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NATUREZA E PROTESTO:

Os dois lados da Cannabis na visão de mundo rastafari

[1]
Por Lucas Kastrup Rehen

Introdução

Este trabalho tem por objetivo apresentar os principais elementos da filosofia religiosa

rastafari - nascida nas montanhas jamaicanas na década de trinta e que se expandiu por todo o
mundo a partir dos anos setenta - buscando entender principalmente o lugar que a cannabis ocupa

nesta prática religiosa. O ponto central é apontar para a peculiaridade do uso ritual e cotidiano da

cannabis entre um grupo de rastafaris, enfatizando a multiplicidade de concepções e práticas que

estão intimamente associados ao consumo desta planta.

O presente trabalho está dividido em duas partes. Na primeira elaboro um breve histórico

do movimento religioso, localizando o universo simbólico que deu origem ao

[2]
“rastafarianismo” . Em seguida destaco a questão da utilização da cannabis (conhecida também
entre os rastafaris pelos nomes de “ganja”, “marijuana”, “erva”, “sensimilla”, etc) e proponho
[3]
entender esse uso como um “fato social total” cuja lógica cultural e simbólica opera nos mais

variados campos de interação e sociabilidade do grupo. Ainda nessa segunda parte, atenho-me ao
fato de que é possível analisar o ethos e a visão de mundo rastafari, assim como o papel

desempenhado pela cannabis, mediante duas idéias “nativas” de grande relevância etnográfica, a
saber: 1- a concepção rastafari acerca da idéia de uma suposta “essência natural humana” e 2- a

postura política, autodenominada pelos rastafaris como “rebelde” e que diz respeito, pelo menos a
princípio, a uma forte crítica ao “pensamento Ocidental moderno”.

A metodologia utilizada foi a entrevista em profundidade e a observação participante. O


material aqui analisado é fruto da pesquisa de campo realizada entre dezembro de 2003 e março de

2004 com um grupo de sete peregrinos rastafaris, nascidos na Guina Inglesa e que se encontravam

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[4]
de passagem pelo Brasil . Nesta ocasião eles residiam na cidade de São Paulo, ministrando

cursos para construção de instrumentos musicais e artesanato, promovendo reuniões e rituais com

cantos e danças, onde eventualmente consumiam a “ganja”.

[5]
Retomei o tema no segundo semestre de 2005 quando realizei novas entrevistas com o

mesmo grupo de guianeses, desta vez focando abertamente na questão da cannabis - tema que não

havia sido a minha principal preocupação no trabalho anterior, quando investiguei outros aspectos

da cosmologia rastafari. Desde então entrei em contato com outros adeptos desse movimento,

desta vez brasileiros (principalmente do Rio de Janeiro, Niterói, São Miguel Paulista, Porto Alegre

e Fortaleza) com os quais conversei informalmente e pude traçar um certo panorama geral sobre a

[6]
visão de mundo rastafari . Embora existam diferenças perceptíveis, percebi inúmeras

semelhanças entre o rastafarianismo guianês e o brasileiro. É possível sugerir que um fenômeno

de “reinvenção” e ressignificação dessa prática religiosa esteja presente em nossas terras, assim

como na relação Jamaica / Guiana - tema que trabalhei anteriormente (ver Rehen 2004). Trata-se

de uma religião oriunda da ilha jamaicana e que sofreu um grande movimento de expansão, sendo,

portanto, desde sua origem o resultado de um amálgama multicultural.

1- Breve Histórico

O rastafarianismo teve origem na Jamaica, na década de trinta, como conseqüência de um

forte movimento de consciência negra, auto-identificado como anticolonialista e que lutava contra

as péssimas condições dos operários negros nas fábricas e contra certos traços políticos e sociais

jamaicanos, entendidos como sendo os resquícios da escravidão. Este movimento, originalmente

chamado de “garveyta”, foi liderado por Marcus Mosiah Garvey, líder sindical e descendente dos

marrons - principal comunidade de escravos foragidos e que se tornou impenetrável no século

XIX (White 1999).

