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UMA ABORDAGEM DO RASTAFARISMO

NOS MOLDES DA PSICOLOGIA SOCIAL

Geórgia de Castro Machado Ferreira1

RESUMO

Urdido nas favelas de Kingston, capital jamaicana, o rastafarismo consiste num movimento
mileranista, messiânico e revivalista que defendia as seguintes concepções: HailléSelassié, imperador
etíope, como Deus-vivo cuja missão seria redimir os rastas jamaicanos, conduzindo-os em retorno a
terra prometida; a Etiópia como paraíso e a repatriação como condição necessária a liberdade. O
discurso de resistência e afirmação étnico-politico, característico desse movimento, foi disseminado
pelo reggae, ritmo musical cuja criação fora atribuída aos rastas jamaicanos. Sendo assim, o presente
artigo tem como finalidade analisar esse movimento, a partir do discurso rasta veiculado nas letras de
música do reggae, incluindo as composições do cantor Edson Gomes, tomando como referência os
conceitos de ideologia, enraizamento, preconceito e humilhação social, componentes basilares da
psicologia social. Para tanto, recorreu-se a autores como Chauí (1983), Bosi (1996), Zizek (1996),
Crochík (2006; 2008) e Gonçalves Filho (2007), haja vista, trabalharem com tais conceitos em suas
obras e principalmente, por trazer à baila, a perspectiva da psicologia social como uma ciência que
visualiza o homem enquanto ser social e histórico dentro de um contexto que o influencia e por ele é
influenciado.

Palavras – chave: Ideologia. Rastafarismo. Reggae.Humilhação social.Preconceito.

ABSTRACT: Hatched in the slums of Kingston, the Jamaican capital, the Rastafari was a movement
millenarian, messianic and revivalist that preached following ideas: HailléSelassié, Emperor of
Ethiopia, as God-alive, whose mission would be to redeem Jamaican Rastas then return to earth
promised; the Ethiopia as a paradise and repatriation as a condition necessary freedom. The discourse
of resistance and affirmation ethno- political characteristic of this movement was disseminated by
reggae, musical rhythm whose creation was attributed to Jamaican Rastafarians. Therefore, this essay
has for what aim to examine this movement, from the rasta speech conveyed in the lyrics of the reggae
music, including compositions singer Edson Gomes, taking as reference the concepts of ideology,
rooted, prejudice and social humiliation, components basic social psychology. For this purpose, we
used the authors as Chauí (1983), Bosi (1996), Zizek (1996), Crochík (2006; 2008) e GonçalvesFilho
(2007), given deal with those conceptions in his works and especially, for bringing to the fore the
perspective of social psychology as a science that see man while social being and history whitin a
context that influences him and for he is influenced.

Key-words: Ideology. Rastafarimovement. Reggae. Social humiliation. Prejudice.

1
Polícia Militar da Bahia, georgia.castro@yahoo.com.br
151 Uma abordagem do rastafarismo nos moldes da psicologia social

INTRODUÇÃO atribuída a Garvey (a coroação de um rei


africano como símbolo da chegada da
O propósito deste artigo foi analisar o
libertação), intitulando-se rastafaris. Surgiu,
movimento político, religioso, mileranista e
então, um movimento, um profeta e um
social, conhecido como rastafarismo e de
símbolo de luta: o rastafarianismo, Garvey e
forma sucinta, sua repercussão em Salvador,
Selassié, respectivamente.
tomando como referência as definições de
Esse movimento surgiu na Jamaica na
ideologia, enraizamento, humilhação social e
década de 1933 (RABELO, 2006), num
preconceito, conceitos basilares da psicologia
momento de extrema tensão social, marcado
social.
pelo avanço da pobreza, a luta pela
Segundo Rabelo (2006), o rastafarismo
independência e a formação de favelas.
se configura num movimento cultural híbrido e
Caracterizando um determinado grupo, o
contestatório, oriundo da mesclagem de
rastafarismofoi um movimento que, por meio
elementos religiosos protestantes e afro-
de uma leitura étnica e individualizada da
caribenhos com tradições culturais do
HolyPibe, versão bíblica trazida do Panamá
continente africano, também ligado à figura do
(PINHO, 1997), conduzira os afro-jamaicanos à
pan-africanista Marcus Garvey, que pregou a
adoração incondicional a Jeovah (cuja
ideia de liberdade do povo negro disperso no
abreviação gera a palavra Jah) identificado na
processo de escravidão, pelo retorno ao
figura de Selassié; à crença no “repatriamento
continente africano e nas concepções
como uma condição necessária à redenção dos
etiopianistas.
afro-jamaicanos espalhados na diáspora, o
Sendo assim, pode-se entender o
orgulho por ser negro e a Etiópia, como o
movimento rastafari como
paraíso” (FERREIRA, 2007).
[...] um amplo conjunto de práticas e Além da adoção dos dreadlocks, como
idéias que começaram a se esboçarem
movimentos político-religiosos e, uma marca dos seus adeptos, tal movimento se
sobretudo, étnicos na Jamaica desde o constitui num intercruzamento das concepções
século XIX. [...] relacionados com a
luta contra a opressão da estrutura do Etiopianismo; Pan-Africanismo;
escravista britânica, tinham vínculos
com associações religiosas, Garveyísmo; bem como algumas influências
organizações e igrejas do sul dos revivalistas e hindus (RABELO, ibidem), ou
Estados Unidos e do Caribe que, a
partir de uma interpretação étnica da seja, esse conjunto de tradições como matrizes
Bíblia, começaram a fazer junto aos
negros jamaicanos pregações nas imagéticas e discursivas, evidenciando o
quais o "paraíso" e a Terra Prometida caráter híbrido e rizomático do movimento.
se localizavam na Etiópia/África. Tal
territorialização do mito bíblico Trata-se da construção de um sistema
permitiu uma ruptura radical com
toda uma ideologia colonial e simbólico próprio interpretado como uma
protestante que durante séculos identidade diásporica caribenha, atravessado
justificou a escravidão apoiada em
interpretações religiosas. (CUNHA, pela emoção do contexto e pela linguagem.
1993, p.122).
Tais idéias passaram a ser
Com a coroação de Haillé Selassié disseminadas por rituais promovidos pelos
(cujo primeiro nome era Ras Tafari), na rastas jamaicanos nas comunidades, e
Etiópia, os afro-jamaicanos enxergaram nesse principalmente, pode-se afirmar que o reggae,
episódio o cumprimento da profecia ora de certo modo, “foi o responsável pela

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internacionalização do rastafarismo e, mais, revolucionária. É satírico e por vezes


