforme, tem liberdade para
dar forma ao conteúdo. Aqui, as metáforas, as redundâncias, a primeira pessoa, as frases
invertidas, os adjetivos e advérbios - por vezes malquistos na linguagem jornalística,
mas tão próprios da literatura - são não só permitidos como desejáveis, contribuindo
para o êxito do repórter na tarefa a que se propôs. Das mãos do escultor, pode sair um
objeto meramente utilitário - qual seria a "pirâmide invertida" - ou uma obra que
resistirá a erosão do tempo, em cuja forma estará o retrato de uma época e de seus
personagens. Arte da palavra - subjetiva, livre, criativa - em função das circunstâncias
- atuais, precisas, relevantes - de que o jornalismo estará sempre à busca.
71

3.
DE CORPO INTEIRO
72

3.1. SUPOSIÇÕES DE CLARICE LISPECTOR

Estou atrás do que fica atrás do


pensamento. Inútil querer me classificar: eu
simplesmente escapulo não deixando, gênero
não me pega mais.
Água Viva

Qualquer coisa que se diga de Clarice Lispector é uma suposição. Ou melhor,


uma interpretação das linhas e entrelinhas de uma história onde os limites entre real e
ficção são tênues. Os documentos sobre sua vida são, às vezes, contraditórios; até a data
de nascimento é suposta". A obra de Clarice diz muito de sua vida e de sua
personalidade, mas por vezes confunde-se com personalidade e vida de seus
personagens - os quais, por fim, fundem-se em obra e vida de sua criadora. Fora da
literatura, falou de si nas poucas entrevistas concedidas - e mesmo aí, corre-se o risco
de cair no enredo imaginário de uma personagem real. Esta imprecisão é inquietante
para quem se debruça sobre sua vida:

"Num universo em que o documental e o fictício se misturam.


procuro examinar como os ingredientes dessa narrativa de vida e de obra se
organizam. considerando-os na complexa alquimia criativa em que ferve o
líquido de mutações. metamorfoses. transfigurações. cujo segredo. em última
instância. parece inviolável.
Contudo. não se pode negar que há... coincidências. E tais
coincidências. a feiticeira Clarice conhecia bem. E tanto praticava com
eficácia o parecer como se fosse que. nesse jogo. nós. leitores de sua vida e
de sua obra. por vezes nos sentimos ludibriados. de modo até magicamente
perverso. e enredados numa das grandes questões que essa narrativa de
vida traduz: os limites entre o histórico e o ficcional. De quem é a voz?
Quais as pessoas e quais as personagens? o que é história e o que é ficção?
Enfim. o que é real e o que é imaginário. nesta história de Clarice?"
(GOLTlB.i995. p.i5)

16 Por muito tempo, a bibliografia a respeito da autora adotou o ano de 1925. A própria Clarice Lispector
aponta esta data, quando afirma que escreveu seu primeiro romance, "Perto do Coração Selvagem", aos
17 anos, em 1942. Mas a data correta parece ser 10 de dezembro de 1920, que consta nas biografias
"Clarice - Uma vida que se conta" e "Eu sou uma pergunta".
73

Filósofos, psicólogos, críticos, literatos, jornalistas e biógrafos já se lançaram à


tarefa de desvendar os mistérios de Clarice. Sua obra é um campo de estudos ilimitado,
aberto a interpretações e enfoques os mais variados, tão denso e profundo é o mergulho
que dá em si mesma e na alma humana. Sua personalidade multifacetada não é menos
fascinante; para capturá-Ia, descrevê-Ia e analisá-Ia, parte-se de registros e documentos
oficiais, de relatos de amigos e familiares, de vagas afirmações, de lembranças
ficcionalizadas, de falas de personagens supostamente autobiográficos.
Biografias, já se contam várias, algumas bem completas, como as duas que
constam nas referências bibliográficas deste trabalho. O "esboço para um possível
retrato", testemunho da amiga e companheira alga Borelli (l981) entre pequenos
textos e reflexões de Clarice, tornou-se referência constante. Também partindo de uma
colagem, mas com enfoque bem distinto, alga de Sá (1993) anexa ao seu "Travessia do
Oposto" o "Retrato autobiográfico de Ângela Pralini, personagem do autor (subtexto =
Clarice Lispector)": aqui são as falas de Ângela, personagem de Um Sopro de Vida -
escrito meses antes da morte da escritora, em anotações dispersas e desordenadas,
posteriormente encaixadas como peças de um quebra-cabeças - que montam mais um
possível retrato de Clarice Lispector. "Ângela é a face dionísica de Clarice", supõe a
pesq uisadora.
Adota-se lentes diversas, ângulos variados, distâncias calculadas. Os muitos
retratos de Clarice - suposições de Clarice - são tão verdadeiros quanto incompletos. A
pergunta que a autora diz ser, esta segue perguntando.

"Eu sei qual é o segredo da esfinge. Ela não me devorou porque


respondi certo à sua pergunta. Mas eu sou um enigma para a esfinge e no
entanto não a devorei. Decifra-me disse eu à esfinge. E esta ficou muda."
(L1SPECTOR, 1999b, p.103)

Entre tantos retratos, mais um: aquele captado pelo olhar jornalístico de José
Castello (l999) e registrado em "um livro híbrido (...), que fica em meio caminho entre
o jornalismo, o ensaio, a crítica literária e a ficção". Num perfil humanizado, mescla de
impressões do repórter literário e expressões de sua notável entrevistada - Clarice -,
onde a palavra proporciona o encontro do fato, da lembrança, do relato e da imaginação,
Castello conta a história-retrato de seus encontros e desencontros com Clarice
Lispector, em vida e obra. E, entre muitas perguntas, entrega-nos a sua suposição: "Só

Q
74

é possível ler Clarice Lispector tomando o seu lugar - sendo Clarice." (CASTELLO,
1999, p.29)
As várias leituras de vida e obra nos levam a crer que não há apenas uma Clarice
Lispector. Em uma só ela foi múltipla (como afinal são todos os seres humanos); uma
multiplicidade tamanha que caberia em muitas vidas: "Tenho várias caras. Uma é quase
bonita, outra é quase feia. Sou um o quê? Um quase tudo".
A palavra - escrita - é o denominador comum da multiplicidade c1ariceana.
Autora e personagem, narradora e observadora, escritora e jornalista, entrevistada e
entrevistadora, implícita e explícita: é na escrita que Clarice Lispector procura o seu
canal de comunicação com o mundo e consigo mesma. "Eu não faço literatura: eu
apenas vivo ao correr do tempo. ° resultado fatal de eu viver é o ato de escrever"
(LISPECTOR, 1991, p.21)
Não buscamos aqui uma separação estanque: Clarice-literata e Clarice-jomalista.
Ao contrário, o objetivo é mais uma "suposição de Clarice": ser humano no equilíbrio
entre criador e criatura, entre cotidiano e imaginário, na busca incessante do segredo
não desvendado pela esfinge; segredo que é o mistério de Clarice, o mistério da criação,
o mistério de todos os seres, do existir, do estar no mundo ou passar por ele. A movê-Ia,
podemos supor, está a tentativa de resgatar o mistério da vida, que é, enfim, a incógnita
de si mesma - nascida na Ucrânia, batizou-se Haya, que em hebraico significa vida.
° TEIRO, 1998)
Para se lançar ao mistério, na tentativa de imergir em si mesma e desvendar o
outro - real ou ficcional, personagem ou entrevistado - lança-se, antes, à linguagem, à
pala ra. Não se conforma com limites; quer virá-Ia ao avesso, esgotá-Ia para chegar ao
"indizível". Seu fim é o momento primeiro, o que "está atrás do pensamento" - a idéia
pura platoniana ; a essência que antecede, o contato direto, o significado pleno só
alcançado quando se esgota o significante, o "instante-já" anterior ao símbolo - a
primeiridade peirciana. "O mundo pré-vegetal, anterior aos símbolos e à cultura: eis a
busca de Clarice" (CAMPEDELLI e ABDALA, 1981. P. 104)
Referindo-se à Paixão Segundo G.R., nos diz Benedito Nunes:

"(Clarice Lispector) lançou um desafio supremo a si mesma: jogou


com a linguagem para captar o mundo pré-lingidstico. E teve que admitir, no
final, o fracasso de seu empreendimento. Mas foi um fracasso significativo,
que acarretou para a autora a mais significante vitória. Essa vitória (...)
75

traduz o reconhecimento da miséria e do espLendor da linguagem. de sua


falência e de sua essencial idade. "(NUNES. 1976. p.139)

E cita:

"A realidade é a matéria-prima. a Linguagem é o modo como vou


buscá-Ia - e como não acho. Mas é do buscar e não achar que nasce o que
eu não conhecia. e que instantaneamente reconheço. A Linguagem é o meu
esforço humano. Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as
mãos vazias. Mas volto com o indizível" (LlSPECTOR apud NUNES. 1976.
p. /39)

Vida e obra de Clarice Lispector constituem um complexo campo de análise, ao


qual já se voltaram diversos estudiosos, de várias áreas disciplinares e sob enfoques
variados, tanto no Brasil como em outros países. Diante desta complexidade, abordagem
feita aqui é rápida, um tanto intuitiva e certamente incompleta. Apropriamo-nos de
algumas das análises feitas - uma amostra pequena - e também bebemos algo "direto na
fonte": a obra de Clarice - também em pequena amostra -, com o olhar dirigido pelo
objeto deste trabalho; destas fontes, apreendemos alguns aspectos, a partir dos quais
supomos que a obra literária de Clarice reflete-se e tem reflexos em sua atividade
jornalística - espaçada mas insistente até os seus últimos meses de vida. Essa
confluência, a nosso ver, tem espaço privilegiado em De Corpo Inteiro, no exercício de
voltar-se para o outro, aceitando alguns dos limites impostos pela atividade jornalística
(mas, não tão raro, revertendo-os); e no outro prosseguir a procura pela
realidade/matéria-prima, constantemente e invariavelmente buscada - e nunca
encontrada - através da palavra .


76

3.1.1. A escritora por trás da jornalista

Eu só uso o raciocínio como

anestésico. Agora que há computadores

para quase todo o tipo de procura de

soluções intelectuais - volto-me então


para o meu rico nada interior. Só o meu

enigma me interessa. ( ... ) Minha

receptividade se afina registrando sem

parar as concepções de outros, refletindo

no meu espelho os matizes sutis das

distinções entre as coisas da vida

Um Sopro de Vida

À época da publicação do primeiro romance de Clarice Lispector - Perto do


Coração Selvagem, cuja primeira edição data de 1944 - a literatura brasileira é marcada
pelo romance regionalista." Perto do Coração Selvagem é recebido com um certo
estranhamento, pela sua narrativa intimista, pela estrutura incomum ao que se conhecia
do gênero romance; junto com o regionalismo peculiar de Guimarães Rosa, inaugura-se
o período convencionalmente chamado de terceiro tempo modernista. Cada um à sua
maneira, Rosa e Clarice mexem com as estruturas da literatura brasileira, elas tecendo as
fronteiras entre os gêneros, fundindo o conteúdo à forma, explorando as potencialidades
da linguagem ao limite.
No texto literário, Clarice subverte as estruturas tradicionais da linguagem
escrita, e esta subversão é um dos traços mais marcantes de seu estilo. Brinca com a
pontuação - "a pontuação é a respiração da frase. E minha frase respira assim"
(LISPECTOR, 1999, P.74) - inverte períodos, inventa vocábulos, desgastando a
linguagem, como aponta Olga de Sá (1999). Trabalha a forma através das palavras, mas
não comfim puramente estético; a forma é conteúdo:

"Fala-se da dificuldade entre a forma e o conteúdo. em matéria de


escrever; até se diz: o conteúdo é bom. mas a forma não. etc. Mas. por Deus.
o problema é que não há de um lado um conteúdo. e de outro a forma. Assim

17 Vidas Secas. de Graciliano Ramos. é de 1938 e Fogo Morto. de José Lins do Rêgo, é de 1943. Estes
dois autores, ao lado de Rachei de Queiroz , Jorge Amado e Érico Veríssimo são alguns dos nomes que
marcaram o segundo momento do Modernismo brasileiro.

a
77

seria fácil: seria como relatar de uma forma o que já existisse livre, o
conteúdo. Mas a luta entre a forma e o conteúdo está no próprio
pensamento: o conteúdo por se formar. Para falar a verdade, não se pode
pensar num conteúdo sem a sua forma. Só a intuição toca na verdade sem
precisar nem de conteúdo nem deforma" (LlSPECTOR, 1999, p. 254)

A escrita de Clarice volta-se para questões essenciais - mistérios por desvendar


- como o tempo, a individualidade, o amor, a existência humana; e volta-se também
para si mesma. A autora - "condenada" a escrever - ao mesmo tempo em que tenta
extrair da linguagem toda a sua potencial idade, esculpindo forma/conteúdo em busca
das soluções para seus enigmas, reflete sobre o próprio fazer literário. É a palavra
questionando a palavra, a criação literária esmiuçando-se, o texto em meta linguagem.

"O texto clariceano tem como uma das características básicas a


metalinguagem. Percebemos como questão central a problemática do
processo de criação literária, que se confunde com as questões das
personagens que compõem a narrativa. Os conflitos individuais das
personagens chegam a ser superados por questões pertinentes ao fazer
literário" (V/EIRA, 1998, p. 33)

Presente desde Perto do Coração Selvagem, esta reflexão sobre a linguagem -


"cobra que engole o próprio rabo" (LISPECTOR, 1999b, p. 21) - está, em alguns
momentos da obra literária de Clarice, em maior destaque, como em Água Viva e em
Um Sopro de Vida. Mas não se trata apenas de questionar o processo de escrita ou de
re erter suas estruturas; ao auto-analisar-se, a escritura de Clarice Lispector está à
procura da solução para o enigma da vida. A "fundamental indagação que percorre a
obra clariceana" é "ser/Linguagem, existir/escrever, sentir/pensar" (SÁ, 1999, p.lS).

"Clarice (...) trabalha desgastando a linguagem, denunciando o ato


de escrever, alertando constantemente a consciência do leitor para o fato
insofismâvel, mas esquecido, de que ele é leitor e ela escreve, isto é, faz
literatura, inventa universos de palavras. Tanto o ato de escrever como o ato
de ler são questionados, na ficção de Clarice, em agonizado confronto com o
ser e o viver." (SÁ, 1999, p. 16)
78

Ao contrário dos romances tradicionais, a ficção de Clarice, em geral não se guia


por fatos. Estes são coadjuvantes numa narrativa guiada pelo pensamento, pelas
reflexões internas, pela busca de uma identidade. Mais do que criar histórias, importa
cnar personagens, personalidades - que, às vezes, são construídos no decorrer da
narrativa, "diante dos olhos" dos leitores, como acontece com Ângela Pralini,
personagem de Um Sopro de Vida ,e com Macabéa, de A Hora da Estrela.
A estratégia narrativa de Clarice é marcada pelo discurso indireto livre -
"espécime híbrido em que se fundem a terceira pessoa, usada pelo ficcionista para
narrar a história, e a primeira pessoa, com que a personagem exprime seus pensamentos
de maneira autônoma (MOISÉS, 1974, p.L44) - pelo monólogo interior ou fluxo da
consciência. Mesmo apontando as ressalvas feitas por alguns autores quanto à sinonímia
destes dois conceitos, Massaud Moisés considera os termos correspondentes. O
monólogo interior é uma das formas que toma o diálogo na literatura.

"O monólogo interior caracteriza-se por transcorrer na mente da


personagem (monos, um, lógos, discurso, palavra), como se o "eu" se
dirigisse a si próprio. (...) Continua a ser diálogo, uma vez que subentende a
presença dum interlocutor, virtual ou real, incluindo a personagem, assim
desdobrada em duas entidades mentais (o "eu" e o "outro"), que trocam
idéias ou impressões como duas pessoas diferentes. E visto consistir na
detecção dos estratos psíquicos anteriores à consciência ou à verbalização
deliberada, o monólogo interior identifica-se pela desarticulação lógica dos
períodos e sentenças. (...) Tudo se passa como se o recheio subconsciente
vazasse inteiro no papel, com o desconcerto que lhe é peculiar." (MO/SÉS,
1974, p.145)

São as descobertas interiores, o "estado de espírito", as inquietações e as


dúvidas que determinam os rumos da narrativa, construída à correnteza mental dos
personagens. As interferências externas, por vezes, servem apenas para desencadear o
fluxo da consciência, como acontece em A Paixão Segundo G.H. - onde o fato
corriqueiro de deparar-se com uma barata coLoca a personagem em contato com
questões que nunca antes tocara, toma-se uma experiência mística, e narrá-Ia é o desafio
inevitável e inatingível - ou no conto "Amor" de Laços de Família - onde o que
provoca o momento de revelação para a personagem é um cego mascando chiclete.
79

As peculiaridades da narrativa de Clarice tornam difícil a classificação de suas


obras. A própria autora sente dificuldade em reconhecer no que escreve um dos gêneros
tradicionais, até decidir que "o gênero não a pega mais": Água Viva é ficção, Um Sopro
de Vida são pulsações.

"Sei que o romance se faria muito mais romance de concepção


clássica se eu o tornasse mais atraente, com a descrição de algumas das
coisas que emolduram uma vida, um romance, um personagem, etc. Mas
exatamente o que eu não quero é moldura. (...) Para escrever, quero
prescindir de tudo o que eu puder prescindir: para quem escreve, essa
experiência vale a pena ." (L1SPECTOR, /999, p. 27/)

3.1.2. A jornalista por trás da escritora

No jornalismo, Clarice ingressa por volta de 1940, como redatora na Agência


Nacional - que mais tarde seria transformada no Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP), subordinado ao presidente Getúlio Vargas . Lá, teve os primeiros
contatos com nomes de destaque da cultura nacional da época. Como repórter de A
Noite, teve o seu primeiro registro profissional, em 2 de março de 1942.
Daí por diante, até o fim da vida, a escritora teve várias e espaçadas
participações no jornalismo brasileiro, ora morando no Rio de Janeiro, ora como
correspondente no exterior, onde acompanhava o marido diplomata. Estas participações
nem sempre eram de caráter jornalístico - por vezes, jornais e revistas foram veículos
de sua obra literária, principalmente de seus contos.
O jornalismo ofereceu, muitas vezes, a garantia financeira que a literatura não
lhe dava. Em algumas ocasiões, C1arice hesitava mesmo em assinar as matérias
jornalísticas - talvez por receio que a marca do "primo pobre" maculasse a dignidade
literária. Este sentimento está retratado nas cartas que lhe envia Fernando Sabino,
quando tentava convencê-Ia a colaborar, de Washington, com a revista Manchete:

"Tem que ser assinado, mas não tem importância, nós todos
perdemos a vergonha e estamos assinando (...). Não se incomode muito com
a qualidade literária porque é assinado - um título qualquer com Bilhete
Americano, Carta da América ou coisa parecida se encarregará de dar
80

caráter de seção e portanto sem responsabilidade literária" (SAB/NO apud


COLTlB, /995, p.296)

Diante da resistência de Clarice, insiste e ao mesmo tempo se entrega:

"(. ..) acho que você deve assinar o que escrever: como exercício de
humildade, é muito bom. E, depois, você leva a vantagem de estar enviando
correspondência do estrangeiro, o que sempre exime muito a pessoa de
responsabilidade propriamente literária. No fundo isso pode ser sofisma de
quem se vê também obrigado a assinar o que não quer e está querendo ver
os outros no fogo também" (SAB/NO apud COLTlB, /995, p.296/297)

o fato é que, em algumas ocasiões, Clarice está nos jornais sob pseudônimos -
ou melhor seria dizer na pele de personagens? o jornal O Comício, é Tereza Quadros
que assina a página feminina, com "variedades" como receitas, dicas de beleza, etc. No
Correio da Manhã, a "personagem" é Helen Palmer; e para o jornal Diário da Noite,
Clarice assume a pena de uma personagem real, assinando Ilka Soares, a atriz e
manequim que emprestava seu nome e estampava seu rosto no alto da coluna feminina.
As atividades jornalística e literária caminharam paralelamente - e evitar que as
mãos se dessem não estava ao alcance da autora pois, como vimos, são elásticos e
inconstantes os limites entre estas duas atividades, confluentes.

"Pode-se afirmar (...) que a produção literária de Clarice nasce


para o público concomitantemente a uma atividade jornalistica. Além da
contemporaneidade da produção, efetiva-se um intercâmbio de recursos
entre tais modos de trabalhar a linguagem - o literário e o jornalístico - que
se autocomplementam" (COLTlB, 1995, p.J56)

Não é apenas um intercâmbio de recursos narrativos; a confluência se dá em


campo mais amplo. Por vezes, compartilha-se o conteúdo, os questionamentos, os
objetivos. De forma mais sutil no jornal, mais explícita no livro, Clarice transparece no
texto. Um exemplo desse intercâmbio - relatado por Nádia Goltib (1995): em sua seção
feminina, Tereza Quadros apresenta uma receita de matar - "meio cômico, mas eficaz"
- baratas. A fórmula consiste em misturar gesso a farinha e açúcar, e espalhar o pó para
ser ingerido pelas baratas. "Passado algum tempo, insidiosamente o gesso endurecerá
dentro das mesmas, o que lhes causará morte certa." O "assassinato cruel e sádico" que
81

se lê nas entrelinhas da coluna invade as linhas do conto "A Quinta História" onde
petrificar baratas é a "missão" da narradora: "Meticulosa, ardente, eu aviava o elixir da
longa morte. Um medo excitado e meu próprio mal secreto me guiavam. Agora eu só
queria gelidamente uma coisa: matar cada barata que existe" (LISPECTOR apud
GOLTIB, 1995, p.282).
Na coluna, Tereza Quadros apropria-se do poder criativo de sua "autora"; no
conto, Clarice Lispector lança mão do "fato jornalístico" que move a sua "personagem".

"O resultado é não a exclusão da escritora Clarice, mas sua


participação um tanto simulada - oufingida - sob a capa de uma "outra", a
Clarice-jomalista que, por sua vez, aparece como - e assinando o nome de -
Tereza Quadros, ser fictício ou mais uma personagem de Clarice Lispector.
Quem sabe esse desdobramento poderia ser explicado também pela
cumplicidade de duas - a escritora e a jornalista - que se reúnem numa
terceira pessoa - Tereza Quadros?' (GOLTlB, 1995, p.280)

Essa cumplicidade entre a escritora e a jornalista - faces do "eu" múltiplo de


Clarice - é ainda um indício, um sinal da inter-influência entre as duas atividades; e das
influências que essas inter-influências terão na leitura de vida e obra de Clarice
Lispector.
Podemos apontar dois momentos onde a obra de Clarice ocupa plenamente o
espaço de interseção entre jornalismo e literatura: as crônicas, publicadas ao longo de
sete anos de coluna semanal no Jornal do Brasil (algumas posteriormente reunidas no
livro A Descoberta do Mundo), e as entrevistas, publicadas primeiro em Manchete e
depois em Fatos e Fotos na seção "Diálogos Possíveis com Clarice Lispector".
Já dissemos que a crônica é um dos mais naturais espaços de confluência entre
jornalismo e literatura. No caso específico de Clarice, o material publicado no JB
oferece um testemunho essencial para a compreensão da vida da autora; diversos
"analistas", ao tentarem formular suposições-retrato de Clarice Lispector, descobriram
o mundo da autora a partir das memórias - por vezes ficcionalizadas -, das afurnações e
das reflexões impressas ali. Fora da ficção, no espaço jornalístico da coluna - opinativo
e, portanto, sem restrições à pessoalidade do jornalista - a autora mostra muito de si,
relatando fatos de seu cotidiano, impressões, reações às críticas, reflexões sobre a sua
própria obra. Mesmo contra a vontade da autora, A Descoberta do Mundo, reunindo
82

várias dessas confissões pessoais publicadas no JB, talvez seja uma das mais
esclarecedoras "biografias" de Clarice Lispector.

"(, ..) Sem perceber, à medida que escrevia para aqui, ia me


tornando pessoal demais, correndo o risco daqui em breve de publicar minha
vida passada e presente, o que não pretendo" (LlSPECTOR, 1999, P.113)

"Nesta coluna estou de algum modo me dando a conhecer. Perco


minha intimidade secreta? Mas que fazer? É que escrevo ao correr da
máquina e, quando vejo, revelei certa parte minha" (LlSPECTOR, 1999,
p.137)

A experiência de cronista é totalmente nova para a escritora, assim como é um


contato direto e pessoal - sem os escudos que a ficção literária oferece - com o leitor.
Recebe cartas, surpreende-se e as comenta; assina os textos (pela primeira vez em
jornais) e mostra-se; comenta fatos corriqueiros de sua vida, dirige-se diretamente a
algumas pessoas, relembra a infância e a adolescência. Entre os temas diversos,
recorrente é a própria experiência de escrever crônicas, como em "Ser Cronista":

"Crônica é um relato? É uma conversa? É o resumo de um estado


de espírito? Não sei, pois antes de começar a escrever para o Jornal do
Brasil, eu só tinha escrito romances e contos. Quando combinei com o jornal
escrever aqui aos sábados, logo em seguida morri de medo. Um amigo que
tem voz forte, convincente e carinhosa, praticamente intimou-me a não ter
medo. Disse: escreva qualquer coisa que lhe passe pela cabeça, mesmo
tolice, porque coisas sérias você já escreveu, e todos os seus leitores hão de
entender que sua crônica semanal é um modo honesto de ganhar dinheiro"
(LlSPECTOR, 1999, p.113)

Na coluna semanal, às vezes são publicadas entrevistas (algumas das que foram
publicadas na Manchete, por exemplo), pequenos contos, "noveletas". As próprias
crônicas, predominantes, variam no tom: às vezes, com temas corriqueiros e linguagem
bem simples; outras, com ousadias estruturais bem próximas à linguagem dos contos
ou romances. Mas há, claro, diferenças entre o texto jornalístico e literário; no espaço
do jornal, muitos dos comentários voltam-se para questões factuais, a linguagem é
geralmente mais simples e clara e há um compromisso com o leitor bem mais rigoroso

••
83

que na literatura. A autora deixa clara essa diferença em várias passagens de seus textos
- às vezes, tentando deixar nítida a diferença entre o material jomalístico e seus livros,
para não "corromper" a palavra literária:

"Hemingway e Camus foram bons jornalistas, sem prejuízo de sua


literatura. Guardadissimas as devidas e significativas proporções, era isto o
que eu ambicionaria para mim, se tivesse fôlego.
Mas tenho medo: escrever muito e sempre pode corromper a
palavra(. ..).
Outro problema: num jornal nunca se pode esquecer o leitor, ao
passo que no livro fala-se com maior liberdade, sem compromisso imediato
com ninguém.t, ..)
Não há dúvida (...) de que eu valorizo muito mais o que escrevo em
livros do que o que eu escrevo para jornais - isso sem, no entanto, deixar de
escrever com gosto para o leitor de jornal (...)"(LlSPECTOR ,/999. p.42J)

A experiência de escrever para um público amplo teve reflexos na narrativa


literária de Clarice; de certa forma, levou-a a ultrapassar os limites de sua imersão
intimista e a adotar, ainda que levemente, um pouco da "preocupação jomalística" com
o leitor, como constata Márcia Guidin: "Encontrar o lugar do autor, aprendendo que o
leitor é uma entidade viva que lê e comenta, mudará aos poucos o tom de Clarice em
seus textos ficcionais" (GUIDIN, 1998, p.21). A autora percebe a "presença" do leitor
não só através das cartas, presentes, telefonemas e visitas freqüentes; mantém com o
público um contato mais próximo, e reflete sobre este contato:

"Sinto-me tão perto de quem me lê. Efeliz por escrever para jornais
que infundem respeito." (LlSPECTOR, 1999, p. 95)

"(... )Basta eu saber que estou escrevendo para um jornal, isto é,


para algo aberto facilmente por todo mundo, e não para um livro, que só é
aberto por quem realmente quer, para que, mesmo sem sentir o modo de
escrever se transforme" (LlSPECTOR ,1999, p.113)

"É curiosa esta experiência de escrever mais leve e para muitos, eu


que escrevia 'minhas coisas' para poucos. Está sendo agradável a
sensação" (LlSPECTOR, 1999, p.399)
84

Nos "Diálogos Possíveis" e, consequentemente, em De Corpo Inteiro, também


vai imperar essa escrita "mais leve e para muitos" - tão própria do estilo jornalístico.
Mas o ponto de confluência que nos interessa destacar aqui já foi apontado no capítulo
anterior: o espaço da entrevista como encontro modificador de subjetividades, a busca
pelo "universo singular de cada pessoa". O exercício de "olhar o outro" com o olhar
questionador do jornalismo e capturar-lhe o retrato nas sutilezas da palavra literária.
Nos "Diálogos Possíveis" estão muitas das questões que percorrem a obra literária de
Clarice Lispector; neste espaço, ela usa a palavra para tentar alcançar o "indizível" do
outro - perseguindo, ao mesmo tempo, o enigma de si e de todos os seres.

