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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA "JÚLIO DE MESQUITA FILHO” (UNESP)

FACULDADE DE CIÊNCIAS E LETRAS, DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA – câmpus de


Assis
CURSO DE GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA (LICENCIATURA)

Disciplina: História Antiga II


Professor Responsável: Abner Alexandre Nogueira

ALUNO: Thiago Pereira Camargo Comelli

A “GRANDE SAÚDE” NIETZSCHEANA NO ENSINO DE HISTÓRIA:


IMPORTÂNCIAS E DIFICULDADES DE UMA PRÁXIS DOCENTE
ANTI-HEGEMÔNICA.

RESUMO

Esse artigo possui como objetivo, ainda que essencialmente ensaístico, tem como
objetivo levantar ponderações a respeito de uma práxis de ensino histórico e historiográfico
salutar, norteada pelos conceitos nietzscheanos de Grande Saúde, bem como as três noções
trabalhadas na II Consideração Extemporânea (história monumental, antiquária e crítica)
como contraponto a uma hegemonia intelectual pálida e empoeirada.

ABSTRACT

This article aims, although essentially essayistic, to raise considerations regarding a


healthy historical and historiographical teaching praxis, guided by Nietzschean concepts of
Great Health, as well as the three notions worked in the II Extemporaneous Consideration
(monumental, antiquarian and critical history) as a counterpoint to a pale and dusty
intellectual hegemony.
Uma questão que se faz presente a todos que se aventuram pelas pedregosas veredas
da obra do autor alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche é o quanto os conceitos e ditirambos do
autor possuem em termos de aplicação na práxis de vida cotidiana. Num exercício de
generalização, é possível afirmar que toda a produção de Nietzsche (em gradações maiores ou
menores) se pautam numa dinâmica “superação do eu”, caracterizada por uma guerra contra
os elementos adoecidos e reativos, hegemônicos e sub-reptícios, responsáveis por diminuir e
empalidecer a potência e capacidade de criação do ser humano, que por sua vez, viria a ser a
ponte para algo sempre maior que si mesmo, a imagem sempre equidistante do übermensch,
figura que já nas primeiras obras do autor já dava seus traços, ainda que tímidos.

Ao tomarmos essa “anti moral” nietzschiana, a tendência é realizar primeiramente um


movimento introspectivo, um perscrutar interpessoal. Porém, esse movimento precisa da
alteridade, da externalização pela prática consciente para que se obtenham potenciais de
mudança qualitativos nas instituições de ensino modernas e em suas nuances de
funcionamento. Como recorte temático, tomarei o ensino de História e a prática
historiográfica na atualidade.

Como grande saúde histórica, muito mais do que fazer mera tábula rasa de
esquecimento, é revisitar o acontecido com um olhar presente vigoroso e fogoso por
mudança. Aqui, seria impossível fugir do diálogo com Marc Bloch e a Nova Histórica num
contexto geral, visto que as demandas do tempo do historiador que o farão (objetiva ou
subjetivamente) perscrutar o passado e interpretá-lo. De modo que outro exercício se faz
necessário, que seria desenvolver uma moral rigorosa, que destrua ídolos ou metafísicas, que
seja deusa de si mesma.

Que o historiador e o professor consigam a hercúlea tarefa de se embrenhar na poeira


da pesquisa, nas dores corporais do trabalho e nas horas de leitura e produção, no cansaço e
falta de perspectiva das demandas do mercado de trabalho e das instituições, e ainda
consigam se manter ativos, saudáveis mental e corporalmente e sempre vigorosos é traçar um
horizonte improvável, idílico. A hegemonia do ensino, com suas políticas e lógicas
financeiras, pertence a um grupo intelectual e político, com seus valores e moral muito bem
estabelecidos, bem como a capacidade de manter sua continuidade.