cruel, porém as letras também não
ajudou nas estratégias de negociação e maior hesitam em falar de amor, lealdade,
aceitação da sociedade envolvente jamaicana, esperança, ideais, justiça, novas coisas
e novas formas. É essa afirmação de
embora os rastas ainda sejam discriminados possibilidades revolucionárias que
coloca o reggae numa categoria a
nesse local” (FERREIRA, 2007, p. 34). parte (p. 17-18)
Urdido nas favelas de Kingston, capital
Esta categoria a parte seria exatamente
Jamaicana, o reggae e o rastafarismo estão
a política, pois o reggae possui um poder
relacionados ao cenário sócio-político desse
elevado de comunicação, marcado pela sua
país, marcado pelo desemprego, brigas
básica rítmica e pela mistura de variados
políticas, levante de trabalhadores, pelo
temas, ora de amor e paz, ora de pedidos de
preconceito ao qual eram submetidos os rastas
justiça e igualdade. Por isso, Mota (2009) vai
jamaicanos devido a sua estética tanto quanto
afirmar que “esta tradição musical [...] foi um
pelo consumo de ganja. A conjunção desses
dos principais meios de denúncia e combate
fatores contribuiu vertiginosamente para o
contra a exclusão social e a invisibilidade dos
aumento dos confrontos entre esses sujeitos
negros que se mundializou reassumindo novas
históricos e a polícia.
leituras sonoras e referenciais de identidade”
A criação do reggae é atribuída aos
(MOTA, 2009 a, p.1), caracterizando-se numa
rastas jamaicanos, embora não exista nenhuma
identidade sócio-cultural.
comprovação para esta afirmação (RABELO,
Sendo a música uma fonte histórica, as
2006), uma vez que ele é tido como uma
letras desse novo ritmo portavam conteúdos
música profana do dia a dia, pois a verdadeira
sócio-políticos que denunciavam a situação de
música rastafari é o nyabhingi. Porém, o
marginalização, a qual a maioria da população
reggae pode ser entendido
jamaicana, residente nas favelas e moradoras
[...] como conseqüência de toda uma das conhecidas “casas de lata”, se encontravam
evolução rítmica e musical, desde as subjugadas.
tradições negro-africanas, passando
pelo mento, pelo rock-steady, Percebe-se, portanto, que o reggae
rhythmand blues, além das
influências marcantes do encontrou um ambiente propício para
rastafarianismo. Desde o seu início, o denunciar o descontentamento da população,
reggae foi considerado música dos
becos, porque reflete nas suas letras, que desejava o aniquilamento da Babilônia,
os anseios das populações de baixa
renda. (SILVA, 1995, p. 51) cujo simbolismo nos remete a interpretação
bíblica, de um espaço onde ocorrem as coisas
Resumindo, o encontro do
mais iníquas. O reggae tem um cunho de
rocksteadycom o rastafarianismo, faz brotar a
protesto, “[...] capaz de mobilizar a população
reggae music, termo este que apareceu pela
negra e mostrar a sua insatisfação perante a
primeira vez, em 1968 quando o grupo
realidade e o preconceito, tentando reverter
TootandMaytals lançaram a música Do The
essa opressão mediante a valorização de suas
Reggay. O significado desta palavra é
raízes. O reggae é um grito dos despossuídos,
desconhecido. Do ponto de vista de Cardoso
desescolarizados e miseráveis” (FERREIRA,
(1996), o reggae
2007, p.38).

[...] de todas as manifestações Com a disseminação desse novo ritmo


jamaicanas é a mais explicitamente na Jamaica, surgem cantores como Jacob

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Miller, Peter Tosh, BurningSpear, Gregory desencadeia na cidade um movimento


de auto-afirmaçãoidentitária que
Isaacse um dos principais divulgadores desse incluía a adoção de comportamentos,
estilo, o cantor Bob Marley. Este último atitudes e da estética negra
jamaicana. (FERREIRA, 2010, p. 6)
tornou-se o maior ícone da aspiração rastafari.
Faz-se necessário pontuar que, embora
Suas canções revelavam o seu caráter
não existam evidências de um forte processo
humanista e revolucionário, alertando a
migratório entre a população baiana e a
população a cerca das falsas verdades impostas
jamaicana, “[...] o princípio da fronteira
pela concepção eurocêntrica. Era a não
imaginada. [...] onde estão relacionadas à
aceitação da subalternidade como apenas um
história, à geografia, representam um espaço
processo fatalístico, mas de caráter também
de imaginação, onde se evidencia a identidade
histórico.
cultural.” (AGERKOP, 2009, p. 394), é a
explicação para o elo existente entre essas duas
A chegada do reggae em Salvador:
localidades distantes geograficamente.
mundo jamaicano e a indústria
Viu-se que, a partir da
fonográfica
internacionalização do reggae, as ideias do
movimento aportaram em Salvador e
Os registros históricos apontam que o
imediatamente foram apropriadas e traduzidas
rastafarismo e o reggae não passaram
culturalmente (FERREIRA, ibidem) pelos afro-
despercebidos na capital baiana, tendo
baianos. A influência desse movimento na
desencadeado um movimento de auto-
cidade foi, e ainda é, tão significativa, que
afirmação e influenciando, consequentemente,
possibilitou duas experimentações: a Legião
os blocos afros e os movimentos de resistência
Rastafari, tentativa de reviver o ideário e
que passaram a aderir à estética,
tradições rastas e a música, o principal elo,
comportamento e discurso rasta, como
contribuindo como elemento de referência
referencial de uma busca identitária.
para formação da negritude baiana
O reggae e as músicas advindas do
(GUERREIRO, 2000).
Caribe foram tocados a princípio, em
O reggae se sedimentou nos bairros
prostíbulos e nas ruas do Maciel, no bairro do
populares e periféricos de Salvador tão
Pelourinho. Contudo, as primeiras
expressivamente que os blocos afros como
aglutinações da população soteropolitana em
Muzenza, autodenominado Muzenza do
torno do discurso rasta, se deram com esta
Reggae, Ilê Aiyê e Olodum adotaram suas
música tocada nos ensaios dos blocos afros,
batidas rítmicas, embora com algumas
bailes de periferia e reuniões (CUNHA, 1993).
adaptações locais, evidenciando-se o caráter
Esse processo fez com que, a partir da
imprescindível da cultura reggae na criação
década de 1970, os afro-baianos adotassem
desses blocos, assim como, no estabelecimento
uma consciência que perpassava pela
de uma estética de negritude (MOURA 2009).
valorização das raízes africanas. Toda essa
O reggae, segundo Cunha (1993),
movimentação,
representará para a maioria dos afro-baianos, a
[...] se deve à explosão reggae, a principal fonte de informação do ideário e
notícia a cerca da independência de
alguns países africanos e o sucesso de discurso rastafari, mesmo que, nem sempre
bandas comandadas por negros, que

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sejam devidamente tematizadas nas canções. cujo maior expoente é Edson Gomes, que
Isso porque, as letras de reggae não se passaram a adotar os dreadlocks, a usar roupas
restringiam “[...] a falar apenas sobre o messias e adereços que nos remetem àquele país e a
negro e a redenção, mas expunham os cantar o Reggae Resistência, valorizando a
sentimentos dos próprios rastas e palavra do negro oprimido, narrando protesto
denunciavam o preconceito e as terríveis e lamento (FALCÓN, 2009).
condições a que eram subjugados.” Edson Gomes, na cidade do Salvador,
(FERREIRA, 2010, p.7). Por esta razão, tornou-se um ícone pela cadência encontrada
continua a ser o principal veículo difusor do em seu ritmo e o seu discurso, que em muito se
ideário defendido pelo movimento rastafari, assemelha com os elementos encontrados no
evidenciando uma forma de articulação dos imaginário rastafari. Sua poética passada por
descendentes africanos que se utilizam de uma meio de um “discurso ético e filosófico contra o
cultura de massa e da tradição refletindo numa establishment [...]” (idem, ibidem, p. 16) é
apropriação para construção de uma alteridade marcada pela exposição dos problemas
(PINHO, 1997). enfrentados pela população afro-baiana como a
Além disso, nesse cenário, a música violência, a desigualdade social, o racismo e
aparece como outras mazelas, constituindo aparentemente, o
cunho ideológico do rastafarismo.
[...] texto de resistência, protesto e
afirmação no qual eram registradas as
histórias, evocadas e forjadas ligações Getup, Stand up! O cunho ideológico do
passadas e registrado o presente,
alegrias e tristezas, anseios e revoltas, movimento rastafari.
tradição e história constituem a
temática básica de um discurso de
afirmação identitária e de protesto O termo ideologia pode ser entendido
que caracteriza as produções poéticas
e musicais negras. (SOUZA, 2001, p. como um conjunto de preposições elaborado
202)
pela sociedade burguesa, com o objetivo de
Percebe-se, portanto, que o movimento transformar os interesses da classe dominante
rastafari encontra adeptos em Salvador. num ideal coletivo, construindo assim, a sua
Todavia, a “[...] absorção da cultura jamaicana hegemonia, a exemplo da religião, filosofia,
se dá pela via da música reggae, que passa a moral. Desta forma, a “ideologia é, pois, um
ocupar um lugar de destaque no gosto musical instrumento de dominação de classe, como tal
de grupos negros” (GUERREIRO, 2000, p. 95), sua origem é a existência da divisão da
haja vista, essas canções trazerem em suas sociedade em classes contraditórias e em luta”
letras não apenas poemas de amor, mas (CHAUÍ, 1983, p.102), tendo como papel
também, um discurso de auto-afirmação com específico impedir “que a dominação e a
uma vertente altamente combativa contra a exploração sejam percebidas em sua realidade”
opressão racial e social, conquistou uma parte (idem, ibidem, p.103), revelando-se como um
da juventude baiana, que com este discurso instrumento a serviço da dominação.
veio a se identificar. Corrobora com essa perspectiva, Mello
E, foi justamente, por meio dessa (2008), ao pontuar que
aproximação e tomada de consciência, que
surgiu no recôncavo baiano cantores de reggae, A ideologia é, de certa forma, a
negação do sentido da experiência dos

