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ESCOLA DE MÚSICA
LICENCIATURA EM MÚSICA
Natal/RN
Novembro/2017
KAROLLEN FRANCYANE GOMES DE ARAÚJO
Natal/RN
Novembro/2017
KAROLLEN FRANCYANE GOMES DE ARAÚJO
Natal/RN
Novembro/2017
Dedico este trabalho a ONG Atitude e Cooperação como uma singela
homenagem e agradecimento por terem participado de um dos
momentos mais transformadores da minha vida por intermédio da
música. Apesar de não ter sido o tema da minha pesquisa, pois uma
pesquisa sobre a Atitude e Cooperação mereceria mais tempo para
que contemplasse todas os aspectos pesquisados de forma sublime,
tendo em vista o apreço que tenho por essa ONG – peço que
considerem-na como símbolo da minha gratidão e carinho por tudo
que fazem pelas pessoas que passam por vocês. Muito obrigada por
terem me apresentado diversas oportunidades e por me inserirem
nesta pequena parcela do universo musical.
AGRADECIMENTOS
1. INTRODUÇÃO........................................................................................................ 11
2. ABORDAGEM TEÓRICA ..................................................................................... 14
2.1 Contexto de ensino Não-formal............................................................................. 15
2.2 O Samba-reggae e seu papel na mudança histórica, social e musical no país... 18
2.3 Delimitação do tema e justificativa: Educação Musical em contextos
socioculturais desassistidos.......................................................................................... 21
3. INSPIRAÇÃO METODOLÓGICA....................................................................... 25
3.1 Minha experiência de vida em um projeto social de música.............................. 25
3.2 O Projeto Social Leão de Judá.............................................................................. 27
3.3 Objetivos.................................................................................................................. 28
3.3.1 Geral...................................................................................................................... 28
3.3.2 Específicos............................................................................................................. 28
3.4 Estudo de caso com método observação direta.....................................................28
3.5 Entrevista Semiestruturada................................................................................... 30
4. ABRANGENDO O CAMPO: PERCEPÇÃO DAS PRÁTICAS......................... 32
4.1 Observação 01: Ensaio geral para a apresentação do desfile de 7 de setembro
de 2017........................................................................................................................... 32
4.2 Observação 02: Ensaio do dia 29 de setembro de 2017....................................... 36
4.3 Observação 03: Masterclass de Samba no dia 03 de outubro de 2017............... 41
4.4 Observação 04: Ensaio do dia 06 de outubro de 2017......................................... 53
4.5 Observação 05: Aula/ensaio com o naipe dos surdos no dia 10 de outubro de
2017................................................................................................................................ 55
4.6 Observação 06: Aula/ensaio com os naipes dos pratos, repiques e caixas no dia
11 de outubro de 2017.................................................................................................. 59
5. ENTREVISTA E ANÁLISES GERAIS................................................................. 61
5.1 Primeiros contatos com a educação musical........................................................ 61
5.2 Primeiros passos: estudar para intervir no contexto social local....................... 63
5.3 As dificuldades enfrentadas durante o processo de consolidação do projeto
social de música Leão de Judá..................................................................................... 65
5.4 Educação inclusiva e libertadora.......................................................................... 67
5.5 Cativando alunos com o samba-reggae................................................................ 68
5.6 A “família Leão de Judá”: a relação afetiva entre professor e
alunos............................................................................................................................. 70
5.7 Concepção do que é ser professor, do que é ensinar e do que é uma aula de
música............................................................................................................................ 71
6. COMENTÁRIO CONCLUSIVOS......................................................................... 74
REFERÊNCIAS....................................................................................................... 77
APÊNDICE............................................................................................................... 80
6.1 Lista de Figuras ..................................................................................................... 80
Figura 01........................................................................................................................ 80
Figura 02........................................................................................................................ 81
Figura 03........................................................................................................................ 82
Figura 04........................................................................................................................ 83
Figura 05........................................................................................................................ 84
Figura 06........................................................................................................................ 85
Figura 07........................................................................................................................ 86
Questionário................................................................................................................... 87
ANEXOS................................................................................................................... 88
Anexo A......................................................................................................................... 88
Anexo B......................................................................................................................... 88
Anexo C......................................................................................................................... 89
1. INTRODUÇÃO
O bairro da zona oeste do Natal, Felipe Camarão tem cerca de 663 mil
habitantes2 e também possui um dos índices mais altos de desestruturação social e
econômica da capital do Estado. Por consequência destes fatores a população, em
especial jovens moradores do local pesquisado, se encontram em situações fragilizadas
no aspecto social refletindo por conseguinte no aspecto humano desses jovens.
Com isso surgiu-se a necessidade – muitas vezes emergencial – de criação e
expansão de diferentes contextos sociais dentro da práxis político-pedagógico-musical.
Neste trabalho especificamente abordarei o contexto de ensino não-formal que são
comumente praticados, em sua maioria, em projetos sociais de música, Kleber (2014, p.
27) explica que a disseminação deste tipo de configuração de ensino começou a surgir
em meados da década de 90 no Brasil “[...] ligados às raízes sociais e culturais das
práticas assistenciais e educativas dos movimentos sociais organizados [...]” muitos
desses projetos estão diretamente ou indiretamente ligados a instituições privadas, ou
recebem apoio assistencial de escolas (oferecendo espaços para a realização do trabalho
social), ou partem de alguma iniciativa dos próprios cidadãos que vivem nos bairros
1
Segundo Samuel Araújo (2006) inspirado por Pierre Clastres (2004) argumenta que “[...] a violência
social contra o Outro é uma permanente possibilidade, como reafirmação do desejo de independência e
manutenção de um modo de vida autárquico e relativamente autosuficiente.”. Ou seja, sociedades-
contra-o-estado são indivíduos que percebem a realidade de mundo em que vivem ou observam e tem a
iniciativa de se contrapor ás falhas do governo no quesito suporte à sociedade.
2
Censo demográfico de 2009.
11
afetados ou próximos a estes e que muitas vezes percebem a injustiça social dos
ambientes por onde passam e vivem, como é de fato o caso do professor Gabriel que
mora no bairro das Rocas, um dos bairros mais desassistidos da capital potiguar.
Com isso teve o arrojo de dar vida ao projeto social de música Leão de Judá com
a intenção de mudar a perspectiva de vida e oferecer meios alternativos de escolha para
os indivíduos que se encaixam neste contexto social. O Leão de Judá posteriormente
viria a ampliar-se para outros bairros próximos que compartilhavam de experiências
semelhantes na capital do estado do RN, esta atitude faz-se lembrar do que Freire tanto
falava acerca da educação libertadora, parafraseado por Linhares (2008).
É deveras um fato que a população (em sua maioria) enxergam nesses bairros
seres estereotipados, isto é, pensam que qualquer indivíduo proveniente desses lugares
socialmente fragilizado são indivíduos “perdidos” ou que necessariamente cairão no
crime, no tráfico, no uso desmedido e inconsequente de drogas, dentre outros problemas
que frequentemente abarcam estes lugares abandonados pelo poder público e acabam
passando uma imagem injustamente negativa para o resto da população. Tomando como
relação comparativa um trecho da pesquisa de Araújo (2006) vê-se que a situação da
qual citei anteriormente é frequente no comportamento e forma de pensar da maioria
dos brasileiros, por exemplo:
No entanto, vale frisar que este tipo de pensamento não deve se sobrepor às
diversas realidades encontradas nestes espaços, ou seja, nem todos eles necessariamente
estarão à mercê desses infortúnios. Na maioria das vezes a falta de opções e
oportunidades os levam a escolher o caminho “mais popular e com retorno mais
12
rápido”, bem como o círculo social em que vivem influenciam nas tomadas de decisões
desses indivíduos, especialmente os jovens. Concordando com o que Araújo (2006)
exemplifica, um dos principais objetivos desses projetos sociais
[...] têm como objetivo principal criar para os jovens alternativas aos
caminhos da marginalidade. Normalmente, esses projetos atuam nas áreas
favelizadas da cidade, já que esses locais, supostamente excluídos da
sociedade formal são vistos como o grande foco de ações criminosas.
(ARAÚJO, 2006. P. 16).
Sendo assim, esta pesquisa tem como base analisar - por meio de observações e
entrevista semiestruturada com o idealizador do projeto social de música Leão de Judá -
a importância de inserir novos meios pedagógico-sociais em ambientes desestruturados
pelos quais poderão ofertar novas oportunidades de escolha no contexto social desses
indivíduos, bem como os processos pedagógicos-musicais que tiveram sua função
transformativa de grande valia na vida educativa e social dessas pessoas, mudando suas
respectivas formas de enxergar o mundo, é o que afirma Freire (1996):
Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à
escola, o dever de não só respeitar os saberes com que os educandos,
sobretudo os das classes populares, chegam a ela – saberes socialmente
construídos na prática comunitária -, mas também, como há mais de trinta
anos venho sugerindo, discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses
saberes em relação com o ensino dos conteúdos. [...] Por que não discutir
com os alunos a realidade concreta a que se deva associar a disciplina cujo
conteúdo se ensina, a realidade agressiva em que a violência é a constante e a
convivência das pessoas é muito maior com a morte do que com a vida? Por
que não estabelecer uma necessária “intimidade” entre os saberes curriculares
fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como
indivíduos? Por que não discutir as implicações políticas e ideológicas de um
tal descaso dos dominantes pelas áreas pobres da cidade? A ética de classe
embutida neste descaso? Porque, dirá um educador reacionariamente
pragmático, a escola não tem nada que ver com isso. A escola não é partido.
Ela tem que ensinar os conteúdos, transferi-los aos alunos. Aprendidos, estes
operam por si mesmos. (FREIRE, 1996. P. 33-34)
13
2. ABORDAGEM TEÓRICA
É por essa razão central que o objetivo dos projetos sociais revelam em sua
maioria uma natureza educativa política, inclusiva e libertadora, como afirmam Freire
(1982); Demo (2011); Kater (1997;2004); Souza (2004), portanto, a emergência desses
campos de ações estão essencialmente ligados ao desejo de transgressão social e
educacional por meio de projetos socioeducativos baseados nesse caso com a
participação efetiva da educação musical. A consciência desses fatores levam alguns
indivíduos a tomarem algumas iniciativas para intervenção no fazer histórico da
sociedade em que vivem e/ou observam.
14
de trabalho proposto – para juntarem-se ao objetivo primordial da educação: a igualdade
social.
3
Para a sociologia o termo marginal refere-se a pessoa ou grupo social separado ou até mesmo excluído
da sociedade por influência do abandono político, ou seja, para o governo, o marginalizado não é
tratado como objetivo das propostas governamentais brasileiras.
15
“Independente da terminologia adotada é possível encontrar na literatura acadêmica,
diferentes formas de abordar o tema (educação não-formal, apoio socioeducativo,
contraturno escolar, contraturno social, atividade no contraturno, atividades
complementares, entre outras.)” - ou como agente transformador na construção do ser
humano e no pleno direito a educação.
Dessa forma, criou-se o que chamamos de educação não-formal que como expõe
Vásquez (1998 p. 02) “Educação não-formal [...] é toda atividade organizada,
sistemática, educativa, realizada fora da estrutura do sistema oficial, para facilitar
determinadas classes de aprendizagem e subgrupos particulares da população, tanto de
adultos como crianças.”4. Seguindo esta linha de pensamento, a escola não-formal
desempenha um papel extremamente importante para a educação e para a sociedade,
principalmente em espaços sociais desestruturados e/ou vulneráveis.
