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TEXfOS UNNERSrrÁRIOS DE CIÊNCIAS SOCIAIS EHUMANAS

..

MORFOLOGIA URBANA

EDESENHO DA CIDADE

1º Volume
I .

José M. Ressano Garcia Lamas

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FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN


IUNDAÇAo PAlIA A atNCIA ( A nCNOlOGlA
MINISTtRlO DA C1tNCIA EDO ENSINO SUPERIOR

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Título: Morfologia Urbana e Desenho da Cidade I "

Autor: José Manuel Ressano Garcia Lamas


Edição: Fundação Calouste Gulbenkian
Fundação para a Ciência e a Tecnologia
Tiragem: 2000 exemplares
Junho 2004
Impressão e Acabamento: ORGALlmpressores - Porto
Distribuição: Dinalivro - Distribuidora Nacional de Livros, Lda
Audil - Distribuição de Livros e Material Audiovisual
Depósito legal: 215921/04
ISBN: 972-31-0903-4
© Fundação Calouste Gulbenkian I '

Fundação para a Ciência e a Tecnologia , I

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I

Este livro foi redigido com base no trabalho


realizado para dissertação de Doutoramento
em Planeamento Urbanfstico e apresentado em
7989 na Fàculdade de Arquitectura da Univer­
sidade Técnica de Lisboa.

