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O RAÇÃ O

PRO N U N C IA D A PELO
PROF. JAYM E N EV ES
DURANTE A S
HOM ENAGENS
P Ó ST U M A S AO PROF.
O S C A R V E R SIA N I
CA LD EIR A EM 25.6.1973

P ro f. O scar V ersian i C aldeira


21 - 8-1902 — 2 6 - 12-1972

H onrou-m e sobrem aneira o Sr. Diretor com a incum bência de apresentar,


em nom e da Congregação desta Casa, a saudação póstum a ao Prof. Oscar Ver­
siani Caldeira. A gratificação íntim a im plícita na honraria, entretanto, não
impede, como não im pediu, que m e sentisse em am bivalência atroz. Entre acei­
tar e não aceitar a tarefa tão sublim e quanto árdua, m ais simples seria declinar-
m e da honraria, por reconhecer em outros professores m elhor engenho e arte.
For outro lado, aterrava-m e a responsabilidade de acatar a esta delegação, face
ao constrangim ento natural de a hom enagem visar à pessoa de quem sou, com
justo orgulho, um a extensão. E como se isto não bastasse, era forçoso reconhe­
cer que a nossa Congregação tem sido m uito ciosa no reconhecim ento de seus
valores hum anos, evitando distribuir hom enagens a m ancheias, como se tem esse
sua dilapidação em im portância e sentido. E se ela se preocupa em hom enagear
o Prof. Oscar Versiani Caldeira, patente está o respeito e a veneração de que se
tornou credor, ao se incorporar o seu nom e no patrim ônio cultural de nossa Fa­
culdade de M edicina.
Term inei por aceitar a m issão. Dela m e proponho ãesincum bir com hum il­
dade e respeito, convencido de que a m elhor m aneira de hom enageá-lo é des­
crever-lhe os feitos, ainda que o faça a m eu modo, sem pretensões de fazer-lhe
a biografia.
Oscar Versiani Caldeira, filho de José Caldeira B rant e Augusta Versiani
Caldeira, nasceu em Felisberto Caldeira, na tradicional D iam antina, a 21 de
agosto de 1902. Transferindo-se a fam ília para a Capital recém -fundada, con­
cluiu ele o curso primário, em 1914, no Grupo Escolar A fonso Pena. M atriculou-
s e , em 1921, na Faculdade de M edicina da Universidade de M inas Gerais (então
Faculdade de M edicina de Belo H orizonte ) , graduando-se, após seis aiios in in ­
terruptos e sem reprovações, em 1926. Desde o período acadêmico destacou-se
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pela sua dedicação ao estudo, particularm ente no cam po da m edicina interna,


experiência que começou a acum ular, a partir do 4'? ano, como interno da I Clí­
nica Médica, Serviço do Prof. Alfredo Balena.
Suas atividades profissionais foram iniciadas em M anhuassu, de onde re­
gressou a Belo H orizonte em janeiro de 1928, quando, a convite do Prof. Alfredo
Balena, Diretor da Faculdade ãe M edicina, assum iu interinam ente a Secretaria
do Estabelecim ento, acum ulando esta função com a de A ssistente Voluntário da
I Cadeira de Clínica M édica. Ainda jovem , com 26 anos de idade, lançava Oscar
Versiani os marcos de um a carreira que iria notabilizá-lo em todos os em preen­
dim entos a que se propôs. D eliberadam ente ou não, aliava seus estudos à fa ­
miliarização com o com plexo adm inistrativo da Faculdade, adestram ento que
iria m ais tarde se fazer sentir no exercício de sua Diretoria, por 10 anos con­
secutivos .

