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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "JÚLIO DE MESQUITA FILHO” (UNESP)

FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS, DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA – câmpus de


Assis
CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA (LICENCIATURA)

Disciplina: História Antiga II


Professor Responsável: Andréa Lúcia Dorini de Oliveira Carvalho Rossi

ALUNO: Thiago Pereira Camargo Comelli

DESLOCAMENTOS, MERCADOS E MITOS: AS CONTINUIDADES ESPIRITUAIS


NO MEDITERRÂNEO DO SÉCULO VII a.C

RESUMO

Esse artigo possui como objetivo traçar as continuidades na espiritualidade e nas


cosmogonias mitológicas presentes no Mediterrâneo do séc.VII a.C, utilizando a noção de
Mediterrâneo globalizado de Norberto Luiz Guarinello e a óptica da história dos conceitos de
Reinhart Koselleck, bem como a importância dos deslocamentos navais e práticas
mercadológicas na troca de ideários, tecnologias e espiritualidades.

DISPLACEMENTS, MARKETS AND MYTHS: SPIRITUAL CONTINUITIES IN


THE MEDITERRANEAN OF THE 7TH CENTURY BC

ABSTRACT

This article aims to trace the continuities in spirituality and mythological cosmogonies
presents in the Mediterranean of the 7th century BC, using Norberto Luiz Guarinello's notion
of a globalized Mediterranean and the perspective of the history of the concepts by Reinhart
Koselleck, as well as the importance of naval travels and marketing practices in the exchange
of ideas, technologies and spiritualities

Dentre as diversas produções historiográficas que se propõe a analisar a antiguidade e


suas dinâmicas é possível perceber a recorrência de continuidades e diálogos entre os
diversos núcleos populacionais, bem como conceitos, tecnologias e mentalidades que
transitavam juntamente com os navios. Segundo Norberto Luiz Guarinello, é quase possível
pensar num contexto de “mediterrâneo globalizado”, ao pensar nas comunidades do
Mediterrâneo como uma grande teia de relações. Tributário da perspectiva de Peregrine
Horden e Nichollas Purcell, o autor considera que os núcleos citadinos (sejam as pólis ou
oppida) estariam conectados por redes de troca de mercadorias.

Porém, deve-se realizar um deslocamento ainda maior das margens epistemológicas


para que sejam pensadas as relações entre o vale do Nilo, Mesopotâmia e a Europa Central.
Não apenas pelo mar se deslocavam os mitos e tecnologias, dinâmica que pede um outro
cuidado: a evolução dos conceitos e suas apropriações, continuidades e ressignificações. Uma
análise dos cultos e religiosidades micênicas (ainda que com poucas fontes, fator que exige
um perscrutar ainda mais profundo por parte do historiador) e cretenses antes do impacto
dórico, guarda semelhanças significativas com os mitos e religiosidades mesopotâmicas e
egípcias, especialmente no que diz respeito à figura divina do rei, suas mitologias e
cosmogonias.

Pensando na história dos conceitos, o termo globalização é fruto epistemológico do


séc. XVI, das grandes navegações e colonizações das Américas, bem como a busca por novas
rotas às Índias Orientais e Ocidentais. De modo que são duas noções de globalização
distintas, projeções e fronteiras bem distantes entre os navegadores ibéricos e italianos do
séc.XVI-XV da dos navegadores do mediterrâneo do século VII a.C. Triplo exercício se faz
necessário, portanto: pensar a globalização dentro da origem do termo, colocar o termo num
período no qual ainda não se pensava a globalização, e ainda pensar a globalização em
tempos contemporâneos, dentro das demandas presentes que fazem o historiador optar pelo
uso de determinado conceito.

Assim, tomando o mediterrâneo do séc. VII a.C numa perspectiva de globalização,


trata-se de um exercício metodológico pautado primeiramente pelo processo de integração
global do séc. XX e XXI, tomando os estados contemporâneos e suas instituições como ponto
de partida para questionar a Antiguidade. Pensar a espiritualidade do Mediterrâneo do séc.VII
a.C é perceber as continuidades míticas e cultos num período de fronteiras que ainda eram
frágeis o bastante para se apropriarem e ressignificarem cultos vizinhos, ou até mesmo mais
distantes. De modo que percebiam pela alteridade, pelo contato entre espiritualidades, trocas
e deslocamentos, aquilo que poderia ser incorporado às suas vivências e substratos familiares.