Nesses aspectos, segundo Tozzeto (2011, p. 04) “A educação não formal é
aquela que acontece fora das instituições educativas formais, porém apresenta certo grau
de intencionalidade e sistematização, surgindo para suprir essa lacuna.”. Para
compreender melhor o que significa o conceito de educação não-formal trago o próprio
exemplo do projeto social de música Leão de Judá na qual foi criado a partir da
motivação e interesse de um jovem músico (idealizador e professor do P.S.M.L.J5) e
morador do bairro das Rocas em Natal-RN que ansiava pela mudança no panorama
social em que habitava, tomando a iniciativa de no próprio quintal da casa em que
residia construir algumas salas de aula com o intuito de resgatar indivíduos que já não
enxergavam opções que lhes contemplassem, e em frequentes casos também não lhes
eram apresentadas oportunidades que lhes libertasse das amarras e obstáculos sociais
tão presentes em muitos bairros de Natal-RN como as Rocas e Felipe Camarão. É o que
exemplifica Gohn, segunda a autora
4
Original em espanhol: “Educación no formal [...] es toda actividad organizada, sistemática, educativa,
realizada fuera del marco del sistema oficial, para facilitar determinadas clases de aprendizaje a
subgrupos particulares de la población, tanto adultos como niños.”.
5
Em alguns momentos durante o transcorrer do texto, utilizarei essa sigla para me referir ao Projeto
Social de Música Leão de Judá.
16
[...] há metodologias [...] que precisam ser desenvolvidas, codificadas, ainda
que com alto grau de provisoriedade, pois o dinamismo, a mudança, o
movimento da realidade, segundo o desenrolar dos acontecimentos, são as
marcas que singularizam a educação não formal. (GOHN, 2010. P. 47).
17
importando o contexto de ensino estabelecido e/ou exercido nesses ambientes
socioculturais.
6
Antônio Luís Alves de Souza, fundador e um dos diretores do grupo Olodum e da Associação Educativa
e Cultural Didá, ambos com sede no Pelourinho, em Salvador.
18
comerciais ou através de grupos musicais de alguns países do Caribe, entre outros
Jamaica e Cuba, que visitam Salvador de vez em quando.”
De acordo com os mesmos autores, o samba-reggae está mais centrado na
música africana do que na música caribenha e surgiu a partir da intenção de protesto e
do desejo de assumirem-se politicamente e musicalmente, disseminando e empoderando
a cultura afro-latina, começando pelos moradores do estado da Bahia que se viram
motivados por outros protestos de povos negros que vinham acontecendo em outros
países, é o que aponta Agerkop:
No entanto, o mesmo autor afirma que apesar das distâncias geográficas e das
diferenças linguísticas, além do aspecto sócio-musical que separam o Caribe da Bahia,
seus habitantes viram na cultura caribenha um estímulo para se auto afirmarem
socialmente e politicamente, Agerkop (2009, p. 393) complementa que “Apesar disto,
existem grupos afrodescendentes na cidade de Salvador que sim utilizam elementos da
cultura rasta7, as suas vestimentas, como também os discursos de Bob Marley, como
marcadores de identidade”, portanto:
7
A ideologia e o termo rastafári é baseada no movimento religioso e político iniciado
na Jamaica nos anos 30.
19
assentou-se em bases mais sólidas, fincadas em células rítmicas coincidentes,
do que até então se vislumbrava. (GUERREIRO, 2010. P. 58).
Como existem poucos estudos acerca do tema, é comum constatarmos que não
existe até o presente momento, um consenso que aponte a verdadeira origem do samba-
reggae, devido justamente às várias influências que o gênero recebeu durante suas
décadas de existência. No entanto, vemos comumente que a maioria dos estudos
apontam que o maestro Neguinho do Samba foi um dos primeiros percursores – muitas
vezes até apontado como o criador - do gênero, segundo Guerreiro (2010, p. 58) “Um
dos primeiros mestres da bateria do Ilê Aiyê, por exemplo, Neguinho do Samba, deixa o
bloco matriz em 1983 para atuar como mestre da equipe percussiva do Olodum, onde
conquistou o status de criador do samba-reggae.”. Outros grupos também afirmaram
como sendo os criadores do gênero, é o que especifica a autora:
20
de bateria utilizando timbales ao invés do uso do apito. Segundo Guerreiro (2010)
existem pelo menos 3 pistas principais que apontam a origem do samba-reggae, são
elas:
Com isso vemos que a criação desse gênero não somente teve sua importância
no cenário musical brasileiro mas também teve sua função protagonista no meio
político, social e cultural em diversas áreas do país exercendo práticas ativistas de
extrema importância nas camadas sociais mais desamparadas pelo sistema político
brasileiro.
Seria dessa forma que a população brasileira deveria usufruir dos princípios
democráticos, assegurando-se de uma educação de qualidade, bem como saúde,
segurança e assistência social, porém vivemos em uma realidade oposta a constituição
quando diz respeito a estes aspectos.
Por tais justificativas os projetos sociais vêm denotando seu caráter
complementador na construção do saber da população, sobretudo os que residem em
bairros que comumente ficam à margem da sociedade, ou seja, lugares ignorados e
desamparados pelos governantes brasileiros, concordando com Santos (2014) a
realidade
22
As artes, juntamente com o esporte, se apresentam como base de
argumentação nas propostas socioeducativas voltadas para o exercício da
cidadania, dirigidas principalmente à camada mais pobre da textura social. A
música vem se constituindo como um dos fortes eixos dessas propostas, o
que tem demandado estudos de aprofundamento sobre o processo
pedagógico-musical nesses contextos. (KLEBER, 2014. P. 27).
8
Segundo Paulo Freire (1996, p. 35) explica que a curiosidade epistemológica (curiosidade científica)
evolui da curiosidade espontânea (curiosidade infantil), que é “a curiosidade como inquietação
indagadora, como inclinação ao desvelamento de algo, como pergunta verbalizada ou não, como
procura de esclarecimento, como sinal de atenção que sugere alerta faz parte integrante do fenômeno
vital.”.
23
No Projeto de Música Leão de Judá não seria diferente visto que se encaixa no
Terceiro Setor, por isso ao analisar mais intrinsecamente o processo sócio-pedagógico-
musical realizado pelo professor Gabriel com auxílio também do monitor Bruno (ou
Bruninho como é conhecido), pude captar as variadas interpretações que me eram
oferecidas e que eram oferecidas aos indivíduos do bairro, que acabaram sendo atraídos
para compor o projeto social de música e com ela enxergando novas perspectivas de
visão de mundo, de sociedade e de música.
24
3. INSPIRAÇÃO METODOLÓGICA
3.1 Minha experiência de vida em um projeto social de música
9
Kleber (2014, p. 32) fala que “O conceito de ONG foi utilizado pela primeira vez em 1950, na
Organização das Nações Unidas, para referir-se a organizações internacionais de caráter permanente,
sem fins lucrativos, constituídas, em diferentes países, por características e finalidades específicas.”.
10
Fonte: Biografia encontrada na página da ONG no facebook. Disponível em: <
https://www.facebook.com/pg/atitude.cooperacao/about/?ref=page_internal > Acesso em: 3 de
novembro de 2017.
11
Rede privada de assistência médica do Rio Grande do Norte.
25
diversos artistas nacionais e internacionais, bem como doações de instrumentos
musicais e assistência técnica no reparo e manutenção de instrumentos musicais.
No decorrer de meu aprendizado musical, próximo de completar 1 ano desde o
início dos meus estudos musicais na ONG resolvi tentar ir além, então decidi que queria
investir no ramo da educação musical então fiz o teste de habilidade específica (THE)
da Escola de Música da UFRN e fui aprovada, dando início a minha primeira graduação
com meus recentes 21 anos de idade, sendo a primeira aluna da ONG a ingressar na
Licenciatura em Música da Escola de Música da UFRN, fato este que se tornou motivo
de orgulho para os professores, amigos e familiares, inspirando outros colegas do
Atitude e Cooperação.
Ter tido a oportunidade de participar desta experiência na ONG Atitude e
Cooperação me proporcionou diversas conquistas significativas, tanto no âmbito social
de construção do meu estar sendo musical quanto no âmbito acadêmico e profissional
recebendo grande incentivo para o ingresso na Licenciatura em Música do meu então
professor de violoncelo - e também coordenador da ONG - Cristian Brandão12.
12
Cristian Brandão foi aluno de bacharelado em violoncelo na Escola de Música da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, bem como obtém do título de Mestre na mesma instituição de ensino, hoje é
professor efetivo da Universidade Federal do Pará.
26
que estes influenciadores tiveram ao proporcionarem-me descortinar novos caminhos no
trabalho de conscientização ativa nas diversas transformações e nas práticas sócio-
pedagógico-musicais aprendidas e vivenciadas na teoria e na prática ao longo desses
anos.
O projeto social de música Leão de Judá foi fundado em meados de 2012 após o
professor Gabriel Martins ter se desvinculado de seus empregos dando aula de música
nas escolas públicas. No início o projeto tinha apenas 30 instrumentos musicais e a
demanda de alunos ainda era pequena, com o passar dos anos – além dos obstáculos
enfrentados13 - e da ampliação do projeto, hoje o Leão de Judá possui cerca de 80
alunos matriculados e 20 na lista de espera, (pois não tem instrumento musical para
todos) possui cerca de 60 instrumentos, provenientes de doações; do próprio
investimento financeiro de Gabriel e mais recentemente de um acordo firmado entre o
Leão de Judá e a Escola de Samba Águia de Ouro, também localizada no bairro das
Rocas, na qual a mesma oferece trabalhos de lutheria para os instrumentos do Leão de
Judá. O projeto possui até o presente ano de 2017 cerca de 09 surdos treme terra, 09
surdos médios, 15 caixas, 08 repiques, 02 bumbos, bem como, 08 trompetes, 01 sax
tenor, 01 sax alto e 02 trombones de vara.
Após vender sua casa na zona norte de Natal, usou boa parcela do dinheiro para
construir um espaço com salas de aula e estúdio no quintal da casa da sua mãe. A
construção deu início em meados de 2014, mas não pôde ser concluída por motivos de
saúde familiar, pois sua mãe teve câncer de mama e ele utilizou o restante do dinheiro
para pagar o tratamento e a cirurgia dela.
A estrutura física do espaço se configura em um primeiro andar. No térreo ficam
as 2 salas de aula e 1 sala de manutenção, na parte superior do andar se localiza o
estúdio de gravação. O professor Gabriel disse que quer construir tudo com um bom
material, pois preza pela qualidade e conforto para seus alunos se sentirem em casa.
Hoje, o espaço de abrangência do projeto contempla as zonas leste, oeste e norte
com intenção de ampliar-se também até a zona sul nos próximos anos. Na zona leste o
projeto está funcionando na Escola Estadual Isabel Gondim, no bairro de Santos Reis.
13
Mais sobre isso nas análises gerais.
27
Na zona oeste funcionava na Escola Municipal Professor Veríssimo de Melo, mas hoje
funciona na Casa de Cultura do Mestre Manoel Marinheiro, localizada próximo do local
anterior. E na zona norte o projeto irá funcionar próximo ao Ginásio Nélio Dias, ainda
não tem local definido pois o professor não teve tempo ainda de procurar um local para
alugar ou alguma parceria para fazer com alguma escola.
