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-nJ SOCIAL
M 2000
Univers,__ ~ _
Centro de Humanidades
Departamento de Comunicação Social e Biblioteconomia
Curso de Comunicação Social
Projeto Experimental
Fortaleza - Ceará
2000
-
Universidade Federal do Ceará
Centro de Humanidades
Departamento de Comunicação Social e Biblioteconomia
Curso de Comunicação Social
Projeto Experimental
Fortaleza - Ceará
2000
--
DIÁLOGOS POSSíVEIS COM CLARICE LISPECTOR
Jornalismo e Literatura nas Entrevistas do Livro De Corpo Inteiro
Aprovada em _ / _ / _
Banca Examinadora
A Elza, minha mãe, minha maior amiga, meu exemplo de vida - por nada
menos que tudo;
a Dani, a melhor irmã do mundo - pela cumplicidade, pelo
ompanheirismo, pelo amor e apoio incondicional;
a Emílio, meu pai, que entre presenças e ausências acompanhou, à sua
maneira, alguns passos desta trilha.
SUMÁRIO
SUMÁRIO 6
INTRODUÇÃO 7
3. DE CORPO I TEIRO 71
3.1. SUPOSIÇÕES DE CLARICE LISPECTOR 72
3.1.1. A escritora por trás da jornalista 76
3.1.2. A jornalista por trás da escritora 79
3.1.3. Em busca do outro 84
3.2. OS "DIÁLOGOS POSSÍVEIS" EM DE CORPO INTEIRO 87
3.3. ENCONTROS DE CORPO INTEIRO 92
3.3.1. Recorte 99
3.3.1.1. Vinícius de Morais 102
3.3.1.2. Érico Veríssimo 105
3.3.1.3. Entrevista relâmpago com Pablo eruda 108
3.3.1.4. Um homem chamado Hélio Pellegrino 110
3.3.1.5. Dinah Silveira Queirós 112
3.3.1.6. Chico Buarque ou Xico Buark.. 114
3.3.1.7. Djanira 117
3.3.1.8. Scliar 119
3.3.1.9. Tom Jobim 121
3.3.1.10. Tereza Souza Campos 124
INTRODUÇÃO
A Descoberta do Mundo
Depois, por inserir este estudo no vasto, rico e instigante espaço da vida e da obra de
Clarice Lispector, universo-ser de múltiplas faces sobre o qual se voltam os olhares
analíticos de diversas disciplinas, e que tanto ainda tem a explorar.
Unir estes dois "nascimentos" num espaço único pode ser uma tarefa audaciosa.
Nem de longe temos a pretensão de que esta monografia encerre em seus limites toda a
abrangência de tema e objeto. Ao contrário, desde o início e cada vez mais no decorrer
do trabalho, toma-se claro que muitas questões ficarão por ser aprofundadas, muitas
hipóteses ficarão por ser comprovadas e muitos aspectos nem mesmo serão abordados.
A nossa maior pretensão, ao final de uma discussão minimamente embasada em teorias
e depois de um olhar reflexivo sobre o objeto de estudo, é deixar alguma contribuição,
pequena que seja, para a compreensão das relações entre jornalismo e literatura, que
resultaram em tantas memoráveis obras de caráter permanente - como De Corpo Inteiro
-, e em não menos memoráveis peças jornalísticas, mas que tanto ainda têm a contribuir
para a leitura do mundo. Mais especificamente, é nosso objetivo apontar, dentro deste
privilegiado espaço interseccional entre jornalismo e literatura, o caminho da entrevista
jornalística, o diálogo possível de dimensão criadora, cujo valor inestimável reside em
contribuir para a leitura dos seres do mundo.
A nossa motivação inicial é o fazer jornalístico e dele partimos rumo à nossa
análise. O primeiro capítulo desta monografia - "Jornalismo e Entrevista" - divide-se
essencialmente em duas partes. Num primeiro momento, detemos a nossa atenção em
alguns caminhos percorridos pelo estudo acadêmico do fenômeno jornalístico - não sem
antes aceitarmos a hipótese de que, sendo um fenômeno marcado pelo mimetismo e
mutante de acordo com os sucessivos contextos sociais, o jornalismo não se prende a
um conceito rigoroso e imutável. Concordamos com Alberto Dines em dizer que o
jornalismo está sempre em busca das circunstâncias - e esta é uma possível definição-
movendo-se e mutando-se com elas. Mas identificam-se algumas características
fundamentais e, em geral, constantes. Nestas características (atualidade, variedade,
interpretação, periodicidade, popularidade e promoção), apontadas a partir do
conceito estabelecido por Luiz Beltrão sobre as raízes do pensamento de Otto Groth,
encontramos algo da essência do fenômeno jornalístico. E duas delas - atualidade e
interpretação - por sua importância na análise do objeto deste estudo, são discutidas
mais aprofundadamente, em itens específicos. Depois, a partir destas características
fundamentais, explicitamos sucintamente a forma como o estudo do jornalismo tem
,
determinado classificação das matérias jornalísticas, de acordo com gêneros e categorias
9
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io
Depois desta reflexão que nos dá certo embasamento teórico, a análise volta-se
para algumas das formas como foram vistas as relações entre jornalismo e literatura no
estudo acadêmico. Ressaltamos, neste sentido, a importância da argumentação de Alceu
Amoroso Lima, mas apontamos nela algumas limitações - principalmente pela hipótese
de que todo jornalismo seja um gênero literário, sob pena de ser considerado mau
jornalismo. A partir da reflexão sobre o estudo de Tristão de Athayde, tentamos apontar
a visão das inter-relações entre jornalismo e literatura que nos parece satisfatória, tendo-
se em vista o objeto deste trabalho - jornalismo e literatura são atividades
conceitualmente independentes e com espaços próprios; mas os limites entre estes
espaços não são estanques e estão em devi r constante, confluindo em alguns pontos
onde, consideramos, encaixam-se textos como as entrevistas de Clarice Lispector. Por
fim, ao final do segundo capítulo, voltamos a abordar a entrevista jornalística, desta vez
à luz da interseção entre jornalismo e literatura. A nosso ver, o diálogo possível
apontado por Cremilda Medina e coincidente com a entrevista estudada por Leonor
Arfuch carrega em si potencialidades próprias dos dois fenômenos, ocupando o espaço
do retrato do ser-outro que muitas vezes escapa às lentes de repórter e escritor.
No terceiro e último capítulo deste trabalho nosso foco volta-se para o objeto,
De Corpo Inteiro, ao qual não são raras as referências ao longo dos capítulos anteriores
- não nos parece possível agir de outra forma, uma vez que toda a nossa análise decorre
deste objeto. Aqui, em um espaço muito breve diante da imensidão posta à nossa frente,
falamos sobre vida e obra de Clarice Lispector, na tentativa de trazer à tona um pouco
de sua instigante personalidade onde não são nítidos os limites entre real e imaginário,
pessoa e personagem. A partir de amostras pequenas de sua obra e da leitura feita a ela
por vários estudiosos, tentamos apontar aspectos característicos da incessante busca
pelo "indizível" através da palavra. Tentamos mostrar que essa inquietação, marca de
toda a sua obra, também é característica de seu fazer jornalístico e, em particular, da sua
atuação como entrevistadora.
De Corpo Inteiro reúne a principal amostra desta face entrevistadora de Clarice
Lispector, em entrevistas que realizou - a maioria - como colaboradora da revista
Manchete entre 1968 e 1969, na seção "Diálogos Possíveis com Clarice Lispector",
retratando algumas das personalidades de destaque no cenário cultural e social da época;
com boa parte dos entrevistados, Clarice mantinha relações extra-profissionais
geralmente marcadas por amizade e admiração. O livro foi publicado pela primeira vez
em 1975 e, de lá para cá, teve três edições. Depois de contextualizar o objeto, fazemos
11
1.
JORNALISMO E ENTREVISTA
13
1.1. JORNALISMO
A atividade jornalística neste fim de século é vista com pessimismo por Ciro
Marcondes Filho (1993). As novas tecnologias, principal marca desta época, são
também o aspecto que se sobressai no novo fazer jornalístico:
Para o autor, para tomar-se coerente com a era das novas tecnologias, o
jornalismo abandona os critérios que o orientaram nas décadas anteriores e é marcado
por um caráter imaterial. A imaterialidade jornalistica de que nos fala Marcondes
retrata-se na superficialidade em que resultam os textos curtos e apressados, no
empobrecimento da linguagem, na "ociosidade visual" da diagramação dos veículos
impressos, no rninimalisrno da prática jornalística atual e até mesmo na falta da
"materialidade palpável" que o texto jornalístico tinha na época das laudas e das
máquinas de escrever. "O texto, agora, é apenas uma imagem, um cintilar de luzes na
tela do computador e não tem mais existência física, tornando-se, portanto, algo
abstrato" (MARCONDES, 1993, p. 99) 3.
Em toda a sua variedade e mesmo com o seu caráter mutante, existe na atividade
jornalística algo que a caracteriza como tal e que define seus limites ? É possível
encontrar uma essência que possa revelar o que está por trás das cores que o jornalismo
assume de acordo com a superfície em que se encontra? Alberto Dines foi buscar essa
essência exatamente na efemeridade do fazer jornalístico: "O jornalismo é a busca de
circunstâncias" (DINES, 1985, p.25), define. E questiona: "Então, dirá algum exegeta
de esquina, sendo 'circunstancial', o jornalismo está condenado, liminarmente, à
condição de efêmero e superficial?"
maioria das críticas do autor às novas formas de jornalismo são procedentes. Realmente, o que vemos
na mídia, dia apó dia. ão textos cada vez mais curtos e pobres, tratamentos parciais e superficiais, ao
abor do intere se do grupos econômicos e políticos ligados aos veículos, e uma linguagem
padronizada. nivelada por baixo, que confunde simplicidade com mediocridade. Mas, ao identificar os
inromas, pare -no que Marcondes ataca o vilão errado, responsabilizando, muitas vezes, os recursos
te nológi o . que ão meras ferramentas, pelas mazelas do jornalismo.
17
Mudam, então, as circunstâncias: cada lugar e cada tempo têm sua marca, sua
identidade, sua essência, suas cores. O jornalismo mimetiza-se, assume as novas cores e
sai em busca das novas circunstâncias que qualificam o tempo presente, para arrumá-
Ias, referenciá-Ias e distinguí-Ias.
A maneira como o profissional do jornalismo lida com estas circunstâncias
também muda - de acordo com o tempo, o lugar, o veículo, as condições de trabalho e
mesmo a intenção que move o repórter.
No trato humano às circunstâncias, como nos aponta Medina, o jornalista tem uma
alternativa diante da ditadura de um jornalismo industrializado e padronizador.
Trabalhará o texto numa enriquecedora convergência com o trabalho artístico - mas
esta é uma discussão que caberá mais adiante, no segundo capítulo deste trabalho. No
próximo item a análise volta-se para alguns dos aspectos que permanecem no caráter
circunstancial da definição de jornalismo.
A obra de Otto Groth foi fundamental não apenas pelo seu pioneirismo, mas por
estabelecer diretrizes para o estudo do jornalismo. As quatro características propostas
18
por Groth se fizeram presentes, de alguma forma, em muitas das pesquisas que
buscaram estabelecer conceitos para o fenômeno jornalístico. No Brasil, esta influência
é nítida, por exemplo, na definição de jornalismo formulada por Luiz Beltrão, já citada
no item anterior. As características propostas no conceito de Beltrão - atualidade,
variedade, interpretação, periodicidade. popularidade e promoção - assemelham-se
àquelas propostas por Groth e as ampliam.
Explicitar cada uma destas características, que o autor considera fundamentais no
jornalismo, pode trazer à tona diversas questões relevantes numa reflexão acerca da
atividade jornalística. Tendo foco no objeto deste trabalho - um livro que reúne
entrevistas realizadas e publicadas na década de 60 (e continua sendo reeditado) e que
têm características que as distanciam. em diversos aspectos, das matérias que estamos
acostumados a encontrar diariamente na maioria dos jornais e revistas - discutiremos
mais aprofundadamente duas delas: a atualidade e a interpretação.
Mas, antes, fazem-se necessários alguns comentários a respeito das outras
caracterís ticas:
Variedade diz respeito à abrangência dos conteúdos das matérias jornalísticas.
Segundo Beltrão, o campo jornalístico deve estender-se "a todos os quadrantes da
atividade humana, a todos os seres, às coisas e à natureza, a todos os domínios da
inteligência e da sensibilidade"(BEL TRÃO, 1992, p.75). Esta característica não se opõe
ao jornalismo especializado, tendência notável atualmente. Ao contrário: é o jornalismo,
em sua totalidade, que deve voltar-se "a todos os quadrantes da atividade humana"; não
o jornalista, nem mesmo o veículo. O profissional, porque corre o risco de pretender-se
o "especialista em generalidades" e tornar-se, na realidade, um "especialista em coisa
nenhuma". E o veículo porque, na tarefa de "interpretar" os fatos correntes, quanto
mais tempo, espaço e empenho forem dedicados a determinado assunto, mais
aprofundada e completa poderá ser a interpretação. Os veículos especializados devem
ser vistos como partes do todo jornalístico: enquanto aos jornais diários e mesmo aos
semanais de caráter geral é dada a tarefa de levar informações abrangendo o maior
número de temas possível para o maior número de leitores, às publicações
especializadas incumbe-se a função de dar o maior número de informações sob todos os
aspectos possíveis de um assunto específico, a um público delimitado.
Periodicidade é uma característica que vai além do aspecto temporal; é um dos
fatores responsáveis pela credibilidade do veículo. A periodicidade é um compromisso
que o veículo jornalístico assume com o público. E ele certamente sabe cobrá-lo: no
19
jornal diário, por exemplo, um atraso de poucas horas é facilmente percebido pelos
leitores, que não raramente ligam para o jornal em busca de explicações."
Popularidade refere-se ao alcance do jornalismo (equivalente à difusão de Groth).
O objetivo primeiro da atividade jomalística é informar, ou seja, é fazer seu conteúdo
chegar ao público - um fato só se toma notícia se difundido. Também aqui faz-se
presente a questão da especialização. Embora menor em número de leitores, a
popularidade também é essencial para os veículos especializados (dentro do meio a que
se destina) e também depende, como nos jornais diários e semanários gerais, da
credibilidade do veículo e da adequação aos interesses do pública.'
Quanto à promoção vale uma ressalva. Beltrão afirma que
Esta é, a nosso ver, uma visão utópica ou, pelo menos, generalista. Numa análise
rápida, pode-se dizer que a função do jornalismo hoje é informar - de maneira
contextualizada e o mais aprofundada possível - e, por vezes, entreter. A "promoção do
bem comum" seria não uma função, como quer Beltrão, mas antes uma conseqüência,
mesmo que desejada. A atividade jomalística pode levar o leitor - ou um grupo de
leitores - a uma tomada de decisão ou a uma ação individual; mas essa não é sua tarefa,
e sim um passo adiante, que resulta também de um conjunto de fatores externos ao
jornalismo. Além do mais, admitir que o jornalismo seja, em última análise, como um
"incitado r" de ações individuais ou coletivas é entrar num terreno perigoso, o que pode
ter como conseqüência a legitimação de intenções manipulativas no conteúdo das
matérias jornalísticas.
~ Com a informação em tempo real, principalmente através da Internet, esta característica pode tomar uma
nova forma: num site de notícias, por exemplo, é a velocidade dos fatos que dita a periodicidade: notícias
podem ser publicadas instantaneamente, com intervalo de minutos.
5 Quanto a popularidade, uma questão relevante é o chamado jornalismo sensacionalista. Muitas vezes,
sob o disfarce de conteúdo "popular", revela-se um "jornalismo" apelativo e popularesco, com texto
recheado de palavras chulas e "enriquecido" com fotos chocantes. Este tipo de "jornalismo" costuma usar
a justificativa de "dar ao povo o que o povo quer".
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1.1.2.1. Atualidade
fim do dia, o seu papel já foi cumprido: viabilizar a difusão do conteúdo, cujos efeitos
permanecerão entre o público leitor.
1.1.2.2. Interpretação
entrelinhas
A Descoberta do Mundo
linguagem escrita, num relato que corresponde à realidade; o jornalista, testemunha dos
fatos, deve informá-los ao público sem neles interferir, para evitar qualquer tipo de
influência sobre a opinião do leitor. "Por trás da noção de que é possível uma
reportagem objetiva está a idéia de que a informação pode ser apresentada de tal
maneira que seus receptores sejam capazes de formar suas próprias opiniões"
(KUNCZIK, 1997, p. 227).
Hoje, aceita-se que a objetividade pura não passa de um mito e que o jornalista
não pode, como ser humano que é, despir-se de todos os seu valores, de sua bagagem
cultural, de sua identidade, ao transmitir um fato. Qualquer mensagem jornalística, antes
de chegar ao público receptor, passa por uma série de interferências, desde a formulação
e angulação da pauta aos comentários e explicações inseridos no texto, onde a
interpretação vai sobressair-se. E isso não é um ruído, não é algo a ser evitado a
qualquer custo, como já quiseram alguns. Interpretar é também uma finalidade do
jornalismo.
Ainda assim, a idéia de que a objetividade é, pelo menos, um ideal a ser
atingido, permanece no meio jornalístico.
6 Esta presença da subjetividade no texto - inegável em De Corpo Inteiro, objeto deste trabalho -
aproxima o jornalismo da seara da literatura. A proximidade destes relatos jomalísticos com o texto
literário é assunto do segundo capítulo deste trabalho.
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Estas são também as três categorias elencadas por Luiz Beltrão, apontado por
José Marques de Meio como o único pesquisador brasileiro, até então, a se preocupar
sistematicamente com a questão da classificação dos gêneros jornalísticos. Para
Beltrão, são três as categorias e dez os gêneros jornalísticos: Jornalismo Informativo
(notícia / reportagem / história de interesse humano / informação pela imagem);
Jornalismo Interpretativo (reportagem ampliada) e Jornalismo Opinativo (editorial /
artigo / crônica / opinião ilustrada / opinião do leitor) (MARQUES DE MELO, 1994).
É na classificação de Beltrão que Marques de Melo se baseia para propor o seu
esquema de categoria e gêneros. Antes de apresentar este esquema vale relatar, em
linhas gerais, duas das ressalvas que Marques de Melo faz à proposta de Beltrão e que
nos parecem relevantes 7. Melo discorda do conceito de história de interesse humano,
que, para ele, pode ser incluída dentro da definição de reportagem. "Trata-se de um fato
que foi notícia (matéria quente) e que o jornalista retoma na sua dimensão humana para
suscitar o interesse e a atenção do público" (MARQUES DE MELO, 1994, p.60).
A outra crítica feita à proposta de Beltrão diz respeito à uma das três categorias
estabelecidas, o jornalismo interpretativo. ° argumento de Marques de Meio, que nos
parece procedente, é de que as definições de reportagem e reportagem em
profundidade não são diferenciadas, sob um ponto de vista conceitual, de maneira
convincente. A diferença não é senão prática: a reportagem, colocada por Beltrão
dentro da categoria informativa, seria mais superficial devido às limitações impostas
7 Marques de Meio faz. no total, quatro ressalvas à classificação formulada por 8eltrão: quanto ao
conceito de histórias de interesse humano, quanto à categoria de jornalismo opinativo caracterizada pelo
gênero de reportagem em profundidade, quanto à autonomia da informação através da imagem e quanto
à ampliação dada à noção de opinião do leitor. Seguindo a nossa proposta de manter o foco no objeto
deste estudo, abordamos aqui apenas as referências às histórias de interesse humano - conceito em que as
entrevistas de Clarice Lispector poderiam se adequar - e à categoria de jornalismo interpretativo,
28
pelo pouco tempo para a pesquisa. Oferecidas as condições ideais, é então viável a
reportagem em profundidade ou a grande reportagem, situadas numa suposta categoria
interpretativa. "Na prática, afiguram-se-nos como espécies de um mesmo gênero - a
reportagem" (MARQUES DE MELO, 1994, p.60).
