Você está na página 1de 27

1

A COR DO NATAL
Hellen G. Ricks
Editora Escureceu
Copyright © 2020 Hellen G. Ricks
Publicado na edição de Natal do periódico
The Crisis em Dezembro, 1916.
Título original: Bits

TRADUÇÃO
Stefano Volp

REVISÃO
Lorrane Fortunato

ILUSTRAÇÃO DA CAPA
Rawpixel

ILUSTRAÇÕES DO MIOLO
Rawpixel & Creative Marketing

DIAGRAMAÇÃO
Hellen Art

ISBN: 978-65-89437-00-0

3
4
A COR DO NATAL
Hellen G. Ricks

Leves FEITO penas, os flocos de neve que


caíam aos montes em plena véspera de
Natal não permaneceriam por muito tem-
po. Era fim de tarde e a agitação do feria-
do havia diminuído em parte.
Abrindo caminho entre a multidão na
estação ferroviária, uma jovem emergiu,
protegida até as orelhas em seu casaco
de pele, com um rosto de menina em um
sorriso que se estendia até os olhos. Era
muito evidente nela que o Natal estava
chegando. Na entrada do portão, a jovem
perguntou sobre seu trem. O trem havia
partido! Ficar ali parada, olhando estupi-
damente para o funcionário que sem dú-
vida não era o responsável por aquilo, não
ajudava em nada. Certamente, deveria se
contentar com um telegrama e aguardar
até a manhã seguinte. Para uma garota
que estava decidida a encontrar um gru-
po de amigos da faculdade em uma festa
caseira na manhã de Natal, a informação
lacônica sobre a perda do transporte não
veio com alegria. As lágrimas que enche-
ram seus olhos castanhos eram definiti-
vamente femininas. E então um pequeno
sorriso escapou de algum lugar e ela foi
para o escritório da Western Union.
6
A jovem empurrava a porta que dava
para a rua movimentada quando uma
mãozinha negra agarrou sua saia.
— Um jornal, senhorita?
A garota olhou para baixo.
— Por que você está chorando, peque-
no? Não posso ir embora e deixar você
aqui assim. Conte-me o que aconteceu,
querido — e ela limpou uma lágrima pe-
quena e rechonchuda do canto do olho da
criança; a lágrima que se recusara a escor-
regar quando o sorriso lhe apareceu.
— É… é que eu tenho que vender tudo
isso hoje à noite. São… são laranjas para
Bits.
Àquela altura, a pequena manga do
casaco esfarrapado bem servia como um
7
8
lenço para o menino.
— Venha, venha, pequenino, não fi-
quemos no meio da multidão. Ainda não
compreendi. Quem é Bits?
— Ora, ele é tudo o que tenho. É isso.
— Ah, eu entendo! Você poderia me
falar mais sobre ele e você mesmo? Tal-
vez eu possa comprar tudo isso?
O rosto infantil encarou a garota com
uma incredulidade nada disfarçada.
— Está falando sério ou brincando?
— Sim, querido, estou falando sério.
Conte-me.
— Tudo bem falar sobre onde mora-
mos, porque não é nenhuma mansão. Bits,
Spatch e eu dormimos em uma cama no
porão do Sr. Barney, e almoçamos quan-
9
do conseguimos pegar algo no armazém
de Greeley. Spatch adora salsichas, o ca-
chorrinho mais penoso que você já viu.
Não temos ninguém além de nós mes-
mos, e Spatch. De alguma forma, porém,
Bits vende os jornais muito bem. Mas eu
sou menor do que ele e as pessoas não me
notam. Nunca tivemos muita coisa, mas
a gente é bem feliz, porque Bits diz que
essa é a única maneira de nos satisfazer-
mos. Mas agora ele está doente. Ele des-
maiou e o levaram para o hospital. Bits pa-
recia arrumadinho e limpo naquela cama
branca quando fui vê-lo, mas digamos,
ele estava doente. Eles me disseram que
eu poderia voltar hoje à noite, e eu queria
muito levar laranjas para ele porque o Na-
10
tal é amanhã. Mas olhe, estou com menos
de seis centavos e não vou conseguir as
laranjas a menos que eu venda tudo. Eu
não mando muito bem nisso e você até me
viu chorando - aposto que o Bits não cho-
raria! Tem dias que eu vendo muito bem,
especialmente quando as pessoas estão
na cola do… do Spatch. Ele tem um olho
só. Meu nome é Rodney, mas as pessoas
que me conhecem me chamam de Pep.
Com engenhosidade, o menino con-
tou a sua história, a de Bits e Spatch. E a
garota entendeu.
— Rodney, vou comprar tudo seu e
nos livraremos desses jornais de alguma
forma. Pode mostrar o caminho porque
precisamos levar essas laranjas para Bits.
11
Posso ir com você, por gentileza, para ver
seu irmão?
— É claro que pode! Não é tão longe,
mas acho que será melhor se você for de
carro. Eu só tenho seis centavos, mas pos-
so me adiantar, correr mais rápido do que
o motorista e esperar por você.
— Obrigado, querido, por me desejar
algo assim, mas, sério, eu adoraria cami-
nhar com você, se possível.
— Você é muito legal, sabia? — E um
belo olhar de apreciação espalhou-se pelo
rosto do menino.
— Talvez, se estiver mesmo disposta a
andar… talvez não se importe em andar
por mais dois quarteirões comigo. Prome-
ti a Spatch que ele poderia ir hoje à noite
12
— continuou.
— Certamente! Você está com frio,
querido?
— Não mesmo. Estou muito animado!
Eles caminharam por um bairro des-
conhecido para a garota. Ela seguiu fiel-
mente a pequena figura que caminhava
feito um homenzinho com um monte de
jornais debaixo de um braço.
— E aí, crianças!
Eles passaram por um grupo de crian-
ças de rua.
— Essa é a minha galera. Eles olharam
com cara de “hã?” se perguntando quem
você é, eu imagino.
Finalmente, eles alcançaram um tipo
de cortiço.
13
— Não posso pedir para você entrar,
mas desço assim que desamarrá-lo. E… e
posso levar esses jornais? Spatch poderia
dormir neles.
— Oh, sim, sem dúvida! Vou esperar
por vocês.
Em um espaço de tempo incrivelmen-
te curto, o menino e o cachorro retorna-
vam em direção à rua na companhia da
menina.
— Não é um cachorro incrível? Spatch
é o apelido de Dispatch — o nome de um
dos jornais antigos. Somos parceiros!
Sua nova amiga sorriu com compre-
ensão.
Na barraca de frutas, eles compraram
as laranjas.
14
— Devo dizer que a senhorita é uma
madame. Aposto que Bits vai gostar mui-
to de você. Por que foi boa comigo hoje?
— Ora, meu querido! Eu simplesmen-
te amo todos os meninos e meninas da
minha raça. Eu só queria ajudar você, se
possível, só um pouco.