3.1.3. Em busca do outro

Sobretudo dedico-me às vésperas de

hoje e a hoje, ( ...) a todos esses que em mim

atingiram zonas assustadoramente

inesperadas, todos esses profetas do presente

e que a mim me vaticinaram a mim mesmo a

ponto de eu neste instante explodir em : eu.

Esse eu que é vós pois não agüento ser

apenas mim, preciso dos outros para me

manter de pé

A Hora da Estrela

Telma Vieira (1998), apontando o caráter metalingüístico da ficção de Clarice


Lispector afirma que, ao questionar, descrever e refletir sobre o processo criativo
literário através do fluxo da consciência de seus personagens, a autora "ficcionaliza"
todos os elementos próprios da criação literária:

"A linguagem, na escritura clariceana, funciona como pólo de


ficcionalização. É por intermédio do questionamento da linguagem, e sua
aceitação, que autor, na rrado r, personagens e o próprio texto tornam-se
elementos ficcionais" (V/E/RA, /998, p.30)

Levando ao cerne da questão o próprio ato de escrever, Clarice Lispector coloca-


se - ela, autora, quem escreve - como elemento do texto, como personagem. Embora a
própria Clarice, em diversas ocasiões, afirme que as suas obras não têm caráter


85

autobiográfico, as "coincidências" da "feiticeira", apontadas por Nádia Goltib (1995),


tornam inevitáveis as aproximações, que são recorrentes - lembremos do "Retrato
autobiográfico de Ângela Pralini", exercício de Olga de Sá (1999), que considera a
personagem "a face dionísica" de sua criadora . As coincidências, às vezes, a própria
Clarice deixa escapar: em A Hora da Estrela, o narrador Rodrigo S.M. - o angustiado
criador de Macabéa - é "na verdade Clarice Lispector" , como está impresso entre
parênteses na "Dedicatória do Autor" (LISPECTOR, 1984, p.27).
Outro exemplo é Um Sopro de Vida, onde Clarice também cria um narrado r,
que cria uma personagem; o romance - ou as "pulsações" - constitui-se de falas
alternadas entre o Autor (narrador) e Ângela (personagem), mas deixa entrever a voz
de Clarice (autora) dirigindo-se ao leitor; o processo de construção do texto - a
linguagem - é o elo que liga todos estes elementos narrativos - que, na escrita
ficcionalizada de Clarice, tornam-se personagens.

"Escolhi a mim e ao meu personagem - Ângela Pralini - para que


talvez através de nós eu possa entender essa falta de definição da vida. (...)
Eu queria iniciar uma experiência e não apenas ser vítima de uma
experiência não autorizada por mim. apenas acontecida. Daí a minha
invenção de um personagem. Também quero quebrar. além do enigma do
personagem. o enigma das coisas (...).
Eu sei que este livro não é fácil. mas é fácil apenas para aqueles que
acreditam no mistério. Ao escrevê-lo não me conheço. eu me esqueço de
mim. Eu que apareço neste livro não sou eu. Não é autobiográfico. vocês não
sabem nada de mim. Nunca te disse e nunca te direi quem sou. Eu sou vós
mesmos." (LlSPECTOR. 1999b. p. 21)

Numa estrutura complexa onde nem sempre é possível identificar de quem é a


voz - da própria autora, do narrador, da personagem - um elemento em comum na
escrita ficcional de Clarice é a busca pela essência do ser, real ou ficcional.

"A marca da escritura de Clarice Lispector é a pesquisa sobre o


ser. observado no seu cotidiano. Faz uso da linguagem como tentativa de se
encontrar enquanto ser e enquanto escritora" (V/EIRA. 1999. p.93)

Desvendando a personalidade meticulosamente construída de seus personagens,


Clarice parece estar buscando no outro a solução para seus mistérios; estar fazendo do

..,.",3
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86

outro ficcional a sua trilha na busca do "indizível", do "é" das coisas e de si mesma. No
intenso diálogo de múltiplas vozes, que segue o fluxo da consciência dos personagens e
da inquietude da autora, a palavra é o canal para desvendar e desvendar-se.
Na ficção, pois, é construindo inter-relações entre vozes ficcionais que Clarice
VaI trilhando o seu caminho rumo ao entendimento do ser. Mas essa tentativa de
compreensão das essências, da própria existência humana - e, em paralelo, da existência
da linguagem -transborda os limites da obra literária de Clarice Lispector, ocupando
também um lugar no exercício do jornalismo - provavelmente porque, atrás da escritora
e atrás da jornalista está o ser que busca seu caminho em si e no outro, como afirma em
uma de suas crônicas:

"Não é à toa que entendo os que buscam caminho. Como busquei


arduamente o meu! E como hoje busco com sofreguidão e aspereza o meu
melhor modo de ser (...). Mas o atalho com sombras refrescantes e reflexo
de luz entre as árvores. o atalho onde eu seja finalmente eu. isso eu não
encontrei. Mas sei de uma coisa: meu caminho não sou eu. é outro. é os
outros. Quando eu puder sentir plenamente o outro estarei salva e pensarei:
eis o meu porto de chegada." (LlSPECTOR. 1999. 119)

Essa busca de si no outro se toma clara, ao nosso ver, nos "Diálogos Possíveis".
As entrevistas reunidas em De Corpo Inteiro têm características singulares, cada uma,
resultantes desse encontro entre seres, dessa busca - mútua - do outro. Têm também
características comuns entre elas - e que as diferenciam de qualquer outra entrevista -
oriundas das inquietações da Clarice-entrevistadora e de seu olhar questionador singular
em direção ao entrevistado, buscando ultrapassar a superfície; um olhar que quer
absorver o que flui da consciência deste outro, na tentativa de desvendar-lhe,
descobrindo-se. Os trinta e cinco encontros são únicos, cada um - pois são um encontro
entre as duas subjetividades, e cada entrevistado é um universo particular. Mas, tal
como as obras da Clarice-literata - únicas, cada uma, mas unidas pela presença da
personagem que "fica em suspenso e deixa-nos entrever a existência pura, contingente,
irredutível ao controle da vontade e do entendimento" (NUNES, 1976, p. 121) - unem-
se exatamente pela presença deste olhar sempre à procura. Este olhar que vê através de
palavras, tentando entrever a pura existência do outro; e, por vezes, tentando encontrar
no olhar do outro o reflexo de seu próprio enigma.
87

3.2. OS "DIÁLOGOS POSSíVEIS" EM DE CORPO INTEIRO

As maioria das entrevistas que compõem o livro De Corpo Inteiro foram feitas,
originalmente, para a publicação na revista semanal Manchete - segundo Nádia Goltib
(1995), 28 das 35 entrevistas do livro foram publicadas na revista, de onde Clarice foi
colaboradora entre maio de 1968 e outubro de 1969, assinando a seção "Diálogos
Possíveis com Clarice Lispector". A estas, foram acrescentadas, para a publicação em
livro, as entrevistas a Pablo Neruda, Alceu Amoroso Lima, Grauben, Benedito Nunes,
élida Pinõn, Ney Braga e Reis Velloso. Algumas delas foram publicadas também no
Jornal do Brasil - os diálogos com Tom Jobim, Pablo Neruda e Alceu Amoroso Lima,
por exemplo, foram publicados em trechos consecutivos na coluna semanal de Clarice e
constam no volume de crônicas A Descoberta do Mundo. A seção "Diálogos Possíveis"
foi retomada pela escritora nos seus dois últimos anos de vida, desta vez para a revista
Fatos e Fotos - da mesma editora de Manchete. A primeira edição de De Corpo Inteiro
foi publicada pela editora Artenova, em 1975.18
Há um lastro temporal de, pelo menos, seis anos entre a publicação de cada
entrevista no espaço jornalístico da revista semanal e a reunião dos diálogos no livro,
suporte secular da literatura. E qual a importância disso? A nosso ver, apesar de não
haver alteração no texto entre as publicações na revista e no livro;" essa transição de
um suporte para outro aponta para aspectos relevantes na compreensão das entrevistas
corno textos em que convivem os caracteres do jornalismo e da literatura. Como já
dissemos, a questão das influências do suporte na natureza do texto mereceria um
tratamento mais aprofundado e embasado, ausente neste trabalho. Mas parece-nos
relevante abordar o assunto, ainda que de maneira superficial, pois um de nossos
enfoques é exatamente a relação - possível e desejável convivência, como já vimos -
entre as naturezas jornalística e literária num mesmo texto.
Já não é de hoje o costume de se reunir em livro textos originalmente publicados
em periódicos jornalísticos - lembremos, por exemplo, dos folhetins românticos
brasileiros publicados em capítulos, à forma de novelas destinadas ao grande público,
nas "folhas", "gazetas" e "diários" do século XIX e cujos títulos, até hoje, são impressos

18 O livro teve, posteriormente, mais duas edições, em 1992, pela Siciliano e em, 1999, quando a obra de
Clarice Lispector foi reeditada pela Rocco.
19 Confrontamos o texto de duas das entrevistas do livro De Corpo Inteiro - ao físico Mário Schemberg e
ao ator Tarcísio Meira - com o texto publicado em Manchete (nas edições de 22 de junho de 68 e 11 de
88

em dourado nas coleções de livros "clássicos" da literatura nacional. Mais


recentemente, tomaram-se constantes os volumes que coletam crônicas e outros textos
periódicos de autores consagrados ou não na atividade literária.
Há uma diferença essencial entre os dois exemplos citados. Como afirma
Massaud Moisés, os textos publicados em jornal podem ser de duas naturezas:

"De modo genérico. nele encontramos matéria autóctone. inerente à


uma natureza de órgão informativo das ocorrências diárias. e matéria
alôctone, estranha ou aleatória. na medida em que não corresponde à
peculiaridade originária.
Duas categorias. portanto. de texto lingidstico se encontram no
jornal: o que cumpre as funções de informar os sucessos do dia e o que não
se prende. regra geral. ao vaivém cotidiano" (MO/SÉS. 1994. p. 103)

Daí é que o autor aponta a diferença entre escrever para o jornal e publicar no
jomal.i" No caso dos folhetins românticos, trata-se claramente de "matéria alóctone",
publicada no jornal - "como se poderia fazê-lo em qualquer outro órgão difusor de
mensagens escritas" (MOlSÉS, 1994, p. 104) - mas não escrita para ele; corpo estranho
no contexto jornalístico, texto essencialmente literário, sem vínculos obrigatórios com
os fatos do cotidiano.
o mote para a reflexão proposta por Moisés são as crônicas publicadas em jornal
ou revista e posteriormente reunidas em livro. Mas, ao nosso ver, a argumentação do
autor pode ser também aplicada, em caráter mais geral, à matéria jornalística de outro
gênero qualquer onde se possam identificar aproximações com a atividade literária e,
numa visão mais específica, às entrevistas analisadas neste trabalho. No caso de Clarice
Lispector, acreditamos que a reflexão feita até aqui nos oferece razões suficientes para
destacar a proximidade entre os "Diálogos Possíveis" e as crônicas publicadas no Jornal
do Brasil; as matérias, além de terem sido realizadas simultaneamente (Clarice
colaborou com o JB entre 67 e 73, período em parte coincidente, portanto, com sua
atuação em Manchete), abordam muitas vezes os mesmos temas (Chico Buarque, um

outubro de 69, respectivamente). e constatamos que não houve cortes ou alterações. A consulta foi feita
no acervo do Jornal O Povo.
20 Massaud Moisés (1994) faz esta reflexão para inserir a questão do "conceito e estrutura" da crônica,
tratada como um dos gêneros literários em prosa. Para o autor, a crônica, "duma ambigüidade irredutível
(...) move-se entre ser no e para o jornal". Mantém, do jornalismo, a linguagem simples ao alcance do
°
público médio e o vínculo com cotidiano; mas "o seu objetivo, confesso ou não, reside em transcender °
dia-a-dia pela universalização de suas virtualidades latentes", ou seja, aspira à condição nobre e perene de
literatura.
89

dos entrevistados, foi assunto das crônicas semanais em mais de uma ocasião; o mesmo
acontece com Érico Veríssimo) e, em algumas ocasiões, as próprias entrevistas chegam
a ocupar o espaço da coluna semanal reservado às crônicas, como já citamos.
Para Moisés, as crônicas têm natureza híbrida, oscilando entre a nobreza da
escrita literária digna da imortalidade e o "descolorido" relato jornalístico fatalmente
preso ao "ramerrão cotidiano". Como já vimos no capítulo anterior, para o autor, o
caráter literário de um texto é inversamente proporcional à sua missão jornalística, ou
seja, quanto mais jornalística for, menos literária será a matéria, e vice-versa. Sendo
coerente a este raciocínio, o autor considera que a crônica, em origem, "não pressupõe
o formato do livro", mas pode vir a merecer os louros da arte literária, pois sua busca é
"subtrair-se à fugacidade jornalística assumindo a perenidade do livro". E, vez por
outra, "logra escapar de perecimento tão breve. E adquire, no livro, uma existência
menos falaz." (MOlSÉS, 1994, p. 106).
Ainda assim, a literariedade da matéria jornalística, mesmo com qualidades
suficientes para ser incluída num livro, é relativa. "Reduzindo o cotidiano em sua
imensa variedade a pílulas de fácil digestão, pois que se dirige ao público médio, a
crônica é por natureza uma estrutura limitada, não apenas exteriormente, mas, acima de
tudo, interiormente." (MOISÉS, 1994, p. 108) Para o autor, tais matérias jornalísticas,
quando contêm "algum achado que lhes justifique a inclusão em volume", sub-aproveita
estes "achados", que

"ficam ali prodigamente disseminados, à espera de uma obra que


os recolha e os explore convenientemente. (...) Obra elaborada sem o
atropelo do jornal, visando a persistir e a ofertar ao leitor um prato sempre
renovado e pleno de sugestões" (MO/SÉS, /994, p. 108)

Não é nossa intenção aqui desmerecer a argumentação de Moisés, teórico de


inestimável valor na reflexão a respeito da literatura, em âmbito nacional. Acreditamos
que já está suficientemente claro o nosso ponto de discordância com a visão de Moisés
das relações entre jornalismo e literatura. Mas a reflexão a respeito deste intercâmbio de
suportes, feita pelo autor em relação à crônica, aponta-nos aspectos de grande relevância
para a compreensão das entrevistas em questão aqui e da natureza do livro De Corpo
Inteiro.

A
90

Mesmo considerando a condição literária pouco compatível com a atividade


jornalística, Moisés percebe que há um encontro quando "se estabeleceu a fortuita
afinidade entre o acontecimento e o mundo íntimo do escritor" (MOISÉS, 1994, p. 107)
- encontro que parece ocorrer nos "Diálogos Possíveis", onde o acontecimento é o
próprio diálogo, afim ao mundo íntimo do entrevistado e ao da entrevistadora, e que dá
às entrevistas jornalísticas a condição de parte da obra literária de uma das maiores
escritoras da literatura brasileira, ao lado de seus romances e contos consagrados. Mas
vale refletir aqui sobre um dos argumentos de Moisés que não se pode ignorar.
O autor afirma que o texto jornalístico - representado ali pela crônica - apenas
ganha a atenção da crítica literária quando sai das páginas dos jornais para o livro. De
fato não há como negar a razão do autor em afirmar que "somente por exceção é que um
poeta bissexto e cuja obra esteja dispersa pela imprensa pode ganhar o direito a ser
estudada (sic) e criticada (sic)" (MOISÉS, 1994, P.106). E, num ciclo vicioso, o que
acontece em geral é que somente o escritor que já teve obras literárias estudadas e
criticadas é que tem a sua produção jornalística reunida em livro - é pouco provável, no
caso do nosso objeto, que as mesmas entrevistas tivessem um dia sido publicadas na
forma de livro, não fosse a entrevistadora reconhecida por sua obra literária.
ão vemos o aval da crítica como condição imperativa para que determinada
matéria jornalística esteja situada dentro dos limites da literatura, nem mesmo
acreditamos ser imprescindível que ela venha um dia a rechear as encadernações
literárias para ser digna da condição de arte da palavra. Mas a esta matéria, mesmo
endo bem cuidada na forma e rica em conteúdo, o veículo jornal - ou mesmo revista -
impõe fronteiras difíceis de serem rompidas. Ali, será lido, via de regra, como texto de
jornal; salvo exceções, o leitor recorre ao periódico à procura dos fatos e de suas
repercussões e é sob este enfoque que vai ler e interpretar o texto ali publicado. O
mesmo texto, veiculado num livro, terá leitura e interpretação bem diferentes, tanto
quanto são diferentes os motivos que levam o leitor a puxar um volume da estante; será
lido como literatura.
No caso das entrevistas aqui estudadas, isso nos parece claro. Na seção
"Diálogos Possíveis com Clarice Lispector", da Revista Manchete, o título estampado
em grandes letras e impresso em espaço de destaque dá ênfase ao nome do entrevistado;
sua foto preenche, às vezes, uma página inteira; assim, via de regra, o leitor, folheando
a revista, terá sua atenção inicialmente detida pela imagem do entrevistado. A leitura,
pelo menos neste contato primeiro, estará ligada ao interesse que a vida e a
91

personalidade do entrevistado su cita; é este o fato encontrado ali, ainda que, quem
sabe, no decorrer do texto o leitor descubra-se concentrado no mundo íntimo da
escritora-entrevistadora. Já em De Corpo Inteiro, a capa do livro dá destaque ao nome
da entrevistadora-literata; a ela são feitas as referências da contra-capa, das "orelhas",
das notas de apresentação - e aí mesmo não são raras as comparações feitas às suas
obras de ficção - ; a aparência externa do livro segue a mesma programação visual das
outras obras da autora. Aqui, o interesse pela Clarice-literata capta os sentidos do leitor
que passa os olhos pela estante da biblioteca ou livraria; este interesse vai motivá-Io a
ler as entrevistas, ainda que no decorrer de cada texto, quem sabe, tal leitor descubra-se
inserido no universo singular do entrevistado.
ão nos escapa, contudo, a natureza diferenciada desta entrevista, mesmo no
espaço revista. Primeiro, por constarem numa seção periódica, os "Diálogos Possíveis
com Clarice Lispector" podem, com o tempo, conquistar público fiel, tomando-se a
entrevistadora sua principal motivação de leitura. Segundo, porque desde o título da
eção, sabe-se que aquela não é uma entrevista qualquer, e sim uma entrevista
concedida a Clarice Lispector - naquela altura, já conhecida corno escritora por uma
parte do público. Mas ainda assim, este enfoque de Leitura, ao nosso ver, é exceção à
regra recorrente, sendo Manchete uma revista semanal voltada a um público geral e
abordando assuntos variados. Talvez, num veículo especializado, que se voltasse
especificamente para o leitor interessado na literatura e em outras artes, fosse diferente
a situação.
Trata-se aqui, vale ressaltar, de urna hipótese, cuja constatação se dá sem bases
formais que a sustentem. Como dissemos, esta hipótese mereceria uma análise mais
profunda - baseada, quem sabe, num estudo comparativo e à luz das teorias da recepção
- onde lhe fosse dada uma consistência teórica. Este não é o objetivo deste trabalho;
ainda assim, pareceu-nos relevante expor estas considerações sobre o suporte das
entrevistas antes de analisá-Ias, pois todo este trabalho foi feito a partir da publicação
em De Corpo Inteiro. Tivemos apenas um breve contato com poucos exemplos da seção
"Diálogos Possíveis com Clarice Lispector" publicadas nas edições da revista; e destas,
apenas duas continham entrevistas que constam no livro - nenhuma delas, ressaltamos
ainda, está entre as dez entrevistas sobre as quais nos determos com maior cuidado a
seguir.

A
92

3.3. ENCONTROS DE CORPO INTEIRO

Como vimos, na ficção, a linguagem é a forma pela qual Clarice aventura-se em


busca da essência, do enigma, do "que está atrás do pensamento". Tão amplo é o seu
universo - real e imaginário - e tão profunda é a sua inquietação que cria vozes
múltiplas - autor, narrador, personagem - a interagirem seguindo o fluxo da
consciência; nestes diálogos entre vozes ficcionais, a palavra é levada ao seu limite e
questionada ela própria, enquanto vêm à tona questões acerca da existência, do ato
criativo, da fugacidade do instante. Afirmamos que, ao voltar-se para o outro ficcional,
Clarice está em busca do ser em sua forma plena - sugerindo uma busca de si mesma.
E, por fim, dissemos que esta constante busca pelo ser em essência transborda de sua
atividade literária; e desta busca transbordante, sua atuação jornalística se deixa
embeber, seja nas crônicas do jornal, seja nas entrevistas para a revista semanal.
Os trinta e cinco diálogos reunidos em De Corpo Inteiro são exemplos daqueles
textos que, como citamos no segundo capítulo deste trabalho, ocupam o espaço
interseccional entre as esferas jornalística e literária. Não se deixam intimidar pelos
limites naturais da atividade jornalística - tempo, espaço, linha editorial, por exemplo. E
visam a alçar vôo nas asas da criatividade literária, sem no entanto deixar escapar
aqueles traços essenciais ao jornalismo - e permanentes sob as multi-cores desta
atividade mimética. São atuais, se não em razão dos fatos de ontem/hoje, em
decorrência dos temas abordados, cuja relevância não se atrela ao tempo cronológico.
São construídos em função de um leitor, a sua própria razão de ser. Não se furtam à
prova da verdade, mesmo tendo a forma talhada em metáforas abundantes em sentido.
Colocam-se como arte que se faz de palavras, sem no entanto adotarem a estética como
fim primeiro. Ainda que belos como poesia, não abandonam o pragmatismo do relato
jornalístico, pois existem em razão de um conteúdo a ser levado ao leitor.
Dentro deste espaço de interseção, os textos de De Corpo Inteiro são exemplos
do diálogo possível entre duas subjetividades inter-criadoras modificando-se
mutuamente. Resultam da confluência entre jornalista e literato num só papel, o de
retratar o universo singular de um ser-outro - fugidio, tantas vezes, às objetivas do
repórter atarefado com os fatos do dia-a-dia e também às lentes do escritor absorto na
sua própria singularidade. Cada um deles é o retrato de um encontro - entre entrevistado
e entrevistadora - captado pelos sentidos aguçados de Clarice Lispector, entregue à
tarefa de desvendar o outro real colocado sob o seu olhar curioso e sempre à procura.
93

No espaço da revista semanal, as luzes são direcionadas ao entrevistado, sem


que, no entanto, a entrevistadora se coloque à sua sombra. No texto nascido do
"instante-já" do encontro, Clarice usa de sua habilidade no manejo da palavra para
construir um retrato fiel ao momento e à personalidade do entrevistado, mas deixa
transparecer - com maior ou menor intensidade - sua luz própria, que não escapa aos
olhos do leitor. É repórter sem deixar de ser a escritora; sua marca se mostra na
formulação das questões, nos assuntos abordados, no enfoque, nas impressões, nas
palavras e até na atitude do entrevistado.
Publicadas em livro, as entrevistas, se não sofrem alteração no seu conteúdo,
passam a ser lidas, via de regra, com novo enfoque. Em conjunto, oferecem um retrato
raro da escritora sem os escudos da ficção. Sem ofuscar o entrevistado, no livro o seu
brilho sobressai; mostra-se em suas leituras do outro, nas questões recorrentes em sua
literatura, nas impressões espalhadas sem regra, entrecortando o diálogo, nas
interpretações que lhe fazem os entrevistados - alguns, amigos de longa data. É a
escritora na sua face repórter, para quem "o ser (...) apresenta uma face visível,
sensorial, capaz de ser escolhida pela linguagem" e outra face "obscura e misteriosa,
escondida, talvez impossível de se escrever" (SÁ, 1999, p. 17). A entrevistadora tenta
captar o entrevistado da mesma maneira - guardadas, claro, as devidas proporções - em
que a escritora tenta desvendar seu personagens: através da linguagem, resultante de
um esforço conjunto de todos os sentidos. Há uma dimensão que a palavra - jomalística
ou literária - não toca e jamais tocará; mas Clarice continua à procura, na incessante
tentati va de se apossar do "indizível".
Cada encontro é único; em cada uma das trinta e cinco entrevistas, destacam-se
características singulares. Embora a subjetividade e a inovação criadora sejam presença
marcante em quase todos os diálogos, em alguns (poucos) deles predomina a técnica e a
factualidade. Há, inclusive, entrevistas onde, por força das condições, o diálogo possivel
não alcança a sua plenitude - e isto não deixa de ser percebido pela entrevistadora. O
caso mais exemplar é a entrevista a Ney Braga, à época ministro da Cultura e da
Educação. Este diálogo foge a regra desde o primeiro momento; a escolha dos
entrevistados, em geral, não se determinava pela factualidade ou pelo papel "oficial"
exercido, e sim por escolha de Clarice, baseada em critérios pessoais - amizade,
admiração, curiosidade e até mesmo urna antipatia incômoda. No caso de Ney Braga, o
editor do livro a ser publicado (a entrevista não saiu em Manchete) sugere a entrevista,
já que "o ministro representava oficialmente a Educação e a Cultura" e Clarice estaria

.. .. 7F
94

em Brasília por ocasião de um congresso de literatura. A recepção calorosa do ministro


surpreende a entrevistadora, e merece comentário no "abre" - "( ...)fui, para minha
surpresa, muito bem recebida, até abraço ele me deu". Mas, em seguida, ela conta que
não houve tempo para uma conversa e as perguntas ficaram por escrito. O resultado é
um diálogo onde sobressaem a falta de interação e a impessoalidade de ambos os lados;
as respostas excessivamente técnicas e factuais chegam a perder boa parte do sentido
quando publicadas em livro, um veículo permanente que poderá ser lido anos - ou
décadas - depois, quando o contexto factual não terá mais tanta importância. As
subjetividades anulam-se, não se atinge a interação criadora; mas o leitor já vem
avisado desde o início:

"Recebi as respostas. O ministro, que pessoalmente é informal,


nelas se revelou formal. E não respondeu a algumas de minhas perguntas
que me interessavam bastante. Ou por falta de tempo ou por não as julgar
importantes. Trata-se de uma entrevista que me parece apenas reveladora
das posições oficiais no campo educacional e cultural" (DCI, p.207/1

Nota-se que, apesar do fracasso do diálogo possível entre entrevistado e


entrevistadora, Clarice procura passar suas impressões ao leitor, de forma bem pessoal,
mantendo com ele um diálogo paralelo e colocando-o a par das condições da entrevista.
Uma contraposição a este mal sucedido encontro pode ser apontada no diálogo
com a escritora Nélida Pifion. Esta entrevista também aconteceu na forma escrita - "as
perguntas foram minhas. Nélida escreveu as respostas" - e isto, claro, reflete-se no
ritmo do diálogo. Mas não o prejudica; a nosso ver, dá-se nesse caso um encontro pleno,
como, de resto, dá-se na maior parte dos diálogos do livro. Não há sinal de insatisfação
em lado algum: a entrevistada mostra-se à vontade com as perguntas e disposta a deixar-
se ler, a entrevistadora interage com as respostas, traduzindo sua leitura no texto breve
e revelador - de ambas as partes - que serve de "abre" à entrevista.