3.3 Objetivos
3.3.1 Geral
Analisar alguns dos pontos norteadores e motivacionais relacionados aos
paradigmas sociais presentes em torno das ações educativo-musicais no projeto
social de música Leão de Judá e suas ações a posteriori transformadoras na
construção do ser e vivência social do alunado residente no bairro de Felipe
Camarão.
3.3.2 Específicos
Analisar as razões pelas quais o projeto social de música Leão de Judá tem
atraído tantos jovens.
14
Ver livro de Paulo Freire: Pedagogia da Autonomia.
28
afirmam Marconi; Lakatos (2003, p. 190) sobre a observação direta: “é uma técnica de
coleta de dados para conseguir informações e utiliza os sentidos na obtenção de
determinados aspectos da realidade. Não consiste apenas em ver e ouvir, mas também
em examinar fatos ou fenômenos que se desejam estudar.” Ainda falando sobre a
observação direta e o papel do pesquisador em diferentes contextos sociais e suas
respectivas intenções, Marconi; Lakatos concluem que:
29
Bem como,
15
Este questionário encontra-se em apêndice.
30
interações comunicativas tendenciosas que pudessem fugir da imparcialidade pedida em
qualquer entrevista, seja ela de caráter formal ou informal.
As perguntas-base foram elaboradas com o intuito de compreender e analisar
como o professor e idealizador do projeto social de música Leão de Judá começou as
atividades quais foram os obstáculos enfrentados no decorrer deste processo e sua
respectiva opinião/relação sócio-pedagógico-musical com e no mundo do alunado.
31
4. ABRANGENDO O CAMPO: PERCEPÇÃO DAS PRÁTICAS
16
Música da Banda Beijo.
17
Light Emitting Diode, que significa: diodo emissor de luz.
32
Ao procurar um lugar para sentar percebi também que haviam alguns vizinhos
que saíram de suas casas para assistir os jovens tocando, motivados talvez pelas
melodias familiares que lhes agradavam. Sentei na calçada de uma das casas para poder
observar e pegar o celular para começar a gravar o ensaio, como não dava pra gravar um
vídeo resolvi gravar alguns áudios. Estavam finalizando a canção Minha Pequena Eva e
depois executaram uma virada percussiva polirritmica bem ao estilo do grupo
Olodum18, a referência polirrítmica africana logo em seguida se transformou em alguns
exercícios (rudimentos) que, segundo o professor Gabriel ajudariam na técnica ao tocar
e na resistência física, tendo em vista que os alunos do projeto fazem muitas
apresentações e desfiles. Esses exercícios são fundamentais no processo da
aprendizagem e estudo de cada instrumento.
Gabriel ensaia os naipes separadamente - um detalhe é que Gabriel geralmente
marca os ensaios da percussão e dos metais e sopros em dias separados e depois marca
um ensaio geral -, começando pelos instrumentos de percussão, como, caixas, surdos,
pratos e repiques e depois pelos metais e sopros, quando ele percebe que os alunos já
estão seguros na execução começa então a juntar todos os naipes, com isso, o
aperfeiçoamento da execução, interpretação e performance musical do Leão de Judá se
estabiliza e fica mais fluente ou como o próprio Gabriel fala: (...) aí eu ensaio o naipe
todinho e deixo bem alinhadinho. (Informação verbal)19.
Vale salientar que em apenas alguns poucos momentos Gabriel teve que intervir
no ensaio, fez algumas pequenas observações direcionadas à alguns naipes ou a alguém
em específico com a intenção de alertá-los para alguma parte importante da música ou
para trazer a atenção de algum aluno ou aluna que momentaneamente se distraiu em
algum momento do ensaio.
Ele costuma usar gestos manuais como orientação ao grupo acerca do
andamento, mudança de música, solo de algum naipe, interrupção ou final de uma
música ou seção, dentre outras coisas, ou seja, na execução de cada comando nota-se
alguns mais evidentes: gesto de atenção, gesto de indicação e gesto de execução, além
de levar em consideração a firmeza e a postura na execução desses movimentos, pois
interferem na execução e na compreensão do grupo. Em certos momentos também
18
É um bloco-afro percussivo da cidade de Salvador, na Bahia.
19
Proveniente da resposta captada de conversas por rede social.
33
utiliza um apito que serve para alertar ao grupo quando houver uma mudança na
execução.
O ensaio terminou em torno das 19hs, logo me prontifiquei a falar com Gabriel e
comentar sobre o ensaio, bem como fazer algumas perguntas, mas ele apressadamente
entrou dentro de uma casa vizinha ao local onde o alunado estava ensaiando, me
perguntei então se aquele estabelecimento seria a casa de algum amigo, parente, aluno
ou seria a residência de um vizinho prestativo que teria oferecido o local com intenção
solidária ao Leão de Judá por estarem ensaiando em local aberto.
Novamente me sentei à espera dele e enquanto aguardava tornei a observar o
comportamento dos jovens alunos, vi que alguns entraram na casa citada levando e
ajudando outros companheiros a levarem os instrumentos de percussão e os guardaram
lá dentro, já outros alunos permaneceram do lado de fora com seus respectivos
instrumentos e/ou experimentando tocar outros instrumentos que os colegas tocavam.
Nota-se com isso uma profunda curiosidade de grande parte dos alunos referente
a construção do saber musical, que de forma direta ou indireta recebe influências dentro
do próprio meio musical do Leão de Judá, como é o caso de observar os companheiros
tocarem, por este motivo quiçá possam migrar para algum outro instrumento que
também lhe cative, “O exercício da curiosidade convoca a imaginação, a intuição, as
emoções, a capacidade de conjecturar, de comparar, na busca da perfilização do objeto
ou do achado de sua razão de ser.” (FREIRE, 2002, p. 98).
Logo percebi que formou-se um pequeno círculo ao redor dos alunos/músicos
que eram responsáveis por tocarem os instrumentos melódicos (metais e sopros), estava
nítido que esses alunos cultivavam uma curiosidade e vontade de conhecer e
experimentar tocar esses instrumentos, algo lhes chamavam a atenção, um ou outro
pegava um trompete, sax ou trompete pocket20 e arriscava umas melodias do próprio
repertório sem se importar com afinação ou com posição de dedos ou embocadura,
arriscavam porque a curiosidade em conhecer e explorar era maior do que a
preocupação com noções técnicas relativas a cada instrumento. Essa cena me fez
lembrar sobre a importância da curiosidade na educação como um todo e quando se
trata de educação musical essa curiosidade espontânea se torna curiosidade
epistemológica pois estudar um instrumento musical requer constante ligação entre o
saber teórico-prático e suas vivências musicais, é o que afirma Freire - sobre os
20
Trompete de tamanho reduzido.
34
resultados da curiosidade no indivíduo como ser educando -, (2002, p. 97) “O exercício
da curiosidade a faz mais criticamente curiosa, mais metodicamente “perseguidora” do
seu objeto. Quanto mais a curiosidade espontânea se intensifica, mas, sobretudo, se
“rigoriza”, tanto mais epistemológica ela vai se tornando.”.
Depois de cerca de 15 minutos Gabriel saiu da residência e rapidamente fui ao
seu encontro, cumprimentei-o e ele logo me perguntou de maneira simpática o que eu
tinha achado do ensaio, respondi-lhe que apesar de ter chegado atrasada ainda tinha
conseguido aproveitar bem e apreciar a observação, então retribuiu-me com um sorriso
de satisfação e resolvi lhe perguntar o motivo da mudança do local do ensaio, então ele
pediu-me que esperasse um pouco pois era uma história complicada e não queria
comentar sobre isso na frente dos alunos.
Enquanto conversávamos sobre o ensaio ele perguntou se eu queria uma carona
até um ponto de ônibus que pudesse facilitar minha volta para casa, aceitei o convite e
entramos numa Kombi que pertencia a um amigo de longa data de Gabriel - que
começou o projeto juntamente com ele mas hoje em dia não atua no projeto
diretamente, mas sua presença é de grande ajuda e suporte em diversos quesitos em
relação ao Leão de Judá - e o restante dos alunos que moram no bairro das Rocas. O
carro estava lotado e havia muitas conversas paralelas, no banco da frente estavam
Gabriel o amigo dele chamado Mayke e eu.
Foi a partir desse momento que ele deu início a conversa prometida. Segundo
ele, disse que tinha ocorrido uma situação inconveniente por causa de um dos docentes
da escola em questão, na qual o professor deturpava o trabalho social que estava sendo
desenvolvido com aqueles jovens, inclusive, utilizando de atitudes tolas ou de
chantagens/ameaças mecanicamente tecnicistas de somar ou subtrair pontos dos alunos
de acordo com seus comportamentos em sala de aula. A partir daí surgiu os primeiros
posicionamentos contrários perante aquelas situações por parte de Gabriel, não havendo
acordo da parte do professor e ausência de posicionamento decisivo dos gestores da
escola em ambas as partes, Gabriel resolveu sair do local e ensaiar o grupo no lugar
apresentado parágrafos atrás.
Por tal atitude, Gabriel chegou a questionar-se se o trabalho que ele desenvolvia
na escola com os jovens teria sido a principal justificativa para as ações da pessoa em
questão. Cenas como essa são comuns principalmente na área de Música, Artes e
Dança, onde trabalha-se com o desenvolvimento artístico/cultural intrapessoal e
35
interpessoal. Por tal, é comum presenciarmos ou ouvirmos falar de professores e/ou
artistas que são motivados a tomarem ações que acabam prejudicando o caminhar
construtivo da proposta educativa libertadora e progressista em geral. Essa visão que
certos profissionais carregam é deturpadora do conhecimento, ou seja, cega, inviabiliza
ou até mesmo priva o progresso da educação musical-artística da escola ou até mesmo
da comunidade.
36
Escolhi bem o local onde ficaria observando o ensaio, escolhi o lugar, me
acomodei no batente da calçada de uma casa do lado oposto da rua o que proporcionou
uma visão mais ampla do grupo, porém, naquele momento, minha intenção era de que o
idealizador do projeto não me visse logo que chegasse, pois queria observar a interação
professor-aluno-professor e de fato presenciei uma interação bem informal com os
alunos, ouvi um: _ E aí galera! E os alunos retribuíram com animação e respeito para
com o professor, houve sorrisos, alguns abraços, toques de mãos ou até brincadeiras
pertencentes ao mundo social do adolescente.
De fato, é algo realmente interessante de se analisar e isto muitas vezes instiga a
curiosidade por parte de quem não está acostumado com esse tipo de interação entre o
professor em seu papel julgado pelo senso comum (e pelo histórico da relação entre
educador e educando nos sistema tradicional de ensino) como sendo um ser superior ao
alunado, possuidor de um poder simbólico de portador do conhecimento e
autoritarismo, e o alunado em seu papel constituído da mesma forma pela sociedade
como sendo seres submissos e sem autonomia no processo de construção educacional
plural.
Esse acontecimento pode ser facilmente expressado pela fala de Kleber (2011, p.