Entre outras coisas, Marcus Garvey tinha como ideal o projeto da “repatriação”, que seria o

regresso de todos os negros e afro-descendentes de volta para a África. Para esse fim construiu a

linha de navegação “The Black Star Line”, mas não obteve êxito.

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O movimento foi rebatizado e também estimulado com a coroação de Ras Tafari

Makonnem que recebeu os títulos de Haile Selassie I (Poder da Santíssima Trindade), Majestade

Imperial da Etiópia, Rei dos Reis e Senhor dos Senhores. Ras Tafari reinou na Etiópia de 1930 até

1974. Este é um país de maioria cristã copta, portanto não católica e, da mesma forma não

“rastafari”, sendo reconhecida historicamente como uma das primeiras nações cristãs de todo o

mundo (ver Barker 1971).

Garvey havia profetizado: “Olhem para a África, onde um rei está para ser coroado e o dia

da redenção se aproxima”. A notícia da coroação do rei africano, trazendo títulos bíblicos e sendo

reconhecido como o descendente da dinastia do rei Salomão - conforme postulava a Igreja Copta

da Etiópia - trouxe uma renovação para a identidade da população negra e rural nas montanhas

jamaicanas, que passou a louvar o imperador etíope em suas comunidades auto-sustentáveis,

sendo uma resposta quase imediata para a profecia de Marcus Garvey. Para os rastafaris, Haile

Selassie I é também conhecido como “Luz do Mundo”, “Cabeça do Criador” e “Cristo na Terra”.

Com o advento do estilo musical reggae, que uniu instrumentos convencionais da música

pop mundial, como baixo, bateria, teclados e guitarras e os mesclou aos tambores e à estrutura

rítmica e melódica dos cantos tipicamente rastafaris - processo que teve início cerca de trinta anos

após a coroação de Ras Tafari- o “rastafarianismo” ganhou força, se expandiu e desde então

passou a ser reinterpretado localmente por diversas comunidades espalhadas pelo mundo.

Processo este, que se mantém vivo até os dias de hoje.

2- O uso da cannabis e a cosmologia rastafari

O rastafarianismo pode ser descrito brevemente como um movimento filosófico religioso

que preza pela auto-subsistência de seus seguidores, enfatizando os aspectos positivos de uma vida

rural, de alimentação vegetariana e consumo da cannabis, entre outras condutas identificadas por

eles como possuindo uma característica essencialmente “natural”. Por outro lado, a busca pela

“naturalidade” pode ser compreendida como uma forte crítica aos moldes ocidentais (racistas) de

produção, consumo e distribuição da renda.

Desta forma existe um duplo motor na práxis rastafari. O primeiro diz respeito a uma

cultura que prioriza o contato com a natureza e identifica sua própria tradição religiosa como

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sendo “natural” e, o segundo, relacionado ao paradoxo vivido pelos rastafaris com relação ao

mundo moderno, tecnológico e branco, buscando alternativas para contestá-lo.

Cabe ressaltar que os próprios rastafaris não apresentam em seus discursos essa operação

dicotômica e vivem de forma a perceber e explicitar unicamente a “totalidade” dos valores e

práticas que eles constroem e pelos quais suas identidades estão sendo construídas. Isto é, essa

abstração, que desmembra a experiência rastafari a partir de dois pontos distintos, “a idéia de

natureza” e “a militância anticapitalista”, é meramente um artifício metodológico, um esforço do

pesquisador para compreender e tornar compreensível o movimento rastafari.

Sabemos, por meio de inúmeras etnografias e da contribuição intelectual que as ciências

sociais vem desempenhando desde a origem de suas disciplinas que a relação dos homens com a

natureza varia consideravelmente - histórica e culturalmente - sendo assim não existem categorias

que estejam prontas e pré-determinadas biologicamente. Há espaço para concepções variadas na

comunicação do homem com o meio, consigo mesmo e com os outros homens. Noções de Bem /

Mal, Sagrado / Profano, entre outras, fazem sentido dependendo do contexto cultural em que os

atores sociais estão inseridos.