"Nélida Piiion é o que se chama boa profissional (...). Tem


escritório para nele escrever e não se deixa ser interrompida por ninguém
enquanto trabalha. (...) Ela é o contrário de mim: nem escritório tenho, além
de ser completamente desorganizada. (... ) Disse-me que é competitiva (mas

21 Neste capítulo, que se volta à análise das entrevistas, os trechos referenciados pela abreviação DeI
foram retirados do livro De Corpo Inteiro, em sua segunda edição, pela Siciliano, em 1992. As dez
entrevistas selecionadas estão anexadas na íntegra, através de fotocópias da edição da Rocco, de 1999.
95

saudavelmente competitiva. acrescento eu) e achou que eu não era


competitiva. Com.o é que dois tem.peramentos tão diferentes resultam numa
amizade tão leal?" (DCI. p.199)

Mesmo se dando com o intermédio da escrita, no diálogo transparece uma


sintonia; entrevistadora e entrevistada colocam-se pessoalmente e referem-se uma à
outra, não se furtando a juízos e interpretações. Como o leitor percebe desde o "abre",
Clarice olha para sua entrevistada com referência em si mesma - referência esta que não
é dissimulada em momento algum. E as suas colocações pessoais abrem caminho para
que a entrevistada ultrapasse seu papel e se lance a uma interpretação da entrevistadora
(procedimento, aliás, repetido por diversos entrevistados ao longo do livro). Este mútuo
desvendar retrata-se no trecho a seguir:

" - Eu me considero amadora, porque só escrevo quando tenho


vontade. Já passei quase dez anos sem escrever. Você não, é uma
profissional no melhor sentido da palavra. Você se sente profissionairi'
- Peço-lhe licença para contestar sua autodefinição. Considero-a
uma extraordinária profissional. que ainda não adquiriu consciência do
próprio estado (...) Sou profissional. sim. Clarice. Luto por esta condição. e
não abdico de tudo que isto implica ." (DCI. p. 202)

Em grande parte dos diálogos, pode-se reclamar, com razão, da falta de


referências precisas acerca do entrevistado ou de algum assunto abordado - "falhas
jomalísticas" que podem deixar o leitor descontextualizado (menos ao leitor da revista,
a quem é familiar o contexto atuallfactual do diálogo, que lhe chega através de um
veículo com tempo delimitado; mais ao leitor do livro, distante anos e talvez décadas no
tempo, alheio ao quem/quando/como/onde da entrevista). É notável, no livro, a quase
absoluta falta de datas precisas; na segunda edição (1992), o leitor não sabe nem mesmo
em que período foram realizadas as entrevistas - a não ser por referências casuais no
decorrer dos diálogos - ou em que veículo foram publicadas originalmente."
Mas essa falta de uma contextualização temporal precisa não compromete
fatalmente a qualidade dos textos - nem mesmo em sua dimensão jomalística, pois sua
atualidade garante-se muito mais pelos conteúdos abordados e pelo próprio exercício de

22 Os trechos em negrito correspondem às falas de Clarice Lispector, para diferenciá-Ias das falas dos
entrevistados.

3:
96

olhar o ser-outro do que pelas referências que possam ser feitas à época e aos fatos. E
este debruçar sobre a personalidade do outro se dá dentro dos mais rigorosos princípios
éticos, ditado quer pela responsabilidade social do jornalismo com a imagem pública do
entrevistado, quer pelo compromisso pessoal da escritora, a quem é familiar a condição
de entrevistada - "detesto dar entrevistas, elas me deformam" - e que conhece como
ninguém o poder da palavra. Em diversos momentos, Clarice reafirma este
compronusso:

"Espero nestas entrevistas não deformar as palavras de meus


entrevistados, palavras estas que são a persona de cada um" (DCI, p.22I,
entrevista com Reis Velloso)

"Devo dizer que Tereza e eu tivemos conversas além das que estão
sendo publicadas: são mais da intimidade dela, e respeito-a" (DCI, p.162,
entrevista com Tereza Souza Campos)

«. Eu quero saber tudo a seu respeito. E cabe a você selecionar o


seu tudo, pois não quero invadir sua alma. (...) E quero a verdade, tanto
quanto você possa dar sem ferir-se a si própria" (DCI, p.74, entrevista com
Djanira)

E, se por um lado, a falta de datas, muitas vezes deixa o leitor alheio ao contexto
factual da entrevista e a falta de referências objetivas, em alguns casos, deixa-o alheio
ao "papel oficial" do entrevistado na sociedade, por outro nota-se uma preocupação
constante em deixá-lo a par do ambiente simbólico compartilhado em cada encontro - e
aí, prevalece a Clarice que, como escritora, prefere ao fluxo cronológico o fluxo da
consciência; ao fato, prefere o sujeito; à função, a essência; quer retratar não o "está",
mas o "é". E esse ambiente simbólico é oferecido ao leitor de várias maneiras. Ao
redigir o retrato do encontro, Clarice Lispector não se prende necessariamente a um
modelo; suas impressões são colocadas no momento e sob a forma que lhes parecem
apropriados. Em alguns diálogos, opta pelo tradicional texto de abertura - o "abre" -, ali
apresentando o entrevistado e, não raro, dizendo de sua relação anterior com ele. Em
outros, lhe servem de "abre" palavras poucas a dizer tudo; como na entrevista com

23 Na edição de 1999, em" ota Prévia", informa-se da publicação em Manchete, mas também não é
citado o período de publicação.
97

Vinícius de Morais, onde três palavras, apenas, antecedem a primeira pergunta:


"Mulher, poesia, música." Há os diálogos onde o que seria um "abre" está espalhado no
decorrer do texto, através de impressões, explicações e referências intercaladas entre as
perguntas e respostas. Há o caso onde Clarice dispensa "abre" algum - a entrevista a
Alceu Amoroso Lima começa a ser relatada da primeira pergunta. E há, inclusive, o
caso onde dispensa as perguntas e respostas, bastando-lhe apenas o "abre" para
descrever o encontro, como no diálogo com a artista plástica Grauben - em um perfil
repleto de ricas metáforas, recorda uma visita à pintora de 78 anos, sob o título de
Grauben Revisitada (e sem falar em morte uma única vez, deixa ao leitor a impressão
de uma homenagem póstuma e saudosa). Às vezes, o ambiente simbólico do encontro é
levado ao leitor em afirmações inseri das nas próprias perguntas.
Além do compromisso de respeitar a persona do entrevistado e de compartilhar
com o leitor - no limite máximo alcançado pelas palavras - suas impressões do
encontro, percebe-se nas entrevistas um intenso compromisso de Clarice consigo
mesma, com suas próprias questões, a partir não de uma egolatria vaidosa, mas da
busca incessante e da inquietação profunda, marcas de toda a sua obra. Entre os
assuntos abordados por Clarice, alguns são os mesmos motes de contos e romances,
como a felicidade, o amor, a existência de Deus e de uma dimensão metafísica. Nas
entrevistas com artistas há invariavelmente questões acerca do processo criativo e, no
caso dos literatos, acerca da escrita, da linguagem, de suas possibilidades e limitações.
São recorrentes também as perguntas sobre o relacionamento com o público e com a
crítica. Ao voltar-se para a personalidade do entrevistado, as perguntas de Clarice
raramente visam a um onde ou um quando, procurando sempre que possível um como
ou um por que. Clarice quer descobrir não o que o entrevistado fez ou faz; quer saber,
quase invariavelmente, como o entrevistado vê o mundo, como ele se vê no mundo e
como ele sente o que vê. Sua trilogia "clássica" de perguntas, dirigida a vários
entrevistados, é: "Qual é a coisa mais importante do mundo? Qual é a coisa mais
importante para a pessoa como indivíduo? E o que é o amor?" Mesmo citando, às
vezes, fatos e situações circunstanciais, as palavras do entrevistado em resposta às
provocações (sem nenhum sentido negativo) de Clarice referem-se, a maioria, a
questões íntimas, a idéias e conceitos, a revelações pessoais.
Uma das perguntas mais freqüentes refere-se não a uma situação real, mas a uma
realidade hipotética, correspondente a "o que você seria se não fosse o que é?" .
98

A Djanira, pergunta: "- Se você não tivesse se encontrado com a pintura, que
forma de arte crê que seria a sua?"
A Maria Martins: "- Se você tivesse que recomeçar a sua vida do início, que
destino escolheria, se é que se escolhe destino?"
A 1ardel Filho: "- Se você não fosse ator, que profissão provavelmente
adotaria?"
A Jacques Klein: "-Se você não fosse o pianista que é, que forma de arte o
atrairia?"
E a Tereza Souza Campos: "- Se você não fosse Tereza Souza Campos, o que é
que gostaria de ser?"
Provavelmente, a tentativa de Clarice, ao confrontar o entrevistado com esta
situação hipotética - a possibilidade de escolher o teria sido, fosse que se escolhesse
destino - é alcançar o inatingível, a dimensão total da essência do ser, como se aquilo
que alguém seria se não fosse o que é indiciasse aquilo que alguém intimamente é e não
sabe, por não ter coragem de encarar o desconhecido. Na crônica de 30 de novembro de
68, em sua coluna no 1B, Clarice escreveu:

" 'Se eu fosse eu' parece representar o nosso maior perigo de viver,
parece a entrada nova no desconhecido. No entanto, tenho a intuição de que,
passadas as primeiras chamadas loucuras dafesta que seria, teríamos enfim
a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor
do mundo. E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. Mas também
seriamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal
posso adivinhar" (LlSPECTOR, 1999, p. /56)

Grande parte das perguntas feitas pela entrevistadora aos seus entrevistados - as
mais significativas, arriscamos dizer - são perguntas feitas por Clarice a ela mesma,
repetidas vezes. São tentativa de descobrir o "é" das coisas e dos seres, desvendando-os
e desvendando-se. A análise que se fará a seguir centrar-se-á principalmente na postura
da Clarice-entrevistadora. O que faz de cada "Diálogo Possível" um único é o universo
singular de cada entrevistado; o que faz do De Corpo Inteiro um todo é o universo
singular de Clarice Lispector. Do todo, pinçamos dez fragmentos e procuramos analisá-
los como amostras singulares de um universo inteiro.

a
99

3.3.1. Recorte

Na impossibilidade de analisar, uma a uma, as trinta e cinco entrevistas do livro


- sob pena de cairmos numa superficialidade ou, por outra, numa repetição enfadonha -
selecionamos dez diálogos que, a nosso ver, constituem uma amostra representativa do
"todo" e têm elementos onde podem ser identificadas as marcas de interseção entre
jornalismo e literatura na entrevista jornalística, na esteira da reflexão feita até aqui. De
cada um deles foram extraídos trechos que ilustram os aspectos apontados; todos
constam, na íntegra, entre os anexos ao final deste trabalho, na ordem a seguir:

1. Vinícius de Morais
2. Érico Veríssimo
3. Entrevista relâmpago com Pablo Neruda
4. Um homem chamado Hélio Pellegrino
5. Dinah Silveira Queirós
6. Chico Buarque ou Xico Buark
7. Djanira
8. Seliar
9. Tom Jobim
10. Tereza Souza Campos

São "Diálogos Possíveis", todos eles, remetendo-nos imediatamente à concepção


de Crernilda Medina, abordada no primeiro capítulo deste trabalho: a entrevista
jornalística como uma interação criadora, um encontro de subjetividades onde as
personalidades não se anulam, mas complementam-se e se inter-influenciam,
resultando, para o fazer jornalístico, num fator de humanização. Nas entrevistas de De
Corpo Inteiro - em específico, nas dez aqui selecionadas - dá-se esse encontro
humanizador, cujo relato se fará ao gosto do fazer literário.
Como diálogos, as entrevistas de Clarice Lispector têm caráter contratual -
assunto do primeiro capítulo, a partir da análise de Leonor Arfuch. Seguem, como a
conversação cotidiana, regras implícitas à estratégia discursiva dialógica, e a estrutura
pergunta/resposta lhes confere credibilidade perante o leitor, oriunda da naturalidade do
fluxo do diálogo. Este contrato é particularizado - ganha regras específicas e um
caráter mais formal, de contrato firmado - nas entrevistas jomalísticas em geral, onde
100

os interlocutores passam a ter um papel estabelecido a priori: entrevistado na condição


de sabatinado, de fonte, e entrevistador, encarregado de inquirir e direcionar, na
condição de técnico do diálogo e de mediador entre entrevistado e leitor. Nas
entrevistas de Clarice Lispector, dá-se um contrato ainda mais particular, firmado em
regras próprias. Às "cláusulas" InICIaiS do contrato dialógico
(qualidade/quantidadelrelação/modalidade) seguem-se as regras específicas da
entrevista jornalística: o entrevistado concorda, a princípio, em falar de si; a
entrevistadora sabe de seu papel de direcionar o diálogo para extrair do outro as
informações que lhes interessam (a ela e ao leitor); ambos sabem da presença implícita
do leitor, a quem as palavras se dirigem em última instância. Esta presença implícita é
um dos aspectos mais marcantes; nota-se na entrevistadora o constante compromisso
com o leitor - característica essencial do profissional do jornalismo -, entregando-lhe
sempre, em seu texto subjetivo e recheado de recursos literários, elementos constituintes
do ambiente simbólico da entrevista e essenciais para que seja alcançado o diálogo
possível entre os três envolvidos.
Sobre este "regulamento" pré-estabelecido, constroem-se diálogos numa
mecânica contratual própria. O caráter não factual e o teor "existencial" (atual pela
essencialidade das questões abordadas) que sobressaem nas entrevistas são em geral
indicados de antemão - tal regras contratuais - seja de forma implícita (pelo
conhecimento mútuo entre entrevistador e entrevistado), seja explicitado por Clarice
desde o início (À Tereza Souza Campos, diz que interessa a pessoa, não o "primeiro
figurino"; de Djanira, quer "saber tudo a respeito" e firma o compromisso de "dizer a
verdade"; a Pablo Neruda, entrega "sem confiança em si mesma" a folha com as
perguntas que iria fazer). As constantes inversões (o entrevistado faz perguntas, a
entrevistadora coloca-se pessoal e espontaneamente, fornecendo informações sobre si)
não representam, na maioria das vezes, um rompimento significativo com este contrato
- talvez, apenas, com algumas "cláusulas" em momentos determinados. No "todo" de
cada diálogo, tal como determina o contrato firmado da entrevista jornalística, sobressai
o universo singular do entrevistado, retratado nas impressões e nas palavras da
entrevistadora.
No momento posterior, ao retratar em palavras as impressões captadas no
encontro, é inegável a confluência de escritora e jornalista na entrevistadora Clarice
Lispector - e o resultado são textos jornalísticos humanizados pelo ato criador artístico.
Presos às circunstâncias do diálogo - perseguidas pelo jornalismo, como nos diz
101

Alberto Dines - tais textos constróern-se como arte da palavra, pelas mãos de uma das
escritoras brasileiras que melhor soube explorá-Ias (ainda que nunca se tenha dado por
satisfeita; ou exatamente por causa disso). Em relação às estruturas-padrão do texto
jornalístico, a inovação e a liberdade criativa de Clarice sobressaem - principalmente
tendo-se em vista a "objetividade" e a impessoalidade que era regra no jornalismo à
época da edição das entrevistas em Manchete (68/69). No lugar do lide, entram os perfis
humanizados, onde as impressões predominam aos fatos e às datas. E, como já citamos
e veremos melhor a seguir, nem mesmo estas impressões seguem uma regra: ora há um
"abre" próximo ao tradicional, ora há impressões entrecortando o diálogo, ora não há
um nem outro.
Mesmo diante da (às vezes gritante) subjetividade que imprime - tanto no
diálogo como no texto que o representa -, Clarice sabe dar ênfase à personalidade do
entrevistado; demonstrando "habilidade jornalística", usa da técnica em momentos
determinados e mostra-se competente no direcionamento dado à entrevista, deixando
transparecer, quase sempre, uma sensação de naturalidade e de continuidade, sem fugir
às questões que lhe interessam (sua "pauta"). Mesmo com características bem próprias -
e distantes do padrão jornalístico à época - os "Diálogos Possíveis" se mantêm sob os
limites da esfera jomalística, assumindo ao mesmo tempo a perenidade da arte,
colocando-se dentro da seara da literatura na obra de Clarice Lispector.
Esta "habilidade" na condução do diálogo - tendo em vista o seu objetivo de
desvendar o ser-outro na busca constante pelas essências que marca toda a sua obra -
nota-se não apenas nos temas suscitados pelas perguntas (o processo criativo, o amor, a
felicidade, Deus e uma possível existência metafísica, a individualidade) mas também
em procedimentos recorrentes, denotando uma espécie de técnica particular da Clarice-
entrevistadora. Além da já citada "trilogia clássica" de perguntas, é recorrente também a
tentativa de provocar o processo criativo, talvez com o intuito de se "apossar do é da
coisa" no "instante-já", de que Clarice fala através da personagem de Água Viva. A
entrevistadora pede do entrevistado que crie ali, naquele momento, diante do "seu olho
olhando com cara de Juízo Final", como percebeu Chico Buarque.
Duas formas de pergunta repetem-se em várias entrevistas, e podem ser
apontadas como técnicas - na falta de melhor palavra. Uma consiste em interpretar o
entrevistado, a partir de elementos do próprio diálogo ou anteriores a ele, para que
provocar-lhe uma reação, confirmando ou negando a leitura que lhe fez a entrevistadora.
Como se dissesse "é assim que eu vejo você" e logo depois "o que você me diz disto?",

a
102

dando ao entrevistado um ponto de partida para uma auto-reflexão (e ao mesmo tempo


dando ao leitor sua percepção do universo simbólico do entrevistado).
Outra técnica da Clarice-entrevistadora é ler-se a si própria; como se dissesse
"eu, por exemplo, sou assim, assim penso e sinto", para em seguida inquirir "como,
então, é você, como você pensa e sente?". Tal procedimento, certamente mal visto pelas
normas técnicas dos manuais de jornalismo, funciona como um catalisador para uma
auto-leitura do entrevistado; Clarice se oferece como exemplo, como paralelo,
desviando por instantes as luzes que enfocam o entrevistado, e oferecendo-lhe um à
vontade na fluência do diálogo - certamente, é mais fácil mostrar-se quando se percebe
uma troca a partir de interesses genuínos do que quando a entrevista toma ares de
interrogatório, de inquisição. Freqüentemente apontada como uma "falha jornalística",
esta presença subjetiva do repórter, na verdade, contribui para a interação criadora,
pressuposto para um jornalismo humanizado, expresso em textos que comungam com a
literatura a palavra que, em forma e conteúdo, faz-se reveladora indo além de si mesma.

"Então escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a


palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra - a
entrelinha - morde a isca, alguma coisa se escreveu" (LlSPECTOR. /998.
p.20)

Estas técnicas recorrentes e outras características dos "Diálogos Possíveis"


apontadas até aqui serão destacadas nas análises das entrevistas selecionadas; levar-se-a
em conta, também, as características particulares de cada uma. O nosso objetivo é fazer
uma leitura informal dos "Diálogos Possíveis", tentando captar o que se destaca em
cada um, à luz dos conceitos e hipóteses discutidos até aqui.

3.3.1.1. Vinícius de Morais

Então me veio a idéia de que você


ama o amor
De Corpo Inteiro

A entrevista de Clarice Lispector com Vinícius de Morais destaca-se,


principalmente, pela atemporalidade. Há quase nenhuma referência a fatos externos e
103

absolutamente nenhuma afirmação a partir da qual se possa identificar com alguma


precisão o quando do encontro. E, ao contrário de alguns outros momentos do livro,
que carecem de referências e datas, aqui elas não fazem falta alguma; fossem vivos os
dois, a entrevista poderia ser publicada amanhã em qualquer jornal sem nenhum indício
de matéria requentada.
Ao leitor, aparecem no diálogo duas personalidades que não escondem a
admiração mútua. Pode-se dizer que o diálogo segue na maior parte do tempo as regras
que determina o contrato firmado da entrevista jornalística: Clarice pergunta, Vinícius
responde. E seguem também as regras da dinâmica contratual própria dos "Diálogos
Possíveis", estabelecida tanto a partir de um conhecimento mútuo como de uma
proposta verbalizada - "Vinícius, acho que vamos conversar sobre mulheres, poesia e
musica" (DCr, p.17).
As perguntas, em determinados momentos, são muito mais leituras ou
interpretações da entrevistadora ao seu entrevistado, como se nota desde o início:

«: Vinícius, você realmente amou alguém na vida? Telefonei para


uma das mulheres com que você casou, e ela disse que você ama tudo, a
tudo você se dá inteiro: a crianças, a mulheres, a amizades. Então me veio
a idéia de que você ama o amor, e nele inclui as mulheres" (DCI, p.17)

Esta é uma das técnicas da Clarice-entrevistadora: ler o entrevistado como forma


de provocá-lo a revelar-se. Diz-lhe a idéia que tem dele, e espera dele uma reação, seja
para confirmá-Ia, negá-Ia ou simplesmente para explicar-se.

-: Que amo o amor é verdade. Mas por esse amor eu compreendo a


soma de todos os amores (...). Eu amo esse amor mas isso não quer dizer que
eu não tenha amado as mulheres que tive. Tenho a impressão que, àquelas
que amei realmente, me dei todo" (DCI, p. J 7)

E a própria entrevistada, em certos momentos, reage à reação que provocou,


mostrando-se espontaneamente:

"Acredito, Vinícius. Acredito mesmo. Embora eu também acredite


que quando um homem e uma mulher se encontram num amor verdadeiro,
a união é sempre renovada, pouco importam as brigas e desentendimentos:

-A
104

duas pessoas nunca são permanentemente iguais e isso pode criar no


mesmo par vários amores" (DCl, p.18)

Essa cadeia de reações provocada pela entrevistadora e centrada na idéia de


amor define o rumo da conversa; muito mais que de "mulher, música e poesia", falam
de amor, sobretudo.
Ao longo de todo o texto, distribuem-se impressões e expressões cujo objetivo é
oferecer ao leitor o ambiente simbólico do encontro, seja em comentários práticos -
"Fizemos uma pausa. Ele continuou:" - seja no relato das emoções ocasionadas:

..- Tenho tanta ternura pela sua mão queimada ...


(Emocionei-me e entendi que este homem envolve uma mulher de
carinho.)" (DCI, p./7)

Várias das questões recorrentes nas entrevistas estão presentes aqui, inclusive as
da trilogia "clássica" de perguntas, embora não estejam encadeadas como de costume.
Acontecem em momentos distintos, duas delas na forma de perguntas - "-Reflita um
pouco e me diga qual é a coisa mais importante do mundo, Vinícius" (p.19) "- Como
pessoa, Vinícius, o que é que desejaria alcançar?" (p.20) - e a terceira, "o que é o
amor", diluída por toda a entrevista.
Um dos momentos mais expressivos do encontro, além de muito dizer de cada
um dos envolvidos e da admiração mútua nutrida entre os dois, retrata também dois
aspectos recorrentes em outros momentos do livro: a tentativa de interpretar o outro
também partindo do entrevistado em relação à entrevistadora, e a tentativa de Clarice de
entender o "instante-já" da criação, não apenas pedindo explicações, mas
testemunhando-o, sendo cúmplice do processo criativo:

«: Quero pedir um favor: faça um poema agora mesmo. Tenho


certeza de que não será banal. Se você quiser, Menestrel, fale o seu poema.
- Meu poema é em duas linhas: você escreve uma palavra em cima e
a outra em baixo porque é um verso.
É assim:
Clarice
Lispector
- Acho lindo o teu nome, Clarice ." (DCl, p.20)

Q
105

Um dos aspectos relevantes deste diálogo são as provas de que, assumindo o


papel de jornalista - mas principalmente movida por sua própria curiosidade -, Clarice
busca fora do diálogo (antes e depois dele) outros elementos para retratar o universo de
seu entrevistado, num peculiar trabalho de "produção" e "pós-produção". Afirma, na
primeira pergunta, ter falado com uma das mulheres com que Vinícius casou; e deste
depoimento colhido previamente lhe vem a idéia usada para provocar o entrevistado. No
final do texto, volta a procurar "uma das esposas de Vinícius" e pergunta-lhe: "- como
é que você se sente casada com Vinícius?". Depois, arremata o retrato do encontro com
o que lhe disse "uma mocinha inteligente":

«: Você teria um 'caso' com ele?


- Não, porque apesar de achar Vinícius amorável, eu amo outro
homem. E Vinícius me revela ainda mais que eu amo aquele homem. A
música dele faz a gente gostar ainda mais do amor. E 'de repente, não mais
que de repente' ele se transforma em outro: é o nosso poetinha como o
chamamos.
Eis pois alguns segredos de uma figura humana grande e que vive
a todo risco. Porque há grandeza em Vinícius de Morais."

3.3.1.2. Érico Veríssimo

Ele cultiva a paciência. E detesta


decepcionar os que o procuram, os que
desejam conhecê-lo em carne e osso
A Descoberta do Mundo

Este encontro resultou em dois retratos, ambos impressos em veículo jomalístico


- Manchete e Jornal do Brasil - e literário - De Corpo Inteiro e A Descoberta do
Mundo. A crônica de 16 de dezembro de 1973, "Desculpem, mas não sou profundo" é
um dos espaços onde Clarice assume mais o papel de repórter. Reporta o encontro com
Érico Veríssimo, contextualiza sua vida e sua obra, refere-se ao passado compartilhado,
interpreta-o quase objetivamente, usando literalmente suas palavras - como se percebe
ao comparar a crônica com a entrevista. Mas mesmo nesse retrato quase objetivo,
Clarice não foge à pessoalidade: "Érico Veríssimo é um dos seres mais gostáveis que
conheci: é pessoa humana de largueza extraordinária" (LISPECTOR, 1999, p. 440).

a
106

Apesar de usar "estratégias narrativas" diferentes nos dois textos (um, a


reprodução do diálogo, outro, a narrativa em texto corrido onde a fala do entrevistado
vem em discurso indireto), a semelhança entre os dois os reduz quase ao mesmo, ou à
cópia um do outro, seguindo inclusive, a mesma ordem de fatos e frases - sendo a
crônica datada de 73 e a entrevista, presumimos, de 68 ou 69, a narrativa é,
provavelmente, uma reescrita do primeiro texto. Nos dois relatos, repetem-se as
palavras, não apenas as ditas pelo entrevistado, mas também as que registram as
impressões de Clarice. Impressões que, seguindo o que seria uma técnica recorrente,
servem para provocar o entrevistado a revelar-se numa reação:

"Você, Érico, é uma das pessoas mais gostáveis que conheci. Você
é uma pessoa humana de largueza extraordinária. Que é que me diz
disso?" (DCl, p.24)

Érico e Clarice são amigos: compartilharam a experiência de um exílio


voluntário na atividade diplomática. Tomaram-se compadres, as famílias aproximaram-
se, conviveram por alguns anos. Por este passado comum, sabem muito da
personalidade um do outro, e este conhecimento mútuo deixa implícita uma dinâmica
contratuaL própria - conhecem-se e por isso sabem, os dois, que aquela não será uma
entrevista como qualquer outra; será regida pelos interesses e pelas personalidades
envolvidas. Nenhuma menção a este período de convivência é feita no "abre"; o leitor
fica a par desta relação no decorrer do próprio diálogo:

«: Érico, sem interromper o assunto, estou me lembrando de


Washington, eu como mulher de diplomata, você trabalhando na OEA.
Você se lembra como eu fazia ninho na casa de vocês? Que é que você
estava escrevendo naquela ocasião? Eu, por exemplo, estava escrevendo A
Maçã No Escuro. Foi um período muito produtivo, no sentido de trabalho
e no sentido de uma amizade que se formou para sempre entre você,
Mafalda e eu.
- Quero que você saiba (e aqui falo também em nome de minha
mulher) que as melhores recordações que guardo de nossa estada em
Washington D. C. são as das horas que passamos em sua casa, com você e
sua gente. Detestava o meu posto na União Pan-Americana. Não consegui
escrever uma linha durante estes três anos burocráticos. O que sobrou de
107

melhor desse tempo foi a nossa amizade. Você saiu daquela chatice federal
com um romance denso de substância humana e poética." (DCI, p.25)

Nesta passagem fica clara também o tema que dá a tônica da entrevista: o


processo criativo, neste caso especificamente ligado à literatura. A maior parte das
perguntas e respostas deste diálogo gira em tomo de assuntos como a relação com a
crítica, a maneira de encarar a popularidade conferida pelas obras literárias, as
inspirações, as motivações e o próprio processo de construir uma história. Em alguns
momentos, quando coloca a questão ao entrevistado, Clarice ao mesmo tempo revela
como se dá o processo nela própria, colocando-se como referência constantemente -
interpretando a si na tentativa de provocar a reação do outro:

«: Você planeja de início a história ou ela vai se fazendo aos


poucos? Eu, por exemplo, acho que tenho um vago plano inconsciente que
vai desabrochando à medida que trabalho.
- Planejo, mas nunca obedeço rigorosamente ao plano traçado. Os
romances (você sabe disso melhor do que eu) são artes do inconsciente. Por
outro lado, estou quase a dizer que me considero mais um artesão do que um
artista (...)".(DCl, p.27)

Mesmo se dirigindo, na maior parte do tempo, ao escritor Érico Veríssimo - e,


na maior parte do tempo, como a escritora Clarice Lispector - não lhe escapam outros
aspectos. Pergunta se ele sente-se realizado como escritor, para em seguida perguntar-
lhe se alcançou a realização como homem. Pergunta-lhe de sua maior alegria como
escritor, e pergunta-lhe de sua maior alegria como homem. E encerra a entrevista
perguntando-lhe o que mais quer no mundo, para repetir-lhe as palavras na crônica-
retrato que virá depois, abolindo aspas e travessões:

"O que ele mais quer no mundo? Primeiro, gente. A sua gente. A
sua tribo. Os amigos. E depois vêm música, livros, quadros, viagens. Não
nega que também gosta de si mesmo, embora não se admire. " (LlSPECTOR,
1999, p. 442)
108

3.3.1.3. Entrevista relâmpago com Pablo Neruda

Perguntei-lhe de qual de seus livros

ele mais gostava e por quê. Respondeu-me:

- Tu sabes bem que tudo o que

fazemos nos agrada porque somos nós - tu e

eu - que o fizemos.