A partir destas ressalvas, Marques de Melo propõe uma classificação baseada
em apenas duas categorias jornalísticas - informação e opinião. A interpretação é vista
não como uma categoria, mas como uma das atribuições da atividade jornalística -
cumprida pela categoria informativa (o próprio Beltrão apontou a interpretação como
uma atribuição do jornalismo quando a incluiu como uma das características
fundamentais da atividade, explicitadas no item 1.2.). Da mesma forma, o aspecto do
entretenimento, apontado por alguns autores como possível categoria jornalística - o
"jornalismo diversional" - não possui a autonomia necessária para constituir-se em
uma classe separada. É apenas um aspecto que pode ser identificado ora em um, ora em
outro gênero das duas categorias apontadas por Marques de Meio.
correspondente ao gênero reportagem em profundidade que pode encontrar equivalência nas entrevistas
de De Corpo Inteiro.
29
perante os fatos da vida, onde fluem opiniões de e para todos os lados (do entrevistado
à entrevistadora, desta para o primeiro, de ambos para o público).
O que, então, caracteriza um texto como informativo ou opinativo? Podemos
dizer que é a predominância de informação ou opinião no referido texto, ou ainda a
tarefa a que a peçajornalística se propõe - uma reportagem tem o objetivo principal de
informar, de relatar fatos e descrever contextos, enquanto um artigo pretende,
principalmente, apresentar uma posição e desenvolver os argumentos que a sustentam.
Naquela, a opinião estaria, em tese, em segundo plano; neste, a informação seria
coadjuvante.
Chaparro defende a tese de que a divisão entre jornalismo informativo e
jornalismo opinativo pode conter um erro na sua origem. Para ele, a diferença entre um
artigo e uma reportagem, por exemplo, não está no conteúdo do texto (informativo ou
opinativo), mas na forma como ele se apresenta.
"Há que dar início a uma nova discussão sobre a teoria dos
gêneros jomatisticos, ancorando-a nas ciências da linguagem. Porque
gêneros são formas do discurso. Na visão pragmática, formas de dizer. para
fazer - o que explica, no jornalismo, a importância da eficácia."
(CHAPARRO, 1998 - grifas do autor)
c
32
1.2. ENTREVISTA
)
G
34
O diálogo foi o caminho escolhido por Sócrates - e, mais tarde, confirmado por
Platão - para alcançar o conhecimento. O filósofo grego, que de nada sabia além de sua
própria ignorância, encontrou neste fluxo informal de palavras e idéias o caminho da
verdade - ou ao menos de uma reflexão sobre a verdade. Questionando, levantando
36
Além da apontada familiaridade, Arfuch afirma que outro aspecto pode ter
contribuído para que o interesse científico sobre a conversação fosse tardio.
8Alceu Amoroso Lima discute a noção de gênero literário ao classificar o jornalismo como um deles.
Esta discussão será abordada no segundo capítulo, no item 2.1.3.
39
percebe, nesta tentativa, é que um diálogo toma forma a partir de um contrato implícito
na interação entre os envolvidos. Mesmo que silencioso, este contrato, como qualquer
outro, obedece a regras conhecidas e aceitas por todas as partes. Ainda que nada disso
esteja claro, explícito, firmado e registrado, são as regras do contrato dialógico que
possibilitam a comunicação efetiva entre as pessoas - do contrário, seriam sucessivas
discussões entre surdos.
Arfuch coloca cinco cláusulas para o contrato dialógico: que tua contribuição
contenha tantas informações quantas sejam requeridas (quantidade); que fales o que
crês verdadeiro (qualidade); que tuas afirmações sejam relevantes (relação); e, por fim,
que fales com claridade e evites ambigüidades (modalidade) (1995, p. 38). Arfuch
reconhece que a definição destes princípios não é rígida e inquestionável e que, por
vezes, eles são simplesmente deixados de lado - mas a regra, mais do que nunca, é
confirmada pela exceção. Segundo a autora, expressões populares correntes
demonstram que a quebra das regras do acordo é facilmente reconhecida: "é um
mentiroso", "disse bobagens", "falou, falou e não disse nada", diz-se, quando as
expectativas não são preenchidas pela contribuição de uma das partes. Os princípios do
diálogo são, então, aceitos e reconhecidos - a prova disto é que, quando um deles é
contrariado, nota-se logo que a conversa não atingiu o que dela se esperava e
reconhece-se quem não cumpriu o estabelecido e o que ficou a desejar.
o
41
9 Não são raras as inversões de papel durante uma entrevista - em De Corpo Inteiro podemos apontar
diversos trechos onde Clarice responde perguntas dos entrevistados e faz colocações pessoais. No entanto,
como for dito do diálogo cotidiano, a exceção confirma a regra: os papéis na entrevista são tão claros para
todos que mesmo o leitor leigo percebe quando eles foram invertidos.
e
42
A ~ _____"J
44
2.
JORNALISMO E LITERATURA
45
técnicas ditadas, em maior ou menor grau, pelos manuais de redação, como ilustra o
texto abaixo, extraído do capítulo referente a "texto" do Novo Manual da Redação da
Folha de São Paulo:
Na contra-mão desta idéia vão muitos dos aspectos discutidos no capítulo anterior,
quando tratávamos do conceito e das características do jornalismo, em especial no item
1.2.2., referente à interpretação. A presença - não só inevitável, mas sobretudo
desejável - da subjetividade do repórter não pode ser encarada, conforme já vimos,
como um fator empobrecedor, vez que, na medida certa, ela humaniza o texto e
aproxima-o do leitor. Assim, o "caráter literário" tomado como indício de má qualidade
da peça jornalística e da incompetência de seu autor, pode, ao contrário, conferir ao
texto aquela nobreza própria da literatura. Não é a maior ou menor quantidade de
adjetivos e advérbios que vai determinar a qualidade de uma obra, quaisquer que sejam
os rótulos a ela atribuídos. Eis a posição de Nepomuceno em relação à-crítica feita pelo
veterano ao jovem repórter:
"Entendo que com isso se pretenda dizer que determinado texto esteja
parco de objetividade e, possivelmente, transbordando adjetivos e floreios
desprezíveis. Mas jamais entendi que, por estar ruim, um texto jornalístico
mereça o selo de 'literatura', disparado com desprezo fulminante. Afinal, só
existem dois tipos de texto: o bom e o ruim. Para mim, vale o mesmo para
um texto de jornal que para um texto de ficção: será bem ou mal escrito, e
47
Seria uma generalização injusta apontarmos a noção descrita acima como a única
em voga entre os profissionais do jornalismo. Há que se citar outra posição também
comum no meio jornalístico - certamente menos do que desejaríamos -, que vai no
sentido oposto à idéia que Nepomuceno rebate e vem ao encontro daquilo que
queremos que sobressaia ao fim desta reflexão: a idéia de que o jornalismo pode e deve,
em determinadas circunstâncias, valer-se dos recursos literários na tentativa de
humanizar-se, de conferir ao texto certo grau de subjetividade que, longe de afastá-lo
de seu objetivo primordial, trabalha a favor da reconstrução o mais fiel possível dos
fatos e de suas ressonâncias, da transmissão o mais eficaz possível das informações. Ser
eficaz, no caso do jornalismo, é chamar a atenção do leitor, atraí-lo e induzí-lo a
continuar a leitura até o final, organizar as informações de forma que elas tenham o
impacto que merecem e permaneçam na memória do leitor, sem com isso distanciar-se
da realidade dos fatos - nesta tarefa, alguns recursos da literatura vêm bem a calhar,
tornando a leitura prazerosa e atraente.
De fato, na produção jornalística atual, há lugar para o chamado 'jornalismo
literário". Em algumas publicações de periodicidade espaçada, nos suplementos
semanais dos jornais e no privilegiado espaço dos segundos cadernos, deparamo-nos
vez por outra com textos que fogem ao padrão uniformizado e pasteurizado do
jornalismo apregoado pelos manuais dos jornais-indústria, invertendo estruturas,
lançando mão de figuras de linguagem, imprimindo impressões, suprimindo palavras,
adjetivando e adverbiando. Destoantes da regra geral, certamente - por isso mesmo nos
chamam a atenção. Mas essa dissonância é suficiente para que reportagens, entrevistas,
artigos ou até simples notícias aspirem ao "status" de literatura (retomando a noção do
senso geral de que esta teria caráter nobre perante o primo pobre)?
É neste ponto que, depois de passarmos pelo senso comum e pelas noções
correntes no meio jornalístico, somos levados a analisar, em termos gerais, as formas
em que as relações entre jornalismo e literatura vêm sendo abordadas no meio
acadêmico. É bem verdade que, explicitados alguns conceitos e linhas de raciocínio,
nossas conclusões possam, enfim, ser bastante próximas ao que reza o senso comum ou
o saber profissional, pois é nestas searas que surgem as questões com que a reflexão
científica vai ocupar-se. Nossa intenção é deter-nos, nas páginas que seguem,
48
10 Outro livro de Clarice Lispector, "A Descoberta do Mundo", reúne crônicas publicadas originalmente
no Jornal do Brasil. Esta obra é objeto de estudo de outro trabalho acadêmico, desenvolvido
simultaneamente ao nosso, pelo colega Amauri Arrais.
11 As marcas literárias na entrevistajornalísticajá foram tema de outro trabalho de graduação do curso de
Comunicação Social da UFC. Em "Entrevista - ponte de interdisciplinariedade com literatura, expressão
de um jornalismo humanizador" (1992), importante fonte de pesquisa do presente trabalho, Gabriela
e
49
Luiz Beltrão - que parecem permanecer sob as multi-cores assumidas pelo mimético
fenômeno jornalístico, priorizando uns e pincelando outros, tendo sempre em vista o
objeto deste estudo.
Com o mesmo enfoque, faz-se necessária uma nova busca, desta vez pelo
conceito de literatura, também essencial para os objetivos deste trabalho. Se o rótulo da
efemeridade se coloca como um obstáculo à conceituação precisa e permanente da
atividade jornalística, e à literatura é dada a consagração da imortalidade, poderíamos
acreditar que seria mais fácil, pois, chegar a um resultado bem delimitado nesta segunda
jornada.
Tal conclusão estaria notoriamente equivocada. A discussão que gira em tomo
da conceituação de literatura, no meio científico, mostra-se por certo mais complexa do
que os caminhos da definição de jornalismo. Não poderia ser diferente: a literatura está
sob as lentes dos analisadores há um sem-fim de tempo - Aristóteles já foi um veterano
com a sua "Poética" - enquanto o estudo do jornalismo é relativamente recente. Mais: a
origem da literatura, ela própria, perde-se na história do homem, mesclando-se com a
filosofia, com a ciência, com o processo criativo que é da natureza humana; a origem do
jornalismo é bem posterior, tempo e lugar de suas formas primárias podem ser
apontados com um aceitável grau de precisão.
A bibliografia a respeito do fenômeno literário é vasta: ensaios, teses, manuais e
dicionários dão conta dos mais variados aspectos relacionados à teoria da literatura.
Escolas e correntes que ora se completam, ora entram em conflito; noções intuitivas e
definições dentro de rigoroso padrão científico; história, datas, nomes e tendências;
análises de discurso, análises ideológicas e análises apaixonadas; esquemas,
classificações, critérios - a amplitude deste campo não é mensurável, dos possíveis
objetos perde-se a conta, os enfoques são tão variáveis quanto possível.
Ao que toca este trabalho, objeto e enfoque já foram mencionados e
atisfatoriamente explicitados, e é somente a partir deles que nos interessa a discussão
em tomo do conceito de literatura - como de resto todas as discussões possivelmente
abordadas aqui. Nosso centro está, pois, em alguns contornos das principais noções
atribuídas à literatura ao longo do tempo - vale esclarecer que não nos prendemos com
rigor a uma sucessão cronológica - que possam nos dar subsídios para identificar, em
primeira instância, as marcas de uma possível interseção entre esta seara e a do
Reinaldo aponta, na revista Entrevista (publicação do próprio curso), o potencial humanizador deste
gênero jomalístico que recorre a recursos literários.
50
Para estas perguntas, o senso geral tem respostas comuns e cada um tem
respostas em particular. Os analistas têm respostas, os críticos têm respostas; cada
corrente tem uma resposta, cada escola tem várias respostas. A ciência e os
academicistas têm muitas respostas - e, afinal, têm resposta nenhuma. A professora
Marisa Lajolo resume a questão: "Tudo isso é, não é e pode ser que seja literatura.
Depende do ponto de vista, do sentido que a palavra tem para cada um, da situação na
qual se discute o que é literatura" (LAJOLO, 1985, p.l5 - grifos da autora) .
Concordamos então com a impossibilidade de se chegar a um conceito exato,
definitivo e imutável. A busca, no entanto, não é vã: de maneira semelhante com o que
ocorre em relação ao estudo do jornalismo, a questão segue aberta e definições vão
sendo feitas e refeitas de acordo com os diferentes contextos. Ainda segundo Lajolo:
"C..) as definições propostas para literatura importam menos que o caminho percorrido
para chegar a elas". (LAJOLO, 1985, p. 27). É também o que diz Tzvetan Todorov, ao
51
introduzir a questão da noção de literatura: "(...) Quem nos dirá se o caminho seguido
não tem mais interesse do que o ponto de chegada?" (TODOROV, 1980, p.ll).
Desviemos, então, o olhar do ponto de chegada, voltando-o para algumas das pedras que
compõem este caminho. Nos interessam não apenas as respostas dos acadêmicos, mas
em igual valor as respostas do senso geral - o limite entre elas, diga-se de passagem, é
por vezes não muito mais do que formal.
A primeira noção de literatura a ser citada é a que a diz que uma obra literária é
necessariamente uma obra de ficção - "escrita que não é literalmente verídica"
(EAGLETON, 1997, p.Ol) . Esta definição, que ainda hoje tem raízes profundas no
senso comum, predomina nas teorizações sobre literatura desde a Antigüidade até
meados do séc. XVll. Calcada na noção de arte desse período - "arte é uma imitação,
diferente conforme o material que utilizamos" (TODOROV, 1980, p.13) - esta
definição determina que um texto literário resulta exclusivamente da imaginação
criativa do autor, que usa a palavra como material de sua arte-imitação. Além disso, é
necessariamente uma narrativa, um relato criado do que não aconteceu no mundo
concreto.
A fragilidade desta noção fica patente quando Todorov argumenta que, se
adequa-se razoavelmente bem a uma parte da literatura (alguns gêneros em prosa, como
as novelas, os romances, o teatro), o critério da ficcionalidade deixa a desejar quando
contemplada outra parte igualmente importante: a poesia, que não é e nem deixa de ser
ficção, vez que nada conta. Ela não imita, não inventa, não relata fatos imaginários -
pelo menos não necessariamente; basta-se em si mesma, não impondo qualquer
referência externa. E quem levantaria a voz para questionar a literariedade da poesia?
Outras críticas podem ser feitas a essa noção, e, de fato, já o foram. O teórico
inglês Terry Eagleton aponta que, em determinados períodos (em específico na
passagem do século XVI para o século XVII) os limites entre real e ficção estavam
diluídos não apenas nos espaços genuinamente literários, como os romances, mas
também em notícias de jornais. "A distinção entre 'fato' e 'ficção', portanto, não parece
nos ser muito útil, e uma das razões para isto é a de que a própria distinção é muitas
vezes questionável" (EAGLETON, 1997, p.02) Outro ponto: assim como nem toda
literatura é ficção, é possível constatar, na mão oposta, que nem toda ficção é literatura.
"C ..) Se a literatura inclui muito da escrita factual (detalhe importante), ela chega a
excluir muito da ficção. E não é para menos: quadrinhos não são considerados literatura,
assim como muita ficção vendida em bancas de jornais também não são." (SALES,
52
1999, p.14). Eagleton ainda aponta para a possibilidade de se ler determinada obra
como ficção, quando ela teria sido escrita como registro verídico, ou o contrário:
Neste caso, o caráter literário é determinado também pela leitura que se faz dele
- e esta, em sua vez, é determinada por uma série de fatores diversos, como tempo,
contexto social, valores culturais, condição da leitura, etc. Essa "fragilidade" que
Eagleton aponta para a definição de literatura como ficção pode estender-se facilmente a
outras definições - o que talvez resulte em relativismo, pois, em fim de contas, qualquer
texto pode ser lido como literatura.
Mesmo que predominante no período acima determinado, a presença desta
concepção de literatura como ficção transparece também em definições bem mais
recentes. Massaud Moisés fala de literatura como recriação da realidade - conceito que
tem raízes em Aristóteles - através de símbolos lingüísticos escritos. Sendo recriação, a
literatura resulta da imaginação e é, portanto, ficção. O conceito vai além: a recriação
simbólica da realidade é a forma em que esta realidade se dá a conhecer.
Uma outra definição a ser apontada é a que emerge mais tarde (principalmente a
partir do séc. XVIII) e não é apenas uma reformulação ou uma correção da primeira,
mas um conceito novo. Este seria que a literatura, como uma forma de arte, é um fim,
um valor em si mesma: sua realização plena dá-se dentro da sua própria expressão.
Quaisquer fins externos são secundários (o que não significa que não possam existir). É
a arte pela arte, a palavra pela palavra, o discurso não-pragmático. "( ...) Ela (a
literatura), em si própria, encerrana uma espécie de desinteresse por motivações
supostamente obrigatórias, afastando-se de qualquer praticidade, de uma finalidade
imediata de suas elaborações" (SALES, 1999, p.14). Base para muitas das correntes
literárias que se seguem - e coexistem - na tarefa de determinar os critérios científicos e
racionais que determinam o grau de literariedade de cada obra, esta é uma noção ainda
recorrente hoje. Bem próxima a ela está a proposta de Alceu Amoroso Lima, para quem
literatura é a arte da palavra, "palavra com valor de fim e não apenas com valor de
meio" (AMOROSO LIMA, 1990, p.34).12 Da mesma natureza, nos parece, é a noção de
literatura ligada ao conceito filosófico de beleza - esta afastada por Amoroso Lima por
ser "uma concepção muito alta e muito pura de literatura, mas que a afasta da Vida e a
reduz a uma seleção afinal empobrecedora" (AMOROSO LIMA, 1990, p.36) . Aqui, o
meio palavra é fim essencialmente ligado à estética, ao conceito filosófico e absoluto de
Beleza.
Assim como a primeira noção em destaque, esta definição também deixa a
desejar e é passível de críticas. Se o critério de ficcionalidade volta-se demasiadamente
para o romance, a novela ou o teatro, a noção da palavra-fim como condição para a
literariedade de um texto parece ter em vista, fundamentalmente, a poesia. Em relação a
esta alçada da literatura em particular, nos parece razoável afirmar que a palavra tem
nela mesma sua finalidade essencial. Como na obra de um escultor, o conteúdo está na
forma que toma a matéria-prima - no caso da escultura, o barro, a pedra, a madeira; na
literatura, a palavra. Pode-se contra-argumentar que à poesia é dado exercer um papel
social, destinar-se a transmitir a mensagem apaixonada dos namorados; propor-se à
tarefa de abalar estruturas culturais estabelecidas ou exercer o papel de válvula de
escape das emoções do poeta - são fins a que se podem somar outros e mais outros, ao
infinito. Mas a natureza essencial da poesia está na maneira como se combinam as
palavras que dão forma ao conteúdo; só a partir daí os demais objetivos podem aspirar à
12 As idéias de Amoroso Lima, pela sua fundamental importância na discussão acerca das relações entre
jornalismo e literatura no cenário nacional, estarão em foco no próximo item deste capítulo.