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homens diante do mundo e substitui a movimento cujo foco foi o discurso religioso
necessidade dos sujeitos de encontrar
explicações e justificativas próprias, embasado em ideais de resistência, militância e
pois constrói um mundo de afirmação étnico-política, na busca da
significações arbitrário que oferece,
aos seus participantes, uma repatriação.
explicação total. (p. 32)
Por outro lado, o filósofo esloveno
Trazendo essa concepção como SlavojZizek (1996), afirmou que a realidade,
referencial analítico do movimento rastafari, em si, é ideológica, assim como, o ideológico
pondera-se a princípio que, pelas explicações comporta em si o real; provocando uma
de Marilena Chauí, o rastafarismo não seria desmistificação no conceito marxista. Para
uma forma ideológica. Observando-se que a este autor, ideologia
ideologia se inicia como “um conjunto
sistemático de idéias que pensadores de uma [...] pode designar qualquer coisa,
desde uma atitude contemplativa, que
classe em ascensão produzem para que esta desconhece sua dependência em
relação à realidade social, até um
nova classe apareça como representante dos conjunto de crenças voltados para
interesses de toda a sociedade [...]” (CHAUÍ, ação; desde o meio social até idéias
falsas que legitimam o poder
1983, p. 108); embora, o discurso rastafari seja dominante. Ela pode surgir
exatamente quando tentamos evitá-la
marcado por crenças e valores que se e deixa de aparecer onde claramente
concretizaram a partir da coroação de se esperaria que existisse. (p.9)

HailléSelassié, ele não se tornou dominante na Se a ideologia representa conceitos,


Jamaica, ou seja, não se transformou no “[...] valores e símbolos que servem para justificar a
ponto de vista e a opinião de todas as classes e desigualdade social mascarando a realidade,
de toda a sociedade [...]” (idem, 2002, p. 174) logo o rastafarismoé uma contra ideologia, já
que a compunham. que a desvela. Isso por que, os rastas
Ao contrário, com receio de o jamaicanos não apenas fomentaram uma visão
movimento avançar tanto no caráter religioso de mundo, a partir da criação de seus próprios
como político, a elite jamaicana tentou preceitos; mas prescreveram ações e
aniquilá-lo, através da prisão dos seus comportamentos cuja referência era
principais divulgadores e numa tentativa HailléSelassié, veiculadas por meio do reggae,
frustrada de incorporar os rastas, ora que os guiava no fazer um mundo, que só seria
oprimidos, à sociedade jamaicana. construído através do repatriamento. Um
Além disso, a “ideologia ocorre quando exemplo seria a posição das mãos durante as
as idéias e valores da classe emergente são orações (figura 1).
interiorizados pela consciência de todos os
membros não dominantes da sociedade [...]”
(CHAUÍ, 1983, p. 108), sedimentando-se no
senso comum, mesmo quando a classe
emergente assume o papel de dominante, com
o objetivo de ocultar a divisão de classe e as
diferenças sociais. Nesse sentido, os rastafaris
não formaram uma classe que ostentava o
poder na Jamaica. Esses sujeitos criaram um

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Figura 1: Postura de Selassié - posição quanto a cor dos seus olhos, eu terei
das mãos durante as orações que dizer guerra. Enquanto os direitos
Fonte: Rabelo, 2006, p. 406. humanos mais básicos não forem
garantidos para todos sem distinção
de raça, há guerra. E até esse dia, o
Não se sabe ao certo, a origem dessa sonho de uma cidadania mundial,
posição para as mãos, embora se reconheça o finalmente pacífica, continuará a ser
uma mera ilusão a ser seguida e
simbolismo da lança, como instrumento de nunca atingida. Haverá guerra,
rumores de guerra. Guerra no leste,
caça, guerra e luta pela sobrevivência e do guerra no oeste, guerra no norte,
coração, como a vontade e as emoções guerra no sul. Enquanto regimes
ignóbeis e infelizes envolverem nossos
humanas, nesse gesto. Contudo, Rabelo irmãos, em condições subumanas, em
Angola, Moçambique e na África do
(2006), exemplifica algumas inferências que Sul não forem superados e destruídos,
podem ser feitas, a exemplo de que enquanto o fanatismo, os
preconceitos, a malícia e os interesses
desumanos não forem substituídos
[...] pode se tratar de um ritual pela compreensão, tolerância e boa-
religioso etíope; ou tratar-se-ia de um vontade, enquanto todos os Africanos
hábito pessoal de HailléSelassié, como não se levantarem e falarem como
uma forma de posicionar seres livres, iguais aos olhos de todos
elegantemente as mãos, ao invés de os homens como são no Céu, até esse
deixá-las soltas ao lado do corpo, dia, o continente Africano não
cruzá-las nas costas ou sobre a pélvis conhecerá a Paz. Nós, Africanos,
como muitos homens fazem; bem iremos lutar, se necessário, e sabemos
como poderia tratar-se de ambas as que iremos vencer, pois somos
explicações anteriores. (p. 405-406) confiantes na vitória do bem sobre o
mal.3
Deste modo, a crença incondicional na
Marley, em suas canções, discute
divindade de Selassié, intitulado o leão
temas como tolerância e respeito, evidenciando
Conquistador da Tribo de Judah, levou a
a diferença do seu pensar (conjunto de idéias)
adotar seu comportamento e discurso. Outro
em relação aos da elite dominadora. Isso
exemplo seria a adaptação que Bob Marley,
significa, portanto, que o conceito de ideologia
cantor e ícone jamaicano, fez de um discurso
é sinônimo de falseamento da realidade, ou
proferido por Selassié, perante a Liga das
seja, uma acepção voltada para o em-si,
Nações em 19362, transformando-o na canção
parafraseando Zizek “[...] destinadas a nos
War. Nessa canção, o racismo e a
convencer de sua “veracidade”, mas, na
discriminação são apontados como fatores
verdade, servindo a algum inconfesso interesse
capazes de originar a guerra, assim como a não
garantia dos direitos mais básicos e a limpeza 3
Música original: Until the philosophy which hold one race
superior and another inferior is finally and permanently
étnica. Essa letra, de natureza altamente discredited and abandoned Everywhere is war, me say war. That
combativa, evidencia a presença das ações do until there are no longer first class and second class citizens af
any nation Until the color of a man's skin is of no more
Leão de Judá no discurso rastafari. Eis a letra: significance than the color of his eyes Me say war. That until the
basic human rights are equally guaranteed to all, without regard
to race, Dis a war. That until that day the dream of lasting peace,
Até que a filosofia que considera uma world citizenship rule of international morality will remain in
raça superior e outra inferior, ser final but a fleeting illusion to be pursued, but never attained Now
e definitivamente, desacreditada e everywhere is war, war. And until the ignoble and unhappy
regimes that hold our brothers in Angola, in Mozambique, South
abandonada; terá guerra em todo Africa sub-human bondage have been toppled, utterly destroyed,
lugar. Enquanto houver cidadãos de Well, everywhere is war, me say war. War in the east, war in the
primeira classe e os de segunda classe west war up north, war down south war, war, rumours of war.
em uma nação; enquanto a cor da pele And until that day, the African continent will not know peace,
de um homem influenciar tanto we Africans will fight we find it necessary and we know we
shall win as we are confident in the victory. Of good over evil,
good over evil, good over evil. Good over evil, good over evil,
2
Ele promoveu este discurso perante a Liga das Nações porque o good ever evil. Disponível no DVD – One Love the Bob Marley
seu país fora invandido por Mussolini. Foi um pedido de ajuda all-star tribute.
para seu povo que estava sendo massacrado por tal fascista.