15

Agora eles já haviam alcançado o hos-
pital. A garota, o pequeno menino e o ca-
chorro entraram no prédio. Acontece que
a visitante não era uma estranha para a
equipe do hospital, e consequentemen-
te a entrada de Spatch foi graciosamente
concedida.
— Como está o garotinho, enfermeira?
— A crise veio quatro noites atrás, ele
vai se recuperar. Ele está esperando por
seu irmãozinho. Pode entrar.
A cama branca do hospital ficava per-
to da janela e um raio de luz iluminou o
rosto de Bits, que instantaneamente abriu
um sorriso quando Spatch e Pep proferi-
ram seus cumprimentos efusivos.
16
— Veja só se não está aqui o garotinho
e seu parceiro! Como vão os negócios?
Dormiu bem na noite passada, Pep?
— É claro que não! Tão quente, quase
tive que desemperrar a janela!
A cauda de Spatch balançou perigosa-
mente perto do saco de laranjas escondi-
das de propósito aos pés da cama.
Bits sorriu e então seus olhos pousa-
ram na garota distante da cama. Ele se vi-
rou para Pep e, com uma voz um pouco
fraca e muito confusa, perguntou:
— Pep, quem é essa moça rica? Ela está
com você?
— É uma madame! — Um sorriso se-
guiu suas palavras, absolutamente apre-
ciativo. — Ela comprou tudo o que eu
17
vendia e veio até aqui apenas para vê-lo.
Podem apertar as mãos. Ela é minha…
minha amiga.
Em poucos minutos, ela se rendeu
completamente à amizade entre Bits, Pep
e Spatch. Depois que as notícias da vi-
zinhança foram comunicadas e todas as
apresentações concluídas, as laranjas fo-
ram entregues. O sorriso de Bits mais do
que pagou seu real valor.
Logo depois, a enfermeira veio anun-
ciar o encerramento do horário de visitas.
— Pep, meu velho companheiro,
cubra-se bem esta noite. Dê uma salsicha
para o cachorro e, por favor, pegue três
dessas laranjas para você. Amanhã é Na-
tal. Aguente firme! Eu voltarei ao antigo
18
emprego em breve. Eles são agressivos
comigo aqui.
A garota curvou-se sobre o pequeno
rapaz doente na cama.
— Bits, há algum desejo seu de Natal
que eu possa cumprir, querido? Por favor,
deixe-me tentar.
— Muito gentil da sua parte. Acho que
você fez bastante até agora. Mas há… há
algo. É sobre esse rapazinho. Ouvi falar
de policiais juvenis e do que eles fazem.
Talvez alguém possa arranjar uma casa
para ele. Ele é um moleque inteligente,
senhorita, e merece uma chance. Quando
eu ficar bom, poderia trabalhar para ajudar
no sustento dele. Você poderia ajudá-lo?
— Sim, querido, estive pensando em
19
Rodney por todo o caminho até aqui. Fe-
lizmente, eu conheço pessoas que garan-
tiriam um lar para ele. E eu tenho um ami-
go que está encarregado de um lar social,
e vou levá-lo lá esta noite para que ele não
fique sozinho. Lá é um lugar aquecido, e
eles serão bons com o Rodney. Realmente
ficariam felizes com a chegada dele. Há
vários meninos, e jogos, e uma árvore de
Natal. Vou ficar lá por um tempo. Agora,
durma bem e não se preocupe com ele.
Spatch também vai. Adeus.
Quando eles se viraram para olhar
mais uma vez para a porta, o sorriso de
Bits os seguiu. Do lado de fora, Pep hesi-
tou.
— Olhe, eu já menti, mas sou uma pes-
20
soa boa! Eu estava congelando de frio na
noite passada. Dei o cobertor para meu
