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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

ESCOLA DE MÚSICA
LICENCIATURA EM MÚSICA

KAROLLEN FRANCYANE GOMES DE ARAÚJO

Educação musical e o samba-reggae em contextos sociais desamparados: um estudo de


caso a partir do projeto social de música Leão de Judá

Natal/RN
Novembro/2017
KAROLLEN FRANCYANE GOMES DE ARAÚJO

Educação musical e o samba-reggae em contextos sociais desamparados: um estudo de


caso a partir do projeto social de música Leão de Judá

Trabalho de Monografia apresentado ao Curso


de Licenciatura em Música da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte – UFRN –
como requisito parcial para obtenção do título
de graduado em Licenciatura em Música.

Orientador: Prof. Me. Valdier Ribeiro Santos


Junior.

Natal/RN
Novembro/2017
KAROLLEN FRANCYANE GOMES DE ARAÚJO

Educação musical e o samba-reggae em contextos sociais desamparados: um estudo de


caso a partir do projeto social de música Leão de Judá

Trabalho de Monografia apresentado ao Curso


de Licenciatura em Música da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte – UFRN –
como requisito parcial para obtenção do título
de graduado em Licenciatura em Música.

Aprovada em: 01/12/2017.

Valdier Ribeiro Santos Junior


Instituto Federal do Rio Grande do Norte
Mestre em Educação Musical pela UFRN
Orientador

Ângela Maria Bezerra do Nascimento


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Especialista em Música pelo IFRN
1º Examinadora

João Gomes da Rocha


Centro de Educação Integrada - CEI
Mestre em Música pela UFRN
2º Examinador

Natal/RN
Novembro/2017
Dedico este trabalho a ONG Atitude e Cooperação como uma singela
homenagem e agradecimento por terem participado de um dos
momentos mais transformadores da minha vida por intermédio da
música. Apesar de não ter sido o tema da minha pesquisa, pois uma
pesquisa sobre a Atitude e Cooperação mereceria mais tempo para
que contemplasse todas os aspectos pesquisados de forma sublime,
tendo em vista o apreço que tenho por essa ONG – peço que
considerem-na como símbolo da minha gratidão e carinho por tudo
que fazem pelas pessoas que passam por vocês. Muito obrigada por
terem me apresentado diversas oportunidades e por me inserirem
nesta pequena parcela do universo musical.
AGRADECIMENTOS

Ao Universo por sua sublime e infinita troca de componentes químicos e


energias que nos fez e nos refaz a cada segundo de nossa existência.
A Natureza por seu esplendor, por nos completar e nos nutrir, apesar da
ingratidão e truculência demasiadamente des-humanas.
Aos meu familiares, em especial à minha mãe Cristiane e ao meu pai Francisco
que tanto contribuíram para o meu crescimento pessoal, mental e educacional,
incentivando, aconselhando e apoiando nas minhas tomadas de decisões e caminhos
percorridos. Obrigada pela paciência e pelo amor!
A ONG Atitude e Cooperação por ter sido o principal transformador social na
minha vida, apresentando-me o universo da música e da educação musical.
Ao meu estimado companheiro e amigo Samuel Aminon (na qual
compartilhamos conhecimentos e afetos recíprocos) que em muito me ajudou,
aconselhou, ensinou e partilhou de belos e epicuristas momentos, tornando-os
inesquecíveis.
Ao Gabriel Martins, juntamente com o Projeto Social de Música Leão de Judá e
alunos por me receberem de bom grado, respeito e carinho no processo da pesquisa.
Ao meu orientador de monografia Valdier Ribeiro que em muito me ajudou, em
qualquer hora do dia. Sua orientação e apoio foram de grande importância. Obrigada
pela confiança.
Ao sempre gentil e paciente Agamenon de Morais por ter me ajudado (e ajudado
diversos discentes) orientando e solucionando empecilhos relativos a graduação.
Gratidão por essa energia justa.
Ao professor Álvaro Barros pela sua enorme empatia, compreensão e paciência
durante a etapa final dessa graduação.
Aos meus colegas da turma de Licenciatura em Música 2014.1 pela união e
agradáveis momentos de aprendizagens.

GRATIDÃO À TODAS E TODOS!


“Sempre recusei os fatalismos. Prefiro a
rebeldia que me confirma como gente e que
jamais deixou de provar que o ser humano é
maior do que os mecanicismos que o
minimizam.”

“[...] É neste sentido que, para mulheres e


homens, estar no mundo necessariamente
significa estar com o mundo e com os
outros. Estar no mundo sem fazer história,
sem por ela ser feito, sem fazer cultura, sem
“tratar” sua própria presença no mundo, sem
sonhar, sem cantar, sem musicar, sem pintar,
sem cuidar da terra, das águas, sem usar as
mãos, sem esculpir, sem filosofar, sem
pontos de vista sobre o mundo, sem fazer
ciência, ou teologia, sem assombro em face
do mistério, sem aprender, sem ensinar, sem
idéias de formação, sem politizar não é
possível.”
(Paulo Freire, 2002).
RESUMO

A educação musical voltada para aspectos transformadores na sociedade brasileira vem


ganhando notoriedade, é por isso que os principais objetivos dos projetos sociais
revelam, em sua maioria, uma natureza educativo-política inclusiva e libertadora,
alcançando a emancipação social de diversos indivíduos. Essas ações educativas e
musicais vêm ofertando novas oportunidades de ascensão social e profissional
alcançando e transformando a perspectiva de vida de diversos indivíduos que vivem em
contextos sociais desamparados. Sendo assim, este presente trabalho tem por objetivo
analisar os fatores – por meio de observações, análises e entrevista semiestruturada com
o idealizador do projeto – pelos quais o ensino de música, em especial o samba-reggae,
vêm atraindo e motivando esses jovens a entrarem no projeto social de música Leão de
Judá, visto que existem outros projetos sociais na região inclusive de educação artística-
musical. O trabalho está alicerçado teoricamente a partir das abordagens reflexivas dos
autores aos quais abordam a temática educativa, musical e social, como: Paulo Freire
(1967; 1997; 2002), Kater (2004), Jusamara Souza (2014), Samuel Araújo (2006),
Pedro Demo (2011), dentre outros. O presente trabalho aponta às conclusões, no sentido
de reflexões acerca da motivação dos alunos em buscarem a participação no projeto.
Nesse sentido, o envolvimento dos jovens vêm aumentando cada vez mais, fazendo com
que o projeto conquiste a admiração da população local e amplie-se para outras zonas
socialmente vulneráveis da capital potiguar.

Palavras-chave: Educação Musical. Projeto social. Transformação social. Samba-


reggae. Inclusão social.
ABSTRACT

Music education focused on transformational aspects in Brazilian society has been


gaining notoriety, which is why the main objectives of social projects reveal, in their
majority, an inclusive and liberating educational-political nature, reaching the social
emancipation of several individuals. These educational and musical actions have been
offering new opportunities for social and professional advancement, reaching and
transforming the life perspective of several individuals who live in homeless social
contexts. Thus, this study aims to analyze the factors - through observations, analyzes
and semi-structured interviews with the project's founder - through which the teaching
of music, especially samba-reggae, has been attracting and motivating these young
people to enter in the social project of music Lion of Judah, since there are other social
projects in the region including artistic-musical education. The work is theoretically
based on the reflective approaches of the authors, which approach the educational,
musical and social themes, such as: Paulo Freire (1987, 1997, 2002), Kater (2004),
Jusamara Souza (2014), Samuel Araújo), Pedro Demo (2011), among others. The
present work points to the conclusions, in the sense of reflections about the motivation
of the students to seek participation in the project. In this sense, the involvement of
young people is more and more, making the project an admiration by the local
population and extending to other socially vulnerable areas of the Potiguar capital.

Keywords: Musical Education. Social project. Social transformation. Samba-reggae.


Social inclusion.
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO........................................................................................................ 11
2. ABORDAGEM TEÓRICA ..................................................................................... 14
2.1 Contexto de ensino Não-formal............................................................................. 15
2.2 O Samba-reggae e seu papel na mudança histórica, social e musical no país... 18
2.3 Delimitação do tema e justificativa: Educação Musical em contextos
socioculturais desassistidos.......................................................................................... 21
3. INSPIRAÇÃO METODOLÓGICA....................................................................... 25
3.1 Minha experiência de vida em um projeto social de música.............................. 25
3.2 O Projeto Social Leão de Judá.............................................................................. 27
3.3 Objetivos.................................................................................................................. 28
3.3.1 Geral...................................................................................................................... 28
3.3.2 Específicos............................................................................................................. 28
3.4 Estudo de caso com método observação direta.....................................................28
3.5 Entrevista Semiestruturada................................................................................... 30
4. ABRANGENDO O CAMPO: PERCEPÇÃO DAS PRÁTICAS......................... 32
4.1 Observação 01: Ensaio geral para a apresentação do desfile de 7 de setembro
de 2017........................................................................................................................... 32
4.2 Observação 02: Ensaio do dia 29 de setembro de 2017....................................... 36
4.3 Observação 03: Masterclass de Samba no dia 03 de outubro de 2017............... 41
4.4 Observação 04: Ensaio do dia 06 de outubro de 2017......................................... 53
4.5 Observação 05: Aula/ensaio com o naipe dos surdos no dia 10 de outubro de
2017................................................................................................................................ 55
4.6 Observação 06: Aula/ensaio com os naipes dos pratos, repiques e caixas no dia
11 de outubro de 2017.................................................................................................. 59
5. ENTREVISTA E ANÁLISES GERAIS................................................................. 61
5.1 Primeiros contatos com a educação musical........................................................ 61
5.2 Primeiros passos: estudar para intervir no contexto social local....................... 63
5.3 As dificuldades enfrentadas durante o processo de consolidação do projeto
social de música Leão de Judá..................................................................................... 65
5.4 Educação inclusiva e libertadora.......................................................................... 67
5.5 Cativando alunos com o samba-reggae................................................................ 68
5.6 A “família Leão de Judá”: a relação afetiva entre professor e
alunos............................................................................................................................. 70
5.7 Concepção do que é ser professor, do que é ensinar e do que é uma aula de
música............................................................................................................................ 71
6. COMENTÁRIO CONCLUSIVOS......................................................................... 74
REFERÊNCIAS....................................................................................................... 77
APÊNDICE............................................................................................................... 80
6.1 Lista de Figuras ..................................................................................................... 80
Figura 01........................................................................................................................ 80
Figura 02........................................................................................................................ 81
Figura 03........................................................................................................................ 82
Figura 04........................................................................................................................ 83
Figura 05........................................................................................................................ 84
Figura 06........................................................................................................................ 85
Figura 07........................................................................................................................ 86
Questionário................................................................................................................... 87
ANEXOS................................................................................................................... 88
Anexo A......................................................................................................................... 88
Anexo B......................................................................................................................... 88
Anexo C......................................................................................................................... 89
1. INTRODUÇÃO

Devido a diversos momentos políticos que, de alguma maneira, excluía e/ou


esquecia de amparar bairros socialmente e economicamente fragilizados, surgiu em
contrapartida, ou como expõe Araújo (2006) indivíduos denominados de sociedades-
contra-o-estado1, assinalando suas ações efetivas e transformações no aspecto social
global destes seres humanos auxiliando-os na tomada de consciência de mundo no
mundo sem excluir o propósito musical, é o que explica Souza (2014) parafraseando
apud Lopes (2012):
A emergência desse campo de ação e de pesquisa está vinculada a um desejo
de transformação social por meio de projetos socioeducativos na área da
música. No entanto, sem uma análise e uma discussão político-pedagógica
dos projetos, os resultados podem ser avaliados como empreendimentos (ou
experiências) “assistencialistas”, “alienantes”, “neoliberais”. Também existe
o risco de não se poder avaliar objetivos abrangentes de uma formação para a
“cidadania”, a “conscientização política”, a “democratização da educação”
(Lopes, 2012), como muitos projetos propõem. (SOUZA, 2014. P. 17).

O bairro da zona oeste do Natal, Felipe Camarão tem cerca de 663 mil
habitantes2 e também possui um dos índices mais altos de desestruturação social e
econômica da capital do Estado. Por consequência destes fatores a população, em
especial jovens moradores do local pesquisado, se encontram em situações fragilizadas
no aspecto social refletindo por conseguinte no aspecto humano desses jovens.
Com isso surgiu-se a necessidade – muitas vezes emergencial – de criação e
expansão de diferentes contextos sociais dentro da práxis político-pedagógico-musical.
Neste trabalho especificamente abordarei o contexto de ensino não-formal que são
comumente praticados, em sua maioria, em projetos sociais de música, Kleber (2014, p.
27) explica que a disseminação deste tipo de configuração de ensino começou a surgir
em meados da década de 90 no Brasil “[...] ligados às raízes sociais e culturais das
práticas assistenciais e educativas dos movimentos sociais organizados [...]” muitos
desses projetos estão diretamente ou indiretamente ligados a instituições privadas, ou
recebem apoio assistencial de escolas (oferecendo espaços para a realização do trabalho
social), ou partem de alguma iniciativa dos próprios cidadãos que vivem nos bairros

1
Segundo Samuel Araújo (2006) inspirado por Pierre Clastres (2004) argumenta que “[...] a violência
social contra o Outro é uma permanente possibilidade, como reafirmação do desejo de independência e
manutenção de um modo de vida autárquico e relativamente autosuficiente.”. Ou seja, sociedades-
contra-o-estado são indivíduos que percebem a realidade de mundo em que vivem ou observam e tem a
iniciativa de se contrapor ás falhas do governo no quesito suporte à sociedade.
2
Censo demográfico de 2009.

11
afetados ou próximos a estes e que muitas vezes percebem a injustiça social dos
ambientes por onde passam e vivem, como é de fato o caso do professor Gabriel que
mora no bairro das Rocas, um dos bairros mais desassistidos da capital potiguar.
Com isso teve o arrojo de dar vida ao projeto social de música Leão de Judá com
a intenção de mudar a perspectiva de vida e oferecer meios alternativos de escolha para
os indivíduos que se encaixam neste contexto social. O Leão de Judá posteriormente
viria a ampliar-se para outros bairros próximos que compartilhavam de experiências
semelhantes na capital do estado do RN, esta atitude faz-se lembrar do que Freire tanto
falava acerca da educação libertadora, parafraseado por Linhares (2008).

Para Freire, uma educação popular e verdadeiramente libertadora, se constrói


a partir de uma educação problematizadora, alicerçada em perguntas
provocadoras de novas respostas, no diálogo crítico, libertador, na tomada de
consciência de sua condição existencial. Tal investigação Freire chamou de
“universo temático”, um conjunto de “temas geradores” sobre os níveis de
percepção da realidade do oprimido e de sua visão de mundo sobre as
relações homens-mundo e homens-homens para uma posterior discussão de
criação e recriação. (LINHARES, 2008. P. 02).

É deveras um fato que a população (em sua maioria) enxergam nesses bairros
seres estereotipados, isto é, pensam que qualquer indivíduo proveniente desses lugares
socialmente fragilizado são indivíduos “perdidos” ou que necessariamente cairão no
crime, no tráfico, no uso desmedido e inconsequente de drogas, dentre outros problemas
que frequentemente abarcam estes lugares abandonados pelo poder público e acabam
passando uma imagem injustamente negativa para o resto da população. Tomando como
relação comparativa um trecho da pesquisa de Araújo (2006) vê-se que a situação da
qual citei anteriormente é frequente no comportamento e forma de pensar da maioria
dos brasileiros, por exemplo:

(...)o grupo Musicultura trabalha com dois conceitos básicos: o primeiro, de


que os jovens não estão “perdidos” e, portanto, não necessitam serem
“salvos” de coisa alguma, e o segundo é a própria dinâmica do projeto que
parte da concepção freireana de produção dialógica do conhecimento. Ou
seja, a idéia central do projeto é o foco na participação efetiva da juventude
no processo de criação e formulação de atividades de pesquisa, manifestando
a liberdade de opinião, sem hierarquias e privilegiando, dessa forma, a
participação política na própria periferia e, de uma maneira geral, na
sociedade. (ARAÚJO, 2006. P. 29-30).

No entanto, vale frisar que este tipo de pensamento não deve se sobrepor às
diversas realidades encontradas nestes espaços, ou seja, nem todos eles necessariamente
estarão à mercê desses infortúnios. Na maioria das vezes a falta de opções e
oportunidades os levam a escolher o caminho “mais popular e com retorno mais
12
rápido”, bem como o círculo social em que vivem influenciam nas tomadas de decisões
desses indivíduos, especialmente os jovens. Concordando com o que Araújo (2006)
exemplifica, um dos principais objetivos desses projetos sociais

[...] têm como objetivo principal criar para os jovens alternativas aos
caminhos da marginalidade. Normalmente, esses projetos atuam nas áreas
favelizadas da cidade, já que esses locais, supostamente excluídos da
sociedade formal são vistos como o grande foco de ações criminosas.
(ARAÚJO, 2006. P. 16).

Sendo assim, esta pesquisa tem como base analisar - por meio de observações e
entrevista semiestruturada com o idealizador do projeto social de música Leão de Judá -
a importância de inserir novos meios pedagógico-sociais em ambientes desestruturados
pelos quais poderão ofertar novas oportunidades de escolha no contexto social desses
indivíduos, bem como os processos pedagógicos-musicais que tiveram sua função
transformativa de grande valia na vida educativa e social dessas pessoas, mudando suas
respectivas formas de enxergar o mundo, é o que afirma Freire (1996):

Por isso mesmo pensar certo coloca ao professor ou, mais amplamente, à
escola, o dever de não só respeitar os saberes com que os educandos,
sobretudo os das classes populares, chegam a ela – saberes socialmente
construídos na prática comunitária -, mas também, como há mais de trinta
anos venho sugerindo, discutir com os alunos a razão de ser de alguns desses
saberes em relação com o ensino dos conteúdos. [...] Por que não discutir
com os alunos a realidade concreta a que se deva associar a disciplina cujo
conteúdo se ensina, a realidade agressiva em que a violência é a constante e a
convivência das pessoas é muito maior com a morte do que com a vida? Por
que não estabelecer uma necessária “intimidade” entre os saberes curriculares
fundamentais aos alunos e a experiência social que eles têm como
indivíduos? Por que não discutir as implicações políticas e ideológicas de um
tal descaso dos dominantes pelas áreas pobres da cidade? A ética de classe
embutida neste descaso? Porque, dirá um educador reacionariamente
pragmático, a escola não tem nada que ver com isso. A escola não é partido.
Ela tem que ensinar os conteúdos, transferi-los aos alunos. Aprendidos, estes
operam por si mesmos. (FREIRE, 1996. P. 33-34)

Abordarei também os motivos pelos quais esses jovens se sentiram motivados a


escolher e a inserirem-se no projeto social de música Leão de Judá, visto que existem
outros projetos sociais na área inclusive de educação artística-musical, no entanto a
procura e demanda pelo Leão de Judá tem aumentado cada vez mais fazendo com que o
projeto se estenda para outras zonas da cidade. Até a conclusão desta pesquisa o projeto
foi estabelecido respectivamente nas zonas leste, oeste e norte da cidade, verificando
suas ações influenciadoras no processo de conscientização político-pedagógico-musical
nos principais bairros desamparados da capital potiguar.

13
2. ABORDAGEM TEÓRICA

Frente às diversas transformações no âmbito social, provocadas muitas vezes


pela ausência ou falta de estrutura que contemple as necessidades relacionadas com a
participação do educador com seus educandos é que surgiu a necessidade de criar e
expandir contextos sociais não-formais, como é o caso dos projetos sociais que têm
como principal objetivo minimizar as lacunas deixadas pela ausência de investimentos
governamentais em diversos espaços públicos educacionais.
Os projetos sociais geralmente são pensados e propostos para solucionar um
problema ou uma necessidade social e seus objetivos são definidos em
função de “um problema, oportunidade ou interesse de uma pessoa, grupo ou
organização”. (SOUZA, 2014. P. 11 apud MAXIMINIANO, 1997. P. 20).

É por essa razão central que o objetivo dos projetos sociais revelam em sua
maioria uma natureza educativa política, inclusiva e libertadora, como afirmam Freire
(1982); Demo (2011); Kater (1997;2004); Souza (2004), portanto, a emergência desses
campos de ações estão essencialmente ligados ao desejo de transgressão social e
educacional por meio de projetos socioeducativos baseados nesse caso com a
participação efetiva da educação musical. A consciência desses fatores levam alguns
indivíduos a tomarem algumas iniciativas para intervenção no fazer histórico da
sociedade em que vivem e/ou observam.

A consciência é essa misteriosa e contraditória capacidade que tem o homem


de distanciar-se das coisas para fazê-las presentes, imediatamente presentes.
É a presença que tem o poder de presentifìcar: não é representação, mas
condição de apresentação. É um comportar-se do homem frente ao meio que
o envolve, transformando-o em mundo humano. Absorvido pelo meio
natural, responde a estímulos; e o coito de suas respostas mede-se por sua
maior ou menor adaptação: naturaliza-se. Despegado de seu meio vital, por
virtude da consciência, enfrenta as coisas objetivando-as, e enfrenta-se com
elas, que deixam de ser simples estímulos, pura se tornarem desafios. O meio
envolvente não o fecha, limita-o – o que supõe a consciência do além-limite.
Por isto, porque se projeta intencionalmente além do limite que tenta encerrá-
la, pode a consciência desprender-se dele, liberar-se e objetivar,
transubstanciando o meio físico em mundo humano. (FREIRE, 1967. P. 07).

A música, como sabemos, a partir da análise antropológica da relação entre a


cultura e sua música desenvolvida a partir das experiências empíricas interligadas ao
contexto social do meio na qual uma sociedade habita é diretamente relacionada com a
forma de interação social de diversas comunidades. Por isso os projetos sociais de
música, para atrair jovens em situação de risco, utilizam determinados gêneros musicais
como objeto de atração, alcançando indivíduos – em especial os jovens neste contexto

14
de trabalho proposto – para juntarem-se ao objetivo primordial da educação: a igualdade
social.