De maneira resumida, posso citar como exemplo os típicos cabelos compridos e

embaraçados dos rastafaris, conhecidos como dreadlocks ou “madeixas que chocam” (segundo

algumas traduções) e que são um belo exemplo da dualidade “Natureza / Protesto”. Por um lado, o

ato de deixar os cabelos crescerem e não penteá-los é, para os rastafaris, um sinal de sua

“naturalidade”, fruto de desapego material e nas palavras de um de meus informantes, o resultado

de sua própria “natureza inalterada”. Por outro lado, como o próprio nome diz, são “madeixas que

chocam” e os dreadlocks, olhando por essa ótica, são um signo de protesto e contestação. O

desapego material simbolizado nos emaranhados dos cabelos é o mesmo desapego aos produtos

industrializados e à tecnologia em geral, desapego este que corrobora com todas as práticas da

visão de mundo rastafari, sinônimos de “natureza” e “protesto”.

Sendo assim, as atividades do rastafarianismo obedecem a duas ordens: 1- práticas rituais e

cotidianas tidas como naturais, sendo do domínio do sagrado: canto, dança, alimentação

vegetariana, consumo da cannabis, contato com a terra (plantio e colheita de alimentos) , não

cortar ou pentear os cabelos, louvar a África e Ras Tafari I, etc. 2- Atividades de cunho político:

uma das características mais marcantes nesse tópico é o fato de que os rastafaris, quando inseridos

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nas cidades, abdicam do direito ao voto. Segundo eles: “nenhum governo é legítimo”, com

exceção dos reis da dinastia salomânica da Etiópia.

Sustento que todos os elementos do ethos rastafariano podem ser analisados mediante a

abstração “Natureza / Protesto”. A cannabis é um objeto que encarna essas duas dimensões na

medida em que ela é para os rastas um dos grandes símbolos sagrados da natureza, sendo ao

mesmo tempo uma bandeira para a transformação do modelo jurídico, moral e comportamental

das sociedades contemporâneas.

Uma das frases mais usadas pelos rastafaris para designar a cannabis é chamá-la de “a cura

das nações” . Se o “rastafarianismo” é essencialmente um movimento religioso de protesto - desde

sua origem com Marcus Garvey, que rejeitou a dominação branca - fumar a “ganja” é também

protestar e rejeitar as leis de uma hegemonia colonialista, que proíbe legalmente o uso da

cannabis. Esta é também uma marca simbólica de sua identidade.

Para ilustrar essa característica “revolucionária” dos rastafaris e da utilização da “ganja”

não apenas como sacramento, mas como contestação, posso citar um fenômeno histórico similar,

descrito por MacRae e Simões (2000). Eles mostraram que a cannabis, a partir dos anos 60,

começou a ser consumida por camadas médias urbanas brasileiras e logo em seguida, com o

surgimento da ditadura militar, teve seu uso – já não mais restrito às camadas baixas e marginais

da sociedade – associado a um estilo de vida alternativo, sendo também um dos elementos no

processo de militância ideológica por liberdade de expressão, por igualdade e justiça social. Assim

como essa geração brasileira, - que lutou por uma causa antiditatorial - os adeptos do

“rastafarianismo” militam contra um modelo de vida “ocidental” e utilizam a “ganja” como

bandeira místico-religiosa e política.

É por esse status privilegiado da cannabis dentro da cosmologia rastafari que entendo seu

uso como um “fato social total”. Esta idéia se tornará mais clara na medida em que observarmos

os aspectos mais gerais de suas técnicas de uso, as interpretações e as associações - ora feitas

pelos “nativos”, ora por mim - que correlacionam o consumo da cannabis com outros aspectos da

vida social rastafari.