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54
Outra questão refere-se à relatividade deste critério, vez que conferir a um texto
a condição de literariedade dependeria, em grande parte, não do texto em si, mas da
forma como ele seria lido. Da mesma maneira que se pode, ou não, ler como ficcional
determinado texto, também é possível assumir como palavra-fim a palavra de um texto
filosófico ou científico (que tem fins bem anteriores à estética), por exemplo, de acordo
com a leitura que se faça, enxergando com arte um texto que teve, em sua criação,
caráter fundamentalmente pragmático. Nesta concepção,
•
55
13 A conclusão a que Todorov (1980) chega é a de que uma noção estrutural de literatura carece de
legitimidade e que o caminho para o estudo da atividade literária é ampliar horizontes, formando-se em
uma "teoria do discurso" realizada na análise dos gêneros discursivos e ocupando-se de todo o universo
verbal.
56
Alceu Amoroso Lima é, sem dúvida, um dos primeiros nomes lembrados quando
se fala das reflexões feitas acerca das relações entre jornalismo e literatura em âmbito
nacional. O ensaio "O jornalismo como gênero literário", publicado pela primeira vez
no fim da década de 50, está entre os clássicos do estudo do jornalismo no Brasil - o
que é indício da importância da questão para a compreensão do fenômeno jornalístico.
Como nos lembra Gabriela Reinaldo (l993), Tristão de Athayde - pseudônimo
que marcou os primeiros momentos da atividade de Amoroso Lima como jornalista,
ante mesmo da segunda década deste século - viveu uma das mais marcantes fases do
jornalismo brasileiro, caracterizada por uma relação bem próxima, por vezes mesmo
dúbia. entre os fenômenos jornalístico e literário: a virada do século. O jornalismo,
orno de resto quase todas as instâncias da sociedade, experimentou uma fase de
tran ição entre as últimas décadas do século XIX e as primeiras do século XX. Quando
o nome de Athayde surge nas páginas dos jornais, ainda são fortes as marcas de um
período onde não se podia definir se era jornalismo ou literatura o que ocupava tais
páginas. Ou ainda: se eram jornalistas ou escritores que assinavam tais textos.
I~ Clássica é a noção dos antigos - Aristóteles, Quintiliano, Horácio - para quem gênero é "um tipo de
construção estética determinada por um conjunto de normas objetivas. a que toda composição deve
obedecer" (p.26). O expoente da noção integral é Brunetiere que, influenciado pelo cientificismo da
egunda metade do século XIX, aplica à teoria dos gêneros literários um raciocínio análogo à teoria da
evolução de Oarwin - "os autores e as obras se movem mas os gêneros é que os conduzem" (p.27). A
noção chamada negativa ou nominalista - exemplificada no pensamento de Croce - opõe-se ao
cientificismo, separando radicalmente arte de ciência, mas, como a anterior, considerando que o conceito
de gênero é ontolágico. A concepção adotada por Amoroso Lima é a racional, que atribui aos gêneros um
valor metodolôgico.
58
É a partir desta noção que Amoroso Lima considera jornalismo um dos gêneros
da literatura:
"O que todo o mundo entende por literatura é alguma coisa em que
a palavra valha por si, seja prosa, seja verso, seja monólogo, seja diálogo,
seja oral, seja escrita. O homem da rua, nesse ponto, distingue com mais
objetividade que o filósofo enredado em distinções e sutilezas" (AMOROSO
LIMA, 1990, p.35)
verso
de ficção de pessoas
-7 -7
literatura ----t ••Prosa, :~de apreciação ---I.~de acontecimento: jornalismo
.~ de comunicação .~ de obras
•
60
nem tudo o que está em verso é poesia, nem tudo o que é ficção é romance,
nem tudo o que se leva à cena é teatro" (AMOROSO LIMA, 1990, p.56).
•
61
Nesta hipótese, uma matéria jornalística tanto menos jornalismo será quanto
rnars literária for - de onde concIuir-se-á que o jornalismo em essência, exercendo
plenamente sua função, não admite aproximação alguma com a literatura. Tal
jornalismo pleno está fadado à transitoriedade. Se permanece e aproxima-se da
imortalidade dos literatos, não terá sido jornalismo em sua plenitude. Eis aí o extremo
15 No capítulo, no item "Os 'Diálogos Possíveis' em De Corpo Inteiro" recorreremos mais uma vez à
visão de Massaud Moisés sobre as relações entre jornalismo e literatura, quando discutiremos
63
oposto à tese de Amoroso Lima, para quem a condição de arte verbal determina o bom
jornalismo.
Parece-nos que estas duas esferas - jornalismo e literatura - têm, na verdade,
naturezas distintas. O jornalismo não é o primo pobre, não é uma sub-esfera e nem
tampouco um fenômeno híbrido; a literatura não o abrange nem a ele se opõe. O
jornalismo não é bom apenas quando se reveste de arte da palavra, nem se afasta de
sua natureza e de seus objetivos quando aproxima-se da literatura. Cada uma destas
duas atividades ocupa um espaço próprio. Mas não são espaços estanques; ao contrário,
influenciam-se mutuamente, reagem a estas influências, aproximam-se e afastam-se,
fundem-se e opõem-se, transformam-se constantemente. Não se trata de uma relação
entre categoria e gênero, entre conjunto e subconjunto. É, antes, uma relação entre
conjuntos cujos domfnios coincidem em alguns pontos e excluem-se em outros; e que,
ainda, mantêm - ambos - relações de interseção e exclusão com terceiros conjuntos - e
quartos, e quintos, ao infinito. Uma relação que pode ser enriquecedora e até
revolucionária, como constata Cremilda Medina:
"O escritor pode se dar ao (sic) luxo de alegar que abstrai o seu
leitor, o jornalista não. Com este limite, a criatividade na linguagem da
comunicação social esbarra em qualquer ambição de vanguardismo, de total
livre-expressão, sob contexto da grande audiência" (M EDINA, 1990, p.27)
rapidamente as influências do suporte - a revista (Manchete) e o livro (De Corpo Inteiro) - na natureza
(jornalística/literária) das entrevistas de Clarice Lispector.
-
64
Alguém já disse que há um livro na vida de cada ser humano. Cada pessoa, na
sua singularidade, é um universo inteiro de experiências reais e imaginárias - fatos
cornqueiros, aventuras fantásticas, sonhos impossíveis, pequenas realizações,
sentimentos, desejos, valores, crenças, Lições. Há séculos, os literatos vêm debruçando-
se sobre estes universos - o seu e o do outro - e imortalizando em prosa e verso o corpo
e a alma humana. Para registrar estes universos - da forma singular como os viram, os
sentiram, os desejaram ou os imaginaram - valem-se da fantasia, da ficção - e até da
realidade -, do seu dom, da essência simbólica da linguagem, das transgressões e
rebeldias que cabem na criação literária.
Mas quantas vidas deixaram - e deixam - de ser contadas? A quantos destes
universos únicos e voláteis foge o olhar perenizador das letras? Quantos livros deixam
de ser escritos? O caráter simbólico e representativo confere à Literatura uma amplitude
que lhe dá a pretensão de abranger o real e o imaginário, a forma e a essência do ser
66
humano; mas ela não é onipresente e, ocupando-se da essência, muitas vezes lhe foge o
singular, o particular, aquilo que torna cada pessoa única; o universo que, sob um olhar
questionador, poderia ser retratado no livro - ou nos vários - que deixou de ser escrito.
Enquanto o literato ocupa-se da essência, valendo-se de toda a subjetividade que
lhe permitem os elásticos limites da criação artística, o jornalista, no outro lado, está às
voltas com a "objetividade" quase fria que lhe impõem as normas estritamente técnicas
aplicadas às "notícias quentes". Não percebe, por vezes, o olhar privilegiado que lhe
permite a sua posição; ligado ao dia-a-dia, ao fato corrente, ao devir diário dos
acontecimentos e, conseqüentemente, também aos seus sujeitos, escapam-lhe muitas
vezes, os universos singulares que estão em cada esquina. Se ao literato, mergulhado em
sua própria subjetividade, muitas vezes não sobra espaço para um olhar questionador
sobre aqueles que lhe cruzam o caminho aleatoriamente, o jornalista, concentrado que
está na tarefa de relatar "objetivamente" os fatos do cotidiano, por vezes passa reto pela
particularidade de suas "fontes" que, além de sujeitos dos acontecimentos, caberiam
elas próprias num relato que muito diria das circunstâncias de que o jornalismo está
sempre à busca.
Vazio do olhar do escritor imerso no universo de sua própria subjetividade (o
que, ressaltemos, não é pouco) e tampouco ocupado pelo repórter atarefado com o
relato diário e quase instantâneo dos fatos cotidianos (tarefa por vezes hercúlea) o
espaço para possíveis retratos do "eu" singular de cada ser humano, nobre ou plebeu,
sob as lentes das letras é exatamente o lugar que reivindicamos para a entrevista
jornalística - fazendo coro a tantos jornalistas-literatos ou escritores-repórteres que
perceberam a riqueza que silenciosamente aflora de cada pessoa. Não qualquer
entrevista; referimo-nos à entrevista aprofundada, resultante do diálogo possível de que
fala Cremilda Medina (1995), ao encontro modificador entre subjetividades, ao "olhar o
outro" com a curiosidade e o respeito que se devem a cada sujeito. Falamos,
especificamente, dos "Diálogos Possíveis com Clarice Lispector", representados a
princípio no espaço essencialmente jornalístico da revista semanal e depois
transformados em uma obra literária que se dá à tarefa de imprimir aspectos de alguns
destes universos singulares sob o olhar da escritora que emerge da sua subjetividade -
sem abandoná-Ia por completo - para ocupar-se com o relato dos encontros
circunstanciais típicos do fazer jornalístico.
A entrevista, quando resulta de uma bem sucedida aventura do jornalista no
universo das belas letras ou quando origina-se na intenção do literato de ver o mundo e
67
e até cenografia, que senam típicos do teatro, da ficção literária, mas que soam
estranhos quando se referem à atividade jomalística.
Não se trata apenas de terminologia. Na verdade, a autora aponta características
da narrativa ficcional no discurso da entrevista:
Este ambiente simbólico é tão amplo que, tal como a realidade em si, não é
po ível capturá-lo em toda a sua dimensão. Mas o será na medida do possível, esta
deve ser a meta do repórter. Sua percepção tem de estar suficientemente aguçada para
exercer a tarefa que é da câmera no caso das entrevistas televisivas; seu olhar tem de
capturar o gesto, a roupa, a pele; seus sentidos - quem sabe até mesmo o sexto deles -
69
repórter. A ele cabem as decisões quanto à edição - que, sabemos, tem uma influência
inegável sobre o sentido do texto. Estas decisões vão determinar que parte do material
deve ser publicado (já que é raro haver espaço para uma publicação na íntegra), que
passagens podem ser cortadas sem prejuízos, onde cabem parênteses para explicações,
remissões ou referências. Mas o ato criador do repórter não se limita a isto; há que se
levar ao leitor informações que não estão impressas nas palavras do diálogo, sejam
dados relevantes sobre a vida do entrevistado levantados em pesquisas prévias ou
posteriores, sejam impressões e emoções do entrevistador. Apesar de existirem
"formatos-padrão" de texto - como os "abres" que antecedem o pingue-pongue e onde
normalmente constam uma apresentação breve do "currículo" do entrevistado, uma
introdução rápida aos assuntos abordados e algumas informações ligeiras sobre as
circunstâncias da entrevista -, um repórter mais ousado, se as condições permitirem,
pode usar neste espaço algo da "rebeldia" do literatos. O jornalista se vê diante da
matéria bruta e, tal qual o artesão com as mãos no barro disforme, tem liberdade para
dar forma ao conteúdo. Aqui, as metáforas, as redundâncias, a primeira pessoa, as frases
invertidas, os adjetivos e advérbios - por vezes malquistos na linguagem jornalística,
mas tão próprios da literatura - são não só permitidos como desejáveis, contribuindo
para o êxito do repórter na tarefa a que se propôs. Das mãos do escultor, pode sair um
objeto meramente utilitário - qual seria a "pirâmide invertida" - ou uma obra que
resistirá a erosão do tempo, em cuja forma estará o retrato de uma época e de seus
personagens. Arte da palavra - subjetiva, livre, criativa - em função das circunstâncias
- atuais, precisas, relevantes - de que o jornalismo estará sempre à busca.
71
3.
DE CORPO INTEIRO
72
16 Por muito tempo, a bibliografia a respeito da autora adotou o ano de 1925. A própria Clarice Lispector
aponta esta data, quando afirma que escreveu seu primeiro romance, "Perto do Coração Selvagem", aos
17 anos, em 1942. Mas a data correta parece ser 10 de dezembro de 1920, que consta nas biografias
"Clarice - Uma vida que se conta" e "Eu sou uma pergunta".
73
Entre tantos retratos, mais um: aquele captado pelo olhar jornalístico de José
Castello (l999) e registrado em "um livro híbrido (...), que fica em meio caminho entre
o jornalismo, o ensaio, a crítica literária e a ficção". Num perfil humanizado, mescla de
impressões do repórter literário e expressões de sua notável entrevistada - Clarice -,
onde a palavra proporciona o encontro do fato, da lembrança, do relato e da imaginação,
Castello conta a história-retrato de seus encontros e desencontros com Clarice
Lispector, em vida e obra. E, entre muitas perguntas, entrega-nos a sua suposição: "Só
Q
74
é possível ler Clarice Lispector tomando o seu lugar - sendo Clarice." (CASTELLO,
1999, p.29)
As várias leituras de vida e obra nos levam a crer que não há apenas uma Clarice
Lispector. Em uma só ela foi múltipla (como afinal são todos os seres humanos); uma
multiplicidade tamanha que caberia em muitas vidas: "Tenho várias caras. Uma é quase
bonita, outra é quase feia. Sou um o quê? Um quase tudo".
A palavra - escrita - é o denominador comum da multiplicidade c1ariceana.
Autora e personagem, narradora e observadora, escritora e jornalista, entrevistada e
entrevistadora, implícita e explícita: é na escrita que Clarice Lispector procura o seu
canal de comunicação com o mundo e consigo mesma. "Eu não faço literatura: eu
apenas vivo ao correr do tempo. ° resultado fatal de eu viver é o ato de escrever"
(LISPECTOR, 1991, p.21)
Não buscamos aqui uma separação estanque: Clarice-literata e Clarice-jomalista.
Ao contrário, o objetivo é mais uma "suposição de Clarice": ser humano no equilíbrio
entre criador e criatura, entre cotidiano e imaginário, na busca incessante do segredo
não desvendado pela esfinge; segredo que é o mistério de Clarice, o mistério da criação,
o mistério de todos os seres, do existir, do estar no mundo ou passar por ele. A movê-Ia,
podemos supor, está a tentativa de resgatar o mistério da vida, que é, enfim, a incógnita
de si mesma - nascida na Ucrânia, batizou-se Haya, que em hebraico significa vida.
° TEIRO, 1998)
Para se lançar ao mistério, na tentativa de imergir em si mesma e desvendar o
outro - real ou ficcional, personagem ou entrevistado - lança-se, antes, à linguagem, à
pala ra. Não se conforma com limites; quer virá-Ia ao avesso, esgotá-Ia para chegar ao
"indizível". Seu fim é o momento primeiro, o que "está atrás do pensamento" - a idéia
pura platoniana ; a essência que antecede, o contato direto, o significado pleno só
alcançado quando se esgota o significante, o "instante-já" anterior ao símbolo - a
primeiridade peirciana. "O mundo pré-vegetal, anterior aos símbolos e à cultura: eis a
busca de Clarice" (CAMPEDELLI e ABDALA, 1981. P. 104)
Referindo-se à Paixão Segundo G.R., nos diz Benedito Nunes:
E cita:
•
76
Um Sopro de Vida
17 Vidas Secas. de Graciliano Ramos. é de 1938 e Fogo Morto. de José Lins do Rêgo, é de 1943. Estes
dois autores, ao lado de Rachei de Queiroz , Jorge Amado e Érico Veríssimo são alguns dos nomes que
marcaram o segundo momento do Modernismo brasileiro.
a
77
seria fácil: seria como relatar de uma forma o que já existisse livre, o
conteúdo. Mas a luta entre a forma e o conteúdo está no próprio
pensamento: o conteúdo por se formar. Para falar a verdade, não se pode
pensar num conteúdo sem a sua forma. Só a intuição toca na verdade sem
precisar nem de conteúdo nem deforma" (LlSPECTOR, 1999, p. 254)
"Tem que ser assinado, mas não tem importância, nós todos
perdemos a vergonha e estamos assinando (...). Não se incomode muito com
a qualidade literária porque é assinado - um título qualquer com Bilhete
Americano, Carta da América ou coisa parecida se encarregará de dar
80
"(. ..) acho que você deve assinar o que escrever: como exercício de
humildade, é muito bom. E, depois, você leva a vantagem de estar enviando
correspondência do estrangeiro, o que sempre exime muito a pessoa de
responsabilidade propriamente literária. No fundo isso pode ser sofisma de
quem se vê também obrigado a assinar o que não quer e está querendo ver
os outros no fogo também" (SAB/NO apud COLTlB, /995, p.296/297)
o fato é que, em algumas ocasiões, Clarice está nos jornais sob pseudônimos -
ou melhor seria dizer na pele de personagens? o jornal O Comício, é Tereza Quadros
que assina a página feminina, com "variedades" como receitas, dicas de beleza, etc. No
Correio da Manhã, a "personagem" é Helen Palmer; e para o jornal Diário da Noite,
Clarice assume a pena de uma personagem real, assinando Ilka Soares, a atriz e
manequim que emprestava seu nome e estampava seu rosto no alto da coluna feminina.
As atividades jornalística e literária caminharam paralelamente - e evitar que as
mãos se dessem não estava ao alcance da autora pois, como vimos, são elásticos e
inconstantes os limites entre estas duas atividades, confluentes.
se lê nas entrelinhas da coluna invade as linhas do conto "A Quinta História" onde
petrificar baratas é a "missão" da narradora: "Meticulosa, ardente, eu aviava o elixir da
longa morte. Um medo excitado e meu próprio mal secreto me guiavam. Agora eu só
queria gelidamente uma coisa: matar cada barata que existe" (LISPECTOR apud
GOLTIB, 1995, p.282).
Na coluna, Tereza Quadros apropria-se do poder criativo de sua "autora"; no
conto, Clarice Lispector lança mão do "fato jornalístico" que move a sua "personagem".
várias dessas confissões pessoais publicadas no JB, talvez seja uma das mais
esclarecedoras "biografias" de Clarice Lispector.