A insersão da música nas várias atividades sociais e os significados múltiplos


que decorrem desta interação constituem importante plano de análise na
antropologia da música. A relação entre som, imagem e movimento é
enfocada de forma primordial neste tipo de pesquisa. Aqui música não é
entendida apenas a partir de seus elementos estéticos mas, em primeiro lugar,
como uma forma de comunicação que possui, semelhante a qualquer tipo de
linguagem, seus próprios códigos. Música é manifestação de crenças, de
identidades, é universal quanto à sua existência e importância em qualquer
que seja a sociedade. Ao mesmo tempo é singular e de difícil tradução,
quando apresentada fora de seu contexto ou de seu meio cultural. (PINTO,
2001. P. 223).

A vulnerabilidade social tem como principal reflexo o desamparo proveniente do


descaso e do abandono governamental, provocando distúrbios que poderiam ser
evitados nesses setores da sociedade. Não cabe somente ao educador trazer novas
perspectivas de mudança nesses espaços, deve partir primeiramente dos governantes
com devidos investimentos e amparo aos bairros fragilizados e à educação pública de
qualidade em todo território brasileiro assim como está escrito no capítulo 3 da
Constituição Federal de 1988. Segundo Freire (2002) não há como o professor continuar
lutando em defesa dos direitos dos menos favorecidos se não há o mínimo de apoio
governamental, tanto no aspecto material quanto imaterial para a sua consolidação.

[...] minha presença no mundo não é a de quem a ele se adapta mas a de


quem nele se insere. É a posição de quem luta para não ser apenas objeto,
mas sujeito também da História. [...] O professor tem o dever de dar suas
aulas, de realizar sua tarefa docente. Para isso, precisa de condições
favoráveis, higiênicas, espaciais, estéticas, sem as quais se move menos
eficazmente no espaço pedagógico. Às vezes, as condições são de tal maneira
perversas que nem se move. O desrespeito a este espaço é uma ofensa aos
educandos, aos educadores e à prática pedagógica. (FREIRE, 2002. P. 60-
73).

2.1 Contexto de ensino: Não-formal

Frente aos diversos problemas sociais provocados por desequilíbrios


governamentais bem como a ausência de amparo aos diversos bairros marginalizados3
foi-se necessário a criação e desenvolvimento de um contexto de ensino que percebesse
esses desamparos reparando o aspecto social destes grupos fragilizados e reintegrando-
os com o auxílio da educação em contra turno escolar - como aponta Silva (2013, p. 49)

3
Para a sociologia o termo marginal refere-se a pessoa ou grupo social separado ou até mesmo excluído
da sociedade por influência do abandono político, ou seja, para o governo, o marginalizado não é
tratado como objetivo das propostas governamentais brasileiras.
15
“Independente da terminologia adotada é possível encontrar na literatura acadêmica,
diferentes formas de abordar o tema (educação não-formal, apoio socioeducativo,
contraturno escolar, contraturno social, atividade no contraturno, atividades
complementares, entre outras.)” - ou como agente transformador na construção do ser
humano e no pleno direito a educação.

Com propostas de cunho social, os projetos atuam junto às comunidades


como agente propiciador do desenvolvimento individual e sociocultural,
fazendo assim, parte do processo de educação integral do homem e,
possibilitando a conquista da cidadania desses indivíduos, como pessoas
críticas e participativas inseridas na sociedade. (SANTOS. 2007. P. 02).

Dessa forma, criou-se o que chamamos de educação não-formal que como expõe
Vásquez (1998 p. 02) “Educação não-formal [...] é toda atividade organizada,
sistemática, educativa, realizada fora da estrutura do sistema oficial, para facilitar
determinadas classes de aprendizagem e subgrupos particulares da população, tanto de
adultos como crianças.”4. Seguindo esta linha de pensamento, a escola não-formal
desempenha um papel extremamente importante para a educação e para a sociedade,
principalmente em espaços sociais desestruturados e/ou vulneráveis.
Nesses aspectos, segundo Tozzeto (2011, p. 04) “A educação não formal é
aquela que acontece fora das instituições educativas formais, porém apresenta certo grau
de intencionalidade e sistematização, surgindo para suprir essa lacuna.”. Para
compreender melhor o que significa o conceito de educação não-formal trago o próprio
exemplo do projeto social de música Leão de Judá na qual foi criado a partir da
motivação e interesse de um jovem músico (idealizador e professor do P.S.M.L.J5) e
morador do bairro das Rocas em Natal-RN que ansiava pela mudança no panorama
social em que habitava, tomando a iniciativa de no próprio quintal da casa em que
residia construir algumas salas de aula com o intuito de resgatar indivíduos que já não
enxergavam opções que lhes contemplassem, e em frequentes casos também não lhes
eram apresentadas oportunidades que lhes libertasse das amarras e obstáculos sociais
tão presentes em muitos bairros de Natal-RN como as Rocas e Felipe Camarão. É o que
exemplifica Gohn, segunda a autora

4
Original em espanhol: “Educación no formal [...] es toda actividad organizada, sistemática, educativa,
realizada fuera del marco del sistema oficial, para facilitar determinadas clases de aprendizaje a
subgrupos particulares de la población, tanto adultos como niños.”.
5
Em alguns momentos durante o transcorrer do texto, utilizarei essa sigla para me referir ao Projeto
Social de Música Leão de Judá.
16
[...] há metodologias [...] que precisam ser desenvolvidas, codificadas, ainda
que com alto grau de provisoriedade, pois o dinamismo, a mudança, o
movimento da realidade, segundo o desenrolar dos acontecimentos, são as
marcas que singularizam a educação não formal. (GOHN, 2010. P. 47).

Em vista disso, a ação e consequente participação educativo-política de projetos


sociais contextualizados em ensino não-formal é de grande relevância para o
desencadear metodológico, do resultado empírico do fazer musical e de suas práticas
pedagógicas:

[...] tendo em vista a atual realidade educativa, cultural e política de nosso


país, consideramos relevante a iniciativa de propostas e ações que
transcendem os limites do contexto escolar, contribuindo, dessa forma, para a
recuperação da ação educativa e cultural dos indivíduos, tornando-os
cidadãos críticos e participativos na sociedade. (SANTOS, 2007. P. 05).

Vemos que esse tipo de configuração de ensino (não-formal) complementa


participativamente com outros contextos de ensino. Sua finalidade se mostra justamente
o que se tem comentado e verificado durante esses tempos de intervenções sociais pela
educação democrática, é o que afirma Gohn:

A educação não- formal capacita os indivíduos a se tornarem cidadãos do


mundo, no mundo. Sua finalidade é abrir janelas de conhecimento sobre o
mundo que circunda os indivíduos e suas relações sociais. Seus objetivos não
são dados a priori, eles se constróem no processo interativo, gerando um
processo educativo. Um modo de educar surge como resultado do processo
voltado para os interesses e as necessidades que dele participa. A construção
de relações sociais baseadas em princípios de igualdade e justiça social,
quando presentes num dado grupo social, fortalece o exercício da cidadania.
A transmissão de informação e formação política e sociocultural é uma meta
na educação não formal. Ela prepara os cidadãos, educa o ser humano para a
civilidade, em oposição à barbárie, ao egoísmo, individualismo etc. (GOHN,
2006. P. 29-30).

Assim sendo, a educação não-formal não pretende, de forma alguma tomar o


lugar da educação formal, aliás, ela existe para complementar e/ou atuar mais
efetivamente como agente transformador do meio social marginalizado do alunado
como verdadeiros cidadãos do fazer histórico na sociedade, ajudando a construir seres
humanos mais conscientes, integralizados e participativos nos setores sociais que lhes
são subentendidos, pois sua inserção se dá em lugares “esquecidos” pelo resto da
população regional, Gohn (2006, p. 37) comenta que “Não basta um programa, um
plano, ou mais um conselho. É preciso reconhecer a existência e a importância da
educação não-formal no processo de construção de uma sociedade sem injustiças,
democrática.”. Ou seja, a educação como um todo, deve complementar-se, não

17
importando o contexto de ensino estabelecido e/ou exercido nesses ambientes
socioculturais.

2.2 O Samba-reggae e seu papel na mudança histórica, social e musical no país

Antes de tudo é importante iniciarmos esse tópico falando sobre os aspectos e


influências do gênero na parcela da sociedade pertencente a alguma minoria
desamparada, logo, será de suma importância falar sobre a sua história e seu papel
político-social assim como conhecer brevemente como este gênero se consolidou em
seu aspecto social e musical como conhecemos até aos dias atuais, servindo como
inspiração para o ativismo político – principalmente pela reafirmação da cultura/música
africana - de diversos outros grupos sociais, chegando até a outros estados brasileiros
que compactuam da mesma situação social fragilizada. Logo, não seria diferente no
projeto social de música Leão de Judá, levando em consideração que o samba-reggae é
um gênero muito conhecido e apreciado pelos moradores da região pesquisada.
O samba-reggae é um gênero musical que se desenvolveu na cidade de Salvador
– BA por iniciativa - recebendo aprovação da maioria dos leigos e dos estudiosos do
assunto - do maestro Neguinho do Samba6 em meados da década de 80 e 90, é o que
explica Guerreiro (2010, p. 21):

Em 88, a mídia anunciava que em Salvador os blocos afro haviam inventado


o samba-reggae, um novo ritmo que mesclava samba duro com reggae
jamaicano, transformando a música em bandeira política com força suficiente
para barganhar cidadania para o negro baiano, chamando atenção para a
vitalidade da cultura negra na Bahia. (GUERREIRO, 2010. P. 21).

Como o próprio nome insinua, o samba-reggae recebeu algumas importantes


influências musicais de gêneros como o samba duro (variante do samba de roda); o
reggae jamaicano; o funk e o soul. Alguns autores estudiosos do tema como Guerreiro
(2010); Agerkop (2009) também explicam que o samba-reggae recebeu algumas
influências sutis da música latina, tais como o merengue, a salsa e algumas mais
facilmente notadas no gênero como é o caso da influência musical de matriz africana
como o candomblé, este por sua vez é bastante utilizado em diversos grupos de samba-
reggae. Essas influências musicais, especialmente no que diz respeito ao Caribe são,
segundo Agerkop (2009, p. 391) “[...] geralmente adquiridos através de discos

6
Antônio Luís Alves de Souza, fundador e um dos diretores do grupo Olodum e da Associação Educativa
e Cultural Didá, ambos com sede no Pelourinho, em Salvador.
18
comerciais ou através de grupos musicais de alguns países do Caribe, entre outros
Jamaica e Cuba, que visitam Salvador de vez em quando.”
De acordo com os mesmos autores, o samba-reggae está mais centrado na
música africana do que na música caribenha e surgiu a partir da intenção de protesto e
do desejo de assumirem-se politicamente e musicalmente, disseminando e empoderando
a cultura afro-latina, começando pelos moradores do estado da Bahia que se viram
motivados por outros protestos de povos negros que vinham acontecendo em outros
países, é o que aponta Agerkop:

Deve-se lembrar que o reggae é um fenômeno sócio-musical de proporção


global sendo adotado como estilo de vida e forma musical por jovens em
diversas partes do mundo. [...]Seria melhor afirmar que os blocos afros, nos
seus discursos, se referem ao pan-africanismo, aos movimentos de resistência
cultural na África, dos Estados Unidos e no Caribe (em especial os discursos
do Bob Marley e os rastas). (AGERKOP, 2009. P. 392-393).

No entanto, o mesmo autor afirma que apesar das distâncias geográficas e das
diferenças linguísticas, além do aspecto sócio-musical que separam o Caribe da Bahia,
seus habitantes viram na cultura caribenha um estímulo para se auto afirmarem
socialmente e politicamente, Agerkop (2009, p. 393) complementa que “Apesar disto,
existem grupos afrodescendentes na cidade de Salvador que sim utilizam elementos da
cultura rasta7, as suas vestimentas, como também os discursos de Bob Marley, como
marcadores de identidade”, portanto:

A cultura do reggae é conhecida e apreciada através de discos comerciais,


vídeos e às vezes via livros e textos, como também são organizadas
apresentações de grupos musicais da Jamaica (e de poucas outras ilhas do
Caribe). Nos últimos quinze anos, acrescentou-se o uso de Internet,
possibilitando o acesso a vídeos, músicas em formato mp3/mp4 e textos.
(AGERKOP, 2009 P. 393-394).

Quando investigamos musicalmente acerca das fusões musicais que o samba-


reggae recebeu durante essas décadas, poderemos notar que

A fusão de universos rítmicos do Caribe e do Brasil pode também ter como


fonte os ritmos do candomblé. O ijexá, ritmo ioruba, percutido com as mãos
nos atabaques rum, rumpi e lé e tocado para todos os orixás, é talvez o ritmo
mais popular do candomblé, por ser bastante veiculado nos espações
profanos. Segundo a leitura etnomusicológica da percussionista alemã
Christiane Gerischer, o ijexá (já utilizado pelo bloco Ilê Aiyê) contém um
contratempo semelhante àquele que caracteriza a batida do reggae.
Considerando o trânsito entre o contexto ritual e a música popular (através
dos alabês, que sempre marcaram presença no meio percussivo popular), é
possível afirmar que o diálogo entre o samba baiano e o reggae jamaicano

7
A ideologia e o termo rastafári é baseada no movimento religioso e político iniciado
na Jamaica nos anos 30.
19
assentou-se em bases mais sólidas, fincadas em células rítmicas coincidentes,
do que até então se vislumbrava. (GUERREIRO, 2010. P. 58).

Segundo a autora através do relato de um antigo integrante saxofonista da banda


Olodum chamado Bira Reis (que hoje possui um ateliê de pesquisa musical) fala que ele
propôs a experiência de juntar dois grupos nas quais um tocava samba duro e o outro o
reggae jamaicano, chegando a concluir que esses gêneros realmente foram os principais
influenciadores na construção musical do samba-reggae, para ele, parafraseando
segundo a citação da autora:
[...] o mestre Neguinho do Samba utilizou a célula básica do reggae (que
determina um contratempo), a clave cubana e uma outra clave invertida, que
é a do candomblé de Angola. Seguindo este raciocínio, a célula rítmica do
samba-reggae é uma combinação de células já existentes no candomblé, nos
sambas urbanos, na salsa e no reggae, então rearranjadas. Segundo João
Jorge, diretor do Olodum: “O reggae deu a modernidade que os jovens
negros baianos estavam procurando. A tradição apenas não nos contentava
mais.”. (GUERREIRO, 2010. P. 58).

Como existem poucos estudos acerca do tema, é comum constatarmos que não
existe até o presente momento, um consenso que aponte a verdadeira origem do samba-
reggae, devido justamente às várias influências que o gênero recebeu durante suas
décadas de existência. No entanto, vemos comumente que a maioria dos estudos
apontam que o maestro Neguinho do Samba foi um dos primeiros percursores – muitas
vezes até apontado como o criador - do gênero, segundo Guerreiro (2010, p. 58) “Um
dos primeiros mestres da bateria do Ilê Aiyê, por exemplo, Neguinho do Samba, deixa o
bloco matriz em 1983 para atuar como mestre da equipe percussiva do Olodum, onde
conquistou o status de criador do samba-reggae.”. Outros grupos também afirmaram
como sendo os criadores do gênero, é o que especifica a autora:

O consenso em torno do nome de Neguinho do Samba se deu quando a mídia


passou a veicular o samba-reggae, apontando-o como criador do estilo, em
1987. Até então, Olodum, Muzenza e Malê Debalê disputaram a primazia da
concepção do ritmo, já que o Ilê Aiyê mesclava samba com ijexá e não com
reggae. Alguns personagens do meio musical de Salvador conferem ao
Muzenza o papel de criador do samba-reggae, pela relação simbólica que ele
estabelece com a Jamaica. Outros conferem ao compositor do Malê Debalê,
Djalma Luz, a autoria do primeiro samba-reggae feito na Bahia, chamado
“Coração Rastafari”, veiculado em 1981. No entanto, esta canção não
garantiu ao Malê Debalê o status de criador do ritmo, que foi creditado ao
bloco afro Olodum. (GUERREIRO, 2010. P. 58-60).

Mas os créditos acabaram ficando para o maestro Neguinho do Samba porque,


segundo Guerreiro (2010) contribuiu para a renovação da rítmica negra, modificando
instrumentos percussivos, bem como a forma de tocar, além de mudar o papel do mestre

20
de bateria utilizando timbales ao invés do uso do apito. Segundo Guerreiro (2010)
existem pelo menos 3 pistas principais que apontam a origem do samba-reggae, são
elas:

A primeira delas é a própria transformação do meio musical de Salvador, ao


longo de um século, através das recriações estéticas das manifestações
carnavalescas negras. [...] Um olhar retrospectivo mostra que a estética
musical das organizações afro-carnavalescas – batuques, clubes, afoxés,
escolas de samba, blocos de índio, blocos afro – é resultado de migrações e
mesclas tecidas na ponte que liga o candomblé aos sambas urbanos. A
renovação de sonoridades promovida pelo samba-reggae também está
pautada no deslocamento destas matrizes para o espaço profano do carnaval.
[...] a segunda pista são as referências internacionais, que vêm dos Estados
Unidos, da África e da Jamaica e se somam às informações produzidas em
Salvador. Esse processo, que está na base da invenção do ritmo, representa a
formação de uma “negritude soteropolitana”, que se desenhou em meados
dos anos 70 e decorrer da década de 80. O movimento de negritude origina-se
na tomada de consciência do negro, gerada nos vários países que abrigaram a
diáspora africana. Focalizar o panorama internacional do movimento de
negritude é fundamental para compreender o sentido e os trunfos da nova
musicalidade afro-baiana, que vai ser alimentada por múltiplas referências.”
[...] “A terceira pista é a estratégia política dos grupos negros que se
organizaram como representantes de um segmento estético do movimento
negro no Brasil para mostrar que “a arma é musical”. Assimilando as novas
referências jamaicanas, americanas e africanas, veiculadas pela mídia, e ao
mesmo tempo voltando-se para o próprio umbigo, os negros-mestiços
encabeçaram o movimento de negritude local que se desenha com a formação
dos blocos afro, espaços próprios de negros-mestiços no seio dos quais a
mistura de matrizes rítmicas se alia a um discurso político. Neste contexto o
novo ritmo vai ganhar a denominação de samba-reggae, que é o principal
capital simbólico dos blocos afro, na medida em que se constitui num estilo
musical próprio, capaz de veicular uma identidade afro-baiana, que luta, por
vias estéticas, pela valorização do negro. (GUERREIRO, 2010. P. 65).

Com isso vemos que a criação desse gênero não somente teve sua importância
no cenário musical brasileiro mas também teve sua função protagonista no meio
político, social e cultural em diversas áreas do país exercendo práticas ativistas de
extrema importância nas camadas sociais mais desamparadas pelo sistema político
brasileiro.

2.3 Delimitação do tema e justificativa: Educação Musical em contextos


socioculturais desassistidos

Como podemos perceber, durante as últimas décadas, os projetos sociais em


geral vêm se espalhando por todo território brasileiro, essa ampliação muitas vezes
reflete a carência de qualidade no sistema de ensino público brasileiro, expondo suas
precariedades e falta de investimentos básicos nesses setores. Porém, como expõe
minuciosamente o capítulo 3 da constituição federal em seu artigo 205, constatamos que
21
a educação de qualidade, bem como seus objetivos se encontram apenas no papel,
deixando de lado a parte que mais importa: a prática. A constituição sugere que:

A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e


incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho. (BRASIL, 1988, p. 160).

Seria dessa forma que a população brasileira deveria usufruir dos princípios
democráticos, assegurando-se de uma educação de qualidade, bem como saúde,
segurança e assistência social, porém vivemos em uma realidade oposta a constituição
quando diz respeito a estes aspectos.
Por tais justificativas os projetos sociais vêm denotando seu caráter
complementador na construção do saber da população, sobretudo os que residem em
bairros que comumente ficam à margem da sociedade, ou seja, lugares ignorados e
desamparados pelos governantes brasileiros, concordando com Santos (2014) a
realidade

[...] em muitos locais periféricos, como nas grandes comunidades, moradores


em área de risco, vivem à mercê dessas necessidades básicas. É na busca por
estes bens, que desde as últimas décadas do século XX os projetos sociais
vêm se expandindo rapidamente, dando uma nova roupagem às estruturas
sociais. Neste contexto, configuram-se como mais um espaço de luta pela
promoção de emancipação, participação e acesso aos direitos de todo
cidadão. (SANTOS, 2014. P. 02).

Em contraposição, a pedagogia libertadora foi a base da construção e ativismo


político-educacional que movimentou e movimenta a maioria dos projetos sociais até os
dias atuais. Seus principais objetivos comunicam-se em torno da valorização da escola
pública, do ensino democrático, na geração de autonomia e criticidade, e que sobretudo
houvesse uma, segundo Freire (1967/1997 p. 23) “[...] pedagogia que elimina pela raiz
as relações autoritárias, onde não há “escola” nem “professor”, mas círculos de cultura e
um coordenador cuja tarefa essencial é o diálogo.”, ou seja, esse círculo de cultura e
coordenador fossem capazes transformarem-se tanto nos aspectos sociais quanto
educacionais na construção do ser.
Estes fenômenos reforçam mais uma vez o motivo pelo qual os projetos sociais
principalmente aqueles vinculados às artes e ao esporte tem alicerçado diversas
motivações transformadoras do ser e do estar sendo no âmbito da “consciência de
mundo no mundo” (segundo Freire, 1967) desses diversos indivíduos em situação de
vulnerabilidade social.

22
As artes, juntamente com o esporte, se apresentam como base de
argumentação nas propostas socioeducativas voltadas para o exercício da
cidadania, dirigidas principalmente à camada mais pobre da textura social. A
música vem se constituindo como um dos fortes eixos dessas propostas, o
que tem demandado estudos de aprofundamento sobre o processo
pedagógico-musical nesses contextos. (KLEBER, 2014. P. 27).