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particular de poder [...]” (ZIZEK, 1996, p. 15). oralidade, ensinamentos dos mais velhos ou
Mas, representa também, a relação imaginária por meio de bens materiais, a exemplo dos
do indivíduo com suas condições reais de objetos memoriais.
existência, a realidade que se mostra falha e Todavia, quando os negros africanos
incompleta, a exemplo dos rastas jamaicanos, chegaram à ilha jamaicana, forçosamente uma
que por meio de uma leitura sintomal do real, vez que, arrancados do seu território formando
tentaram desaprender a cultura da elite local, uma diáspora, todas as suas referências
para adotar outra visão de mundo, que será ficaram no território de origem. Do seu
discutida abaixo: a repatriação como uma passado, apenas conservava as imagens e
confissão de desenraizamento. lembranças, mesmo que fosse a de um passado
em ruínas. Essa travessia pode ser entendida
como um desenraizamento, processo este
“[...] Eu era inquilino das prisões e
provocado em razão de conquistas militares e
liderava as rebeliões. Agora estou
processos migratórios forçados.
retornando para casa do meu pai. Na
Sobre este aspecto, Bosi ainda
casa do meu pai, lá tudo é amor sem
esclarece que para Weil “o desenraizamento é,
restrição de cor” (Edson Gomes)
evidentemente, a mais perigosa doença das
sociedades humanas, porque se multiplica a si
Partindo do pensamento de Simone
própria” (BOSI, 1996, p. 415) e a destruição do
Weil, de acordo a sistematização de Bosi
passado que este processo acarreta como um
(1996), este tópico se inicia trazendo a
dos maiores crimes contra o homem. Por esta
conceituação de enraizamento, mais um tema
razão, uma alternativa aos afro-jamaicanos foi
de relevância para os estudos em psicologia
recorrer ao pensamento etiopianista e ao
social. De acordo com esta autora, este termo,
panafricanismo, como um elo com o passado,
pode assim, ser definido:
que não exprime um caráter de retrocesso ou
O enraizamento é talvez a necessidade uma idolatria desprovida de reflexão, mas que
mais importante e mais desconhecida
da alma humana. [...] Um ser humano os impulsionou na criação de um sistema
tem raiz por sua participação real, simbólico, como reação às circunstâncias que
ativa e natural na exigência de uma
coletividade que conserva vivos certos vivenciavam.
tesouros do passado e certos
pressentimentos do futuro. A conjunção das idéiasetiopianistas,
Participação natural, ou seja, pan-africanistas e garveyístas, fez do
ocasionada automaticamente pelo
lugar, nascimento, profissão, meio. rastafarismo um movimento híbrido e
Cada ser humano precisa ter
múltiplas raízes. Precisa receber a rizomático, evidente nas canções de reggae,
quase totalidade de sua vida normal, como as de Marley, nas quais o conceito de
intelectual, espiritual, por intermédio
dos meios dos quais faz parte repatriação se torna evidente aproximando
naturalmente. (p.411)
assim, o movimento do conceito de des
Dessa feita, o enraizamento abrange (enraizamento). Na canção África Unite,
laços culturais como relações sociais, pois o Marley canta
homem enraizado participa de grupos que
África, une-te, porque estamos saindo
conserva a herança de seu passado, e que
da Babilôniae estamos indo para terra
buscam transmitir tais referenciais pela de nosso pai.Como seria bom e
agradável, diante de Deus e do

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homem, ver a unificação de todos os [...] Êxodo, [...]! Movimento do povo


africanos. [...]Nós somos as crianças de Jah! Abra seus olhos e olhe dentro
do Rastaman, nós somos as crianças de você mesmo: Você está satisfeito
do homem mais elevado, portanto, (com a vida que você está vivendo)?
África, une-te, porque nossas crianças Sabemos onde estamos indo, uh! Nós
querem vir para casa. [...], porque sabemos de onde viemos. Nós
temos que sair da Babilônia e nós estamos deixando a Babilônia, nós
estamos trilhando a terra do nosso estamos indo para a terra do Nosso
pai. [...].4 Pai.[...]6

Por certo, essa poesia musical solicita Verifica-se, dessa maneira, por meio
aos afro-jamaicanos e demais afro- das letras das canções acima citadas, que o
descendentes a se unirem em prol e benefício desejo de repatriação evidencia o quão
do continente africano, pois somente desta desenraizados sentiam-se os rastas
forma e pela luta é que esses sujeitos jamaicanos, uma “[...] espécie de solidão vivida
espalhados pela diáspora presenciarão a queda nas grandes metrópoles, onde a massa de
do sistema opressor, a Babilônia, e indivíduos não se reconhecem como habitante
concretizariam o desejo de repatriamento. A do mundo que está entre os homens, e assim,
pregação de uma união pan-africanista não tem a experiência do senso comum
representa os ecos do pensamento garveyísta compartilhada [...]” (MELLO, 2008, p.33).
no discurso rastafari. Outra canção de Marley A similaridade com a história da
em que aparece o ideal de repatriação é migração judaica e o processo transferencial
RastaMan Chant, onde ele cantou “Eu ouço as freudiano que envolve duas instâncias – o
palavras que o Rastaman diz: Babilônia, seu passado e o presente -, que os fez enxergarem
trono vai cair! Eu digo: vá para casa, vá para na personalidade de HailléSelassié, o messias
Sião. Numa bela manhã, quando o trabalho cuja missão era conduzi-los à Etiópia;
acabar; o homem irá para casa”. 5 denuncia que lhes faltava o sentimento de
A letra Exodus, mais uma canção de pertença à sociedade jamaicana da época bem
Marley, é outro exemplo que aponta a terrível como uma tentativa de negar a cultura local, e
passagem pela diáspora numa similaridade não ser cooptado por ela, mesmo que, talvez, se
com a jornada de Moisés e o povo hebreu, recai em sonhos apocalípticos, parafraseando
assim como reflete, a saída desta terra Weil.
perversa, entendida por eles como a Babilônia, Soma-se a isto, o fatos dos rastas
ou seja, a Jamaica seria o inferno para os jamaicanos terem deslocado todas as suas
rastafaris. Eis a canção: emoções, pulsões, sentimentos, defesas,
expectativas e sonhos, fosse de liberdade,
justiça e dias melhores que se encontravam
4
Música original: Africa, Unite, 'Cause we're moving right out mascarados no inconsciente coletivo ao profeta
of Babylon and we're going to our father's land. How good and
how pleasant it would be before GOD and man, yeah o see the e líderes do ideário rastafari. Traduz-se-ia
unification of all Africans, yeah As it's been said already let it be
done, yeah we are the children of the Rastaman, we are the numa espécie de transferência idealizada, em
children of the Higher Man Africa, unite 'cause the children
wanna come home. [...] 'cause we're moving right out of Babylon
And we're grooving to our father's land. […]Africa, Unite.
Disponível em:<http://vagalume.uol.com.br/bob-marley/>. 6
Letra original: Exodus, […]! Movement of Jah people! Open
Acessoem: 14 de abr. de 2012. your eyes and look within: Are you satisfied (with the life you're
5
Letra original: I hear the words of the Rastaman say: Babylon, living)? We know where we're going, uh! We know where we're
your throne gone down. I say fly away home to Zion. One bright from. We're leaving Babylon, We're going to our Father land.
morning when my work is over man will flay away home. Disponívelem:< http://letras.terra.com.br/exodus/ >. Acessoem:
Disponível em: < http://vagalume.uol.com.br/bob-marley/>. 14 de jan.de 2012.
Acesso em: 10 de jan. de 2012.