De Corpo Inteiro

Esta entrevista é relâmpago; disto o leitor é informado desde o título no alto da


página. Mas acompanhando a mais curta entrevista do livro está o mais longo "abre",
talvez para complementar o caminho rumo ao entendimento do outro que teve nas
palavras do diálogo em si apenas algumas setas de orientação. As quase duas páginas
de texto de abertura mesclam relatos objetivos e metáforas, falam do momento do
encontro e de momentos antecedentes e posteriores, contextualizam o entrevistado e sua
obra - no "breve esboço sobre sua carga literária", bem ao gosto da atividade
jornalística como em poucos momentos do livro. Um "abre" bem próximo aos modelos-
padrão de narrativajornalística, abordando o quem/quando/como/onde do encontro, sem
prescindir da subjetividade da entrevistadora e de suas inovações criativas. O texto
oferece, em linhas rápidas, um também breve auto-retrato da Clarice-entrevistadora:

"(...) dei-lhe a página onde anotara as perguntas, esperando só


Deus sabe o quê. Mas o quê foi um conforto. Disse-me que eram muito
boas e que me esperaria no dia seguinte. Saí com alívio no coração porque
estava adiada a minha timidez em fazer perguntas. Mas sou uma tímida
ousada e é assim que tenho vivido, o que, se me traz dissabores, tem-me
trazido também alguma recompensa" (DCI, p.30)

O alívio de um dia forma-se, no outro, em frustração. Recebe prontas as


respostas a suas boas perguntas - e lamenta a perda da naturalidade e da fluência ímpar
oferecidas apenas pela interação do diálogo oral e responsáveis por boa parte do valor
da entrevista como forma de expressão:

"Já havia respondido às minhas perguntas, infelizmente; pois a


partir de uma resposta é sempre ou quase sempre provocada outra
pergunta, às vezes aquela a que se queria chegar" (DCI, p.30)
109

As respostas curtas frustram Clarice, tanto pela rapidez como pela


impossibilidade de testemunhar o "instante-já" e de aprofundar-se no processo criativo
do poeta, como se percebe nos momentos a seguir:

«. Escreva aqui o seu poema predileto, pelo menos predileto neste


exato momento.
- Estou escrevendo. Você pode esperar por mim dez anos?" (DCI,
p.3I)

«: Você já fez algum poema de encomenda? Se o fez faça um


agora, mesmo que seja bem curto.
- Muitos. São os melhores. Este é um poema." (DCl, p.32)

«. Como se processa em você a criação?


- Com papel e tinta. Pelo menos essa ;e a minha receita" (DCl,
p.32)

Embora breve, este não deixa de ser um exemplo de diálogo possível, revelador
que é das duas personalidades. As respostas curtas, frustrantes às expectativas da
entrevistadora, também exercem sobre ela um certo fascínio. E surpreendem-na, de uma
surpresa que ela mesma solicita e não deixa de registrar:

H_ Diga alguma coisa que me surpreenda.


- 748.
(E eu realmente surpreendi-me, não esperava uma harmonia de
números)" (DCl, p.32)

Pela riqueza implicitamente revelada nas respostas curtas, Clarice lamenta não
poder prosseguir no caminho do diálogo. "Antes ele falasse mais. Eu poderia prolongá-
10 quase que indefinidamente, mesmo recebendo como resposta uma única seta de
resposta". E, insatisfeita com o resultado até aí, recorre ao recurso de "pós-produção",
típico da entrevista jomalística: vai buscar elementos fora do diálogo em si (mas
inseridos no contexto simbólico que envolve o encontro), na tentativa de completar
satisfatoriamente o retrato do ser-outro:

"Espontaneamente, deu-me um livro. Cem sonetos de amor. E


depois de meu nome, na dedicatória, assinou: 'De seu amigo Pablo'. Eu
110

também sinto que ele poderia se tornar meu amigo, se as circunstâncias


facilitassem. Na contracapa do livro diz: 'Um todo manifestado com uma
espécie de sensualidade casta e pagã: o amor como uma vocação do
homem e a poesia como sua tarefa'.
Eis um retrato de corpo inteiro de Pablo Neruda nestas últimas
frases" (DeI. p.33)

3.3.1.4. Um homem chamado Hélio Pellegrino

Diga qual é a sua fórmula de vida.


Eu queira imitar.
De Corpo Inteiro

Os entrevistados são, quase sempre, uma escolha de Clarice, determinada não


pela factualidade ou por um papel oficial, mas baseada em critérios absolutamente
pessoais. A autoraJentrevistadora, que tão intensamente busca a compreensão do ser.
explica suas razões para esta escolha, inserindo o leitor no ambiente simbólico do
encontro, oferecendo-lhe o primeiro índice de uma grande admiração, nítida no decorrer
do diálogo:

"Escolhi Hélio Pellegrino para um diálogo perfeitamente possível


sobretudo porque eu o considero um dos seres humanos mais completos
que conheço" (DCI. p.55)

Se lograsse captar a completude deste ser, estaria ao menos muito próxima do


resultado de sua busca. Mas mesmo sabendo da impossibilidade de alcançar com
palavras esta completude, percorre o caminho dialógico com alguém que, por profissão
e por vocação (é psicanalista), dedica a vida a conduzir o outro na tentativa de
compreender a si mesmo.
O retrato de Hélio Pellegrino feito por Clarice, no "abre" da entrevista, revela a
escritora-repórter como um destes seres que, como os pacientes de seu entrevistado,
buscam compreender-se:

"É bom estar com Hélio Pellegrino: a gente se sente


compreendido, sente-se alegre porque ele é um ser humano profundo. Rir
111

com ele é ótimo, e chorar perto dele também deve dar certo, imagino.
Quando estou com Hélio eu me sinto valorizada como pessoa." (DCl, p.55)

E, a Hélio Pellegrino, Clarice faz uma das perguntas mais indicati vas da hipótese
de que ao olhar o outro ela está também procurando o olhar do outro sobre ela. E de que
em si e no outro está procurando a essência do ser. E Hélio oferece uma das mais
ousadas - e talvez mais acertadas - suposições de Clarice em sua busca:

«; Hélio, você é analista e me conhece. Diga - sem elogios - quem


sou eu, já que você me disse quem é você. Eu preciso conhecer o homem e
a mulher.
- Você, Clarice, é uma pessoa com uma dramática vocação de
integridade e de totalidade. Você busca, apaixonadamente, o seu self -
centro nuclear de confluência e de irradiação de força - e esta tarefa a
consome e faz sofrer. Você procura casar, dentro de você, luz e sombra; dia
e noite; sol e lua. Quando você consegui r - e este é o trabalho de uma vida -,
descobrirá, em você, o masculino e o feminino, o côncavo e o convexo, o
verso e o anverso, o tempo e a eternidade, o finito e a infinitude, o Yang e o
Yin; na harmonia do TAO - totalidade. Você, então, conhecerá homem e
mulher - eu e você: nós ... (DCl, p.60)

Mas, para chegar a esta pergunta, Clarice percorreu todo o caminho em busca
das respostas reveladoras da personalidade do entrevistado - assumindo, ela, o papel de
conduzir o outro. Como entrevistadora, pede ao psicanalista que volte a si mesmo a sua
análise. Ao ser humano mais completo que conhece, Clarice aplica algumas de suas
técnicas características: provoca-lhe com sua trilogia de perguntas;

"Hélio, diga-me agora, qual é a coisa mais importante do mundo?


( ) ...
- Qual é a coisa mais importante para uma pessoa, como
indivíduo?
( ) ...
- Que é o amor?" (DCl, p.59)

Interpreta-lhe para provocá-lo a reagir;


112

H. Hélio, é bom viver, não é? É, pelo menos, a impressão que você


me 00" (DCI, p.56)

E coloca-se como referência com o mesmo intuito de provocar-lhe uma reação;

H_ Você queria ter outras vidas? Era o meu sonho ter várias. Numa eu seria só mãe, em outra

vida eu só escreveria, em outra eu só amava". (DCI, p.58)

Com esta pergunta, Clarice está, de certa forma, perguntando-lhe o que seria se
não fosse o que é; como faz recorrentemente ao longo das entrevistas. Ou melhor, está
perguntando-lhe o que seria se não fosse apenas o que é. E a resposta de Hélio indica a
admiração mútua e, realmente, muito revela de sua personalidade:

"(. ..)Se me fossem dadas outras e outras vidas, gostaria de ser: a)


filósofo profissional; b) romancista; c) marido de Clarice Lispector, a quem
me dedicaria com veludosa e insone dedicação; d) chofer de caminhão; e)
morador em Resende, apaixonado por uma moça triste, debruçada à janela
de uma casa, saída de um quadro de Volpi; f) seresteiro, poeta, cantor, com
a música de Chico Buarque" (DCI, p.59)

3.3.1.5. Dinah Silveira Queirós

Por mais agruras que tenha passado

- quem não passou? - hoje é uma mulher de

cabeça levantada, com um ar de serenidade

De Corpo Inteiro

O diálogo possível entre Clarice Lispector e Oinah Silveira de Queirós começa


com um dos recursos recorrentes da Clarice-entrevistadora - provoca a entrevistada a
revelar-se dizendo-lhe de suas impressões sobre ela. E Dinah reage refletindo sobre a
afirmação de Clarice, para entender-se e explicar:

H. Dinah, qual é o segredo de sua serenidade? Por que você parece


até fisicamente sobrepairar as coisas e pessoas?
Pausa, meditação:
113

- Primeiro, vou pensar se sou serena, mesmo. O que me ocorre é


que meu estado psíquico normal é, realmente, o da serenidade. Mas posso
passar a uma cólera bíblica, sem nenhuma nuance. Aliás, nessas ocasiões,
que são rápidas, mas turbulentas, bem me sobe à cabeça uma gota de sangue
espanhol que possuo dentro da mescla racial.( ...)" (DeI, p.61)

A necessidade de conhecer e compreender o processo criativo, colocada a todos


os entrevistados-artistas - e a mais alguns - e recorrente nos outros espaços da obra da
literata (os romances e contos) e da jornalista (as crônicas), Clarice verbaliza-a em sua
pergunta à escritora Dinah Silveira Queirós:

a. O problema da criação artística sempre me fascinou e ainda não


perdi a esperança de um dia desmontar esse complicado mecanismo.
Poderia me dizer qual é a marcha do seu processo de criação?" (DCl, p.63)

E na resposta de Dinah à Clarice figura a busca do encontro com o outro através


da palavra, da mensagem, que é do escritor e também do jornalista, no exercício do
diálogo possível buscado por Cremilda Medina, visando à interação criadora:

H_ Todo escritor é um ser que procura lançar sua mensagem como


a clássica do náufrago que encerra o bilhete na garrafa e o atira às ondas.
Muita vez, essa mensagem se perde. Mas acho que deve haver sempre, pelo
menos, respeito por esse ato de comunicação a distância. Nunca ri, nem
mesmo caçoei de nenhum escritor malogrado porque, simplesmente, não
somos nós os donos do momento em que pisamos aquele lugar no qual os
outros nos encontram (... ) A verdade é que se a mensagem chega - nós
estamos salvos, somos escritores. Mas qualquer um de nós pode oferecer
generosamente tudo o que tem dentro de seu espírito e vir a ser recusado,
simplesmente porque não achou aquele terreno de encontro com o próximo,
isto é, a mensagem não atingiu o alvo.( ...)" (DCl, p.63)

Nota-se nas perguntas e respostas que seguem uma identificação entre Clarice e
Dinah - uma das sete entrevistadas da entrevistadora. Há perguntas acerca do fazer
literário, perguntas sobre a condição de esposa de um diplomata e perguntas sobre a
relação entre estas duas coisas - ambas, Clarice e Dinah, passaram pela experiência de
viver no exterior em decorrência da profissão do marido; ambas são escritoras; suas

--f' _
114

personalidades e as coincidências entre elas regem o processo contratual que se


estabelece neste diálogo em particular. E, ao final deste encontro, há uma inversão
formal na estrutura da entrevista - nas "cláusulas" formais do contrato firmado - como
acontece várias vezes durante o livro. Inversões estas que, na maior parte das vezes,
apenas enriquecem a dimensão do encontro, pois a interação criadora pressupõe atitude
e mudança dos dois lados A entrevistada pergunta, Clarice responde:

-: Clarice, considero-a o escritor que mais ama e serve a uma


língua. O brasileiro tem uma incompatibilidade com o idioma que fala.
Podemos ver isso na massa de traduções que são outra coisa e não a nossa
língua escrita ou falada. Como você conseguiu amar tanto e conhecer até
nos mínimos detalhes e prazeres esta língua não tão portuguesa assim, mas,
afinal, a nossa língua?
- A palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia amá-Ia."
(DCI, p.65)

3.3.1.6. Chico Buarque ou Xico Buark

Você já experimentou sentir-se em


solidão? Ou sua vida tem sido sempre esse
brilho tão justificado? Chico, um conselho
para você: fique de vez em quando sozinho,
senão você será submergido. Até o amor
excessivo dos outros pode submergir uma
pessoa
De Corpo Inteiro

Ressalta-se, logo de início, no encontro entre Clarice Lispector e Chico Buarque,


a escritora desde sempre em convivência com o dom da palavra, renovando sobre ela
um fascínio a cada instante; a escritora que afirmou, certa vez, ser a palavra a sua
maldição e a sua salvação; a escritora que se acostumou a explorar em toda a
potencialidade esta palavra, vendo-lhe mesmo em sua dimensão física, como objeto.
Com os olhos desta escritora, a entrevistadora Clarice deixa-se encantar por um gracejo
feito com a grafia do nome de Chico Buarque; e a partir desse encanto divide com o
leitor seu olhar sobre o entrevistado, num texto de abertura que é também retrato do
ambiente simbólico a envolvê-Ia e a Xico Buark. Retrato capturado pela sensibilidade


115

criativa da escritora e pela sensibilidade curiosa da jornalista, que aguça todos os


sentidos - até mesmo e principalmente o sexto deles - na tentativa de registrar este
encontro.

"Esta grafia, Xico Buark; foi inventada por Millôr Fernandes, numa
noite no Antônio 's. Gostei como quando eu brincava com palavras em
criança. Quanto ao Chico, apenas sorriu um sorriso duplo: um por achar
engraçado, outro mecânico e tristonho de quem foi aniquilado pela fama. Se
Xico Buark não combina com a figura pura e um pouco melancólica de
Chico, combina com a qualidade que ele tem de deixar os outros o
chamarem e ele vir, com a capacidade que tem de sorrir conservando muitas
vezes os olhos verdes abertos e sem riso. Ele não é de modo algum um
garoto, mas, se existisse no reino animal um bicho pensativo e belo e sempre
jovem que se chamasse Garoto, Francisco Buarque de Holanda seria a raça
montanhesa dos garotos.
Marcamos um encontro às quatro horas (...). Estávamos os dois em
minha casa e a conversa transcorreu sem desentendimentos, com uma paz de
quem enfim volta da rua" (DCI, p.67)

Com Chico Buarque, divide um dos momentos do livro onde é menos


entrevistadora e mais interlocutora apenas; um dos momentos onde a entrevista toma-se
conversa quase como outra qualquer, guiada pelas regras frouxas de um contrato
informal - até que a entrevistadora, como técnica do diálogo regido pelas normas
específicas da entrevista jornalística, retoma as rédeas e redireciona ao entrevistado o
foco de luz que se ia espalhando. E este momento se desenrola em tomo do tema
essencial a Clarice: a dimensão criadora do ser.

"-(...)Estou certa se pensei que para você não é muito laborioso


criar?
- E não é. Porque às vezes estou procurando criar alguma coisa e
durmo pensando nisso, acordo pensando nisso, e nada. No outro a coisa
estoura e qualquer pessoa pensaria que era gratuita, nascida naquele
momento. Mas essa explosão vem do trabalho anterior inconsciente e
aparentemente negativo. E como é o seu trabalho?
- Vem às vezes em nebulosa sem que eu possa concretizâ-lo de
algum modo. Também como você, passo dias ou até anos, meu Deus,
esperando. E, quando chega, já vem em forma de inspiração. Eu só
trabalho em forma de inspiração.
116

- Até aí eu entendo, Clarice. Mas a mim, quando a música ou a letra


vêm, parece muito mais fácil de concretizar porque é uma coisa pequena.
Tenho a impressão de que se me desse a idéia de construir uma sinfonia ou
um romance, a coisa ia se despedaçar antes de estar completa.
- Mas, Chico, aí é que entra o sofrimento do artista: despedaça-se
tudo e a gente pensa que a inspiração que passou nunca mais há de vir.
- Se você tem uma idéia para um romance, você sempre pode reduzi-
10 a um conto?
- Não é bem assim mas, se eu falar mais, a entrevistada fica sendo
eu. (...) "(DCI, p.68)

Como no encontro com Vinícius - e de forma semelhante à tentativa frustrada


com Pablo Neruda -, revela-se no diálogo possível a intenção de tomar-se cúmplice da
criação do outro, testemunhando-lhe "com cara de juízo final" o esforço criador num
"instante-já" compartilhado. E, da maneira como aconteceu com Vinícius, a Chico a
provocadora deste processo criativo torna-se inspiração para a obra instantânea:

H_ Você quer fazer um versinho agora mesmo? Para você se sentir


não vigiado, esperarei na copa até você me chamar.
Chico riu, eu saí, esperei uns minutos até ele chamar e ambos
lemos sorrindo:
Como Clarice pedisse
Um versinho que eu não disse
Me dei mal
Ficou lá de dentro esperando
Mas deixou seu olho olhando
Com cara de juizo Final. " (DCI, p.70)

Antes de Clarice encerrar a entrevista com a sua trilogia "clássica" de perguntas,


ainda há um assunto, abordado no diálogo com Chico, que vale ser ressaltado por ser
um dos poucos momentos onde há uma referência direta ao contexto social/factual da
época. Chico e Clarice viram-se em uma passeata de estudantes, e lembrando disto,
questionam-se mutuamente sobre suas motivações para estar ali. Para além destas
motivações, destaca-se a preocupação de Clarice - que aparece em algumas outras
entrevistas - com a movimentação dos estudantes no mundo e, em específico, no Brasil.
A preocupação mostra uma Clarice consciente e inserida num contexto social específico
e atual/factual que não lhe escapa à análise - consciência e análise estas imprescindíveis
117

para o bem fazer da tarefa jornalística, onde, mais que meramente informar, é mister
interpretar a realidade, identificando o por trás dos fatos, dando ao leitor uma dimensão
abrangente da situação. A mesma Clarice Lispector, algumas vezes tachada de alienada
em sua obra literária, mostra-se, ao contrário, engajada no momento efervescente dos
últimos anos de 60 - isto refletir-se-á em A Hora da Estrela, romance seu onde toma
contornos claros a preocupação com o "problema social" que, segundo Olga Borelli, lhe
aflige. O artista pode permitir-se passar à margem do contexto, imerso apenas em sua
subjetividade; o jornalista, ao contrário, está preso à responsabilidade social que lhe
impõe a profissão, deve ter antenas ligadas a este contexto externo, mesmo quando não
o aborda diretamente. E nesse ponto, pode-se notar que, na busca pela consciência do
ser-outro e de si própria, na entrevistas, Clarice Lispector demonstra um equilíbrio entre
a subjetividade do mundo íntimo e existencial e a objetividade - sem o caráter de
impessoal idade - do mundo exterior, cotidiano, factual, repleto de agruras e injustiças a
serem combatidas. Na crônica "Literatura e Justiça", em Para Não Esquecer, Clarice,
como escritora, reflete sobre esse mundo externo, indicando um compromisso com "a
coisa social":

"Desde que me conheço o fato social teve em mim importância


maior do que qualquer outro: em Recife os mocambos foram a primeira
verdade para mim. Muito antes de sentir "arte", senti a beleza profunda da
luta. Eu queria "fazer" alguma coisa, como se escrever não fosse fazer. O
que não consigo é usar escrever para isso, por mais que a incapacidade me
doa e me humilhe. O problema de justiça é em mim um sentimento tão óbvio
e tão básico que não consigo me surpreender com ele - e, sem me
surpreender, não consigo escrever" (LlSPECTOR, 1999c, p.29)

3.3.1.7. Djanira

Como não amar Djanira, mesmo sem


conhecê-Ia pessoalmente? Eu já amava o seu
trabalho, e quanto - e quanto.
De Corpo Inteiro

Do encontro de Clarice com a artista plástica Djanira, o leitor compartilha o


ambiente simbólico desde o primeiro momento onde se estabelece uma relação -
118

empática - entre as duas. Clarice para à porta diante da entrevistada, vista pela primeira
vez, e simplesmente detém nela o seu olhar:

«: Espere um pouco, quero ver você


E vi - vi mesmo - que ela ia ser minha amiga. Ela tem qualquer
coisa nos olhos que dá a idéia de que o mistério é simples. Não estranhou o
fato de euficar olhando para ela, até eu dizer:
. Pronto, agorajá conheço você e posso entrar" (DCI. p.73)

E O leitor alcança este ambiente simbólico tão somente porque a entrevistadora


lhe oferece, convidando-o a sentir-se integrado ao diálogo possível onde transparece
uma força modificadora. E, ao retratar a entrevistada, o faz em impressões e também
trabalhando a linguagem em sua dimensão física - como quem brinca com palavras.
Quer conferir ao seu retrato a força e a grandeza sugerida pela palavra capitulada:

"Não se deve escrever Djanira e sim DJANlRA." (DCI. p. 73)

A entrevista começa com uma pergunta que é quase uma proposta de pacto,
estabelecendo-se verbalmente, sobre as regras frouxas do contrato informal dialógico e,
ainda, em cima das regras específicas do contrato firmado jornalístico, uma norma
essencial a este contrato específico entre Clarice-entrevistadora e sua entrevistada
Djanira: só a sinceridade pode proporcionar-lhes uma interação criadora.

"Djanira, você é uma criatura fechada. E eu também. Como


vamos fazer? O jeito é falar a verdade. A verdade é mais simples que a
mentira" (DCI. p. 74)

E Clarice só se põe à busca da verdade de sua entrevistada quando, como já


citamos, afirma a ela o seu compromisso - ético - em "não invadir sua alma". O diálogo
- perfeitamente possível - que se segue é certamente criador. E mesmo, em aparência,
estranhando-se em alguns momentos ao modelo esperado de uma entrevista jomalística
- perguntas e respostas - é diálogo possível como poucas das entrevistas encontradas
em jornais e revistas. Porque a entrevistadora, nestes momentos, substitui perguntas por
afirmações, concordâncias, discordâncias e algo de colocação pessoal. Mas, mais que
em outros momentos, assume a posição de condutora do diálogo natural do
119

entrevistador, suas colocações funcionam como balizas, como referências, como


provocações para que o pensamento da entrevistada flua com suas palavras - e a esta
fluência do pensamento Clarice está atenta.
No fim do diálogo, transparece post scriptum a preocupação em inserir o leitor
no ambiente simbólico - tal como Clarice o capta, relevando aspectos e fatos que a
outros oLhos poderiam não ter importância:

"P.S.: Esqueci de dizer que, quando Djanira quebrou a clavícula,


ficou desesperada porque não podia pitar. E de repente deu um grito que
fez seu marido ir correndo para ela. É que, no desespero de querer pintar,
experimentou usar a mão esquerda e, para sua surpresa e enorme alegria,
descobriu que era perfeita ambidestra.
Mota foi me levar em casa. Ele e Djanira se despedem dando-se
dois a três beijos na boca. Achei isso tão bonito."

3.3.1.8. Scliar

E, se fosse questão de jurar, eu


juraria que Scliar está numa fase nova
maravilhosa. Scliar está subindo cada vez
mais e experimentando sempre. Mas continua
a fazer retratos. Inclusive acha que fazer
retratos é uma grande disciplina.
De Corpo Inteiro

Carlos Seliar foi um entre alguns dos artistas que se deixaram fascinar pelo traço
incomum e impressionante do rosto de Clarice Lispector. Em 1972, retribui-lhe em tons
e riscado o retrato que ela lhe fez em palavras, mais tarde publicado em De Corpo
Inteiro. O encontro entre Clarice e Seliar é o encontro entre dois amigos, onde antes é
preciso gastar momentos em "efusões mútuas de amizade" para então ficarem mais
sérios porque "havia uma entrevista para fazer". O leitor sabe da dimensão da amizade
entre os dois pelas palavras de Clarice:

"Eu simplesmente gosto de Scliar. Isso é tão simples. E


independente da grande admiração que sinto por ele". (DeI, p. 9/)
120

Tomam-se sérios e tem início a entrevista, dando a sensação de que seguirá uma
linha cronológica - impressão primeira que não fica. Clarice e o leitor descobrem ser
cineasta o que o entrevistado teria sido se não fosse o que se tornou; tentou o cinema
antes de tomar-se o que é - pintor. E, depois disso, acontece a primeira das muitas
interrupções na aparente cronologia seguida; daí, a impressão primeira se desfaz e as
estruturas do diálogo se transformam.
Das muitas possiblidades que se lhe dão para levar ao leitor o ambiente
simbólico do encontro, Clarice aqui adota impressões entrecortando um diálogo, daí por
diante marcado por uma fragmentação transparente. Os modelos-padrão de entrevista
jornalística geralmente pressupõem uma continuidade mesmo apenas aparente; se há
cortes e edição, e quase sempre há, opta-se geralmente por tentar que o texto passe idéia
de todo contínuo. Ao discurso literário, em outra mão, é permitida a fragmentação até
como forma de expressão. No caso deste diálogo - uma entre tantas formas em que se
faz possível- há um equilíbrio entre a continuidade fluente do jornalismo e a expressiva
fragmentação permitida à literatura; e esse equilíbrio, ao invés de comprometer, trabalha
em favor da mais fiel reprodução possível das circunstâncias deste encontro. O diálogo
entre Clarice e Seliar aparenta ser construído de momentos "pinçados" de um todo pela
sua expressividade, e montados entre os silêncios e as impressões sussurradas entre
parênteses:

«. Clarice, acho que uma coisa eu aprendi na Europa. depois de


uma primeira viagem como soldado da FEB. quando descobri que a vida é
uma coisa fantástica e que deve ser vivida todos os instantes; houve então
uma primeira modificação substancial em mim e em minha pintura. (...) Na
volta da Itália. me vi redescobrindo a beleza de um objeto. a beleza de uma
flor. a beleza de um movimento. me vi em idilio com o mundo. com uma
saúde que. por mais conspurcada pela sociedade, explodia apesar de tudo
com a força do sol.