A partir de alguns fatores acima apresentados surgiu a motivação para a


pesquisa, observação e análises dos processos sócio-pedagógicos-musicais realizados
dentro de um projeto social de música chamado Projeto de Música Leão de Judá, que
recebe pessoas de todas as faixas etárias residentes dos bairros das Rocas e Felipe
Camarão – bairros estes, socialmente vulneráveis – em especial Felipe Camarão, de
onde tive a oportunidade e o conforto geográfico de estar presente como
observadora/pesquisadora.
A curiosidade epistemológica8 foi um dos principais fatores motivacionais que
determinaram a escolha deste projeto social de música, pois almejava conhecer e
analisar os processos sócio-pedagógicos-musicais efetuada neste espaço de ensino-
aprendizagem, enfatizando as premissas teóricas que interconectam com a dinâmica do
contexto aqui estudado, além de verificar a produção e compartilhamento de saberes no
contexto observado.
A autora Kleber (2014) explica que a sociedade tem 3 setores dentre os quais os
projetos sociais se encaixam no Terceiro Setor, sobre estes a autora fala.

De forma geral, o Primeiro Setor é entendido como a dimensão


governamental, a qual é responsável pelas questões sociais, saúde, educação
e seguridade. O Segundo Setor engloba empresas de caráter privado, cujo
objetivo é o lucro financeiro. Com a ineficiência do Estado, o Terceiro Setor
é a dimensão institucional e política que se volta para questões sociais,
constituído por organizações sem fins lucrativos e não governamentais que
têm como objetivo gerar serviços de caráter público para a sociedade civil.
(KLEBER, 2014. P.32).

E que, portanto as dimensões do Terceiro Setor apresentam-se mais


frequentemente na sociedade como

[...] a dimensão da sociedade em que proliferam os movimentos sociais


organizados, as ONGs e os projetos sociais. Observa-se uma significativa
oferta de práticas musicais ligadas a propostas educativas para jovens
adolescentes em situação de exclusão ou risco social. (KLEBER, 2014. P.
32).

8
Segundo Paulo Freire (1996, p. 35) explica que a curiosidade epistemológica (curiosidade científica)
evolui da curiosidade espontânea (curiosidade infantil), que é “a curiosidade como inquietação
indagadora, como inclinação ao desvelamento de algo, como pergunta verbalizada ou não, como
procura de esclarecimento, como sinal de atenção que sugere alerta faz parte integrante do fenômeno
vital.”.
23
No Projeto de Música Leão de Judá não seria diferente visto que se encaixa no
Terceiro Setor, por isso ao analisar mais intrinsecamente o processo sócio-pedagógico-
musical realizado pelo professor Gabriel com auxílio também do monitor Bruno (ou
Bruninho como é conhecido), pude captar as variadas interpretações que me eram
oferecidas e que eram oferecidas aos indivíduos do bairro, que acabaram sendo atraídos
para compor o projeto social de música e com ela enxergando novas perspectivas de
visão de mundo, de sociedade e de música.

No caso da educação musical temos tanto a tarefa de desenvolvimento da


musicalidade e da formação musical quanto o aprimoramento humano dos
cidadãos pela música. Por outro lado, ao destinar-se a indivíduos em situação
de risco pessoal e social, localizados na periferia dos benefícios oferecidos
pela sociedade – e em níveis acentuados de distanciamento senão exclusão –
a educação musical representa uma alternativa prazerosa e especialmente
eficaz de desenvolvimento individual e de socialização. (KATER, 2004. P.
46).

24
3. INSPIRAÇÃO METODOLÓGICA
3.1 Minha experiência de vida em um projeto social de música

Iniciei meus conhecimentos sobre o universo educativo-musical já bem tarde se


levamos em comparação a maioria dos outros estudantes de música quando lhes
apresentam o universo educativo-musical. Aos 20 anos de idade pude vivenciar uma das
experiências mais transformadoras em minha construção como ser ativo e participativo
na sociedade, evidenciando mais uma vez as influências transformadoras desses
espaços. O projeto social que me possibilitou enxergar novas oportunidades chama-se
Atitude e Cooperação e se localiza no bairro (também marginalizado) do Bom Pastor.
Quando fui moradora do bairro o projeto social ainda não existia, só em meados de
2006 ele foi estabelecido na Escola Estadual Jean Mermoz e ainda não se chamava
Atitude e Cooperação.

No entanto, quando soube do projeto social resolvi frequentá-lo motivada pelo


meu pai e pela curiosidade de adquirir saberes musicais. Atraída pelo timbre do
violoncelo (que nunca tinha conhecido e visto de perto) o instrumento despertou em
mim a vontade de - apesar da distância de cerca de 22 quilômetros e meio entre
Parnamirim zona sul (onde passei a morar) e o bairro Bom Pastor, zona oeste da capital
potiguar – iniciar meus estudos musicais na ONG com foco no violoncelo.
A ONG9 Atitude e Cooperação concentra-se no ensino de instrumentos eruditos
principalmente no que diz respeito a família das cordas, como o violino, viola,
violoncelo e contrabaixo, também conta com aulas de teoria musical, prática de
conjunto e uma camerata de cordas. A própria ONG define seus objetivos em
“Contribuir para o desenvolvimento de projetos voltados para crianças e adolescentes
em situação de vulnerabilidade social do município de Natal, por meio de ações que
permitam o crescimento sustentável das comunidades atendidas [...]”10.
A ONG Atitude e Cooperação também conseguiu apoio financeiro com a
empresa privada UNIMED11 da qual recebe workshops, oficinas e minicursos de

9
Kleber (2014, p. 32) fala que “O conceito de ONG foi utilizado pela primeira vez em 1950, na
Organização das Nações Unidas, para referir-se a organizações internacionais de caráter permanente,
sem fins lucrativos, constituídas, em diferentes países, por características e finalidades específicas.”.
10
Fonte: Biografia encontrada na página da ONG no facebook. Disponível em: <
https://www.facebook.com/pg/atitude.cooperacao/about/?ref=page_internal > Acesso em: 3 de
novembro de 2017.
11
Rede privada de assistência médica do Rio Grande do Norte.
25
diversos artistas nacionais e internacionais, bem como doações de instrumentos
musicais e assistência técnica no reparo e manutenção de instrumentos musicais.
No decorrer de meu aprendizado musical, próximo de completar 1 ano desde o
início dos meus estudos musicais na ONG resolvi tentar ir além, então decidi que queria
investir no ramo da educação musical então fiz o teste de habilidade específica (THE)
da Escola de Música da UFRN e fui aprovada, dando início a minha primeira graduação
com meus recentes 21 anos de idade, sendo a primeira aluna da ONG a ingressar na
Licenciatura em Música da Escola de Música da UFRN, fato este que se tornou motivo
de orgulho para os professores, amigos e familiares, inspirando outros colegas do
Atitude e Cooperação.
Ter tido a oportunidade de participar desta experiência na ONG Atitude e
Cooperação me proporcionou diversas conquistas significativas, tanto no âmbito social
de construção do meu estar sendo musical quanto no âmbito acadêmico e profissional
recebendo grande incentivo para o ingresso na Licenciatura em Música do meu então
professor de violoncelo - e também coordenador da ONG - Cristian Brandão12.

Quando falamos neste sentido do papel formador do educador musical, seu


esforço sistemático em dedicar-se ao crescimento musical e humano
integrado (seu e de seus alunos), expressamos algo mais. Evocamos também
uma concepção filosófica, uma postura política e alguma coragem, que dêem
convicção à crença de que tudo o que é vivo tem movimento e o que se move
possui direção e comporta transformação. As pessoas, a sociedade, o mundo
são transformáveis, e direções para seu movimento podem ser criadas,
inibidas ou reforçadas. Todo o investimento neste presente representa o
empenho de exploração de potenciais sociais que progressivamente poderão
se concretizar. E aí reside o maior privilégio do educador: participar, de
maneira decisiva e por meio da formação musical, do desenvolvimento do ser
humano, na construção da possibilidade dessa transformação, buscando no
hoje tecer o futuro do aluno, cidadão de amanhã. (KATER, 2004. P. 45-46).

Não resolvi, no entanto, fazer a pesquisa em torno da ONG Atitude e


Cooperação por causa de alguns empecilhos relativos ao tempo que tinha para escrever
este trabalho pois uma pesquisa sobre essa ONG mereceria mais tempo para que
surgisse um trabalho mais bem elaborado, visto que foi uma das experiências empíricas
mais importantes que aconteceu em minha vida. Devo deixar explícito que apesar de
não ter sido tema da minha pesquisa não retiro nem ignoro a participação de extrema
valia que a ONG proporcionou na minha vida. Também reconheço o papel fundamental

12
Cristian Brandão foi aluno de bacharelado em violoncelo na Escola de Música da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte, bem como obtém do título de Mestre na mesma instituição de ensino, hoje é
professor efetivo da Universidade Federal do Pará.
26
que estes influenciadores tiveram ao proporcionarem-me descortinar novos caminhos no
trabalho de conscientização ativa nas diversas transformações e nas práticas sócio-
pedagógico-musicais aprendidas e vivenciadas na teoria e na prática ao longo desses
anos.

3.2 O Projeto Social Leão de Judá

O projeto social de música Leão de Judá foi fundado em meados de 2012 após o
professor Gabriel Martins ter se desvinculado de seus empregos dando aula de música
nas escolas públicas. No início o projeto tinha apenas 30 instrumentos musicais e a
demanda de alunos ainda era pequena, com o passar dos anos – além dos obstáculos
enfrentados13 - e da ampliação do projeto, hoje o Leão de Judá possui cerca de 80
alunos matriculados e 20 na lista de espera, (pois não tem instrumento musical para
todos) possui cerca de 60 instrumentos, provenientes de doações; do próprio
investimento financeiro de Gabriel e mais recentemente de um acordo firmado entre o
Leão de Judá e a Escola de Samba Águia de Ouro, também localizada no bairro das
Rocas, na qual a mesma oferece trabalhos de lutheria para os instrumentos do Leão de
Judá. O projeto possui até o presente ano de 2017 cerca de 09 surdos treme terra, 09
surdos médios, 15 caixas, 08 repiques, 02 bumbos, bem como, 08 trompetes, 01 sax
tenor, 01 sax alto e 02 trombones de vara.

Após vender sua casa na zona norte de Natal, usou boa parcela do dinheiro para
construir um espaço com salas de aula e estúdio no quintal da casa da sua mãe. A
construção deu início em meados de 2014, mas não pôde ser concluída por motivos de
saúde familiar, pois sua mãe teve câncer de mama e ele utilizou o restante do dinheiro
para pagar o tratamento e a cirurgia dela.
A estrutura física do espaço se configura em um primeiro andar. No térreo ficam
as 2 salas de aula e 1 sala de manutenção, na parte superior do andar se localiza o
estúdio de gravação. O professor Gabriel disse que quer construir tudo com um bom
material, pois preza pela qualidade e conforto para seus alunos se sentirem em casa.
Hoje, o espaço de abrangência do projeto contempla as zonas leste, oeste e norte
com intenção de ampliar-se também até a zona sul nos próximos anos. Na zona leste o
projeto está funcionando na Escola Estadual Isabel Gondim, no bairro de Santos Reis.

13
Mais sobre isso nas análises gerais.
27
Na zona oeste funcionava na Escola Municipal Professor Veríssimo de Melo, mas hoje
funciona na Casa de Cultura do Mestre Manoel Marinheiro, localizada próximo do local
anterior. E na zona norte o projeto irá funcionar próximo ao Ginásio Nélio Dias, ainda
não tem local definido pois o professor não teve tempo ainda de procurar um local para
alugar ou alguma parceria para fazer com alguma escola.

3.3 Objetivos
3.3.1 Geral
 Analisar alguns dos pontos norteadores e motivacionais relacionados aos
paradigmas sociais presentes em torno das ações educativo-musicais no projeto
social de música Leão de Judá e suas ações a posteriori transformadoras na
construção do ser e vivência social do alunado residente no bairro de Felipe
Camarão.
3.3.2 Específicos

 Analisar as razões pelas quais o projeto social de música Leão de Judá tem
atraído tantos jovens.

 Abordar alguns pontos orientadores no processo motivacional do alunado.

 Compreender sobre como os processos educativo-musicais neste projeto social


de música auxiliou na mudança da perspectiva do ser humano e do ser social
dos educandos e do educador.

 Verificar quais atividades desenvolvidas foram responsáveis pelo processo de


transformação por meio sócio-pedagógico-musical no alunado.

3.4 Estudo de caso com método observação direta

O objetivo da pesquisa, o espaço observado e a configuração social do ambiente


visitado fez-se escolher um tipo de metodologia que suprisse não só os propósitos
acadêmicos, mas também a boa convivência e troca de saberes entre pesquisadora,
objeto pesquisado e a própria pesquisa, visto que o ato de observar - segundo a
metodologia de observação direta - não se limita apenas em ver, ouvir e anotar, mas de
esmiuçar e aproveitar as oportunidades que ocorrem durante o processo de observação e
investigação, utilizando-se em muitos momentos o ato curioso epistemológico14 como
principal ponto de partida para o processo de análise e construção da pesquisa, é o que

14
Ver livro de Paulo Freire: Pedagogia da Autonomia.
28
afirmam Marconi; Lakatos (2003, p. 190) sobre a observação direta: “é uma técnica de
coleta de dados para conseguir informações e utiliza os sentidos na obtenção de
determinados aspectos da realidade. Não consiste apenas em ver e ouvir, mas também
em examinar fatos ou fenômenos que se desejam estudar.” Ainda falando sobre a
observação direta e o papel do pesquisador em diferentes contextos sociais e suas
respectivas intenções, Marconi; Lakatos concluem que:

A observação ajuda o pesquisador a identificar e a obter provas a respeito de


objetivos sobre os quais os indivíduos não têm consciência, mas que orientam
seu comportamento. Desempenha papel importante nos processos
observacionais, no contexto da descoberta, e obriga o investigador a um
contato mais direto com a realidade. É o ponto de partida da investigação
social. (MARCONI; LAKATOS. 2003, p. 191).

Este tipo de observação e coleta de dados relacionados com o estudo de caso,


assim como as respectivas particularidades educativo-sociais do projeto de música Leão
de Judá refletiu também a necessidade de se utilizar a observação sistemática, porque
além de ter sido utilizado alguns instrumentos de coleta de informações como registro
de imagens e vídeos, captação de áudio e anotações em caderno de notas, a observação
direta foi também a escolha mais satisfatória, dando o suporte necessário para os
objetivos pretendidos neste trabalho pois permitia-se o contato com o projeto social mas
sem integrar-se a este, além de ampliar a visão investigadora dos objetos de pesquisa, é
o que especifica Yin sobre observação direta em estudo de caso:

Ao realizar uma visita de campo ao local escolhido para o estudo de caso,


você está criando a oportunidade de fazer observações diretas. Assumindo-se
que os fenômenos de interesse não sejam puramente de caráter histórico,
encontrar-se-ão disponíveis para observação alguns comportamentos ou
condições ambientais relevantes. Essas observações servem como outra fonte
de evidências em um estudo de caso. (YIN, 2001, p. 115).

Alguns passos tomados durante a coleta de dados foi de suma relevância e


pertinência, dentre estes destacam-se o questionar, o ouvir, o adaptar e o compreender,
pois sem estes passos a pesquisa não poderia ter sido aproveitada e escrita, deste modo,
os passos que mais estiveram presentes dentre os citados acima foram o questionar e o
ouvir, sobre tais é importante frisar que:

Uma mente indagadora é um importante pré-requisito durante a coleta de


dados, não apenas antes ou após a atividade. A coleta de dados segue um
plano formal, mas as informações específicas que podem se tornar relevantes
a um estudo de caso não são previsíveis imediatamente. À medida que você
realiza um trabalho de campo, você deve constantemente se perguntar por
que os eventos ocorreram ou estão ocorrendo. (YIN. 2001, P. 82)

29
Bem como,

O ato de ouvir envolve observar e perceber de uma maneira mais genérica e


não se limita a uma modalidade meramente auricular. Ser um bom ouvinte
significa ser capaz de assimilar um número enorme de novas informações
sem pontos de vista tendenciosos. A medida que um entrevistado relata um
incidente, o bom ouvinte escuta as palavras exatas utilizadas (algumas vezes,
a terminologia reflete uma importante orientação), captura o humor e os
componentes afetivos e compreende o contexto a partir do qual o
entrevistado está percebendo o mundo. (YIN. 2001, p. 82).

Essas habilidades foram cruciais nos processos de construção e consolidação da


pesquisa e quando inserida no campo observado, procurei analisar não só os aspectos
referentes aos meus objetivos acadêmicos, mas também analisar os aspectos sociais em
consonância com suas interações educativas e as vivências epistemológicas após os
momentos de encontro com o alunado e educador.

3.5 Entrevista semiestruturada

O uso da entrevista semiestruturada surgiu da necessidade de investigar e


analisar mais profundamente os processos sócio-pedagógico-musicais em torno do
papel do educador de música para e com os educandos do projeto social de música Leão
de Judá. Assim pude coletar informações provenientes da entrevista com o referido
professor Gabriel.

A entrevista com o professor e idealizador foi gravada com ajuda de um


dispositivo móvel e posteriormente transcrita. A entrevista semiestruturada também se
caracterizou como um diálogo informal de onde foram estabelecidas sete perguntas-
base15 e de acordo com o desenvolver da conversa e das respostas surgiu outros
questionamentos e análises que complementaram e conduziram a pesquisa à diversos
pontos significativos explanados de acordo com os objetivos aqui abordados. Segundo
Cardoso (2011), no que compete às entrevistas semiestruturadas:

No enquadramento de uma entrevista semi-estruturada, são entendidas como


orientadoras do processo, por isso, é referida a flexibilidade para “reformular
e alterar a ordem no decorrer da entrevista”, permitindo abertura ao discurso
do entrevistado, mas prevendo simultaneamente algum controlo, caso este se
desvie do assunto em estudo. (CARDOSO et al, 2011. P. 04).

Saliento, portanto a fidelidade ao que o entrevistado expressou em suas respostas


e ao que agora exponho neste trabalho, também houve o cuidado para que não houvesse

15
Este questionário encontra-se em apêndice.
30
interações comunicativas tendenciosas que pudessem fugir da imparcialidade pedida em
qualquer entrevista, seja ela de caráter formal ou informal.
As perguntas-base foram elaboradas com o intuito de compreender e analisar
como o professor e idealizador do projeto social de música Leão de Judá começou as
atividades quais foram os obstáculos enfrentados no decorrer deste processo e sua
respectiva opinião/relação sócio-pedagógico-musical com e no mundo do alunado.

31
4. ABRANGENDO O CAMPO: PERCEPÇÃO DAS PRÁTICAS

4.1 Observação 01: Ensaio geral para a apresentação do desfile de 7 de setembro

Ao chegar no bairro onde se localizava a mais recente extensão do projeto social


Leão de Judá – anexo recém estabelecido no bairro de Felipe Camarão – percebi que o
ensaio não estava acontecendo em seu local previamente planejado que era a Escola
Municipal Veríssimo de Melo, evento este que teria sido confirmado um dia antes do
ensaio, então me perguntei se teria sido cancelado, mas antes que eu pudesse terminar
de concluir o pensamento, eis que ouço os batuques dançantes do samba-reggae dando
vida a canção Minha Pequena Eva16, prontamente pus-me a andar à procura do ensaio
seguindo o som do Leão de Judá, mas antes que eu saísse a passos largos e
“aparentemente sem rumo”, por precaução, resolvi me certificar me informando com
um jovem que encontrei no caminho sobre se teria visto ou sabia onde esse grupo
estaria ensaiando, logo recebi a resposta de que eles estavam ensaiando no fim da
mesma rua, no sentido oposto ao da escola Veríssimo de Melo, agradeci pela
informação e segui adiante, adentrei na rua escura que mal me possibilitava enxergar os
alunos/músicos ensaiando.

Quando finalmente cheguei no local me deparei com cerca de 18 alunos


compondo 3 fileiras, iluminando a rua escura com seus instrumentos decorados pela luz
das pequenas lâmpadas de led17 de diversas cores balançando ritmadamente ao
executarem as músicas do repertório das apresentações e desfiles. Haviam também
outros alunos que estavam presentes apenas observando os amigos tocarem e outros que
em alguns momentos participavam junto com a percussão ou esperavam seu momento
de tocar - como era o caso dos instrumentos de metal e sopro – mas não saíam das suas
respectivas posições, fato na qual me levou a refletir sobre uma notável atenção da parte
da maioria dos alunos voltadas ao professor Gabriel. Este fato me levou a uma reflexão
referente ao respeito e afinidade que vi entre o educador e os educandos que concerne
de forma clara com as palavras de Freire, (2002, p. 103) “O clima de respeito que nasce
de relações justas, sérias, humildes, generosas, em que a autoridade docente e as
liberdades dos alunos se assumem eticamente, autentica o caráter formador do espaço
pedagógico.”