A partir de 1929, as atividades ãe Oscar Versiani vieram dem onstrar sua


inequívoca vocação para a pesquisa e para o m agistério. A ntes de conquistar
sua prim eira Docência Livre em Clínica Médica, em 1936, foi eleito M édico da
Santa Casa de M isericórdia de Belo H orizonte, A ssistente efetivo da I Cadeira
de Clínica Médica, Professor ãe Terapêutica da Escola de E nferm agem Carlos
Chagas e representante da Faculdade de M edicina na conferência Pan-Am ericana
ãe M edicina, realizada no Rio ãe Janeiro, onãe relatou o tem a “leucem ias”. Em
1939, após uma. seqüência ãe pesquisas no cam po da hem atologia clínica, foi
aprovaão com distinção em concurso ãe nova Docência Livre, agora, ãa Clínica
ãas Doenças Infectuosas e Tropicais, assum inão no m esm o ano as funções ãe seu
professor interino. Regeu a disciplina ãe Clínica M éãica e contem poranea-
m en te lecionou diversos cursos paralelos: ãe “leprologia”, organizaão pela Di­
retoria ãe Saúãe Pública e pela Faculãaãe ãe M eãicina; de ‘‘febre am arela” e
“infecções tífico-paratíficas” para a Sociedade ãe Médicos M ilitares; de “tuber­
culose”, “blastomicose” e “ãisvitam inoses ão com plexo B ” na Socieãaãe ãe M e­
ãicina ãe Porto Alegre; ãe “blastomicose” no In stitu to ãe H igiene ãe M onteviãéu.
Foi ãesignaão, em 1941, para organizar o “Curso ãe Especialização sobre Doença
de Chagas", patrocinado pela Faculãaãe ãe M eãicina ãa UMG, pela Faculãaãe
Nacional ãe M edicina, pelo In stitu to Oswalão Cruz e pelo In stitu to Ezequiel
Dias. Foi conviãaão para tom ar parte nas jornaãas m éãicas sobre “E nferm ida­
des Enão-epiãêm icas”, em Buenos Aires (1942) e, na qualiãaãe ãe vogal, repre­
sentou a Faculãaãe ãe M eãicina na Seção ãe “E nferm iãaães Infecciosas” ão 29
Congresso Pan-am ericano, em Buenos Aires (1941) e no I Congresso Nacional ãe
“Enferm iãaães Enãem o-epiãêm icas”, tam bém em Buenos Aires, em 1942.
A par ãas m últiplas ativiãaães representativas ãa Faculãaãe de M eãicina
em congressos nacionais, bem como em participação ãe bancas exam inaãoras,
Oscar Versiani prosseguiu suas linhas ãe trabalho em m eãicina tropical, culm i-
nanão seus estudos com a mo?iografia “Arriboflavinose” com a qual conquistou
a Cáteãra das Doenças Infectuosas e Tropicais, em 1946. A partir dessa época,
foram m últiplas suas ativiãaães, ãestacanão-se os estágios, as participações em
congressos e em visitas a ãiversos centros universitários no Exterior, como os
ão Canaãá, ãos Estaãos Unidos, M éxico, Chile, Venezuela, Bolívia, Peru, A rgen­
tina, Uruguai, Inglaterra, Portugal, França, Itália, A lem anha Ocidental, T ur­
quia etc.
,í4s atividades de Oscar Versiani tam bém se fizeram sentir como Diretor ãa
Escola ãe Saúde Pública ão Estaão de M inas Gerais, na chefia ão Serviço Téc­
nico de Endem ias Regionais do m esm o Estado, na presidência ãa Associação B ra­
sileira ãe Escolas Médicas — quando visitou todas as Escolas M édicas do País —•
e nas diversas associações científicas nacionais e internacionais a que era fi­
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liado. D entre as láureas conquistadas, citam -se: M em bro do “M érito Médico”,


M edalha de Honra da Inconfidência do Estado de M inas Gerais, M embro da
A cadem ia M ineira de M edicina e Professor Em érito de nossa Faculdade.
Vice-D iretor da Faculdade de M edicina de 1950 a 1959, o Prof. Oscar Versiani
Caldeira exerceu sua D iretoria entre dezem bro de 1959 a 17 de fevereiro de 1970.
Sua indicação inicial e as reconduções subseqüentes contaram sem pre com u n a ­
nim idade de votos da colenda Congregação.
Não m e seria possível reproduzir aqui os fatos m arcantes que se incorpo­
raram ao patrim ônio de nossa Faculdade, durante tão longa e profícua gestão.
Caso o tentasse, ver-m e-ia na. contingência inglória de resum ir parte do exaus­
tivo e com pleto trabalho realizado pelo Prof. Mário M endes Campos, onde são
relatados, com fidelidade histórica, as realizações ocorridas na Faculdade de M e­
dicina durante seu prim eiro cinqüentenário (1911-1961). Não m enos inglória
seria a ten ta tiva de sum ariar a igualm ente brilhante m onografia do Prof. H ilton
Rocha, que teve a honrosa incum bência de registrar as realizações verificadas
no decênio 1961-1970 ou m ais precisam ente de escrever a história de nossa Fa­
culdade durante a gestão do Prof. Oscar Versiani Caldeira. Neste particular,
vale a leitura desta últim a obra. Ainda que não ten ha sido, por justa causa, a
intenção de seu em inente autor consagrar em vida um dos grandes artífices
desse grande patrim ônio que aí está, se sua obra fosse hoje escrita, por certo,
o Prof. H ilton Rocha incrustaria o nom e do Prof. Oscar Versiani no prólogo de
seu trabalho onde se lê: “que Deus guarde em seu seio os bons que já se foram ,
e nos ajude a im itá-los, na confecção íntérm ina de um a obra inconsútil”.