46) que explica sobre este tipo de interação social de caráter amistoso entre professor e
aluno que alguns educadores promovem: “Trata-se de relações que são inerentes às
atividades humanas e que podem ser consideradas como redes espontâneas, que derivam
da sociabilidade humana construída na dinâmica do cotidiano das pessoas.”. Assim
como também especifica Kater, sobre o comportamento e postura que o educador toma
para si influenciando no aspecto formador do educando, citando:
38
O professor Gabriel e seu amigo Bruno ensinavam de forma bem prática, faziam
eles mesmos uma demonstração tocando por certo tempo (Bruno na caixa ou repique
com explicações técnicas e Gabriel na pulsação, ás vezes com algum instrumento ou
com onomatopeias e vice-versa) e depois pedia para que os alunos começassem a
praticar sempre alertando que mantessem a atenção na pulsação e nos comandos.
Enquanto os caixistas praticavam, alguns alunos pertencentes a outros naipes
praticavam o mesmo exercício em qualquer lugar, seja com baquetas batendo no chão,
pneus ou com o próprio corpo dançante se locomovendo ritmadamente no espaço
enquanto acompanhava a célula rítmica estudada no momento.
21
Oração de origem católica que o professor faz antes do início de todo ensaio e apresentação do grupo.
22
Do grupo Olodum.
23
Do cantor Bob Marley.
39
sua extensão, já devo estar envolvido nela, e nela, a construção, estar
envolvendo os alunos. (FREIRE, 2002, p. 53).
40
Dava até estiga kkk (...)24. Este pequeno depoimento feito por outro aluno de outro
projeto social que trabalha com samba-reggae nos mostra que o projeto social na qual
estes alunos estão inseridos revela um compartilhamento de saberes por meio das
apresentações que fazem, evidenciando a importância da interação social com outros
indivíduos pertencentes a um mundo musical25 semelhante ao que participam no
processo de construção do saber musical e suas respectivas práticas, bem como um
objeto ativo da motivação desses indivíduos.
Assim que terminaram de tocar Olodum o professor parou para dar algumas
informações acerca do próximo ensaio e sobre o Masterclass de samba que iria ocorrer
no próximo encontro do grupo, os alunos responderam com entusiasmo, então para
terminar o ensaio ele pediu que tocassem um samba-reggae com alguns elementos
rítmicos do samba que ele tinha ensinado antes do ensaio, o fizeram com algumas
viradas fazendo referência ao samba e assim o ensaio acabou aproximadamente às
19:00hs.
24
Proveniente de comentários extraídos de redes sociais.
25
Mundos musicais na perspectiva de Arroyo (2002) [...] significa um espaço social marcado por
singularidades estilísticas, de valores, de práticas compartilhadas, mas que interagem com outros
mundos musicais, promovendo o recriar de suas próprias práticas, bem como o ordenamento de
diferenças sociais. (ARROYO, 2002. P. 101).
41
[...] a sala de aula é o principal espaço escolar que deve ser estruturado para o
desenvolvimento das atividades escolares, pois é nela onde acontecem as
principais relações do ensinar e do aprender. Se não há uma boa sala de aula,
que ofereça as mínimas condições de comodidade, tanto para o aluno quanto
para o professor, esse processo será defasado. (MONTEIRO; SILVA, 2015.
P. 10).
26
Ver em anexos.
42
pertencentes ao seu círculo social. Segundo Shepherd; Wicke (1997, p. 200, apud
Kleber, 2011, p. 39) “A música é social não só porque está sendo produzida através do
mundo material e social, mas também por sua capacidade de simbolizar o mundo
externo material e social tal qual está estruturado.”.
Na maior parte do tempo um dos alunos tocava um trompete enquanto os demais
acompanhavam com a linha rítmica principal do samba-reggae (caracterizada pelo naipe
do repique), batucando com as mãos ou canetas em suas respectivas carteiras escolares.
Em outros momentos este mesmo aluno pegava um pandeiro e começava a tocar, um
outro aluno, curioso com o movimento das mãos e a sonoridade do instrumento, se
aproximou e pediu para que ele lhe ensinasse algum ritmo no pandeiro, o outro mostrou
como ele deveria usar as mãos e movimentar o pandeiro, feito isto, o outro aluno ficou
tentando por cerca de 5 minutos e devolveu o pandeiro para ele e saiu para conversar
com outros colegas, mas logo em seguida chegou outro aluno pedindo para que ele o
ensinasse a tocar igual aos pandeiristas que tocam fazendo “truques com o cotovelo”,
novamente ele ensinou o processo mas disse que era “melhor aprender o básico do que
tentar aprender o difícil e fazer feio”(informação verbal)27, com essa frase o outro aluno
fez uma expressão de consentimento sem dizer nenhuma palavra, em seguida pegou o
pandeiro e começou a tentar fazer o que o colega tinha acabado de ensinar. Essa atitude
revela o quão importante é saber escutar, pois aprender também é escutar, segundo
Freire (2002, P. 135), “[...] é escutando bem que me preparo para melhor me colocar ou
melhor me situar do ponto de vista das idéias.”.
A aula começou às 14hs:40min, ou seja, 40 minutos depois do previsto, os
alunos que já estavam no local (em torno de 20) sentaram-se e então o professor
começou a aula. Começou falando sobre os planos futuros para o P.S.M.L.J e começou
a exibir alguns vídeos das apresentações da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro,
como exemplo de grupo percussivo pelo qual o P.S.M.L.J iria se basear para tocar.
Enquanto o vídeo era exibido ele falava para que os caixistas prestassem atenção nos
naipes das caixas e suas viradas, e falava sobre alguns detalhes estéticos do samba,
explicou que cada escola de samba homenageia um orixá e no caso da Salgueiro este
orixá é Oxóssi (São Sebastião), então a técnica de caixa que o P.S.M.L.J usaria também
27
Proveniente do áudio da observação.
43
seria a mesma dessa escola de samba, (apesar de não haver o lado religioso em
referência ao orixá).
A seguir exibiu um vídeo que mostra a bossa do repique e a levada da caixa e
aproveitou para explicar o que era um esquenta que nada mais é do que uma breve
mostra musical (comum em escolas de samba e grupos de samba-reggae) que serve
como uma preparação para a apresentação em si. Os alunos assistiram atentamente e
alguns já tentavam aprender a levada do ritmo, o professor aproveitava para estimular
os alunos dizendo que queria ouvir eles tocando até a aula acabar, esse gesto reflete a
importância que o professor tem de impulsionar o desenvolvimento e emancipação da
autonomia nos educandos, segundo Demo (2011, P. 18), isso revela que a autonomia
“[...] é fenômeno social tipicamente, não só individual. Precisa de orientação. De um
lado, para tornar-se autônoma toda pessoa precisa de ajuda. De outro, tornando-se
autônoma, deve saber dispensar a ajuda.”.
Em certo momento pediu atenção aos alunos para que observassem que as caixas
estavam todas sincronizadas e que essa sincronização era importante no grupo para que
a sonoridade ficasse mais consistente e limpa e que eles fariam a pegada do mesmo
jeito que eles assistiram nos vídeos. Para reforçar ele mostrou alguns vídeos dos ensaios
da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro explicando que começariam com a bossa
do repique mas o P.S.M.L.J fariam uma bossa um pouco diferente. Para ajudar na
compreensão dos alunos ele repetia o ritmo utilizando onomatopeia, enquanto
explicava, mais alguns alunos chegaram e ele resolveu fazer um resumo rápido do que
já tinha falado em sala de aula para eles, essa atitude revela o bom senso que todo
educador deve ter, de compreender os alunos, de repetir um assunto quando necessário,
é o que afirma Freire:
Durante alguns momentos Gabriel usava o apito dentro da sala para chamar a
atenção dos alunos que estavam muito dispersos e/ou estavam atrapalhando o
andamento da aula, a seguir pediu um pouco de paciência pois na sala tinham poucos
instrumentos e não daria para todos aprenderem ao mesmo tempo e que por causa disto
a aula prática seria com um ou dois de cada naipe, mas disse que depois que explicasse
44
todo o conteúdo da aula passaria mais um tempo extra no local para que pudesse ensinar
o máximo de alunos possíveis para que já saíssem com uma noção do fazer musical
deste novo ritmo que estavam aprendendo. Aproveitou o momento para verificar
quantos alunos novatos estavam na sala e quantos ainda faltavam aprender a ler
partitura e falou que a 4 meses atrás tinha feito um masterclass de samba-reggae e que
neste (na qual estavam começando a aprender) seria muito útil para o crescimento do
Leão de Judá, pois teriam mais repertório e vivência musical para tocar em eventos,
participar de competições e que esse aprendizado teórico e prático iria trabalhar a
concentração deles, internalizando a base do ritmo como eles vêm fazendo ao tocar
samba-reggae.
Dando início a aula teórica, o professor escreveu algumas figuras rítmicas no
quadro (mínima, semínima, colcheia e semicolcheia com suas respectivas pausas, -
apenas estas foram trabalhadas nesta iniciação/revisão teórica -) e perguntou se
lembravam da função de cada uma, a maioria dos alunos ficaram inseguros de responder
mas no momento em que um deles tomou coragem ouviu-se a maioria respondendo em
uníssono o valor exato de cada figura rítmica.
Uma coisa interessante que notei na aula teórica de Gabriel é que ele especifica
os valores das figuras rítmicas diferente das especificações “comuns”, ou seja, ao invés
dele falar que uma colcheia e uma semicolcheia valeriam 1/8 e 1/16 respectivamente,
ele explica de uma forma um pouco diferente - que em minha experiência não cheguei a
ver nenhum professor de teoria musical explicar daquela forma -, no caso, ele falava que
estas mesmas figuras valeriam 0,50 e 0,25 e ao todo os valores destas figuras ficariam
desta forma: semibreve (4), mínima (2), semínima (1), colcheia (0,50) e semicolcheia
(0,25).
Essa sutil diferença na explicação de teoria musical, seria para facilitar a
compreensão dos alunos em consonância com a vivência deles assemelhando os valores
rítmicos musicais aos valores relacionados ao uso do dinheiro no dia a dia ou seria até
mesmo apenas um reflexo de como o professor aprendeu teoria musical na sua época.
Quando os alunos foram escrever os ditados rítmicos que estavam no quadro o
professor Gabriel pediu para que não escrevessem e guardassem os cadernos, então todo
mundo parou de escrever e fecharam os cadernos e olharam mais curiosos para o
professor. O professor então aproveitou a oportunidade para explicar detalhadamente
para a turma que precisariam de paciência e atenção para que ali houvesse uma revisão
45
para os que já sabiam e um novo aprendizado para cerca de 5 novatos presentes que até
aquele momento nunca tiveram contato com teoria musical, e que portanto a turma
cooperasse.
A partir daí ele falou um pouco sobre compassos simples (em observação falou
que tinha o compasso composto também para os alunos), falando que era o que dava
ritmo na música, e que pro samba usariam o compasso 2/4, - ele dava exemplos sobre os
compassos e outros pontos da teoria musical com marcações na voz, onomatopeias ou
com movimentos das mãos, em alguns casos somavam os dois ou mais movimentos –
também ia reforçando falando o nome das figuras rítmicas e seus valores para completar
os compassos corretamente e perguntava as respostas aos alunos, fazendo alguns
desafios.