16
Música da Banda Beijo.
17
Light Emitting Diode, que significa: diodo emissor de luz.
32
Ao procurar um lugar para sentar percebi também que haviam alguns vizinhos
que saíram de suas casas para assistir os jovens tocando, motivados talvez pelas
melodias familiares que lhes agradavam. Sentei na calçada de uma das casas para poder
observar e pegar o celular para começar a gravar o ensaio, como não dava pra gravar um
vídeo resolvi gravar alguns áudios. Estavam finalizando a canção Minha Pequena Eva e
depois executaram uma virada percussiva polirritmica bem ao estilo do grupo
Olodum18, a referência polirrítmica africana logo em seguida se transformou em alguns
exercícios (rudimentos) que, segundo o professor Gabriel ajudariam na técnica ao tocar
e na resistência física, tendo em vista que os alunos do projeto fazem muitas
apresentações e desfiles. Esses exercícios são fundamentais no processo da
aprendizagem e estudo de cada instrumento.
Gabriel ensaia os naipes separadamente - um detalhe é que Gabriel geralmente
marca os ensaios da percussão e dos metais e sopros em dias separados e depois marca
um ensaio geral -, começando pelos instrumentos de percussão, como, caixas, surdos,
pratos e repiques e depois pelos metais e sopros, quando ele percebe que os alunos já
estão seguros na execução começa então a juntar todos os naipes, com isso, o
aperfeiçoamento da execução, interpretação e performance musical do Leão de Judá se
estabiliza e fica mais fluente ou como o próprio Gabriel fala: (...) aí eu ensaio o naipe
todinho e deixo bem alinhadinho. (Informação verbal)19.
Vale salientar que em apenas alguns poucos momentos Gabriel teve que intervir
no ensaio, fez algumas pequenas observações direcionadas à alguns naipes ou a alguém
em específico com a intenção de alertá-los para alguma parte importante da música ou
para trazer a atenção de algum aluno ou aluna que momentaneamente se distraiu em
algum momento do ensaio.
Ele costuma usar gestos manuais como orientação ao grupo acerca do
andamento, mudança de música, solo de algum naipe, interrupção ou final de uma
música ou seção, dentre outras coisas, ou seja, na execução de cada comando nota-se
alguns mais evidentes: gesto de atenção, gesto de indicação e gesto de execução, além
de levar em consideração a firmeza e a postura na execução desses movimentos, pois
interferem na execução e na compreensão do grupo. Em certos momentos também

18
É um bloco-afro percussivo da cidade de Salvador, na Bahia.
19
Proveniente da resposta captada de conversas por rede social.
33
utiliza um apito que serve para alertar ao grupo quando houver uma mudança na
execução.
O ensaio terminou em torno das 19hs, logo me prontifiquei a falar com Gabriel e
comentar sobre o ensaio, bem como fazer algumas perguntas, mas ele apressadamente
entrou dentro de uma casa vizinha ao local onde o alunado estava ensaiando, me
perguntei então se aquele estabelecimento seria a casa de algum amigo, parente, aluno
ou seria a residência de um vizinho prestativo que teria oferecido o local com intenção
solidária ao Leão de Judá por estarem ensaiando em local aberto.
Novamente me sentei à espera dele e enquanto aguardava tornei a observar o
comportamento dos jovens alunos, vi que alguns entraram na casa citada levando e
ajudando outros companheiros a levarem os instrumentos de percussão e os guardaram
lá dentro, já outros alunos permaneceram do lado de fora com seus respectivos
instrumentos e/ou experimentando tocar outros instrumentos que os colegas tocavam.
Nota-se com isso uma profunda curiosidade de grande parte dos alunos referente
a construção do saber musical, que de forma direta ou indireta recebe influências dentro
do próprio meio musical do Leão de Judá, como é o caso de observar os companheiros
tocarem, por este motivo quiçá possam migrar para algum outro instrumento que
também lhe cative, “O exercício da curiosidade convoca a imaginação, a intuição, as
emoções, a capacidade de conjecturar, de comparar, na busca da perfilização do objeto
ou do achado de sua razão de ser.” (FREIRE, 2002, p. 98).
Logo percebi que formou-se um pequeno círculo ao redor dos alunos/músicos
que eram responsáveis por tocarem os instrumentos melódicos (metais e sopros), estava
nítido que esses alunos cultivavam uma curiosidade e vontade de conhecer e
experimentar tocar esses instrumentos, algo lhes chamavam a atenção, um ou outro
pegava um trompete, sax ou trompete pocket20 e arriscava umas melodias do próprio
repertório sem se importar com afinação ou com posição de dedos ou embocadura,
arriscavam porque a curiosidade em conhecer e explorar era maior do que a
preocupação com noções técnicas relativas a cada instrumento. Essa cena me fez
lembrar sobre a importância da curiosidade na educação como um todo e quando se
trata de educação musical essa curiosidade espontânea se torna curiosidade
epistemológica pois estudar um instrumento musical requer constante ligação entre o
saber teórico-prático e suas vivências musicais, é o que afirma Freire - sobre os

20
Trompete de tamanho reduzido.
34
resultados da curiosidade no indivíduo como ser educando -, (2002, p. 97) “O exercício
da curiosidade a faz mais criticamente curiosa, mais metodicamente “perseguidora” do
seu objeto. Quanto mais a curiosidade espontânea se intensifica, mas, sobretudo, se
“rigoriza”, tanto mais epistemológica ela vai se tornando.”.
Depois de cerca de 15 minutos Gabriel saiu da residência e rapidamente fui ao
seu encontro, cumprimentei-o e ele logo me perguntou de maneira simpática o que eu
tinha achado do ensaio, respondi-lhe que apesar de ter chegado atrasada ainda tinha
conseguido aproveitar bem e apreciar a observação, então retribuiu-me com um sorriso
de satisfação e resolvi lhe perguntar o motivo da mudança do local do ensaio, então ele
pediu-me que esperasse um pouco pois era uma história complicada e não queria
comentar sobre isso na frente dos alunos.
Enquanto conversávamos sobre o ensaio ele perguntou se eu queria uma carona
até um ponto de ônibus que pudesse facilitar minha volta para casa, aceitei o convite e
entramos numa Kombi que pertencia a um amigo de longa data de Gabriel - que
começou o projeto juntamente com ele mas hoje em dia não atua no projeto
diretamente, mas sua presença é de grande ajuda e suporte em diversos quesitos em
relação ao Leão de Judá - e o restante dos alunos que moram no bairro das Rocas. O
carro estava lotado e havia muitas conversas paralelas, no banco da frente estavam
Gabriel o amigo dele chamado Mayke e eu.
Foi a partir desse momento que ele deu início a conversa prometida. Segundo
ele, disse que tinha ocorrido uma situação inconveniente por causa de um dos docentes
da escola em questão, na qual o professor deturpava o trabalho social que estava sendo
desenvolvido com aqueles jovens, inclusive, utilizando de atitudes tolas ou de
chantagens/ameaças mecanicamente tecnicistas de somar ou subtrair pontos dos alunos
de acordo com seus comportamentos em sala de aula. A partir daí surgiu os primeiros
posicionamentos contrários perante aquelas situações por parte de Gabriel, não havendo
acordo da parte do professor e ausência de posicionamento decisivo dos gestores da
escola em ambas as partes, Gabriel resolveu sair do local e ensaiar o grupo no lugar
apresentado parágrafos atrás.
Por tal atitude, Gabriel chegou a questionar-se se o trabalho que ele desenvolvia
na escola com os jovens teria sido a principal justificativa para as ações da pessoa em
questão. Cenas como essa são comuns principalmente na área de Música, Artes e
Dança, onde trabalha-se com o desenvolvimento artístico/cultural intrapessoal e
35
interpessoal. Por tal, é comum presenciarmos ou ouvirmos falar de professores e/ou
artistas que são motivados a tomarem ações que acabam prejudicando o caminhar
construtivo da proposta educativa libertadora e progressista em geral. Essa visão que
certos profissionais carregam é deturpadora do conhecimento, ou seja, cega, inviabiliza
ou até mesmo priva o progresso da educação musical-artística da escola ou até mesmo
da comunidade.

4.2 Observação 02: Ensaio do dia 29 de setembro de 2017.

Como de costume, o ensaio foi marcado para às 17:00hs da tarde no mesmo


local explicitado anteriormente, cheguei pontualmente no espaço previsto e uma das
primeiras coisas relevantes que notei foi que a “casa” na qual me referi na observação
anterior era na verdade um espaço cultural chamado Casa de Cultura do Mestre Manoel
Marinheiro, estupefata, a minha primeira reação foi de espanto e questionamento: será
que este lugar já estava assim da outra vez que vim aqui ou o espaço foi pintado e
identificado posteriormente? Ou será que na verdade fui impossibilitada de ver algo
tão simples pelas circunstâncias em que me encontrava na observação anterior? (Ou
seja, pelo ambiente escuro, pelo ponto que escolhi para observar o grupo e pela atenção
e entusiasmo na qual estava ao conversar com Gabriel sobre o projeto e a pesquisa em
questão, negligenciando outros pontos que poderiam ter sido observados).

Então fotografei a fachada do local, e enquanto guardava o celular, Gabriel e seu


aluno Bruno (que iniciou a carreira de músico no projeto social Leão de Judá e que hoje
também é professor no projeto, atuando como professor de bateria no polo das Rocas e
como professor ajudante, focando nos direcionamentos mais técnicos relativos a
percussão do grupo) chegaram no local pouco tempo depois, alguns poucos alunos que
estavam esperando no local -cerca de 10 alunos – foram cumprimentá-los de forma
calorosa, nota-se o carinho e companheirismo que os alunos tem pelo professor,
mostrando a relação harmônica entre educador e educando que ao mesmo tempo não
ultrapassa os limites éticos e pedagógicos desta relação, é o que explica Freire (2002, p.
160): “A afetividade não se acha excluída da cognoscibilidade. O que não posso
obviamente permitir é que minha afetividade interfira no cumprimento ético de meu
dever de professor no exercício de minha autoridade.”.

36
Escolhi bem o local onde ficaria observando o ensaio, escolhi o lugar, me
acomodei no batente da calçada de uma casa do lado oposto da rua o que proporcionou
uma visão mais ampla do grupo, porém, naquele momento, minha intenção era de que o
idealizador do projeto não me visse logo que chegasse, pois queria observar a interação
professor-aluno-professor e de fato presenciei uma interação bem informal com os
alunos, ouvi um: _ E aí galera! E os alunos retribuíram com animação e respeito para
com o professor, houve sorrisos, alguns abraços, toques de mãos ou até brincadeiras
pertencentes ao mundo social do adolescente.
De fato, é algo realmente interessante de se analisar e isto muitas vezes instiga a
curiosidade por parte de quem não está acostumado com esse tipo de interação entre o
professor em seu papel julgado pelo senso comum (e pelo histórico da relação entre
educador e educando nos sistema tradicional de ensino) como sendo um ser superior ao
alunado, possuidor de um poder simbólico de portador do conhecimento e
autoritarismo, e o alunado em seu papel constituído da mesma forma pela sociedade
como sendo seres submissos e sem autonomia no processo de construção educacional
plural.
Esse acontecimento pode ser facilmente expressado pela fala de Kleber (2011, p.
46) que explica sobre este tipo de interação social de caráter amistoso entre professor e
aluno que alguns educadores promovem: “Trata-se de relações que são inerentes às
atividades humanas e que podem ser consideradas como redes espontâneas, que derivam
da sociabilidade humana construída na dinâmica do cotidiano das pessoas.”. Assim
como também especifica Kater, sobre o comportamento e postura que o educador toma
para si influenciando no aspecto formador do educando, citando:

(...) o educador musical, como qualquer professor, presta-se, querendo ou


não, como modelo de referência para seus alunos, não só do ponto de vista
musical (sua competência técnico-específica, digamos), mas também
enquanto pessoa humana que é. Sua postura singular, maneira de ser e de
estar, opiniões e comportamentos atuam ininterruptamente para eles como
viva ilustração. (KATER, 2004, p. 45).

Em certos momentos minha presença no ambiente provocou alguns olhares


curiosos dos alunos, (talvez pelo fato de estarem me vendo fazer anotações e registros),
mas minha presença aparentemente não causou nenhum desconforto, alguns até vieram
falar comigo, sempre de forma espontânea e simpática. Uma das coisas que também
achei interessante é que sempre falavam comigo como se já me conhecessem a algum
tempo, ou seja, sempre interagiam comigo de forma bem descontraída e amigável como
37
se eu fizesse parte do Leão de Judá ou até mesmo do próprio círculo de amizade deles,
esse tipo de comportamento evidencia um caráter afetivo e de socialização bastante
desenvolvidos.
Não demorou muito tempo para que Gabriel me visse e logo me chamou, nos
cumprimentamos e ele começou a explicar o motivo do atraso (estava com uma
infecção no supercílio - que o fez ir para um hospital e tomar duas injeções para tratar a
infecção – e no momento, devido ao gasto com remédio, estava sem dinheiro para pagar
as passagens e por isso tinha vindo a pé das Rocas até Felipe Camarão junto com
Bruno), fiquei impressionada com a seriedade e compromisso que ele tem com o
P.S.L.J, sacrificando o repouso que deveria ter feito para se dedicar ao ensaio do grupo.
Passado cerca de 5 minutos que estávamos conversando já haviam pelo menos
30 alunos no local esperando ansiosamente pelo início do ensaio, sempre perguntando
ao professor que horas o ensaio iria começar e se poderiam já pegar os instrumentos.
Com a permissão dele, entraram no estabelecimento e trouxeram os instrumentos para
fora enquanto que alguns já saíram tocando (tocando samba-reggae, é claro), uns faziam
em seus respectivos instrumentos ou ás vezes experimentavam tocar com os
instrumentos dos colegas. Este cenário me mostrou que a curiosidade desses alunos
conseguiu gerar troca de conhecimentos entre eles, não só entre professor e aluno, mas
entre aluno e aluno, é o que cita Freire, sobre a atuação da curiosidade na construção do
conhecimento:

(...) a curiosidade, ultrapassando os limites que lhe são peculiares no domínio


vital, se torna fundante da produção do conhecimento. Mas ainda, a
curiosidade é já conhecimento. Como a linguagem que anima a curiosidade e
com ela se anima, é também conhecimento e não só expressão dele.
(FREIRE, 2002, p. 61).

Terminando brevemente nosso diálogo, o professor então chamou os alunos


caixistas (5 alunos) para ensinar uma pegada de samba, como o próprio professor diz.
Em pouco tempo formou-se um círculo de cerca de 10 alunos envolta deles,
evidenciando mais uma vez o poder da curiosidade ao ser estimulada por novos
conhecimentos, seja para eles ou seja para seus colegas. Assim que acabou a explicação
sobre a célula rítmica do samba juntamente com a prática e teste de resistência, pediu
para que os surdistas comparecessem com seus instrumentos e se agrupassem em um
lugar para que passassem pelo mesmo processo que o naipe das caixas.

38
O professor Gabriel e seu amigo Bruno ensinavam de forma bem prática, faziam
eles mesmos uma demonstração tocando por certo tempo (Bruno na caixa ou repique
com explicações técnicas e Gabriel na pulsação, ás vezes com algum instrumento ou
com onomatopeias e vice-versa) e depois pedia para que os alunos começassem a
praticar sempre alertando que mantessem a atenção na pulsação e nos comandos.
Enquanto os caixistas praticavam, alguns alunos pertencentes a outros naipes
praticavam o mesmo exercício em qualquer lugar, seja com baquetas batendo no chão,
pneus ou com o próprio corpo dançante se locomovendo ritmadamente no espaço
enquanto acompanhava a célula rítmica estudada no momento.

Um aspecto essencial da corporalidade e que, em grande parte, depende da


música, é a dança. [...] Além da dança há outros momentos que fazem parte
da corporalidade em conexão com a prática musical. Tocar um instrumento é
uma dessas ações basicamente corporais. Além de, muitas vezes, serem
vistos como extensão do corpo humano, instrumentos musicais levam os seus
mestres a desenvolver verdadeiras façanhas, vedadas a demais corpos, não
iniciados e trabalhados para dominarem a técnica instrumental. (PINTO,
2001. P. 232-234).

Quando os alunos já estavam confiantes quanto a execução do que aprenderam,


Gabriel resolveu começar o ensaio, pediu para que todos se organizassem em seus
devidos naipes e posições, feito isso, começou a direcionar alguns alongamentos
enquanto todos repetiam o que ele fazia, - em certos momentos ouvi algumas
reclamações acerca da demora nos alongamentos e indagações sobre quando
começariam a tocar -, terminando o alongamento, começou a rezar o Pai Nosso21
juntamente com uníssono dos alunos, feito isso, gritaram de forma firme e com uma
energia vocal que me lembrou um grito de guerra: _Leão de: Judá! Leão de: Judá! Leão
de: Judá! Sem demora os repiques fizeram uma pequena virada sinalizando a chegada
do samba-reggae e o grupo começou a tocar a música Protesto do Olodum22, No Woman
no Cry23, dentre outros clássicos. Em alguns momentos Gabriel alternou entre a função
de maestro e trompetista, fazendo pequenas intervenções ao incorporar-se no fazer
musical do grupo. Essa atitude expõe a harmonia e o compartilhamento entre o que se
ensina e o que se pratica entre professor e alunado, segundo Freire:

O meu discurso sobre a Teoria deve ser o exemplo concreto, prático, da


teoria. Sua encarnação. Ao falar da construção do conhecimento, criticando a

21
Oração de origem católica que o professor faz antes do início de todo ensaio e apresentação do grupo.
22
Do grupo Olodum.
23
Do cantor Bob Marley.
39
sua extensão, já devo estar envolvido nela, e nela, a construção, estar
envolvendo os alunos. (FREIRE, 2002, p. 53).

Depois de tocarem o repertório do samba-reggae, o professor pediu para que


entrassem no Maracatu, deu o sinal apitando 4 vezes e o grupo começou a tocar, neste
momento notei uma certa resistência da parte de um aluno mas nada que o impedisse de
tocar, talvez seja só o receio de sair de um estilo que ele gosta de tocar e o toca com
fluência para ir para outro estilo que ainda não está familiarizado, ou até mesmo
estivesse procurando outro tipo de motivação naquele momento, Queiroz (2014, P. 06)
diz que “O indivíduo realiza determinada atividade por considerá-la interessante ou
divertida, é uma orientação motivacional que tem por característica a autonomia do
aluno em relação a sua aprendizagem.”.
Quando já estavam tocando, notei que um dos alunos do naipe dos surdos estava
perdido, pois era novato no projeto e ainda não tinha aprendido a tocar a linha rítmica
do maracatu no seu instrumento, Gabriel percebendo que ele não estava conseguindo
acompanhar o grupo, apontou o dedo na direção de um aluno que estava na frente do
aluno novato e fez um gesto de afirmação com a cabeça, o aluno captou rapidamente o
que ele quis dizer com aquele gesto, parou de tocar, virou-se para o aluno novato e o
ensinou ali mesmo a linha rítmica fazendo uma demonstração no instrumento do aluno
“perdido”, o outro olhava atentamente e logo se pôs a tentar, não demorou para que ele
se familiarizasse e começou a tocar conforme a demonstração que viu e logo estava em
sincronia com os demais, este comportamento me chamou atenção pois nota-se que
Gabriel confiou sua ação pedagógica a um aluno, gerando e estimulando assim a
autonomia nos educandos, é o que afirma Freire sobre o respeito à autonomia entre
educador e educando:

Como educador, devo estar constantemente advertido com relação e este


respeito que implica igualmente o que devo ter por mim mesmo. [...] O
respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não
um favor que podemos ou não conceder uns aos outros. (FREIRE, 2002, p.
66).

Assim que o maracatu acabou retornaram novamente para o samba-reggae, em


seguida ele pediu para que começassem a tocar o Olodum, - vale ressaltar que o Leão de
Judá recebe muitos elogios até de outros grupos de samba-reggae quando tocam
Olodum, recebendo elogios como: Tua banda arregaça no Olodum lá, pouco massa.

40
Dava até estiga kkk (...)24. Este pequeno depoimento feito por outro aluno de outro
projeto social que trabalha com samba-reggae nos mostra que o projeto social na qual
estes alunos estão inseridos revela um compartilhamento de saberes por meio das
apresentações que fazem, evidenciando a importância da interação social com outros
indivíduos pertencentes a um mundo musical25 semelhante ao que participam no
processo de construção do saber musical e suas respectivas práticas, bem como um
objeto ativo da motivação desses indivíduos.

Na condição de ser social, esses jovens adolescentes/crianças (con)vivem


com as transformações da sociedade, cuja dinâmica globaliza as pessoas e os
lugares, organizam suas representações sobre si e sobre o mundo e interagem
por meio de relações sociais no cotidiano com diferentes e diversos espaços e
meios de socialização. (SOUZA, 2004, p. 10).

Assim que terminaram de tocar Olodum o professor parou para dar algumas
informações acerca do próximo ensaio e sobre o Masterclass de samba que iria ocorrer
no próximo encontro do grupo, os alunos responderam com entusiasmo, então para
terminar o ensaio ele pediu que tocassem um samba-reggae com alguns elementos
rítmicos do samba que ele tinha ensinado antes do ensaio, o fizeram com algumas
viradas fazendo referência ao samba e assim o ensaio acabou aproximadamente às
19:00hs.

4.3 Observação 03: Masterclass de Samba no dia 03 de outubro de 2017.

O masterclass de Samba foi programado para acontecer em um lugar próximo


ao que comumente acontecem os ensaios gerais do P.S.M.L.J, o local escolhido foi o
Conselho Comunitário de Felipe Camarão, a escolha deste local deve-se ao fato de que
comportaria muitos alunos em sala de aula, além do quadro e climatização, pois o
masterclass duraria em média 3h e realizar uma ação desse tipo em um lugar
desconfortável acabaria por mais atrapalhar do que ajudar, pois sabemos que realizar
aulas em um ambiente desconfortável e cheio dificultaria o controle da atenção e
aprendizado do alunado em geral, pois

24
Proveniente de comentários extraídos de redes sociais.

25
Mundos musicais na perspectiva de Arroyo (2002) [...] significa um espaço social marcado por
singularidades estilísticas, de valores, de práticas compartilhadas, mas que interagem com outros
mundos musicais, promovendo o recriar de suas próprias práticas, bem como o ordenamento de
diferenças sociais. (ARROYO, 2002. P. 101).

41
[...] a sala de aula é o principal espaço escolar que deve ser estruturado para o
desenvolvimento das atividades escolares, pois é nela onde acontecem as
principais relações do ensinar e do aprender. Se não há uma boa sala de aula,
que ofereça as mínimas condições de comodidade, tanto para o aluno quanto
para o professor, esse processo será defasado. (MONTEIRO; SILVA, 2015.
P. 10).