Destaco agora uma das definições de Marcel Mauss sobre o que denominou por “fato

social total”: “Nesses fenômenos sociais ‘totais’, como nos propomos chamá-los, exprimem-se, de

uma só vez, as mais diversas instituições: religiosas, jurídicas e morais-estas sendo políticas e

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familiares ao mesmo tempo -; econômicas – estas supondo formas particulares da produção e do

consumo (...); sem contar os fenômenos estéticos em que resultam esses fatos e os fenômenos

morfológicos que essas instituições manifestam” (Mauss 1974; p.187).

2.1- Os nomes e as formas de consumo da cannabis no universo rastafari

A crença em Jah Rastafari como “Senhor da Criação” e o uso da “ganja” foram dois dos

aspectos mais constantes entre os diferentes grupos de rastafaris que conheci. Outras prescrições

variam consideravelmente, alguns rastas misturam tabaco com cannabis, outros comem sal ou

bebem leite, fatos estes que tradicionalmente são considerados tabu na visão de mundo rastafari.

Durante o tempo em que estive em contato com os rastafaris da Guiana, pude observar

quatro formas principais de uso da cannabis: 1- a “ganja” fumada em forma de cigarros, 2-

fumada em cachimbos chamados de “cálices”, 3- ingerida na forma de chá e 4-utilizada como

alimento: tempero, pastas ou bolos. Usualmente é unicamente o ato de fumá-la (cigarros ou

“cálice”) que vem precedido e acompanhado por orações e evocações das palavras “Jah, Rastafari,

Selassie I” repetidas por todos os fiéis, conferindo assim um caráter sacramental ao ato. Nos

outros casos a cannabis pode ser usada ao longo de conversas, passeios, no desenvolvimento de

trabalhos artísticos e em inúmeras situações sociais. Os rastas sentem-se livres para se divertirem

enquanto consomem a “ganja”, mas sentem-se bastante ofendidos quando fumam em companhia

de pessoas que falam palavrões (vocabulário classificado como negativo) ou assuntos

considerados “profanos”.

A noção de identidade é também importante em termos da própria cannabis em si. Como

em outros discursos desse tipo, a identidade rastafari pode ser percebida como uma construção

sócio-cultural. Os rastas tendem a identificar o uso da cannabis apoiados em esteriótipos,

experiências pessoais e contextos específicos para a sua utilização. Uma pequena demonstração

dessas múltiplas identidades dos usuários da cannabis pode ser encontrada através dos nomes

conferidos a esta planta e suas conseqüentes conotações.

O grupo de meus entrevistados, rastafaris guianeses, chama a cannabis por nomes tais

como “ganja” e “erva”, além de uma variedade de outras nomenclaturas que são derivadas destas

duas primeiras. Através de uma observação cuidadosa em relação ao vocabulário e a prática

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rastafari posso afirmar que a “ganja” é o termo mais adotado e aparece como um divisor de águas,

definindo o caráter sagrado da planta - “ganja” é um “sacramento religioso” que está associado a

cantos e rezas rastafaris - em contraposição a essa mesma substância, cannabis, quando

consumida como recreação por pessoas “não-rastas” e pode então ser chamada pelos próprios

rastafaris de “maconha” ou “dagga”.

Já o termo “erva” (ou “herb”) é utilizado quando os rastafaris querem reafirmar o aspecto

medicinal das supostas propriedades curativas da cannabis e esse é um aspecto que também está

ligado à auto-suficiência do estilo de vida rastafari, fundamentado, entre outras coisas, na crítica

ao modelo de vida moderno . Eles não acreditam na cura através da medicina ocidental e sim

através da “erva” em chás ou quando fumada na forma de cigarros ou em cachimbos, consumo

que deve estar associado à música e orações. Ainda sobre essa noção da “erva” como medicina, os

rastas afirmam que a cannabis pode curar muitas doenças, especialmente “pressão alta, stress,

glaucoma e aliviar náuseas de pacientes com câncer”.