(Está bem, Scliar, isso me explica em parte como, apesar de nossa


forma social, conseguimos dormir de noite.)
- E não creio. continuou Scliar, que essa posição faça da minha
pintura uma arte alegre. Mas não é uma arte negativa também.
Falamos de Djanira e Scliar disse:
- Ela é uma força da natureza. Por isso não há doença que possa
abatê-Ia.
(Amém)
121

Contei que entrevistara Fayga Ostrower, Djanira e ele.


Scliar comentou:
- São três artistas de formação diversa.
Silêncio" (DCl, p. 94)

o entrevistado responde ainda à trilogia de Clarice: para Seliar, o homem é a


coisa mais importante do mundo; para uma pessoa como indivíduo, importante é o ser
respeitado como homem e o saber respeitar os outros. E amor é estar integrado nas
coisas que o estimulam por todos os poros.

3.3.1.9. TomJobim

Não estou entendendo nada do que

nós estamos falando, mas faz sentido. Como

podemos, Tom, falar do que não

entendemos? Vamos ver se na próxima

reencarnação nós dois nos encontramos mais

cedo.

De Corpo Inteiro

Com Tom Jobim, o encontro estabelece-se numa cumplicidade rara já desde o


começo "quase imediato" da entrevista; e, ao final da leitura, vai sobressair-se não o
olhar da entrevistadora sobre o entrevistado, e nem mesmo o olhar - invertido - do
entrevistado sobre a entrevistadora. É um encontro em primeira pessoa do plural -;
Clarice tenta passar para o leitor uma identificação em "nós" - Clarice e Tom - que se
dá em nível de impressões, intuições e sentidos despertados pelo devir das palavras,
prescindindo quase da razão. Pois Tom Jobim é - e o diz rindo - o músico que acredita
em palavras e Clarice, a escritora que acha considera o som da música imprescindível
para o ser humano.
Clarice, em seu "abre" , diz de contatos anteriores com o entrevistado e,
brevemente, de suas impressões sobre ele. Com pressa em começar, diz do encontro
marcado:

"Um uísque na mesa e começamos quase imediatamente a


conversa:" (DCI, p.127)
122

No começo da entrevista e em vários outros momentos, como no encontro com


Chico Buarque, mais que entrevistado e entrevistadora tornam-se dois interlocutores
ligados ao tema da conversa com igual concentração e equivalentes interesses; nestes
momentos, o diálogo é regido quase apenas pelas regras implícitas do diálogo informal,
reduzindo-se ao núnimo possível a diferença entre os papéis dos dois interlocutores. A
marca de um texto jornalístico continua principalmente pela presença sempre implícita
do terceiro elemento do diálogo, o leitor, em nome de quem se constrói o retrato de
impressões deste encontro.

H_ Como você encara o problema da maturidade?


- Tem um verso do Drummond que diz: 'A madureza, esta horrível
prenda ... '. Não sei Clarice, a gente fica mais capaz. mas também mais
exigente.
- Não faz mal, Tom, a gente exige bem." (DCI, p. 127)
(. .. )

"_ (...) porque sinto uma espécie de falta de tempo da humanidade-


o que vai entrar mesmo é a leitura dinâmica. Que é que você acha?
'- Sofro se isso acontecer, que alguém me leia apenas no método
de vira-página dinâmico. Escrevo com amor e atenção e ternura e dor e
pesquisa, e queria de volta, como mínimo, uma atenção e um interesse
como o seu, Tom. E no entanto o cômico é que eu não tenho mais
paciência de ler .ficção.
- Mas aí você está se negando, Clarice!
- Não, meus livros felizmente para mim não são superlotados de
fatos, e sim da repercussão dos fatos no indivúluo. (...)" (DCI, p. 128)

Também a repercussão dos fatos nos indivíduos, marca indelével de sua obra
literária, preenche a atuação da Clarice-jornalista ao debruçar-se sobre o ser-outro em
seu cotidiano. E, por suscitar questões essenciais e permanentes, a atualidade deste
discurso jornalístico fica, mesmo quando os fatos que o motivaram passam.
A pluralização da primeira pessoa faz-se notar no conteúdo do diálogo e na
forma como se expressam, Tom e Clarice, em sintonia quase perfeita:

"(, ..) A nossa, Clarice, é uma arte e denúncia."

H. Para quem você faz música e para quem eu escrevo"?


123

- Acho que não nos foi perguntado nada a respeito e, desprevenidos,


ouvimos no entanto a música e a palavra sem tê-las realmente aprendido de
ninguém. Não nos coube escolha: você e eu trabalhamos sob uma
inspiração. (...)" (DCI. p. 130)

A peculiaridade desta entrevista, seu tom quase confessional e a harmônica


mistura de assuntos - muito mais repercussões do que fatos - não escapam à percepção
da entrevistadora:

a( •••) Estou simplesmente misturando tudo, mas não é culpa


minha, Tom, nem sua: é que esta entrevista foi se tornando meio
psicodélica" (DCI, p. 131)

Mas ocorrem neste encontro alguns dos aspectos recorrentes que partem, como
nas outras entrevistas, da provocação da entrevistadora. É o caso, por exemplo, da
tentativa de testemunhar o "instante-já" de criação, como em Vinícius e em Chico e em
Pablo. E, como Chico e como Vinícius, Tom faz da provocadora que está a sua frente
sua inspiração - seu poema instantâneo desprende-se aos olhos de Clarice Lispector :

«: Tom, você seria capaz de improvisar um poema que servisse de


letra para uma canção?
Ele assentiu e, depois de uma pequena pausa, me ditou o que se
segue:

Teus olhos verdes são maiores que o mar


Se um dia eu fosse tão forte quanto você eu te desprezaria e viveria
no espaço
Ou talvez então eu te amasse
Ai! Que saudades me dá da vida que nunca tive!

E, também a Tom Jobim, Clarice propõe a sua trilogia de perguntas, assumindo-


a como "clássica":

a. Vou agora lhe fazer as minhas três perguntas clássicas. Qual é


a coisa mais importante do mundo? Qual é a coisa mais importante para a
pessoa como indivíduo? E o que é o amor?" (DCI, p.133)
124

Para Tom Jobim, o amor é a coisa mais importante do mundo. E, para a pessoa,
importa a integridade da alma, mesmo que no exterior pareça suja.

3.3.1.10. Tereza Souza Campos

Eu tinha que ficar realmente de


guarda, porque minha tendência é gostar das
pessoas. E até dos meus inimigos, que não
considero inimigos.
De Corpo Inteiro

Quase todos os entrevistados de Clarice, como já dissemos vezes repetidas, eram


escolhidos a partir de critérios pessoais; quase todos os critérios estavam relacionados
ao sentir e pensar de Clarice sobre o ser-outro do entrevistado. E de Tereza Souza
Campos, Clarice sente um quase desprezo; " 'a mulher mais elegante' não me
interessa" .
Mas pensa-a com a curiosidade - e aí sim, interesse - oriunda de uma antipatia
incômoda que é o primeiro aspecto simbólico dividido com o leitor:

'Tive a curiosidade de entrevistar Tereza Souza Campos porque eu


não simpatizava com ela" (DCI, p.i59)

Esta antipatia inicial motivou a inserção deste encontro nos fragmentos de De


Corpo Inteiro a serem analisados. Porque se, em conteúdo, pode parecer menos rico que
vários outros, ele dá idéia, mais do que quando há uma sintonia empática e imediata
entre entrevistadora e entrevistado, da dimensão modificadora pressuposta no diálogo
possíveL. Dimensão que a Clarice-entrevistadora parece intuir quando divide com o
leitor, em tom confessional:

"Nada respondi. No entanto, responderia: queiram os céus que


Tereza não seja apenas o primeiro figurino do país, senão terei que lhe
explicar o que é uma 'pessoa'. E que o Brasil precisa de muito, e não
precisa nada de primeiro figurino" (Dei, p. i59)


125

Durante todo o diálogo, Clarice parece disposta a fazer a entrevistada refletir


sobre a sua posição no mundo, e a extrair-lhe a essência por trás da elegância primeira
do país. E o faz de maneira, às vezes, sutilmente agressiva. Mas antes de qualquer
possível conscientização por parte da entrevistada, sobressai no retrato deste encontro a
modificação de Clarice em sua postura quase arrogante confessa.

"Acontece que por ocasião do telefonema, tive que ficar em


guarda: a voz de Tereza era expressiva e me agradava. Iria ela me
conquistar para o seu lado? Não, não soufraca." (Dei, P. 160)

Aos poucos e lentamente, a guarda é baixada, com resistência. Admira-lhe a


inteligência, elogia-lhe a franqueza, afirma seu respeito em não tomar público os
momentos do encontro que são "mais da intimidade dela". Continua, no entanto,
confrontando-lhe com a questão social e as questões do mundo - a ela que pressupôs
alienada e fútil - e com questões reveladoras de valores e existência: a criação dos
filhos, a vocação, a maior alegria e tristeza, o que mais lhe importa. E, ao final, propõe
uma reflexão dos efeitos deste próprio diálogo - que se torna, como a escrita
metalinguística de Clarice, um metadiálogo.

"- Como esta deve ser a primeira vez que dialogam com você sem
ser a respeito de moda ou beleza, eu queria saber como você se sente
tratada por mim como pessoa humana e não apenas uma elegante. Foi
agradável ou desagradável? Para o diálogo não falhar, seja por favor
sincera: não se engane: o público percebe nas entrelinhas a realidade.
- Sou uma pessoa que pensa muito na vida e tenho algumas idéias
(ri). E acho que você me tratou elegantemente, conclui.

A Clarice-entrevistadora dá ao público entender nas entrelinhas a sua própria


mudança interior; longe da objetividade quase fria do jornalismo tecnicista, ela entrega-
se à interação criadora deste diálogo possível, tomando-se por uma simpatia - ainda
com ressalvas - pelo ser que tentou desvendar:

"Enfim, contra a minha vontade (estou sorrindo), tomei-me de


grande empatia por Tereza. O seu modo de vida não é culpa dela: ela faz
parte de uma engrenagem não evoluída. Tenho certeza de que Tereza
126

Souza Campos, em situação diferente, poderia ter grande valor." (DCI, p.


163)

a
127

CONSIDERAÇÕES FINAIS

--
Findo o caminho trilhado no decorrer desta monografia, acreditamos ter logrado
-
apontar, nas entrevistas de De Corpo Inteiro, marcas de uma complexa e dinâmica
relação entre jornalismo e literatura - fenômenos de naturezas distintas, sem dúvida, mas
não opostas. Duas atividades com objetivos e expressões diferentes, de cujo encontro,
comungando da mesma matéria-prima (a palavra escrita), resultam, via de regra, textos
de valor inestimável, independente do suporte onde se abrigam; guiados pelo
compromisso jornalístico de retratar a realidade (da maneira mais fiel possível) e
enriquecidos pela potencialidade sem limites do ato criador artístico, dão-se tanto às
páginas recicladas dos jornais quanto à luxuosa encadernação das obras literárias . E,
mais especificamente, acreditamos ter apontado, dentro desta interação tão rica e
complexa, o espaço da entrevista-gênero jornalístico, o diálogo possível, que - ao lado
da crônica, da reportagem, do livro-reportagem e de quaisquer outros textos onde se
possa notar a confluência entre os dois fenômenos - preenche o campo interseccional
entre as searas jornalística e literária, guardando de uma e de outra características
complementares na tarefa de desvendar e retratar o universo singular do ser-outro. Na
análise destes diálogos possíveis, acreditamos ter apontado elementos da interação
criadora transcrita em retratos escritos - não apenas de entrevistados, mas de encontros
- onde transborda a busca pela essência "atrás do pensamento", marca de vida e de
obra - literária e jornalística - de Clarice Lispector.
Mas não nos foge a natureza peculiar destas entrevistas. Tanto na seção
"Diálogos Possíveis" quanto em De Corpo Inteiro, elas estão intrinsecamente ligadas à
personalidade de sua autora, Clarice; e dificilmente teriam as mesmas características
não fosse ela uma escritora com lugar já reservado no áureo camarote dos literatos
consagrados - à época da realização das entrevistas e, principalmente, hoje. Os diálogos
são originalmente publicados em uma coluna assinada - um dos espaços em jornais e
revistas onde a presença pessoal do jornalista é aceita com menos reservas, exatamente
por ser um privilégio só concedido depois de um "merecimento" reconhecido - e não
sofrem tantas pressões quanto os textos do jornalismo "corriqueiro": Clarice escolhe os
entrevistados, determina a sua pauta, tem tempo para fazer as entrevistas e pode
expressá-Ias em estilo próprio. Uma situação bem diferente daquela enfrentada pelos
repórteres - "meros" repórteres - no dia-a-dia das redações, presos a amarras impostas

e d
128

por tempo, espaço, interesses comerciais da empresa, normas estilísticas conservadoras,


"ganchos" factuais, editores com a tesoura pronta aplicar "cortes" por vezes pouco
criteriosos, sem falar nos castradores "manuais de redação".
Mas, mesmo diante de condições pouco favoráveis, é possível encontrar
exceções - honrosas e ainda raras - no espaço da grande imprensa. Textos que
surpreendem o leitor, quando tomado por emoções inesperadas na leitura de um jornal
ou revista. Textos que se impõem por sua inegável qualidade, pela fidelidade e justiça
no tratar dos fatos e das pessoas - mesmo escapando às amarras da "objetividade" -, por
um compromisso ético transparente e por uma leitura agradável e prazerosa. Textos que
se destacam por fugir à regra das fórmulas pré-estabelecidas, trabalhando forma e
conteúdo de maneira inovadora, ultrapassando os limites da linguagem técnica através
de recursos próprios da escrita literária, sem perder de vista às circunstâncias de que o
jornal se põe à busca. E, no caso específico da entrevista, textos que mais do que
lmpnrrur dados biográficos e opiniões avalizadas de fontes oficiais, imprimem o
encontro com a persona de cada ser - nobre ou plebeu - por trás dos cargos sociais.
Estas exceções nos fazem acreditar que, mesmo na "grande imprensa" comercial
brasileira, há lugar para um jornalismo humanizado e humanizador, onde é permitida -
e desejada - uma aproximação com outras instâncias do cotidiano, além da factualidade
de que se reveste o noticiário em geral. É dado ao jornalismo, através destas expressões
excepcionais, retratar emoções além de fatos, impressões além de datas, essências além
de aparências. É dado ao profissional do jornalismo sentir além de pensar, intuir além de
constatar, interpretar além de comprovar. E no expressar desse contato com instâncias
além do factual, é dado ao texto jornalístico buscar no universo metafórico da literatura
uma forma de comunicação plena com o leitor.
Sabemos que, assim como acontece com os "Diálogos Possíveis", existem
condições necessárias para que essas exceções possam acontecer. Acreditamos,
contudo, que tais condições não se oferecem apenas a literatos consagrados,
ocasionalmente centrados no fazer jornaLístico - como o caso de Clarice Lispector; nem
mesmo são exclusivas dos jornalistas que, cansados das amarras das redações, vão
buscar outro suporte - como o livro - para imprimir a sua leitura dos acontecimentos e
dos personagens reais. Além destas condições especiais, no próprio devir diário do
fazer jornaIístico, vez por outra acontece o feliz encontro de condições e intenções que
resultam nestas tão honrosas exceções à regra.

a
129

Podemos apontar casos consagrados pelo tempo, como as experiências do Jornal


da Tarde e da revista Realidade, na seara das reportagens, ou das famosas entrevistas
d' O Pasquim. Aproximando-nos das circunstâncias atuais, encontramos os casos
recentes de alguns mensários especializados, como Palavra, Bravo! e a revista Caros
Amigos, com boas reportagens e suas entrevistas "explosivas" ou "risonhas e francas";
e também casos que já resistem há algum tempo, como os diálogos - às vezes possíveis
- da revista Playboy. Há também possíveis exceções à regra nos grandes jornais diários,
com algumas entrevistas ou reportagens em série; e, com satisfação, podemos ainda
apontar tais exceções nos jornais locais, em entrevistas aprofundadas e perfis
humanizados que ganham espaço nos segundos cadernos e reportagens especiais
publicadas em caráter excepcional - mas até com certa freqüência -, às vezes em
suplementos especificamente dedicados a elas.
Parece-nos claro que esses textos jornalísticos enriquecidos pelo encontro com a
literatura continuarão com o seu caráter excepcional, pois nem todo fato e nem todo
tema se dá ao "jornalismo literário"; diante da quantidade crescente de informações e da
medida minguante de tempo e espaço para veiculá-Ias, a linguagem técnica do
jornalismo parece bem cumprir a tarefa em grande parte dos casos. Felizmente, o
mimético jornalismo é amplo o suficiente para abrigar as várias formas -
complementares, e não excludentes.
A tarefa a que nos lançamos neste trabalho nasceu, como já dissemos, de uma
semente plantada no Curso de Comunicação Social da UFC - e o espaço acadêmico é
sem dúvida um dos melhores solos para o florescimento desta busca por um jornalismo
humanizado. O nosso maior objetivo, com este estudo, é ter contribuído para a reflexão
sobre as possibilidades de aproximação entre jornalismo e literatura; reflexão esta que
vem se mostrando uma tendência crescente na produção científica do Curso. A cada
semestre, somam-se novos trabalhos - sempre com abordagens distintas e nunca
repetitivos -, num esforço conjunto que certamente refletirá mais adiante.
Fica aqui, então, mais um exercício a fundir-se neste esforço. Como prevíramos
desde o princípio, deixamos mais suposições do que conclusões, mais hipóteses do que
certezas - setas de um caminho que pode ser prolongado quase indefinidamente.
130

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ANEXOS
VINfcIUS DE MORAIS
"Detesto tudo que oprime o homem, inclusive a gravata."

MULHER, POESIA, MÚSICA

_ Vinícius, acho que vamos conversar sobre mulheres, poe-


sia e música. Sobre mulheres porque corre a fama de que você é
um grande amante. Sobre poesia porque você é um dos nossos
grandes poetas. Sobre música porque você é o nosso menestrel.
Vinícius, você amou realmente alguém na vida? TeLefonei pam
uma das mulheres com que você casou, e ela disse que você ama
tudo, a tudo você se dá inteiro: a crianças, a mulheres, a ami-
zades. Então me veio a idéia de qtle você ama o amor; e nele
inclui as mulheres.
_ Que eu amo o amor é verdade. Mas por esse amor eu
compreendo a soma de todos os amores, ou seja, o amor de
homem para mulher, de mulher para homem, o amor de mu-
lher por mulher, o amor de homem para homem e o amor de
ser humano pela comunidade de seus semelhantes. Eu amo
esse amor mas isso não quer dizer que eu não tenha amado as
mulheres que tive. Tenho a impressão que, àquelas que amei
realmente, me dei todo.
_ Acredito Vinícius. Acredito mesmo. Embora eu também
acredite que quando um homem e uma mulher se encontram
num amor verdadeiro, a união é sempre renovada, pouco impor-
tam as brigas e os desentendimentos: duas pessoas nunca são per-
manentemente iguais e issopode criar no mesmo par novos amores.

17
CLARICE L1SPECTOR DE CORPO IN I'EII(()

- É claro, mas eu ainda acho que o amor que constrói - Vinícius, você jd se sentiu sozinho na vida? Jd sentiu
para a eternidade é o amor paixão, o mais precário, o mais algum desamparo?
perigoso, certamente o mais doloroso. Esse amor é o único - Acho que sou um homem bastante sozinho. Ou pelo
que tem a dimensão do infinito. menos eu tenho um sentimento muito agudo de solidão.
- Vocêjd amou desse modo? - Isso explicaria o foto de você amar tanto, Vinícius.
- Eu só tenho amado desse modo. - O fato de querer me comunicar tanto.
- Você acaba um caso porque encontra outra mulher ou - Você sabe que admiro muito seus poemas, e, mais do
porque se cansa da primeira? que gostar, eu os amo. O que é a poesia para você?
- Na minha vida tem sido como se uma mulher me - Não sei, eu nunca escrevo poemas abstratos, talvez
depositasse nos braços de outra. Isso talvez porque esse amor seja o modo de tornar a realidade mágica aos meus próprios
paixão pela sua própria intensidade não tem condições de olhos. De envolvê-Ia com esse tecido que dá uma dimensão
sobreviver. Isso acho que está expresso com felicidade no mais profunda ê conseqüentemente mais bela.
dístico final do meu soneto "Fidelidade": "que não seja imor- - Reflita um pouco e me diga qual é a coisa mais impor-
tal posto que é chama / mas que seja infinito enquanto dure". tante do mundo, Vinícius?
- Você sabe que é um ídolo para a juventude? Serd que - Para mim é a mulher, certamente.
agora que apareceu o Chico, as mocinhas trocaram de ídolo, as - Você quer folar sobre sua música? Estou escutando.
mocinhas e os mocinhos? - Dizem, na minha família, que eu cantei antes de
- Acho que é diferente. A juventude procura em mim falar. E havia uma cançãozinha que eu repetia e que tinha
o pai amigo, que viveu e que tem uma experiência a trans- um leve tema de sons. Fui criado no mundo da música, mi-
mitir. Chico não, é ídolo mesmo, trata-se de idolatria. nha mãe e minha avó tocavam piano, eu me lembro de como
- Você suporta ser ídolo? Eu não suportaria. me machucavam aquelas valsas antigas.
- Às vezes fico mal-humorado. Mas uma dessas moças - Meu pai também tocava violão, cresci ouvindo mú-
explicou: é que você, Vinícius, vive nas estantes de nossos sica. Depois a poesia fez o resto.
livros, nas canções que todo mundo canta, na televisão. Você Fizemos uma pausa. Ele continuou:
vive conosco, em nossa casa. - Tenho tanta ternura pela sua mão queimada ...
- Qual é a artista de cinema que você amaria? (Emocionei-me e entendi que este homem envolve uma mu-
- Marilyn Monroe. Foi um dos seres mais lindos que lher de carinbo.) Vinícius disse, tomando um gole de uísque:
já nasceram. Se só existisse ela, já justificaria a existência dos - É curioso, a alegria não é um sentimento nem uma
Estados Unidos. Eu casaria com ela e certamente não daria atmosfera de vida nada criadora. Eu só sei criar na dor e na
certo porque é difícil amar uma mulher tão célebre. Só sou tristeza, mesmo que as coisas que resultem sejam alegres. Não
ciumento fisicamente, é o ciúme de bicho, não tenho outro. me considero uma pessoa negativa, quer dizer, eu não depri-
- Fale-me sobre sua música. mo o ser humano. É por isso que acho que estou vivendo
- Não falo de mim como músico, mas como poeta. num movimento de equilíbrio infecundo do qual estou ten-
Não separo a poesia que está nos livros da que está nas canções. tando me libertar. O paradigma máximo para mim seria: a

18 19
IlI' (,()Ill'll INII!IIl()
LARICE L1SI'EC I OR
"

se morte nem de longe se aproximou dessas emoções de que


calma no seio da paixão. Mas realmente não sei se é um
te falei.
ideal humanamente atingível.
_ Como é que você se deu dentro da vida diplomática, - Vocêse sente feliz? Essa, Vinícius, é uma pergunta idiota,
mas que eu gostaria que você respondesse.
você que é o antijormal por excelência, você que é livre por ex-
- Se a felicidade existe, eu só sou feliz enquanto me
celência?
_ Acontece que detesto tudo o que oprime o homem, queimo e quando a pessoa se queima não é feliz. A própria
inclusive a gravata. Ora, é notório que o diplomata é um felicidade é dolorosa.
Meditamos um pouco, conversamos mais ainda, Viní-
homem que usa gravata. Dentro da diplomacia fiz bons ami-
gos até hoje. Depois houve outro fato: as raízes e o sangue ClUS saiu.
Então telefonei para uma das esposas de Vinícius.
falaram mais alto. Acho muito difícil um homem que não
- Como é que você se sente casada com Vinícius?
volta ao seu quintal, para chegar ou pelo menos aproximar-
Ela respondeu com aquela voz que é um murmúrio de
se do conhecimento de si mesmo.
_ Como pessoa, Vinícius, o que é que desejaria alcançar? pássaro:
- Muito bem. Ele me dá muito. E mais importante
_ Eu desejaria alcançar outra coisa. Isso de calma no
do que isso, ele me ajuda a viver, a conhecer a vida, a gostar
seio da paixão. Mas desejaria alcançar uma tal capacidade de
amar que me pudesse fazer útil aos meus semelhantes. das pessoas.
_ Quero lhe pedir um favor: faça um poema agora mesmo. Depois conversei com uma mocinha inteligente:
Tenho certeza de que não será banal. Se você quiser, Menestrel. - A música de Vinícius, disse ela, fala muito de amor
e a gente se identifica sempre com ela.
fole o seu poema.
_ Meu poema é em duas linhas: você escreve uma pa- - Você teria um caso' com ele?
- Não, porque apesar de achar Vinícius amorável, eu
lavra em cima e a outra embaixo porque é um verso.
amo um outro homem. E Vinícius me revela ainda mais que
É assim:
eu amo aquele homem. A música dele faz a gente gostar
ainda mais do amor. E "de repente, não mais que de repente",
Clarice
ele se transforma em outro: e é o nosso poctinha como o
Lispector
chamamos.
Eis pois alguns segredos de uma figura humana grande
_ Acho lindo o teu nome, Clarice.
_ Você poderia dizer quais as maiores emoções que já e que vive a todo risco. Porque há grandeza em Vinícius de
teve? Eu, por exemplo, tive tantas e tantas, boas e péssimas, que Morais.
não ousaria falar delas.
_ Minhas maiores emoções foram ligadas ao amor. O
nascimento de filhos, as primeiras posses e os últimos adeu-
ses. Mesmo tendo duas experiências de quase morte - de-
sastre de avião e de carro - mesmo essa experiência de q ua-
21
20
DE CORPO INI'ElllO

essa natural má vontade que cerca todo o escritor que vende


livro, a idéia de que best-seller tem de ser necessariamente um
livro inferior. Some tudo isto, Clarice, e você não terá ainda
ÉRICO VERÍSSIMO uma resposta satisfatória à sua pergunta. Mas devo acrescen-
tar que há no Brasil vários críticos que agora me levam a
"Não sou profundo. Espero que me desculpem." sério, principalmente depois que publiquei O tempo e o vento.
(Bons sujeirosl)
- Você se sente realizado como escritor, Érico? Eu, por
exemplo, ainda não me sinto, e tenho a impressão de que será
assim até eu morrer.
- Realizado, não. Mas confesso que não me sinto frus-
Érico é escritor que não preciso apresentar ao público: trata- trado. Agora, acho que você tem todo o direito de conside-
se, com Jorge Amado, do único escritor no Brasil que pode rar-se realizada. (É pena que isso não seja, no escritor, uma
viver da vendagem de seus livros. Vendem como pão quente. questão de direito.) Você, na minha opinião, trouxe algo de
Recebido de braços abertos pelos leitores, no entanto a crítica novo e importante para a nossa literatura.
- E como homem, você se sente realizado? Você, Érico, é
muitas vezes o condena.
_ Érico, por que você acha que não agrada aos críticos e uma das pessoas mais gostáveis que conheci. Você é uma pessoa
humana de uma largueza extraordinária. Que é que você me
aos intelectuais?
_ Para começo de conversa, devo confessar que não diz disso?
me considero um escritor importante. Não sou um inovador. - A resposta é quase idêntica à pergunta anterior. Re-
Nem mesmo um homem inteligente. Acho que tenho alguns duzi ao mínimo as minhas frustrações. Sempre fui um sujeito
talentos que uso bem ... mas que acontece serem os talentos tímido e moderado, até no sonho, nos projetos. Tenho tudo
menos apreciados pela chamada 'crítica séria', como, por ou quase tudo quanto desejei, e muito mais do que ousei
exemplo, o de contador de histórias. Os livros que me deram esperar. A idéia de ser querido, digamos a palavra exata -
popularidade, como Olhai os lírios do campo, são romances amado, me agrada, me alegra mais do que a idéia de ser ad-
medíocres. Nessa altura me pespegaram no lombo literário mirado. Se você me perguntasse se sou um homem natural,
vários rótulos: escritor para mocinhas, superficial etc ... O para ser bem sincero, eu lhe confessaria que de certo modo
que vem depois dessa primeira fase é bastante melhor mas, moldei a minha própria imagem, a face do homem que eu
que diabo! pOLlca gente (refiro-me aos críticos apressados) se desejo que os outros vejam.
dá ao trabalho de revisar opiniões antigas e alheias. Por outro - Você trocaria seu público, que adora você, por uma crí-
lado, existem os 'grupos'. Os esquerdistas sempre me acharam tica que lhe fosse mais favorável?
'acomodado'. Os direitistas me consideram comunista. Os -Não.
moralistas e reacionários me acusam de imoral e subversivo. - Érico, sem interromper o assunto, estou me lembrando
Havia ainda essa história cretina de 'norte contra sul'. E ainda com saudade de Washington, eu como mulher de diplomata, e