Ao chegar no local vi que o professor, o monitor Bruno e alguns alunos estavam


do lado oposto ao Conselho Comunitário sentados, cumprimentei Gabriel, Bruno e
alguns alunos que estavam próximos (os outros estavam lanchando do outro lado da
rua) e enquanto cumprimentava o pessoal Gabriel me falava que estavam apenas
esperando o responsável pelo espaço chegar e abrir o local e as salas para que todos
entrassem e ele desse início a aula. Cerca de 10 minutos depois o responsável pelo
Conselho Comunitário chega e abre os portões e a sala onde aconteceria a aula. Ao
entrarem os alunos perceberam que tinham poucas cadeiras e foram buscar mais em
outra sala.
Enquanto o professor ligava seu notebook para organizar alguns materiais
audiovisuais para exibir aos alunos. E enquanto os alunos arrumavam a sala Gabriel
veio até mim e me contou como ele iria reger a aula, me mostrou uma folha grande de
partitura26 onde ele mesmo escreveu as linhas rítmicas de cada naipe do grupo e me
explicou que ensinaria todos os naipes se a aula rendesse bem e se desse tempo de
passar para todos os alunos, visto que o grupo tem em média até o momento cerca de 50
alunos, - dentre estes, em torno de 30 alunos apareceram na aula –, logo após me
mostrar a partitura, me explicou que os alunos do polo das Rocas já sabiam ler partitura
e que a intenção era que os novatos do polo de Felipe Camarão também aprendessem
teoria musical para facilitar no aprendizado de novos ritmos que futuramente
apareceriam no repertório do grupo, portanto, o masterclass de samba iria servir tanto
para a iniciação da teoria musical quanto para o aprendizado das linhas percussivas de
cada naipe.
Enquanto o professor organizava o material audiovisual no notebook, os alunos
que chegaram pontualmente esperavam a aula começar, mas não esperavam em
ociosidade, mas sim vivenciando a música, tocando seus instrumentos, conversando
sobre o que sabiam de teoria musical, ensinando os colegas curiosos, além é claro, de
conversarem sobre outros diversos tipos de assuntos e de fazerem brincadeiras

26
Ver em anexos.

42
pertencentes ao seu círculo social. Segundo Shepherd; Wicke (1997, p. 200, apud
Kleber, 2011, p. 39) “A música é social não só porque está sendo produzida através do
mundo material e social, mas também por sua capacidade de simbolizar o mundo
externo material e social tal qual está estruturado.”.
Na maior parte do tempo um dos alunos tocava um trompete enquanto os demais
acompanhavam com a linha rítmica principal do samba-reggae (caracterizada pelo naipe
do repique), batucando com as mãos ou canetas em suas respectivas carteiras escolares.
Em outros momentos este mesmo aluno pegava um pandeiro e começava a tocar, um
outro aluno, curioso com o movimento das mãos e a sonoridade do instrumento, se
aproximou e pediu para que ele lhe ensinasse algum ritmo no pandeiro, o outro mostrou
como ele deveria usar as mãos e movimentar o pandeiro, feito isto, o outro aluno ficou
tentando por cerca de 5 minutos e devolveu o pandeiro para ele e saiu para conversar
com outros colegas, mas logo em seguida chegou outro aluno pedindo para que ele o
ensinasse a tocar igual aos pandeiristas que tocam fazendo “truques com o cotovelo”,
novamente ele ensinou o processo mas disse que era “melhor aprender o básico do que
tentar aprender o difícil e fazer feio”(informação verbal)27, com essa frase o outro aluno
fez uma expressão de consentimento sem dizer nenhuma palavra, em seguida pegou o
pandeiro e começou a tentar fazer o que o colega tinha acabado de ensinar. Essa atitude
revela o quão importante é saber escutar, pois aprender também é escutar, segundo
Freire (2002, P. 135), “[...] é escutando bem que me preparo para melhor me colocar ou
melhor me situar do ponto de vista das idéias.”.
A aula começou às 14hs:40min, ou seja, 40 minutos depois do previsto, os
alunos que já estavam no local (em torno de 20) sentaram-se e então o professor
começou a aula. Começou falando sobre os planos futuros para o P.S.M.L.J e começou
a exibir alguns vídeos das apresentações da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro,
como exemplo de grupo percussivo pelo qual o P.S.M.L.J iria se basear para tocar.
Enquanto o vídeo era exibido ele falava para que os caixistas prestassem atenção nos
naipes das caixas e suas viradas, e falava sobre alguns detalhes estéticos do samba,
explicou que cada escola de samba homenageia um orixá e no caso da Salgueiro este
orixá é Oxóssi (São Sebastião), então a técnica de caixa que o P.S.M.L.J usaria também

27
Proveniente do áudio da observação.

43
seria a mesma dessa escola de samba, (apesar de não haver o lado religioso em
referência ao orixá).
A seguir exibiu um vídeo que mostra a bossa do repique e a levada da caixa e
aproveitou para explicar o que era um esquenta que nada mais é do que uma breve
mostra musical (comum em escolas de samba e grupos de samba-reggae) que serve
como uma preparação para a apresentação em si. Os alunos assistiram atentamente e
alguns já tentavam aprender a levada do ritmo, o professor aproveitava para estimular
os alunos dizendo que queria ouvir eles tocando até a aula acabar, esse gesto reflete a
importância que o professor tem de impulsionar o desenvolvimento e emancipação da
autonomia nos educandos, segundo Demo (2011, P. 18), isso revela que a autonomia
“[...] é fenômeno social tipicamente, não só individual. Precisa de orientação. De um
lado, para tornar-se autônoma toda pessoa precisa de ajuda. De outro, tornando-se
autônoma, deve saber dispensar a ajuda.”.
Em certo momento pediu atenção aos alunos para que observassem que as caixas
estavam todas sincronizadas e que essa sincronização era importante no grupo para que
a sonoridade ficasse mais consistente e limpa e que eles fariam a pegada do mesmo
jeito que eles assistiram nos vídeos. Para reforçar ele mostrou alguns vídeos dos ensaios
da escola de samba Acadêmicos do Salgueiro explicando que começariam com a bossa
do repique mas o P.S.M.L.J fariam uma bossa um pouco diferente. Para ajudar na
compreensão dos alunos ele repetia o ritmo utilizando onomatopeia, enquanto
explicava, mais alguns alunos chegaram e ele resolveu fazer um resumo rápido do que
já tinha falado em sala de aula para eles, essa atitude revela o bom senso que todo
educador deve ter, de compreender os alunos, de repetir um assunto quando necessário,
é o que afirma Freire:

A vigilância do meu bom senso tem uma importância enorme na avaliação


que, a todo instante, devo fazer de minha prática. [...] É meu bom senso, em
primeiro lugar, o que me deixa suspeitoso, no mínimo, de que não é possível
à escola, se, na verdade, engajada na formação de educandos educadores,
alhear-se das condições sociais culturais, econômicas de seus alunos, de suas
famílias, de seus vizinhos. (FREIRE, 2002. P. 67;70-71).

Durante alguns momentos Gabriel usava o apito dentro da sala para chamar a
atenção dos alunos que estavam muito dispersos e/ou estavam atrapalhando o
andamento da aula, a seguir pediu um pouco de paciência pois na sala tinham poucos
instrumentos e não daria para todos aprenderem ao mesmo tempo e que por causa disto
a aula prática seria com um ou dois de cada naipe, mas disse que depois que explicasse
44
todo o conteúdo da aula passaria mais um tempo extra no local para que pudesse ensinar
o máximo de alunos possíveis para que já saíssem com uma noção do fazer musical
deste novo ritmo que estavam aprendendo. Aproveitou o momento para verificar
quantos alunos novatos estavam na sala e quantos ainda faltavam aprender a ler
partitura e falou que a 4 meses atrás tinha feito um masterclass de samba-reggae e que
neste (na qual estavam começando a aprender) seria muito útil para o crescimento do
Leão de Judá, pois teriam mais repertório e vivência musical para tocar em eventos,
participar de competições e que esse aprendizado teórico e prático iria trabalhar a
concentração deles, internalizando a base do ritmo como eles vêm fazendo ao tocar
samba-reggae.
Dando início a aula teórica, o professor escreveu algumas figuras rítmicas no
quadro (mínima, semínima, colcheia e semicolcheia com suas respectivas pausas, -
apenas estas foram trabalhadas nesta iniciação/revisão teórica -) e perguntou se
lembravam da função de cada uma, a maioria dos alunos ficaram inseguros de responder
mas no momento em que um deles tomou coragem ouviu-se a maioria respondendo em
uníssono o valor exato de cada figura rítmica.
Uma coisa interessante que notei na aula teórica de Gabriel é que ele especifica
os valores das figuras rítmicas diferente das especificações “comuns”, ou seja, ao invés
dele falar que uma colcheia e uma semicolcheia valeriam 1/8 e 1/16 respectivamente,
ele explica de uma forma um pouco diferente - que em minha experiência não cheguei a
ver nenhum professor de teoria musical explicar daquela forma -, no caso, ele falava que
estas mesmas figuras valeriam 0,50 e 0,25 e ao todo os valores destas figuras ficariam
desta forma: semibreve (4), mínima (2), semínima (1), colcheia (0,50) e semicolcheia
(0,25).
Essa sutil diferença na explicação de teoria musical, seria para facilitar a
compreensão dos alunos em consonância com a vivência deles assemelhando os valores
rítmicos musicais aos valores relacionados ao uso do dinheiro no dia a dia ou seria até
mesmo apenas um reflexo de como o professor aprendeu teoria musical na sua época.
Quando os alunos foram escrever os ditados rítmicos que estavam no quadro o
professor Gabriel pediu para que não escrevessem e guardassem os cadernos, então todo
mundo parou de escrever e fecharam os cadernos e olharam mais curiosos para o
professor. O professor então aproveitou a oportunidade para explicar detalhadamente
para a turma que precisariam de paciência e atenção para que ali houvesse uma revisão
45
para os que já sabiam e um novo aprendizado para cerca de 5 novatos presentes que até
aquele momento nunca tiveram contato com teoria musical, e que portanto a turma
cooperasse.
A partir daí ele falou um pouco sobre compassos simples (em observação falou
que tinha o compasso composto também para os alunos), falando que era o que dava
ritmo na música, e que pro samba usariam o compasso 2/4, - ele dava exemplos sobre os
compassos e outros pontos da teoria musical com marcações na voz, onomatopeias ou
com movimentos das mãos, em alguns casos somavam os dois ou mais movimentos –
também ia reforçando falando o nome das figuras rítmicas e seus valores para completar
os compassos corretamente e perguntava as respostas aos alunos, fazendo alguns
desafios.
Em seguida propôs um desafio e pedia para os alunos falarem em voz alta o
ritmo proposto, depois pediu para que marcassem o pulso com as palmas e lessem
simultaneamente, depois pediu para que só lessem enquanto ele marcava o pulso com as
palmas ou batendo nas figuras escritas no quadro. Notei que isto melhorou na
compreensão dos alunos até a chegada da autonomia na leitura, advinda da experiência
empírica recém vivida, concordando com Demo (2011, P. 19) uma das funções da
autonomia “é de facilitador, não para “facilitar” as coisas, mas para motivar, apontar,
chamar a atenção, criticar, abrir oportunidades, avaliar. [...] Autonomia é conquista
árdua e nunca terminada.”.
Os alunos por terem gostado da atividade, começaram a ficar mais eufóricos e
interagindo socialmente em sala de aula, isto também fez com que se dispersassem,
então o professor teve que usar o aviso sonoro para que eles se lembrassem de cooperar.

É o meu bom senso que me adverte de que exercer a minha autoridade de


professor na classe, tomando decisões, orientando atividades, estabelecendo
tarefas, cobrando a produção individual e coletiva do grupo não é sinal de
autoritarismo de minha parte. É a minha autoridade cumprindo o seu dever.
(FREIRE, 2002. P. 68).

Quando alguns alunos erravam alguma leitura rítmica os outros começavam a


caçoar o indivíduo que tinha cometido o equívoco, quando algum errava por desatenção
ou não tinha ânimo para ler o ritmo em voz alta o próprio Gabriel falava algo pra
chamar atenção do aluno, tirando uma brincadeira que fazia alguns alunos rirem,
mostrando que para uma boa aula é preciso equilíbrio entre razão e emoção, entre teoria
e prática e a boa relação entre professor e aluno, como explica Demo (2011, P. 31) “Se,

46
algumas vezes, a emoção atrapalha o raciocínio – quando precisa ser frio -, outras vezes
o torna tanto mais vivo, colorido, vibrante. Precisamos, na verdade, dos dois.”.
Para reforçar a prática de leitura rítmica, o professor ia fazendo com que cada
fila lesse os compassos que estavam no quadro e a cada mudança de fila ele ia fazendo
algumas alterações. Terminada esta atividade, ele dividiu a turma em dois e falou que
iria começar a ensinar a parte rítmica dos surdos, uma lado ficaria responsável pela
leitura do surdo 1 e o outro pelo surdo 2, e iria acrescentar posteriormente, prato,
repique e caixa, já o tamborim e os guizos ele iria passar a partitura para um amigo para
que montasse um arranjo antes de passar para os alunos. Então começou a escrever no
quadro a linha do surdo 1 e do surdo 2, que ficaram desta forma:

28

Chamou dois alunos, lhes entregou os surdos e começou a explicar a partitura


dos surdos 1 e 2 fazendo a marcação apontando para as figuras escritas no quadro e
lendo os compassos tocando no surdo de um dos alunos, pediu para que observassem
atentamente as pausas também quando fossem ler: “[...] se prestar atenção, no surdo 1
já diz, ele é em que tempo? No um... se você prestar atenção o tempo dois tá em pausa.”
(Informação verbal)29, e em seguida dava alguns exemplos do que acabava de explicar.
Quando terminou de escrever a partitura do surdo 2 explicou que tinha uma pequena
diferença, o tempo forte estava no tempo 1 e no surdo 2 o tempo forte estava no tempo
dois, ou seja no contratempo, aproveitou para explicar que a acentuação que estava em
cima da figura na pauta orientava essa mudança de acentuação na leitura rítmica e que
portanto deveriam ficar atentos a esses detalhes. Ao explicar este ponto fez uma
observação para que os alunos estudassem e que depois definiria quem iria tocar os
surdos 1 e 2 nas apresentações e que antes disso, testá-los-iam um por um com
paciência, pois teria até o mês de janeiro do ano seguinte para organizar o grupo.
Quando os alunos que estavam nos seus respectivos surdos começaram a ler a
partitura no quadro, o professor Gabriel logo percebeu que eles estava tendo algumas
dificuldades com o tempo, então ele foi ajudar guiando-os pelo quadro e utilizando

28
Trecho da célula rítmica do naipe dos surdos.
29
Proveniente do áudio da observação.
47
onomatopeia, quando era hora de deixar o aluno ter autonomia e ler sozinho este aluno
tinha uma recaída e logo se entregava ao erro, mas era perceptível que aquele erro
persistia por pura falta de concentração e paciência, provocando até em certos
momentos a frase em uníssono da turma, expondo sua falha: “Ó a pausa!” (Informação
verbal)30. Já em outras situações algum aluno fazia um trocadilho: “Esse homi esqueceu
da pausa, vai buscar ela”. (Informação verbal)31. Quando este equívoco se tornava
muito presente o monitor Bruno resolvia intervir na explicação e dar um conselho para o
aluno falando: “É que esse homi tá olhando demais pra Gabriel, tem que olhar pra
pauta.” (Informação verbal)32. Essa pequena observação foi de grande importância para
que o aluno compreendesse o seu “erro”, Freire (2002, P. 92) afirma que “Uma das
tarefas fundamentais do educador progressista é, sensível à leitura e à releitura do
grupo, provocá-lo bem como estimular a generalização da nova forma de compreensão
do contexto.”.
Depois destes diversos conselhos o aluno conseguiu ler e ficou feliz ao fazê-lo,
logo em seguida o professor pediu para que o outro aluno que estava no surdo lesse a
partitura 1 enquanto o outro lia a partitura 2, percebi que eles se confundiam um pouco
e começavam a ler os dois só a linha do surdo 1 e o professor logo interrompia e
explicava que um deveria ler o surdo 1 e outro deveria ler a de baixo, o surdo 2, para
ajudar, algumas vezes tocava junto com o aluno que estava apresentando dificuldades.
Depois de os alunos dos surdos terem praticado por um bom tempo, o professor
aproveitou para chamar outro para vir aprender a linha rítmica da caixa, ao escrever a
partitura no quadro a turma se espantou pois utilizava muitas colcheias e semicolcheias.
O jovem começou a ler e em certos momentos teve dificuldade apenas com o tempo e
acentuação, foi aí que o monitor Bruno veio auxiliar, sentou perto dele e com suas
baquetas começou a tocar com um andamento mais lento e a ditar com onomatopeias
enquanto o outro também tocava, atento aos movimentos e as dicas do monitor: “A
acentuação é só na primeira e na quarta” (Informação verbal)33.
Ele também fez algumas demonstrações solo para que o aluno e a turma
ouvissem como era, ou ia para o quadro explicar a técnica embasada na prática e teórica
e com esses auxílios o jovem conseguiu aprender. Quando o professor Gabriel pediu

30
Proveniente do áudio da observação.
31
Proveniente do áudio da observação.
32
Proveniente do áudio da observação.
33
Proveniente do áudio da observação.
48
para que o aluno tentasse ler e tocar sozinho em um andamento mais lento ele conseguiu
na primeira tentativa, o professor aproveitou para dizer: “Gente, o macete é ir estudando
devagar e ir prestando atenção na acentuação.” (Informação verbal)34. Depois disso,
pediu para que caixa e surdos se juntassem à prática, o monitor Bruno junto com outro
aluno tocavam na mesma caixa e dois outros nos surdos enquanto Gabriel marcava a
pulsação com clavas.
Ao tocarem juntos houve uma certa dificuldade com a entrada do caixista, (um
dos alunos, - um dos poucos adultos no projeto - ao ver o processo de aprendizado do
samba na caixa, se levantou e disse: “Eu vou é embora que eu não quero passar
vergonha não”. (Informação verbal)35 a turma riu e o professor Gabriel pediu para que
ele ficasse, que ele iria aprender sim.).
O monitor Bruno foi até ao quadro explicar o sentido do que estava escrito na
partitura da caixa para auxiliar na execução do aluno, apontou para as letras que ficam
bem abaixo das figuras que indicam a mão que deveria baquetear (do inglês R ou L –
Right or Left, Direita ou Esquerda) e explicou que essa indicação servia para orientar
quem estava lendo informando as nuances – que naquele caso era a acentuação em
alguns pontos -, então começou a ler utilizando onomatopeia e dando ênfase nas
acentuações que a partitura pedia para que o aluno entendesse, e antes que ele pudesse
terminar a explicação um dos alunos que estava apenas observando de sua cadeira
interrompeu falando: “Bruninho! Lembra que da outra vez esse homi mandou usar as
duas mãos pra ficar mais fácil?” (Informação verbal)36. E Bruno respondeu: “É que
nem esse homi explica (referindo-se a Gabriel), tem uma coisa que vocês tocam que é
taca-taca e outras que é daga-daga, tem alguma diferença? (a turma respondeu que
sim) Então, essa acentuação aqui (da mão direita) dá uma diferença grande”
(Informações verbais)37. Com essa explicação, percebi que o aluno que tinha
questionado sanou sua dúvida, pois entendeu o motivo pelo qual o professor e o monitor
estavam focando na parte técnica especificada na partitura.

Já que o objetivo do trabalho do professor é a aprendizagem dos alunos, para


que a mesma ocorra, muitos fatores são necessários, como a capacidade
intelectual e vontade de aprender por parte do aluno, conhecimento e
capacidade de construção de conteúdos por parte do professor, apoio extra-
classe por parte dos pais e tantos outros. (ZONTA, 2006. P. 03).