Seria estultice m inh a analisar criticam ente toda a profusa obra científica
de Oscar Versiani. Sobre o risco de falecer m eu engenho, tal a profundidade
de sua m ultifária cultura m édica, corro o risco de enfadar os ouvintes, m or­
m en te àqueles que o conheceram sob ângulos d iferen tes. Todavia, não fujo ao
dever de aconselhar aos tangidos pelas carícias da investigação científica que
se deleitem com o estudo de sua obra. Localizado seu labor num a época em que
uns poucos num País de tantos dedicavam -se seriam ente ao m étodo científico
— com capacidade criadora, em busca de contribuições válidas ao conheci­
m ento — Oscar Versiani foi, sem favor, u m dos pioneiros em nossa F aculdade.
Em seus trabalhos, desde os saídos a lum e em sua juventude, observa-se a a ti­
tude que a m eia ciência faz questão de desprezar: o respeito ao fato .
Na observação de um fenôm eno qualquer, não lhe faltavam atributos de
observador astuto. Para tanto, aliava o lastro de sua bagagem m édica à con­
dição de “rato de enferm aria”, como diria o grande m ineiro seu amigo Pedro
N ava. Por isto, suas observações prim avam pelo fausto de detalhes semióticos,
por equilibrada exploração subsidiária e, o que é m ais im portante, pela emoção
com edida ao interp retá-la s. Quando a observação se restringia ao paciente, era
inexcedível na arte de conciliar os interesses da ciência com o de tratar com o
doente e o de tratar do doente, que são coisas bem distintas.
A vocação científica de Oscar Versiani encontra-se m anifesta desde “O bis-
m uto no tra ta m en to da neurolues”, em 1929, até “Arríboflavinose”, esta a sua
obra m ais alentada. De u’a m aneira geral, sua contribuição científica pode ser
dividida em três fases bem delineadas, que envolvia a cardiologia, a hem ato­
logia clínica e a tropicologia m édica. No dom ínio da cardiologia, inicialm ente
retom ou ele os trabalhos originais de Alfredo Balena, que versavam sobre “B ra-
dicardias gripais” (1918) e “Síndrom e de A dam s-Stokes post-gripal” (1942), en-
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feichando suas pesquisas na m onografia “Bradicarãias totais transitórias”, com