parceiro aqui.
— Tudo bem, rapazinho. Amanhã é
Natal. Estamos indo para a cidade neste
carro e vou vestir você com roupas quen-
tes de verdade como presente de Natal,
Rodney. E então esta noite você, Spatch e
eu iremos para o assentamento. Lá, outras
criancinhas negras estão tendo uma ár-
vore de natal, com jogos e diversão! Nem
você nem o Bits precisarão mais vender
jornais, vocês terão uma casa de verdade
e a chance de ir à escola. Tenho amigos
que vão me ajudar. Você está disposto,
querido?
Em êxtase, duas mãozinhas frias se fe-
21
charam sobre uma das mãos da garota,
e pequenas lágrimas de alegria deixaram
duas pequenas marcas na pele negra de
seu rosto infantil.
— Acho que você é o Anjo do Natal
que eu ouvi falar uma vez. Puxa! Mas
você pode me tocar!
A felicidade que reinou em seu cora-
çãozinho naquela véspera de Natal não
se pode descrever em palavras. Era muita
gratidão.
Na manhã de Natal, um carro parou
do lado de fora do lar social e a garota
saltou dele para retornar acompanhada
de um menino pequeno, revigorado e fe-
liz, seguido por um discípulo canino de
um olho só.
22
Todos os arranjos foram feitos e os
dois meninos tinham altas chances de fi-
car em um lar privado. Um jovem médico,
o amigo mais querido da jovem, consen-
tiu em cuidar de suas responsabilidades
durante sua ausência nas férias. Foi ele
quem abriu a porta do carro quando eles
se aproximaram.
— Bom dia, garotinho! Feliz Natal!
— Idem — disse Pep seguido de um
latido estimulante de Spatch.
— Rodney, este é o Dr. Weston, nosso
amigo.
Quando chegaram à enfermaria, Pep
saltou para a cama num piscar de olhos.
— Está me reconhecendo, Bits? Estou
bonito, não? Foi incrível na noite passa-
23
da, nem dá pra explicar. Ela fez tudo. Ela
é um anjo! Agora, segure a respiração en-
quanto eu conto o melhor de tudo! Ela
encontrou um lar para você, e para mim,
e Spatch, e nós vamos para a escola, e… e
ela está falando sério!
O “anjo do Natal” e o médico se apro-
ximaram da cama. Profissionalmente, ele
tomou o pulso de Bits e saudou-o com
toda a cordialidade possível.
— Bem, amiguinho, eu também quero
ajudá-lo e vamos curar você em dez dias!
Bits sorriu primeiro para um e depois
para o outro com gratidão.
— Vocês dois não sabem como agra-
deço por mim e pelo moleque! Não posso
sequer descrever. Se nos derem mesmo
24
essa chance, cumpriremos com a palavra!
— Determinação e gratidão estavam em
seu rosto.
— Se você estiver feliz, eu também es-
tou, Bits. Vocês dois vão ser meus irmãos
mais novos, e Spatch aqui (neste momen-
to oportuno houve um agradecido abanar
de cauda) vai ser nosso mascote. Agora
preciso me apressar para pegar o trem,
pois vou passar três dias fora. O Dr. Wes-
ton vai dar a Rodney um grande dia, e
acho que ele tem uma surpresa para Bits.
Adeus, querido!
Houve um beijo deixado na testa quen-
te. Uma pequena mão surgiu de debaixo
das cobertas.
— Você é o melhor presente de Natal
que já tive! — disse Bits. — Eu… eu só
queria poder te falar uma coisa…
A garota se abaixou. Dois braços en-
volveram seu pescoço, duas palavras es-
caparam de um pequeno coração cheio
de gratidão:
— Feliz Natal!

FIM
27

Você também pode gostar