34
Proveniente do áudio da observação.
35
Proveniente do áudio da observação.
36
Proveniente do áudio da observação.
37
Provenientes do áudio da observação.
49
Com o caminhar da prática eles conseguiram entrar em harmonia uns com os
outros, é importante observar que quando os alunos atingiam essa segurança, o
professor prontamente chamava outro aluno para se inteirar à prática musical,
aproveitando o ensejo para ensinar a partitura de outro instrumento. Então o professor
disse que iria escrever a linha do repique e comentou que a acentuação do repique seria
diferente, e chamou outro aluno para ir até lá para aprender, mas quem acabou ficando
responsável pela linha do repique naquele momento foi o monitor, pois na sala os
alunos que tocavam repique tinham faltado ao masterclass.
O monitor tocou a linha do repique que o professor tinha escrito no quadro para
que a turma ouvisse como o ritmo deveria ficar, quando a demonstração terminou pediu:
“Pronto, o repique é isso. Agora vamos cada um na sua parte pra ver se a gente
consegue entrar. Ó, devagarzinho, se concentrem agora, vamos fazer tudinho, um...
dois... pausa, pausa.” (Informação verbal)38. E aí eles entraram, mas em tempos
diferentes, pois não estavam se concentrando na leitura rítmica, então o monitor utilizou
uma onomatopeia da entrada de todos os instrumentos, dando ênfase com movimentos
de cabeça, e o professor marcando a pulsação no quadro e lendo em voz alta também.
Houve uma observação acerca do caixista, pois ele não estava atento as pausas
que indicavam que o músico deveria esperar dois tempo antes de começar a tocar e que
o único instrumento que já iniciava em nota era o repique, então o professor o alertou
explicando novamente a função dela para o fazer musical e ainda frisou que o erro só
persistia ainda por falta de atenção da parte dele. O trabalho de concentração para com
esse aluno ainda se estendeu por alguns minutos até que ele conseguiu gerar fluência na
execução que coincide com o que Demo (2011, P. 19) fala, “Autonomia é conquista
árdua e nunca terminada. Dói, sobretudo no começo, pois sua primeira fase é sentir-se
perdido. Tirada a muleta, a pessoa se sente abandonada. Mas só assim descobre que
pode andar sem muleta.”.
Em seguida chamou alguém do naipe dos pratos, então uma aluna se levantou e
timidamente foi até aonde os demais estavam, o professor lhe mostrou a partitura dos
pratos, leu em voz alta e fazendo a marcação na primeira vez e na segunda vez pegou os
pratos dela e tocou, quando terminou, pediu para que ela se aproximasse mais para que
pudesse ter uma melhor visão do quadro, então ela se sentou em uma cadeira da
primeira fileira e começou a ler e tocar, ela praticou duas vezes com o acompanhamento

38
Proveniente do áudio da observação.
50
e a seguir o professor pediu para que tocassem todos, esse ciclo perpetuou-se durante
diversos momentos, principalmente quando acrescentava-se um instrumento ao círculo
de estudo, foi assim também com o ganzá tocado por uma outra aluna, que vendo o
outro aluno desdenhar da prática por estar com preguiça se prontificou rapidamente
afirmando que queria tentar, e participou da prática com grande ânimo. Tal atitude
partiu de um interesse e curiosidade em conhecer o ganzá, a curiosidade portanto foi
sentimento motivador que a fez autônoma no processo de iniciação a aprendizagem do
objeto, é o que explica Freire (2002, P. 97) “O exercício da curiosidade a faz mais
criticamente curiosa, mais metodicamente “perseguidora” do seu objeto. Quanto mais a
curiosidade espontânea se intensifica, mas, sobretudo, se “rigoriza”, tanto mais
epistemológica ela vai se tornando.”
Não demorou muito para que ele juntasse todos os naipes e com o fazer musical
que estava acontecendo já iniciasse uma prévia de ensaio, começando com ciclos de
estudo durando em média um minuto e meio que ao fim do masterclass já estava
durando cerca de 10 minutos corridos, pausava para fazer algumas observações ou
mudar de aluno – que revezavam instrumentos - e reiniciava o ciclo de estudo, sempre
frisando nos pontos que ainda persistiam no erro como a falta de atenção e dificuldade
de manterem-se no tempo proposto.
Um dos alunos caixistas questionou o professor do porquê que tinha que tocar
daquele jeito, sem nenhuma mudança (improviso), o professor explicou que improviso
tem um momento certo e que em certos ritmos o mais simples – no caso desse samba
com caixa na levada Oxóssi - ficaria mais swingado, mais bonito, que era isso que o
povo queria ouvir, citou como analogia por exemplo o caso do baterista do Wesley
Safadão39, se por acaso ele começasse a improvisar do jeito que ele quisesse num show
o show seria dele ou do cantor, se seria voltado apenas para solo de bateria, dando um
exemplo de como ficaria a sonoridade.
Esta analogia levantou algumas gargalhadas dos alunos, e ainda finalizou
perguntando: “Como é que a pessoa vai improvisar em cima de uma coisa que ela não
sabe? Como é que a escola de samba vai improvisar se não sabe que o santo da escola
é Oxóssi?” (Informação verbal)40 Um dos alunos ainda perguntou: “Mas porque é tão
diferente? E o professor respondeu: Não é que seja diferente, mas é que a linguagem do

39
Cantor famoso do forró eletrônico.
40
Proveniente de áudio da observação.
51
samba é essa. [...] Como o frevo tem sua linguagem... [...] por isso não podemos mudar
a linguagem. [...]A nossa linguagem tá em cima de quê? Oxóssi, no santo da escola.
[...] Aí o povo acha que pra fazer um samba diferenciado tem que tocar no beep assim
(batendo as clavas em andamento acelerado), primeiro, perde swing, perde a ideia, a
linguagem, a interpretação...” (Informações verbais)41. Deu um exemplo do que
acabara de explicar tocando Brasileirinho42 na flauta doce com um andamento bem
rápido e interpretação frenética para ilustrar que rapidez na execução não era sinônimo
de tocar bem, “Por isso, pensar não é apenas ter idéias, mas tê-las com jeito” (DEMO,
2011, p. 31).
Aproveitou para mostrar aos alunos que os surdos possuíam uma afinação
diferente um do outro justamente para dar vida a linguagem do samba, e que melodia e
ritmo eram diferentes, porém se completavam num todo musical, e se todos tocarem no
padrão que tem que ser iria melodizar a bateri. Então pediu para que tentassem fazer a
linguagem deste samba, que fizessem diferente dos outros grupos pedindo-os para
imaginar como seriam em média 80 alunos tocando de forma harmoniosa e conscientes
do que estão fazendo e tocando.
Notei que o professor percebeu a insegurança de alguns alunos, mas ele disse
que iriam aprender assim como aprenderam a tocar samba-reggae e que por sinal,
tocavam e improvisavam muito bem por que já tinham estudado e aproveitado muito o
aprendizado. Pediu que se esforçassem para ter paciência e concentração para aprender
o samba e perceberiam que ficaria cada vez mais fácil tocar, ainda falou que sua
intenção era estudar para passar para os alunos do P.S.M.L.J uma confiança na hora das
apresentações e ainda soubessem a parte teórica, que queria ver todo mundo
impressionado com a performance musical deles, e que portanto todos teriam que
cooperar, aprender o esquenta, a levada, história, técnica, teoria e etc. Depois dessa
conversa, vi-os motivados a tentar novamente, então o professor iniciou outros ciclos de
estudo/ensaio, auxiliando-os quando percebia algum ponto a ser trabalhado.
Antes de terminar o masterclass comentou que como os próprios alunos
perceberam, o processo é demorado pois são muitos alunos e existem alguns detalhes
importantes que não poderão ser ignorados, e que portanto, iria marcar outras aulas
trazendo uma partitura para cada um dos alunos já irem estudando em casa até

41
Provenientes de áudio da observação.
42
É um choro composto em 1947 por Waldir Azevedo.
52
marcarem a próxima aula. A aula terminou às 17h30min da tarde e todo mundo seguiu
em direção a casa de um dos alunos do projeto que toca trombone de vara para tocar no
aniversário dele.

4.4 Observação 04: Ensaio do dia 06 de outubro de 2017

Cheguei no local às 16h:50min e notei que os alunos já estavam se organizando


e arrumando os instrumentos para o início do ensaio às 17hs, estavam presentes em
torno de 13 alunos até aquele momento e o professor Gabriel ainda não tinha chegado,
fato este que espantou alguns alunos pois ele não costuma se atrasar, chegando no local
sempre com alguns minutos de antecedência. Enquanto o professor não chegava percebi
que haviam no local cerca de 4 crianças que perambulavam a pé ou em bicicletas e
observavam com grande curiosidade a movimentação dos alunos carregando os
instrumentos. Em pouco tempo de espera já se via em torno de 44 alunos esperando
pelo início do ensaio.
Gabriel chegou apenas 5 minutos atrasado, às 17h: 05min e acompanhado de um
dos alunos chamado Lucas nomeado por Gabriel como ajudante na parte da
organização, tornando-o coordenador simbólico do projeto. Lucas já tinha orientado os
alunos a colocar os instrumentos em suas respectivas formações, o professor de forma
cordial deu boa tarde para todos e pediu para que todos se posicionassem em seus
lugares para dar início ao ensaio, começou fazendo um alongamento enquanto os alunos
repetiam e ao final do alongamento pediu para que começassem tocando samba-reggae
para “dar uma aquecida 43”, como ele mesmo falou.
Quando começaram o ensaio chegaram mais alguns observadores, agora eram
cerca de 5 adolescentes, uns a pé e outros de bicicleta rondando o espaço, um desses
alunos segurava um violão e enquanto o grupo tocava uma música de Roberto Carlos
intitulada Amor Perfeito44 na versão de Claudia Leitte ele acompanhava tocando a
harmonia no violão, porém não se dava para ouvir ele tocando por motivos óbvios de
intensidade e potência sonora dos instrumentos percutidos pelo Leão de Judá. Sobre
essa cena podemos concordar com o que Souza (2004, P. 10) diz, que “Esses meios de
socialização que oferecem referências de identidade ao ser jovem ou criança não são só

43
Proveniente de áudio da observação.
44
Música de Roberto Carlos na versão de Claudia Leitte.
53
os lugares tradicionais que representam relações pedagógicas institucionais como a
família, a igreja e a escola.”.
Enquanto os alunos tocavam o professor passou pelas fileiras dos naipes
alinhando-os, observei que ele também preza muito pela estética visual e de organização
do Leão de Judá, pois ele considera importante também estética, pois mostra
organização no grupo. “A necessária promoção da ingenuidade à criticidade não pode
ou não deve ser feita à distância de uma rigorosa formação ética ao lado sempre da
estética.” (FREIRE, 2002. P. 36).
Em um certo momento do ensaio, Bruno que neste dia estava no naipe do
repique fez um pequeno floreio num ponto inesperado da música, esta ação provocou
alguns pequenos sorrisos e olhares na direção dele, pois não estavam esperando essa
virada no repique, porém Bruno não fomentou as conversas que já tinham se iniciado
acerca do ocorrido para que não se desconcentrassem no ensaio.
O “coordenador” Lucas estava no naipe dos bumbos, pois o aluno responsável
pelo instrumento ainda não tinha chegado no ensaio, quando o aluno chegou, às
17h:23min, eles fizeram a troca sem interromper o andamento do ensaio. Houve
também outra mudança de aluno, dessa vez entre os repiques, quando houve a troca o
outro aluno sentou e ficou observando o ensaio e mais especificamente o naipe ao qual
pertencia.

A construção ou a produção do conhecimento do objeto implica o exercício


da curiosidade, sua capacidade crítica de “tomar distância” do objeto, de
observá-lo, de delimitá-lo, de cindi-lo, de “cercar” o objeto ou fazer sua
aproximação metódica, sua capacidade de comparar [...]. (FREIRE, 2002. P.
95).

Ainda teve mais uma mudança entre os repiques e caixas durante o ensaio, em
certo momento o repique era tocado por 2 alunos ao mesmo tempo (devido à falta de
alguns instrumentos no projeto) e enquanto eles compartilhavam o repique o primeiro
aluno que estava tocando neste naipe passou a tocar no naipe dos surdos. Observa-se
então que havia um rodízio de alunos e instrumentos no ensaio, principalmente quando
alguns alunos faltam muitas aulas e ensaios, então eles eram orientados a fazerem isso
para que ficassem atualizados com o repertório do grupo e conseguissem acompanhar
nas próximas vezes.
Quando o ciclo de músicas do ensaio do samba-reggae terminou ouviu-se
aplausos dos observadores e alguns comentários como: “Chorou!; É massa boy!”

54
(Informações verbais)45, em seguida Gabriel pediu silêncio e atenção pois iria falar a
agenda para a semana seguinte, quando acabou de dar as informações pediu para que os
alunos guardassem os instrumentos, então saíram de suas formações e a maioria foi
guardar os instrumentos enquanto alguns do naipe dos repiques fizeram a virada que
caracteriza a entrada do samba-reggae e alguns alunos do surdo não hesitaram em
responder acompanhando também, nesse momento cheguei a pensar que eles iniciariam
o ciclo novamente mas não o fizeram e foram guardar os instrumentos, o ensaio
terminou enfim às 17h:45min.

4.5 Observação 05: Aula/ensaio com o naipe dos surdos no dia 10 de outubro de
2017.
Cheguei ao ponto de encontro dos ensaios às 17h: 25min já preocupada pois o
ensaio sempre começa às 17h:00min e 25 minutos de atraso acarretaria em uma perda
de informações consideráveis, mas ao notar que o professor não tinha chegado ainda
fiquei ao mesmo tempo aliviada e preocupada com o paradeiro do professor, os alunos
também demonstraram um pouco de preocupação pois não conseguiam se comunicar
com o professor. Com isso se torna evidente que os alunos criaram um laço afetivo com
o professor, evidenciando:

O que se diz, como se diz, em que momento e por quê - da mesma forma que
o que se faz, como se faz, em que momento e por quê - afetam
profundamente as relações professor-aluno e, conseqüentemente, influenciam
diretamente o processo de ensino-aprendizagem, ou seja, as próprias relações
entre sujeito e objeto. Nesse processo de inter-relação, o comportamento do
professor, em sala de aula, através de suas intenções, crenças, seus valores,
sentimentos, desejos, afeta cada aluno individualmente. (LEITE et al, 2000.
P. 11).

Durante a espera comecei a observar o comportamento dos alunos e dos demais


indivíduos que estavam presentes no local. Alguns alunos do projeto social possuem
seus grupos de colegas na qual possuem mais afinidade então começaram a se juntar
para conversar, flertavam com algumas garotas que apareceram no local (que não
pertenciam ao Leão de Judá), alguns andavam de bicicleta pelo espaço, um aluno que
nunca tinha visto por lá sentou próximo de onde estava pegou uma folha de partitura e
começou a estudar leitura rítmica e solfejo enquanto batia o pulso com batidas nas

45
A expressão/ gíria “chorou” no contexto social estudado tem sentido positivo, significando algo muito
legal, interessante.

55
pernas e ás vezes apenas assoviava a melodia que lia na partitura. Este aluno interagia
com poucas pessoas e estava muito focado em seu momento de estudo, outros alunos
estudavam batucando com as baquetas no chão ou nos pneus (que ficam embaixo da
árvore em frente a casa de cultura e servem como bancos).
Ouvia-se também algumas queixas com relação a demora do professor chegar,
pois todos esperavam que a aula começasse no horário estabelecido, mas poucos
minutos depois um dos alunos do projeto avisou para todos que tinha conseguido falar
com Gabriel e que o mesmo pediu pra avisar que a aula começaria às 18:00hs, mas não
informou o motivo do atraso.
Percebi que alguns alunos de outros naipes também estavam presentes, talvez
por não terem prestado atenção ao comunicado do ensaio anterior que afirmava que
aquele dia seria focado ao naipe dos surdos ou então vieram porque queriam apenas
observar a aula e conversar com os colegas.

Sendo assim, nota-se a importância do educador vivenciar os ideais, atitudes


e valores que deseja cultivar nos alunos, para que o processo de
aprendizagem ocorra harmoniosamente, proporcionando um convívio diário
saudável, e a sala de aula um espaço agradável para ambos, professor/aluno,
que serão contagiados pelo afeto e pelo saber. (ZONTA, 2006. P. 05).

Ao analisar mais o local, percebi que atrás de onde sentei estava uma mãe com
seu filho (aluno novato do naipe dos surdos com cerca de 10-12 anos) aparentando estar
impaciente com a ausência do professor, o garoto então pede de forma suplicante para
que a mãe esperasse mais um pouco, afirmando que o professor já estava chegando.
Escutei algum aluno estudando caixa dentro da casa de cultura, neste momento o
aluno que estava estudando leitura rítmica e solfejo se levantou pegou o case do seu
instrumento e foi em direção ao som, pouco tempo depois escutei-o tocando seu sax, em
seguida comecei a ouvi-los tocando frevo. Do lado de fora um grupo de alunos
conversava sobre assuntos do Leão de Judá, sobre as músicas que ouviam e gostavam e
acabaram discutindo sobre qual era a religião da banda Rosa de Saron46, se eram
evangélicos ou católicos.
Em pouco tempo espalhou-se a notícia de que não haveria mais ensaio, porém
ninguém sabia informar a fonte da notícia ou se era verdadeira ou falsa, então ninguém
foi embora. Depois do boato não tardou muito para que Gabriel chegasse, eram
18h35min da noite. Ele foi logo ao meu encontro me explicar o motivo do atraso (tinha

46
Banda brasileira de rock cristão ou white metal.
56
começado a dar aula de trompete na Ilha de Música47, do maestro Gilberto Cabral, e
tinha passado em casa para descansar e se alimentar, por isso resolveu adiar o horário do
ensaio ao constatar que não daria tempo de chegar às 17h00min).
A aula então iniciou às 18h40min da noite, o professor começou a organizar os
alunos do naipe dos surdos e já que praticamente todos os alunos de outros naipes
estavam lá aproveitou para inseri-los na prática como guia sonoro para os surdistas,
então também separou 1 caixa, 1 repique e 1 bumbo. Enquanto ele dava as orientações
iniciais alguns alunos tocavam, o que fazia com que o professor pedisse e utilizasse o
aviso sonoro apitando várias vezes para que eles parassem e prestassem atenção para
que os surdistas e eles mesmos entendessem as orientações. O uso da autoridade se fez
presente e tem seu grau de relevância no papel do educador, segundo Freire (2002, p.
122) “A posição mais difícil, indiscutivelmente correta, é a do democrata, coerente com
seu sonho solidário e igualitário, para quem não é possível autoridade sem liberdade e
esta sem aquela.”.
O professor falou que os surdos que ficassem na linha de frente iriam fazer o
surdo 1, os do meio o solo e os de trás os surdos 2 (referente as partituras dos surdos da
última aula de samba), depois da virada da caixa “tagadagada dumdum” os surdos
deveriam entrar e fazer algo diferente, o surdo 1 ficaria na marcação do tempo 1
enquanto que os surdos 2 ficariam no contratempo.
Quando o professor resolveu fazer o primeiro teste de execução os alunos não se
atentaram na entrada e erraram o tempo, Gabriel parou e logo exclamou “Olha o tempo
galera, vamos, se concentrar, isso é simples!” (Informação verbal)48, enquanto os
alunos tentavam internalizar o que estavam aprendendo o professor Gabriel e Bruno
enfatizavam alguns pontos que deveriam ser observados pelos alunos como a pulsação.
Ouvia-se sempre: “Sem acelerar!” (Informação verbal)49.
Quando eles conseguiram manter a pulsação os demais instrumentos começaram
a entrar e enquanto todos tocavam Gabriel ia reforçando os pontos que deveriam ser
melhorados nos surdistas. Ao fim do primeiro exercício prático Gabriel aproveitou para
dar uma dica que poderia facilitar na entrada e na pulsação dos surdistas: “Se vocês
imaginarem que tá fazendo aqui... só pra vocês não perderem o tempo ó, um...
(indicando marcação no surdo) e na mão solta marca o dois, eles são o tempo um e
47
Projeto de música para a comunidade do bairro da Redinha, Natal-RN.
48
Proveniente de áudio da observação.
49
Proveniente de áudio da observação.
57
aqui o contrário deles.” (Informação verbal)50 E Bruno complementou: “O tempo um é
abafado.” (Informação verbal)51. A adaptação da linguagem fez com que esses alunos
captassem a ideia e pediu para que fossem devagar para treinarem e internalizarem essa
parte e pediu para que não parassem de tocar enquanto ele não autorizasse.
Alguns surdistas se dispersaram durante uma nova explicação e entraram dentro
da casa de cultura, quando o professor percebeu a ausência deles logo emitiu um aviso
sonoro com o apito e falou: “Olha os surdos que estão aí dentro ó, depois eu quero
perguntar e quero resposta, beleza?” (Informação verbal)52, assim que ouviram todos
saíram e se juntaram ao círculo onde os demais surdistas ouviam os conselhos do
professor, ele falava que queria todo mundo tocando essa simples célula rítmica até a
sexta-feira e que não teriam como eles tocarem coisas mais difíceis se não se
concentrassem para aprender o mais fácil (eles estavam tendo muitas dificuldades com o
contratempo também).
Quando iniciou-se o exercício prático novamente eles conseguiram entrar
corretamente, porém um dos surdistas da linha de frente estava floreando demais na
execução, então o professor logo notou, parou o exercício e falou: “Quanto mais
simples mais bonito, se você fizer tudududududu vai embaralhar eles tudinho, o mais
simples tem mais balanço. Olha como o mais simples vai ficar bonito, prepara ó, um,
dois!” (Informação verbal)53, e tocaram novamente enquanto este aluno só observava,
em seguida acompanhou os demais. Quando foram treinar mais uma vez o professor
pediu para que se concentrassem no ritmo, pois iria filmar e mandar para a escola de
samba das Rocas, chamou o Lucas e pediu para que filmasse-os tocando. Depois da
primeira filmagem ele disse que o samba bonito é o samba tocado de maneira simples,
ainda disse que quando eles enchem de floreios fica confuso e que naquele momento
queria o mais simples.
Assim que a filmagem acabou pediu para que os surdistas titulares e os reservas
estudassem com a partitura em casa, pois eles já sabiam os valores das figuras e não
queria mais ter que ficar utilizando avisos sonoros com o apito e chamando a atenção
deles para detalhes tão simples que refletem apenas a falta de atenção deles. Em seguida

50
Proveniente de áudio da observação.
51
Proveniente de áudio da observação.
52
Proveniente de áudio da observação.
53
Proveniente de áudio da observação.

58
fez o rodízio de alunos para participarem do exercício prático, enfatizando que o samba
ali estava sendo passado de forma simples, assim que os alunos se posicionaram deu
início a prática e pediu para repetirem mais algumas vezes, depois dessas práticas pediu
para que Lucas filmasse-os mais uma vez. Às 19h12min já notava-se uma execução
bem mais limpa e no tempo do que no início do ensaio, após uma última prática a
aula/ensaio finalizou às 19h15min da noite.

4.6 Observação 06: Aula/ensaio com os naipes dos pratos, repiques e caixas no dia
11 de outubro de 2017

Neste dia resolvi ir na casa do professor Gabriel para poder colher algumas
informações referentes a biografia do projeto social de música Leão de Judá, chegando
lá Gabriel estava terminando de organizar alguns registros da história do projeto no
computador e enquanto ele terminava íamos conversando. Entretanto, devido a falta de
internet e de tempo para terminar de organizar o relatório ele resolveu me entregar em
outro dia assim que terminasse de completar as informações necessárias. Por esse e
outros motivos (espera de transportes de condução) chegamos em Felipe Camarão de
18h15min.

Quando cheguei na casa de cultura já vi alguns alunos do naipe dos pratos já


com os mesmos nas mãos estudando alguns malabarismos que embelezariam e
deixariam as apresentações mais criativas (essa iniciativa partiu dos próprios alunos do
naipe dos pratos, mais especificamente de um garoto que gosta de criar malabarismos e
passos coreográficos para utilizar nas apresentações e desfiles do Leão de Judá).

Um aspecto essencial da corporalidade e que, em grande parte, depende da


música, é a dança. [...] Além da dança há outros momentos que fazem parte
da corporalidade em conexão com a prática musical. Tocar um instrumento é
uma dessas ações basicamente corporais. Além de, muitas vezes, serem
vistos como extensão do corpo humano, instrumentos musicais levam os seus
mestres a desenvolver verdadeiras façanhas, vedadas a demais corpos, não
iniciados e trabalhados para dominarem a técnica instrumental. (PINTO,
2001. P. 232-234).