Tomar as espiritualidades dos macedônios, lídios, cartagineses, etruscos, romanos e


atenienses permite perceber as gradações entre singularidades de culto e semelhanças, essas
últimas tributárias tanto de um intercâmbio pacífico, quanto pela guerra, pelos dominantes e
dominados e como passam a assimilar a noção de divino. Exercício frutuoso é perceber que
muito pouco era imposto em termos de culto religioso quanto imaginava-se, especialmente
quanto aos romanos e dos macedônios, dois impérios de proporções monumentais e de
extensão “global” para os padrões mentais e geográficos do período. Ao oferecerem liberdade
religiosa e de cultos, em troca de taxas e tributos, plantam a semente de uma dominação que
longe de ser impositiva e discricionária, cria uma hegemonia estabelecida sobre indivíduos
que não precisam jogar fora toda uma tradição familiar de cultos. No mais, não são estranhas
as fontes de época que ressaltam os benefícios de determinadas dominações, responsáveis por
avanços financeiros, urbanísticos e culturais, num interessante processo de assimilação do
novo e continuidades.

Pensar esses registros e vestígios da época seria pouco frutífero sem a ciência da
Arqueologia. Muito além de analisar registros de figuras importantes, de uma ínfima parcela
letrada e culta do mundo Helenístico, a partir da cerâmica, das esculturas e outros vestígios,
torna-se possível projetar novas conjectura sobre mentalidades, significados e semióticas
daquilo que realmente queria ser dito (e não dito) sobre o material produzido. As formas e
artes presentes nas diferentes cerâmicas, um material mais ou menos resistente que o outro e
suas localidades possibilita delimitar melhor alguns grupos sociais, quais teriam menos ou
mais posses em relação à outros.

Na mesma toada, pensar nos vestígios materiais é pensar também por uma lógica de
materialismo histórico, nas relações materiais que se fazem entre os diferentes povoamentos e
seus núcleos. O arqueólogo Roger G. Collinwood chama atenção para a importância de os
vestígios materiais constituírem parte essencial do raciocínio subjetivo do historiador, que
pode traçar mentalidades e relações de dominação por entre as linhas frágeis de um vaso,
moedas e ferramentas agrícolas. De modo que entre exploradores e explorados do séc. VII
a.C, as continuidades culturais e tecnológicas aumentam progressivamente conforme os
elementos “médios” passam a ganhar espaço e ameaçar a rigidez das hierarquias
genealógicas: mercadores, médios proprietários rurais, guerreiros e outros substratos sociais.

Em suma, a abordagem de pensadores marxistas como Ste. Crox, Carandini e


especialmente Moses Finley é essencial para pensar nas continuidades por uma perspectiva
materialista histórica, até mesmo no campo tão subjetivo das religiosidades e dos cultos
presentes no mediterrâneo. Ao ampliar as fronteiras epistemológicas, mentalidades e
maneiras de sentir o divino no cotidiano helenístico podem ser projetadas até mesmo para a
Baixa Idade Média (ou Antiguidade Tardia, segundo Peter Brown). Pensar na religiosidade
mediterrânea do séc.VII a.C é pensar num contexto de “globalização” de um mundo ainda
não globalizado como conhecemos, mas que dava espaço amplo para trocas e
ressignificações espirituais, mercadoria subjetiva e epistemológica da qual os navios e portos
trocavam em grandes quantidades.

REFERÊNCIAS

KOSELLECK, Reinhart. Uma história dos conceitos: problemas teóricos e práticos.


Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v.5, n°. 10, 1992

GUARINELLO, Norberto Luiz. História Antiga. Ed. Contexto, São Paulo, 174p, 2013

FUNARI, Pedro Paulo. Os historiadores e a cultura material. In: PINSKY, Carla Bassanezi
(Org.). Fontes Históricas. 2.e.d., 2ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2010.

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