As opções por nomenclaturas ligadas à cura ou sacramento religioso reivindicam um lugar

divino e “natural” dessa planta afastando-a de uma possível interpretação pejorativa, tal como

“droga”. Além disso, é através da cannabis que os rastafaris defendem uma medicina natural

alternativa e contestam a medicina “ocidental”. Com uma só prática eles evocam a “natureza” e o

“protesto”, alicerces do “rastafarianismo”.

Um de meus entrevistados afirmou usar apenas os termos “erva sagrada” ou “ganja” ao se

referir a cannabis em seu dia-a-dia e segundo ele o nome “maconha”, assim como“dagga” trazem

uma “conotação negativa afirmada por policiais, juízes e repórteres”. São palavras de um

informante: “o rasta tenta manter uma postura positiva, usando nomes que transmitem

positividade, como é o caso da nossa ‘erva sagrada’”.

Outro entrevistado declarou:


“Ganja é um sacramento espiritual que eleva a alma para Rastafari-I, para
que possamos ver a Verdade que o altíssimo nos revela o tempo todo(...) Para
concluir, nem todos que usam essa planta são rastafaris, como se sabe alguns
usam sem propósito ou com má intenção. Igualmente, nem todos os rastas
usam a ganja. Mas eu concordo que esse é um critério para conhecer um rasta.
Para ser rasta não precisa usar, mas todos os rastas apreciam seu uso”.

Em um nível operacional, da forma como é usada, a cannabis coloca os rastafaris de uma

mesma comunidade unidos em torno da “ganja”, para discutirem seus problemas em comum e

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procurarem as melhores soluções. A natureza altamente ritualizada da “ganja” comumente ajuda

os rastafaris a afirmarem os aspectos positivos do que é “ser um rasta”, especialmente quando eles

afirmam estar vivendo em um sistema político injusto e perseguidor. Neste caso, a “ganja” adquire

um valor simbólico de grande peso, torna-se um elo de sociabilidade e um signo da identidade do

grupo em contraposição ao “sistema Babilônia”.

2.2- Estado alterado da consciência

Discutindo sobre a idéia de “estados alterados de consciência”, um de meus informantes

insistiu em afirmar que não se trata da consciência “alterada” . Em outras palavras, a “Babilônia”

– termo usado para designar o modo de vida ocidental - é quem altera a pureza original e quando

um rastafari fuma a “ganja” ele acredita estar restituindo o “estado mental correto” e original.

Fazendo um paralelo entre o consumo da cannabis e a forma como os rastafaris

desenvolveram uma linguagem própria para conversarem entre si, podemos encontrar na palavra

“apreciar” (do inglês “appreciate”) um bom exemplo do que eles entendem como sendo o estado

mental “alterado” pela Babibônia - e não pela “ganja”. “Appreciate” recebe na linguagem

particular dos rastafaris o nome de “appreci-love”, já que o anterior “appreciate” faz lembrar

“appreci-hate” e “hate” é o oposto de “love” (“odiar” é o oposto de “amar”). Sendo assim, o

sentido da palavra “apreciar” está mais próximo do significado da palavra “amar” como

contraponto de “odiar” e esses artifícios para a reinvenção de uma linguagem própria obedecem à

mesma lógica que supõe o “estado mental correto”, induzido pela “ganja”. A linguagem rastafari é

entendida por eles como uma “linguagem correta”, que traz a forma “correta” de expressão - assim

como a “ganja” traz o “estado correto da consciência” - preservando o que seria o sentido original

dos termos e da mentalidade. De acordo com os rastas essas alterações na linguagem e na

mentalidade foram realizadas pela Babilônia e agora estão sendo resgatadas por eles e mantidas

em sua pureza original.

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Uma passagem clássica do antropólogo Gilberto Velho, no livro Nobres e Anjos (1998)

torna-se importante para explicitar que tipo de fenômeno propicia as interpretações que os rastas

fazem sobre as modificações sofridas no campo psíquico após o efeito do consumo da cannabis.