A aula/ensaio iniciou efetivamente às 18h20min da noite, os professores Gabriel


e Bruno foram logo ao encontro dos alunos pedindo desculpas pelo atraso e pediu para
que os naipes das caixas e pratos se juntassem para darem início aos exercícios práticos.
Retomou novamente os exercícios feitos no masterclass de samba, agora com a
participação em conjunto do naipe dos pratos. Os pratos deveriam tocar no tempo um

59
abafado e no tempo dois batendo e deslizando, as caixas começaram a praticar em um
andamento lento enquanto os pratos entravam ao verem o comando do professor. Aos
poucos ele pedia para que acelerassem o andamento e quando o faziam Gabriel pedia
para que permanecessem no tempo até que vissem ou ouvissem o sinal de parada.
Em um dado momento Bruno falou para os caixistas que teriam que tocar as
semicolcheias de forma mais solta lembrando sempre das acentuações pois eram elas
que dariam a característica pedida no samba. Em seguida fez a atividade prática junto
com eles para que entendessem como deveriam ficar as acentuações e aos poucos foram
acelerando o andamento enquanto os alunos do prato olhavam atentamente os caixistas
praticando.
Quando os pratos e caixas já tinham praticado o professor pediu para que fosse a
vez de só os repiques praticarem, relembrou a célula rítmica deles e iniciou a prática, os
alunos não tiveram dificuldades quanto a execução então o professor chamou os demais
naipes para que tocassem juntos.
O professor aproveitou que todos estavam reunidos e deu algumas dicas sobre
técnica de execução, para que os alunos melhorassem suas performances e não
tencionassem demais os membros ao tocar, “Quando eu toco e quero chegar na região
aguda eu tenho que adaptar a posição das mãos e do pulso, na caixa, no repique, no
prato é a mesma coisa (...).” (Informação verbal)54. Após a explicação a performance
dos alunos melhorou, então o professor revisou os exercícios individualmente e depois
revisou com todos os naipes juntos até a aula/ensaio, fato este que não tardou a
acontecer, às 19:10hs da noite foi finalizada.

54
Proveniente de áudio da observação.
60
5. ENTREVISTA E ANÁLISES GERAIS

5.1 Primeiros contatos com a educação musical


O professor relatou que iniciou seus estudos musicais muito jovem, com quase
12 anos de idade e compunha a primeira turma do curso básico de trompete da Escola
de Música da UFRN junto com mais 3 indivíduos em meados de 2002-2003.
“[...] a gente era tão moleque que não tinha idade de fazer o curso técnico [...]
No básico a gente tava tendo um bom resultado, todos os três. [...] o que era
do curso básico a gente tava indo sempre mais rápido, mesmo sendo menino,
mas era interessante [...] foi daí que a gente criou a expectativa e depois tive a
necessidade de banda, financeiramente, aí fui pra banda e fiquei estudando
aqui [...] aí foi quando fui me desvinculando, depois que eu completei 19
anos mermo fiz o negócio do estado e comecei a dar aula, depois me envolvi
com o projeto e tô até hoje. [...]”. (Informação verbal)55.

O seu primeiro contato com o trompete foi na própria comunidade de Santos


Reis com um professor oriundo do corpo dos músicos do exército brasileiro, durante
esse período também estudou flauta doce cerca de 2 anos. Posteriormente passou algum
tempo sem estudar música pois não tinha condições de comprar o trompete, pois o que
ele usava para estudar até então tinha sido recolhido pela paróquia da igreja - por causa
de cortes no orçamento - que anteriormente tinha lhe emprestado, vendo-se sem
alternativa começou a trabalhar como vendedor na praia próximo a sua casa até
conseguir dinheiro suficiente para comprar um trompete (ainda quebrado) e em seguida
dar prosseguimento aos seus estudos.
Durante a entrevista o professor Gabriel quis deixar evidente que tem a intenção
de fazer a licenciatura em Música em breve, pois apesar de sua importância no quesito
de seguridade legal há também oportunidades de trabalho relacionado a educação
musical que lhes foram ofertadas, porém só poderá assumir quando entrar na
licenciatura em música, como ele mesmo afirmou:
“Mas vou fazer esse ano a licenciatura, mas tipo assim eu paguei curso com
professor dos Estados Unidos, com professor da Rússia, do Uruguai...
Masterclass, oficina, tudo. Da Unirio, da universidade de São Paulo, de
Brasília, [...] já tive contato com os professores. [...] Tô com uns empregos aí
pendurados e tá pedindo a licenciatura. E o engraçado é porque o povo tá
esperando só eu entrar, não estão botando outras pessoas não, pronto, eu tô lá
na Ilha de bolsista mas disseram que se eu passar na licenciatura melhor. Aí
eu digo: relaxe que então eu vou passar.” (Informação verbal).

Esse trecho evidencia que apesar de ter tido uma formação inicial em música já
dentro da universidade, o professor tem a intenção de ter uma titulação acadêmica

55
Informação adquirida a partir da entrevista realizada em Natal-RN em 30/10/2017.
61
referente ao ensino superior para poder trabalhar em mais lugares que já vêm surgindo
como oportunidade de ingresso na educação musical em contextos formais. Essa
afirmação assinala a importância da formação musical formal como complementação à
experiência empírica que o mesmo já possui, essa intenção expressa, segundo o que
reitera Tardif (2010):
[...] a vontade de encontrar, nos cursos de formação de professores, uma nova
articulação e um novo equilíbrio entre os conhecimentos produzidos pelas
universidades a respeito do ensino e os saberes desenvolvidos pelos
professores em suas práticas cotidianas. (TARDIF, 2010. P. 23).

Além disso, poderíamos levar em consideração o fato de que - apesar de Gabriel


já ter uma vasta experiência prática com o ensino de música em diversos contextos de
ensino - a procura por professores de música licenciados foi um dos principais
motivadores para o objetivo construído ao longo desses anos, pois apesar de não
enxergar valor em um diploma de universidade acabou acatando às exigências que a
sociedade lhe cobra para que baseado na sua formação acadêmica considerem-no
professor legalmente.
No entanto ele mostrou ter consciência de que o processo de busca pela
estabilidade financeira (que atrai tantos para a licenciatura em música) muitas vezes
encobre o verdadeiro sentido da educação como intervenção social na construção do ser
humano e explica que só decidiu fazer a graduação por causa de seus outros objetivos
relacionados a melhoria e ampliação do espaço físico do projeto social de música Leão
de Judá. Sobre a relação da educação com o trabalho, diz Ens et al (2011) parafraseando
apud Antunes (2008):
[...] não se pode deixar de lembrar, apoiando-se em Antunes (2008, p. 3,
grifos do autor), que ao mesmo tempo em quem o trabalho é considerado
“como um momento fundante da vida humana‚ ponto de partida no processo
de humanização, por outro lado, a sociedade capitalista o transformou em
trabalho assalariado, alienado, fetichizado. O que era uma finalidade central
do ser social converte-se em meio de subsistência. [...] Converte-se em meio
e não primeira necessidade de realização humana”. (ENS et al, 2011. P. 09).

Ainda concluiu dizendo que o seu maior desejo não é viver acumulando
diplomas e aprovações em concursos públicos e sim estar dentro da comunidade, o
lugar que mais precisa de atenção.
Meu negócio é dentro da comunidade, de tá ali, aquele contato, de puxar uma
porta pra quem não tem. Assim, com toda a realidade do Brasil, com tudo
que existe eu não vou me enquadrar nessa realidade, [...] creio eu que existem

62
poucos educadores que trabalham com essa perseverança. (Informação
verbal)56.

Essa visão exibe um pensamento semelhante ao de alguns pedagogos que lutam


por uma educação centrada na formação humana como principal mecanismo de luta
pela transgressão e autonomia educacional, social e política, um desses pedagogos como
Freire (2002) afirma que:
A professora democrática, coerente, competente, que testemunha seu gosto
de vida, sua esperança no mundo melhor, que atesta sua capacidade de luta,
seu respeito às diferenças, sabe cada vez mais o valor que tem para a
modificação da realidade, a maneira consistente com que vive sua presença
no mundo, de que sua experiência na escola é apenas um momento, mas um
momento importante que precisa de ser autenticamente vivido. (FREIRE,
2002. P. 127).

5.2 Primeiros passos: estudar para intervir no contexto social local


Afirmou que antes de iniciar o projeto passou um longo período observando a
realidade social do local vivido e aprendeu com algumas ajudas e pesquisas qual era a
melhor maneira de concretizar o seu plano. Na época que mantinha vínculo com o
Estado dava aulas de música em cerca de 15 escolas e que após a desvinculação com o
emprego acabou por interromper as aulas de música nesses lugares e resolveu focar na
sua comunidade comentando que ficou um certo tempo estudando-a e inserindo-se em
ambientes ainda mais vulneráveis.
Logo após essas análises sociais ele firmou uma parceria com uma escola do
bairro de Santos Reis chamada Escola Estadual Josefa Sampaio onde teve a
oportunidade de desenvolver o seu projeto em sua fase inicial. O projeto teve um
retorno satisfatório dentro da comunidade chegando a chamar atenção da governadora
do estado, pois montou uma banda com 50 componentes, canto coral, violão e
percussão. Após algum tempo se desvinculou da escola, afirmando que sofreu ainda
mais preconceito quando o projeto social se tornou autônomo, pois recebia várias
críticas insinuando que o projeto social não daria certo. Sobre os primeiros passos na
criação do projeto ele conta:
[...] Vou ter criar a ideia do projeto, criar um nome, vou ter que saber chegar
em uma comunidade, porque ninguém vai conhecer minha ideia. Começar a
coisa do zero, tenho que botar os pezinhos no chão... [...] Porque você sabe
que se não planejar uma coisa, se você não criar uma base, não vai saber lidar
com aquela situação. [...] Não tinha ideia de nome de projeto mas tinha ideia
do projeto montado. (Informação verbal)57.

56
Informação adquirida a partir da entrevista realizada em Natal-RN em 30/10/2017.
57
Informação adquirida a partir da entrevista realizada em Natal-RN em 30/10/2017.
63
Vale salientar que desde criança participou de alguns projetos sociais – vários
deles com foco na educação musical - e ao observar a situação social do bairro em que
vivia (e vive), guardou em mente que ajudaria as pessoas do bairro a mudarem sua
situação social vulnerável, ofertando novas oportunidades para a população local.
Foi bem simples, eu quando tinha onze anos de idade eu vi que... assim, da
onde eu vim ali... você sabe que a realidade não é uma das melhores
realidades... [...] aquela minha rua o povo diz que é a principal, [...] mas ela
por ser a principal não deixa de ser afetada. (...) Você se ligou ali nas
proximidades... a carência, ela chama mais. [...] Digamos que de mil pessoas
da comunidade trinta tenha estrutura. [...]. Eu vi que se não fosse a parte da
música, sério mesmo, eu acho que eu teria virado um ladrão... tinha virado
uma coisa tipo dessa, [...] não tem pra onde correr [...]. O que eu vi muito,
foram os projetos sociais, e o que eu comecei foi o IBEART, aí tinha o PET,
Projeto Petrobras... (Informação verbal)58.

Ele afirmou que a música teve papel crucial na transformação social dele, pois
desde jovem (quando já sabia tocar flauta doce e trompete) já tocava em bandas como
meio de sustento financeiro, e que posteriormente sua vontade em apresentar novas
perspectivas de mundo o levou a começar a dar aula de flauta doce para moradores da
comunidade com apenas 14 anos. E depois da criação e consolidação do Leão de Judá
fala com grande satisfação que ajudou a mudar a realidade social de vários ex-alunos da
época e que hoje estão na universidade, muitos deles seguiram no ramo da música ou da
educação musical “[...] Esses boys hoje em dia dão capote em mim na música, [...] tudo
tocando bem, formados [...] (informação verbal)59. Depois dessas vivências com
projetos sociais na infância resolveu ter o seu próprio projeto social, economizou um
capital suficiente para dar início a concretização do projeto de música e desde 2012
permanece atuando.
Seu objetivo, bem como seu papel como educador e fundador do projeto social
de música Leão de Judá foi assinalado e incitado por sua própria condição social, a
empatia que lhe surgiu ao observar a realidade fragilizada na qual vivia e via os seus
vizinhos vivendo fez com que o desejo de fundar um projeto social de música fosse
alimentado e persistido durante tanto tempo até a sua consolidação, este tipo de
intervenção social pode ser comparado como uma ação efetiva do saber pensar e da
gestão da autonomia, como explica Demo (2011):
Saber pensar não é só pensar. É também, e sobretudo, saber intervir. Teoria e
prática, e vice-versa. Quem sabe pensar, entretanto, não faz por fazer, mas
sabe por que e como faz. Nem sempre é questão de estudo, pois nas

58
Informação adquirida a partir da entrevista realizada em Natal-RN em 30/10/2017.
59
Informação adquirida a partir da entrevista realizada em Natal-RN em 30/10/2017.
64
instituições educacionais, por vezes, desaprendemos, mormente quando
somos submetidos a processos instrucionais reprodutivos. [...] É saber
reconhecer rapidamente as relevâncias do cenário e tirar conclusões úteis, ver
longe para além das aparências, perceber a greta das coisas, inferir texto
inteiro de simples palavra, porque, a bom entendedor, uma palavra basta.
(DEMO, 2011. P. 17).

Constatamos, portanto, que a iniciativa foi originada a partir de um objetivo-


base: criar para os jovens alternativas aos caminhos da marginalidade já que esses
locais, excluídos do amparo das classes burguesas e do governo são vistos como grande
“ameaça” a ordem local e com isso são frequentemente estereotipados, oprimidos e
postos à mercê das mazelas provocadas pelo reflexo da desigualdade social, econômica
e a falta de oportunidades para os indivíduos que ali residem, dificultando a ruptura do
status quo deste grupo na sociedade.

5.3 As dificuldades enfrentadas durante o processo de consolidação do projeto


social de música Leão de Judá
Um dos principais obstáculos enfrentados durante a consolidação, manutenção e
expansão do projeto foi a falta de recursos como a falta de instrumentos musicais ou o
baixo número destes e a falta de capital de giro para movimentação e investimento no
projeto, o mesmo ainda afirmou que acabou desistindo de pedir auxílio aos governantes
e de inscrever o projeto em determinadas leis que deveriam amparar financeiramente os
projetos sociais sem apoios, como é o caso da Lei Rouanet60 que baseado na Lei
8.313/91 do Ministério da Cultura (1991, p. 03) “É a lei que institui o Programa
Nacional de Apoio à Cultura – PRONAC -, cuja finalidade é a captação e canalização
de recursos para os diversos setores culturais.”.
Quando eu comecei meu projeto, no segundo ano de meu projeto eu fui lá na
FUNCARTE, sentei na mesma cadeira que eu sento todas as vezes que eu
vou lá, só que o povo fez assim: “Como é seu nome?” “Gabriel, eu
desenvolvo um projeto...” Mostrei filmagem, mostrei como era o
procedimento... “Ah tá, legal, massa, valeu... assina aqui que a gente entra em
contato com você.” Assinei, passou um ano, dois anos... quando foi agora,

60
Principal mecanismo de fomento à Cultura do Brasil, a Lei Rouanet, como é conhecida a Lei 8.313/91,
instituiu o Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac). O nome Rouanet remete a seu criador, o
então secretário Nacional de Cultura, o diplomata Sérgio Paulo Rouanet. Para cumprir este objetivo, a lei
estabelece as normativas de como o Governo Federal deve disponibilizar recursos para a realização de
projetos artístico-culturais. A Lei foi concebida originalmente com três mecanismos: o Fundo Nacional da
Cultura (FNC), o Incentivo Fiscal e o Fundo de Investimento Cultural e Artístico (Ficart). Este nunca foi
implementado, enquanto o Incentivo Fiscal - também chamado de mecenato - prevaleceu e chega ser
confundido com a própria Lei. (MINISTÉRIO DA CULTURA, Disponível em:
<http://rouanet.cultura.gov.br/> Acesso em: 09 de novembro de 2017).
65
depois de quatro anos, Carlos Eduardo61 viu aí mandou eu ir lá direto... aí o
povo já tratou de outra forma. [...]. (Informação verbal)62.

Ainda salientou que após apresentar o orçamento básico para a compra dos
instrumentos musicais para mais ou menos 60 crianças que participam do projeto, foi
contestado acerca do valor total que giraria em torno de 24.000,00 R$ e o valor ofertado
como auxílio foi de 20.000,00 R$, com isso o professor se sentiu desmotivado a
continuar, expressando uma parcela de revolta com essa situação, pois o orçamento é
insuficiente para a compra de todos os instrumentos. "É tipo, nadei, nadei e morri na
praia... tá entendendo?! [...] Eu tô tendo calma, vai dar certo...” (Informação verbal)63.
Porém, ao constatar várias tentativas sem retorno preferiu abandonar esta ideia e
investir no projeto com o próprio dinheiro que gerasse com trabalhos e tocadas em
grupos musicais e até parcerias com uma Escola de Samba do bairro das Rocas - de
onde ele participa como músico e como professor também – que ofertou serviços de
lutheria para os instrumentos do Leão de Judá e outros auxílios como doação de
materiais para o projeto social e também para os alunos.
Minha meta... eu tô pensando assim, já que eu consigo viver dessa forma,
porque foi trash... quando eu tava fazendo os trabalhos com Douglas no
Estado eu ganhava dinheiro demais véi, homi, ganhava dinheiro mesmo.
Depois daquilo ali que eu ganhei uma estrutura... eu tive que zerar, pegar o
dinheiro todinho e investir e começar o projeto do zero. Aí eu consegui o
quê... nesse meio tempo eu fui visando, tentei estruturar o projeto até onde
pude e agora que eu tô vendo que a licenciatura tem uns cantos que vai me
dar uma estabilidade e vai dar pra mim dar conta. [...] Aí o que é que eu vou
fazer, vou pegar esses quatro trabalho, vou imaginar que dentro dos quatro eu
ganho um e os três vai apodrecer dentro da conta. Quando for a cada final de
ano eu dou uma investida do meu próprio bolso pro meu próprio projeto, pra
não depender mais de ONG. [...] “Vou me inscrever em lei num sei o quê”,
não tem isso mais não. (Informação verbal)64.

Ainda comentou que ao pesquisar alguns artistas famosos que recebem apoio da
Lei Rouanet viu que não tinha encontrado nada que relacionasse algum projeto social
vinculado a esses artistas, e que, portanto, não achava mais oportuno e nem justo
continuar tentando pedir apoio, pois os projetos que realmente precisavam como o seu,
não eram aprovados.
Mas isso tudo pra quê? Desvio de verbas... como a gente já tá cansado de ver
na televisão. [...] Me chamaram para fazer uns trabalhos e apresentei tudinho
pra FUNCARTE65, aí eu penso assim, será que isso vai sair? Tem o será...

61
43º e atual prefeito da cidade do Natal – RN, (início do mandato: 2016).
62
Informação adquirida a partir da entrevista realizada em Natal-RN em 30/10/2017.
63
Informação adquirida a partir da entrevista realizada em Natal-RN em 30/10/2017.
64 Informação adquirida a partir da entrevista realizada em Natal-RN em 30/10/2017.
65
Fundação Cultural Capitania das Artes.
66
Tipo assim, eu não conto não, tô apostando mais na minha ideia, se sair bem,
saiu, não tô descartando, mas eu não tô contando. (Informação verbal)66.

Constata-se que o professor tem consciência de que o papel do professor


também é político e que por isso começou a se interessar e a acompanhar os processos
que envolvem política e educação, sobre isso Freire argumenta que a educação é política
e que por isso os educadores têm que estar em consonância com tais e de que, portanto,
não há como o educador ser neutro politicamente.
[...] Daí a sua politicidade, qualidade que tem a prática educativa de ser
política, de não poder ser neutra. [...] Especificamente humana a educação é
gnosiológica, é diretiva, por isso política, é artística e moral, serve-se de
meios, de técnicas, envolve frustrações, medos, desejos. Exige de mim, como
professor, uma competência geral, um saber de sua natureza e saberes
especiais, ligados à minha atividade docente. (FREIRE, 2002. P. 78).

5.4 Educação inclusiva e libertadora


O Leão de Judá não faz distinções de gênero nem de faixa etária para poder
participar do projeto social, mas a maioria é de jovens. A participação é de caráter
espontâneo, pois dependerá do interesse do indivíduo que pretende entrar no projeto, a
seleção é feita por ordem de inscrição que serve principalmente como meio de
organização e como lista de espera, visto que a demanda de jovens querendo participar é
grande e o número de instrumentos disponíveis não é compatível para que o projeto
tenha a capacidade de receber mais alunos, ou seja, o número é determinado de acordo
com a quantidade de instrumentos disponíveis.
A gente faz a partir de qualquer idade, não importa se é idoso, se é jovem se é
adulto... [...] A gente levou destaque por ser a primeira banda do Rio Grande
do Norte a inclusão social de cadeirantes tocando, daí você vê que não tem
frescura. [...] Se você chegar num projeto e dizer que ele só atende isso, já é
um respaldo negativo. [...] Tem projetos aí que dizem “eu só aceito crianças
de oito a quinze anos” massa, beleza, mas eu acho que um projeto social
ainda mais vindo de comunidade ele tem que pensar numa abrangência geral.
(Informação verbal)67.