Em seguida propôs um desafio e pedia para os alunos falarem em voz alta o
ritmo proposto, depois pediu para que marcassem o pulso com as palmas e lessem
simultaneamente, depois pediu para que só lessem enquanto ele marcava o pulso com as
palmas ou batendo nas figuras escritas no quadro. Notei que isto melhorou na
compreensão dos alunos até a chegada da autonomia na leitura, advinda da experiência
empírica recém vivida, concordando com Demo (2011, P. 19) uma das funções da
autonomia “é de facilitador, não para “facilitar” as coisas, mas para motivar, apontar,
chamar a atenção, criticar, abrir oportunidades, avaliar. [...] Autonomia é conquista
árdua e nunca terminada.”.
Os alunos por terem gostado da atividade, começaram a ficar mais eufóricos e
interagindo socialmente em sala de aula, isto também fez com que se dispersassem,
então o professor teve que usar o aviso sonoro para que eles se lembrassem de cooperar.
46
algumas vezes, a emoção atrapalha o raciocínio – quando precisa ser frio -, outras vezes
o torna tanto mais vivo, colorido, vibrante. Precisamos, na verdade, dos dois.”.
Para reforçar a prática de leitura rítmica, o professor ia fazendo com que cada
fila lesse os compassos que estavam no quadro e a cada mudança de fila ele ia fazendo
algumas alterações. Terminada esta atividade, ele dividiu a turma em dois e falou que
iria começar a ensinar a parte rítmica dos surdos, uma lado ficaria responsável pela
leitura do surdo 1 e o outro pelo surdo 2, e iria acrescentar posteriormente, prato,
repique e caixa, já o tamborim e os guizos ele iria passar a partitura para um amigo para
que montasse um arranjo antes de passar para os alunos. Então começou a escrever no
quadro a linha do surdo 1 e do surdo 2, que ficaram desta forma:
28
28
Trecho da célula rítmica do naipe dos surdos.
29
Proveniente do áudio da observação.
47
onomatopeia, quando era hora de deixar o aluno ter autonomia e ler sozinho este aluno
tinha uma recaída e logo se entregava ao erro, mas era perceptível que aquele erro
persistia por pura falta de concentração e paciência, provocando até em certos
momentos a frase em uníssono da turma, expondo sua falha: “Ó a pausa!” (Informação
verbal)30. Já em outras situações algum aluno fazia um trocadilho: “Esse homi esqueceu
da pausa, vai buscar ela”. (Informação verbal)31. Quando este equívoco se tornava
muito presente o monitor Bruno resolvia intervir na explicação e dar um conselho para o
aluno falando: “É que esse homi tá olhando demais pra Gabriel, tem que olhar pra
pauta.” (Informação verbal)32. Essa pequena observação foi de grande importância para
que o aluno compreendesse o seu “erro”, Freire (2002, P. 92) afirma que “Uma das
tarefas fundamentais do educador progressista é, sensível à leitura e à releitura do
grupo, provocá-lo bem como estimular a generalização da nova forma de compreensão
do contexto.”.
Depois destes diversos conselhos o aluno conseguiu ler e ficou feliz ao fazê-lo,
logo em seguida o professor pediu para que o outro aluno que estava no surdo lesse a
partitura 1 enquanto o outro lia a partitura 2, percebi que eles se confundiam um pouco
e começavam a ler os dois só a linha do surdo 1 e o professor logo interrompia e
explicava que um deveria ler o surdo 1 e outro deveria ler a de baixo, o surdo 2, para
ajudar, algumas vezes tocava junto com o aluno que estava apresentando dificuldades.
Depois de os alunos dos surdos terem praticado por um bom tempo, o professor
aproveitou para chamar outro para vir aprender a linha rítmica da caixa, ao escrever a
partitura no quadro a turma se espantou pois utilizava muitas colcheias e semicolcheias.
O jovem começou a ler e em certos momentos teve dificuldade apenas com o tempo e
acentuação, foi aí que o monitor Bruno veio auxiliar, sentou perto dele e com suas
baquetas começou a tocar com um andamento mais lento e a ditar com onomatopeias
enquanto o outro também tocava, atento aos movimentos e as dicas do monitor: “A
acentuação é só na primeira e na quarta” (Informação verbal)33.
Ele também fez algumas demonstrações solo para que o aluno e a turma
ouvissem como era, ou ia para o quadro explicar a técnica embasada na prática e teórica
e com esses auxílios o jovem conseguiu aprender. Quando o professor Gabriel pediu
30
Proveniente do áudio da observação.
31
Proveniente do áudio da observação.
32
Proveniente do áudio da observação.
33
Proveniente do áudio da observação.
48
para que o aluno tentasse ler e tocar sozinho em um andamento mais lento ele conseguiu
na primeira tentativa, o professor aproveitou para dizer: “Gente, o macete é ir estudando
devagar e ir prestando atenção na acentuação.” (Informação verbal)34. Depois disso,
pediu para que caixa e surdos se juntassem à prática, o monitor Bruno junto com outro
aluno tocavam na mesma caixa e dois outros nos surdos enquanto Gabriel marcava a
pulsação com clavas.
Ao tocarem juntos houve uma certa dificuldade com a entrada do caixista, (um
dos alunos, - um dos poucos adultos no projeto - ao ver o processo de aprendizado do
samba na caixa, se levantou e disse: “Eu vou é embora que eu não quero passar
vergonha não”. (Informação verbal)35 a turma riu e o professor Gabriel pediu para que
ele ficasse, que ele iria aprender sim.).
O monitor Bruno foi até ao quadro explicar o sentido do que estava escrito na
partitura da caixa para auxiliar na execução do aluno, apontou para as letras que ficam
bem abaixo das figuras que indicam a mão que deveria baquetear (do inglês R ou L –
Right or Left, Direita ou Esquerda) e explicou que essa indicação servia para orientar
quem estava lendo informando as nuances – que naquele caso era a acentuação em
alguns pontos -, então começou a ler utilizando onomatopeia e dando ênfase nas
acentuações que a partitura pedia para que o aluno entendesse, e antes que ele pudesse
terminar a explicação um dos alunos que estava apenas observando de sua cadeira
interrompeu falando: “Bruninho! Lembra que da outra vez esse homi mandou usar as
duas mãos pra ficar mais fácil?” (Informação verbal)36. E Bruno respondeu: “É que
nem esse homi explica (referindo-se a Gabriel), tem uma coisa que vocês tocam que é
taca-taca e outras que é daga-daga, tem alguma diferença? (a turma respondeu que
sim) Então, essa acentuação aqui (da mão direita) dá uma diferença grande”
(Informações verbais)37. Com essa explicação, percebi que o aluno que tinha
questionado sanou sua dúvida, pois entendeu o motivo pelo qual o professor e o monitor
estavam focando na parte técnica especificada na partitura.
34
Proveniente do áudio da observação.
35
Proveniente do áudio da observação.
36
Proveniente do áudio da observação.
37
Provenientes do áudio da observação.
49
Com o caminhar da prática eles conseguiram entrar em harmonia uns com os
outros, é importante observar que quando os alunos atingiam essa segurança, o
professor prontamente chamava outro aluno para se inteirar à prática musical,
aproveitando o ensejo para ensinar a partitura de outro instrumento. Então o professor
disse que iria escrever a linha do repique e comentou que a acentuação do repique seria
diferente, e chamou outro aluno para ir até lá para aprender, mas quem acabou ficando
responsável pela linha do repique naquele momento foi o monitor, pois na sala os
alunos que tocavam repique tinham faltado ao masterclass.
O monitor tocou a linha do repique que o professor tinha escrito no quadro para
que a turma ouvisse como o ritmo deveria ficar, quando a demonstração terminou pediu:
“Pronto, o repique é isso. Agora vamos cada um na sua parte pra ver se a gente
consegue entrar. Ó, devagarzinho, se concentrem agora, vamos fazer tudinho, um...
dois... pausa, pausa.” (Informação verbal)38. E aí eles entraram, mas em tempos
diferentes, pois não estavam se concentrando na leitura rítmica, então o monitor utilizou
uma onomatopeia da entrada de todos os instrumentos, dando ênfase com movimentos
de cabeça, e o professor marcando a pulsação no quadro e lendo em voz alta também.
Houve uma observação acerca do caixista, pois ele não estava atento as pausas
que indicavam que o músico deveria esperar dois tempo antes de começar a tocar e que
o único instrumento que já iniciava em nota era o repique, então o professor o alertou
explicando novamente a função dela para o fazer musical e ainda frisou que o erro só
persistia ainda por falta de atenção da parte dele. O trabalho de concentração para com
esse aluno ainda se estendeu por alguns minutos até que ele conseguiu gerar fluência na
execução que coincide com o que Demo (2011, P. 19) fala, “Autonomia é conquista
árdua e nunca terminada. Dói, sobretudo no começo, pois sua primeira fase é sentir-se
perdido. Tirada a muleta, a pessoa se sente abandonada. Mas só assim descobre que
pode andar sem muleta.”.
Em seguida chamou alguém do naipe dos pratos, então uma aluna se levantou e
timidamente foi até aonde os demais estavam, o professor lhe mostrou a partitura dos
pratos, leu em voz alta e fazendo a marcação na primeira vez e na segunda vez pegou os
pratos dela e tocou, quando terminou, pediu para que ela se aproximasse mais para que
pudesse ter uma melhor visão do quadro, então ela se sentou em uma cadeira da
primeira fileira e começou a ler e tocar, ela praticou duas vezes com o acompanhamento
38
Proveniente do áudio da observação.
50
e a seguir o professor pediu para que tocassem todos, esse ciclo perpetuou-se durante
diversos momentos, principalmente quando acrescentava-se um instrumento ao círculo
de estudo, foi assim também com o ganzá tocado por uma outra aluna, que vendo o
outro aluno desdenhar da prática por estar com preguiça se prontificou rapidamente
afirmando que queria tentar, e participou da prática com grande ânimo. Tal atitude
partiu de um interesse e curiosidade em conhecer o ganzá, a curiosidade portanto foi
sentimento motivador que a fez autônoma no processo de iniciação a aprendizagem do
objeto, é o que explica Freire (2002, P. 97) “O exercício da curiosidade a faz mais
criticamente curiosa, mais metodicamente “perseguidora” do seu objeto. Quanto mais a
curiosidade espontânea se intensifica, mas, sobretudo, se “rigoriza”, tanto mais
epistemológica ela vai se tornando.”
Não demorou muito para que ele juntasse todos os naipes e com o fazer musical
que estava acontecendo já iniciasse uma prévia de ensaio, começando com ciclos de
estudo durando em média um minuto e meio que ao fim do masterclass já estava
durando cerca de 10 minutos corridos, pausava para fazer algumas observações ou
mudar de aluno – que revezavam instrumentos - e reiniciava o ciclo de estudo, sempre
frisando nos pontos que ainda persistiam no erro como a falta de atenção e dificuldade
de manterem-se no tempo proposto.
Um dos alunos caixistas questionou o professor do porquê que tinha que tocar
daquele jeito, sem nenhuma mudança (improviso), o professor explicou que improviso
tem um momento certo e que em certos ritmos o mais simples – no caso desse samba
com caixa na levada Oxóssi - ficaria mais swingado, mais bonito, que era isso que o
povo queria ouvir, citou como analogia por exemplo o caso do baterista do Wesley
Safadão39, se por acaso ele começasse a improvisar do jeito que ele quisesse num show
o show seria dele ou do cantor, se seria voltado apenas para solo de bateria, dando um
exemplo de como ficaria a sonoridade.