a qual conquistou a Docência Livre ãe Clínica Médica, em 1936. A seguir, foram
publicados “R itm o cardíaco” (1938), “Pericardite exsudativa” (1944) e “Sínãro-
m es de hipersensibilidade sino-carotidiana” (1939), ressaltando-se a originali­
dade deste últim o trabalho e a prioridade de seu enfoque em ?iosso País . .
Utilizando de m esm o procedim ento, ou seja, ãe sistem atização de campos
específicos ãe pesquisa, no âm bito da hem atologia clínica, Oscar Versiani alia
seu adestram ento técnico em hem atologia às implicações de ordem clínica e he-
m atológica. Sente-se em seus trabalhos a racionalização ãe interpretações fi-
siopatogenéticas ãuviãosas, se consideradas isoladam ente pelo hem atologista e
pelo clínico. (Nesta linha ãe pesquisa foram publicaãos diversos trabalhos, m e ­
recendo destaque “A nem ia perniciosa” (1935), “Doença ãe W erlhoff” (1935), “Leu­
cemia m onocítica (1935), “Mielose leucêmica crônica” (1938); “Alteraações he-
m atológicas nos leprosos” (1941), “M anifestações nervosas da anem ia perniciosa”
(1944) e “Forma leucocitária na tuberculose” (1939). Esta últim a encerra con­
tribuição original, com a qual conquistou nova Docência Livre, agora, de D oen­
ças Infectuosas e Tropicais.
A m aior contribuição de Oscar Versiani, entretanto, encontra-se relacionada
com a tropicologia m édica. Seu fascínio pelo cam po de estudos m ostra-se pa­
tenteado num grande acervo de publicações originais, onde se observa sua exu ­
berante cultura ãe clínica e ãe fisiopatologia. Excetuando a patologia nutricio­
nal, que polarizou grande parte de sua capacidade de trabalho, suas publicações
alcançaram um a larga faixa ãas doenças cham aãas tropicais. D etiveram -se elas
sobre conceitos de infecção, de m eningites, das infecções tífico-paratíficas, febre
amarela, leishm aniose visceral am ericana, m alária, ésquistossomose m ansoni,
hanseníase, blastomicose sul am ericana, hepatopatias, diagnóstico diferencial ãas
esplenomegalias etc. Em todas estas publicações sua argúcia clínica é posta à
prova, ãanão-lhes toque ãe originalidade. Assim , em “Leishm aniose visceral
am ericana” (1943), descreve com precisão ãe ãetalhes clínicos e epiãemiológicos,
o prim eiro caso ãe calazar não autóctone observado em Belo H orizonte. Caso
clínico absolutam ente original, onde se distinguem as relações entre a doença
de H anã-Schuller-C hristian e o granulom a eosinofílico, foi ãescrito em “H anã-
Schuller-C hristian’s synãrom e and eosinophylic or solitary granulom a of bone”
(1944). Em seus estudos envolvendo a blastomicose “Blastom icose” (1945); “Lutz
disease (South Am erican Blastom icoses) ”, 1948, em colaboração com L. Bogliolo,
cham a a atenção para a tendência que possui a mícose ãe se afigurar como
ãoença sistêmica, fato ainãa hoje adm issível, m as incom preensivelm ente m al es-
tuãado.
A partir de seus estudos sobre “A nem ia perniciosa” e “Alopécia nas ãisvita-
m inoses ão com plexo B — H istopatologia”, em 1944 (em colaboração bem J.
Lopes Faria), Oscar Versiani enfecha longa pesquisa num a m onografia intitulada
“Arriboflavinose” (1946), obra com que conquistou a Cátedra ãas Doenças In fec-
tuosas e Tropicais. A pesquisa desenvolveu-se em pacientes internados em di­
versos hospitais e particularm ente em agrupam entos ãe crianças ãe iãaãe esco­
lar. Vários grupos ãa Capital foram percorridos para a seleção de casos que
apresentassem arriboflavinose da boca. O juízo clínico era apoiado em exam es
especializados, especialm ente na biomicroscopia ocular e nas pesquisas ãe labo­
ratório, visando a identificação de germ es isolados, em provas sorológicas, em
análises de urinas — levadas até as provas ãe elim inação de vitam inas — em
exam es coprológicos, em dados hematológicos, em registro eletrocardiográfico, em
determ inação ãe eletrólitos e em outras m ais. A observação clínica ãesses casos
viria m ostrar a coexistência ou não de outros sinais ãe carência alim entar e ain­
da a concom itância ãe sintom as ãe outras ãeficiências nutritivas.
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O plano de trabalho em si deixa patenteado a soma considerável de dificul­


dades para a sua execução, a partir do inquérito alim entar de grupos de crian­
ças, com todas as suas im plicações. Após detido exam e de 104 pacientes, profu­
sam ente docum entados e fotografados, conclui Versiani que dentre as avitam i-
noses do com plexo B, a arriboflavinose é a m ais freqüente. A estom atite an­
gular é evidente e o sinal m ais positivo da arriboflavinose, constituindo, com a
seborréia facial e a vascülarização da córnea, a estrutura trípoda fundam ental
deste quadro clínico. Além de outras conclusões, o autor acrescenta que “enquanto
não se efetivarem m edidas m ais am plas com a finalidade de se m elhorarem as
condições de vida de iiosso povo, as cantinas escolares contribuirão eficazm ente
para m inorar a aflitiva contingência atual, m ediante a organização de dietas
adequadas e conseqüente educação dos escolares, o que, em parte, já se vem con­
seguindo, pois, para com prová-lo, basta assinalar que o m aior núm ero de doen­
tes se encontra entre os alunos do prim eiro ano”