22 23
IIE (OIU"O IN I 1111(( I
CI.AIUCE l.ISI'FC'1 ou

você trabalhando na OEA. Você se lembra de como eu fazia ser pintor (acabo de comprar uma caixa de tinias. Pintores
ninho na vida e na casa de uocês? Que é que você estava escre- do Brasil, alerta'). Meu primeiro livro de histórias - Fanto-
vendo naquela ocasião? Eu, por exemplo, estava escrevendo A ches - ainda leva a marca de minhas leituras da época: Oscar
maçã no escuro. Foi um período muito produtivo, no sentido Wilde, Bernard Shaw e o infalível Anatole France.
de trabalho e no sentido de uma amizade que se formou para - Surpreendo-me de nenhum cineasta ter feito um filme
baseado em algum de seus livros. Você gostaria de se ver no
sempre entre você, Mafalda e eu.
_ Quero que você saiba (e aqui falo também em nome cinema?
de minha mulher) que as melhores recordações que guardo - Uma companhia argentina filmou Olhai os lírios do
de nossa estada em Washington D.e. são as das horas que campo em 1946. O retrato foi também transformado num
passamos em sua casa, com você e sua gente. Detestava o filme, com gente de São Paulo. Nos Estados Unidos, Noite
meu posto da União Pan-Americana. Não consegui escrever, foi 'deformado' num teleplay, com Jason Robbards, Franchot
uma linha durante esses três anos burocráticos. O que sobrou Tone e E. G. Marshal1. Medonho! Todos os anos recebo pro-
de melhor desse tempo foi a nossa amizade. Você saiu da- postas de cineastas que querem filmar O Continente. Fica
quela chatice federal com um romance denso de substância tudo em vagas conversas. Sou péssimo homem de negócios.
Detesto discutir contratos e quando discuto saio perdendo.
humana e poética.
_ Qual é o seu personagem mais importante? O meu é - Sua fama é enorme, Érico. Se eu fosse famosa assim,
teria minha vida particular invadida, e não poderia mais escre-
sempre do livro que eu esteja escrevendo no momento.
_ O primeiro vulto que me vem à mente é o do Capi- ver. Como é que você se dá com a fama? Eu soube que o ônibus
tão Rodrigo. Depois penso em Floriano, meu sósia espiritual. de turistas em Porto Alegre tem como parte do programa mostrar
Mas não me decido a escolher. Prefiro dizer que os meus sua casa.
personagens mais importantes são as mulheres de O tempo e - É claro que a 'fama' tem um lado positivo - a sen-
sação de que a gente se comunica com os outros passa a exis-
o vento, como Bibiana e Maria Valéria.
_ Os críticos, ao que ouvi dizer, acham você pouco pro- tir para milhares de leitores. Não só como autor, através dos
personagens, como também como uma espécie de figura mi-
fundo. Que me diz disso?
_ Lembro-me de um escritor francês que costumava tológica. É engraçado. Essa história do ônibus me encabula
dizer que un pot de cbambre est aussi profond. Mas, falando muito. Mas eu cultivo a virtude da paciência. E detesto decep-
sério, concordo com os críticos: não sou profundo. Espero cionar os que me procuram, os que me querem conhecer
em carne e osso. Minha casa vive de portas abertas. Há noites
que me desculpem.
_ Quando foi, Érico, que você começou a escrever? E mo- em que temos de dez a vinte visitantes inesperados. Todas as
semanas recebo dezenas de estudantes que querem entrevistar-
tivado pelo quê?
_ Em menino, na escola, eu fazia 'primorosas' redações. me, e a gama vai do curso primário ao universitário. Pessoas
Grau dez. Foi ainda em Cruz Alta, atrás dum balcão de far- com casos sentimentais me procuram para desabafar. Em-
mácia, que escrevi o primeiro conto. Por quê? Não sei. Aí presto-lhes o ouvido, o olho, e não raro uma afetuosa aten-
me lembro que naquele tempo eu ainda pensava que podia ção. Freqüentemente consigo ajudar realmente um ou outro

24 25
111:CUItI'(i IN 1I lI/ti
'I.ARICE LlSI'ECTOR

e lá nos vamos. Gosto principalmente dos países latinos da


'paciente'. E isso me alegra. Mas pelo amor de Deus, Clarice,
Europa: França, Itália, Espanha, Portugal... Tenho uma fas-
não pense nem deixe que seus leitores imaginem que eu me
cinação enorme pela área mediterrânea. A Grécia e Israel me
levo a sério. encantaram. Vi recentemente a Tchecoslováquia num dos
_ Érico, qual foi a sua maior alegria como escritor?
momentos mais belos de sua história. No momento estou
_ O primeiro livro publicado? O primeiro traduzido?
preparando um livro de viagens - pessoas e lugares que
Não sei. Tive e continuo tendo muitas alegrias. Como escritor.
encontrei, certos momentos inesquecíveis que vivi - pre-
_ E como homem, qual foi a sua maior alegria?
texto para falar de pintura, música, paisagens, literatura, pro-
- Os filhos. Os netos.
blemas humanos, política erc.
_ De onde lhe vem a inspiração para o seu trabalho?
- Agora que publiquei um livro de história para crian-
_ Tenho pensado muito nisso. Não sei de onde vem
ças e outro meu vai sair por esses dias, interesso-me em saber o
isso a que chamamos inspiração por falta de melhor palavra.
que você pensa da literatura infontil no nosso país.
_ Você entraria na Academia Brasileira de Letras? Muita
- Devo dizer que só a semana passada é que li a história
gente boa termina lá.
do seu coelhinho. Acho que você usou a linguagem adequa-
_ Não. Respeito a Academia, onde vejo muito boa
da. Foi mesmo uma história contada ao Paulinho (que hoje
gente. Mas não tenho, nunca tive, a menor vontade de fazer
deve ser um Paulâo). Eu gostaria de voltar a escrever para
parte da ilustre companhia. Questão de temperamento.
crianças. As nossas crianças precisam livrar-se do Superman,
_ Você planeja de início a história ou ela vai se fozendo
do Batman. Mas ... que histórias poderíamos contar-lhes nesta
aos poucos? Eu, por exemplo, acho que tenho um vago plano in-
hora desvairada? Isto é um assunto para discutir. Nossa lite-
consciente que vai desabrochando à medida que trabalho.
ratura infantil ainda é muito pobre.
_ Planejo, mas nunca obedeço rigorosamente ao plano
- Que é que você mais quer no mundo, Érico?
traçado. Os romances (você sabe disso melhor que eu) são
- Primeiro, gente. A minha gente. A minha tribo. Os
artes do inconsciente. Por outro lado, estou quase a dizer
amigos. E depois vêm - música, livros, quadros, viagens ...
que me considero mais um artesão do que um artista. E com
Não negarei que gosto também de mim mesmo, embora não
isto você compreenderá melhor por que a crítica não me
me admire.
considera profundo.
_ Você agora percorreu meio mundo com Mafolda. O
que foi que mais impressionou você?
_ A Mafalda. A capacidade que ela tem de me com-
preender, ajudar, acompanhar e - de vez em quando -
dirigir, sem que este teimoso gaúcho serrano dê pela coisa ...
Herdei de meu avô tropeiro o gosto pelas andanças. Quero
sempre ver o que está pela frente. Mafalda tem alma calma
no melhor sentido da palavra. Quer logo estabelecer-se, radi-
car-se. Mas eu a arrasto para dentro de trens, ônibus e aviões,
27
26
DE COIUO IN II,IHU

sua carga literária. Publicou Crepusculdrlo quando tinha 19


anos. Um ano depois publicava Vinte poemas de amor e uma
canção desesperada, que até hoje é gravado, reeditado, lido e
ENTREVISTA RELÂMPAGO amado. Em seguida escreveu Residência na terra, que reúne
COM PABLO NERUDA poemas de 1925 a 1931, em fase surrealista. A terceira resi-
dência, com poemas até 1945, é um intermediário com uma
parte da Espanha no coração, onde é chorada a morte de Lorca,
e a guerra civil em geral que o tocou profundamente e des-
pertou-o para os problemas políticos e sociais. Em 1950,
Canto geral, tentativa de reunir todos os problemas políticos,
éticos e sociais da América Latina. Em 1954: Odes elementares,
Cheguei à porta do edifício de apartamentos onde mora em que o estilo fica mais sóbrio, buscando simplicidade maior,
Rubem Braga e onde Pablo Neruda e sua esposa Matilde se e onde se encontra, por exemplo, Ode à cebola. Em 1956,
hospedavam - cheguei à porta exatamente quando o carro novas odes elementares que ele descobre nos temas elemen-
parava e retiravam a grande bagagem dos visitantes. O que tares que não tinham sido tocados. Em 1957, Terceiro livro
fez Rubem dizer: "É grande a bagagem literária do poeta". das odes, continuando na mesma linha. A partir de 1958,
Ao que o poeta retrucou: "Minha bagagem literária deve pesar publica Estrauagario, navegações e regressos,Cem sonetos de amor.
Cantos cerimoniais e Memorial de Isla Negra.
uns dois ou três quilos".
Neruda é extremamente simpático, sobretudo quando No dia seguinte de manhã, fui vê-lo. Já havia respondido
usa o seu boné ("tenho poucos cabelos, mas muitos bonés", às minhas perguntas, infelizmente: pois, a partir de uma respos-
disse). Não brinca porém em serviço: disse-me que se me ta, é sempre ou quase sempre provocada outra pergunta, às
desse a entrevista naquela noite mesma só responderia a três vezes aquela a que se queria chegar. As respostas eram sucintas.
perguntas, mas se no dia seguinte de manhã eu quisesse falar Tão frustrador receber resposta curta a uma pergunta longa.
com ele, responderia a maior número. E pediu para ver as Contei-lhe sobre a minha timidez em pedir entrevistas,
perguntas que eu iria fazer. Inteiramente sem confiança em ao que ele respondeu: "Que tolice!"
mim mesma, dei-lhe a página onde anotara as perguntas, Perguntei-lhe de qual de seus livros ele mais gostava e
esperando só Deus sabe o quê. Mas o quê foi um conforto. por quê. Respondeu-me:
Disse-me que eram muito boas e que me esperaria no dia - Tu sabes bem que tudo o que fazemos nos agrada
seguinte. Saí com alívio no coração porque estava adiada a porque somos nós - tu e eu - que o fizemos.
minha timidez em fazer perguntas. Mas sou uma tímida ou- - Você se considera mais um poeta chileno ou da América
sada e é assim que tenho vivido, o que, se me traz dissabores, Latina?
tem-me trazido também alguma recompensa. Quem sofre - Poeta local do Chile, provinciano da América Latina.
de timidez ousada entenderá o que queto dizer. - O que é angústia? - indaguei-lhe.
Antes de reproduzir o diálogo, um breve esboço sobre - Sou feliz - foi a resposta.

28 29
'LAIUCE L1SPECTOR DE C()IU'() IN 11'IIlO

- Escrever melhora a angústia de viver? (E eu realmente surpreendi-me, não esperava uma har-
- Sim, naturalmente. Trabalhar em teu ofício, se amas monia de números).
teu ofício, é celestial. Senão é infernal. - Você está a par da poesia brasileira? Quem é que você
- Quem é l)eus? prefere na nossa poesia?
- Todos algumas vezes. Nada, sempre. - Admiro Drummond, Vinícius e aquele grande poeta
- Como é que você descreve um ser humano o mais com- católico, claudelino, Jorge de Lima. Não conheço os mais
pleto possível? jovens e só chego a Paulo Mendes Campos e Geir Campos.
- Político, poético. Físico. O poema que me agrada é o "Defunto", de Pedro Nava.
- Como é uma mulher bonita para você? Sempre o leio em voz alta aos meus amigos, em todos os
- Feita de muitas mulheres. lugares.
- Escreva aqui o seu poema predileto, pelo menos predi- - Que acha da literatura engajada?
leto neste exato momento? - Toda literatura é engajada.
- Estou escrevendo. Você pode esperar por mim dez - Qual de seus livros você mais gosta?
anos? - O próximo.
- Em que lugar gostaria de viver, se não vivesse no Chile? - A que você atribui o foto de que os seus leitores acham
- Acredite-me tolo ou patriótico, mas eu há algum você o 'vulcão da América Latina'?
tempo escrevi em um poema: - Não sabia disso, talvez eles não conheçam os vulcões.
- Qual é o seu poema mais recente?
Se tivesse que nascer mil vezes, - "Fim do Mundo". Trata do século XX.
Ali quero nascer, - Como se processa em você a criação?
Se tivesse que morrer mil vezes, - Com papel e tinta. Pelo menos essa é a minha receita.
Ali quero morrer", - A crítica constrói?
- Para os outros, não para o criador.
- Qual foi a maior alegria que teve pelo foto de escrever? - Vocêjá fez algum poema de encomenda? Se o fez foça
- Ler minha poesia e ser ouvido em lugares desolados: um agora, mesmo que seja bem curto.
no deserto aos mineiros do norte do Chile, no Estreito de - Muitos. São os melhores. Este é um poema.
Magalhães aos tosquiadores de ovelha, num galpão com - O nome Neruda foi casual ou inspirado em [an Neruda,
cheiro de lã suja, suor e solidão. poeta da liberdade tcheca?
- Em você o que precede a criação, é a angústia ou um - Ninguém conseguiu até agora averiguá-Ia.
estado de graça? - Qual é a coisa mais importante no mundo?
- Não conheço bem esses sentimentos. Mas não me - Tratar de que o mundo seja digno para todas as vidas
creia insensível. humanas, não só para algumas.
- l)iga alguma coisa que me surpreenda. - O que é que você mais deseja para você mesmo como
-748. indivíduo?

30 31
CLARICE LlSPECTOR

- Depende da hora do dia.


- O que é amor? Qualquer tipo de amor.
- A melhor definição seria: o amor é o amor.
- Você jd sofreu muito por amor?
- Estou disposto a sofrer mais.
- Quanto tempo gostaria você de ficar no Brasil?
- Um ano, mas depende de meus trabalhos.
E assim terminou uma entrevista com Pablo Neruda.
Antes falasse ele mais. Eu poderia prolongá-Ia quase que in-
definidamente, mesmo recebendo como resposta uma única
seta de resposta. Mas era a primeira entrevista que ele dava
no dia seguinte à sua chegada, e sei quanto uma entrevista
pode ser cansativa. Espontaneamente, deu-me um livro. Cem
sonetos de amor. E depois de meu nome, na dedicatória, assi-
nou: "De seu amigo Pablo". Eu também sinto que ele poderia
se tornar meu amigo, se as circunstâncias facilitassem. Na
contracapa do livro diz: "Um todo manifestado com uma
espécie de sensualidade casta e pagã: o amor como uma voca-
ção do homem e a poesia como sua tarefa".
Eis um retrato de corpo inteiro de Pablo Neruda nestas
últimas frases.

32

L.
UM HOMEM CHAMADO
HÉLIO PELEGRINO
"Se não sei perder, não ganho nada e terei sempre as mãos vazias."

Escolhi Hélio Pelegrino para um diálogo perfeitamente


possível sobretudo porque eu o considero um dos seres
humanos mais completos que conheço.
Qual é o traço rnarcante de Hélio? A tolerância, diga-
mos, e um amor que ele distribui quase sem sentir, amor no
sentido de amizade. Mas nem por isso ele é um 'bonzinho':
pelo contrário, é firme como ele só, e capaz de entrar em
violentas discussões e agregar-se ao que for importante. Com
todo o seu temperamento, é no entanto capaz de julgar uma
situação com grande isenção de espírito ou fazer uma crítica
literária de muita agudez. Como poeta, é ótimo também. E
- felizmente - não se trata de uma pessoa perfeita. É mais
uma pessoa se aperfeiçoando dia a dia. É bom estar com
Hélio PeIegrino: a gente se seme compreendido, sente-se ale-
gre porque ele é um ser humano profundo. Rir com ele é
ótimo, e chorar perro dele também deve dar certo, imagino.
Quando estou com Hélio eu me sinto valorizada como pes-
soa. Perguntei ao dr. Ivã Ribeiro, psicanalista como Hélio, e
trabalhando em salas contíguas, o que achava de meu entre-
vistado. Disse: "Custou-me e ainda custa desaprender e resis-
tir ao fácil ofício de fazer frases. Com o tempo me convenci
de que a frase pode transformar coisas vivíssimas em bichos
empalhados. Além disso, a pessoa de PeIegrino não são suas

53
r\.AIUU.II~I'H.IOlt ))1 (!lll!'U IN I 11tH!)

opiniões mas quem ele é e procura incessantemente a cada favor, posso dizer a você que, com freqüência, agarJo me p"
hora vir a ser. Quase não convivemos, quase não nos fre- Ias orelhas e me ponho ao trabalho. Há umas coisas valiosas
qüentamos, mas nunca ele é ausente para mim e espero que nas quais acredito, com muita força. Preciso dizê-Ias e vou
eu nunca seja para ele". dizê-Ias.
- Hélio, é bom viver, não é? h, pelo menos, a impressão
•• - Diga qual é a sua fórmula de vida. Eu queria imitar.
de que você me dá. - Há, no Diário íntimo de Kafka, um pequeno trecho
- Viver - essa difícil alegria. Viver é jogo, é risco. ao qual gostaria de permanecer para sempre fiel, fazendo dcl
Quem joga pode ganhar ou perder. O começo da sabedoria a minha fórmula de vida: "Há dois pecados humanos capitais,
consiste em aceitarmos que perder também foz parte do jogo. dos quais todos os outros decorrem: a impaciência e a prcgui-
Quando isso acontece, ganhamos alguma coisa de extrema- ça. Por causa de sua impaciência, foi o homem expulso d
mente precioso: ganhamos nossa possibilidade de ganhar. Se paraíso. Por causa de sua preguiça, não retornou a ele. Talvez
sei perder, sei ganhar. Se não sei perder, não ganho nada, e não exista senão um pecado capital, a impaciência. Por causa
terei sempre as mãos vazias. Quem não sabe perder, acumula da impaciência, foi o homem expulso, por causa dela não
ferrugem nos olhos e se torna cego - cego de rancor. Quan- consegue voltar. Tenhamos paciência - uma longa, inrcr-
do a gente chega a aceitar, com verdadeira e profunda hu- minável paciência - e tudo nos será dado por acréscimo".
mildade, as regras do jogo existencial, viver se torna mais do - Como encara sua profissão, Hélio?
que bom - se torna fascinante. Viver bem é consumir-se, é - A psicanálise é, para mim, a ciência da liberdade
queimar os carvões do tempo que nos constitui. Somos feitos humana. Quem fala em liberdade humana faia sempre em
de tempo, e isso significa: somos passagem, movimento sem comunicação e encontro. A psicanálise é, portanto, a ciência
trégua, finirude. A quota de eternidade que nos cabe está da comunicação e do encontro. O trabalho psicanalítico visa
encravada no tempo. É preciso garimpá-Ia, com incessante à construção de um encontro entre duas liberdades. Isto signi-
coragem, para que o gosto do seu ouro possa fulgir em nosso fica que a psicanálise visa ao encontro entre duas pessoas, já
lábio. Se assim acontece, somos alegres e bons, e a nossa que o centro da pessoa é liberdade. Não há liberdade sem
vida tem sentido. abertura ao Outro, sem consentimento na existência do Outro
- Por que você escreve esporadicamente e não assume de como tal e enquanto tal. Os distúrbios emocionais podem
uma vez por todas o seu papel de escritor e criador? ser conceituados em termos de limitações ou distorções nessa
- Poderia driblar a sua pergunta, respondendo com abertura, implicando uma perda de disponibilidade com res-
uma meia-verdade - escrevo menos esporadicamente do que peito ao Outro. Se minhas ansiedades básicas exigem de mim
publico. Mas esta seria uma saída falsa, e não quero ser falso. que faça do Outro um instrumento de meu esquema de segu-
Escrever e criar constituem, para mim, uma experiência ra- rança, já não posso aceitar o Outro como um fim em si
dical de nascimento. A gente, no fundo, tem medo de nascer, mesmo - isto é, em sua essência de ser-outro. Vou inventá-
pois nascer é saber-se vivo e - como tal - exposto à morte. 10 à imagem e semelhança de meus temores, torno-me o eixo
Escrevo mais do que devo para - quem sabe? - manter a de referência ao qual o Outro deve referir-se e submeter-se.
ilusão de que tenho um tempo longo pela frente. A meu A psicanálise, sendo um longo convívio humano anriaurori-

54 55
CI.ARICE I.ISI'EC ros 1)1>,(,(IIU'() IN II'IIH)

tário, é um chamamento à liberdade e à originalidade do pa- verdadeira generosidade e do entusiasmo - Deus comigo.
ciente e do analista, para que ambos assumam a alegria da O amor genuíno ao Outro me leva à intuição do todo e me
comunicação autêntica. compele à luta pela justiça e pela transformação do mundo.
- Como se desintoxicam os padres nos confessionários, - Qual a coisa mais importante para uma pessoa, como
depois de receberem tantas e tantas confidências? indivíduo?
- Receber confidências, esforçando-se por compreendê- - Pessoa e indivíduo, sem estarem em oposição, cons-
Ias, é um exercício de amor. O amor é, a meu ver, o grande tituem, no entanto, uma polaridade dialérica. O indivíduo,
desintoxicante, o antídoto mais poderoso contra os venenos em processo de individuaçâo, se personaliza. E, na medida
da alma. O padre, no confessionário, na medida que não se que o faz, transcende sua dimensão individual, insere-se num
torna um burocrata, encontra na própria atividade que exerce todo comunitário onde o indivíduo se perde, para que a pes-
o alimento para sua renovação espiritual e psicológica. Não soa possa ganhar-se. Creio que a coisa mais importante para
são as confidências que intoxicam. O que faz mal é o tédio, uma pessoa, como indivíduo, é morrer em si o indivíduo
o desinteresse, a ausência de simpatia, a cegueira ao Outro. para que a pessoa possa nascer e desenvolver-se. Na pessoa,
- Você quereria ter outras vidas? Era o meu sonho ter o indivíduo morre para renascer em nível mais alto, já não
várias. Numa eu seria só mãe, em outra vida eu só escreveria, como indivíduo, mas como um ser que - repartido - se
em outra eu só amava. torna capaz de compartilhar, esquecendo-se de si.
- Sou um homem de muitos amores - isto é, de - Que é o amor?
muitos interesses - e para tão longos amores, tão curta é a - Amor é surpresa, susto esplêndido - descoberta do
vida. Não há ninguém que consiga, no tempo de uma vida, mundo. Amor é dom, demasia, presente. Dou-me ao Outro
esgotar todas as suas possibilidades. Se me fossem dadas ou- e, aberto à sua alreridade, por mediação dele, recebo dele o
tras e outras vidas, gostaria de ser: a) filósofo profissional; b) dom de mim, a graça de existir, por ter-me dado.
romancista; c) marido de Clarice Lispecror, a quem me dedi- - Hélio, uma vez 11m dos meus filhos, quando tinha sete
caria com veludosa e insone dedicação; d) chofer de cami- anos, me perguntou como se chamava uma pessoa que não acre-
nhão; e) morador em Resende, apaixonado por uma moça ditava em Deus, mas amava Deus. Pergunto: quem é Deus?
triste, debruçada à janela de uma casa, saída de um quadro - Toda criança é, por excelência, um ser capaz de admi-
de Volpi; f) seresteiro, poeta, cantor, com a música de Chico rar-se. Por isso, toda criança é capaz do autêntico filosofar.
Buarq ue. A questão que o seu filho propôs, aos sete anos, justificaria
- Hélio, dif,a-me agora, qual é a coisa mais importante um longo ensaio teológico. Vamos, porém, à sua pergunta:
do mundo? Deus é o Ser em si mesmo, fundamento de rodos os entes,
- A coisa mais importante do mundo é a possibilida- abismo insondável de cujas profundezas rodos os entes bro-
de de ser-com-o-outro, na calma, cálida e intensa mutalidade tam. Deus é a raiz última de todas as coisas. A glória, a graça
do amor. O Outro é o que importa, antes e acima de tudo. e o solene mistério de todas as coisas decorrem da presell~-;l
Por mediação dele, na medida em que o recebo em sua gra- do sagrado nelas - sinal ontológico de sua proveniência.
ça, conquisto para mim a graça de existir. É esta fonte da Qualquer experiência de profundidade é, a meu ver, uma

56 57
nAIUG, 11~1'i',(.I()R

experiência autenticamente religiosa - conhecimento


Deus - embora a ela possa não corresponder uma profiss
de fé teísta.
- Hélio, você é analista e me conhece. Diga - sem elo~
- quem sou eu, já que você me disse quem é você. Eu pTe!
conhecer o homem e a mulher.
- Você, Clarice, é uma pessoa com uma dramática'
cação de integridade e de totalidade. Você busca, apaixoi
damente, o seu self- centro nuclear de confluência e
irradiação de força - e esta tarefa a consome e faz sofi
Você procura casar, dentro de você, luz e sombra; dia e noi
sol e lua. Quando o conseguir - e este é trabalho de u:
vida -, descobrirá, em você, o masculino e o feminino
côncavo e o convexo, o verso e o anverso, o tempo e a eter
dade, o finiro e a infinitude, o Yang e o Yin; na harmonia
TAO - totalidade -. Você, então, conhecerá homem e rr
Iher - eu e você: nós.