,
INDICE
PREFÁCIO - CARlOS DOS SANTOS DUARTE 11

NOTA INTRODUTÓRIA À 2° EDiÇÃO 13

PARTE I INTRODUÇÃO 17 ~
I

PARTE II A MORFOLOGIA URBANA 35

2.1 A MORfOLOGIA URBANA 37

2.2 A fORMA URBANA 41

• FORMA ECONTEXTO 46

• FORMA E FUNÇÃO 48
• FORMA E FIGURA 54
-
2.3 PRODUÇÃO E FORMA DA CIDADE EPRODUÇÃO EfORMA DO

TERRITÓRIO 63

• O TERRITÓRIO COMO SUPORTE DA ARQUITECTURA 63

• AlARGAMENTO DA NOÇÃO DE FORMA URBANA 63

• A PAISAGEM COMO OBJECTO EST~TICO, A PAISAGEM COMO

ARQUITEGURA EA EST~"ICA DA PAISAGEM NATURAL 66

• FORMA URBANA E FORMA DO TERRITÓRIO 70

2.4 DIMENSÕES ESPACIAIS NA MORfOLOGIA URBANA 73

• DIMENSÃO SECTORIAL - A ESCAlA DA RUA 73

• DIMENSÃO URBANA - A ESCALA DO BAIRRO 74

• DIMENSÃO TERRITORIAL - A ESCALA DA CIDADE 74

2.5 OS ELEMENTOS MORfOLÓGICOS DO ESPAÇO URBANO 79

• O SOLO - O PAVIMENTO 80

• OS EDIFiClOS - O ElEMENTO MfNIMO 84 ~


I

• O LOTE - A PARCELA FUNDIÁRIA 86

• O QUARTEIRÃO 88

• A FACHADA - O PLANO MARGINAL 94 ,


• O LOGRADOURO 98 --­
• O TRAÇADO, A RUA 98

• A PRAÇA 100

• O MONUMENTO 102

• A ÁRVORE EA VEGETAÇÃO 106

• O MOBILIÁRIO URBANO 108

2.6 EVOLUÇÃO DO TERRITÓRIO 111

• O DOMfNIO DAS TRANSFORMAÇÕES DO TERRITÓRIO 112

• MECANISMOS DAS TRANSFORMAÇÕES DO TERRITÓRIO 114

2.7 NlvElS DE PRODUÇÃO DO ESPAÇO 121


~

2.8 URBANISMO EARQUITECTURA 125

(O DESENHO URBANO ENTRE O PlANEAMENTO EO PROJECTO DOS EDfFIClOS) 125

2.9 EP(LOGO 129

7
PARTE III fORMA DAS CIDADES EDESENHO URBANO AT~ AO PER(ODO MODERNO 131

3.1 A UÇÃO DO PASSADO 133

3.2 A MORFOLOGIA URBANA NA G~CIA EEM ROMA 139

• A FORMA DAS CIDADES GREGAS 139

• O DESENHO URBANO NA ROMA ANTIGA 144

• O QUARTEIRÃO GREGO EROMANO 148

3.3 A FORMA URBANA MEDIEVAL 151

• AS MURALHAS 152

• AS RUAS 152
• OS ESPAÇOS PúBLICOS - A PRAÇA EO MERCADO 154

• OS EDIFfClOS SINGULARES 154

• O QUARTEIRÃO MEDIEVAL 154

3.4 O DESENHO URBANO NO RENASCIMENTO ENO BARROCO 167

• AS FORTIFICAÇÓES 170

• A RUA 172
• O TRAÇADO RECTICULAR - A QUADRICULA 174

• A PRAÇA 175

• A FACHADA 177

• OS EDIFfClOS SINGULARES 179

• O MONUMENTO 184

• O QUARTEIRÃO 188

• OS QUARTEIRÕES DO BAIRRO ALTO 190

• OS QUARTEIRÕES DA BAIXA POMBALINA 190

• ESPAÇOS VERDES 194

• OUTRAS TIPOLOGIAS

(AS INVENÇÓES INGLESAS SO S~CULO XVIII - O «CRESCENT»