Na coluna semanal, às vezes são publicadas entrevistas (algumas das que foram
publicadas na Manchete, por exemplo), pequenos contos, "noveletas". As próprias
crônicas, predominantes, variam no tom: às vezes, com temas corriqueiros e linguagem
bem simples; outras, com ousadias estruturais bem próximas à linguagem dos contos
ou romances. Mas há, claro, diferenças entre o texto jornalístico e literário; no espaço
do jornal, muitos dos comentários voltam-se para questões factuais, a linguagem é
geralmente mais simples e clara e há um compromisso com o leitor bem mais rigoroso
••
83
que na literatura. A autora deixa clara essa diferença em várias passagens de seus textos
- às vezes, tentando deixar nítida a diferença entre o material jomalístico e seus livros,
para não "corromper" a palavra literária:
"Sinto-me tão perto de quem me lê. Efeliz por escrever para jornais
que infundem respeito." (LlSPECTOR, 1999, p. 95)
manter de pé
A Hora da Estrela
•
85
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86
outro ficcional a sua trilha na busca do "indizível", do "é" das coisas e de si mesma. No
intenso diálogo de múltiplas vozes, que segue o fluxo da consciência dos personagens e
da inquietude da autora, a palavra é o canal para desvendar e desvendar-se.
Na ficção, pois, é construindo inter-relações entre vozes ficcionais que Clarice
VaI trilhando o seu caminho rumo ao entendimento do ser. Mas essa tentativa de
compreensão das essências, da própria existência humana - e, em paralelo, da existência
da linguagem -transborda os limites da obra literária de Clarice Lispector, ocupando
também um lugar no exercício do jornalismo - provavelmente porque, atrás da escritora
e atrás da jornalista está o ser que busca seu caminho em si e no outro, como afirma em
uma de suas crônicas:
Essa busca de si no outro se toma clara, ao nosso ver, nos "Diálogos Possíveis".
As entrevistas reunidas em De Corpo Inteiro têm características singulares, cada uma,
resultantes desse encontro entre seres, dessa busca - mútua - do outro. Têm também
características comuns entre elas - e que as diferenciam de qualquer outra entrevista -
oriundas das inquietações da Clarice-entrevistadora e de seu olhar questionador singular
em direção ao entrevistado, buscando ultrapassar a superfície; um olhar que quer
absorver o que flui da consciência deste outro, na tentativa de desvendar-lhe,
descobrindo-se. Os trinta e cinco encontros são únicos, cada um - pois são um encontro
entre as duas subjetividades, e cada entrevistado é um universo particular. Mas, tal
como as obras da Clarice-literata - únicas, cada uma, mas unidas pela presença da
personagem que "fica em suspenso e deixa-nos entrever a existência pura, contingente,
irredutível ao controle da vontade e do entendimento" (NUNES, 1976, p. 121) - unem-
se exatamente pela presença deste olhar sempre à procura. Este olhar que vê através de
palavras, tentando entrever a pura existência do outro; e, por vezes, tentando encontrar
no olhar do outro o reflexo de seu próprio enigma.
87
As maioria das entrevistas que compõem o livro De Corpo Inteiro foram feitas,
originalmente, para a publicação na revista semanal Manchete - segundo Nádia Goltib
(1995), 28 das 35 entrevistas do livro foram publicadas na revista, de onde Clarice foi
colaboradora entre maio de 1968 e outubro de 1969, assinando a seção "Diálogos
Possíveis com Clarice Lispector". A estas, foram acrescentadas, para a publicação em
livro, as entrevistas a Pablo Neruda, Alceu Amoroso Lima, Grauben, Benedito Nunes,
élida Pinõn, Ney Braga e Reis Velloso. Algumas delas foram publicadas também no
Jornal do Brasil - os diálogos com Tom Jobim, Pablo Neruda e Alceu Amoroso Lima,
por exemplo, foram publicados em trechos consecutivos na coluna semanal de Clarice e
constam no volume de crônicas A Descoberta do Mundo. A seção "Diálogos Possíveis"
foi retomada pela escritora nos seus dois últimos anos de vida, desta vez para a revista
Fatos e Fotos - da mesma editora de Manchete. A primeira edição de De Corpo Inteiro
foi publicada pela editora Artenova, em 1975.18
Há um lastro temporal de, pelo menos, seis anos entre a publicação de cada
entrevista no espaço jornalístico da revista semanal e a reunião dos diálogos no livro,
suporte secular da literatura. E qual a importância disso? A nosso ver, apesar de não
haver alteração no texto entre as publicações na revista e no livro;" essa transição de
um suporte para outro aponta para aspectos relevantes na compreensão das entrevistas
corno textos em que convivem os caracteres do jornalismo e da literatura. Como já
dissemos, a questão das influências do suporte na natureza do texto mereceria um
tratamento mais aprofundado e embasado, ausente neste trabalho. Mas parece-nos
relevante abordar o assunto, ainda que de maneira superficial, pois um de nossos
enfoques é exatamente a relação - possível e desejável convivência, como já vimos -
entre as naturezas jornalística e literária num mesmo texto.
Já não é de hoje o costume de se reunir em livro textos originalmente publicados
em periódicos jornalísticos - lembremos, por exemplo, dos folhetins românticos
brasileiros publicados em capítulos, à forma de novelas destinadas ao grande público,
nas "folhas", "gazetas" e "diários" do século XIX e cujos títulos, até hoje, são impressos
18 O livro teve, posteriormente, mais duas edições, em 1992, pela Siciliano e em, 1999, quando a obra de
Clarice Lispector foi reeditada pela Rocco.
19 Confrontamos o texto de duas das entrevistas do livro De Corpo Inteiro - ao físico Mário Schemberg e
ao ator Tarcísio Meira - com o texto publicado em Manchete (nas edições de 22 de junho de 68 e 11 de
88
Daí é que o autor aponta a diferença entre escrever para o jornal e publicar no
jomal.i" No caso dos folhetins românticos, trata-se claramente de "matéria alóctone",
publicada no jornal - "como se poderia fazê-lo em qualquer outro órgão difusor de
mensagens escritas" (MOlSÉS, 1994, p. 104) - mas não escrita para ele; corpo estranho
no contexto jornalístico, texto essencialmente literário, sem vínculos obrigatórios com
os fatos do cotidiano.
o mote para a reflexão proposta por Moisés são as crônicas publicadas em jornal
ou revista e posteriormente reunidas em livro. Mas, ao nosso ver, a argumentação do
autor pode ser também aplicada, em caráter mais geral, à matéria jornalística de outro
gênero qualquer onde se possam identificar aproximações com a atividade literária e,
numa visão mais específica, às entrevistas analisadas neste trabalho. No caso de Clarice
Lispector, acreditamos que a reflexão feita até aqui nos oferece razões suficientes para
destacar a proximidade entre os "Diálogos Possíveis" e as crônicas publicadas no Jornal
do Brasil; as matérias, além de terem sido realizadas simultaneamente (Clarice
colaborou com o JB entre 67 e 73, período em parte coincidente, portanto, com sua
atuação em Manchete), abordam muitas vezes os mesmos temas (Chico Buarque, um
outubro de 69, respectivamente). e constatamos que não houve cortes ou alterações. A consulta foi feita
no acervo do Jornal O Povo.
20 Massaud Moisés (1994) faz esta reflexão para inserir a questão do "conceito e estrutura" da crônica,
tratada como um dos gêneros literários em prosa. Para o autor, a crônica, "duma ambigüidade irredutível
(...) move-se entre ser no e para o jornal". Mantém, do jornalismo, a linguagem simples ao alcance do
°
público médio e o vínculo com cotidiano; mas "o seu objetivo, confesso ou não, reside em transcender °
dia-a-dia pela universalização de suas virtualidades latentes", ou seja, aspira à condição nobre e perene de
literatura.
89
dos entrevistados, foi assunto das crônicas semanais em mais de uma ocasião; o mesmo
acontece com Érico Veríssimo) e, em algumas ocasiões, as próprias entrevistas chegam
a ocupar o espaço da coluna semanal reservado às crônicas, como já citamos.
Para Moisés, as crônicas têm natureza híbrida, oscilando entre a nobreza da
escrita literária digna da imortalidade e o "descolorido" relato jornalístico fatalmente
preso ao "ramerrão cotidiano". Como já vimos no capítulo anterior, para o autor, o
caráter literário de um texto é inversamente proporcional à sua missão jornalística, ou
seja, quanto mais jornalística for, menos literária será a matéria, e vice-versa. Sendo
coerente a este raciocínio, o autor considera que a crônica, em origem, "não pressupõe
o formato do livro", mas pode vir a merecer os louros da arte literária, pois sua busca é
"subtrair-se à fugacidade jornalística assumindo a perenidade do livro". E, vez por
outra, "logra escapar de perecimento tão breve. E adquire, no livro, uma existência
menos falaz." (MOlSÉS, 1994, p. 106).
Ainda assim, a literariedade da matéria jornalística, mesmo com qualidades
suficientes para ser incluída num livro, é relativa. "Reduzindo o cotidiano em sua
imensa variedade a pílulas de fácil digestão, pois que se dirige ao público médio, a
crônica é por natureza uma estrutura limitada, não apenas exteriormente, mas, acima de
tudo, interiormente." (MOISÉS, 1994, p. 108) Para o autor, tais matérias jornalísticas,
quando contêm "algum achado que lhes justifique a inclusão em volume", sub-aproveita
estes "achados", que
A
90
personalidade do entrevistado su cita; é este o fato encontrado ali, ainda que, quem
sabe, no decorrer do texto o leitor descubra-se concentrado no mundo íntimo da
escritora-entrevistadora. Já em De Corpo Inteiro, a capa do livro dá destaque ao nome
da entrevistadora-literata; a ela são feitas as referências da contra-capa, das "orelhas",
das notas de apresentação - e aí mesmo não são raras as comparações feitas às suas
obras de ficção - ; a aparência externa do livro segue a mesma programação visual das
outras obras da autora. Aqui, o interesse pela Clarice-literata capta os sentidos do leitor
que passa os olhos pela estante da biblioteca ou livraria; este interesse vai motivá-Io a
ler as entrevistas, ainda que no decorrer de cada texto, quem sabe, tal leitor descubra-se
inserido no universo singular do entrevistado.
ão nos escapa, contudo, a natureza diferenciada desta entrevista, mesmo no
espaço revista. Primeiro, por constarem numa seção periódica, os "Diálogos Possíveis
com Clarice Lispector" podem, com o tempo, conquistar público fiel, tomando-se a
entrevistadora sua principal motivação de leitura. Segundo, porque desde o título da
eção, sabe-se que aquela não é uma entrevista qualquer, e sim uma entrevista
concedida a Clarice Lispector - naquela altura, já conhecida corno escritora por uma
parte do público. Mas ainda assim, este enfoque de Leitura, ao nosso ver, é exceção à
regra recorrente, sendo Manchete uma revista semanal voltada a um público geral e
abordando assuntos variados. Talvez, num veículo especializado, que se voltasse
especificamente para o leitor interessado na literatura e em outras artes, fosse diferente
a situação.
Trata-se aqui, vale ressaltar, de urna hipótese, cuja constatação se dá sem bases
formais que a sustentem. Como dissemos, esta hipótese mereceria uma análise mais
profunda - baseada, quem sabe, num estudo comparativo e à luz das teorias da recepção
- onde lhe fosse dada uma consistência teórica. Este não é o objetivo deste trabalho;
ainda assim, pareceu-nos relevante expor estas considerações sobre o suporte das
entrevistas antes de analisá-Ias, pois todo este trabalho foi feito a partir da publicação
em De Corpo Inteiro. Tivemos apenas um breve contato com poucos exemplos da seção
"Diálogos Possíveis com Clarice Lispector" publicadas nas edições da revista; e destas,
apenas duas continham entrevistas que constam no livro - nenhuma delas, ressaltamos
ainda, está entre as dez entrevistas sobre as quais nos determos com maior cuidado a
seguir.
A
92
.. .. 7F
94
21 Neste capítulo, que se volta à análise das entrevistas, os trechos referenciados pela abreviação DeI
foram retirados do livro De Corpo Inteiro, em sua segunda edição, pela Siciliano, em 1992. As dez
entrevistas selecionadas estão anexadas na íntegra, através de fotocópias da edição da Rocco, de 1999.
95
22 Os trechos em negrito correspondem às falas de Clarice Lispector, para diferenciá-Ias das falas dos
entrevistados.
3:
96
olhar o ser-outro do que pelas referências que possam ser feitas à época e aos fatos. E
este debruçar sobre a personalidade do outro se dá dentro dos mais rigorosos princípios
éticos, ditado quer pela responsabilidade social do jornalismo com a imagem pública do
entrevistado, quer pelo compromisso pessoal da escritora, a quem é familiar a condição
de entrevistada - "detesto dar entrevistas, elas me deformam" - e que conhece como
ninguém o poder da palavra. Em diversos momentos, Clarice reafirma este
compronusso:
"Devo dizer que Tereza e eu tivemos conversas além das que estão
sendo publicadas: são mais da intimidade dela, e respeito-a" (DCI, p.162,
entrevista com Tereza Souza Campos)
E, se por um lado, a falta de datas, muitas vezes deixa o leitor alheio ao contexto
factual da entrevista e a falta de referências objetivas, em alguns casos, deixa-o alheio
ao "papel oficial" do entrevistado na sociedade, por outro nota-se uma preocupação
constante em deixá-lo a par do ambiente simbólico compartilhado em cada encontro - e
aí, prevalece a Clarice que, como escritora, prefere ao fluxo cronológico o fluxo da
consciência; ao fato, prefere o sujeito; à função, a essência; quer retratar não o "está",
mas o "é". E esse ambiente simbólico é oferecido ao leitor de várias maneiras. Ao
redigir o retrato do encontro, Clarice Lispector não se prende necessariamente a um
modelo; suas impressões são colocadas no momento e sob a forma que lhes parecem
apropriados. Em alguns diálogos, opta pelo tradicional texto de abertura - o "abre" -, ali
apresentando o entrevistado e, não raro, dizendo de sua relação anterior com ele. Em
outros, lhe servem de "abre" palavras poucas a dizer tudo; como na entrevista com
23 Na edição de 1999, em" ota Prévia", informa-se da publicação em Manchete, mas também não é
citado o período de publicação.
97
A Djanira, pergunta: "- Se você não tivesse se encontrado com a pintura, que
forma de arte crê que seria a sua?"
A Maria Martins: "- Se você tivesse que recomeçar a sua vida do início, que
destino escolheria, se é que se escolhe destino?"
A 1ardel Filho: "- Se você não fosse ator, que profissão provavelmente
adotaria?"
A Jacques Klein: "-Se você não fosse o pianista que é, que forma de arte o
atrairia?"
E a Tereza Souza Campos: "- Se você não fosse Tereza Souza Campos, o que é
que gostaria de ser?"
Provavelmente, a tentativa de Clarice, ao confrontar o entrevistado com esta
situação hipotética - a possibilidade de escolher o teria sido, fosse que se escolhesse
destino - é alcançar o inatingível, a dimensão total da essência do ser, como se aquilo
que alguém seria se não fosse o que é indiciasse aquilo que alguém intimamente é e não
sabe, por não ter coragem de encarar o desconhecido. Na crônica de 30 de novembro de
68, em sua coluna no 1B, Clarice escreveu:
" 'Se eu fosse eu' parece representar o nosso maior perigo de viver,
parece a entrada nova no desconhecido. No entanto, tenho a intuição de que,
passadas as primeiras chamadas loucuras dafesta que seria, teríamos enfim
a experiência do mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor
do mundo. E a nossa dor, aquela que aprendemos a não sentir. Mas também
seriamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal
posso adivinhar" (LlSPECTOR, 1999, p. /56)
Grande parte das perguntas feitas pela entrevistadora aos seus entrevistados - as
mais significativas, arriscamos dizer - são perguntas feitas por Clarice a ela mesma,
repetidas vezes. São tentativa de descobrir o "é" das coisas e dos seres, desvendando-os
e desvendando-se. A análise que se fará a seguir centrar-se-á principalmente na postura
da Clarice-entrevistadora. O que faz de cada "Diálogo Possível" um único é o universo
singular de cada entrevistado; o que faz do De Corpo Inteiro um todo é o universo
singular de Clarice Lispector. Do todo, pinçamos dez fragmentos e procuramos analisá-
los como amostras singulares de um universo inteiro.
a
99
3.3.1. Recorte
1. Vinícius de Morais
2. Érico Veríssimo
3. Entrevista relâmpago com Pablo Neruda
4. Um homem chamado Hélio Pellegrino
5. Dinah Silveira Queirós
6. Chico Buarque ou Xico Buark
7. Djanira
8. Seliar
9. Tom Jobim
10. Tereza Souza Campos
Alberto Dines - tais textos constróern-se como arte da palavra, pelas mãos de uma das
escritoras brasileiras que melhor soube explorá-Ias (ainda que nunca se tenha dado por
satisfeita; ou exatamente por causa disso). Em relação às estruturas-padrão do texto
jornalístico, a inovação e a liberdade criativa de Clarice sobressaem - principalmente
tendo-se em vista a "objetividade" e a impessoalidade que era regra no jornalismo à
época da edição das entrevistas em Manchete (68/69). No lugar do lide, entram os perfis
humanizados, onde as impressões predominam aos fatos e às datas. E, como já citamos
e veremos melhor a seguir, nem mesmo estas impressões seguem uma regra: ora há um
"abre" próximo ao tradicional, ora há impressões entrecortando o diálogo, ora não há
um nem outro.
Mesmo diante da (às vezes gritante) subjetividade que imprime - tanto no
diálogo como no texto que o representa -, Clarice sabe dar ênfase à personalidade do
entrevistado; demonstrando "habilidade jornalística", usa da técnica em momentos
determinados e mostra-se competente no direcionamento dado à entrevista, deixando
transparecer, quase sempre, uma sensação de naturalidade e de continuidade, sem fugir
às questões que lhe interessam (sua "pauta"). Mesmo com características bem próprias -
e distantes do padrão jornalístico à época - os "Diálogos Possíveis" se mantêm sob os
limites da esfera jomalística, assumindo ao mesmo tempo a perenidade da arte,
colocando-se dentro da seara da literatura na obra de Clarice Lispector.
Esta "habilidade" na condução do diálogo - tendo em vista o seu objetivo de
desvendar o ser-outro na busca constante pelas essências que marca toda a sua obra -
nota-se não apenas nos temas suscitados pelas perguntas (o processo criativo, o amor, a
felicidade, Deus e uma possível existência metafísica, a individualidade) mas também
em procedimentos recorrentes, denotando uma espécie de técnica particular da Clarice-
entrevistadora. Além da já citada "trilogia clássica" de perguntas, é recorrente também a
tentativa de provocar o processo criativo, talvez com o intuito de se "apossar do é da
coisa" no "instante-já", de que Clarice fala através da personagem de Água Viva. A
entrevistadora pede do entrevistado que crie ali, naquele momento, diante do "seu olho
olhando com cara de Juízo Final", como percebeu Chico Buarque.
Duas formas de pergunta repetem-se em várias entrevistas, e podem ser
apontadas como técnicas - na falta de melhor palavra. Uma consiste em interpretar o
entrevistado, a partir de elementos do próprio diálogo ou anteriores a ele, para que
provocar-lhe uma reação, confirmando ou negando a leitura que lhe fez a entrevistadora.
Como se dissesse "é assim que eu vejo você" e logo depois "o que você me diz disto?",
a
102
-A
104
Várias das questões recorrentes nas entrevistas estão presentes aqui, inclusive as
da trilogia "clássica" de perguntas, embora não estejam encadeadas como de costume.
Acontecem em momentos distintos, duas delas na forma de perguntas - "-Reflita um
pouco e me diga qual é a coisa mais importante do mundo, Vinícius" (p.19) "- Como
pessoa, Vinícius, o que é que desejaria alcançar?" (p.20) - e a terceira, "o que é o
amor", diluída por toda a entrevista.