58
DINAH SILVElRA DE QUEIROZ
"Nasci preguiçosa, mas há 30 anos que não deixo de escrever."

Oinah é O que se chama uma pessoa de sucesso. Por mais


agruras por que tenha passado - e quem não passou? -
hoje é uma mulher de cabeça levantada, com um ar de sere-
nidade.
- Dinab, qual é o segredo de sua serenidade? Por que
você parece até fisicamente sobrepairar as coisas e pessoas?
Pausa, meditação:
- Primeiro, vou pensar se sou serena, mesmo. O que
me ocorre é que meu estado psíquico normal é, realmente, o
da serenidade. Mas posso passar a uma cólera bíblica, sem
nenhuma nuance. Aliás, nessas ocasiões, que são rápidas mas
turbulentas, bem me sobe à cabeça uma gota de sangue es-
panhol que possuo dentro da mescla racial. Em seguida, eu
clareio. Creio poder dizer, imitando e pedindo desculpas a
Nietzsche: "6 minha alma, eu te darei o direito de dizer não
como diz não a tempestade e dizer sim como diz sim o céu
aberto" .
- Eu sinto você tão segura de si própria. Como chegou a
essa segurança?
- Clarice, eu chorei, mas jamais pretendi fazer com os
amigos um velório compartilhado. Todos nós temos mais a
necessidade de queixa para com o amigo do que da alegria
partilhada. Posso dizer que meu sofrimento eu o procurei

59
CI AlUe!'. L1S1'!'.CTOIl DF. COItIlO IN IllltO

levar o mais possível dentro de mim. Só os mais íntimos de nenhum escritor malogrado porque, simplesmente, não
sabem disso. somos nós os donos do momento em que pisamos aquele
- Nós todos lutamos pela coragem de existir, pela con- lugar no qual os outros nos encontram. Será a sorte, será a
fiança em nós mesmos e nos outros. Você tem essa confiança? mão de Deus Pai, será a humildade de fazer e refazer? A
- Está fazendo trinta anos que escrevi Floradas na serra. verdade é que se a mensagem chega - nós estamos salvos,
Desde aí nunca mais deixei de escrever. Só em relação às somos escritores. Mas qualquer um de nós pode oferecer ge-
crônicas posso dizer que fiz mais de nove mil. (Agora sairá nerosamente' tudo o que tem dentro de seu espírito e vir a
um volume feito de minhas experiências aqui, em Roma e ser recusado, simplesmente' porque não achou aquele terreno
em Moscou, com o título das crônicas da Rádio Nacional: de encontro com () próximo, isto é, J. mcn!:dge!Tl não atingiu
Café da manhã.) Essa comunicação, que não é propriamente o alvo. O processo de criação de que se serve para compor
a minha literatura (Margarida La Rocque, Verão dos infiéis romances, contos etc. é um método que exige muita vivência
etc.), dá vasto apoio, apoio de massa, o que me torna mais com o assunto. Em geral, deito-me, fico estirada; todos pen-
segura de mim própria. sam que estou descansando. Simplesmente estudo alguma
- É sem dúvida um dos nossos escritores que mais produ- personagem ou circunstância. Mas, quando toda a narrativa
zem. Como é que você se organizou para isso? É uma questão está pronta dentro de mim, passo então a escrever, quase sem
de disciplina? interrupção. Livro parado, para mim, é livro impossiuel de vir
- Mas primeiro, tive que vencer uma terrível preguiça. a ser retomado. Nós mudamos internamente de forma conti-
Diz que nasci preguiçosa, você sabe? Quando comecei a escre- nuada como, ai de nós, mudam nossos retratos.
ver, ia para a cama, recostava-me, e trabalhava na maior in- - Qual de seus livros você prefere? E por quê?
dolência (o que em outros será contradição). Agora que passei - Você bem sabe que é Margarida La Rocque. Talvez o
a ditar (desde A muralha que o faço), encontro tempo para prefira porque eu o escrevi numa fase de grande sofrimento.
fazer oito crônicas por semana e geralmente um livro em Talvez deva a Margarida La Rocque uma expiação que pelo
cada dois anos, além de cumprir meus compromissos sociais menos garante essa aparente serenidade de que você falou.
de mulher de diplomata. - Casada com um diplomata, como é que você encara o
É casada com o ministro Dario Castro Alves. inevitável vaivém de um país para outro?
- O problema da criação artística sempre me fascinou e - Tive experiências inimagináveis. Dormi na Guiné,
ainda não perdi a esperança de um dia desmontar esse compli- almocei no Marrocos (com Rubem Braga), estive no Kremlin,
cado mecanismo. Poderia você me dizer qual é a marcha do seu conversei com Kruchev e depois com Paulo IV, que aparece
processo de criação? uma vez por semana na Rádio Vaticano. Isso quando Dario
- Todo escriror é um ser que procura lançar sua men- era cônsul-geral em Roma. Agora VOll para a bela Buenos
sagem como a clássica do náufrago que encerra o bilhete na Aires, gllStar meu espanhol que aprendi quando rui adida
garrafa e o atira às ondas. Muita vez, essa mensagem se perde. cultural em Madrid. Mas o apelo da nossa casa, do nosso lar
Mas acho que deve haver sempre, pelo menos, respeito por é inquietante. Sofro de nostalgia e me sinto muita vez como
esse ato de comunicação a distância. Nunca ri, nem caçoei a cigana que nem sequer tem a carroça. Todavia, meu marido

60 61
CLARICE I.ISPECTOR DE CORI'O INTEIRO

tem compensado tcda a saudade que sinto, pela compreen- Sei que você tem uma experiência direta da vida na
são que demonstra. União Soviética. Em fimção dessa experiência e de sua imagi-
- A diplomacia se checa com sua carreira literária? Você nação tão flrtil, pergunto-lhe como pensa que será a vida na
pode escrever em qualquer lugar do mundo? Rússia no ano 2000.
- É claro que devemos muita vez ficar apenas nos as- - Cada vez mais próxima do Ocidente.
suntos humanos, fugindo da política. A mulher é inserida, - Qual a sua opinião sobre a legitimidade, conveniência
ela também, no quadro em que o diplomata representa o seu ou vantagem de um dispêndio tão grande de recursos na luta
país. Isto é tão óbvio que o casamento de um diplomata deve espacial, quando nossos problemas na Terra ainda não foram
ser aprovado pelo gove.ü.o. Assim, a nosso medo, também resolvidos, quando precisamos de dinheiro para os que têm fome?
representamos o Brasil no círculo de relações diplomáticas. - O progresso é irreversível e impiedoso. Perguntaría-
Dentro, porém, de um limite de bom senso, bem se pode di- mos a Colombo se no seu tempo se deveria dar o dinheiro
zer muita coisa. Jamais interrompi minhas crônicas que vieram da empreitada a seus então míseros patrlcios? O progresso
de Madrid, Moscou, Roma, Paris, Helsinque, Nova Iorque. vem a dar juros muito tarde, ai de nós, que não os recebemos
Há tanto de humano nas descobertas que não chegamos a hoje. Mas esses juros virão, estejamos certos.
ficar frustrados se não pudermos fazer integral a crítica política. Depois Dinah disse:
- Dirijo-me agora à pioneira da ficção científica no - Clarice, considero-a o escritor que mais ama e serve
Brasil. Fomos agora testemunhas da epopéia da Apolo-Il. Você, a uma língua. O brasileiro tem uma incompatibilidade com
em ficção científica, poderia alcançar tão longe? o idioma que fala. Podemos ver isso na massa de traduções
- Agradeço o 'pioneira', preferindo interpretá-Io como que são outra coisa, e não a nossa língua escrita ou falada.
sendo desta última fase da f.c. A ficção científica se preocupa Como você conseguiu amar tanto e conhecer até nos míni-
mais com a reação do homem futuro do que com as desco- mos detalhes e prazeres esta língua não tão portuguesa assim,
bertas no cosmo. Essas aventuras espaciais que nós traçamos mas afinal, a nossa língua?
são geralmente uma fábula. É como diz Fausto Cunha: os - A palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia
marcianos somos nós. Devemos investigar e investigaremos amá-Ia.
muita coisa. Como será no futuro o filho nascido em labo-
ratório? O sexo, a desejada igualdade de classes? Como con-
seguiremos associar à nossa capacidade técnica, que a huma-
nidade de hoje já apresenta, o vertiginoso progresso, para o
qual o homem ainda não está preparado? Os mundos a des-
cobrir nos tentam, mas o ser humano e sua nova filosofia,
moralidade, senso de justiça, sua compreensão do sexo nas
épocas que se sucederam à nossa, tudo isso é extremamente
importante e nossa curiosidade não terminou só porque três
homens pisaram na Lua.

62 63
11E CORPO IN II',II()

momentos decisivos, mas creio que ainda sou moço demais


para saber se eram de fato decisivos esses momentos, No
final de contas, não sei se eles contaram ou não,
CHICO BUARQUE OU XICO BUARK - Tenho a impressão de que você nasceu com a estrela na
testa: tudo lhe correu fdcil e natural como um riacho de roça,
Estou certa se pensei que para você não é muito laborioso criar?
- E não é. Porque às vezes estou procurando criar algu-
ma coisa e durmo pensando nisso, acordo pensando nisso -
e nada. Em geral eu canso e desisto, No outro dia a coisa
estoura e qualquer pessoa pensaria que era gratuita, nascida
naquele momento, Mas essa explosão vem do trabalho anterior
Esta grafia, Xico Buark, foi inventada por Millôr Fernandes, inconsciente e aparentemente negativo, E como é seu trabalho?
numa noite no Antônio's. Gostei como quando eu brincava - Vem às vezes em nebulosa sem que eu possa concretizá-
com palavras em criança. Quanto ao Chico, apenas sorriu 10 de algum modo. Também como você. passo dias ou até anos,
um sorriso duplo: um por achar engraçado, outro mecânico meu Deus. esperando, E, quando chega. jd vem em forma de
e tristonho de quem foi aniquilado pela fama. Se Xico Buark inspiração, Eu só trabalho em forma de inspiração,
não combina com a figura pura e um pouco melancólica de - Até aí eu entendo, Clarice. Mas a mim, quando a
Chico, combina com a qualidade que ele tem de deixar os música ou a letra vêm, parece muito mais fácil de concretizar
outros o chamarem e ele vir, com a capacidade que tem de porque é uma coisa pequena, Tenho a impressão de que se
sorrir conservando muitas vezes os olhos verdes abertos e me desse idéia de construir uma sinfonia ou um romance, a
sem riso. Ele não é de modo algum um garoto, mas se exis- coisa ia se despedaçar antes de estar completa.
tisse no reino animal um bicho pensativo e belo e sempre - Mas Cbico, aí é que entra o sofrimento do artista: des-
jovem que se chamasse Garoto, Francisco Buarque de pedaça-se tudo e a gente pensa que a inspiração que passou nunca
Holanda seria da raça montanhesa dos garotos. mais há de vir.
Marcamos encontro às quatro horas porque às cinco - Se você tem uma idéia para um romance, você sem-
Chico tinha uma lição de música com Vilma Graça. Há um pre pode reduzi-Io a um conto?
ano está estudando teoria musical e agora começará com o - Não é bem assim, mas, se eu folar mais. a entrevistada
piano. Estávamos os dois em minha casa e a conversa trans- fica sendo eu. Você. apesar de rapaz que veio de uma grande
correu sem desentendimentos, com uma paz de quem enfim cidade e de uma fomília erudita. dá a impressão de que se des-
volta da rua. lumbrou. deslumbrando os outros com sua fola particular. O
- Você viveu ainda tão pouco que talvez seja prematuro que quero dizer 'e que você. ao ter crescido e adquirido maior
perguntar-lhe se você teve algum momento decisivo na vida e maturidade, deslumbrou-se com as próprias capacidades. entrou
qual foi. numa roda-viva e ainda não pôs os pés no chão. Que é que você
- Eu sou ruim para responder. Na verdade tive muitos acha: jd se habituou ao sucesso?

64 65
CLARICE LlSPECTOR OE CORIIO INTEIRO

-Tenho cara de bobo porque minhas reações são muito quem é facilmente enganado: é verdade que você é crédulo ou
lentas, mas sou um vivo. S6 que pôr os pés no chão no sen- está de olhos abertos para os charlatões?
tido prático me atrapalha um pouco. Tenho, por exemplo, - Não é que eu seja crédulo, sou é muito preguiçoso.
uma pessoa que me explica o contrato e não consigo prestar - O que é que você sentiu quando o maestro Karab-
atenção a certas coisas. O sucesso faz parte dessas coisas ex- chewsky dirigiu A banda no Teatro Municipal?
teriores que não contribuem nada para mim. A gente tem a - Claro que gostei, mas o que me interessa mesmo é
vaidade da gente, a gente se alegra, mas isso não é importante. criar. A intenção de Karabchewsky foi das melhores, inclusive
Importante é aquele sofrimento com que a gente procura corajosa. Eu quero ver ainda a coisa se repetir com outros
buscar e achar. Hoje, por exemplo, acordei com um sentimen- compositores populares.
to de vazio danado porque ontem terminei um trabalho. - Vocêfoi precoce em outras manifestações da vida? Fale
- Eu também me sinto perdida depois que acabo um sem modéstia.
trabalho mais sério. - Não, tudo o que eu fiz como garoto é de algum
- Tenho uma inveja: o meu trabalho de música está modo ligado com o que eu faço hoje, isto é, versinhos.
exposto a um consumo rápido e eu praticamente não tenho - Você quer fazer um versinho agora mesmo? Para você
o direito de ficar pensando numa idéia muito tempo. se sentir não vigiado, esperarei na copa até você me chamar.
- Talvez você ainda mude. Como é que Villa-Lobos cria- Chico riu, eu saí, esperei uns minutos até ele me chamar
va? Seria interessante para você saber. e ambos lemos sorrindo:
- Sei alguma coisa. Por exemplo, uma frase dele que
Tom Jobim me contou: diz que Villa-Lobos estava um dia Como Clarice pedisse
trabalhando na casa dele e havia uma balbúrdia danada em Um versinho que eu não disse
volta. Então o Tom perguntou: como é, maestro, isso não Me dei mal
atrapalha? Ele respondeu: o ouvido de fora não tem nada a Ficou lá dentro esperando
ver com o ouvido de dentro. É isso que eu invejo nele. Gos- Mas deixou seu olho olhando
taria muito de não ter prazo para entrega das músicas, e não Com cara de Juízo Final.
fazer sucesso: você gostaria, por exemplo, de sair para a rua
e começar a dar autógrafos no meio da rua mesmo? - A banda lembra música de nossas avós cantarem: tem
- Detestaria, Chico. Eu não tenho, nem de longe, o su- um ar saudoso e gostoso de se abrir um livro grosso e encontrar
cesso que você tem, mas mesmo o pequeno que tenho às vezes dentro uma flor seca que foi guardada exatamente para durar.
me perturba o ouvido interno. De onde você tirou essa modinha tão brasileira? Qual a fonte
- Então estamos quites. de inspiração?
- Todas as mães com filhas em idade de casar consenti- - Não sei não, é uma coisa difícil de conscientizar.
riam que casassem com você. De onde vem esse ar de bom rapaz? Lembro da banda mesmo não tendo vivido no interior, mas
Acho, pessoalmente, que vem da bondade misturada com bom- atrás de minha casa tinha um terreno baldio onde às vezes
humor, melancolia e honestidade. Você também tem o ar de havia circo, parque de diversões, essas coisas.

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e I ARleI' II~I'H IOIl Ill~ ('OIU'!) INI EIItu

Vi você na primeira passeata pela liberdade dos estu- - Estou na fase de procura. Ontem acabei um trabalho
dantes. Que é que você pensa dos estudantes do mundo e do que era só de música, que exigia prazo. Para uma canção nova,
Brasil em particular? eu estou sempre disponível.
_ No mundo é para mim difícil de falar, mas aqui no - No domínio da música popular, quem seria por sua
Brasil eu sinto em todos os setores um apodrecimento e a im- vez o seu ídolo?
possibilidade de substituição senão por mentalidades completa- - Muitos, e é por isso que é difícil citar.
mente jovens e ainda inatingidas por essa podridão. Aqui no - Seu pai é um grande pai. Quem mais na sua família
Brasil só vejo esta liderança. Um rapaz do Neto York Times en- eu chamaria de grande, se conhecesse?
trevistou-me e perguntou: está bem, vocês não querem censura - Minha mãe, apesar de ter um rnerro e cinqüenta e
nem repressão nem os métodos arcaicos de educação; mas se poucos de altura. Eu li muito e papai sempre me estimulava
vocês ganharem, quem vai substituir as autoridades? Por incrí- nesse sentido.
vel que pareça, o mundo político está envolvido por essa deca- - Qual é a coisa mais importante do mundo?
dência e acomodação. E você? Eu também te vi na passeata. - Trabalho e amor.
- Fui pelos mesmos motivos que você. Mudando de as- - Qual é a coisa mais importante para você, como indi-
sunto, Chico, você já experimentou sentir-se em solidão? Ou víduo?
sua vida tem sido sempre esse brilho tão justificado? Chico, um - A liberdade para trabalhar e amar.
conselho para você:fique de vez em quando sozinho, senão você - O que é amor?
será submergido. Até o amor excessivo dos outros pode submer- - Não sei definir, e você?
gir uma pessoa. - Nem eu.
- Também acho e sempre que posso faço a minha re-
tirada.
- Na música chamada clássica, apesar de ela englobar
compositores aos quais o classicismo não poderia ser aplicado,
nessa música o que você prefere?
- Aí não é questão de preferência, é costume para mim.
Tenho sempre à mão um Beethoven.
- Sua família preferia que você seguisse a vocação de
outros talentos seus que em aparência, pelo menos, são mais
asseguradores de um futuro estável?
- No começo sim. Logo que entrei para a arquitetura,
quando comecei a trocar a régua T pelo violão, a coisa parecia
vagabundagem. Agora (sorri) acho que já se conformaram.
- Você está compondo agora alguma coisa e com letra sua
mesma? Sua letra é linda.

68 69
1)10 ( UlU'O IN II!II(O

cionar o seu tudo, pois não quero invadir ma alma. Quero S/tln','
por que você pinta e quero saber por que as pessoas pintam.
Quero saber que é que você faria em matéria de arte se não
DJANlRA fosse pintura. Quero saber como é que vocêfoi andando a ponlo
de se chamar Djanira. E quero a verdade, tanto quanto você
"Sou uma autodidata em tudo." possa dar sem ferir-se a si própria. Se você quiser me enganar,
me engane, pois não quero que nenhuma pergunta minha faça
você sofrer. Se você sabe cozinhar, diga, porque tudo o que vier
de você eu quero.
- A gente pinta, disse Djanira, como quem ama, nin-
guém sabe por que ama, a gente não sabe porque pinta.
Como não amar Djanira, mesmo sem conhecê-Ia pessoal- - Eu também não sei porque escrevo.
mente? Eu já amava o seu trabalho, e quanto - e quanto. - A gente não sabe.
Mas quando se abriu a porta e eu a vi - parei e disse: - Conte um pouco de sua infância.
- Espere um pouco, quero ver você. - Foi muito sofrida, não vale a pena falar, não vale a
E vi - eu vi mesmo - que ela ia ser minha amiga. pena relembrar.
Ela tem qualquer coisa nos olhos que dá a idéia de que o - Mas você sabe que só relembrando de uma vez, com
mistério é simples. Não estranhou o fato de eu ficar olhando toda a violência, é que a gente termina o que a infância sofrida
para ela, até eu dizer: nos deu?
- Pronto, agora já conheço você e posso entrar. - De certa maneira acho que é verdade.
Dj.mira tem a bondade no sorriso e no resto, mas não - Por que você niío comera já?
uma bondade morna. Nem é uma bondade agressiva. Djanira - Eu fui uma menina criada no Sul do Brasil, entre
tem em si o que ela dá no seu trabalho. É pouco isso? Nunca, Paraná e Santa Catarina. A maior parte do tempo vivi numa
isso é tudo. Isso é a veracidade do ser humano dignificado cidadezinha, em Porto União, União da Vitória: são duas ci-
pela simplicidade profunda que existe em trabalhar. dades juntas. Metade é Paraná e outra metade é Santa Cata-
Sentamo-nos, eu sem tirar os olhos do rosto dela, ela me rina. Aí meu pai teve consultório de dentista. Muito criança
examinando com bondade, sem me estranhar nem um pouco. ainda meus pais se separaram. Passei mais de vinte anos sem
Não se deve escrever Djanira e sim DJANIRA. ver meu pai. E um dia publiquei um anúncio no jornal A
- Djanira, você é uma criatura fechada. E eu também. Noite procurando meu pai. Na primeira edição do anúncio
Como vamos fazer? O jeito é falar a verdade. A verdade é mais apareceu um dentista que conhecia muito meu pai e esta foi
simples que a mentira. a primeira notícia que tive dele. Ele era muito conhecido
Ela me olhou profundamente. E eu continuei, com esse porque era dentista itinerante: nunca teve pouso, ia tratando
tipo de timidez que sempre foi a minha: de dentes de cidade em cidade. Quando foi embora, disse:
- Eu quero saber tudo a seu respeito. E cabe a você se/e- "Vou viajar e depois venho buscar Djanira". E não veio. Eu

70 7\
CI.AIUCI\ I.ISI'ECTOR DE CORPO IN'I'EIIW

não podia ser internada num colégio por ser pequena demais. Eu vi nas cores de marfim
Então uma família tomou conta de mim. Mas nessa casa um elefante selvagem
fiquei enjeitada, trabalhando. que viera das índias
- Quando é que você começou a pintar? oferecendo-me caminhos
- Com vinte e quatro anos. Em pequena eu não tinha onde poderia
oportunidade porque vivia trabalhando. perigosamente
- Qual foi a sua maior alegria na vida? fechar meus olhos
- Foi quando me encontrei com a pintura. e partir, partir ...
- E como é que você se encontrou com a pintura?
- Nasceu de uma brincadeira quando eu estava inter- Mas era pecado
nada no sanatório de tuberculose. Eu disse que sabia fazer e viajei no pecado.
um quadro melhor do que o que estava pendurado na secre- Ao infinito viajei
taria. O que fiz então foi um desenho. Desenhei Cristo. Então e perdi-me no tempo
o interesse acordou em mim. Quando voltei para o Rio matri- que era pecado.
culei-me no Liceu de Artes e Ofícios. Então, cada vez eu
desenhava tudo, tudo. Até que conheci Marcier, que me des- Djanira então falou:
cobriu e tornou-se meu professor. E então eu me vi num - Quando uma pessoa se faz por ela própria é porque
mundo que era novo para mim. tem algo dentro de si que não se acomoda a uma vida
- Djanira, nunca perguntei a ninguém: você éfeliz? Mas comum, não é?
a você, que sofreu tanto, pergunto. - Sei disso na minha própria carne.
- Sou. Porque ninguém pode ser inteiramente feliz - Então essa coisa vem por si só, descobrindo-se. Apesar
nem inteiramente infeliz. de ser um caminho árduo, não deixa de ser também um cami-
- Se você não tivesse se encontrado com a pintura, que nho cheio de encantos e de um sabor de luta. Mesmo a gente
forma de arte você crê que seria sua? não sendo compreendida, existe uma força interior que nos
- Possivelmente a música. Mas dependeria de um en- alimenta em todos os reveses. É muito curioso: por que será
contro como com a pintura. Sei que quando eu tivesse me que a gente luta tanto para poder produzir uma obra de arte?
alcançado humana e intelectualmente, a pintura ia de qual- - Acho, Djanira, que é para sobreviver.
quer forma cruzar o meu caminho. - Mas para sobreviver naquilo que a gente quer. Uma
Ficamos em grande silêncio. Provavelmente mergulha- criatura como eu, que sou autodidata em tudo, que tenho as
das ambas nas nossas vidas mútuas. Como não posso transmi- minhas dificuldades e que toda a minha vida tem sido procu-
tir aos leitores a profundidade de nosso silêncio, preencho-o rar superar a vida comum, na sociedade em que vivemos, pro-
reproduzindo um poema de Djanira. Chama-se "Viagem". cura um meio para alcançar aquilo que é uma profissão e uma
E é assim: vocação. Porque tudo o que se faz, o que eu faço, não basta.
- O que é que você queria alcançar, Djanirai Eu também

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<:1"1\1{ I'. I.ISI'FCIOR Il\': Clllll'll IN II!IIU)

procuro alcançar alguma coisa que não sei o que é. Você sabe o trabalho.
que é? O que é amor?
_ É uma coisa ainda mais imponderável que está dentro - Aquilo que se pode dar a rodas as coisas que a gen-
da gente. Se um dia a gente chegasse a ficar satisfeita com o te faz.
quc a gente produziu, seria o fim. P.S.: Esqueci de dizer que, quando Djanira quebrou a
_ Também acho. Mas será que somos capazes de desco- clavícula direita, ficou desesperada porque não podia pintar.
brir finalmente o que procurávamos? E de repente deu um grito que fez seu marido ir correndo
_ A evolução da arte é muito lenta, todas as coisas do para ela. É que, no desespero de querer pintar, experimen-
espírito são lentas. tou usar a mão esquerda e, para sua surpresa e enorme ale-
_ Você quer dizer com isso que a procura dura o tempo gria, descobriu que era uma perfeita ambidestra.
de uma vida? Mota foi me levar em casa. Ele e Djanira se despedem
_ É. A época em que nós vivemos é dinâmica, já se dando-se dois a três beijos na boca. Achei tão boni to.
pensa em ir à Lua. O mistério que existia na vida já não é
mais mistério.
_ Discordo, Djanira. O ser humano nunca descobrirá o
mistério, mesmo que chegue a morar na Lua.
- O que você vê hoje em dia com todas essas descober-
tas científicas é um mundo que vive em grande insatisfação.
Só se ouve falar em guerras. Politicamente os homens não se
entendem. Sim, acho que o homem descobre todas essas coi-
sas, mas o mistério ele não descobre.
- Como é o seu processo de elaboração de trabalho?
_ Minha pintura é muito cheia de Brasil, pelo menos
é esse o meu propósito. E por isso, então, viajo muito pela
nossa terra.
_ Djanira, eu queria que você dissesse alguma coisa aos
pintores principiantes do Brasil.
_ Há uma turma de jovens que está fazendo coisas
muito boas, e gosto muito. Digo a eles para continuar a traba-
lhar, e muito, olhando para dentro de nossa terra.
- Qual é a coisa mais importante do mundo?
- A paz.
_ Qual é a coisa mais importante para uma pessoa como
indivíduo?

74 75
SCLIAR
"Gostaria que meus quadros incutissem l:sperança e [orça a todos."