Esta analogia levantou algumas gargalhadas dos alunos, e ainda finalizou
perguntando: “Como é que a pessoa vai improvisar em cima de uma coisa que ela não
sabe? Como é que a escola de samba vai improvisar se não sabe que o santo da escola
é Oxóssi?” (Informação verbal)40 Um dos alunos ainda perguntou: “Mas porque é tão
diferente? E o professor respondeu: Não é que seja diferente, mas é que a linguagem do
39
Cantor famoso do forró eletrônico.
40
Proveniente de áudio da observação.
51
samba é essa. [...] Como o frevo tem sua linguagem... [...] por isso não podemos mudar
a linguagem. [...]A nossa linguagem tá em cima de quê? Oxóssi, no santo da escola.
[...] Aí o povo acha que pra fazer um samba diferenciado tem que tocar no beep assim
(batendo as clavas em andamento acelerado), primeiro, perde swing, perde a ideia, a
linguagem, a interpretação...” (Informações verbais)41. Deu um exemplo do que
acabara de explicar tocando Brasileirinho42 na flauta doce com um andamento bem
rápido e interpretação frenética para ilustrar que rapidez na execução não era sinônimo
de tocar bem, “Por isso, pensar não é apenas ter idéias, mas tê-las com jeito” (DEMO,
2011, p. 31).
Aproveitou para mostrar aos alunos que os surdos possuíam uma afinação
diferente um do outro justamente para dar vida a linguagem do samba, e que melodia e
ritmo eram diferentes, porém se completavam num todo musical, e se todos tocarem no
padrão que tem que ser iria melodizar a bateri. Então pediu para que tentassem fazer a
linguagem deste samba, que fizessem diferente dos outros grupos pedindo-os para
imaginar como seriam em média 80 alunos tocando de forma harmoniosa e conscientes
do que estão fazendo e tocando.
Notei que o professor percebeu a insegurança de alguns alunos, mas ele disse
que iriam aprender assim como aprenderam a tocar samba-reggae e que por sinal,
tocavam e improvisavam muito bem por que já tinham estudado e aproveitado muito o
aprendizado. Pediu que se esforçassem para ter paciência e concentração para aprender
o samba e perceberiam que ficaria cada vez mais fácil tocar, ainda falou que sua
intenção era estudar para passar para os alunos do P.S.M.L.J uma confiança na hora das
apresentações e ainda soubessem a parte teórica, que queria ver todo mundo
impressionado com a performance musical deles, e que portanto todos teriam que
cooperar, aprender o esquenta, a levada, história, técnica, teoria e etc. Depois dessa
conversa, vi-os motivados a tentar novamente, então o professor iniciou outros ciclos de
estudo/ensaio, auxiliando-os quando percebia algum ponto a ser trabalhado.
Antes de terminar o masterclass comentou que como os próprios alunos
perceberam, o processo é demorado pois são muitos alunos e existem alguns detalhes
importantes que não poderão ser ignorados, e que portanto, iria marcar outras aulas
trazendo uma partitura para cada um dos alunos já irem estudando em casa até
41
Provenientes de áudio da observação.
42
É um choro composto em 1947 por Waldir Azevedo.
52
marcarem a próxima aula. A aula terminou às 17h30min da tarde e todo mundo seguiu
em direção a casa de um dos alunos do projeto que toca trombone de vara para tocar no
aniversário dele.
43
Proveniente de áudio da observação.
44
Música de Roberto Carlos na versão de Claudia Leitte.
53
os lugares tradicionais que representam relações pedagógicas institucionais como a
família, a igreja e a escola.”.
Enquanto os alunos tocavam o professor passou pelas fileiras dos naipes
alinhando-os, observei que ele também preza muito pela estética visual e de organização
do Leão de Judá, pois ele considera importante também estética, pois mostra
organização no grupo. “A necessária promoção da ingenuidade à criticidade não pode
ou não deve ser feita à distância de uma rigorosa formação ética ao lado sempre da
estética.” (FREIRE, 2002. P. 36).
Em um certo momento do ensaio, Bruno que neste dia estava no naipe do
repique fez um pequeno floreio num ponto inesperado da música, esta ação provocou
alguns pequenos sorrisos e olhares na direção dele, pois não estavam esperando essa
virada no repique, porém Bruno não fomentou as conversas que já tinham se iniciado
acerca do ocorrido para que não se desconcentrassem no ensaio.
O “coordenador” Lucas estava no naipe dos bumbos, pois o aluno responsável
pelo instrumento ainda não tinha chegado no ensaio, quando o aluno chegou, às
17h:23min, eles fizeram a troca sem interromper o andamento do ensaio. Houve
também outra mudança de aluno, dessa vez entre os repiques, quando houve a troca o
outro aluno sentou e ficou observando o ensaio e mais especificamente o naipe ao qual
pertencia.
Ainda teve mais uma mudança entre os repiques e caixas durante o ensaio, em
certo momento o repique era tocado por 2 alunos ao mesmo tempo (devido à falta de
alguns instrumentos no projeto) e enquanto eles compartilhavam o repique o primeiro
aluno que estava tocando neste naipe passou a tocar no naipe dos surdos. Observa-se
então que havia um rodízio de alunos e instrumentos no ensaio, principalmente quando
alguns alunos faltam muitas aulas e ensaios, então eles eram orientados a fazerem isso
para que ficassem atualizados com o repertório do grupo e conseguissem acompanhar
nas próximas vezes.
Quando o ciclo de músicas do ensaio do samba-reggae terminou ouviu-se
aplausos dos observadores e alguns comentários como: “Chorou!; É massa boy!”
54
(Informações verbais)45, em seguida Gabriel pediu silêncio e atenção pois iria falar a
agenda para a semana seguinte, quando acabou de dar as informações pediu para que os
alunos guardassem os instrumentos, então saíram de suas formações e a maioria foi
guardar os instrumentos enquanto alguns do naipe dos repiques fizeram a virada que
caracteriza a entrada do samba-reggae e alguns alunos do surdo não hesitaram em
responder acompanhando também, nesse momento cheguei a pensar que eles iniciariam
o ciclo novamente mas não o fizeram e foram guardar os instrumentos, o ensaio
terminou enfim às 17h:45min.
4.5 Observação 05: Aula/ensaio com o naipe dos surdos no dia 10 de outubro de
2017.
Cheguei ao ponto de encontro dos ensaios às 17h: 25min já preocupada pois o
ensaio sempre começa às 17h:00min e 25 minutos de atraso acarretaria em uma perda
de informações consideráveis, mas ao notar que o professor não tinha chegado ainda
fiquei ao mesmo tempo aliviada e preocupada com o paradeiro do professor, os alunos
também demonstraram um pouco de preocupação pois não conseguiam se comunicar
com o professor. Com isso se torna evidente que os alunos criaram um laço afetivo com
o professor, evidenciando:
O que se diz, como se diz, em que momento e por quê - da mesma forma que
o que se faz, como se faz, em que momento e por quê - afetam
profundamente as relações professor-aluno e, conseqüentemente, influenciam
diretamente o processo de ensino-aprendizagem, ou seja, as próprias relações
entre sujeito e objeto. Nesse processo de inter-relação, o comportamento do
professor, em sala de aula, através de suas intenções, crenças, seus valores,
sentimentos, desejos, afeta cada aluno individualmente. (LEITE et al, 2000.
P. 11).
45
A expressão/ gíria “chorou” no contexto social estudado tem sentido positivo, significando algo muito
legal, interessante.
55
pernas e ás vezes apenas assoviava a melodia que lia na partitura. Este aluno interagia
com poucas pessoas e estava muito focado em seu momento de estudo, outros alunos
estudavam batucando com as baquetas no chão ou nos pneus (que ficam embaixo da
árvore em frente a casa de cultura e servem como bancos).
Ouvia-se também algumas queixas com relação a demora do professor chegar,
pois todos esperavam que a aula começasse no horário estabelecido, mas poucos
minutos depois um dos alunos do projeto avisou para todos que tinha conseguido falar
com Gabriel e que o mesmo pediu pra avisar que a aula começaria às 18:00hs, mas não
informou o motivo do atraso.
Percebi que alguns alunos de outros naipes também estavam presentes, talvez
por não terem prestado atenção ao comunicado do ensaio anterior que afirmava que
aquele dia seria focado ao naipe dos surdos ou então vieram porque queriam apenas
observar a aula e conversar com os colegas.
Ao analisar mais o local, percebi que atrás de onde sentei estava uma mãe com
seu filho (aluno novato do naipe dos surdos com cerca de 10-12 anos) aparentando estar
impaciente com a ausência do professor, o garoto então pede de forma suplicante para
que a mãe esperasse mais um pouco, afirmando que o professor já estava chegando.
Escutei algum aluno estudando caixa dentro da casa de cultura, neste momento o
aluno que estava estudando leitura rítmica e solfejo se levantou pegou o case do seu
instrumento e foi em direção ao som, pouco tempo depois escutei-o tocando seu sax, em
seguida comecei a ouvi-los tocando frevo. Do lado de fora um grupo de alunos
conversava sobre assuntos do Leão de Judá, sobre as músicas que ouviam e gostavam e
acabaram discutindo sobre qual era a religião da banda Rosa de Saron46, se eram
evangélicos ou católicos.
Em pouco tempo espalhou-se a notícia de que não haveria mais ensaio, porém
ninguém sabia informar a fonte da notícia ou se era verdadeira ou falsa, então ninguém
foi embora. Depois do boato não tardou muito para que Gabriel chegasse, eram
18h35min da noite. Ele foi logo ao meu encontro me explicar o motivo do atraso (tinha
46
Banda brasileira de rock cristão ou white metal.
56
começado a dar aula de trompete na Ilha de Música47, do maestro Gilberto Cabral, e
tinha passado em casa para descansar e se alimentar, por isso resolveu adiar o horário do
ensaio ao constatar que não daria tempo de chegar às 17h00min).
A aula então iniciou às 18h40min da noite, o professor começou a organizar os
alunos do naipe dos surdos e já que praticamente todos os alunos de outros naipes
estavam lá aproveitou para inseri-los na prática como guia sonoro para os surdistas,
então também separou 1 caixa, 1 repique e 1 bumbo. Enquanto ele dava as orientações
iniciais alguns alunos tocavam, o que fazia com que o professor pedisse e utilizasse o
aviso sonoro apitando várias vezes para que eles parassem e prestassem atenção para
que os surdistas e eles mesmos entendessem as orientações. O uso da autoridade se fez
presente e tem seu grau de relevância no papel do educador, segundo Freire (2002, p.
122) “A posição mais difícil, indiscutivelmente correta, é a do democrata, coerente com
seu sonho solidário e igualitário, para quem não é possível autoridade sem liberdade e
esta sem aquela.”.
O professor falou que os surdos que ficassem na linha de frente iriam fazer o
surdo 1, os do meio o solo e os de trás os surdos 2 (referente as partituras dos surdos da
última aula de samba), depois da virada da caixa “tagadagada dumdum” os surdos
deveriam entrar e fazer algo diferente, o surdo 1 ficaria na marcação do tempo 1
enquanto que os surdos 2 ficariam no contratempo.
Quando o professor resolveu fazer o primeiro teste de execução os alunos não se
atentaram na entrada e erraram o tempo, Gabriel parou e logo exclamou “Olha o tempo
galera, vamos, se concentrar, isso é simples!” (Informação verbal)48, enquanto os
alunos tentavam internalizar o que estavam aprendendo o professor Gabriel e Bruno
enfatizavam alguns pontos que deveriam ser observados pelos alunos como a pulsação.