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159 Uma abordagem do rastafarismo nos moldes da psicologia social

que tais personagens tornam-se objetos de Outra canção de Marley que confirma
veneração, que pelo efeito perverso de um o sofrimento provocado pelo desenraizamento
respeito exagerado, leva os seus fiéis é Redemption Song, lançada no álbum
seguidores a crenças irrealistas. E, diante da Uprising que significa rebelião, lançado em
não concretização de atitudes por parte desses 1980 (RABELO, 2006). Redemption
líderes, a exemplo do fiasco da repatriação, Songsignifica Canção da redenção, e nela o
acarreta grandes desilusões ou passagens cantor narra a terrível experiência dos
despercebidas, a exemplo da frase, africanos que fizeram a travessia do oceano
“We’llbeforeverloving Jah!” (significa - nós Atlântico e construíram a diáspora bem como
sempre amaremos a Jah, e é o título de uma convoca o oprimido a sair do seu estado de
música de Bob Marley). domínio mental, constituído pela inoculação de
Contudo, mas que uma quebra de mitos fomentados pela elite, a atingir um
imagem, ou a negação de atitudes errôneas, estado de consciência transitivo-crítica
esse fenômeno deve ser entendido, também, (FREIRE, 1999) para defender a verdade. Essa
num conjunto de sentimentos que esses canção diz:
sujeitos dirigiram a essas lideranças, que
Velhos piratas, sim, me roubaram, me
embora não sejam justificáveis pelas suas venderam aos navios mercantes,
atitudes, mas estam pautadas em sua história, minutos depois eles me tiraram do
fosso sem fundo, mas minha mão foi
marcada pelo estranhamento com relação ao feita forte. Pela mão do Todo
Poderoso, nós avançamos nesta
local onde se vive, como canta Edson Gomes ao geração triunfantemente, tudo o que
proferir “[...] Vivo na Babilônia, mas não sou eu sempre tive foi canções de
liberdade, você não vai me ajudar a
daqui/ Não dobro meus joelhos/ diante de cantar estas canções de liberdade?
Porque o que sempre tive foram
imagens,/ não sigo seus conselhos/ pois, meu canções de redenção, canções de
Deus é estrangeiro. [...]” (Edson Gomes, redenção. Emancipem suas mentes da
escravidão mental, ninguém além de
Babylon Vampire, 2001). nós mesmos pode libertar sua mente,
não tenha medo da energia atômica,
A analogia à busca pela terra porque nenhum deles pode parar o
prometida se faz marcante, principalmente a tempo. Até quando eles mataram
nossos profetas? Enquanto ficamos de
partir das interpretações que refletem o lado e olhamos. Temos que cumprir o
Livro. Você não vai me ajudar a cantar
entendimento sobre viver em um mundo estas canções de liberdade? Porque o
branco com o prevalecimento de ideias que sempre tive foram canções de
redenção, canções de redenção. Tudo
eurocêntricas. Além disso, prenuncia a luta de o que eu sempre tive foram canções
de redenção, essas canções de
homens negros visionários que iniciaram o liberdade, canções de liberdade.7
combate contra o preconceito e a
discriminação (questões a serem abordadas),
7
Letra original: Old pirates, yes, they rob I; Sold I to the
denunciando a oratória colonial, marcada por merchant ships, Minutes after they took From the bottom less
pit. But my hand was made strong By the hand of the Almighty.
inculcar nas populações colonizadas We forward in this generation Triumphantly. Won't you help to
estereótipos e fundamentos que definam a sua sing these songs of freedom. 'Cause all I ever have: Redemption
songs, Redemption songs. Emancipate yourselves from mental
falsa superioridade. E mais: creditando na slavery; None but ourselves can free our minds. Have no fear for
atomic energy, 'Cause none of them can stop the time, How long
ressonância do seu discurso, os rastas shall they kill our prophets?, While we stand aside and look ,
Oh! Some say it's just a part of it: We've got to fulfill the book.
tentavam conscientizar as massas. Won't you help to sing these songs of freedom? 'Cause all I ever
have: Redemption songs, Redemption songs, These songs of
freedom. (RABELO, 2006, p. 307-308)

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160 Geórgia de Castro Machado Ferreira

A partir da análise dessa canção de Bob avistar a realidade apenas a partir de sua ótica.
Marley percebeu-se, também, o discurso Sendo assim, o termo preconceito é um juízo
emancipatório presente na contra ideologia preconcebido, manifestado geralmente numa
rastafari. Primeiramente, porque os rastas, atitude discriminatória contra algum cidadão,
enquanto oprimidos identificaram o seu cultura ou lugar, considerados como diferentes
opressor e partiram para uma posição de e que causem estranheza. Logo, caracterizando
engajamento “na luta organizada por sua uma idéia preconcebida, significa dizer que o
libertação” (FREIRE, 1987, p. 52), mesmo que preconceito gira em torno de pré-conceitos.
simbólica por meio de crenças e da música, A distinção chave entre os dois termos
cujo ato consiste numa ação de amor e é: recorrendo à teoria do conhecimento,
esperança. Em segundo lugar, porque esses existem três elementos que o compõem o
sujeitos restritos à condição de marginalização, saber, que são um sujeito, um objeto e uma
resistiram à tentativa da sociedade jamaicana imagem. O indivíduo irá ler o objeto a partir
de adequá-los e acomodá-los aos padrões das idéias preconcebidas que possui, o que
sociais da elite buscando incessatemente a compõe os seus pré-conceitos. Contudo, a
repatriação, conforme retratatado, formação do saber é interrompida quando o
anteriormente, permanecendo com o seu sujeito não devolve as características do objeto,
pensar, embora contraditório em alguns a partir da experimentação, fazendo com que a
momentos. Sendo que isso não pode tirar o imagem formada mantenha-se igual;
caráter emancipador da contra transformando o pré-conceito em preconceito.
ideologiarastafari, um complexo de idéias Nesse sentido, o preconceito não é
híbridas e difusas entre si, que permitiu aos inato, mas sim, introjetado através dos
rastas construírem uma identidade na processos de socialização, a exemplo da
diáspora. convivência familiar e social e na transmissão
Por fim, como pensar diferente é de culturas por meio do universo das gerações.
perigoso, principalmente para as elites, que Isso nos leva a refletir que o preconceito é
vêem seu poder ameaçado, os rastas sofreram embutido no indivíduo na primeira infância,
severas repressões tanto físicas quanto gerando predisposições para incorporar os
psicológicas caracterizadas pelos rótulos de saberes transmitidos, sem reflexão,
marginais e drogados, caracterizando o confirmando assim, que “o preconceito não é
preconceito e a humilhação. um fenômeno, sobretudo cognitivo; antes, ele é
contrário ao ato de conhecer: obsta o
“Somos barrados no baile, eles dizem conhecimento [...]” (CROCHÍK, 2008, p.78),
que é só para gente bonita”: nuances do negando o desconhecido.
preconceito e humilhação social Uma pessoa com características que
predispõe ao preconceito se julga superior ao
O preconceito deve ser entendido objeto, grupo ou sujeitos, na tentativa de
como uma projeção (CROCHÍK, 2006), pois o ocultar a impotência que sente para lidar com
indivíduo enxerga um objeto a partir de suas os sofrimentos oriundos da realidade,
experiências, que constituem idéias pré- fingindo-se “de morto frente ao objeto que gera
concebidas, portanto rígidas, que os fazem estranheza” (idem, 2006, p. 16), criando

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161 Uma abordagem do rastafarismo nos moldes da psicologia social

especulações que giram em torno da rejeição adeptos ao rastafarismo, em razão do seu


ou complacência benevolente, perante aos aspecto sujo e mal-cuidado. Certamente,
sujeitos que apresentam determinadas recorrendo às nuances etnográficas, se
particularidades que rompem com a percepção descobrirá que esses gomos nos cabelos
daquilo considerado comum ou normal. possuem raízes históricas (ROSA, 2008). Eles
Verifica-se, então, que no caso dos representam um patrimônio jamaicano
rastas jamaicanos e rastas baianos uma das materializado em gomos nos cabelos,
reações foi à rejeição manifestada na tentativa concernentes com a Bíblia, a partir da
de eliminá-los por considerá-los sem nenhum interpretação de um versículo do Velho
valor e, noutro momento, a partir da Testamento que prediz “que nenhuma lâmina
legitimação desse movimento, a tentativa de deverá tocar a cabeça do justo”, e com a
cooptar Bob Marley, com fins eleitoreiros, imagem do leão.
como um espécie de benevolência. Entretanto,
essas reações apontam para uma cegueira
daquele que não reconhece que a reação
causada pelo outro possui respaldo nele
mesmo, uma vez que, “quanto maior a
debilidade de experimentar e de refletir, maior
a necessidade de nos defendermos daqueles Figura 2: Dreadlocks
que nos causam estranheza. [...] porque o Fonte: Disponível
em:<vivlefreak.blogspot.com>. Acesso em: 25
estranho é demasiado familiar” (CROCHÍK, de jan. de 2012.
2006, p. 17).
A sociedade envolvente os rotulava de O simbolismo do leão, mais um

marginais, drogados, fanáticos religiosos, símbolo que orienta as crenças e práticas

maconheiros, sujos. A respeito do consumo de cotidianas dos rastas jamaicanos, possui razões

ganja, eles justificavam a necessidade para fins variadas, como alertou Rabelo (2006). A

espirituais e para meditação. Trata-se de um imagem do leão nas escrituras bíblicas é

aspecto cultural, mas enfatiza-se que este notória, principalmente, a associação desse

artigo não tem caráter apologético, bem como animal a Tribo de Judá que originou a

não irá se ater a este costume. Entretanto, de linhagem de Davi e Salomão, estendendo-se a

certo, alguns foram presos quando vendiam Jesus e a Selassié, presentes no capítulo 49, do

ganja para sustentar a Pinnacle (um dos livro gênesis, e no capítulo 5 do livro revelação.