Há muito tempo eu não via Scliar - acho que desde o tempo


áureo da revista Senhor - de modo que os primeiros mo-
mentos de nosso encontro foram gastos em efusões mútuas
de amizade. Eu simplesmente gosto de Scliar. Isso é tão sim-
ples. E independente da grande admiração que tenho por ele.
Bem, mas havia uma entrevista para fazer, ficamos mais
sérios e comecei:
- Scliar; você pinta desde quando?
- Há o que eu me lembro e há o que me contam.
Com dez anos de idade colaborava na imprensa do Rio Gran-
de do Sul, na página infantil, escrevendo contos, poemas,
inventando lendas e pouco depois ilustrando esses mesmos
trabalhos. Eu nem me dei conta da passagem de ilustração
para uma preocupação com os problemas de pintura. Aliás,
preocupação de tal ordem que repeti dois anos de ginásio,
por não lhe dar a devida importância. Já nessa época, em
1935, eu participava de uma primeira exposição coletiva em
Porto Alegre e depois organizava com amigos pintores a As-
sociação de Artes Plásticas Francisco Lisboa (o Aleijadinho).
Não demos o nome de Aleijadinho com medo de que nos
chamassem de 'os aleijadinhos' ... Contam que comecei a pin-
tar e a desenhar aos quatro ou cinco anos de idade, quando,
desejando aprender a tocar piano, e a família achando que

87
CI.ARICE I.ISI'ECTOIl DE COIU'() IN ruuo

eu primeiro deveria aprender a ler e a escrever, vinguei-me - Exato. As circunstâncias ajudam a que mantenha
riscando todas as paredes internas e externas da nossa casa. este ponto de vista, uma vez que não existe mais uma cópia
Nunca mais parei de fazer isso ... para provar o contrário ... (Nós dois rimos). Em 1948, em
- Quer dizer que você poderia ter sido um grande escritor minha estada em Paris, me convenci de que a pretensão de
ou um grande concertista, pois grande você seria de qualquer repetir Leonardo da Vinci era exorbitanre e, estando con-
modo. Se você não se encontrasse com a pintura, que foria? vencido de que talento e pretensão não eram suficientes,
- Cinema. decidi me concentrar na pintura, que já o trabalho não seria
- Que tipo? pouco nesta vida.
- Aliás cinema eu já fiz. Desde que me conheço fui Neste momento fomos interrompidos pela chegada da
um fascinado por cinema e devo em parte a meu pai, um fotógrafa. E depois ele trouxe os quadros para a sala. E, se
homem sequioso de conhecimento e arte que, muito garoto, fosse questão de jurar, eu juraria que Scliar está numa fase
me levava para assistir a filmes do cinema expressionista ale- nova maravilhosa. Scliar está subindo cada vez mais e expe-
mão da década de vinte a trinta, filmes que produziram tre- rimentando sempre. Mas continua a fazer retratos. Inclusive
mendo impacto na minha sensibilidade. Anos mais tarde, acha que fazer retratos é uma grande disciplina.
em São Paulo, meu contato com Paulo Emílio Sales Gomes Scliar me diz que gostaria de falar sobre sua responsa-
e pouco depois em Paris também com ele, na Cinemateca bilidade.
Francesa, eu redescobri fantásticas emoções já vividas quando - Acho que quando uma pessoa estrutura sua profissão,
garoto, revendo filmes que guardava perfeitos na memória. assume uma responsabilidade para consigo mesma e para com
Em 1943, no Rio, em contato com Rui Santos, então jovem os outros. Creio que já deves ter percebido que sou um
cinegrafista que trabalhava para 'atualidades' e sonhava em otimista, porque creio nos destinos da humanidade. Isso pode
realizar filmes de sua autoria, eu me vi convidado para fazer te parecer vago, mas me considero um homem rico de tudo
um filme. Realizei, com ajuda de Rui Santos na câmara, um o que os outros construíram para mim. Minha responsabili-
documentário chamado Escadas, sobre o ambiente em que dade começa no instante em que me dou conta disso e desejo
viviam os pintores, meus amigos, Maria Helena Vieira da retribuir. Por pouco que eu f.1ç:l, se conseguir estimular idéias
Silva, e Arpad Szenes. Pretendi mostrar o ambiente em que e sentimentos e outras coisas que não sei, naqueles que obser-
eles trabalhavam e provar que mesmo as aparentes abstra- varem os meus trabalhos, alguma coisa estarei construindo.
ções ou aparentes dificuldades de leitura em seus quadros Ficamos algum tempo em silêncio.
nasciam de uma vivência, de um contato íntegro com o am- - Clarice, acho que uma coisa eu aprendi na Europa,
biente novo que eles refletiam em termos de pintura na sua depois de uma primeira viagem como soldado da FEB, quando
obra. Como estás vendo, era um filme pretensioso. Resultou descobri que a vida é uma coisa fantástica e que deve ser vivi-
num filme bonito como fotografia, misterioso como lingua- da todos os instantes: houve então uma primeira modificação
gem e, o fato de ter sido vaiado em muitas sessões, segundo substancial em mim e em minha pintura. Até então eu mos-
me contaram, me convenceu na ocasião de que ... trara em meus quadros a minha comoção diante da miséria,
- ... tinha feito obra de arte? o meu protesto contra uma sociedade que isso criava. Na volta

88 89
CI.AllICE I.ISI'ECTO!t I) I' ( ()I((' () IN I "1111)

da Itália, me vi redescobrindo a beleza de um objeto, a beleza - Scliar. qunl é a coisa mais importante do nuoulo?
de uma flor, a beleza de um movimento, me vi em idílio com - O homem.
o mundo, com uma saúde que, por mais conspurcada pela - Qual é a coisa mais importante para uma pessoll C01l/0
sociedade, explodia apesar de tudo com uma força de sol. indivíduo?
(Está bem isso, Scliar, isso me explica em parte como, - O ser respeitado como homem e o saber respeitar os
apesar de nossa forma social, conseguimos dormir de noite.) outros.
- Eu não creio, continuou Scliar, que essa posição faça - O que é amor?
de minha pintura uma arte alegre. Mas não é uma arte ne- - É estar integrado nas coisas que me estimulam por
gativa também. todos os poros.
Falamos de Djanira. E Scliar disse:
- Ela é uma força da natureza. Por isso não há doença
que possa abatê-Ia.
(Amém.)
Contei que entrevistara Fayga Ostrower, Djanira e ele.
Scliar comentou:
- São três artistas de formação diversa.
Silêncio.
- Para mim que fui um pintor teimoso, mas que não
vivia profissionalmente de meu trabalho, vivo nesses últi-
mos anos, em que encontrei um público interessado e que
acompanha tudo o que eu faço, vivo surpreendido até hoje e
muitas vezes acordando sem compreender exatamente o que
está acontecendo. Acho que a comunicação é fundamental e
eu sou um homem que gosta de gente, que tem confiança
nos homens que trabalham e produzem tudo aquilo que nos
rodeia. O que eu desejaria era conseguir que meus quadros
fossem uma espécie de esperanto e incurissem esperança e
força a todos.
Silêncio.
- Todas as coisas que eu lhe disse não impedem que eu
seja um homem isolado. Mas acho que isso é próprio da con-
dição de quem produz uma obra de arte. Mas penso também
que essa mesma obra se multiplica, se amplia, se transforma
em algo que eu não podia prever nos olhos dos que me vêem.

90 91
DE COIlI'() IN ruso
erudito e mais sério fica na gaveta. Que não haja mal-cntcn-
dido: a música popular considero-a seriíssirna. Será que hoje
em dia as pessoas estão lendo como eu lia quando garoto,
TOM]OBIM tendo hábito de ir para a cama com um livro antes de dor-
mir? Porque sinto uma espécie de falta de tempo da huma-
"Minhas sinfonias estão inéditas." nidade - o que vai entrar mesmo é a leitura dinâmica. Que
é que você acha?
- Sofro se isto acontecer, que alguém me leia apenas no
método do vira-página dinâmico. Escrevo com amor e atenção
e ternura e dor e pesquisa, e queria de volta, como mínimo,
uma atenção e um interesse como o seu, Tom. E no entanto o
Tom Jobim e eu já nos conhecíamos: ele foi o meu padrinho cômico é que eu não tenho mais paciência de ler ficção.
no Primeiro Festival de Escritores, quando foi lançado meu - Mas aí você está se negando, Clarice!
livro A maçã no escuro. E ele fazia brincadeiras: segurava o li- - Não, meus livrosfelizmente para mim não são super-
vro na mão e perguntava: quem compra? quem quer comprar?
lotados de fatos, e sim da repercussãodos fatos no indivíduo.
Para este diálogo, marcamos às seis da tarde: às seis e trinta e
Há quem diga que a literatura e a música vão acabar. Sabe
cinco tocavam a campainha da porta. E era o mesmo Tom
quem disse?Henry Mil/er. Não sei se ele queria dizer para já
que eu conhecia: bonito, simpático, com um ar puro malgré
ou para daqui a trezentos ou quinhentos anos. Mas eu acho
lu i, com os cabelos um pouco caídos na testa. Um uísque na que nunca acabarão.
mesa e começamos quase que imediatamente a entrevista. Riso feliz de Tom:
- Como é que você encara o problema da maturidade? - Pois eu, sabe, também acho.
_ Tem um verso do Orummond que diz: "A madure- - Acho que o som da música é imprescindível para o ser
za, esta horrível prenda ... " Não sei, Clarice, a gente fica mais humano e que o uso da palavra falada e escrita são como a mú-
sica, duas coisas das mais altas que 120S elevam do reino dos
capaz, mas também mais exigente.
- Não faz mal, Tom, a gente exige bem. macacos, do reino animal.
_ Com a maturidade a gente passa a ter consciência - E mineral também, e vegetal também! (Ele ri.) Acho
de uma série de coisas que antes não tinha, mesmo os ins- que sou um músico que acredita em palavras. Li ontem o
tintos os mais espontâneos passam pelo filtro. A polícia do teu O búfalo e a Imitação da rosa.
espaço está presente, essa polícia que é a verdadeira polícia - Sim, mas é a morte às vezes.
da gente. Tenho notado que a música vem mudando com os - A morte não existe, Clarice. Tive uma (uma com agá:
meios de divulgação, com a preguiça de se ir ao Teatro Mu- hurna) experiência que me revelou isto. Assim como também
nicipal. Quero te fazer esta pergunta, Clarice, a respeito da não existe o eu nem o euzinbo nem o euzão. Fora essa expe-
leitura dos livros, pois hoje em dia estão ouvindo televisão e riência que não vou contar, temo a morte vinte e quatro horas
rádio de pilha, meios inadequados. Tudo o que escrevi de por dia. A morte do eu, eu te juro, Clarice, porque eu vi.

118 119
DE CORPO IN 11'11(()
CLARICE LlSI'ECTOR

Tem alguma coisa além do eu, Tom? Claro, os artistas devem preservar a alegria do mundo. Em-
- Além de tudo {ri} e vivam os estudantes! Se eu não bora a arte ande tão alienada e s6 dê tristeza ao mundo. Mas
defender os estudantes, estou desprotegendo meus filhos. Se não é culpa da arte porque ela tem o papel de refletir o
esse eco do sucesso não nos interessa em vida, muito menos mundo. Ela reflete e é honesta. Viva Oscar Niemeyer e viva
depois da morte. Isso é o que eu chamo de mortalidade. Villa-Lobosl Viva Clarice Lispector! Viva Antônio Carlos
- VtJcêacredita na reencarnação, Tom? Jobim! A nossa, Clarice, é uma arte que denuncia. Tenho
- Não sei. Dizem os hindus que só entende de reen- sinfonias e músicas de câmara que não vêm à tona.
carnação quem tem consciência das várias vidas que viveu. - VtJcênão acha que é dever seu o de fazer a música que
Evidentemente não é meu ponto de vista: se existe reencar- sua alma pede? Pelas coisas que você disse, suponho que signifi-
nação s6 pode ser por um despojamento. ca que o nosso melhor está dito para as elites?
Dei-lhe então a epígrafe de um de meus livros: é uma - Evidentemente que nós, para nos expressarmos,
frase de Bernard Berenson, crítico de arte: "Uma vida comple- temos que recorrer à linguagem das elites, elites estas que
ta talvez seja aquela que termina em tal identificação com o não existem no Brasil... Eis o grande drama de Carlos Drum-
não-eu que não resta um eu para morrer". mond de Andrade e Villa-Lobos.
- Isto é muito bonito, é o despojamento. Caí numa - Para quem você faz música e para quem eu escrevo?
armadilha porque sem o eu, eu me neguei. Se nós negamos - Acho que não nos foi perguntado nada a respeito, e,
qualquer passagem de um eu para outro, o que significa reen- desprevenidos, ouvimos no entanto a música e a palavra, sem
carnação, então a estamos negando. tê-Ias realmente aprendido de ninguém. Não nos coube a
- Não estou entendendo nada do que nós estamos falando, escolha: você e eu trabalhamos sob uma inspiração. De nos-
mas faz sentido. Como podemos, Tom, falar do que não enten- sa ingrata argila de que é feito o gesso, ingrata mesmo para
demos? Vttmos ver se na próxima reencarnação nós dois nos en- conosco. A crítica que eu nos faria, Clarice, nesse confortá-
contramos mais cedo. Que é que você acha do fato da liderança vel apartamento no Leme, é de sermos seres rarefeitos que
do mundo estar hoje na mão dos estudantes? s6 se dão em determinadas alturas. A gente devia se dar mais,
- Acho que não podia ser de outra forma e que venham a toda hora, indiscriminadamente. Hoje quando leio uma
os estudantes. Vladimir sabe disso. partitura de Srravinski ainda mais sinto uma vontade irre-
- A sociedade industrial organiza e despersonaliza demais primível de estar com o povo, embora a cultura jogada fora
a vida. VtJcê não acha, Tom, que está reservado aos artistas o volte pelas janelas - estou roubando C.D.A.
papel de preservar a alegria do mundo? Ou a consciência do - Por que nós todos somos parte de uma geração quem
mundo? sabe se fracassada?
- Sou contra a arte de consumo. Claro, Clarice, que - Não concordo absolutamente! - disse Tom.
eu amo o consumo ... Mas do momento em que a estandar- - É que eu sinto que nós chegamos ao limiar de portas
dização de tudo tira a alegria de viver, sou contra a indus- que estavam abertas - e por medo ou pelo que não sei, não
trialização. Sou a favor do maquinismo que facilita a vida atravessamos plenamente essasportas. Que no entanto têm nelas
humana, jamais a máquina que domina a espécie humana. já gravado nosso nome. Cada pessoa tem uma porta com seu

120 121
CLARICE LlSPECTOR DE CORPO INTEIRO

nome gravado, Tom, e é só através dela que essa pessoa perdida fores do Carnegie Hall. Sempre fugi do sucesso, Clarice,
pode entrar e se achar. como o diabo foge da cruz. Sempre quis ser aquele que não
- Batei e abrir-se-vos-à. vai ao palco. O piano me oferecia, de volta da praia, um
- Vou confessar a você, Tom, sem o menor vestígio de mundo insuspeitado de ampla liberdade - as notas eram
mentira: sinto que se eu tivesse tido coragem mesmo, eu jd teria todas disponíveis e eu antevi que se abriam os caminhos,
atravessado a minha porta, e sem medo de que me chamassem que tudo era lícito, e que se poderia ir a qualquer lugar des-
de louca. Porque existe uma nova linguagem, tanto a musical de que fosse inteiro. Subitamente, sabe, aquilo que se ofere-
quanto a escrita, e nós dois seríamos os legítimos representantes ce a um menor púbere, que o grande sonho de amor estava
das portas estreitas que nos pertencem. Em resumo e sem vaida- lá e que este sonho tão inseguro era seguro, não é, Clarice?
de: estou simplesmente dizendo que nós dois temos uma vocação Sabe que a flor não sabe que é flor. Eu me perdi e me ga-
a cumprir. Como se processa em você a elaboração musical que nhei, enquanto isso sonhava pela fechadura os seios de minha
termina em criação? Estou simplesmente misturando tudo, mas empregada. Eram lindos os seios dela através do buraco da
não é culpa minha, Tom, nem sua: é que esta entrevista foi se fechadura.
tornando meio psicodélica. - Tom, você seria capaz de improvisar um poema que
- A criação musical em mim é compulsória. Os anseias servisse de letra para uma canção?
de liberdade nela se manifestam. Ele assentiu e, depois de uma pequena pausa, me ditou
- Liberdade interna ou externa? o que se segue:
- A liberdade total. Se como homem fui um pequeno
burguês adaptado, como artista me vinguei nas amplidões Teus olhos verdes são maiores que o mar.
do amor. Você desculpe, eu não quero mais uísque por causa Se um dia eu fosse tão forte quanto você
de minha voracidade, tenho é que beber cerveja porque ela eu te desprezaria e viveria no espaço.
locupleta os grandes vazios da alma. Ou pelo menos impede Ou talvez então eu te amasse.
a embriaguez súbita. Gosto de beber só de vez em quando. Ai! que saudades me dá da vida
Gosto de tomar uma cerveja, mas de estar bêbado não gosto. que nunca tive!
(Foi devidamente providenciada a ida da empregada para
comprar cerveja.) - Como é que você sente que vai nascer uma canção?
- Tom, toda pessoa muito conhecida, como você, é no - As dores do parto são terríveis. Bater com a cabeça
fondo o grande desconhecido. Qual é a sua face oculta? na parede, angústia, o desnecessário do necessário, são os
- A música. O ambiente era competitivo, e eu teria sintomas de uma nova música nascendo. Eu gosto mais de
que matar meu colega e meu irmão para sobreviver. O espe- uma música quanto menos eu mexo nela. Qualquer resquí-
táculo do mundo me soou falso. O piano no quarto escuro cio de sauoir-fnire me apavora.
me oferecia uma possibilidade de harmonia infinita. Esta é - Tom, Gaugu;n. que não é meu predileto. disse 110 en-
a minha face oculta. A minha fuga, a minha timidez me le- tanto uma coisa que não se deve esquece1~por mais dor que ela
varam inadvertidamente, contra a minha vontade, aos holo- nos =s« É o seguinte: "Quando tua mão direita estiver hábil,

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DE CORI'O IN I'EIRO
CLARICE L1SI'ECTOR

do Itarnarati, eu que gostava já nessa época de pijama listrado,


pinta com a esquerda, quando a esquerda ficar hábil, pinta
cadeira de balanço de vime, e o céu azul com nuvens esparsas.
com os pés". Isso responde ao seu terror do savoir-faire.
- Muitas vezes, nas criações em qualquer dominio, pode-
- Para mim a habilidade é muito útil mas em última
se notar tese, antítese e síntese. Você sente isso nas canções? Pense.
instância a habilidade é inútil. Só a criação satisfaz. Verdade
- Sinto demais isso. Sou um matemático amoroso, ca-
ou mentira, Clarice, eu prefiro uma forma torta que diga, a
rente de amor e de matemática. Sem forma não há nada. Mes-
uma forma hábil que não diga.
mo no caótico há forma.
- Você é quem escolhe os intérpretes? e os colaboradores?
- Quais foram as grandes emoções de sua vida como com-
- Quando posso escolher intérpretes, escolho. Mas a
positor e na sua vida pessoal?
vida veio muito depressa. Gosto de colaborar com quem eu
- Como compositor nenhuma. Na minha vida pessoal,
amo, Vinícius, Chico Buarque, João Gilberto, Newton Men-
a descoberta do eu e do não-eu.
donça, Dolores Duran. E você?
- Qual é o tipo de música brasileira que foz sucesso no
- Faz parte de minha profissão estar mesmo sempre sozi-
exterior?
nha, sem colaboradores e intérpretes. Escute, Tom, todas as vezes
- Todos os tipos. O velho mundo, Europa e Estados
em que eu acabei de escrever um livro ou um conto, pensei com
Unidos estão completamente exauridos de temas, de força,
desespero e com toda a certeza de que nunca mais escreveria nada.
de virilidade. O Brasil, apesar de tudo, é um país de alma
Você, que sensação tem quando acaba de dar à luz uma canção?
extremamente livre. Ele conduz à criação, ele é conivente
- Exatamente o mesmo. Eu sempre penso, Clarice,
com os grandes estados de alma.
que morri depois das dores do parto.
- Vou agora lhe fozer as minhas três perguntas clássicas.
Qual é a coisa mais importante do mundo? Qual é a coisa mais
importante para a pessoa como indivíduo? E o que é amor?
- A coisa mais importante do mundo é o amor. Se-
gunda pergunta: a integridade da alma, mesmo que no exte-
rior ela pareça suja. Quando ela diz que sim, é sim, quando
ela diz que não, é não. E durma-se com um barulho desses.
Apesar de todos os santos, apesar de todos os dólares. Quan-
to ao que é o amor, amor é se dar, se dar, se dar. Dar-se não
de acordo com o seu eu - muita gente pensa que está se
dando e não está dando nada - mas de acordo com o eu do
ente amado. Quem não se dá, a si próprio detesta, e a si
próprio se castra. Amor sozinho é besteira.
- Houve algum momento decisivo na sua uida?
- S6 houve momentos decisivos na minha vida. In-
clusive ter de ir, aos 36 anos, aos Estados Unidos, por força
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TEREZA SOUZA CAMPOS
"Sou nada para muita gente e tudo para o meu filho."

Tive a curiosidade de entrevistar Tereza Souza Campos por-


que eu não simpatizava com ela. A 'mulher mais elegante'
não me interessa. Há problemas mais sérios do que a moda,
individuais e não-individuais.
Quando telefonei para marcarmos o diálogo e o ponto
de encontro - Country Club, escolheu ela - expliquei-lhe
que, apesar de ela ser o primeiro figurino do país, não era
sobre isso que eu a entrevistaria. Ela riu brincando: "Mas
ser o primeiro figurino do país já é alguma coisa!" Nada res-
pondi. No entanto, responderia: queiram os céus que Tereza
não seja apenas o primeiro figurino do país, senão terei que
lhe explicar o que é uma 'pessoa'. E que o Brasil precisa de
muito, e não precisa de nada de primeiro figurino.
Enfim, este é o mundo em que vivemos, e em todos os
países do mundo há as mulheres que se dedicam de corpo e
moda à elegância para se sobressaírem de qualquer modo.
Para isso é preciso ter dinheiro, bom gosto, preocupação com
o assunto, ousadia etc.
Acontece que por ocasião do telefonema tive que ficar
em guarda: a voz de Tereza era expressiva e me agradava.
Iria ela me conquistar para o seu lado? Não, n50 sou fraca.
E assim nos encontramos. Tereza é diferente do que
aparece nas fotografias e, lamento dizer, é bem mais simpá-
tica. Eu tinha que ficar realmente em guarda, porque minha

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1)E <:OIU'O IN'I EIItO
CI.AIUCE LlSPECTOIl

tendência é gostar das pessoas. E até dos meus inimigos, que - Quais são as suas pretensões?
- No caso - disse rindo, - é não andar nua, mas
não considero inimigos.
_ Tereza, sua principal ocupação é a moda, não há dúvi- pretendo que estou num mundo onde existem coisas mais
da. Em segundo lugar o que é que vem? importantes e avançadas.
_ Minha primeira preocupação é existir. Depois é que - Se você não fosse Tereza Souza Campos, o que é que
você gostaria de ser?
vêm todas as outras.
- O que é que você entende por existir? - Eu tinha que ter sido Tereza Souza Campos. Acredito
- É ser tudo o que eu sou. que as coisas acontecem por destino. Você pode maneirar
- E o que é que você é? com ele, dar um jeitinho no destino, mas não há como esca-
Ela ri, repete: "o que é que eu sou?" par verdadeiramente.
Longuíssimo tempo se passa: a pergunta, além de ines- - Qual é o seu arrependimento maior na vida?
perada, é realmente difícil de responder. Sobretudo se a pessoa - Tenho muitos arrependimentos. Ainda bem que eu
mergulhar dentro de si para encontrar a resposta. Parece que posso voltar atrás. Onipotente é Deus, não eu. Prepotentes
isso aconteceu com Tereza: seu olhar tornou-se profundo e, são os medíocres, os que não têm maleabilidade quanto à vida.
embora de olhos abertos, eles estavam virados para dentro. - Você tem tempo para ler?
A partir desse momento a simpatia crescente por Tereza - Não tenho muito tempo para ler, mas leio o que
aumentou e se estabeleceu. Afinal não é culpa dela se o mun- pode me manter atualizada, revistas, jornais, Não vou te dizer
do está organizado como está. que fico sentada em casa lendo Proust ...
- O que é que eu sou? - repetiu ela. - Qual é a mulher que você mais admira? no tempo e no
Procurei facilitar Tereza, dando um exemplo: "superfi- espaço?
cialmente e resumidamente falando, Tereza, eu sou mãe de - Admiro todas no tempo e no espaço porque cada
meus filhos e escrevo romances e contos. Superficialmente, uma delas tem o seu lugar no tempo e no espaço, E nas mu-
repito, é isso o que eu sou. E o problema social me angustia: lheres preeminentes admiro suas qualidades.
eu também sou isso". Tereza é inteligente: nenhuma pergunta a deixa enras-
- O que é que eu sou? Nada e tudo. cada. Quando não tem resposta - e é muitas vezes realmente
- Nada em quê? difícil dar uma resposta precisa, sobretudo para uma pessoa
- Nada para muita gente e tudo para o meu filho que franca como Tereza que não me pareceu mentir - quando
é uma evolução minha e uma renovação constante para mim. não tem resposta precisa, 'maneira'. Devo dizer que Tereza e
Tereza disse sobre moda que o faro de acharem-na tão eu tivemos conversas além das que estão sendo publicadas:
elegante nunca partiu dela. Que na verdade o que faz é o são mais da intimidade dela, e respeito-a.
que todas as mulheres fazem de um modo ou de outro: "vou - QlIantos filhos você tem e qual é o sistema de educação
à costureira, escolho o que mais me agrada. A moda não é que você naturalmente adota?
minha preocupação constante. Eu tenho pretensões mas não - Tenho um filho de dezenove anos. Acredito muito
sou pretensiosa". na relação íntima entre pais e filhos, Não como no passado

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CLARICE L1SI'ECTOR
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em que havia uma distância total entre eles. Sou uma pessoa - Tudo. Os valores são relativos, o que pode importar
que pensa muito. De modo que tudo o que eu faço é plena- a você pode não importar a mim, e assim por diante.
mente consciente. - Que é que você pensa quando pensa nas pessoas que
- Por quem você torce na guerra do Vietnã? não têm o que comer: você sente pena delas ou acha que o mundo
- Torço para que essa guerra acabe de uma vez, torço precisava ser reformado? Ou ambos?
I
por uma solução. - Tenho pena que o mundo não possa proporcionar a
- Qual é a sua maior vocação, Tereza? quero dizer: a vo- todos a oportunidade de comer, viver, trabalhar. Tenho pena,
cação frustrada. mas se você passar o dia inteiro pensando nisso você pára de
- Frustrada? (fez uma espécie de muxoxo). Acho que existir. Que o mundo está se reformando, é uma evidência.
não tive vocação frustrada, eu aprendo todos os dias um pou- - Como esta deve ser a primeira vez que dialogam com
co de tudo. Não tenho nenhuma vocação determinada, mas você sem ser a respeito de moda e beleza, eu queria saber como
não me sinto frustrada. você se sente tratada por mim como pessoa humana e não apenas
- Fale-me um pouco de sua cidade natal, de suas recor- uma elegante. Foi agradável ou desagradável? Para o diálogo
dações. Você é de Uberabai não falhar, seja por favor sincera: não se engane: o público p{'rce-
- Não, de Ubá, Minas Gerais. Mas estive poucas ve- be nas entrelinhas a realidade.
zes lá. Mamãe morava aqui e quando ia ter filho partia para - Sou uma pessoa que pensa muito na vida e tenho
Ubá porque aí moravam meu avô, minha avó e toda a famí- algumas idéias (ri). E acho que você me tratou elegantemente,
lia. Estou muito contente de ter nascido lá, isto é, de minha conclui rindo.
'rnineirice'. O importante não é ter nascido num lugar e sim Enfim, contra a minha vontade (estou sorrindo), to-
as raízes de família. mei-me de grande simpatia por Tereza. O seu modo de vida
- Qual foi a sua maior alegria na vida, ou as maiores? não é culpa dela: ela faz parte de uma engrenagem não evoluí-
- Tive grandes alegrias na vida. Estou alegre de ma- da. Tenho certeza de que Tereza Souza Campos, em situação
nhã quando acordo ... Sobrevivência não é uma alegria, Cla- diferente, poderia ter grande valor. Ela é o que se chama une
rice? - disse Tereza rindo. - Em todo o caso não poderia femme d'esprit.
contar todas as alegrias, alegrias mesmo, de minha vida. Você
esperava por acaso que eu dissesse que a maior alegria foi o
nascimento do filho? Não seria verdade, porque a dor é ter-
rível. A alegria vem antes, no ato de procriá-lo.
- Qual foi a sua maior tristeza?
- No dia em que perdi meu pai. Eu ... - Tereza não
pôde conter as lágrimas - desculpe, é que foi muito recen-
te. Eu o achava tão excepcional. Tinha tal afinidade com ele.
Ficamos durante algum tempo em silêncio. Ela chorava.
- Tereza, o que é que realmente importa?

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