Recentemente a inclusão de pessoas com deficiência física no projeto vêm


atraindo a atenção de diversos setores públicos, fato este que fez com que o projeto
social recebesse uma visita em uma das apresentações do bairro das Rocas e posterior
apoio financeiro (apoio financeiro especificado anteriormente) do atual prefeito da
cidade de Natal-RN (2017)68 chegando a publicar sua admiração pelo Leão de Judá em

66 Informação adquirida a partir da entrevista realizada em Natal-RN em 30/10/2017.


67 Informação adquirida a partir da entrevista realizada em Natal-RN em 30/10/2017.
68
Carlos Eduardo Nunes Alves.
67
seu perfil pessoal em uma rede social69. Hoje o projeto conta com a participação ativa
de um cadeirante, mas já teve cerca de 4 na época do desfile de 7 de setembro. Segundo
apud Souza (2014) embasada na citação de Green (2000) apresenta conceitos
pertinentes que envolvem projetos sociais, educação musical e inclusão afirmando que:
Pensar sobre o conceito de social parece ser importante para iluminar a noção
de inclusão; é fundamentada na concepção de social que abordo elementos de
uma experiência musical inclusiva, enfatizando que, para a visão sociológica
da educação musical, contexto é um espaço relacional que constrói o sujeito,
que por sua vez é construído na relação indivíduo/grupo. Dessa forma, não
será possível separar o social do musical, pois esses aspectos estão
interligados, o que a sociologia da música chama de fato social total (SOUZA
apud GREEN, 2014. P. 13).

Esse ponto de vista nos mostra que o interesse do professor não está inteiramente
ligado aos trabalhos performáticos, seu objetivo é ofertar novas perspectivas, novas
oportunidades para o futuro das pessoas da comunidade, afirmando que o seu desejo é
ver os seus alunos entrando em uma universidade, ampliando seus horizontes e servindo
de inspiração para os demais indivíduos da região, é por isso que:
Pensar na educação musical, nessa perspectiva, parte da consciência da época
em que vivemos, significa pensar também nos alunos que estão em sala de
aula como sujeitos desse contexto histórico-cultural complexo e dinâmico.
Hoje, os alunos representam uma geração que nasce, vive em meio a
processos de transformação da sociedade contemporânea e suas repercussões
no espaço social que habita, os quais presencia e dos quais participa.
(SOUZA, 2004. P. 10).

5.5 Cativando alunos com o samba-reggae


Há portanto, um alto grau de lucidez política social e cultural por parte do
professor sobre o motivo pelo qual o gênero samba-reggae foi e ainda é utilizado como
mecanismo de atratividade e consequentemente intervenção no mundo musical e social
desses jovens. Não faria muito sentido por exemplo, oferecer aulas de música erudita
dentro de uma comunidade que escuta outros gêneros musicais mais populares como o
samba-reggae, ou seja, não atrairia tanto quanto o projeto atrai oferecendo aulas de um
gênero que eles se identificam e gostam.
Foi assim, você sabe que se chegasse falando de Mozart, Bach, Tchaikovsky,
Villa-Lobos dentro de uma favela o povo ia me linchar. [...] Eu creio assim,
que toda boa ideia tem que se criar um atrativo e que desse atrativo desperte
o interesse pra gente fazer com que tenha um bom rendimento. O samba-
reggae por exemplo, quando é vinte e quatro de dezembro a gente entra na
favela tocando nos becos e dando presente, e daí aparece os meninos “Quero

69
Imagem no tópico: anexo.
68
tocar! Quero tocar! Quero tocar!” aí eu digo “Vamo tocar! ...” já puxando um
aluno [...] e a ação tá sendo feita. (Informação verbal)70.

Estar em sintonia com o mundo musical dos jovens dessas comunidades onde se
instalam os projetos sociais de música é de extrema importância, pois o educador (a)
saberá que caminho seguir, por onde seguir e como seguir, contemplando todas as
necessidades pedagógicas, sociais, musicais e culturais pertencente a determinados
contextos e mundos socioculturais, é o que salienta Souza (2004):
A compreensão das práticas sociais dos alunos e suas interações com a
cidade, o lugar como espaço do viver, habitar, do uso, do consumo e do lazer,
enquanto situações vividas, são importantes referências para analisar como
vivenciam, experimentam e assimilam a música e a compreendem de algum
modo. Pois é no lugar, em sua simultaneidade e multiplicidade de espaços
sociais e culturais, que estabelecem práticas sociais e elaboram suas
representações, tecem sua identidade como sujeitos socioculturais nas
diferentes condições de ser social, para a qual a música em muito contribui.
(SOUZA, 2004. P. 10).

Após aplicar gêneros como o samba-reggae, samba e maracatu, também


começou a preparar e a inserir a música clássica para os jovens, bem como o uso de
partitura em determinadas ocasiões, mas apesar de considerar a importância de abranger
e mostrar diversos caminhos musicais para os alunos conhecerem, ainda permanece
focando no samba-reggae, pois é o gênero com que os alunos do projeto mais gostam de
tocar e estudar, então como educador, ele não poderia deixar de lado as preferências dos
educandos, pois a relação entre professor e aluno, bem como da construção do saber
devem ser acertados juntamente com os saberes dos alunos.
Dessa forma, conhecer o aluno como ser sociocultural, mapear os cenários
exteriores da música com os quais os alunos vivenciam seu tempo, seu
espaço e seu “mundo”, pensar sobre seus olhares em relação à música no
espaço escolar, são proposições para se pensar essa disciplina e ampliar as
reflexões sobre as dimensões do currículo, conteúdo-forma e o ensino-
aprendizagem oferecidos aos alunos. (SOUZA, 2004. P. 09).

Parafraseando Freire (2002, p. 71) “[...] o trabalho do professor é o trabalho do


professor com os alunos e não do professor consigo mesmo.”. É baseada nessa
perspectiva que o trabalho desenvolvido no Leão de Judá vêm atraindo tantos jovens a
procura de somar com o grupo e tocar (em especial samba-reggae), pois é no respeito
entre professor e alunado que se faz a educação libertadora e humanitária.
Processos de educação musical que tenham como objetivo a formação
integral do ser humano só podem acontecer em contextos que respeitem e
estimulem os alunos a explorar, experimentar, sentir, pensar, questionar,

70 Informação adquirida a partir da entrevista realizada em Natal-RN em 30/10/2017.

69
criar, discutir, argumentar... Propostas que propiciem o desenvolvimento da
autodisciplina e da capacidade de refletir, de questionar, de criticar, dentre
outros aspectos, tornam-se, então, aspectos fundamentais em tal proposta,
promovendo situações para o exercício da comunicação e do relacionamento
humano, estimulando o debate e a conscientização de aspectos relativos à
música e ao humano. (BRITO, 2001. P. 03).

5.6 A “família Leão de Judá”: A relação afetiva entre professor e alunos


O professor faz questão de dizer que acompanha o rendimento escolar dos
alunos, pois um dos pré-requisitos básicos para eles continuarem participando no
projeto social é que mantenham uma média 8,0 no boletim escolar, se tirarem por
exemplo um 7,5 já ficam afastados por cerca de uma semana ou um mês e ele sempre
pergunta e conversa com os alunos acerca dos motivos pelos quais o fizeram alcançar
aquela nota na escola, o diálogo é constante e diário, cumprindo muitas vezes o papel
que deveria ser cumprido pelos responsáveis dos jovens.
Também afirmou que de vez em quando vai até na escola desses alunos quando
algum está tendo problemas, isso faz com que o aluno se sinta amparado em diversos
aspectos relativos a construção humana e social desses indivíduos já que o contexto
familiar em que a maioria vive não têm uma orientação referente a participação na vida
escolar, nem do apoio que deveriam dar à esses jovens, revelando mais uma vez o
reflexo da desestrutura social dessas comunidades, é o que afirma Leite (2000)
No entanto, a questão da afetividade em sala de aula não se restringe apenas
às relações “tête-à-tête”, entre professor e aluno. Entende-se que as decisões
sobre as condições de ensino, assumidas pelo professor, apresentam inúmeras
situações com implicações afetivas para o aluno. (LEITE et al, 2000. P. 14).

O professor conta que já chegou a ouvir de alguns professores de determinadas


escolas que os alunos frequentam, que não ligam para o estudante, que eles não têm
talento, que o importante é estar com o salário na conta e mandar o aluno pra casa
mesmo. No que ele comentou: “Você pensa dessa forma. [...] Mas a questão é a
paciência e saber fazer a educação correta” (informação verbal)71.
Ainda falou que alguns alunos que estudavam na escola já estavam se
envolvendo em situações de risco mas que depois que entraram no projeto e depois de
longas conversas e conselhos os alunos saíram desses ambientes periculosos. Daí a
importância em se preocupar e não desistir desses jovens.
Uma coisa que notei muito da relação entre professor e aluno de projeto
social, ele é um tipo diferente de um projeto particular72, no particular você

71
Informação adquirida a partir da entrevista realizada em Natal-RN em 30/10/2017.
72
Querendo dizer financiado.
70
sabe que a maioria dos alunos vai ter um bom acondicionamento, vai existir
aquele respeito do professor e aluno, que o professor sabe que tem que chegar
ali e formar aquele músico, pouco diálogo [...]. Já no projeto social (como o
Leão de Judá) o convívio de professor com aluno é bem diferente, porque os
alunos quando chegam, você tem que ensinar o respeito de família, de
conversar, de tudo. É tanto que se você prestar atenção lá no grupo (do
whatsapp) é Família Leão de Judá, porquê? É esse convívio que eles não têm
dentro de casa com a família, eles têm no projeto pra ajudar na formação de
ser humano. (Informação verbal)73.

Ele reconhece que a educação tem que envolver teoria, prática e afetividade,
suprindo algumas necessidades primordiais à todo ser humano, no entanto a realidade
nesses contextos fragilizados não garante que isso ocorra, e é por isso que ele enxerga o
valor essencial da boa relação entre professor e aluno como se ele pertencesse a sua
família, de enxergar o outro com apreço, com atenção, pois se trata da formação de um
cidadão que vai fazer sua história no mundo, então ele precisa estar preparado para fazê-
la e futuramente repetir esse ciclo com outras pessoas.
O professor tem que pensar numa forma de formar o bom cidadão também,
além de formar o músico. Eles não têm conselho em casa, a maioria dos pais
de projeto social que você vai encarar ou estão presos ou tem uma mãe que tá
respondendo processo, é uma realidade... diferente. [...] É saber encarar a
realidade que vai enfatizar ali naquele momento. (Informação verbal)74.

Em certos momentos chegou a contar que os alunos já estão se posicionando


ativamente contra qualquer tipo de opressão seja conversando com os pais ou em
situações cotidianas nas ruas do bairro. Isso significa que a afetividade do professor tem
sim sua relevância no processo construtivo do ser, influenciando outras pessoas dos
seus referidos círculos de contato, é a autonomia gerada que acaba resultando nesse
processo de constituição e emancipação do sujeito, do ser humano como objeto
revolucionário na sociedade:
Saber aprender é fazer-se oportunidade, não só fazer oportunidade. Deixa-se
de lado a condição de massa de manobra, objeto de manipulação, para
emergir como ator participativo, emancipado. Retomamos aqui o sentido da
autonomia, que precisa ser todo dia conquistada e reconstruída. (DEMO,
2011. P. 47).

5.7 Concepção do que é ser professor, do que é ensinar e do que é uma aula de
música
Baseado nas respostas anteriores não há dúvida que o professor Gabriel, apesar
de não conhecer os pensamentos pedagógicos de alguns pedagogos influentes,

73 Informação adquirida a partir da entrevista realizada em Natal-RN em 30/10/2017.


74 Informação adquirida a partir da entrevista realizada em Natal-RN em 30/10/2017.
71
compactua com diversos pensamentos, didáticas, metodologias e ideologias deles.
Apontando que sua experiência e seus aprendizados como educador musical se
assemelha ao que um licenciando em música aprende na teoria, contudo, muitas vezes
não exerce o que aprendeu na prática, permanecendo sempre no discurso sem ação
efetiva na prática.
Segundo a opinião do entrevistado, o professor bom para o aluno e para a
sociedade é aquele que se preocupa não somente com o conteúdo da disciplina, mas
também no que se refere ao ensino voltado para o ser humano como mediador e agente
de mudança do próprio futuro, sempre é claro com as orientações corretas nos
momentos oportunos até a devida emancipação da heteronomia para a autonomia desses
indivíduos.
Primeiro de tudo um ponto de vista, pra você saber analisar, você saber tirar
suas conclusões e você saber o que estudar. [...] Ensinar, creio eu, é a didática
do professor, você chegar e dizer “aqui é um dó, aqui é um ré, a posição é
assim.” é você dar um bom ensinamento da educação, do caráter, da
dignidade. [...] O professor primeiro tem que educar um aluno pra depois ele
ensinar, se você não pensar em educar seu aluno de início como ele vai te
respeitar pra aprender o que você tem pra ensinar? [...] Eu tô falando do meu
ponto de vista, do que eu analiso, do que eu convivo. [...] Muita gente hoje
diz que é professor, mas de papel, mas pra fazer o papel mesmo do bom
professor, do professor mesmo que tem que ser feito são poucos. (Informação
verbal)75.

Ainda comentou que quando instalou o Leão de Judá em uma escola de Felipe
Camarão alguns professores reclamavam que os alunos que participavam do projeto
quando estavam na escola perturbavam a ordem da sala de aula, eram impacientes, não
tinham domínio cognitivo, então o professor Gabriel disse:

Você já pensou em educar seus alunos primeiro antes de ensinar? [...] Não
me responderam, se chatearam comigo e me chamaram de arrogante. Por eu
ter essa observação crítica. [...] Se o aluno é bagunceiro, porque ele é
bagunceiro?” (Informação verbal)76.

O pensar crítico é fundamental no processo político, pedagógico e social em


qualquer âmbito da vida, em se tratando da educação, se torna ainda mais crucial -
baseada na pedagogia freireana -. O professor Gabriel mostrou que estava em
conformidade com o que Freire propunha para uma educação libertadora e crítica como
forma de intervenção e emancipação social.
O grande problema que se coloca ao educador ou à educadora de opção
democrática é como trabalhar no sentido de fazer possível que a necessidade

75 Informação adquirida a partir da entrevista realizada em Natal-RN em 30/10/2017.


76 Informação adquirida a partir da entrevista realizada em Natal-RN em 30/10/2017.
72
do limite seja assumida eticamente pela liberdade. Quanto mais criticamente
a liberdade assuma o limite necessário tanto mais autoridade tem ela,
eticamente falando, para continuar lutando em seu nome. (FREIRE, 2002. P.
118).

Ainda ressaltando que:


[...] Faz parte de uma metodologia conscientizadora que possibilita aos
homens uma forma crítica de pensarem seu mundo e de se humanizarem,
pois falta aos homens uma compreensão crítica da totalidade, captada apenas
em pedaços pela sua consciência. (LINHARES, 2008. P. 02).

A comunicação, a escuta, a afetividade e, sobretudo a conscientização são de


extrema importância nas metamorfoses geradas nos campos intrínsecos ao meio social
da comunidade.

73
6. COMENTÁRIOS CONCLUSIVOS

A afinidade do idealizador do projeto com o mundo do alunado, despertado


principalmente por enxergar-se neles mesmos – por ter vivenciado a mesma realidade e
os mesmos riscos sociais quando jovem – foi componente atiçador na transformação,
derrubando os muros dogmáticos que lhes cercam, pois temos que evoluir mentalmente
a cada dia, buscando sempre a melhoria do seu mundo e do meu mundo, participantes
ativos da construção de todos e de tudo.

[...] o educador musical, como qualquer professor, presta-se, querendo ou


não, como modelo de referência para seus alunos, não só do ponto de vista
musical (sua competência técnico-específica, digamos), mas também
enquanto pessoa humana que é. Sua postura singular, maneira de ser e de
estar, opiniões e comportamentos atuam ininterruptamente para eles como
viva ilustração. A assimilação de modelos e mimetismos em geral fazem
parte da necessidade que todo indivíduo tem de pertencimento a um grupo de
afinidades ou classe maior e a incorporação e reprodução de padrões diversos
pelos alunos – de maneira involuntária e voluntária também –, constitui-se na
base da construção de uma identidade própria, imprescindível ao seu
desenvolvimento. (KATER, 2004. P. 45).

Constatamos, por isso, que a intervenção político-social do projeto social de


música Leão de Judá nas comunidades mencionadas neste trabalho, mais
especificamente no bairro de Felipe Camarão (objeto de pesquisa), contribuiu
significativamente apresentando diversas mudanças nesses aspectos sociais explanados
no decorrer deste estudo após começarem a inserirem-se no mundo musical tocando
samba-reggae, gênero muito apreciado pela maioria da população local, atraindo-os para
a educação musical como forma de, ativamente, fazerem-se história e revolução no
mundo, transgredindo socialmente ao fazerem-se oportunidade por intermédio da
educação musical.
Considerar uma educação musical formadora nos remete a um processo
educativo, não genericamente “dinâmico” mas, essencialmente,
desimobilizante. Nele se busca estabelecer os meios para revitalizar o
interesse por isto que atualmente definimos como “música” e também pelas
músicas, pelos sons, fontes sonoras, pessoas e pelo mundo que constroem e
habitam. Redimensionar o interesse, explorando a percepção de cada
individuo sobre si e sobre o complexo de relações no qual interage. E é
justamente a intensificação da percepção (no micro ou macrouniverso), a
atenção ativada, que nomeamos consciência. Nesse sentido então é que a
educação musical pode tornar-se um excelente meio de conscientização
pessoal e do mundo. (KATER, 2004. P. 45).

A compreensão desses fatores levará a educação musical de projetos sociais a


um olhar mais centrado no humano, pois levam em consideração diversos fatores que
contribuirão não apenas na formação educativa dos educandos, mas também em sua
74
formação social como sujeito capaz de aprender e intervir na história, seja na sua
própria ou na da sociedade, em ambos os casos essa intervenção deixará sua parcela de
mudança no mundo.
A educação através da música cria novas perspectivas de convivência e ao
mesmo tempo segue num caminho árduo que trilha a sua própria
emancipação. Os educadores de música devem estar atentos para a
democratização dos saberes, possibilitando o livre acesso perdido através do
tempo, principalmente na capacidade de pensar e questionar dos alunos.
(JUNIOR et al, 2010. P. 11).

Considerando os fatores sociais e as experiências empíricas relacionadas a


politicidade e ao pensamento crítico do professor Gabriel, nota-se que seu
comportamento não é tão comum quanto se pensa. Quantos projetos sociais mantêm
esse tipo de pedagogia libertadora no território brasileiro? Decerto que haverá alguns,
mas não tantos quantos se esperariam que fossem.

É na diretividade da educação, esta vocação que ela tem, como ação


especificamente humana, de “endereçar-se” até sonhos, ideias, utopias e
objetivos, que se acha o que venho chamando politicidade da educação. A
qualidade de ser política, inerente à sua natureza. É impossível, na verdade, a
neutralidade da educação. E é impossível, não porque professoras e
professores “baderneiros” e “subversivos” o determinem. A educação não
vira política por causa da decisão deste ou daquele educador. Ela é política.
[...] Para que a educação não fosse uma forma política de intervenção no
mundo era indispensável que o mundo em que ela se desse não fosse
humano. (FREIRE, 2002. P. 124-125).

De fato, essas considerações explanadas aqui abordam não somente seus


aspectos musicais mas, mais especificamente o todo, esse emaranhado de conexões que
a englobam, sobretudo a política, pois não há como ser um cidadão participativo se este
indivíduo não souber o que é e para que serve a política. Também engloba o lado
cultural, pois a cultura é gerada a partir do meio social e a cultura de um grupo social
influencia diretamente os viventes desse círculo de interação. E também o lado
pedagógico por se tratar da forma como ensinamos e adaptamos diversos
conhecimentos a um determinado grupo.
Enfim, todos estão interligados e a ordem de prioridade não existe, todas são
igualmente importantes. Política, portanto, é o alicerce que rege esses aspectos na
sociedade, constituindo-se como o mundo e a consciência de estar e intervir nesse
mundo. E a educação musical nesses contextos compactuam de forma valorosa nas suas
ações em busca pelo acorde consonante (acordo em equilíbrio) dentre os povos através
da comunicação e educação expressada pelos sons que, acima de tudo pretendem reger

75
e tocar a harmonia sonora dos seres viventes em busca de uma sociedade igualitária, de
uma sociedade justa.

76
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79
APÊNDICE

Figura 01: Local de ensaio do Leão de Judá na zona oeste de Natal-RN, Casa de
Cultura do Mestre Manoel Marinheiro.

80
Figura 02: Local onde ocorreu o masterclass de samba.

81
Figura 03: Folha de partitura para o masterclass de samba.

82
Figura 04: Atividades teóricas e práticas do masterclass de samba.

83
Figura 05: Alunos durante o masterclass de samba.

84
Figura 06: Alunos durante o masterclass de samba.

85
Figura 07: O Projeto Social de Música Leão de Judá sendo citado pelo prefeito da
cidade de Natal-RN, ano de 2017.

86
Questionário

1. Como você iniciou seus estudos em música?

2. Por que resolveu realizar uma ação educativo-musical desenvolvendo um projeto


social? O projeto de música Leão de Judá foi previamente planejado e posto em prática
ou foi surgindo e crescendo a partir de suas experiências sócio-musicais?

3. Quais dificuldades enfrentou durante o processo de construção do projeto social?

4. Você faz distinções de faixa etária, situação socioeconômica ou cultural para


alguém poder participar do projeto social de música Leão de Judá?

5. Por que resolveu trabalhar o samba-reggae com os alunos especificamente? Tem


relação com o aspecto cultural da região onde os jovens vivem ou existe outra
justificativa para a escolha deste gênero musical?

6. Como é sua relação com os alunos? Como você acha que deve ser a interação
entre professor-aluno-professor para que haja um bom desempenho no projeto social de
música Leão de Judá e dentro da escola regular?

7. Qual a sua concepção do que é ser professor, do que é ensinar e do que é uma aula
de música?

87
ANEXOS

Anexo A: Logotipo do Projeto Social de Música Leão de Judá77.

Anexo B: Desfile cívico dia 15 de setembro de 201778

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Foto cedida do arquivo pessoal do professor Gabriel Martins.
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Foto cedida do arquivo pessoal do professor Gabriel Martins.
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Anexo C: Desfile do dia 07 de setembro de 201779.

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Foto cedida do arquivo pessoal do professor Gabriel Martins.
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