acampamentos rastafaris). Mas, não se pode É preciso relembrar, que um dos títulos de

esquecer que, em todo e em qualquer Selassié era o Leão Conquistador da Tribo de

movimento social, há seus elementos Judá, símbolo ostentado, também, na bandeira

corruptíveis, e isso não se configura numa do seu reino, a Etiópia, até a sua derrocada.

razão para se desconsiderar este importante Soma-se a isto, o fato desse animal ser

movimento da diáspora afro caribenha, que uma espécie característica das savanas

tem na resistência sua marca. africanas, continente sagrado para os rastas

Já em relação ao uso dos dreadlocks, jamaicanos. É sinônimo de força, agilidade,

estes causavam ojeriza e assustavam os não agressividade e poder e a “juba desgrenhada

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162 Geórgia de Castro Machado Ferreira

dos leões se assemelha à cabeleira de locks que criados pela cultura, com o intuito de fortalecer
a maioria dos rastafaris exibe” (RABELO, o preconceito, que nada mais é do que uma
ibidem, p. 390), conferindo-lhes o título de reação individual, fortalecendo e servindo de
guerreiros. O uso dos dreadlocks remetem a justificativa para ele.
tradições milenares, revelando a busca, pela Na verdade, os estereótipos
tradição e referência identitária, numa atitude configuram-se na principal estratégia do
de afirmação étnica. Sendo assim, a adoção discurso colonial (BHABHA, 1998), que se
dessa estética traduzia-se num elemento constitui em um modo ambivalente de
contundente de africanidade cuja intenção era conhecimento e poder. Segundo este autor,
a de chocar o gosto do cidadão comum como o estereótipo rejeita as diferenças
jamaicano. Em contrapartida, “a aparência dos reduzindo o outro a um conjunto limitado de
dreads, contudo, continua a ser um estereótipo características, confluindo com o pensamento
e uma fonte de estigma como uma aparência de Crochík (2006), conseqüentemente, rejeita
suja, desleixada e anti-higiênica entre as alteridade e nega as diferenças existentes no
pessoas de fora do movimento rastafari [...]” processo de construção da identidade, e com
(RABELO, 2006, p. 492) isso, desconsidera a sua necessidade assim
Por esta razão, complementa Rabelo como a do hibridismo nessa construção;
que pressupondo existir identidades puras e não
híbridas.
Não somente os dreads, mas os
rastafaris em geral, costumavam e Dessa forma, é possível inferir que a
costumam ter bastante cuidado com a elite jamaicana e afro-baiana, discrimina tal
higiene do corpo. Seu sentido
simbólico de impureza, como por movimento, porque parte das considerações
exemplo, suas representações sobre
os fluxos femininos, fazem com que presentes no discurso colonial e na sua ênfase
tenham apreço pelo uso purificador na desconsideração das singularidades nas
da água. O cuidado com o cabelo e o
corpo é feito com o uso de água e de identidades dos grupos tidos como
ervas, pois eles rejeitam produtos
químicos e industrializados como subalternos, os apresentando como
sabão e xampu. Os cachos não são degenerados. Esse falseamento tenta ocultar o
penteados, mas deixados crescer
livremente. Alguns enrolam, aplicam hibridismo, o dinamismo e o constante
cera e lustram seus cachos, embora os
cabelos afros não adquiram o brilho processo de transformação da cultura e da
que possuem os cabelos lisos, identidade, estratégia de sobrevivência de
permanecendo sua aparência fosca. É
somente pelo preconceito de que o caráter transnacional e tradutória, conforme
cabelo sem brilho é necessariamente
um cabelo mal descuidado ou mal esclareceu Bhabha (1998). Por esta razão, faz-
tratado que faz com que os locks se necessário buscar as referências históricas
sejam considerados como algo
realmente horrível [...] (RABELO, para adoção de determinados
2006, p. 492)
comportamentos.
Revela-se, portanto, que a música de Completando esse pensamento, Rosa
caráter étnico e combativo assim como o (2008), afirma que
discurso do rastafarianismo foi desconsiderada
oRastafarianismofoi estudado pela
por uma maioria, predominando esses visibilidade que conferiu às tradições
atributos fixos como características, fundando milenares africanas do Egito e Etiópia
através das performances musicais
mais uma estereotipia. Os estereótipos são jamaicanas do século XX, em que o
reggae construído na diáspora fez

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163 Uma abordagem do rastafarismo nos moldes da psicologia social

emergir sentimentos de orgulho negro como os sentimentos de medo e a intolerância


elegendo fatos históricos para serem
recontados sob a luz de ideais ao diferente, a ignorância, a educação
panafricanistas fortemente difundidos domesticada, que prepara os indivíduos para
na América do Norte e Caribe. (ROSA,
2008, p. 10) se tornarem meros reprodutores e

Isso vem comprovar que juízos mantenedores de uma sociedade gerenciada

provisórios se transformam em preconceitos pelas regras e lógica da indústria. Essas

(PATTO, 2008). Dessa forma, é interessante atitudes evidenciam uma espécie de defesa

perceber que, às vezes, o preconceito se frente à angústia que o objeto alvo de

estabelece porque o sujeito atribui ao objeto preconceito provoca na imaginação de quem

características que lhe são próprias. Sendo visualiza, sendo assim, deve ser entendido

assim, os atributos que constituem o como uma necessidade psíquica,

preconceito, não são imediatos, mas são frutos parafraseando Crochík.

da combinação de fatores ideológicos, Talvez se possa afirmar, ou conjeturar,

econômicos, psíquicos, religiosos entre outros, que o resultado do preconceito seria a

com argumentos desprovidos de formação de estereótipos, discriminação e

experimentação e reflexão. principalmente o fenômeno da humilhação

Corrobora, também, com esse social. Isso porque, se o preconceito pode ser

pensamento Crochík, ao afirmar que entendido como a expressão de atitudes hostis


contra minorias e produto das relações entre as
O preconceito diz respeito a um necessidades psíquicas e ideológicas, gera-se, a
mecanismo desenvolvido pelo
indivíduo para poder se defender de partir dele uma humilhação, uma vez que “no
ameaças imaginárias, e assim é um
falseamento da realidade, que o
preconceito estou voltado para o outro como
individuo foi impedido de enxergar e para um estranho, mas não só: encontro-me na
que contém elementos que ele
gostaria de ter para si, mas se vê contingência de dirigir-me a ele (ou poder a
obrigado a não ter; quanto maior o
desejo de poder se identificar com a
qualquer instante fazê-lo) como alguém abaixo
pessoa vítima do preconceito, mais e a meu serviço” (GONÇALVES FILHO, 2007,
esse tem de ser fortalecido.
(CROCHÍK, 2006, p. 22) p. 212).
A Canção “Barrados no baile” de Edson
E sendo um mecanismo,
Gomes evidencia bem os estereótipos e
Como esclarece Sartre, o estigmas atribuídos aos afro-baianos e rastas,
preconceituoso sofre da nostalgia da
impermeabilidade. Temendo a forma que culminariam numa espécie de
precária e transitória da verdade, rebaixamento. Eis a canção:
resiste à razão e à experiência que lhe
apontam contornos indefinidos da
verdade, renega a dúvida e a hesitação Ando meu cansado (não desisto), por
e anseia pelo estado de pedra no qual várias vezes barrados no baile (ainda
se mantém impermeável. [...] recusa o insisto), acredito em tudo aquilo que
diálogo e é surda aos bons faço e persisto em tudo aquilo que
argumentos, erguendo uma convicção faço, acredito naquele que vem do
que nada mais é do que o fruto da espaço [...]. Ainda ontem no
negação da experiência e da razão. condominio que moro, uma senhora
[...] (SCHMIDT, 2008, p. 60) quando me avistou, apertou a bolsa,
ela escondeu sua bolsa. Apertou a
bolsa, a branca segurou logo a bolsa.
É difícil apontar os geradores dos São cenas da minha cidade, uma
preconceitos, mas podem-se elencar alguns doença da sociadede. Cenas da minha
cidade uma doença talvez incuravel, e
possíveis contribuidores para tal fenômeno, você aí, comopassa? Você aí o que