Um dos momentos mais expressivos do encontro, além de muito dizer de cada
um dos envolvidos e da admiração mútua nutrida entre os dois, retrata também dois
aspectos recorrentes em outros momentos do livro: a tentativa de interpretar o outro
também partindo do entrevistado em relação à entrevistadora, e a tentativa de Clarice de
entender o "instante-já" da criação, não apenas pedindo explicações, mas
testemunhando-o, sendo cúmplice do processo criativo:
Q
105
a
106
"Você, Érico, é uma das pessoas mais gostáveis que conheci. Você
é uma pessoa humana de largueza extraordinária. Que é que me diz
disso?" (DCl, p.24)
melhor desse tempo foi a nossa amizade. Você saiu daquela chatice federal
com um romance denso de substância humana e poética." (DCI, p.25)
"O que ele mais quer no mundo? Primeiro, gente. A sua gente. A
sua tribo. Os amigos. E depois vêm música, livros, quadros, viagens. Não
nega que também gosta de si mesmo, embora não se admire. " (LlSPECTOR,
1999, p. 442)
108
eu - que o fizemos.
De Corpo Inteiro
Embora breve, este não deixa de ser um exemplo de diálogo possível, revelador
que é das duas personalidades. As respostas curtas, frustrantes às expectativas da
entrevistadora, também exercem sobre ela um certo fascínio. E surpreendem-na, de uma
surpresa que ela mesma solicita e não deixa de registrar:
Pela riqueza implicitamente revelada nas respostas curtas, Clarice lamenta não
poder prosseguir no caminho do diálogo. "Antes ele falasse mais. Eu poderia prolongá-
10 quase que indefinidamente, mesmo recebendo como resposta uma única seta de
resposta". E, insatisfeita com o resultado até aí, recorre ao recurso de "pós-produção",
típico da entrevista jomalística: vai buscar elementos fora do diálogo em si (mas
inseridos no contexto simbólico que envolve o encontro), na tentativa de completar
satisfatoriamente o retrato do ser-outro:
com ele é ótimo, e chorar perto dele também deve dar certo, imagino.
Quando estou com Hélio eu me sinto valorizada como pessoa." (DCl, p.55)
E, a Hélio Pellegrino, Clarice faz uma das perguntas mais indicati vas da hipótese
de que ao olhar o outro ela está também procurando o olhar do outro sobre ela. E de que
em si e no outro está procurando a essência do ser. E Hélio oferece uma das mais
ousadas - e talvez mais acertadas - suposições de Clarice em sua busca:
Mas, para chegar a esta pergunta, Clarice percorreu todo o caminho em busca
das respostas reveladoras da personalidade do entrevistado - assumindo, ela, o papel de
conduzir o outro. Como entrevistadora, pede ao psicanalista que volte a si mesmo a sua
análise. Ao ser humano mais completo que conhece, Clarice aplica algumas de suas
técnicas características: provoca-lhe com sua trilogia de perguntas;
H_ Você queria ter outras vidas? Era o meu sonho ter várias. Numa eu seria só mãe, em outra
Com esta pergunta, Clarice está, de certa forma, perguntando-lhe o que seria se
não fosse o que é; como faz recorrentemente ao longo das entrevistas. Ou melhor, está
perguntando-lhe o que seria se não fosse apenas o que é. E a resposta de Hélio indica a
admiração mútua e, realmente, muito revela de sua personalidade:
De Corpo Inteiro
Nota-se nas perguntas e respostas que seguem uma identificação entre Clarice e
Dinah - uma das sete entrevistadas da entrevistadora. Há perguntas acerca do fazer
literário, perguntas sobre a condição de esposa de um diplomata e perguntas sobre a
relação entre estas duas coisas - ambas, Clarice e Dinah, passaram pela experiência de
viver no exterior em decorrência da profissão do marido; ambas são escritoras; suas
--f' _
114
•
115
"Esta grafia, Xico Buark; foi inventada por Millôr Fernandes, numa
noite no Antônio 's. Gostei como quando eu brincava com palavras em
criança. Quanto ao Chico, apenas sorriu um sorriso duplo: um por achar
engraçado, outro mecânico e tristonho de quem foi aniquilado pela fama. Se
Xico Buark não combina com a figura pura e um pouco melancólica de
Chico, combina com a qualidade que ele tem de deixar os outros o
chamarem e ele vir, com a capacidade que tem de sorrir conservando muitas
vezes os olhos verdes abertos e sem riso. Ele não é de modo algum um
garoto, mas, se existisse no reino animal um bicho pensativo e belo e sempre
jovem que se chamasse Garoto, Francisco Buarque de Holanda seria a raça
montanhesa dos garotos.
Marcamos um encontro às quatro horas (...). Estávamos os dois em
minha casa e a conversa transcorreu sem desentendimentos, com uma paz de
quem enfim volta da rua" (DCI, p.67)
para o bem fazer da tarefa jornalística, onde, mais que meramente informar, é mister
interpretar a realidade, identificando o por trás dos fatos, dando ao leitor uma dimensão
abrangente da situação. A mesma Clarice Lispector, algumas vezes tachada de alienada
em sua obra literária, mostra-se, ao contrário, engajada no momento efervescente dos
últimos anos de 60 - isto refletir-se-á em A Hora da Estrela, romance seu onde toma
contornos claros a preocupação com o "problema social" que, segundo Olga Borelli, lhe
aflige. O artista pode permitir-se passar à margem do contexto, imerso apenas em sua
subjetividade; o jornalista, ao contrário, está preso à responsabilidade social que lhe
impõe a profissão, deve ter antenas ligadas a este contexto externo, mesmo quando não
o aborda diretamente. E nesse ponto, pode-se notar que, na busca pela consciência do
ser-outro e de si própria, na entrevistas, Clarice Lispector demonstra um equilíbrio entre
a subjetividade do mundo íntimo e existencial e a objetividade - sem o caráter de
impessoal idade - do mundo exterior, cotidiano, factual, repleto de agruras e injustiças a
serem combatidas. Na crônica "Literatura e Justiça", em Para Não Esquecer, Clarice,
como escritora, reflete sobre esse mundo externo, indicando um compromisso com "a
coisa social":
3.3.1.7. Djanira
empática - entre as duas. Clarice para à porta diante da entrevistada, vista pela primeira
vez, e simplesmente detém nela o seu olhar:
A entrevista começa com uma pergunta que é quase uma proposta de pacto,
estabelecendo-se verbalmente, sobre as regras frouxas do contrato informal dialógico e,
ainda, em cima das regras específicas do contrato firmado jornalístico, uma norma
essencial a este contrato específico entre Clarice-entrevistadora e sua entrevistada
Djanira: só a sinceridade pode proporcionar-lhes uma interação criadora.
3.3.1.8. Scliar
Carlos Seliar foi um entre alguns dos artistas que se deixaram fascinar pelo traço
incomum e impressionante do rosto de Clarice Lispector. Em 1972, retribui-lhe em tons
e riscado o retrato que ela lhe fez em palavras, mais tarde publicado em De Corpo
Inteiro. O encontro entre Clarice e Seliar é o encontro entre dois amigos, onde antes é
preciso gastar momentos em "efusões mútuas de amizade" para então ficarem mais
sérios porque "havia uma entrevista para fazer". O leitor sabe da dimensão da amizade
entre os dois pelas palavras de Clarice:
Tomam-se sérios e tem início a entrevista, dando a sensação de que seguirá uma
linha cronológica - impressão primeira que não fica. Clarice e o leitor descobrem ser
cineasta o que o entrevistado teria sido se não fosse o que se tornou; tentou o cinema
antes de tomar-se o que é - pintor. E, depois disso, acontece a primeira das muitas
interrupções na aparente cronologia seguida; daí, a impressão primeira se desfaz e as
estruturas do diálogo se transformam.
Das muitas possiblidades que se lhe dão para levar ao leitor o ambiente
simbólico do encontro, Clarice aqui adota impressões entrecortando um diálogo, daí por
diante marcado por uma fragmentação transparente. Os modelos-padrão de entrevista
jornalística geralmente pressupõem uma continuidade mesmo apenas aparente; se há
cortes e edição, e quase sempre há, opta-se geralmente por tentar que o texto passe idéia
de todo contínuo. Ao discurso literário, em outra mão, é permitida a fragmentação até
como forma de expressão. No caso deste diálogo - uma entre tantas formas em que se
faz possível- há um equilíbrio entre a continuidade fluente do jornalismo e a expressiva
fragmentação permitida à literatura; e esse equilíbrio, ao invés de comprometer, trabalha
em favor da mais fiel reprodução possível das circunstâncias deste encontro. O diálogo
entre Clarice e Seliar aparenta ser construído de momentos "pinçados" de um todo pela
sua expressividade, e montados entre os silêncios e as impressões sussurradas entre
parênteses:
3.3.1.9. TomJobim
cedo.
De Corpo Inteiro
Também a repercussão dos fatos nos indivíduos, marca indelével de sua obra
literária, preenche a atuação da Clarice-jornalista ao debruçar-se sobre o ser-outro em
seu cotidiano. E, por suscitar questões essenciais e permanentes, a atualidade deste
discurso jornalístico fica, mesmo quando os fatos que o motivaram passam.
A pluralização da primeira pessoa faz-se notar no conteúdo do diálogo e na
forma como se expressam, Tom e Clarice, em sintonia quase perfeita:
Mas ocorrem neste encontro alguns dos aspectos recorrentes que partem, como
nas outras entrevistas, da provocação da entrevistadora. É o caso, por exemplo, da
tentativa de testemunhar o "instante-já" de criação, como em Vinícius e em Chico e em
Pablo. E, como Chico e como Vinícius, Tom faz da provocadora que está a sua frente
sua inspiração - seu poema instantâneo desprende-se aos olhos de Clarice Lispector :
Para Tom Jobim, o amor é a coisa mais importante do mundo. E, para a pessoa,
importa a integridade da alma, mesmo que no exterior pareça suja.
•
125
"- Como esta deve ser a primeira vez que dialogam com você sem
ser a respeito de moda ou beleza, eu queria saber como você se sente
tratada por mim como pessoa humana e não apenas uma elegante. Foi
agradável ou desagradável? Para o diálogo não falhar, seja por favor
sincera: não se engane: o público percebe nas entrelinhas a realidade.
- Sou uma pessoa que pensa muito na vida e tenho algumas idéias
(ri). E acho que você me tratou elegantemente, conclui.
a
127
CONSIDERAÇÕES FINAIS
--
Findo o caminho trilhado no decorrer desta monografia, acreditamos ter logrado
-
apontar, nas entrevistas de De Corpo Inteiro, marcas de uma complexa e dinâmica
relação entre jornalismo e literatura - fenômenos de naturezas distintas, sem dúvida, mas
não opostas. Duas atividades com objetivos e expressões diferentes, de cujo encontro,
comungando da mesma matéria-prima (a palavra escrita), resultam, via de regra, textos
de valor inestimável, independente do suporte onde se abrigam; guiados pelo
compromisso jornalístico de retratar a realidade (da maneira mais fiel possível) e
enriquecidos pela potencialidade sem limites do ato criador artístico, dão-se tanto às
páginas recicladas dos jornais quanto à luxuosa encadernação das obras literárias . E,
mais especificamente, acreditamos ter apontado, dentro desta interação tão rica e
complexa, o espaço da entrevista-gênero jornalístico, o diálogo possível, que - ao lado
da crônica, da reportagem, do livro-reportagem e de quaisquer outros textos onde se
possa notar a confluência entre os dois fenômenos - preenche o campo interseccional
entre as searas jornalística e literária, guardando de uma e de outra características
complementares na tarefa de desvendar e retratar o universo singular do ser-outro. Na
análise destes diálogos possíveis, acreditamos ter apontado elementos da interação
criadora transcrita em retratos escritos - não apenas de entrevistados, mas de encontros
- onde transborda a busca pela essência "atrás do pensamento", marca de vida e de
obra - literária e jornalística - de Clarice Lispector.
Mas não nos foge a natureza peculiar destas entrevistas. Tanto na seção
"Diálogos Possíveis" quanto em De Corpo Inteiro, elas estão intrinsecamente ligadas à
personalidade de sua autora, Clarice; e dificilmente teriam as mesmas características
não fosse ela uma escritora com lugar já reservado no áureo camarote dos literatos
consagrados - à época da realização das entrevistas e, principalmente, hoje. Os diálogos
são originalmente publicados em uma coluna assinada - um dos espaços em jornais e
revistas onde a presença pessoal do jornalista é aceita com menos reservas, exatamente
por ser um privilégio só concedido depois de um "merecimento" reconhecido - e não
sofrem tantas pressões quanto os textos do jornalismo "corriqueiro": Clarice escolhe os
entrevistados, determina a sua pauta, tem tempo para fazer as entrevistas e pode
expressá-Ias em estilo próprio. Uma situação bem diferente daquela enfrentada pelos
repórteres - "meros" repórteres - no dia-a-dia das redações, presos a amarras impostas
e d
128
a
129
BIBLIOGRAFIA
• GOL Tlli, Nádia Baitella. Clarice, Uma Vida que se Conta. São Paulo, ática,
1995.
Editorial, 1993.
1995.
1988
Vozes, 1993.
• MOISÉS, Massaud. Criação Literária - Prosa /I. São Paulo, Cultrix, 1994.
1974.
• NEPOMUCENO, Eric. Da Arte do Bem Escrever. In: Jornal dos Jornais n.7,
São Paulo. Editora Segmento, outubro de 1999.
D'água. 1994.
1980.
Summus, 1996
ANEXOS
VINfcIUS DE MORAIS
"Detesto tudo que oprime o homem, inclusive a gravata."
17
CLARICE L1SPECTOR DE CORPO IN I'EII(()
- É claro, mas eu ainda acho que o amor que constrói - Vinícius, você jd se sentiu sozinho na vida? Jd sentiu
para a eternidade é o amor paixão, o mais precário, o mais algum desamparo?
perigoso, certamente o mais doloroso. Esse amor é o único - Acho que sou um homem bastante sozinho. Ou pelo
que tem a dimensão do infinito. menos eu tenho um sentimento muito agudo de solidão.
- Vocêjd amou desse modo? - Isso explicaria o foto de você amar tanto, Vinícius.
- Eu só tenho amado desse modo. - O fato de querer me comunicar tanto.
- Você acaba um caso porque encontra outra mulher ou - Você sabe que admiro muito seus poemas, e, mais do
porque se cansa da primeira? que gostar, eu os amo. O que é a poesia para você?
- Na minha vida tem sido como se uma mulher me - Não sei, eu nunca escrevo poemas abstratos, talvez
depositasse nos braços de outra. Isso talvez porque esse amor seja o modo de tornar a realidade mágica aos meus próprios
paixão pela sua própria intensidade não tem condições de olhos. De envolvê-Ia com esse tecido que dá uma dimensão
sobreviver. Isso acho que está expresso com felicidade no mais profunda ê conseqüentemente mais bela.
dístico final do meu soneto "Fidelidade": "que não seja imor- - Reflita um pouco e me diga qual é a coisa mais impor-
tal posto que é chama / mas que seja infinito enquanto dure". tante do mundo, Vinícius?
- Você sabe que é um ídolo para a juventude? Serd que - Para mim é a mulher, certamente.
agora que apareceu o Chico, as mocinhas trocaram de ídolo, as - Você quer folar sobre sua música? Estou escutando.
mocinhas e os mocinhos? - Dizem, na minha família, que eu cantei antes de
- Acho que é diferente. A juventude procura em mim falar. E havia uma cançãozinha que eu repetia e que tinha
o pai amigo, que viveu e que tem uma experiência a trans- um leve tema de sons. Fui criado no mundo da música, mi-
mitir. Chico não, é ídolo mesmo, trata-se de idolatria. nha mãe e minha avó tocavam piano, eu me lembro de como
- Você suporta ser ídolo? Eu não suportaria. me machucavam aquelas valsas antigas.
- Às vezes fico mal-humorado. Mas uma dessas moças - Meu pai também tocava violão, cresci ouvindo mú-
explicou: é que você, Vinícius, vive nas estantes de nossos sica. Depois a poesia fez o resto.
livros, nas canções que todo mundo canta, na televisão. Você Fizemos uma pausa. Ele continuou:
vive conosco, em nossa casa. - Tenho tanta ternura pela sua mão queimada ...
- Qual é a artista de cinema que você amaria? (Emocionei-me e entendi que este homem envolve uma mu-
- Marilyn Monroe. Foi um dos seres mais lindos que lher de carinbo.) Vinícius disse, tomando um gole de uísque:
já nasceram. Se só existisse ela, já justificaria a existência dos - É curioso, a alegria não é um sentimento nem uma
Estados Unidos. Eu casaria com ela e certamente não daria atmosfera de vida nada criadora. Eu só sei criar na dor e na
certo porque é difícil amar uma mulher tão célebre. Só sou tristeza, mesmo que as coisas que resultem sejam alegres. Não
ciumento fisicamente, é o ciúme de bicho, não tenho outro. me considero uma pessoa negativa, quer dizer, eu não depri-
- Fale-me sobre sua música. mo o ser humano. É por isso que acho que estou vivendo
- Não falo de mim como músico, mas como poeta. num movimento de equilíbrio infecundo do qual estou ten-
Não separo a poesia que está nos livros da que está nas canções. tando me libertar. O paradigma máximo para mim seria: a
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LARICE L1SI'EC I OR
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CI.AIUCE l.ISI'FC'1 ou
você trabalhando na OEA. Você se lembra de como eu fazia ser pintor (acabo de comprar uma caixa de tinias. Pintores
ninho na vida e na casa de uocês? Que é que você estava escre- do Brasil, alerta'). Meu primeiro livro de histórias - Fanto-
vendo naquela ocasião? Eu, por exemplo, estava escrevendo A ches - ainda leva a marca de minhas leituras da época: Oscar
maçã no escuro. Foi um período muito produtivo, no sentido Wilde, Bernard Shaw e o infalível Anatole France.
de trabalho e no sentido de uma amizade que se formou para - Surpreendo-me de nenhum cineasta ter feito um filme
baseado em algum de seus livros. Você gostaria de se ver no
sempre entre você, Mafalda e eu.
_ Quero que você saiba (e aqui falo também em nome cinema?
de minha mulher) que as melhores recordações que guardo - Uma companhia argentina filmou Olhai os lírios do
de nossa estada em Washington D.e. são as das horas que campo em 1946. O retrato foi também transformado num
passamos em sua casa, com você e sua gente. Detestava o filme, com gente de São Paulo. Nos Estados Unidos, Noite
meu posto da União Pan-Americana. Não consegui escrever, foi 'deformado' num teleplay, com Jason Robbards, Franchot
uma linha durante esses três anos burocráticos. O que sobrou Tone e E. G. Marshal1. Medonho! Todos os anos recebo pro-
de melhor desse tempo foi a nossa amizade. Você saiu da- postas de cineastas que querem filmar O Continente. Fica
quela chatice federal com um romance denso de substância tudo em vagas conversas. Sou péssimo homem de negócios.
Detesto discutir contratos e quando discuto saio perdendo.
humana e poética.
_ Qual é o seu personagem mais importante? O meu é - Sua fama é enorme, Érico. Se eu fosse famosa assim,
teria minha vida particular invadida, e não poderia mais escre-
sempre do livro que eu esteja escrevendo no momento.