Segundo a lógica social rastafari, os efeitos da “ganja” não equivaleriam a um “estado alterado de

consciência”, mas ao “estado correto e original da consciência”, sendo este um valor cultural. Para

Velho:

“Certas pessoas começam a ser socializadas no uso da maconha, dentro de

um grupo, com a orientação de indivíduos mais experientes que não só são

capazes de transmitir técnicas, mas de interpretar as sensações físicas que os

iniciantes estão sofrendo” (Velho 1998, p.79).

Para o autor, a existência de um processo bidirecional é responsável por uma dialética

constante entre os efeitos psicotrópicos e a subjetividade dos indivíduos, em um processo que é ao

mesmo tempo psíquico e social. Saber o que ocorre na esfera subjetiva após o consumo da

cannabis, fornecendo sentido e inteligibilidade à experiência sensível é obra de um delicado

processo de aprendizagem. Esta educação é transmitida a partir de categorias de pensamento

específicas, que são vividas como espontâneas e naturais, tamanha é a força da instituição cultural

que está o tempo todo trabalhando sobre e através dos indivíduos.

Quando um rasta fala que ao fumar alcançou seu “verdadeiro” estado de consciência, ele

está operando com categorias de pensamento particular de sua realidade cultural, na qual foi

socializado, isto é, onde apreendeu as técnicas de uso e de interpretação dos fenômenos que

ocorrem em sua intimidade e na relação com os demais.

2.3- A “ganja” e suas “funções” sociais

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Estudos mais aprofundados sobre o uso da cannabis entre os rastafaris jamaicanos podem

estimular outras conclusões sobre o ethos rastafari. Sabe-se que em diversas montanhas

jamaicanas apenas os homens fumam a “ganja”, restringindo mulheres e crianças para o consumo

do chá. De acordo com as palavras de um entrevistado:


“o chá vai para a corrente sanguínea e de lá para o coração, representa a
parcela naturalmente feminina do corpo humano, enquanto a fumaça vai para o
cérebro e o cérebro é a parte masculina do corpo”.

Dessa forma os homens fumam, conversam e tomam as decisões para o desenvolvimento

cotidiano de suas comunidades. Quando indaguei meu entrevistado mais uma vez sobre esse fato,

tive a resposta de que algumas mulheres costumam fumar escondidas na ausência de seus maridos.

O evento descrito acima parece estimulante para várias áreas de pesquisa antropológica,

pois apresenta a noção rastafari (jamaicana) do corpo e de suas “funções” e a relação bipolar que
fazem entre natureza e hierarquia: “decisão-cérebro-homem / emoção-coração-mulheres e

crianças”. Este exemplo aponta para a classificação “nativa” acerca dos papéis sociais entre os

gêneros e de um possível desejo encubado na vontade das mulheres ascenderem socialmente,

manifestando essa inclinação no ato de “fumarem escondidas”.

Esse mesmo evento fala também do consumo infantil da “ganja” - na forma de chá e junto

com as mulheres - e também comprova a minha hipótese introdutória de que o uso cannabis, entre

os rastafaris, não é uma realidade estática e reduzida sendo um objeto de estudo privilegiado capaz

de desvendar outros aspectos desta visão de mundo.

Um estudo comparativo entre as três realidades: rastas no Brasil, na Guiana e na Jamaica,

poderia mostrar o caráter de resignificação que o “rastafarianismo” permite - pela ausência de

instituição religiosa rígida e/ou estatuto de normas. As alteridades que influenciam o consumo da

“ganja” aqui e ali e entre os rastafaris por todo o planeta nos mostram a existência de um espaço

para reinvenções locais em uma cosmologia permanentemente “em construção” (Araújo 1999).

Considerações finais

A experiência do consumo da cannabis é, neste universo de rastafaris, eivada de

considerações acerca da relação entre cura, religiosidade e protesto. Como vimos, as respostas

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mais imediatas fornecidas pelos entrevistados giram em torno dessas proriedades da cannabis,

construindo nomenclaturas e modalidades específicas para cada tipo de uso.

