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Sabia que ia me dar mal, qualquer dia, com essa mania de querer tudo certinho. E
vivia em constante conflito existencial.
Dizia sempre que não deveria ter nascido neste mundo, nem nesta época. Afinal,
aprazia, a algumas pessoas, fazer as coisas erradas, relaxadamente,
displicentemente, teimosamente? Porque não agiam conforme as regras? Seria tão
bom se todos cumprissem seus deveres para consigo mesmo, para com os outros,
para com as instituições com as quais estivessem comprometidos.
Pois o fato é que, numa reunião importante, quase magna, com presença de ilustres
convidados, um dos atores cometeu uma lamentável falha, ao instruir os novatos.
Todos os presentes assistiram. Notaram o erro tão crasso e tão evidente. Pareceu
que uns disfarçaram e desviaram a vista. Outros, entretanto, me olharam, para ter
certeza de que eu também havia observado. E aí, aconteceu. Nenhum comentário.
Ninguém se dispôs a falar.
Um dos últimos a usar a palavra, disse à Assembléia que tínhamos duas atitudes:
silenciar, numa demonstração de desconhecimento ou de omissão, ou corrigir, ali
mesmo, o engano. Levantei e falei, me referindo à forma errada como foi praticada
parte do ensinamento. O constrangimento foi total.
No jantar que se seguiu, o desastrado ator, inconformado por ter sido chamado à
atenção em público, ferido no seu amor próprio, veio me tirar satisfações e expressar
sua revolta com minha atitude.
Saí da reunião deprimido. Mais do que isso. Arrasado. Queria ter o poder de retomar
no tempo e apagar as últimas horas. Talvez até sem avaliar a exata dimensão do
ocorrido.
É claro que agi bem. Estava sendo ensinado um procedimento errado. Haveria de
ser corrigido ali mesmo.
Mas poderia deixar para falar depois, em particular? Ou deixar para a reunião da
próxima semana? Se isso fosse possível, agi mal.
Não. A hora era aprazada. Tinha que ser naquele momento. Se alguém saísse dali e
devesse repetir o movimento, o faria errado porque aprendeu errado. Então agi bem.
Afinal, havia tantas pessoas ali, com maior grau de responsabilidade, mais antigos,
com maior experiência, que poderiam se pronunciar. Então agi mal.
É, mas eles eram visitantes. Tinha que ser alguém do nosso grupo, com coragem,
saber falar e saber o que falar. E eu era, na reunião, o encarregado dos
procedimentos ritualísticos. Deveria ser eu. Então agi bem.
O que iriam pensar e comentar, as grandes autoridades ali presentes, o Chefe Geral,
o Chefe Adjunto, os Chefes das co-irmãs, os visitantes? No mínimo, que
ensinamentos errôneos são ministrados em nossa casa. Que não conhecemos a
dinâmica correta. Então agi bem.
Deveria ter pensado que corrigir o instrutor ali, na frente de tanta gente, iria lhe ferir o
orgulho e o amor próprio. Então agi mal.
A coisa foi mal organizada. Deveria ter treinado antes. Deveriam ter avisado que
seria dada aquela instrução naquele momento. E deveria ter competência para a
demonstração. Então agi bem.
Sabe aqueles três macacos do templo chinês: não vejo, não falo, não ouço. E não
me indisponho com ninguém. Então agi mal.
Seríamos taxados de omissos (sabe e não fala) ou ignorantes (não fala porque não
sabe)? Então agi bem.
Agi bem, agi mal. Vale o silêncio nessa hora?
Calma. Tolerância. Alguém vai dar um jeito. Ou vai ficar assim mesmo. Afinal, você
não pode mudar o mundo. Sem essa de messianismo romântico. De missão
salvacionista.
Não mexe nisso. Não faz onda, não balança. Não fala. Não te mete. Deixa pra lá. O
que você vai ganhar com isso? Adianta alguma coisa? Vai resolver?
Acomodar-se ou incomodar-se?
Vale a pena você falar e ser chamado de antipático, de criador de caso? Com
certeza é a melhor maneira de conseguir alguns ferrenhos inimigos. Ou ser
bonzinho, compreensivo, sem se envolver muito, sem se comprometer muito?
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