Oscar Versiani possuia verdadeira ojeriza pela m eia ciência. M ordicava os


lábios, num trejeito todo próprio, ao perceber que a literatura médico ; se enri­
quecia e se saturava de publicações de im portância científica questionável. E n­
tendia não devessem escrever senão os que algo viessem acrescentar ao pecúlio
hum ano. Ao que m e lembro nunca parafraseou conosco, seus assistentes, p en­
sam entos m agistrais, frases feitas, lugares com uns, buscados a esmo nos Clás­
sicos da M edicina. Preferia os ensinam entos vivos de sua vida. Um pensa­
m ento, lem bro-m e bem , por diversas vezes escutei: Ero.i de R ui Barbosa — e nada
m ais pontificava senão que“sob a pressão da urgência, ninguém produziu nunca,
nem produzirá jam ais, coisa que resista a prova do saber, do gosto e do tem po”.
Se no mom,ento, em face de nova reform ulação dos m étodos de ensino e pes­
quisa, busca-se na figura do pesquisador a razão de vida de um a Universidade,
vale retroceder no tem po e reviver os ensinam entos contidos na obra de Ver­
siani. Ao perquiridor só restará a conclusão de que o cientista de que falo, lendo
Descartes e fam iliarizado com o acetism o dialético de B ertrand Russel, im preg­
nou-se da dúvida metódica, para chegar ã sabedoria de que não há lugar na
ciência para o comodismo que envolve a atitude opiniática. Se transcende sua
obra ao respeito pelo fato, seu acetism o o compelia a desacreditar dele até que
constantes indagações e “porquês” lhe dessem m otivos válidos para nele crer.
Assim, em suas m onografias “Braãicarãias totais transitórias”, “Sindrom es caro-
tidianas”, “Blastom icose” e “Arriboflavinose”, bem como em toda a série de
outras publicações, o m étodo científico nunca fci desprezado. Ali se encontram
explícitos: conhecim ento seguro da literatura que sustenta as razões da procura
do objetivo; a coleta criteriosa de dados e seu ulterior confronto ; o apreço à con­
tribuição de outrem ; o tratam ento estatístico dos resultados; as conclusões obje­
tivas. Ao lado desta atitude irrefreável, o léxico nunca foi descurado. Tudo é
escrito em estilo sóbrio e preciso, onde m odulam palavras ajustadas que tornam
o pensam ento claro e inteligível.
A obra de Versiani não parou aí. Nem seria com preensível entendê-la es­
tática. A pesquisa científica é dinâm ica, generosa e fértil. E Versiani recusou-
s e sem pre a entendê-la am esquinhada por privilégios de elites herm éticas que,
na ânsia de contê-las em suas ermidas, só a definhavam e a, castravam .
Credite-se a Oscar Versiani o fato de não haver parado, m as de ter im pul­
sionado a Clínica das Doenças Infectuosas e Trcpicais, da qual foi titular até a
sua aposentadoria, à iniciação na pesquisa científica. Talvez os núm eros pos­
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sam não exprim ir, com fidelidade, os resultados desta autêntica revolução de
atitude. Todavia, traduzem a som a apreciável de labor de um a equipe relativa­
m en te pequena, m as que já começa a crescer. À guisa de exem plo, bastaria citar
que, num período que não vai a 10 anos, a Clínica das Doenças Infectuosas e Tro­
picais, hoje Doenças Infectuosas e Parasitárias, possui linhas definidas de pes­
quisa. A lim entam elas m ais de um a centena de publicações sobre patologia tro­
pical, entre m onografias, livros de texto e trabalhos originais, m uitos dos quais
têm alcançado repercussões no Exterior. Em concursos científicos de âm bito
