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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS – UNICAMP

INSTITUTO DE ARTES
COMUNICAÇÃO SOCIAL – MIDIALOGIA

Trabalho Final CS401 – Teoria do Cinema


Prof. Dr. Francisco Elinaldo Teixeira
PEDs: Felipe Abramovictz, Luiz Felipe Rocha Baute, Theo Duarte
Discente: Gustavo Henrique Oliveira da Silva RA: 171412

O homem com uma câmera: uma discussão sobre os métodos


empregados por Dziga Vertov

Introdução

No início do século XX, a sociedade russa passa por uma mudança de


paradigma em várias áreas de sua sociedade. A mudança na realidade atravessa o
campo social e político e chega até o campo artístico, no qual se cultiva o ideal da
revolução a o papel do setor criativo em contribuir para a oposição aos antigos
aparatos, estruturas burgueses que regeram o Império Russo por um longo período.
Novas práticas e formas de expressão que se alinhassem à motivação coletiva de
mudança foram desenvolvidas no teatro, na poesia, nas artes visuais, na literatura e
no cinema russo. Esse último foi peça fundamental no esforço para cumprir os ideais
revolucionários russos nos anos 1920 e partiu principalmente do Construtivismo russo
para se consolidar como ator de mudança (SARAIVA, 2006).
O construtivismo consistia, em linhas gerais, no movimento que propunha a
recusa à mimese da realidade da arte tradicional e do suprematismo. A partir da
deposição do czarismo, a arte passou a ser entendida como trabalho, ao artista, deve
atuar como engenheiro, desprezando o lirismo e simbolismo para atingir efeitos
concretos. A atividade artística deveria estar sempre ligada a uma análise teórico-
analítica, para identificar esses efeitos produzidos pelas escolhas nas obras. As
maneiras como as coisas são feitas deviam ser expostas para negar a representação
do mundo; mostrar que tudo é construção, logo tudo pode ser refeito (SARAIVA,
2006).
É nesse contexto que Dziga Vertov, um dos principais teóricos da vanguarda
soviética, desenvolve esses ideais através do cinema. Vertov defendia a substituição
o modo de fazer tradicional do cinema que se formava por toda a estrutura econômica
e burguesa de produção, distribuição e exibição, por uma rede colaborativa de
profissionais, os kinoks; desenvolve seu conceito de cine-olho onde expõe o modo de
produzir o filme, rejeitando a ficção, a encenação e a reconstituição dos fatos.
Vertov é apresentado por autores como Leandro Saraiva (2006) e Walter
Morales Junior (1996) como o que buscou colocar em prática de modo mais puro e
mais radical os ideais do construtivismo. Entretanto, não se debruçam sobre a
possível inspiração e incorporação dos princípios formalistas em sua produção fílmica.
Portanto, pretende-se investigar, a partir da análise de seu mais notável longa
metragem, O homem com uma câmera (1929), como o diretor não se utiliza apenas
dos métodos construtivistas, mas também aplica as concepções do Formalismo para
criação de sua obra.