Ouvia-se sempre: “Sem acelerar!” (Informação verbal)49.
Quando eles conseguiram manter a pulsação os demais instrumentos começaram
a entrar e enquanto todos tocavam Gabriel ia reforçando os pontos que deveriam ser
melhorados nos surdistas. Ao fim do primeiro exercício prático Gabriel aproveitou para
dar uma dica que poderia facilitar na entrada e na pulsação dos surdistas: “Se vocês
imaginarem que tá fazendo aqui... só pra vocês não perderem o tempo ó, um...
(indicando marcação no surdo) e na mão solta marca o dois, eles são o tempo um e
47
Projeto de música para a comunidade do bairro da Redinha, Natal-RN.
48
Proveniente de áudio da observação.
49
Proveniente de áudio da observação.
57
aqui o contrário deles.” (Informação verbal)50 E Bruno complementou: “O tempo um é
abafado.” (Informação verbal)51. A adaptação da linguagem fez com que esses alunos
captassem a ideia e pediu para que fossem devagar para treinarem e internalizarem essa
parte e pediu para que não parassem de tocar enquanto ele não autorizasse.
Alguns surdistas se dispersaram durante uma nova explicação e entraram dentro
da casa de cultura, quando o professor percebeu a ausência deles logo emitiu um aviso
sonoro com o apito e falou: “Olha os surdos que estão aí dentro ó, depois eu quero
perguntar e quero resposta, beleza?” (Informação verbal)52, assim que ouviram todos
saíram e se juntaram ao círculo onde os demais surdistas ouviam os conselhos do
professor, ele falava que queria todo mundo tocando essa simples célula rítmica até a
sexta-feira e que não teriam como eles tocarem coisas mais difíceis se não se
concentrassem para aprender o mais fácil (eles estavam tendo muitas dificuldades com o
contratempo também).
Quando iniciou-se o exercício prático novamente eles conseguiram entrar
corretamente, porém um dos surdistas da linha de frente estava floreando demais na
execução, então o professor logo notou, parou o exercício e falou: “Quanto mais
simples mais bonito, se você fizer tudududududu vai embaralhar eles tudinho, o mais
simples tem mais balanço. Olha como o mais simples vai ficar bonito, prepara ó, um,
dois!” (Informação verbal)53, e tocaram novamente enquanto este aluno só observava,
em seguida acompanhou os demais. Quando foram treinar mais uma vez o professor
pediu para que se concentrassem no ritmo, pois iria filmar e mandar para a escola de
samba das Rocas, chamou o Lucas e pediu para que filmasse-os tocando. Depois da
primeira filmagem ele disse que o samba bonito é o samba tocado de maneira simples,
ainda disse que quando eles enchem de floreios fica confuso e que naquele momento
queria o mais simples.
Assim que a filmagem acabou pediu para que os surdistas titulares e os reservas
estudassem com a partitura em casa, pois eles já sabiam os valores das figuras e não
queria mais ter que ficar utilizando avisos sonoros com o apito e chamando a atenção
deles para detalhes tão simples que refletem apenas a falta de atenção deles. Em seguida
50
Proveniente de áudio da observação.
51
Proveniente de áudio da observação.
52
Proveniente de áudio da observação.
53
Proveniente de áudio da observação.
58
fez o rodízio de alunos para participarem do exercício prático, enfatizando que o samba
ali estava sendo passado de forma simples, assim que os alunos se posicionaram deu
início a prática e pediu para repetirem mais algumas vezes, depois dessas práticas pediu
para que Lucas filmasse-os mais uma vez. Às 19h12min já notava-se uma execução
bem mais limpa e no tempo do que no início do ensaio, após uma última prática a
aula/ensaio finalizou às 19h15min da noite.
4.6 Observação 06: Aula/ensaio com os naipes dos pratos, repiques e caixas no dia
11 de outubro de 2017
Neste dia resolvi ir na casa do professor Gabriel para poder colher algumas
informações referentes a biografia do projeto social de música Leão de Judá, chegando
lá Gabriel estava terminando de organizar alguns registros da história do projeto no
computador e enquanto ele terminava íamos conversando. Entretanto, devido a falta de
internet e de tempo para terminar de organizar o relatório ele resolveu me entregar em
outro dia assim que terminasse de completar as informações necessárias. Por esse e
outros motivos (espera de transportes de condução) chegamos em Felipe Camarão de
18h15min.
59
abafado e no tempo dois batendo e deslizando, as caixas começaram a praticar em um
andamento lento enquanto os pratos entravam ao verem o comando do professor. Aos
poucos ele pedia para que acelerassem o andamento e quando o faziam Gabriel pedia
para que permanecessem no tempo até que vissem ou ouvissem o sinal de parada.
Em um dado momento Bruno falou para os caixistas que teriam que tocar as
semicolcheias de forma mais solta lembrando sempre das acentuações pois eram elas
que dariam a característica pedida no samba. Em seguida fez a atividade prática junto
com eles para que entendessem como deveriam ficar as acentuações e aos poucos foram
acelerando o andamento enquanto os alunos do prato olhavam atentamente os caixistas
praticando.
Quando os pratos e caixas já tinham praticado o professor pediu para que fosse a
vez de só os repiques praticarem, relembrou a célula rítmica deles e iniciou a prática, os
alunos não tiveram dificuldades quanto a execução então o professor chamou os demais
naipes para que tocassem juntos.
O professor aproveitou que todos estavam reunidos e deu algumas dicas sobre
técnica de execução, para que os alunos melhorassem suas performances e não
tencionassem demais os membros ao tocar, “Quando eu toco e quero chegar na região
aguda eu tenho que adaptar a posição das mãos e do pulso, na caixa, no repique, no
prato é a mesma coisa (...).” (Informação verbal)54. Após a explicação a performance
dos alunos melhorou, então o professor revisou os exercícios individualmente e depois
revisou com todos os naipes juntos até a aula/ensaio, fato este que não tardou a
acontecer, às 19:10hs da noite foi finalizada.
54
Proveniente de áudio da observação.
60
5. ENTREVISTA E ANÁLISES GERAIS
Esse trecho evidencia que apesar de ter tido uma formação inicial em música já
dentro da universidade, o professor tem a intenção de ter uma titulação acadêmica
55
Informação adquirida a partir da entrevista realizada em Natal-RN em 30/10/2017.
61
referente ao ensino superior para poder trabalhar em mais lugares que já vêm surgindo
como oportunidade de ingresso na educação musical em contextos formais. Essa
afirmação assinala a importância da formação musical formal como complementação à
experiência empírica que o mesmo já possui, essa intenção expressa, segundo o que
reitera Tardif (2010):
[...] a vontade de encontrar, nos cursos de formação de professores, uma nova
articulação e um novo equilíbrio entre os conhecimentos produzidos pelas
universidades a respeito do ensino e os saberes desenvolvidos pelos
professores em suas práticas cotidianas. (TARDIF, 2010. P. 23).
Ainda concluiu dizendo que o seu maior desejo não é viver acumulando
diplomas e aprovações em concursos públicos e sim estar dentro da comunidade, o
lugar que mais precisa de atenção.
Meu negócio é dentro da comunidade, de tá ali, aquele contato, de puxar uma
porta pra quem não tem. Assim, com toda a realidade do Brasil, com tudo
que existe eu não vou me enquadrar nessa realidade, [...] creio eu que existem
62
poucos educadores que trabalham com essa perseverança. (Informação
verbal)56.
56
Informação adquirida a partir da entrevista realizada em Natal-RN em 30/10/2017.
57
Informação adquirida a partir da entrevista realizada em Natal-RN em 30/10/2017.
63
Vale salientar que desde criança participou de alguns projetos sociais – vários
deles com foco na educação musical - e ao observar a situação social do bairro em que
vivia (e vive), guardou em mente que ajudaria as pessoas do bairro a mudarem sua
situação social vulnerável, ofertando novas oportunidades para a população local.
Foi bem simples, eu quando tinha onze anos de idade eu vi que... assim, da
onde eu vim ali... você sabe que a realidade não é uma das melhores
realidades... [...] aquela minha rua o povo diz que é a principal, [...] mas ela
por ser a principal não deixa de ser afetada. (...) Você se ligou ali nas
proximidades... a carência, ela chama mais. [...] Digamos que de mil pessoas
da comunidade trinta tenha estrutura. [...]. Eu vi que se não fosse a parte da
música, sério mesmo, eu acho que eu teria virado um ladrão... tinha virado
uma coisa tipo dessa, [...] não tem pra onde correr [...]. O que eu vi muito,
foram os projetos sociais, e o que eu comecei foi o IBEART, aí tinha o PET,
Projeto Petrobras... (Informação verbal)58.
Ele afirmou que a música teve papel crucial na transformação social dele, pois
desde jovem (quando já sabia tocar flauta doce e trompete) já tocava em bandas como
meio de sustento financeiro, e que posteriormente sua vontade em apresentar novas
perspectivas de mundo o levou a começar a dar aula de flauta doce para moradores da
comunidade com apenas 14 anos. E depois da criação e consolidação do Leão de Judá
fala com grande satisfação que ajudou a mudar a realidade social de vários ex-alunos da
época e que hoje estão na universidade, muitos deles seguiram no ramo da música ou da
educação musical “[...] Esses boys hoje em dia dão capote em mim na música, [...] tudo
tocando bem, formados [...] (informação verbal)59. Depois dessas vivências com
projetos sociais na infância resolveu ter o seu próprio projeto social, economizou um
capital suficiente para dar início a concretização do projeto de música e desde 2012
permanece atuando.
Seu objetivo, bem como seu papel como educador e fundador do projeto social
de música Leão de Judá foi assinalado e incitado por sua própria condição social, a
empatia que lhe surgiu ao observar a realidade fragilizada na qual vivia e via os seus
vizinhos vivendo fez com que o desejo de fundar um projeto social de música fosse
alimentado e persistido durante tanto tempo até a sua consolidação, este tipo de
intervenção social pode ser comparado como uma ação efetiva do saber pensar e da
gestão da autonomia, como explica Demo (2011):
Saber pensar não é só pensar. É também, e sobretudo, saber intervir. Teoria e
prática, e vice-versa. Quem sabe pensar, entretanto, não faz por fazer, mas
sabe por que e como faz. Nem sempre é questão de estudo, pois nas
58
Informação adquirida a partir da entrevista realizada em Natal-RN em 30/10/2017.
59
Informação adquirida a partir da entrevista realizada em Natal-RN em 30/10/2017.
64
instituições educacionais, por vezes, desaprendemos, mormente quando
somos submetidos a processos instrucionais reprodutivos. [...] É saber
reconhecer rapidamente as relevâncias do cenário e tirar conclusões úteis, ver
longe para além das aparências, perceber a greta das coisas, inferir texto
inteiro de simples palavra, porque, a bom entendedor, uma palavra basta.
(DEMO, 2011. P. 17).