nacional, a equipe detém quatro láureas. No m esm o período foram apresenta­
dos em congressos nacionais e internacionais cerca de 250 trabalhos, entre te ­
m as oficiais, conferências, painéis, sem inários, m esas redondas e tem as livres.
Ultrapassando os lim ites de nossa Universidade, tem a Clínica sido convidada
para 'apresentar seus m odelos de ensino e pesquisa em congressos da Sociedade
Brasileira de M edicina Tropical e em diversas Faculdades de M edicina do País.
M uitas dessas incum bências ficaram a cargo do Prof. Oscar Versiani Caldeira.
Se o objetivo da Universidade é o ensino e a pesquisa, ela não se basta com
a pesquisa, como não se basta com nen h um dos objetivos isoladam ente. Oscar
Versiani sabia disto. Oriundo de um a época em que m uitas vezes avaliava-se
a grandeza de um professor pela distância e pela altura em que se colocava em
relação ao estudante; em que se m edia o seu valor pelos rom pantes e rom pantes
de um a erudição m uitas vezes questionável; em que a com unicação era o m o ­
nólogo e o estudante um acidente desvalido em sua ansiosa busca de habilida­
des e de aptidões, Versiani teve a coragem de prim eiro adaptar-se para propor
m udanças. No seu entender, todos os professores das escolas de m edicina de­
veriam possuir determ inada form ação pedagógica, com o objetivo de increm en­
tar sua com petência para a solução dos problem as docentes. O pessoal form ado
pedagogicam ente aum entaria, por certo, a eficiência da Faculdade de M edicina;
m elhorar-se-iam os meios de planificação e avaliação dos planos de estudo; ele-
var-se-ia a qualidade do ensino e estaria o pessoal docente em m elhores condi­
ções para fazer frente ao aum ento do núm ero de alunos.
Decorridos quase 10 anos da ten ta tiva de im plantação desta m etodologia de
ensino na Faculdade, nada m ais lisongeiro, para objetivar a qualidade do Pro­
fessor e do Diretor que foi Versiani, do que constatar a identidade de suas idéias
com as conclusões a que chegaram os peritos da O ficina Regional da O rganiza­
ção M undial da Saúde, em sim pósio realizado em San R em o (Itália), em abril áe
1972. Temos testem unho do ardor com que defendia ele a necessidade de incre­
m entar-se a utilização dos meios audio-visuais; a utilização da psicologia do
aprendizado e do ensino; das características do professor e do aluno e de suas
conseqüências para o ensino; do planejam ento de plano de estudos; da relação
entre aluno e professor.
Não iremos analisar aqui as com plexas razões que tornaram inviável a im ­
plantação dessa m udança em nossa Faculdade. Todavia, na Clínica das D oen­
ças Infectuosas e Tropicais há provas inequívocas das vantagens da nova m e ­
todologia de ensino. Um exemplo, nunca os alunos se interessaram tan to por
um a patologia que antes tem iam , como se brasileira não fosse; nunca os profes­
sores produziram tanto; poucas vezes se viu um hospital de “isolam ento” tão
acolhedor.
Em virtude da diferenciação do grupo estudioso da tropicologia m édica, pla­
nejou-se e im plantou-se, em regim e interdepartam ental, o Curso de P ós-G radua­
ção em M edicina Tropical (M estrado e D outorado), cujas atividades foram in i­
ciadas em agosto de 1972. É com justo júbilo que registram os a gratificação ín ­
tim a de que se viu possuidor o Prof. Oscar Versiani, com a instalação de um curso
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ãe pós-graduação em patologia tropical, hoje fulcro ãa D isciplina que estruturou