_ O primeiro vulto que me vem à mente é o do Capi- ver. Como é que você se dá com a fama? Eu soube que o ônibus
tão Rodrigo. Depois penso em Floriano, meu sósia espiritual. de turistas em Porto Alegre tem como parte do programa mostrar
Mas não me decido a escolher. Prefiro dizer que os meus sua casa.
personagens mais importantes são as mulheres de O tempo e - É claro que a 'fama' tem um lado positivo - a sen-
sação de que a gente se comunica com os outros passa a exis-
o vento, como Bibiana e Maria Valéria.
_ Os críticos, ao que ouvi dizer, acham você pouco pro- tir para milhares de leitores. Não só como autor, através dos
personagens, como também como uma espécie de figura mi-
fundo. Que me diz disso?
_ Lembro-me de um escritor francês que costumava tológica. É engraçado. Essa história do ônibus me encabula
dizer que un pot de cbambre est aussi profond. Mas, falando muito. Mas eu cultivo a virtude da paciência. E detesto decep-
sério, concordo com os críticos: não sou profundo. Espero cionar os que me procuram, os que me querem conhecer
em carne e osso. Minha casa vive de portas abertas. Há noites
que me desculpem.
_ Quando foi, Érico, que você começou a escrever? E mo- em que temos de dez a vinte visitantes inesperados. Todas as
semanas recebo dezenas de estudantes que querem entrevistar-
tivado pelo quê?
_ Em menino, na escola, eu fazia 'primorosas' redações. me, e a gama vai do curso primário ao universitário. Pessoas
Grau dez. Foi ainda em Cruz Alta, atrás dum balcão de far- com casos sentimentais me procuram para desabafar. Em-
mácia, que escrevi o primeiro conto. Por quê? Não sei. Aí presto-lhes o ouvido, o olho, e não raro uma afetuosa aten-
me lembro que naquele tempo eu ainda pensava que podia ção. Freqüentemente consigo ajudar realmente um ou outro
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'LAIUCE L1SPECTOR DE C()IU'() IN 11'IIlO
- Escrever melhora a angústia de viver? (E eu realmente surpreendi-me, não esperava uma har-
- Sim, naturalmente. Trabalhar em teu ofício, se amas monia de números).
teu ofício, é celestial. Senão é infernal. - Você está a par da poesia brasileira? Quem é que você
- Quem é l)eus? prefere na nossa poesia?
- Todos algumas vezes. Nada, sempre. - Admiro Drummond, Vinícius e aquele grande poeta
- Como é que você descreve um ser humano o mais com- católico, claudelino, Jorge de Lima. Não conheço os mais
pleto possível? jovens e só chego a Paulo Mendes Campos e Geir Campos.
- Político, poético. Físico. O poema que me agrada é o "Defunto", de Pedro Nava.
- Como é uma mulher bonita para você? Sempre o leio em voz alta aos meus amigos, em todos os
- Feita de muitas mulheres. lugares.
- Escreva aqui o seu poema predileto, pelo menos predi- - Que acha da literatura engajada?
leto neste exato momento? - Toda literatura é engajada.
- Estou escrevendo. Você pode esperar por mim dez - Qual de seus livros você mais gosta?
anos? - O próximo.
- Em que lugar gostaria de viver, se não vivesse no Chile? - A que você atribui o foto de que os seus leitores acham
- Acredite-me tolo ou patriótico, mas eu há algum você o 'vulcão da América Latina'?
tempo escrevi em um poema: - Não sabia disso, talvez eles não conheçam os vulcões.
- Qual é o seu poema mais recente?
Se tivesse que nascer mil vezes, - "Fim do Mundo". Trata do século XX.
Ali quero nascer, - Como se processa em você a criação?
Se tivesse que morrer mil vezes, - Com papel e tinta. Pelo menos essa é a minha receita.
Ali quero morrer", - A crítica constrói?
- Para os outros, não para o criador.
- Qual foi a maior alegria que teve pelo foto de escrever? - Vocêjá fez algum poema de encomenda? Se o fez foça
- Ler minha poesia e ser ouvido em lugares desolados: um agora, mesmo que seja bem curto.
no deserto aos mineiros do norte do Chile, no Estreito de - Muitos. São os melhores. Este é um poema.
Magalhães aos tosquiadores de ovelha, num galpão com - O nome Neruda foi casual ou inspirado em [an Neruda,
cheiro de lã suja, suor e solidão. poeta da liberdade tcheca?
- Em você o que precede a criação, é a angústia ou um - Ninguém conseguiu até agora averiguá-Ia.
estado de graça? - Qual é a coisa mais importante no mundo?
- Não conheço bem esses sentimentos. Mas não me - Tratar de que o mundo seja digno para todas as vidas
creia insensível. humanas, não só para algumas.
- l)iga alguma coisa que me surpreenda. - O que é que você mais deseja para você mesmo como
-748. indivíduo?
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CLARICE LlSPECTOR
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L.
UM HOMEM CHAMADO
HÉLIO PELEGRINO
"Se não sei perder, não ganho nada e terei sempre as mãos vazias."
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r\.AIUU.II~I'H.IOlt ))1 (!lll!'U IN I 11tH!)
opiniões mas quem ele é e procura incessantemente a cada favor, posso dizer a você que, com freqüência, agarJo me p"
hora vir a ser. Quase não convivemos, quase não nos fre- Ias orelhas e me ponho ao trabalho. Há umas coisas valiosas
qüentamos, mas nunca ele é ausente para mim e espero que nas quais acredito, com muita força. Preciso dizê-Ias e vou
eu nunca seja para ele". dizê-Ias.
- Hélio, é bom viver, não é? h, pelo menos, a impressão
•• - Diga qual é a sua fórmula de vida. Eu queria imitar.
de que você me dá. - Há, no Diário íntimo de Kafka, um pequeno trecho
- Viver - essa difícil alegria. Viver é jogo, é risco. ao qual gostaria de permanecer para sempre fiel, fazendo dcl
Quem joga pode ganhar ou perder. O começo da sabedoria a minha fórmula de vida: "Há dois pecados humanos capitais,
consiste em aceitarmos que perder também foz parte do jogo. dos quais todos os outros decorrem: a impaciência e a prcgui-
Quando isso acontece, ganhamos alguma coisa de extrema- ça. Por causa de sua impaciência, foi o homem expulso d
mente precioso: ganhamos nossa possibilidade de ganhar. Se paraíso. Por causa de sua preguiça, não retornou a ele. Talvez
sei perder, sei ganhar. Se não sei perder, não ganho nada, e não exista senão um pecado capital, a impaciência. Por causa
terei sempre as mãos vazias. Quem não sabe perder, acumula da impaciência, foi o homem expulso, por causa dela não
ferrugem nos olhos e se torna cego - cego de rancor. Quan- consegue voltar. Tenhamos paciência - uma longa, inrcr-
do a gente chega a aceitar, com verdadeira e profunda hu- minável paciência - e tudo nos será dado por acréscimo".
mildade, as regras do jogo existencial, viver se torna mais do - Como encara sua profissão, Hélio?
que bom - se torna fascinante. Viver bem é consumir-se, é - A psicanálise é, para mim, a ciência da liberdade
queimar os carvões do tempo que nos constitui. Somos feitos humana. Quem fala em liberdade humana faia sempre em
de tempo, e isso significa: somos passagem, movimento sem comunicação e encontro. A psicanálise é, portanto, a ciência
trégua, finirude. A quota de eternidade que nos cabe está da comunicação e do encontro. O trabalho psicanalítico visa
encravada no tempo. É preciso garimpá-Ia, com incessante à construção de um encontro entre duas liberdades. Isto signi-
coragem, para que o gosto do seu ouro possa fulgir em nosso fica que a psicanálise visa ao encontro entre duas pessoas, já
lábio. Se assim acontece, somos alegres e bons, e a nossa que o centro da pessoa é liberdade. Não há liberdade sem
vida tem sentido. abertura ao Outro, sem consentimento na existência do Outro
- Por que você escreve esporadicamente e não assume de como tal e enquanto tal. Os distúrbios emocionais podem
uma vez por todas o seu papel de escritor e criador? ser conceituados em termos de limitações ou distorções nessa
- Poderia driblar a sua pergunta, respondendo com abertura, implicando uma perda de disponibilidade com res-
uma meia-verdade - escrevo menos esporadicamente do que peito ao Outro. Se minhas ansiedades básicas exigem de mim
publico. Mas esta seria uma saída falsa, e não quero ser falso. que faça do Outro um instrumento de meu esquema de segu-
Escrever e criar constituem, para mim, uma experiência ra- rança, já não posso aceitar o Outro como um fim em si
dical de nascimento. A gente, no fundo, tem medo de nascer, mesmo - isto é, em sua essência de ser-outro. Vou inventá-
pois nascer é saber-se vivo e - como tal - exposto à morte. 10 à imagem e semelhança de meus temores, torno-me o eixo
Escrevo mais do que devo para - quem sabe? - manter a de referência ao qual o Outro deve referir-se e submeter-se.
ilusão de que tenho um tempo longo pela frente. A meu A psicanálise, sendo um longo convívio humano anriaurori-
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CI.ARICE I.ISI'EC ros 1)1>,(,(IIU'() IN II'IIH)
tário, é um chamamento à liberdade e à originalidade do pa- verdadeira generosidade e do entusiasmo - Deus comigo.
ciente e do analista, para que ambos assumam a alegria da O amor genuíno ao Outro me leva à intuição do todo e me
comunicação autêntica. compele à luta pela justiça e pela transformação do mundo.
- Como se desintoxicam os padres nos confessionários, - Qual a coisa mais importante para uma pessoa, como
depois de receberem tantas e tantas confidências? indivíduo?
- Receber confidências, esforçando-se por compreendê- - Pessoa e indivíduo, sem estarem em oposição, cons-
Ias, é um exercício de amor. O amor é, a meu ver, o grande tituem, no entanto, uma polaridade dialérica. O indivíduo,
desintoxicante, o antídoto mais poderoso contra os venenos em processo de individuaçâo, se personaliza. E, na medida
da alma. O padre, no confessionário, na medida que não se que o faz, transcende sua dimensão individual, insere-se num
torna um burocrata, encontra na própria atividade que exerce todo comunitário onde o indivíduo se perde, para que a pes-
o alimento para sua renovação espiritual e psicológica. Não soa possa ganhar-se. Creio que a coisa mais importante para
são as confidências que intoxicam. O que faz mal é o tédio, uma pessoa, como indivíduo, é morrer em si o indivíduo
o desinteresse, a ausência de simpatia, a cegueira ao Outro. para que a pessoa possa nascer e desenvolver-se. Na pessoa,
- Você quereria ter outras vidas? Era o meu sonho ter o indivíduo morre para renascer em nível mais alto, já não
várias. Numa eu seria só mãe, em outra vida eu só escreveria, como indivíduo, mas como um ser que - repartido - se
em outra eu só amava. torna capaz de compartilhar, esquecendo-se de si.
- Sou um homem de muitos amores - isto é, de - Que é o amor?
muitos interesses - e para tão longos amores, tão curta é a - Amor é surpresa, susto esplêndido - descoberta do
vida. Não há ninguém que consiga, no tempo de uma vida, mundo. Amor é dom, demasia, presente. Dou-me ao Outro
esgotar todas as suas possibilidades. Se me fossem dadas ou- e, aberto à sua alreridade, por mediação dele, recebo dele o
tras e outras vidas, gostaria de ser: a) filósofo profissional; b) dom de mim, a graça de existir, por ter-me dado.
romancista; c) marido de Clarice Lispecror, a quem me dedi- - Hélio, uma vez 11m dos meus filhos, quando tinha sete
caria com veludosa e insone dedicação; d) chofer de cami- anos, me perguntou como se chamava uma pessoa que não acre-
nhão; e) morador em Resende, apaixonado por uma moça ditava em Deus, mas amava Deus. Pergunto: quem é Deus?
triste, debruçada à janela de uma casa, saída de um quadro - Toda criança é, por excelência, um ser capaz de admi-
de Volpi; f) seresteiro, poeta, cantor, com a música de Chico rar-se. Por isso, toda criança é capaz do autêntico filosofar.
Buarq ue. A questão que o seu filho propôs, aos sete anos, justificaria
- Hélio, dif,a-me agora, qual é a coisa mais importante um longo ensaio teológico. Vamos, porém, à sua pergunta:
do mundo? Deus é o Ser em si mesmo, fundamento de rodos os entes,
- A coisa mais importante do mundo é a possibilida- abismo insondável de cujas profundezas rodos os entes bro-
de de ser-com-o-outro, na calma, cálida e intensa mutalidade tam. Deus é a raiz última de todas as coisas. A glória, a graça
do amor. O Outro é o que importa, antes e acima de tudo. e o solene mistério de todas as coisas decorrem da presell~-;l
Por mediação dele, na medida em que o recebo em sua gra- do sagrado nelas - sinal ontológico de sua proveniência.
ça, conquisto para mim a graça de existir. É esta fonte da Qualquer experiência de profundidade é, a meu ver, uma
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DINAH SILVElRA DE QUEIROZ
"Nasci preguiçosa, mas há 30 anos que não deixo de escrever."
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CI AlUe!'. L1S1'!'.CTOIl DF. COItIlO IN IllltO
levar o mais possível dentro de mim. Só os mais íntimos de nenhum escritor malogrado porque, simplesmente, não
sabem disso. somos nós os donos do momento em que pisamos aquele
- Nós todos lutamos pela coragem de existir, pela con- lugar no qual os outros nos encontram. Será a sorte, será a
fiança em nós mesmos e nos outros. Você tem essa confiança? mão de Deus Pai, será a humildade de fazer e refazer? A
- Está fazendo trinta anos que escrevi Floradas na serra. verdade é que se a mensagem chega - nós estamos salvos,
Desde aí nunca mais deixei de escrever. Só em relação às somos escritores. Mas qualquer um de nós pode oferecer ge-
crônicas posso dizer que fiz mais de nove mil. (Agora sairá nerosamente' tudo o que tem dentro de seu espírito e vir a
um volume feito de minhas experiências aqui, em Roma e ser recusado, simplesmente' porque não achou aquele terreno
em Moscou, com o título das crônicas da Rádio Nacional: de encontro com () próximo, isto é, J. mcn!:dge!Tl não atingiu
Café da manhã.) Essa comunicação, que não é propriamente o alvo. O processo de criação de que se serve para compor
a minha literatura (Margarida La Rocque, Verão dos infiéis romances, contos etc. é um método que exige muita vivência
etc.), dá vasto apoio, apoio de massa, o que me torna mais com o assunto. Em geral, deito-me, fico estirada; todos pen-
segura de mim própria. sam que estou descansando. Simplesmente estudo alguma
- É sem dúvida um dos nossos escritores que mais produ- personagem ou circunstância. Mas, quando toda a narrativa
zem. Como é que você se organizou para isso? É uma questão está pronta dentro de mim, passo então a escrever, quase sem
de disciplina? interrupção. Livro parado, para mim, é livro impossiuel de vir
- Mas primeiro, tive que vencer uma terrível preguiça. a ser retomado. Nós mudamos internamente de forma conti-
Diz que nasci preguiçosa, você sabe? Quando comecei a escre- nuada como, ai de nós, mudam nossos retratos.
ver, ia para a cama, recostava-me, e trabalhava na maior in- - Qual de seus livros você prefere? E por quê?
dolência (o que em outros será contradição). Agora que passei - Você bem sabe que é Margarida La Rocque. Talvez o
a ditar (desde A muralha que o faço), encontro tempo para prefira porque eu o escrevi numa fase de grande sofrimento.
fazer oito crônicas por semana e geralmente um livro em Talvez deva a Margarida La Rocque uma expiação que pelo
cada dois anos, além de cumprir meus compromissos sociais menos garante essa aparente serenidade de que você falou.
de mulher de diplomata. - Casada com um diplomata, como é que você encara o
É casada com o ministro Dario Castro Alves. inevitável vaivém de um país para outro?
- O problema da criação artística sempre me fascinou e - Tive experiências inimagináveis. Dormi na Guiné,
ainda não perdi a esperança de um dia desmontar esse compli- almocei no Marrocos (com Rubem Braga), estive no Kremlin,
cado mecanismo. Poderia você me dizer qual é a marcha do seu conversei com Kruchev e depois com Paulo IV, que aparece
processo de criação? uma vez por semana na Rádio Vaticano. Isso quando Dario
- Todo escriror é um ser que procura lançar sua men- era cônsul-geral em Roma. Agora VOll para a bela Buenos
sagem como a clássica do náufrago que encerra o bilhete na Aires, gllStar meu espanhol que aprendi quando rui adida
garrafa e o atira às ondas. Muita vez, essa mensagem se perde. cultural em Madrid. Mas o apelo da nossa casa, do nosso lar
Mas acho que deve haver sempre, pelo menos, respeito por é inquietante. Sofro de nostalgia e me sinto muita vez como
esse ato de comunicação a distância. Nunca ri, nem caçoei a cigana que nem sequer tem a carroça. Todavia, meu marido
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CLARICE I.ISPECTOR DE CORI'O INTEIRO
tem compensado tcda a saudade que sinto, pela compreen- Sei que você tem uma experiência direta da vida na
são que demonstra. União Soviética. Em fimção dessa experiência e de sua imagi-
- A diplomacia se checa com sua carreira literária? Você nação tão flrtil, pergunto-lhe como pensa que será a vida na
pode escrever em qualquer lugar do mundo? Rússia no ano 2000.
- É claro que devemos muita vez ficar apenas nos as- - Cada vez mais próxima do Ocidente.
suntos humanos, fugindo da política. A mulher é inserida, - Qual a sua opinião sobre a legitimidade, conveniência
ela também, no quadro em que o diplomata representa o seu ou vantagem de um dispêndio tão grande de recursos na luta
país. Isto é tão óbvio que o casamento de um diplomata deve espacial, quando nossos problemas na Terra ainda não foram
ser aprovado pelo gove.ü.o. Assim, a nosso medo, também resolvidos, quando precisamos de dinheiro para os que têm fome?
representamos o Brasil no círculo de relações diplomáticas. - O progresso é irreversível e impiedoso. Perguntaría-
Dentro, porém, de um limite de bom senso, bem se pode di- mos a Colombo se no seu tempo se deveria dar o dinheiro
zer muita coisa. Jamais interrompi minhas crônicas que vieram da empreitada a seus então míseros patrlcios? O progresso
de Madrid, Moscou, Roma, Paris, Helsinque, Nova Iorque. vem a dar juros muito tarde, ai de nós, que não os recebemos
Há tanto de humano nas descobertas que não chegamos a hoje. Mas esses juros virão, estejamos certos.
ficar frustrados se não pudermos fazer integral a crítica política. Depois Dinah disse:
- Dirijo-me agora à pioneira da ficção científica no - Clarice, considero-a o escritor que mais ama e serve
Brasil. Fomos agora testemunhas da epopéia da Apolo-Il. Você, a uma língua. O brasileiro tem uma incompatibilidade com
em ficção científica, poderia alcançar tão longe? o idioma que fala. Podemos ver isso na massa de traduções
- Agradeço o 'pioneira', preferindo interpretá-Io como que são outra coisa, e não a nossa língua escrita ou falada.
sendo desta última fase da f.c. A ficção científica se preocupa Como você conseguiu amar tanto e conhecer até nos míni-
mais com a reação do homem futuro do que com as desco- mos detalhes e prazeres esta língua não tão portuguesa assim,
bertas no cosmo. Essas aventuras espaciais que nós traçamos mas afinal, a nossa língua?
são geralmente uma fábula. É como diz Fausto Cunha: os - A palavra é o meu meio de comunicação. Eu só poderia
marcianos somos nós. Devemos investigar e investigaremos amá-Ia.
muita coisa. Como será no futuro o filho nascido em labo-
ratório? O sexo, a desejada igualdade de classes? Como con-
seguiremos associar à nossa capacidade técnica, que a huma-
nidade de hoje já apresenta, o vertiginoso progresso, para o
qual o homem ainda não está preparado? Os mundos a des-
cobrir nos tentam, mas o ser humano e sua nova filosofia,
moralidade, senso de justiça, sua compreensão do sexo nas
épocas que se sucederam à nossa, tudo isso é extremamente
importante e nossa curiosidade não terminou só porque três
homens pisaram na Lua.