Portanto, frente às demandas cotidianas, políticas de ensino que oferecem pouca


abertura narrativas por muito tempo marginalizadas, acabam resultando numa situação de
“Grande Cansaço”, temática que Nietzsche traz em sua obra “Assim Falou Zaratustra”, de
1883. A cura para o Grande Cansaço, por sua vez, começa num movimento interno, de
reflexão e ação, um novo modo de colocar-se frente às demandas, ao trabalho e à realidade.
Primeiro a solidão do fortalecimento meditativo, o plano teórico e a preparação, que por
conseguinte levaria até uma ação que exige a presença do outro, do contraponto da alteridade.
Aqui, entraria o ensino e a educação, o dialogismo que vai para além dos muros da escola e
universidade, que abarque os âmbitos do trabalho, da família e da comunidade. Claro que
essa maneira de se portar é dura e oferece pouco potencial no que toca os ganhos capitais (o
maior motivador de uma sociedade capitalista e tecnicista), de modo que outras motivações
precisam ser criadas, novas crenças.

Neste ponto, julgo importante ao docente de História, independentemente de qual


âmbito de ensino atue, o desenvolvimento daquilo que tomo como “espiritualidade de ação”,
na falta de terminologia melhor. Espiritualidade que como primeira ação, destrua o ideal de
Deus ou metafísicas de qualquer tipo, que tire suas forças do real, do mundano, daquilo que
realmente pode ser posto em prática e criado, não apenas conjecturado. Portanto, a
espiritualidade de um professor criador, que tem sua continuidade no ato de lecionar, nas
obras e artigos que produz. Professor que por sua vez, não precisa de Deus ou Igrejas, mas
constrói os seus próprios monumentos, públicos e epistemologicamente inalienáveis.

Exercício duro, provavelmente para uma vida toda e ainda assim passível de
incompletude, mas necessário. Reside aí a Grande Saúde, nesse movimento cíclico de
angústias pós-modernas e realizações motivadoras. A cada queda e desilusão, uma
contracorrente de Boécio que nos lança novamente ao topo do potencial criador, que por sua
vez precisa de sua continuidade no outro, por gestos, palavras e inspiração. Um sacrifício,
quando defrontado por salas de aula difíceis, ideologias frágeis e alienação, tônicas de uma
hegemonia que ganha por manter o status quo, ganhando mais na dinâmica de vigiar e punir
aquilo que não pode (e não deseja, convenhamos) resolver.

Em suma, uma espiritualidade que não perca tempo com conjecturas do além ou
interpretações estanques de um passado. Utilizar o passado como exemplo, pelo potencial
demonstrativo. Depois, caminhar a linha tênue entre uma ótica anti-teleológica e tributária do
benefício da retrospectiva, que faça o duplo movimento de julgar o ocorrido pelas
mentalidades da época e depois decantá-las com a mentalidade contemporânea. Por fim, a
crítica e a criação, duas ações indissociáveis nas salas de aula da vida.
Contra a hegemonia intelectual contemporânea, teórica e fechada nos muros
acadêmicos, o profissional da história deve ser um monumento à destruição do status quo, a
contracorrente incansável, sempre atualizada, sedenta pela sabedoria e pela ação, saudável e
disciplinada. Seu Deus está morto, e sua espiritualidade é ser a ponte sob qual pés mais
lépidos e poderosos possam passar, pés que caminham em direção a um horizonte no qual o
capital e as recompensas de hoje sejam mero penduricalho e perfumaria. Intermediário, o
educador deve ser camelo, leão e depois criança. Primeiro carregando os pesos cotidianos,
demandas, aflições, receios e perspectivas. Depois, é preciso se fazer um leão do livre criar,
arquiteto de novos valores, valores saudáveis e sociais, inspirador e feroz na sua afirmação e
na sua negação, sincero até no seu ódio.

Por fim, se faz criança. Uma roda que gira sobre si, que tira de si a vontade e a
continuidade produtiva. Produção essencialmente anti-tecnicista, orgânica e verdadeira
punhalada no peito da ordem pálida e exploradora das instituições nas quais estamos
inseridos. E o mais importante, antidogmática na sua espiritualidade e suas mitologias. A
criança não precisa de Deus para criar ou para interpretar o mundo que lhe é oferecido em
frente aos olhos, mas é ensinada a fazê-lo. Portanto, é preciso desaprender aquilo que seja
contrário para a saúde do corpo social, uma tábula rasa que não seja esquecimento, mas
reconhecimento e ação energética, sabedoria saudável materializada em práxis. Finalizo esse
ensaio não com esperança ou idealismo, mas com a feliz leveza de poder ser a ponte para
outros mais fortes e mais inteligentes, caminho para um horizonte de expectativa dos algozes
da ordem vigente.

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