O homem com uma câmera e o construtivismo

Desde o início de sua prática cinematográfica, quando produziu seus


cinejornais, conhecidos como Kino Pravda, Vertov apostava na experimentação,
sendo considerado um dos pioneiros do cinema documentário ou cinema verité; em
seguida produz seu primeiro longa-metragem, o Kinoglaz (1924), no qual explora
recursos como a inversão dos planos dos filmes, favorecendo uma reflexão e
complexificando o ato de ver seu filme. Vertov chega então em O homem com uma
câmera, filme de 1929, no qual emprega os recursos fílmicos mais variados,
extrapolando as experimentações e inovações feitas antes naquele momento.
(SARAIVA, 2006).
O homem com uma câmera segue a mesma estrutura dos cinejornais de
Vertov, que expõe a cidade em diferentes momentos e por várias esferas – a do
trabalho, lazer e a cidade por si só, sua arquitetura e seu fluxo de pessoas,
automóveis, suas relações sociais. A primeira cena do filme é uma montagem em
justaposição de uma câmera de filmagem e do operador (ou kinok), como se fosse
uma miniatura, em cima dela (Figura 1). Já é evidenciado, portanto, uma concepção
central do construtivismo: tornar visível a maneira como as coisas são produzidas. As
imagens do operador com sua câmera trabalhando; rodando a manivela, apontando
a lente para o espectador; abrindo e fechando o diafragma da lente, entre outras
aparições, estão presentes ao longo de toda a obra, além das aparições mais breves
da montadora do filme, os quais evidenciam o papel do artista-engenheiro, que tem a
arte como trabalho (Figura 2). O operador também não aparece em uma situação real,
atestando, logo no início, para o não comprometimento do cineasta com uma
representação da realidade, estando ele mais interessado em romper com essa
impressão, muito cultivada, segundo Morales (1996), pelo cinema hollywoodiano e
tradicional que vigorava no período, o qual também serviu de inspiração para Vertov
propor suas teorias.

Figura 1 e 2: Plano de um kinok abre o filme, o qual aparece em inúmeros


momentos. Montadora cortando rolos de filme.

Os planos da cidade e todos seus elementos são capturados por variados


ângulos e são apresentados através de articulações formais complexas e não formam,
de fato, uma narrativa. A dimensão de uma história a ser contada não é evidente, a
subjetividade do artista não está presente, o filme se baseia, portanto no movimento
entre as imagens. Define-se assim o conceito de intervalo no cinema vertoviano: é o
conceito que regula todo o filme, gerado a partir das correlações entre os elementos
fílmicos como luz, sombra, movimento, ângulo, velocidade, planos, justaposições,
sobreposições etc. (SARAIVA, 2006). A partir desse método, Vertov proporciona uma
experiência de quebra do cotidiano de quem assiste; o olho-câmera do cine-olho
trabalha investigando a realidade e proporcionando uma visão sobre ela não atingível
através do olho humano, condicionado à sua interpretação do mundo. Com essa
quebra do cotidiano, Vertov estimula a reconfiguração da consciência das massas
para uma nova visão da realidade em que estão inseridas.
Saraiva (2006) afirma que

o cine-olho de Vertov inscreve-se na galeria da arte construtivista: ele constrói


um discurso cinematográfico que, apresentando reflexivamente seu modo de
operação, faz "experiências" com as imagens do mundo, decodificando-o
segundo um método que lembra a proposta marxista de passar do positivismo
do dado empírico ao ponto de vista crítico de um "concreto pensado". (p. 138)

A descrição e definição do autor, no entanto, deixa passar despercebido que


parte dos procedimentos utilizados pelo diretor também se relacionam aos conceitos
desenvolvidos pelo formalismo, e que atendem também aos ideais revolucionários,
mas se utilizando de outras concepções.