e tan ta contribuição trouxe. Daqui por ãiante, a tarefa ãele é nossa. Oxalá
sejam os âignos ãela, como ele o foi.

Oscar Versiani foi um liãer.


Fugindo a qualquer ten ta tiva vã ãe analisar o polieãro que caracterizou a
personaliãade de Oscar Versiani Caldeira, um a nova compulsão m e obriga a vis­
lum brar algum as ãe suas facetas. Ainãa que a isto m e proponha, horripila-m e
que m inh a miopia, ou a ãistância em que m e colocava ãiante ão objeto obser-
vaão, ãeturpe seus contornos, im pelindo-m e a ãivisar quadriláteros num objeto
que geom étrica e filosoficam ente não os com porta
Oscar Versiani foi um líder. Naãa ãe improvisos desde as origens genéti­
cas. Seu conteúdo inato poãe ser sentião em sua descendência, ãe “velha es­
tirpe, que há m ais ãe 2 séculos m uito tem feito pela prosperidade ãe M inas G e­
rais”. Sua consolidação deu-se no tem po, com ãeãicação ao trabalho e com im a­
ginação criaãora.
N um a época ãe crise aguda de lideranças, em quase todos os setores ãa ati-
viãaãe hum ana, chega a ser carism ática a figura ãe quem se plasm ou para li­
deranças, particularm ente se foi ela exercida quando de um a quadra de descom -
passos para o ensino m édico. Mas, assim se deu com Oscar Versiani. Predes­
tinado, a afirm ar-se em tem pos de crise e de indecisões, ele se im pôs e se m a n ­
teve, até que fím brias ãe sensatez surgissem nos m entores ão ensino. E no exer­
cício ãesta atividade, Oscar Versiani discutia, argum entava, persuadia e conquis­
tava adesões para as suas idéias. Com a m esm a sim pliciãaãe que as venãia, era
capaz ãe com prá-las ãe outrem , por considerá-las ãe valor m aior ão que as suas.
Sem pre foi corajoso — im pulsivo como os jovens, às vezes, m as forte, com ­
petente, tolerante e hum ilãe. Não era ãe velar com biocos sua ira quase sa­
grada, frente à incom petência e a insolência. E isto herdou ãos pais. Vem dele
m esm o um relato que vale a pena recordar. Transferindo-se a fam ília de Dia­
m an tin a para a capital recém -fundada, o pai se viu em justificáveis apuros para
educar seus 14 filhos, razão últim a e profunda ãa m uãança encetaãa. Não foi
fácil a tarefa. De um a feita, escreve Versiani, “sentinão-se em ãificulãaães fi­
nanceiras, o m ineiro ãe que vos falo procurou o governante, então detentor das
rédeas do Estado, expôs-lhe com franqueza a situação, declarando de modo po­
sitivo que a m elhoria pretendida, na sua condição ãe funcionário, seria ãesti-
naãa à m anutenção dos filhos no estudo. Estarrecido, ouviu daquele a quem
cabia em m ór parte orientar os seus co-estaduanos, a seguinte expressão: “Com
isto o senhor quer é tornar seus filhos vagabundos; na cidade já estam os cheios
ãe bacharéis”. M ansam ente, como era ãe seu costum e, continua Oscar Versiani,
o nosso personagem , dem onstrando um a vez ainãa a têm pera com que fora for­
jado, retrucou ter ião ali em busca de m elhores condições de trabalho e não de
norm as para educação de seus filhos, pois essas já as p o ssu ia ... e altivo, reti­
rou-se m ais firm e nas ãisposições para a luta”. Tam bém Oscar Versiani era
hom em ãe igual têm pera.
Ele era avesso aos elogios e só parcam ente os prodigalizava, m esm o às suas
extensões m ais próxim as. Pelo crivo de sua perspicácia, ele sabia que o elogio
barato e sem sentido colocava a pessoa elogiada na defensiva e constrangido
frente à liderança espúria. No trato dos hom ens e particularm ente no exercí­
cio de suas atividades de m estre e pesquisador, preferia, a advertência m otivada
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ou m esm o a crítica espontânea e dosada, em proveito de algo positivo e cons­