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164 Geórgia de Castro Machado Ferreira

acha? Somos barrados no baile,todos amargar, misturado ao fel da


barrados no baile eles dizem, que só é desigualdade, ao sentimento de que a
para gente bonita. [...] (Edson Gomes, cidade é fechada para os humildes.
Barrados no Baile, 2005) (GONÇALVES FILHO, 2007, p. 200)

As letras do cachoeirano Edson Gomes Somam-se a isto as denominações


são simples em suas rimas, e de fácil pejorativas em que são apelidados, a exemplo
entendimento, atingindo facilmente as massas, de “ladrões” e “drogados”. Embora, as
a exemplo da letra acima, na qual ele denuncia elucubrações aqui apresentadas não sejam de
o racismo, a discriminação e o preconceito pela caráter fantasioso, reconhecendo-se a presença
estética rastafari e pela cor da pele, nessa comunidade de indivíduos, cuja índole,
precisamente ao afirmar “uma senhora me princípios e atitudes variam de acordo a
avistou e escondeu sua bolsa”, permanecendo o postura adotada por cada um; o que se percebe
estigma de que todo afro-descendente e afro- é a interiorização desses estigmas, como se
rasta seriam ladrões. Além disso, a sua fosse ao todo verdadeiros e, portanto
vociferação, ainda aparece contundente, ao banalizados. É importante frisar que esses
apontar esses sentimentos como “uma doença elementos pejorativos
da sociedade incurável”, capaz de humilhar
[...] São gestos ou frases dos outros
esses sujeitos. que penetram e não abandonam o
O termo humilhação deriva da palavra corpo ou alma do rebaixado. O adulto
e o idoso, já antes o jovem ou a
abaixar, consistindo numa “ação pela qual criança, vão como que diminuir, vão
guardar a estranha e perturbadora
alguém põe um outro como inferior, lembrança de quem a eles se dirigiu
abordando-o soberbamente” (GONÇALVES como quem se tenha dirigido a um
inferior. São lembranças que vão
FILHO, 2007, p. 188). Nesse sentido, desarrumar a percepção e a fantasia, a
memória, a linguagem, o sono e o
retomando a música acima, esses sujeitos sonho. [...]. (GONÇALVES FILHO,
sofrem por não serem considerados dignos 2007, p. 196)

para adentrar em determinados locais, devido Isso nos mostra que os estigmas
à sua condição social, status, raça e aparência, impelidos à categoria são mormente criados e
visível nas expressões “ando cansado, por inseridos de forma tão profunda e incisiva por
várias vezes barrados no baile/ eles dizem que um longo período de tempo, que se torna até
só é para gente bonita”, traduzindo-se numa difícil “hidrolisar” tal figura. Contudo,
negação ao gozo de espaços, um dos percebeu-se que tais temas abordados nos
sentimentos que caracteriza tal fenômeno. discursos dos rastas, são feitos com alegria e
Em virtude disso, recorrendo um sorriso na face; evidenciando a felicidade
novamente a Gonçalves Filho, se percebe que guerreira, parafraseando o professor
Raimundo Sodré, que consiste numa
Os espaços e caminhos públicos, na
sociedade de classes, são imantados característica da população afro, que
pelo poder de segregar, pelo poder de
sempre atualizar a desigualdade. [...]
independente do seu sofrimento, continua a
o humilhado não pode evitar exaurir suas forças na luta diária, sem perder a
“despencar em sua realidade”,
arrastado para perto de seu pai ou sua esperança, a fé e a alegria.
mãe, seu irmão ou seus amigos, todos
excluídos da praça onde a presença
Outro sofrimento provocado pela
dos pobres não pode contar, a não ser humilhação social é a invisibilidade, a qual foi
a serviço dos que despendem dinheiro
e ordens. O sabor da alegria vai logo combatida pelos adeptos ao rastafarismo; pois

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165 Uma abordagem do rastafarismo nos moldes da psicologia social

por meio do reggae, os rastas jamaicanos a morte (VASQUEZ, 1997). O céu como paraíso
disseminaram para o mundo as principais seria a única solução contra os males sociais.
ideias do movimento, e estas, foram traduzidas Para eles, conforme citado anteriormente, o
culturalmente pelos rastas baianos, paraíso fica na terra e em solo africano. Sendo
considerando seu contexto social e histórico, assim, os afro-jamaicanos renegam a cultura
verificando-se assim, esboços de reação do colonizador, reafirmando a necessidade de
principalmente pelo grito, ação impulsiva, se construir a própria história do negro e do
discurso e ações sóbrias, por meio da música. continente africano.
Por exemplo, Bob Marley na melodia Soma-se a isto o clamor que Bob
intitulada Getup stand up cantava: Marley faz, ao chamar o povo oprimido a
erguer-se, adotando uma postura
Levante, resista: erga-se pelos seus
direitos! Levante, resista: não desista revolucionária para conquistar seus direitos,
da luta! [...]. A maioria das pessoas como a única alternativa de concretizar a “sua
pensa que o grande Deus surgirá dos
céus e levará tudo, E fazer todo vocação de ser mais, que não é um privilégio de
mundo se sentir elevado. Mas se você
sabe o quanto vale a vida, vai procurar alguns, mas direito dos homens” (FREIRE,
o céu aqui na terra. E agora que você 1987, p.81), evidenciando a angústia provocada
enxerga a luz, lute pelos seus direitos,
Jah! Estamos cheios e cansados do pela dominação, outro sentimento oriundo da
seu jogo de ismos, morrer e ir pro céu
em nome de Jesus Senhor. Nós humilhação social.
sabemos e entendemos, o Deus Portanto, de acordo com Cunha, essas
poderoso é um homem vivo. Você
pode enganar algumas pessoas às letras estimulam a
vezes, mas não pode enganar todo
mundo, o tempo todo. Então agora
que você enxerga a luz (o que você vai [...] busca por outros referenciais que
fazer?)Vamos lutar por nossos não os divulgados pelo sistema, as
direitos!8 partir de uma “outra
história”,construída de forma a
restabelecer vínculos míticos,
A canção de Marley é clara em seu históricos e políticos com a África /
propósito: alertar a população acerca das falsas Etiópia, ao contrário da orientação
eurocêntrica difundida pelo
verdades impostas pelo eurocentrismo, sendo “opressor”. (CUNHA, 1993, p. 127)
que uma delas na visão desses sujeitos é a
Por outro lado, quando Marley canta
criação do céu como um mundo ultraterreno
“estamos cheios e cansados do seu jogo de
que garantirá a salvação aos bons homens após
ismos, morrer e ir pro céu em nome de Jesus
Senhor” não implica dizer que esses sujeitos
8
Letra original: Get up, stand up: stand up for your rights! Get
up, stand up: don't give up the fight! […]. Most people think, sociais estejam negando a divindade de Jesus
Great God will come from the sky, Take away everything And
make everybody feel high. But if you know what life is worth,
Cristo, ao contrário; a situam no passado. Isso
You will look for yours on earth: And now you see the light, porque acreditavam que Jesus era negro e
You stand up for your rights. Jah! Get up, stand up! (Jah, Jah!)
Stand up for your rights! (Oh-hoo!) Get up, stand up! (Get up, tinha como missão salvar sua etnia. Logo,
stand up!) Don't give up the fight! (Life is your right!). We sick
an' tired of-a your ism-skism game - Dyin' 'n' goin' to heaven in- Selassiê se tornou símbolo dessa nova epifania,
a Jesus' name, Lord. We know when we understand: Almighty
God is a living man. You can fool some people sometimes, But o paraíso esperado por eles, ao passo que a
you can't fool all the people all the time. So now we see the light
(What you gonna do?), Wegonna stand up for our rights! (Yeah, terra africana governada por esse monarca se
yeah,) So you better: Get up, stand up! (In the morning!Git it
up!), Stand up for your rights! (Stand up for our rights!), Get up, tornar à nova Sião.
stand up! Don't give up the fight! (Don't give it up, don't give it.
Disponível em:<http://vagalume.uol.com.br/bob-marley/>.
Acesso em: 14 de abr. de 2012.