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11E CORPO IN II',II()
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CLARICE LlSPECTOR OE CORIIO INTEIRO
-Tenho cara de bobo porque minhas reações são muito quem é facilmente enganado: é verdade que você é crédulo ou
lentas, mas sou um vivo. S6 que pôr os pés no chão no sen- está de olhos abertos para os charlatões?
tido prático me atrapalha um pouco. Tenho, por exemplo, - Não é que eu seja crédulo, sou é muito preguiçoso.
uma pessoa que me explica o contrato e não consigo prestar - O que é que você sentiu quando o maestro Karab-
atenção a certas coisas. O sucesso faz parte dessas coisas ex- chewsky dirigiu A banda no Teatro Municipal?
teriores que não contribuem nada para mim. A gente tem a - Claro que gostei, mas o que me interessa mesmo é
vaidade da gente, a gente se alegra, mas isso não é importante. criar. A intenção de Karabchewsky foi das melhores, inclusive
Importante é aquele sofrimento com que a gente procura corajosa. Eu quero ver ainda a coisa se repetir com outros
buscar e achar. Hoje, por exemplo, acordei com um sentimen- compositores populares.
to de vazio danado porque ontem terminei um trabalho. - Vocêfoi precoce em outras manifestações da vida? Fale
- Eu também me sinto perdida depois que acabo um sem modéstia.
trabalho mais sério. - Não, tudo o que eu fiz como garoto é de algum
- Tenho uma inveja: o meu trabalho de música está modo ligado com o que eu faço hoje, isto é, versinhos.
exposto a um consumo rápido e eu praticamente não tenho - Você quer fazer um versinho agora mesmo? Para você
o direito de ficar pensando numa idéia muito tempo. se sentir não vigiado, esperarei na copa até você me chamar.
- Talvez você ainda mude. Como é que Villa-Lobos cria- Chico riu, eu saí, esperei uns minutos até ele me chamar
va? Seria interessante para você saber. e ambos lemos sorrindo:
- Sei alguma coisa. Por exemplo, uma frase dele que
Tom Jobim me contou: diz que Villa-Lobos estava um dia Como Clarice pedisse
trabalhando na casa dele e havia uma balbúrdia danada em Um versinho que eu não disse
volta. Então o Tom perguntou: como é, maestro, isso não Me dei mal
atrapalha? Ele respondeu: o ouvido de fora não tem nada a Ficou lá dentro esperando
ver com o ouvido de dentro. É isso que eu invejo nele. Gos- Mas deixou seu olho olhando
taria muito de não ter prazo para entrega das músicas, e não Com cara de Juízo Final.
fazer sucesso: você gostaria, por exemplo, de sair para a rua
e começar a dar autógrafos no meio da rua mesmo? - A banda lembra música de nossas avós cantarem: tem
- Detestaria, Chico. Eu não tenho, nem de longe, o su- um ar saudoso e gostoso de se abrir um livro grosso e encontrar
cesso que você tem, mas mesmo o pequeno que tenho às vezes dentro uma flor seca que foi guardada exatamente para durar.
me perturba o ouvido interno. De onde você tirou essa modinha tão brasileira? Qual a fonte
- Então estamos quites. de inspiração?
- Todas as mães com filhas em idade de casar consenti- - Não sei não, é uma coisa difícil de conscientizar.
riam que casassem com você. De onde vem esse ar de bom rapaz? Lembro da banda mesmo não tendo vivido no interior, mas
Acho, pessoalmente, que vem da bondade misturada com bom- atrás de minha casa tinha um terreno baldio onde às vezes
humor, melancolia e honestidade. Você também tem o ar de havia circo, parque de diversões, essas coisas.
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e I ARleI' II~I'H IOIl Ill~ ('OIU'!) INI EIItu
Vi você na primeira passeata pela liberdade dos estu- - Estou na fase de procura. Ontem acabei um trabalho
dantes. Que é que você pensa dos estudantes do mundo e do que era só de música, que exigia prazo. Para uma canção nova,
Brasil em particular? eu estou sempre disponível.
_ No mundo é para mim difícil de falar, mas aqui no - No domínio da música popular, quem seria por sua
Brasil eu sinto em todos os setores um apodrecimento e a im- vez o seu ídolo?
possibilidade de substituição senão por mentalidades completa- - Muitos, e é por isso que é difícil citar.
mente jovens e ainda inatingidas por essa podridão. Aqui no - Seu pai é um grande pai. Quem mais na sua família
Brasil só vejo esta liderança. Um rapaz do Neto York Times en- eu chamaria de grande, se conhecesse?
trevistou-me e perguntou: está bem, vocês não querem censura - Minha mãe, apesar de ter um rnerro e cinqüenta e
nem repressão nem os métodos arcaicos de educação; mas se poucos de altura. Eu li muito e papai sempre me estimulava
vocês ganharem, quem vai substituir as autoridades? Por incrí- nesse sentido.
vel que pareça, o mundo político está envolvido por essa deca- - Qual é a coisa mais importante do mundo?
dência e acomodação. E você? Eu também te vi na passeata. - Trabalho e amor.
- Fui pelos mesmos motivos que você. Mudando de as- - Qual é a coisa mais importante para você, como indi-
sunto, Chico, você já experimentou sentir-se em solidão? Ou víduo?
sua vida tem sido sempre esse brilho tão justificado? Chico, um - A liberdade para trabalhar e amar.
conselho para você:fique de vez em quando sozinho, senão você - O que é amor?
será submergido. Até o amor excessivo dos outros pode submer- - Não sei definir, e você?
gir uma pessoa. - Nem eu.
- Também acho e sempre que posso faço a minha re-
tirada.
- Na música chamada clássica, apesar de ela englobar
compositores aos quais o classicismo não poderia ser aplicado,
nessa música o que você prefere?
- Aí não é questão de preferência, é costume para mim.
Tenho sempre à mão um Beethoven.
- Sua família preferia que você seguisse a vocação de
outros talentos seus que em aparência, pelo menos, são mais
asseguradores de um futuro estável?
- No começo sim. Logo que entrei para a arquitetura,
quando comecei a trocar a régua T pelo violão, a coisa parecia
vagabundagem. Agora (sorri) acho que já se conformaram.
- Você está compondo agora alguma coisa e com letra sua
mesma? Sua letra é linda.
68 69
1)10 ( UlU'O IN II!II(O
cionar o seu tudo, pois não quero invadir ma alma. Quero S/tln','
por que você pinta e quero saber por que as pessoas pintam.
Quero saber que é que você faria em matéria de arte se não
DJANlRA fosse pintura. Quero saber como é que vocêfoi andando a ponlo
de se chamar Djanira. E quero a verdade, tanto quanto você
"Sou uma autodidata em tudo." possa dar sem ferir-se a si própria. Se você quiser me enganar,
me engane, pois não quero que nenhuma pergunta minha faça
você sofrer. Se você sabe cozinhar, diga, porque tudo o que vier
de você eu quero.
- A gente pinta, disse Djanira, como quem ama, nin-
guém sabe por que ama, a gente não sabe porque pinta.
Como não amar Djanira, mesmo sem conhecê-Ia pessoal- - Eu também não sei porque escrevo.
mente? Eu já amava o seu trabalho, e quanto - e quanto. - A gente não sabe.
Mas quando se abriu a porta e eu a vi - parei e disse: - Conte um pouco de sua infância.
- Espere um pouco, quero ver você. - Foi muito sofrida, não vale a pena falar, não vale a
E vi - eu vi mesmo - que ela ia ser minha amiga. pena relembrar.
Ela tem qualquer coisa nos olhos que dá a idéia de que o - Mas você sabe que só relembrando de uma vez, com
mistério é simples. Não estranhou o fato de eu ficar olhando toda a violência, é que a gente termina o que a infância sofrida
para ela, até eu dizer: nos deu?
- Pronto, agora já conheço você e posso entrar. - De certa maneira acho que é verdade.
Dj.mira tem a bondade no sorriso e no resto, mas não - Por que você niío comera já?
uma bondade morna. Nem é uma bondade agressiva. Djanira - Eu fui uma menina criada no Sul do Brasil, entre
tem em si o que ela dá no seu trabalho. É pouco isso? Nunca, Paraná e Santa Catarina. A maior parte do tempo vivi numa
isso é tudo. Isso é a veracidade do ser humano dignificado cidadezinha, em Porto União, União da Vitória: são duas ci-
pela simplicidade profunda que existe em trabalhar. dades juntas. Metade é Paraná e outra metade é Santa Cata-
Sentamo-nos, eu sem tirar os olhos do rosto dela, ela me rina. Aí meu pai teve consultório de dentista. Muito criança
examinando com bondade, sem me estranhar nem um pouco. ainda meus pais se separaram. Passei mais de vinte anos sem
Não se deve escrever Djanira e sim DJANIRA. ver meu pai. E um dia publiquei um anúncio no jornal A
- Djanira, você é uma criatura fechada. E eu também. Noite procurando meu pai. Na primeira edição do anúncio
Como vamos fazer? O jeito é falar a verdade. A verdade é mais apareceu um dentista que conhecia muito meu pai e esta foi
simples que a mentira. a primeira notícia que tive dele. Ele era muito conhecido
Ela me olhou profundamente. E eu continuei, com esse porque era dentista itinerante: nunca teve pouso, ia tratando
tipo de timidez que sempre foi a minha: de dentes de cidade em cidade. Quando foi embora, disse:
- Eu quero saber tudo a seu respeito. E cabe a você se/e- "Vou viajar e depois venho buscar Djanira". E não veio. Eu
70 7\
CI.AIUCI\ I.ISI'ECTOR DE CORPO IN'I'EIIW
não podia ser internada num colégio por ser pequena demais. Eu vi nas cores de marfim
Então uma família tomou conta de mim. Mas nessa casa um elefante selvagem
fiquei enjeitada, trabalhando. que viera das índias
- Quando é que você começou a pintar? oferecendo-me caminhos
- Com vinte e quatro anos. Em pequena eu não tinha onde poderia
oportunidade porque vivia trabalhando. perigosamente
- Qual foi a sua maior alegria na vida? fechar meus olhos
- Foi quando me encontrei com a pintura. e partir, partir ...
- E como é que você se encontrou com a pintura?
- Nasceu de uma brincadeira quando eu estava inter- Mas era pecado
nada no sanatório de tuberculose. Eu disse que sabia fazer e viajei no pecado.
um quadro melhor do que o que estava pendurado na secre- Ao infinito viajei
taria. O que fiz então foi um desenho. Desenhei Cristo. Então e perdi-me no tempo
o interesse acordou em mim. Quando voltei para o Rio matri- que era pecado.
culei-me no Liceu de Artes e Ofícios. Então, cada vez eu
desenhava tudo, tudo. Até que conheci Marcier, que me des- Djanira então falou:
cobriu e tornou-se meu professor. E então eu me vi num - Quando uma pessoa se faz por ela própria é porque
mundo que era novo para mim. tem algo dentro de si que não se acomoda a uma vida
- Djanira, nunca perguntei a ninguém: você éfeliz? Mas comum, não é?
a você, que sofreu tanto, pergunto. - Sei disso na minha própria carne.
- Sou. Porque ninguém pode ser inteiramente feliz - Então essa coisa vem por si só, descobrindo-se. Apesar
nem inteiramente infeliz. de ser um caminho árduo, não deixa de ser também um cami-
- Se você não tivesse se encontrado com a pintura, que nho cheio de encantos e de um sabor de luta. Mesmo a gente
forma de arte você crê que seria sua? não sendo compreendida, existe uma força interior que nos
- Possivelmente a música. Mas dependeria de um en- alimenta em todos os reveses. É muito curioso: por que será
contro como com a pintura. Sei que quando eu tivesse me que a gente luta tanto para poder produzir uma obra de arte?
alcançado humana e intelectualmente, a pintura ia de qual- - Acho, Djanira, que é para sobreviver.
quer forma cruzar o meu caminho. - Mas para sobreviver naquilo que a gente quer. Uma
Ficamos em grande silêncio. Provavelmente mergulha- criatura como eu, que sou autodidata em tudo, que tenho as
das ambas nas nossas vidas mútuas. Como não posso transmi- minhas dificuldades e que toda a minha vida tem sido procu-
tir aos leitores a profundidade de nosso silêncio, preencho-o rar superar a vida comum, na sociedade em que vivemos, pro-
reproduzindo um poema de Djanira. Chama-se "Viagem". cura um meio para alcançar aquilo que é uma profissão e uma
E é assim: vocação. Porque tudo o que se faz, o que eu faço, não basta.
- O que é que você queria alcançar, Djanirai Eu também
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<:1"1\1{ I'. I.ISI'FCIOR Il\': Clllll'll IN II!IIU)
procuro alcançar alguma coisa que não sei o que é. Você sabe o trabalho.
que é? O que é amor?
_ É uma coisa ainda mais imponderável que está dentro - Aquilo que se pode dar a rodas as coisas que a gen-
da gente. Se um dia a gente chegasse a ficar satisfeita com o te faz.
quc a gente produziu, seria o fim. P.S.: Esqueci de dizer que, quando Djanira quebrou a
_ Também acho. Mas será que somos capazes de desco- clavícula direita, ficou desesperada porque não podia pintar.
brir finalmente o que procurávamos? E de repente deu um grito que fez seu marido ir correndo
_ A evolução da arte é muito lenta, todas as coisas do para ela. É que, no desespero de querer pintar, experimen-
espírito são lentas. tou usar a mão esquerda e, para sua surpresa e enorme ale-
_ Você quer dizer com isso que a procura dura o tempo gria, descobriu que era uma perfeita ambidestra.
de uma vida? Mota foi me levar em casa. Ele e Djanira se despedem
_ É. A época em que nós vivemos é dinâmica, já se dando-se dois a três beijos na boca. Achei tão boni to.
pensa em ir à Lua. O mistério que existia na vida já não é
mais mistério.
_ Discordo, Djanira. O ser humano nunca descobrirá o
mistério, mesmo que chegue a morar na Lua.
- O que você vê hoje em dia com todas essas descober-
tas científicas é um mundo que vive em grande insatisfação.
Só se ouve falar em guerras. Politicamente os homens não se
entendem. Sim, acho que o homem descobre todas essas coi-
sas, mas o mistério ele não descobre.
- Como é o seu processo de elaboração de trabalho?
_ Minha pintura é muito cheia de Brasil, pelo menos
é esse o meu propósito. E por isso, então, viajo muito pela
nossa terra.
_ Djanira, eu queria que você dissesse alguma coisa aos
pintores principiantes do Brasil.
_ Há uma turma de jovens que está fazendo coisas
muito boas, e gosto muito. Digo a eles para continuar a traba-
lhar, e muito, olhando para dentro de nossa terra.
- Qual é a coisa mais importante do mundo?
- A paz.
_ Qual é a coisa mais importante para uma pessoa como
indivíduo?
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SCLIAR
"Gostaria que meus quadros incutissem l:sperança e [orça a todos."
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CI.ARICE I.ISI'ECTOIl DE COIU'() IN ruuo
eu primeiro deveria aprender a ler e a escrever, vinguei-me - Exato. As circunstâncias ajudam a que mantenha
riscando todas as paredes internas e externas da nossa casa. este ponto de vista, uma vez que não existe mais uma cópia
Nunca mais parei de fazer isso ... para provar o contrário ... (Nós dois rimos). Em 1948, em
- Quer dizer que você poderia ter sido um grande escritor minha estada em Paris, me convenci de que a pretensão de
ou um grande concertista, pois grande você seria de qualquer repetir Leonardo da Vinci era exorbitanre e, estando con-
modo. Se você não se encontrasse com a pintura, que foria? vencido de que talento e pretensão não eram suficientes,
- Cinema. decidi me concentrar na pintura, que já o trabalho não seria
- Que tipo? pouco nesta vida.
- Aliás cinema eu já fiz. Desde que me conheço fui Neste momento fomos interrompidos pela chegada da
um fascinado por cinema e devo em parte a meu pai, um fotógrafa. E depois ele trouxe os quadros para a sala. E, se
homem sequioso de conhecimento e arte que, muito garoto, fosse questão de jurar, eu juraria que Scliar está numa fase
me levava para assistir a filmes do cinema expressionista ale- nova maravilhosa. Scliar está subindo cada vez mais e expe-
mão da década de vinte a trinta, filmes que produziram tre- rimentando sempre. Mas continua a fazer retratos. Inclusive
mendo impacto na minha sensibilidade. Anos mais tarde, acha que fazer retratos é uma grande disciplina.
em São Paulo, meu contato com Paulo Emílio Sales Gomes Scliar me diz que gostaria de falar sobre sua responsa-
e pouco depois em Paris também com ele, na Cinemateca bilidade.
Francesa, eu redescobri fantásticas emoções já vividas quando - Acho que quando uma pessoa estrutura sua profissão,
garoto, revendo filmes que guardava perfeitos na memória. assume uma responsabilidade para consigo mesma e para com
Em 1943, no Rio, em contato com Rui Santos, então jovem os outros. Creio que já deves ter percebido que sou um
cinegrafista que trabalhava para 'atualidades' e sonhava em otimista, porque creio nos destinos da humanidade. Isso pode
realizar filmes de sua autoria, eu me vi convidado para fazer te parecer vago, mas me considero um homem rico de tudo
um filme. Realizei, com ajuda de Rui Santos na câmara, um o que os outros construíram para mim. Minha responsabili-
documentário chamado Escadas, sobre o ambiente em que dade começa no instante em que me dou conta disso e desejo
viviam os pintores, meus amigos, Maria Helena Vieira da retribuir. Por pouco que eu f.1ç:l, se conseguir estimular idéias
Silva, e Arpad Szenes. Pretendi mostrar o ambiente em que e sentimentos e outras coisas que não sei, naqueles que obser-
eles trabalhavam e provar que mesmo as aparentes abstra- varem os meus trabalhos, alguma coisa estarei construindo.
ções ou aparentes dificuldades de leitura em seus quadros Ficamos algum tempo em silêncio.
nasciam de uma vivência, de um contato íntegro com o am- - Clarice, acho que uma coisa eu aprendi na Europa,
biente novo que eles refletiam em termos de pintura na sua depois de uma primeira viagem como soldado da FEB, quando
obra. Como estás vendo, era um filme pretensioso. Resultou descobri que a vida é uma coisa fantástica e que deve ser vivi-
num filme bonito como fotografia, misterioso como lingua- da todos os instantes: houve então uma primeira modificação
gem e, o fato de ter sido vaiado em muitas sessões, segundo substancial em mim e em minha pintura. Até então eu mos-
me contaram, me convenceu na ocasião de que ... trara em meus quadros a minha comoção diante da miséria,
- ... tinha feito obra de arte? o meu protesto contra uma sociedade que isso criava. Na volta
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CI.AllICE I.ISI'ECTO!t I) I' ( ()I((' () IN I "1111)
da Itália, me vi redescobrindo a beleza de um objeto, a beleza - Scliar. qunl é a coisa mais importante do nuoulo?
de uma flor, a beleza de um movimento, me vi em idílio com - O homem.
o mundo, com uma saúde que, por mais conspurcada pela - Qual é a coisa mais importante para uma pessoll C01l/0
sociedade, explodia apesar de tudo com uma força de sol. indivíduo?