trutivo. A questão fun d a m en tal não era fazer o bem , m as fazer o certo, sem pre
ditado por m otivos elevados. Não raro, m unia-se da crítica liberal, franca e
dura, pois percebia que o incenso, o louvor fátuo não agradam sequer aos deuses,
m as constituem ferm ento de que se alim enta a hipocrisia.
Como líder que era, m ostrava-se infenso aos aplausos. Não os procurava,
nem via neles sentido. Se aplausos houve em sua vida, deles não tom ou conhe­
cim ento, pois nem sem pre se encontrava onde eles eventualm ente pudessem ser
gerados. Embora grandem ente convicto de seu valor, não era hom em de ribalta;
seus instrum entos como a oratória, a eloqüência e a m aneira não eram o seu
forte; e, além do mais, possuía idiosincrasia pelo lirismo centescente, tão do
gosto de sua época. Preferia os bastidores, onde aprendeu a cultivar a arte bem
m ineira da conversa ao pé do ouvido, m odelando destarte sua obra com objeti­
vidade, determ inação e coragem, m as tim brada de inato\ habilidade política.
E xistiam aparentes contradições em certas facetas da personalidade de Oscar
Versiani. Ele poderia, conform e o ângulo, ser considerado um hom em duro.
Mas, da m edida em que esta dureza retratasse o sentido que lhe em presta a
ternura de Saint-E xupery, ele tin h a direito de sê-lo, pois duro antes fora para
consigo m esm o. E no entanto, Oscar Versiani foi um hom em bom .
Em diversas oportunidades, ele pontificou a bondade que exornava a perso­
nalidade de seu dileto m estre Alfredo Balena. Mas os padrões de bondade dessa
outra criatura, que m arcaram fundos sulcos na form ação do aluno, não podiam
ser entendidos como um ato de praticar o bem . E ntendam -m e os insensatos, se
na definição se insinua algo a sugerir subversão m oral. Balena, de fato, não
possuia qualidades para ser bom ou para exclusivam ente praticar o bem , a f eitio
do que preconizava o filósofo Jerem ias B en th a m . Segundo relato do próprio
Oscar Versiani, “eram os ditam es do coração que traçavam a rota de Alfredo
Balena”. “O bem a outrem feito ”, continua o discípulo, “m uita vez a si m esm o
gerava um m al; m as, por infaustas que fossem as conseqüências, por m ais in ­
gratos que fossem os resultados auferidos, Balena não se arrependia, pois h a ­
viam em anado de um ato de bondade”. Pelo que se depreende do pensam ento
de Versiani, há algo da doutrina K antiana na definição deste ato de bondade.
Sente-se, claram ente, que a prática da virtude traz im plícito o seu próprio prê­
mio, do m esm o modo que deve ser seu próprio castigo o paciente suportá-la.
Não conheci A lfredo Balena, m as sei que foi um hom em bom; bom, nos m ol­
des em que Oscar Versiani tam bém o foi. A verdade ê que não m e lem bro dele
praticando intensam ente o bem, como se pautasse sua vida num salutar horror
ao erro e a perceber o doloroso dever de castigar o pecado. Sob o m anto desta
bondade tão cômoda, nem Balena nem Versiani seriam reconhecidos. A bon­
dade, que entendo ten ha m praticado — m ais do que um ato generoso percebido
na atitude de K a n t — foi m oldada em preceito positivo do “am ai uns aos ou­
tros” e do am or a si m esm o se basta. Por isto, a bondade de Oscar Versiani foi
m oldada em amor, em realizações positivas, sem preocupações de natureza re­
pressiva ou proibitiva. E m esm o assim, a feitio dos que tanto se im olaram por
sentirem genuíno am or ao próxim o, não puderam Alfredo Balena e Oscar Ver­
siani evitar o opróbrio e a injustiça em determ inadas épocas de suas vidas.
No convívio dos amigos, ele exibia um tem peram ento n itid am ente diam an-
tinense: era alegre, versátil e gostava de brincadeiras. Qual u m Picasso d efi­
nido pelo poeta e am igo R afael Alberti, “sua conversa era extraordinária pela
quantidade indescritível de ingredientes que lhe acrescentava, como contos de
horror, certas m onstruosidades tipicam ente espanholas, e até m esm o anedotas
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que inventava”. Substitua-se a origem espanhola das monstruosidades, retire-


s e do horror qualquer compromisso que possa ter com Alan Poe e salpique nas
anedotas o tempero ãe Mendes Campos, e teremos um esboço da criatura ami­
gável que foi Oscar Versiani.
Se na figura do líder, parte inata, parte adquirida, não se emolduraram ou­
tras qualidades que nossa teórica e imaginária acepção exige, não o culpemos
por isso. Além do mais, o engano pode ter sido nosso de não tê-las vislumbrado.
Mas, se ãe fato, elas lhe faltaram respeitemo-lo ainda assim, pois de pecadilhos
também vive a pessoa humana. Quanto a mim, seu discípulo e amigo, repugna-
-me representar em m inha memória Oscar Versiani como espectro ãe homem,
a exercer uma liderança teratológica e incompreensível. Antes ãe mais nada, é
balsâmico para mim imaginá-lo como o homem que foi e reconhecer-lhe o m é­
rito em tudo o que conseguiu fazer; pois o fez a seu moão, impregnanão todo o
seu ser na coisa feita. A ele, em meu nome, e no ãa Congregação desta Casa,
que tanto amou, o nosso preito de imorredoura gratidão.

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