O homem com uma câmera e o formalismo

A partir de seu conceito de intervalo e do cine-olho, Dziga Vertov realiza


diversas articulações entre os planos do filme, que refletem e ilustram diretamente
métodos descritos por teóricos da vertente do Formalismo russo.
De acordo com Robert Stam (2003), o Formalismo teve seu primeiro
desenvolvimento na literatura mas era entendido como arte de legitimação e testagem
de conceitos formalistas. Por isso, logo houve o movimento para criar-se uma poética
para o cinema. O formalismo definia-se pela apreciação pela técnica, pelos materiais
de trabalho e prezava por uma abordagem científica da produção artística. Além disso,
nessa corrente, a arte deve ser poética, sendo seu objetivo “problematizar o estético,
renovar a percepção, levar o leitor/espectador a sentir o ‘o pétreo da pedra’” (STAM,
2003, p. 68) através das formas, sendo valorizado não as convenções sobre essas
formas, mas sim, os desvios das normas técnicas e estéticas.
Nesse contexto, Vitor Chklóvski (1976), autor central no campo da literatura,
mas cujos conceitos se relacionam ao cinema soviético, descreve a lei da economia
de energias (ou lei de economia da atenção) e como a construção de uma obra de
modo a representar a realidade ou inserir objetos de modo a tornar reconhecível o que
se está criando é pouco produtivo. Segundo o autor, sem um estranhamento que
estimule a exigência por mais atenção em uma obra, as ações se tornam
automatizadas e não proporcionam mudanças nem a reflexão acerca do que está ali,
sendo que passam a ser a apenas reconhecidos e não vistos em sua completude.
Da mesma forma atua a quebra do cotidiano em O homem com uma câmera.
O procedimento pode ser observado na sequência que se inicia em 00:59:56, com o
plano de garrafas de vidro que estão sendo tocadas com talheres, após isso, as
imagens são intercaladas com rostos de pessoas de modo cada vez mais frenético,
culminando na sobreposição confusa de vários planos de talheres, sapatos e pianos
sendo tocados, no minuto 1:00:49 (Figuras 3, 4 e 5).

Figura 3, 4 e 5: Planos intercalados freneticamente, de difícil apreensão.

Essa quebra do cotidiano se liga ao conceito de desfamiliarização do


Formalismo, que deve “ser alcançada por meio de procedimentos formais não
motivados baseados no desvio das normas estabelecidas” (STAM, 2003, p. 65).
Através da desfamiliarização, Vertov consegue desautomatizar a percepção sobre as
coisas em seu filme, o qual atinge o patamar de imagem poética, definido por Vitor
Chklóvski, a qual opera como meio “de criar uma impressão máxima das coisas” e
“reforçar a sensação produzida por um objeto” (CHKLÓVSKI, 1976). Dessa forma, o
cinema de Vertov foge de uma apresentação objetiva dos fatos e potencializa a
percepção para reconhecer sensivelmente os objetos e acontecimentos da cidade,
princípio central de seu cine-olho.

Considerações finais

Dziga Vertov é reconhecido como o cineasta que aplicou mais radicalmente os


conceitos do construtivismo em sua obra, e que fazendo isso expandiu essa vertente
artística revolucionária através de seus experimentos e sua teoria. Quando se coloca
seu trabalho mais importante em diálogo com outros modos de pensamento sobre a
forma como a arte e o cinema podem trabalhar para produzir mudanças, permite-se
ampliar o modo de como se pode interpretar e reconhecer seu cinema.
Vertov chega ao ápice do construtivismo, mas diferente de outros nomes
centrais para o movimento do cinema soviético, que buscaram seguir uma única
vertente e desenvolver seus trabalhos abdicando de outras formas e caminhos, sua
obra transita por mais de um campo, enriquecendo seus efeitos. A partir disso, tem a
chance de chegar no potencial máximo da revolução desejada para a época.
Atendendo os ideais tanto pelo convencimento ideológico, quanto pela reordenação
dos sentidos, da parte mais sensível do espectador aflorando uma percepção nova do
mundo e da vida, para que se firmasse uma nova fase.

Bibliografia

CHKLÓVSKI, Viktor. A Arte como Procedimento. In: EITORA GLOBO S.A. Teoria da
literatura: os formalistas russos. 3 ed., Porto Alegre: Globo, 1976. pp. 39-56.

MORALES JÚNIOR, Wagner P. A montagem do construtivismo de Eisenstein e


Vertov. Logos, vol. 3, n. 1, 1996. Disponível em: <https://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/logos/article/view/13177>. Acesso em: maio de 2021.

SARAIVA, Leandro. Montagem Soviética. In: MASCARELLO, F. (org.). História do


Cinema Mundial. Campinas: Papirus, 2006. pp. 109-139.

STAM, Robert. O Formalismo Russo e a Escola de Bakhtin. In:______. Introdução à


Teoria do Cinema. Campinas: Papirus, 2003. pp. 64-71.

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