Outra questão que conduziu este artigo, foi a de que o uso dessa planta, assim como toda a

práxis rastafari, está fundamentada em duas idéias principais: “Natureza” e “Protesto” e que

ambas articulam-se na vivência rastafari - ainda que estejam subentendidas no nível do discurso

“nativo” - como portas de entrada para a compreensão desse tipo de religiosidade.

** *

O fato de uma dada coletividade utilizar um psicoativo, neste caso a cannabis, atribuindo

um determinado sentido contextual e um valor cultural para seu uso, elimina a classificação do

grupo como portador de comportamento desviante - considerando os valores do próprio grupo. O

estudo etnográfico dos rastafaris nos revela que entre eles, o consumo dessa substância é uma das

normas sociais vigentes e está longe de ser um fator patológico. Engloba todas as atividades

sociais e é condição sui generis para sua perpetuação. É neste sentido que a análise aqui

empreendida pretende ser uma contribuição para o estudo antropológico sobre psicoativos.

Referências bibliográficas

ARAÚJO, Wladimyr Sena. Navegando Sobre as Ondas do Daime: história,


cosmologia e ritual da Barquinha. Campinas: Editora da Unicamp, 1999.

BARKER, A.J. A Conquista da Etiópia: sonho de um império.Rio de Janeiro: Editora Renes Ltda,
1979.

HAUSMAN, Gerald. The Kebra Nagast: the lost bible of Rastafarian wisdom and faith from Ethiopia
and Jamaica. New York: St. Martin´s Press, 1997.

MACRAE, E. & SIMÕES, J. A. Rodas de fumo: o uso da maconha entre camadas médias
urbanas. Salvador: Edufba, 2000.

MARTIN CLARET. Bob Marley por ele mesmo. São Paulo: s/d.

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo, Edusp, 1974.

REHEN, Lucas Kastrup. Peregrinação Rastafari: uma perspectiva antropológica sobre a Fundação
Congo Nya no Brasil. Monografia de conclusão do curso de Graduação em Ciências Sociais, UERJ, 2004.

REHEN, Lucas Kastrup. Rastafari: A “Natureza” como construção da identidade religiosa. Trabalho
apresentado no simpósio “Drogas: Controvérsias e Perspectivas”, USP, setembro 2005.

VELHO, Gilberto. Nobres & Anjos: um estudo de tóxicos e hierarquia. Rio de Janeiro: Editora
Fundação Getúlio Vargas, 1998.

WHITE, Timothy. Queimando Tudo: a biografia definitiva de Bob Marley. Rio de Janeiro: Record,
1999.

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[1]
Mestrando pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, PPCIS-UERJ.
[2]
Utilizo aqui o termo rastafarianismo entre aspas, porque ele não é utilizado pelos grupos de rastafaris por mim
estudados. Eles falam simplesmente Rastafari e acreditam que esta é uma filosofia universal, enquanto o nome
“rastafarianismo” poderia supor uma idéia de separação ( ou facção religiosa ).
[3]
Ver Marcel Mauss (1974)
[4]
Rehen (2004), em monografia para a conclusão de curso para a graduação em Ciências Sociais, UERJ. Com o
título de “Peregrinação Rastafari: Uma perspectiva antropológica sobre a Fundação CongoNya no Brasil”.
[5]
Nesta ocasião apresentei o trabalho “Rastafari: A ‘natureza’ como construção da identidade religiosa”, no
simpósio “Drogas: Controvérsias e Perspectivas”. Organizado na USP pelo Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre
Psicoativos (NEIP), setembro 2005.
[6]
Minha experiência como músico da banda de reggae Ponto de Equilíbrio - que possui adeptos da filosofia rastafari
entre seus integrantes - auxiliou-me bastante no contato com rastafaris em todo o território brasileiro. Devo muito de
minha inserção neste universo filosófico-religioso às viagens e turnês da banda.

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