60
Principal mecanismo de fomento à Cultura do Brasil, a Lei Rouanet, como é conhecida a Lei 8.313/91,
instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac). O nome Rouanet remete a seu criador, o
então secretário Nacional de Cultura, o diplomata Sérgio Paulo Rouanet. Para cumprir este objetivo, a lei
estabelece as normativas de como o Governo Federal deve disponibilizar recursos para a realização de
projetos artístico-culturais. A Lei foi concebida originalmente com três mecanismos: o Fundo Nacional da
Cultura (FNC), o Incentivo Fiscal e o Fundo de Investimento Cultural e Artístico (Ficart). Este nunca foi
implementado, enquanto o Incentivo Fiscal - também chamado de mecenato - prevaleceu e chega ser
confundido com a própria Lei. (MINISTÉRIO DA CULTURA, Disponível em:
<http://rouanet.cultura.gov.br/> Acesso em: 09 de novembro de 2017).
65
depois de quatro anos, Carlos Eduardo61 viu aí mandou eu ir lá direto... aí o
povo já tratou de outra forma. [...]. (Informação verbal)62.
Ainda salientou que após apresentar o orçamento básico para a compra dos
instrumentos musicais para mais ou menos 60 crianças que participam do projeto, foi
contestado acerca do valor total que giraria em torno de 24.000,00 R$ e o valor ofertado
como auxílio foi de 20.000,00 R$, com isso o professor se sentiu desmotivado a
continuar, expressando uma parcela de revolta com essa situação, pois o orçamento é
insuficiente para a compra de todos os instrumentos. "É tipo, nadei, nadei e morri na
praia... tá entendendo?! [...] Eu tô tendo calma, vai dar certo...” (Informação verbal)63.
Porém, ao constatar várias tentativas sem retorno preferiu abandonar esta ideia e
investir no projeto com o próprio dinheiro que gerasse com trabalhos e tocadas em
grupos musicais e até parcerias com uma Escola de Samba do bairro das Rocas - de
onde ele participa como músico e como professor também – que ofertou serviços de
lutheria para os instrumentos do Leão de Judá e outros auxílios como doação de
materiais para o projeto social e também para os alunos.
Minha meta... eu tô pensando assim, já que eu consigo viver dessa forma,
porque foi trash... quando eu tava fazendo os trabalhos com Douglas no
Estado eu ganhava dinheiro demais véi, homi, ganhava dinheiro mesmo.
Depois daquilo ali que eu ganhei uma estrutura... eu tive que zerar, pegar o
dinheiro todinho e investir e começar o projeto do zero. Aí eu consegui o
quê... nesse meio tempo eu fui visando, tentei estruturar o projeto até onde
pude e agora que eu tô vendo que a licenciatura tem uns cantos que vai me
dar uma estabilidade e vai dar pra mim dar conta. [...] Aí o que é que eu vou
fazer, vou pegar esses quatro trabalho, vou imaginar que dentro dos quatro eu
ganho um e os três vai apodrecer dentro da conta. Quando for a cada final de
ano eu dou uma investida do meu próprio bolso pro meu próprio projeto, pra
não depender mais de ONG. [...] “Vou me inscrever em lei num sei o quê”,
não tem isso mais não. (Informação verbal)64.
Ainda comentou que ao pesquisar alguns artistas famosos que recebem apoio da
Lei Rouanet viu que não tinha encontrado nada que relacionasse algum projeto social
vinculado a esses artistas, e que, portanto, não achava mais oportuno e nem justo
continuar tentando pedir apoio, pois os projetos que realmente precisavam como o seu,
não eram aprovados.
Mas isso tudo pra quê? Desvio de verbas... como a gente já tá cansado de ver
na televisão. [...] Me chamaram para fazer uns trabalhos e apresentei tudinho
pra FUNCARTE65, aí eu penso assim, será que isso vai sair? Tem o será...
61
43º e atual prefeito da cidade do Natal – RN, (início do mandato: 2016).
62
Informação adquirida a partir da entrevista realizada em Natal-RN em 30/10/2017.
63
Informação adquirida a partir da entrevista realizada em Natal-RN em 30/10/2017.
64 Informação adquirida a partir da entrevista realizada em Natal-RN em 30/10/2017.
65
Fundação Cultural Capitania das Artes.
66
Tipo assim, eu não conto não, tô apostando mais na minha ideia, se sair bem,
saiu, não tô descartando, mas eu não tô contando. (Informação verbal)66.
Esse ponto de vista nos mostra que o interesse do professor não está inteiramente
ligado aos trabalhos performáticos, seu objetivo é ofertar novas perspectivas, novas
oportunidades para o futuro das pessoas da comunidade, afirmando que o seu desejo é
ver os seus alunos entrando em uma universidade, ampliando seus horizontes e servindo
de inspiração para os demais indivíduos da região, é por isso que:
Pensar na educação musical, nessa perspectiva, parte da consciência da época
em que vivemos, significa pensar também nos alunos que estão em sala de
aula como sujeitos desse contexto histórico-cultural complexo e dinâmico.
Hoje, os alunos representam uma geração que nasce, vive em meio a
processos de transformação da sociedade contemporânea e suas repercussões
no espaço social que habita, os quais presencia e dos quais participa.
(SOUZA, 2004. P. 10).
69
Imagem no tópico: anexo.
68
tocar! Quero tocar! Quero tocar!” aí eu digo “Vamo tocar! ...” já puxando um
aluno [...] e a ação tá sendo feita. (Informação verbal)70.
Estar em sintonia com o mundo musical dos jovens dessas comunidades onde se
instalam os projetos sociais de música é de extrema importância, pois o educador (a)
saberá que caminho seguir, por onde seguir e como seguir, contemplando todas as
necessidades pedagógicas, sociais, musicais e culturais pertencente a determinados
contextos e mundos socioculturais, é o que salienta Souza (2004):
A compreensão das práticas sociais dos alunos e suas interações com a
cidade, o lugar como espaço do viver, habitar, do uso, do consumo e do lazer,
enquanto situações vividas, são importantes referências para analisar como
vivenciam, experimentam e assimilam a música e a compreendem de algum
modo. Pois é no lugar, em sua simultaneidade e multiplicidade de espaços
sociais e culturais, que estabelecem práticas sociais e elaboram suas
representações, tecem sua identidade como sujeitos socioculturais nas
diferentes condições de ser social, para a qual a música em muito contribui.
(SOUZA, 2004. P. 10).
69
criar, discutir, argumentar... Propostas que propiciem o desenvolvimento da
autodisciplina e da capacidade de refletir, de questionar, de criticar, dentre
outros aspectos, tornam-se, então, aspectos fundamentais em tal proposta,
promovendo situações para o exercício da comunicação e do relacionamento
humano, estimulando o debate e a conscientização de aspectos relativos à
música e ao humano. (BRITO, 2001. P. 03).
71
Informação adquirida a partir da entrevista realizada em Natal-RN em 30/10/2017.
72
Querendo dizer financiado.
70
sabe que a maioria dos alunos vai ter um bom acondicionamento, vai existir
aquele respeito do professor e aluno, que o professor sabe que tem que chegar
ali e formar aquele músico, pouco diálogo [...]. Já no projeto social (como o
Leão de Judá) o convívio de professor com aluno é bem diferente, porque os
alunos quando chegam, você tem que ensinar o respeito de família, de
conversar, de tudo. É tanto que se você prestar atenção lá no grupo (do
whatsapp) é Família Leão de Judá, porquê? É esse convívio que eles não têm
dentro de casa com a família, eles têm no projeto pra ajudar na formação de
ser humano. (Informação verbal)73.
Ele reconhece que a educação tem que envolver teoria, prática e afetividade,
suprindo algumas necessidades primordiais à todo ser humano, no entanto a realidade
nesses contextos fragilizados não garante que isso ocorra, e é por isso que ele enxerga o
valor essencial da boa relação entre professor e aluno como se ele pertencesse a sua
família, de enxergar o outro com apreço, com atenção, pois se trata da formação de um
cidadão que vai fazer sua história no mundo, então ele precisa estar preparado para fazê-
la e futuramente repetir esse ciclo com outras pessoas.
O professor tem que pensar numa forma de formar o bom cidadão também,
além de formar o músico. Eles não têm conselho em casa, a maioria dos pais
de projeto social que você vai encarar ou estão presos ou tem uma mãe que tá
respondendo processo, é uma realidade... diferente. [...] É saber encarar a
realidade que vai enfatizar ali naquele momento. (Informação verbal)74.
5.7 Concepção do que é ser professor, do que é ensinar e do que é uma aula de
música
Baseado nas respostas anteriores não há dúvida que o professor Gabriel, apesar
de não conhecer os pensamentos pedagógicos de alguns pedagogos influentes,
Ainda comentou que quando instalou o Leão de Judá em uma escola de Felipe
Camarão alguns professores reclamavam que os alunos que participavam do projeto
quando estavam na escola perturbavam a ordem da sala de aula, eram impacientes, não
tinham domínio cognitivo, então o professor Gabriel disse:
Você já pensou em educar seus alunos primeiro antes de ensinar? [...] Não
me responderam, se chatearam comigo e me chamaram de arrogante. Por eu
ter essa observação crítica. [...] Se o aluno é bagunceiro, porque ele é
bagunceiro?” (Informação verbal)76.
73
6. COMENTÁRIOS CONCLUSIVOS
75
e tocar a harmonia sonora dos seres viventes em busca de uma sociedade igualitária, de
uma sociedade justa.
76
REFERÊNCIAS
AGERKOP, Yukio. Revista Brasileira do Caribe, Brasília, Vol. IX, nº18. Jan-Jun
2009, p. 389-400.
DEMO, Pedro. Saber pensar. 7 ed. São Paulo: Cortez: Instituto Paulo Freire, 2011.
FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. Rio de Janeiro. Paz e Terra
LTDA/Civilização Brasileira S.A. 1967/1997.
77
KATER, Carlos. Ação e educação musical no conjunto habitacional Zilah Spósito:
um projeto em extensão. ENCONTRO NACIONAL DA ANPPOM, 10, 1997,
Goiânia. In: Anais… Goiânia: UFGO: ANPPOM, 1998. p. 114-119.
78
SANTOS, E. S. G. Educação musical em projetos sociais: os saberes docentes em
ação. XXIV Congresso da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em
Música – São Paulo – 2014.
79
APÊNDICE
Figura 01: Local de ensaio do Leão de Judá na zona oeste de Natal-RN, Casa de
Cultura do Mestre Manoel Marinheiro.
80
Figura 02: Local onde ocorreu o masterclass de samba.
81
Figura 03: Folha de partitura para o masterclass de samba.
82
Figura 04: Atividades teóricas e práticas do masterclass de samba.
83
Figura 05: Alunos durante o masterclass de samba.
84
Figura 06: Alunos durante o masterclass de samba.
85
Figura 07: O Projeto Social de Música Leão de Judá sendo citado pelo prefeito da
cidade de Natal-RN, ano de 2017.
86
Questionário
6. Como é sua relação com os alunos? Como você acha que deve ser a interação
entre professor-aluno-professor para que haja um bom desempenho no projeto social de
música Leão de Judá e dentro da escola regular?
7. Qual a sua concepção do que é ser professor, do que é ensinar e do que é uma aula
de música?
87
ANEXOS
77
Foto cedida do arquivo pessoal do professor Gabriel Martins.
78
Foto cedida do arquivo pessoal do professor Gabriel Martins.
88
Anexo C: Desfile do dia 07 de setembro de 201779.
79
Foto cedida do arquivo pessoal do professor Gabriel Martins.
89