(Está bem isso, Scliar, isso me explica em parte como, - O ser respeitado como homem e o saber respeitar os
apesar de nossa forma social, conseguimos dormir de noite.) outros.
- Eu não creio, continuou Scliar, que essa posição faça - O que é amor?
de minha pintura uma arte alegre. Mas não é uma arte ne- - É estar integrado nas coisas que me estimulam por
gativa também. todos os poros.
Falamos de Djanira. E Scliar disse:
- Ela é uma força da natureza. Por isso não há doença
que possa abatê-Ia.
(Amém.)
Contei que entrevistara Fayga Ostrower, Djanira e ele.
Scliar comentou:
- São três artistas de formação diversa.
Silêncio.
- Para mim que fui um pintor teimoso, mas que não
vivia profissionalmente de meu trabalho, vivo nesses últi-
mos anos, em que encontrei um público interessado e que
acompanha tudo o que eu faço, vivo surpreendido até hoje e
muitas vezes acordando sem compreender exatamente o que
está acontecendo. Acho que a comunicação é fundamental e
eu sou um homem que gosta de gente, que tem confiança
nos homens que trabalham e produzem tudo aquilo que nos
rodeia. O que eu desejaria era conseguir que meus quadros
fossem uma espécie de esperanto e incurissem esperança e
força a todos.
Silêncio.
- Todas as coisas que eu lhe disse não impedem que eu
seja um homem isolado. Mas acho que isso é próprio da con-
dição de quem produz uma obra de arte. Mas penso também
que essa mesma obra se multiplica, se amplia, se transforma
em algo que eu não podia prever nos olhos dos que me vêem.
90 91
DE COIlI'() IN ruso
erudito e mais sério fica na gaveta. Que não haja mal-cntcn-
dido: a música popular considero-a seriíssirna. Será que hoje
em dia as pessoas estão lendo como eu lia quando garoto,
TOM]OBIM tendo hábito de ir para a cama com um livro antes de dor-
mir? Porque sinto uma espécie de falta de tempo da huma-
"Minhas sinfonias estão inéditas." nidade - o que vai entrar mesmo é a leitura dinâmica. Que
é que você acha?
- Sofro se isto acontecer, que alguém me leia apenas no
método do vira-página dinâmico. Escrevo com amor e atenção
e ternura e dor e pesquisa, e queria de volta, como mínimo,
uma atenção e um interesse como o seu, Tom. E no entanto o
Tom Jobim e eu já nos conhecíamos: ele foi o meu padrinho cômico é que eu não tenho mais paciência de ler ficção.
no Primeiro Festival de Escritores, quando foi lançado meu - Mas aí você está se negando, Clarice!
livro A maçã no escuro. E ele fazia brincadeiras: segurava o li- - Não, meus livrosfelizmente para mim não são super-
vro na mão e perguntava: quem compra? quem quer comprar?
lotados de fatos, e sim da repercussãodos fatos no indivíduo.
Para este diálogo, marcamos às seis da tarde: às seis e trinta e
Há quem diga que a literatura e a música vão acabar. Sabe
cinco tocavam a campainha da porta. E era o mesmo Tom
quem disse?Henry Mil/er. Não sei se ele queria dizer para já
que eu conhecia: bonito, simpático, com um ar puro malgré
ou para daqui a trezentos ou quinhentos anos. Mas eu acho
lu i, com os cabelos um pouco caídos na testa. Um uísque na que nunca acabarão.
mesa e começamos quase que imediatamente a entrevista. Riso feliz de Tom:
- Como é que você encara o problema da maturidade? - Pois eu, sabe, também acho.
_ Tem um verso do Orummond que diz: "A madure- - Acho que o som da música é imprescindível para o ser
za, esta horrível prenda ... " Não sei, Clarice, a gente fica mais humano e que o uso da palavra falada e escrita são como a mú-
sica, duas coisas das mais altas que 120S elevam do reino dos
capaz, mas também mais exigente.
- Não faz mal, Tom, a gente exige bem. macacos, do reino animal.
_ Com a maturidade a gente passa a ter consciência - E mineral também, e vegetal também! (Ele ri.) Acho
de uma série de coisas que antes não tinha, mesmo os ins- que sou um músico que acredita em palavras. Li ontem o
tintos os mais espontâneos passam pelo filtro. A polícia do teu O búfalo e a Imitação da rosa.
espaço está presente, essa polícia que é a verdadeira polícia - Sim, mas é a morte às vezes.
da gente. Tenho notado que a música vem mudando com os - A morte não existe, Clarice. Tive uma (uma com agá:
meios de divulgação, com a preguiça de se ir ao Teatro Mu- hurna) experiência que me revelou isto. Assim como também
nicipal. Quero te fazer esta pergunta, Clarice, a respeito da não existe o eu nem o euzinbo nem o euzão. Fora essa expe-
leitura dos livros, pois hoje em dia estão ouvindo televisão e riência que não vou contar, temo a morte vinte e quatro horas
rádio de pilha, meios inadequados. Tudo o que escrevi de por dia. A morte do eu, eu te juro, Clarice, porque eu vi.
118 119
DE CORPO IN 11'11(()
CLARICE LlSI'ECTOR
Tem alguma coisa além do eu, Tom? Claro, os artistas devem preservar a alegria do mundo. Em-
- Além de tudo {ri} e vivam os estudantes! Se eu não bora a arte ande tão alienada e s6 dê tristeza ao mundo. Mas
defender os estudantes, estou desprotegendo meus filhos. Se não é culpa da arte porque ela tem o papel de refletir o
esse eco do sucesso não nos interessa em vida, muito menos mundo. Ela reflete e é honesta. Viva Oscar Niemeyer e viva
depois da morte. Isso é o que eu chamo de mortalidade. Villa-Lobosl Viva Clarice Lispector! Viva Antônio Carlos
- VtJcêacredita na reencarnação, Tom? Jobim! A nossa, Clarice, é uma arte que denuncia. Tenho
- Não sei. Dizem os hindus que só entende de reen- sinfonias e músicas de câmara que não vêm à tona.
carnação quem tem consciência das várias vidas que viveu. - VtJcênão acha que é dever seu o de fazer a música que
Evidentemente não é meu ponto de vista: se existe reencar- sua alma pede? Pelas coisas que você disse, suponho que signifi-
nação s6 pode ser por um despojamento. ca que o nosso melhor está dito para as elites?
Dei-lhe então a epígrafe de um de meus livros: é uma - Evidentemente que nós, para nos expressarmos,
frase de Bernard Berenson, crítico de arte: "Uma vida comple- temos que recorrer à linguagem das elites, elites estas que
ta talvez seja aquela que termina em tal identificação com o não existem no Brasil... Eis o grande drama de Carlos Drum-
não-eu que não resta um eu para morrer". mond de Andrade e Villa-Lobos.
- Isto é muito bonito, é o despojamento. Caí numa - Para quem você faz música e para quem eu escrevo?
armadilha porque sem o eu, eu me neguei. Se nós negamos - Acho que não nos foi perguntado nada a respeito, e,
qualquer passagem de um eu para outro, o que significa reen- desprevenidos, ouvimos no entanto a música e a palavra, sem
carnação, então a estamos negando. tê-Ias realmente aprendido de ninguém. Não nos coube a
- Não estou entendendo nada do que nós estamos falando, escolha: você e eu trabalhamos sob uma inspiração. De nos-
mas faz sentido. Como podemos, Tom, falar do que não enten- sa ingrata argila de que é feito o gesso, ingrata mesmo para
demos? Vttmos ver se na próxima reencarnação nós dois nos en- conosco. A crítica que eu nos faria, Clarice, nesse confortá-
contramos mais cedo. Que é que você acha do fato da liderança vel apartamento no Leme, é de sermos seres rarefeitos que
do mundo estar hoje na mão dos estudantes? s6 se dão em determinadas alturas. A gente devia se dar mais,
- Acho que não podia ser de outra forma e que venham a toda hora, indiscriminadamente. Hoje quando leio uma
os estudantes. Vladimir sabe disso. partitura de Srravinski ainda mais sinto uma vontade irre-
- A sociedade industrial organiza e despersonaliza demais primível de estar com o povo, embora a cultura jogada fora
a vida. VtJcê não acha, Tom, que está reservado aos artistas o volte pelas janelas - estou roubando C.D.A.
papel de preservar a alegria do mundo? Ou a consciência do - Por que nós todos somos parte de uma geração quem
mundo? sabe se fracassada?
- Sou contra a arte de consumo. Claro, Clarice, que - Não concordo absolutamente! - disse Tom.
eu amo o consumo ... Mas do momento em que a estandar- - É que eu sinto que nós chegamos ao limiar de portas
dização de tudo tira a alegria de viver, sou contra a indus- que estavam abertas - e por medo ou pelo que não sei, não
trialização. Sou a favor do maquinismo que facilita a vida atravessamos plenamente essasportas. Que no entanto têm nelas
humana, jamais a máquina que domina a espécie humana. já gravado nosso nome. Cada pessoa tem uma porta com seu
120 121
CLARICE LlSPECTOR DE CORPO INTEIRO
nome gravado, Tom, e é só através dela que essa pessoa perdida fores do Carnegie Hall. Sempre fugi do sucesso, Clarice,
pode entrar e se achar. como o diabo foge da cruz. Sempre quis ser aquele que não
- Batei e abrir-se-vos-à. vai ao palco. O piano me oferecia, de volta da praia, um
- Vou confessar a você, Tom, sem o menor vestígio de mundo insuspeitado de ampla liberdade - as notas eram
mentira: sinto que se eu tivesse tido coragem mesmo, eu jd teria todas disponíveis e eu antevi que se abriam os caminhos,
atravessado a minha porta, e sem medo de que me chamassem que tudo era lícito, e que se poderia ir a qualquer lugar des-
de louca. Porque existe uma nova linguagem, tanto a musical de que fosse inteiro. Subitamente, sabe, aquilo que se ofere-
quanto a escrita, e nós dois seríamos os legítimos representantes ce a um menor púbere, que o grande sonho de amor estava
das portas estreitas que nos pertencem. Em resumo e sem vaida- lá e que este sonho tão inseguro era seguro, não é, Clarice?
de: estou simplesmente dizendo que nós dois temos uma vocação Sabe que a flor não sabe que é flor. Eu me perdi e me ga-
a cumprir. Como se processa em você a elaboração musical que nhei, enquanto isso sonhava pela fechadura os seios de minha
termina em criação? Estou simplesmente misturando tudo, mas empregada. Eram lindos os seios dela através do buraco da
não é culpa minha, Tom, nem sua: é que esta entrevista foi se fechadura.
tornando meio psicodélica. - Tom, você seria capaz de improvisar um poema que
- A criação musical em mim é compulsória. Os anseias servisse de letra para uma canção?
de liberdade nela se manifestam. Ele assentiu e, depois de uma pequena pausa, me ditou
- Liberdade interna ou externa? o que se segue:
- A liberdade total. Se como homem fui um pequeno
burguês adaptado, como artista me vinguei nas amplidões Teus olhos verdes são maiores que o mar.
do amor. Você desculpe, eu não quero mais uísque por causa Se um dia eu fosse tão forte quanto você
de minha voracidade, tenho é que beber cerveja porque ela eu te desprezaria e viveria no espaço.
locupleta os grandes vazios da alma. Ou pelo menos impede Ou talvez então eu te amasse.
a embriaguez súbita. Gosto de beber só de vez em quando. Ai! que saudades me dá da vida
Gosto de tomar uma cerveja, mas de estar bêbado não gosto. que nunca tive!
(Foi devidamente providenciada a ida da empregada para
comprar cerveja.) - Como é que você sente que vai nascer uma canção?
- Tom, toda pessoa muito conhecida, como você, é no - As dores do parto são terríveis. Bater com a cabeça
fondo o grande desconhecido. Qual é a sua face oculta? na parede, angústia, o desnecessário do necessário, são os
- A música. O ambiente era competitivo, e eu teria sintomas de uma nova música nascendo. Eu gosto mais de
que matar meu colega e meu irmão para sobreviver. O espe- uma música quanto menos eu mexo nela. Qualquer resquí-
táculo do mundo me soou falso. O piano no quarto escuro cio de sauoir-fnire me apavora.
me oferecia uma possibilidade de harmonia infinita. Esta é - Tom, Gaugu;n. que não é meu predileto. disse 110 en-
a minha face oculta. A minha fuga, a minha timidez me le- tanto uma coisa que não se deve esquece1~por mais dor que ela
varam inadvertidamente, contra a minha vontade, aos holo- nos =s« É o seguinte: "Quando tua mão direita estiver hábil,
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DE CORI'O IN I'EIRO
CLARICE L1SI'ECTOR
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1)E <:OIU'O IN'I EIItO
CI.AIUCE LlSPECTOIl
tendência é gostar das pessoas. E até dos meus inimigos, que - Quais são as suas pretensões?
- No caso - disse rindo, - é não andar nua, mas
não considero inimigos.
_ Tereza, sua principal ocupação é a moda, não há dúvi- pretendo que estou num mundo onde existem coisas mais
da. Em segundo lugar o que é que vem? importantes e avançadas.
_ Minha primeira preocupação é existir. Depois é que - Se você não fosse Tereza Souza Campos, o que é que
você gostaria de ser?
vêm todas as outras.
- O que é que você entende por existir? - Eu tinha que ter sido Tereza Souza Campos. Acredito
- É ser tudo o que eu sou. que as coisas acontecem por destino. Você pode maneirar
- E o que é que você é? com ele, dar um jeitinho no destino, mas não há como esca-
Ela ri, repete: "o que é que eu sou?" par verdadeiramente.
Longuíssimo tempo se passa: a pergunta, além de ines- - Qual é o seu arrependimento maior na vida?
perada, é realmente difícil de responder. Sobretudo se a pessoa - Tenho muitos arrependimentos. Ainda bem que eu
mergulhar dentro de si para encontrar a resposta. Parece que posso voltar atrás. Onipotente é Deus, não eu. Prepotentes
isso aconteceu com Tereza: seu olhar tornou-se profundo e, são os medíocres, os que não têm maleabilidade quanto à vida.
embora de olhos abertos, eles estavam virados para dentro. - Você tem tempo para ler?
A partir desse momento a simpatia crescente por Tereza - Não tenho muito tempo para ler, mas leio o que
aumentou e se estabeleceu. Afinal não é culpa dela se o mun- pode me manter atualizada, revistas, jornais, Não vou te dizer
do está organizado como está. que fico sentada em casa lendo Proust ...
- O que é que eu sou? - repetiu ela. - Qual é a mulher que você mais admira? no tempo e no
Procurei facilitar Tereza, dando um exemplo: "superfi- espaço?
cialmente e resumidamente falando, Tereza, eu sou mãe de - Admiro todas no tempo e no espaço porque cada
meus filhos e escrevo romances e contos. Superficialmente, uma delas tem o seu lugar no tempo e no espaço, E nas mu-
repito, é isso o que eu sou. E o problema social me angustia: lheres preeminentes admiro suas qualidades.
eu também sou isso". Tereza é inteligente: nenhuma pergunta a deixa enras-
- O que é que eu sou? Nada e tudo. cada. Quando não tem resposta - e é muitas vezes realmente
- Nada em quê? difícil dar uma resposta precisa, sobretudo para uma pessoa
- Nada para muita gente e tudo para o meu filho que franca como Tereza que não me pareceu mentir - quando
é uma evolução minha e uma renovação constante para mim. não tem resposta precisa, 'maneira'. Devo dizer que Tereza e
Tereza disse sobre moda que o faro de acharem-na tão eu tivemos conversas além das que estão sendo publicadas:
elegante nunca partiu dela. Que na verdade o que faz é o são mais da intimidade dela, e respeito-a.
que todas as mulheres fazem de um modo ou de outro: "vou - QlIantos filhos você tem e qual é o sistema de educação
à costureira, escolho o que mais me agrada. A moda não é que você naturalmente adota?
minha preocupação constante. Eu tenho pretensões mas não - Tenho um filho de dezenove anos. Acredito muito
sou pretensiosa". na relação íntima entre pais e filhos, Não como no passado
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CLARICE L1SI'ECTOR
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em que havia uma distância total entre eles. Sou uma pessoa - Tudo. Os valores são relativos, o que pode importar
que pensa muito. De modo que tudo o que eu faço é plena- a você pode não importar a mim, e assim por diante.
mente consciente. - Que é que você pensa quando pensa nas pessoas que
- Por quem você torce na guerra do Vietnã? não têm o que comer: você sente pena delas ou acha que o mundo
- Torço para que essa guerra acabe de uma vez, torço precisava ser reformado? Ou ambos?
I
por uma solução. - Tenho pena que o mundo não possa proporcionar a
- Qual é a sua maior vocação, Tereza? quero dizer: a vo- todos a oportunidade de comer, viver, trabalhar. Tenho pena,
cação frustrada. mas se você passar o dia inteiro pensando nisso você pára de
- Frustrada? (fez uma espécie de muxoxo). Acho que existir. Que o mundo está se reformando, é uma evidência.
não tive vocação frustrada, eu aprendo todos os dias um pou- - Como esta deve ser a primeira vez que dialogam com
co de tudo. Não tenho nenhuma vocação determinada, mas você sem ser a respeito de moda e beleza, eu queria saber como
não me sinto frustrada. você se sente tratada por mim como pessoa humana e não apenas
- Fale-me um pouco de sua cidade natal, de suas recor- uma elegante. Foi agradável ou desagradável? Para o diálogo
dações. Você é de Uberabai não falhar, seja por favor sincera: não se engane: o público p{'rce-
- Não, de Ubá, Minas Gerais. Mas estive poucas ve- be nas entrelinhas a realidade.
zes lá. Mamãe morava aqui e quando ia ter filho partia para - Sou uma pessoa que pensa muito na vida e tenho
Ubá porque aí moravam meu avô, minha avó e toda a famí- algumas idéias (ri). E acho que você me tratou elegantemente,
lia. Estou muito contente de ter nascido lá, isto é, de minha conclui rindo.
'rnineirice'. O importante não é ter nascido num lugar e sim Enfim, contra a minha vontade (estou sorrindo), to-
as raízes de família. mei-me de grande simpatia por Tereza. O seu modo de vida
- Qual foi a sua maior alegria na vida, ou as maiores? não é culpa dela: ela faz parte de uma engrenagem não evoluí-
- Tive grandes alegrias na vida. Estou alegre de ma- da. Tenho certeza de que Tereza Souza Campos, em situação
nhã quando acordo ... Sobrevivência não é uma alegria, Cla- diferente, poderia ter grande valor. Ela é o que se chama une
rice? - disse Tereza rindo. - Em todo o caso não poderia femme d'esprit.
contar todas as alegrias, alegrias mesmo, de minha vida. Você
esperava por acaso que eu dissesse que a maior alegria foi o
nascimento do filho? Não seria verdade, porque a dor é ter-
rível. A alegria vem antes, no ato de procriá-lo.
- Qual foi a sua maior tristeza?
- No dia em que perdi meu pai. Eu ... - Tereza não
pôde conter as lágrimas - desculpe, é que foi muito recen-
te. Eu o achava tão excepcional. Tinha tal afinidade com ele.
Ficamos durante algum tempo em silêncio. Ela chorava.
- Tereza, o que é que realmente importa?
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