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166 Geórgia de Castro Machado Ferreira

Na canção intitulada “O país é do inferno, o inferno é aqui. Sim,


somos nós os sem diretos. Sim, somos
culpado”, Edson Gomes apontará mais uma nós os imperfeitos, somos os negros.
tradução cultural referente ao rastafarismo: Sim, somos nós filhos de Jah. Sim,
somos nós os perseguidos, os
habitantes dos porões do inferno, o
inferno é aqui! (Edson Gomes, Somos
Não existe nenhum lugar pra ir, só nós, 1992)
Jesus pode nos salvar! Somos
senhores das favelas, somos senhores Na poesia musical acima, Edson
da pobreza, falta alimento em nossas
mesas. Conclusão: o país é culpado! Gomes evidencia as condições perversas a que
Quando o mestre então voltar, os negros são submetidos como agravante da
quando o mestre nos resgatar,
enquanto não vem, somos senhores situação de marginalização social em que se
das calçadas, enquanto não vem,
somos senhores das sinaleiras, encontram. Trata-se de uma imagem negativa
enquanto não vem, superlotamos as forjada pela elite opressora, para manter seu
penitenciárias. Conclusão: o país é
culpado! Somos sobreviventes do status quo cercado de regalias, e introjetada
tempo, somos filhos da santa
esperança, somos passivos, nos afro-descendentes, para mantê-los na
resistentes, mergulhados em toda essa situação de perseguição e condicionados a
lama. A razão do nosso viver, meu
Deus, é teu filho que vem nos salvar, situações subumanas como a vida miserável
enquanto não vem, somos os
analfabetos, enquanto não vem, nas favelas, confirmando assim, o fenômeno da
orgulhosos e discretos, enquanto não humilhação compreendido também como “o
vem, grandessíssimos idiotas.
Conclusão: o país é culpado. (Edson rebaixamento que atinge alguém só depois de
Gomes, O país é culpado, 2001)
haver atingido sua família ou raça [...] às vezes
A culpabilidade da situação de pobreza uma nação ou povos inteiros” (GONÇALVES
e marginalização é atribuída ao país FILHO, 2007, p. 187).
(identificado com o Sistema ou o Status quo). Deduz-se, portanto, a identificação dos
Por outro lado, a esperança referida na canção negros baianos com o reggae e que a sua
deve ser compreendida como uma crítica. Isso produção na cidade tornou-se um campo
não significa que Edson Gomes desconsidere a propício para tematizar as questões
fé, ao contrário. Nessa canção, ele evidencia relacionadas ao preconceito, à humilhação e à
que a fé em Deus é que dá forças ao homem exaltação da negritude. A diversidade de ideias
para resistir a toda espécie de sofrimento, pois presentes nas letras dessas canções sejam
proporciona a esperança em dias melhores. aquelas produzidas no seu berço – a Jamaica
Porém, o que o cantor alerta é que a ou nas músicas de Gomes em Salvador possui
esperança sem luta para atingir a libertação um marcante intercruzamento. Existe,
conduz à passividade e à aceitação da situação portanto, um elo de africanidade, evidenciado
de subalternidade. Além disso, os sujeitos na semelhança dos discursos exteriorizados
oprimidos aparecem subentendidos, o que na por meio do reggae, uma vez que o
canção “Somos nós”, Edson Gomes tratará de rastafarismo em Salvador é uma tradução
uma maneira dura os negros como esses cultural desse movimento urdido na Jamaica.
sujeitos:
Considerações finais
Sim, somos nós que estamos nas
calçadas. Sim, somos nós estamos nas
prisões, nos alagados. Sim, somos nós Movimento urdido na Jamaica, o
os marginais. Sim, somos nós
brutalizados, os favelados, dos porões, rastafarismo pode ser entendido como um

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167 Uma abordagem do rastafarismo nos moldes da psicologia social

movimento emancipador marcado por um Decerto, a elite local desprezava os


discurso de resistência e afirmação étnico- valores, as práticas, costumes e estética dos
política caracterizado pelas seguintes ideias: a intitulados rastafaris, a exemplo do consumo
Etiópia como paraíso, HailléSelassié conhecido de ganja e do uso dos dreadlocks; tornando
como Deus Vivo capaz de reconduzir os rastas esses sujeitos sociais em alvos de preconceito e
jamaicanos a terra prometida, condição discriminação, tanto na Jamaica quanto na
essencial para libertação desses sujeitos Bahia, recaindo-se nos aspectos da humilhação
sociais. social.
Sendo a música o principal veículo A humilhação social é política e
disseminador do rastafarismo foi o reggae, justaposta ao indivíduo ou grupo em razão da
estilo musical cuja criação fora atribuída aos diferença de classes, repassando por gerações o
rastas jamaicanos; por esta razão, as letras sentimento de estar abaixo do outro. Desse
veiculadas nessas canções se tornaram um processo resultou a negação do gozo de
instrumento essencial para elaboração desse espaços, pois os rastas não podem adentrar em
escrito, pois foram analisadas a partir de temas determinados locais, a angústia de ser
e conceitos basilares da psicologia social, como dominado e a desigualdade, em termos da
enraizamento, preconceito, humilhação social retirada de direitos e possibilidades. Visíveis
e ideologia. socialmente, os afro-rastas jamaicanos e
Verificou-se que o movimento baianos, o são; mas, como alvo de ojeriza,
rastafari é uma contra ideologia de cunho repúdio, medo e marginalização.
político, religioso, filosófico e étnico. Isso Todavia, percebeu-se que contra os
porque rastafarismo é composto por conjunto processos de discriminação, preconceito
de idéias e valores orientadores da prática de humilhação e desenraizamento, os rastafaris
seus adeptos, a exemplo de sua estética e o empreenderam ações principalmente através
desejo da repatriação, com o objetivo de do discurso étnico e de caráter afirmativo,
construir uma identidade, marcadamente veiculado por meio reggae, que aborda
híbrida e rizomática, na luta contra as práticas inúmeras temáticas, ora de amor e paz assim
e pensamentos pregados pelo discurso como clamores de justiça e conquista de
colonial. direitos, por esta razão, é reverenciada como
O conceito de repatriação, por sua vez, música de protesto e sinônimo de
revelou o sentimento de desenraizamento dos conscientização.
afro-jamaicanos, outro conceito da psicologia Faz-se necessário se despir dos rótulos,
social o qual se recorreu como referencial nesse caso aqueles atribuídos aos rastafaris.
analítico. Em suma, a necessidade da Não é preciso se tornar um, nem tampouco
repatriação, concebida como a aspiração de aceitar todas as suas doutrinas. Contudo, é
retornar ao continente africano, preciso empatia para tentar entendê-las e
especificamente a Etiópia, evidenciou a enxergar a sua importância, pois vale lembrar
sensação de não pertença dos afro-rastas à que cada cultura tem suas próprias
sociedade envolvente, ficando nítido o quão idiossincrasias, contradições, processos de
desenraizados sentiam-se. exclusão que, para bem ou mal, estabelecem
sentidos e identidades.

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168 Geórgia de Castro Machado Ferreira

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