O «CIRCUS. EO cSQUAREII) 194

3.5 DESENHO DE FORMAS URBANAS NO SÉC XIX 203

• A CONTINUIDADE DO BARROCO EO APERFEiÇOAMENTO

DA CIDADE BURGUESA 203

• A DESTRUIÇÃO DAS MURALHAS ELIMITES DA CIDADE 204

• O SUBÚRBIO EA PERIFERIA 206

• A ESPECULAÇÃO FUNDIÁRIA SEM DESENHO URBANO 208

• UTOPIAS SOCIAIS 210

• EXPERIMENTAÇÃO URBANisTICA _. 210

• PARIS DE HAUSSMANN - TRAÇADOS BARROCOS EQUARTEIRÕES 212

• BARCELONA DE CERDÁ - EXTENSÃO DA QUADRICULA

ESUBVERSÃO DO QUARTEIRÃO 216

• AS A\'ENIDAS DE LISBOA DE RESSANO GARCIA - TRAÇADOS

BARROCOS EQUADR[CULAS 221

3.6 SINTESE - APRENDENDO NO PASSADO 227

PARTE IV A URBANfST1CA FORMAL 229

4.1 INTRODUÇÃO 231

• A DISCIPLINA URBAN[STICA - DO INICIO AO URBANISMO FORMAL

DE ENTRE AS DUAS GUERRAS 231

• SILÊNCIO SOBRE A TRADiÇÃO 238

4.2 OS TRATADISTAS DO INfclO DO SÉCULO XX


EA VALORIZAÇÃO DO DESENHO URBANO 249

• STUBBEN ECAMILLO SITIE 249

• UNWIN - A PRÁTICA DO URBANISMO EDO DESENHO URBANO 252

4.3 A ESCOLA FRANCESA - URBANISMO FORMAL ETRADIÇÃO PARISIENSE 259

• TONY GARNIER EA CIDADE INDUSTRIAL 268

• MARCEL POETE EA INVESTIGAÇÃO URBANA 270

• AGACHE EO PLANO DE RIO DE JANEIRO 273

4.4 A URBANisTICA FORMAL PORTUGUESA 281

• FARIA DA COSTA E OS BAIRROS DE ALVALADE EDO AREEIRO 284

4.5 DA URBANfSTICA FORMAL AO NOVO URBANISMO 293

PARTE V CONFIGURAÇÃO EMORFOLOGIA DA CIDADE MODERNA 295

5.1 INTRODUÇÃO - A CIDADE MODERNA 297

• A QUESTÃO DO ALOJAMENTO (NOVAS TIPOLOGIAS CONSTRUTIVAS,

NOVAS FORMAS URBANAS) 300

• FUNCIONALISMO E ZONAMENTO - A SIMPLIFICAÇÃO DOS PROBLEMAS 303

• A QUESTÃO FUNDIÁRIA - PARCElAMENTO ESOLO PÚBLICO 304

• O FAScíNIO PELOS EDIFíCIOS ISOLADOS 307

• RUPTURA COM A HISTÓRIA 308

• OS NOVOS MATERIAS ETECNOLOGIAS 310

5.2 A CIDADE·JARDIM, O IMPASSE EA IMPLANTAÇÃO DE RADBURN 311

5.3 A «UNIDADE DA VIZINHANÇA» - A SOCIOLOGIA DESENHA A CIDADE 317

5.4 AS EXPERI~NCIAS HABITACIONAIS HOLANDESAS - A REFORMA DO QUARTEIRÃO 323

5.5 EXPERJ~NCIAS HABITACIONAIS NA EUROPA CENTRAL

- AS SIEDLUNGEN EAS HOFF 331

5.6 A CIDADE DOS CIAM EDA CARTA DE ArENAS 337

• AS UNIDADES DE COMPOSIÇÃO DA CIDADE MODERNA 338

• A CARTA DE ATENAS 344

• OS CENTROS HISTÓRICOS EA CIDADE ANTIGA 347

• O CONTROLO DO SOLO EA LIBERTAÇÃO MÁXIMA DO ESPAÇO LIVRE 348

5.7 LE CORBUSIER - «A UNIDADE DE HABITAÇÃOll EA «CIDADE RADIOSA» 351

5.8 A URBANfsTICA OPERACIONAL - A BUROCRACIA CONSTRÓi A CIDADE 361

• DAS IMPLANTAÇÕES RACIONAIS À PLANTA LIVRE 362

• A ESTÉTICA DO PLAN MASSE 370

• O PREDOMíNIO DAS DISCIPLINAS NÃO ESPACIAIS NO PLANEAMENTO 372

• A URBANíSTICA OPERACIONAL EO PLANEAMENTO BUROCRÁTICO 376

PARTE VI O «NOVO URBANISMO» 383

6.1 INTRODUÇÃO - DO REPÚDIO DA CIDADE MODERNA AO NOVO URBANISMO 385

6.2 AS CRITICAS TEÓRICAS À CIDADE MODERNA 391

• PIERRE FRANCASTEL E HENRI LEFEBURE 391

• JANE JACOBS - A MORTE EA VIDA NAS GRANDES CIDADES AMERICANAS 392

• ALEXANDER - A CIDADE NÃo é UMA ÁRVORE 394

6.3 (RE)LEITURA VISUAL EESTÉTICA DO ESPAÇO URBANO 397

• GORDON CULLEN - A MORFOLOGIA EIMAGEM DA ESCALA DE RUA 397

• LYNCH EA IMAGEM DA CIDADE 398

6.4 REAUZAÇOES DIFERENTES E EXPERIMENTAÇOES NOS ANOS SESSENTA 403

6.5 CRISE ECONÓMICA, GESTÃO URBANA

E VANTAGENS DOS ESPAÇOS TRADICIONAIS 417

6.6 OS CENTROS HISTÓRICOS (REVALORIZAÇÃO E DESCOBERTA DA CIDADE ANTIGA) 419

6.7 ROSSI EA cARQUITECTlIRA DA CIDADE» 423

6.8 ROBERT KRIER EO «ESPAÇO DA CIDADE» 427

6.9 CULOT E LA CAMBRE DE BRUXELAS - RADICALMENTE NO PASSADO 433

6.10 TEND~NCIAS ACTUAIS 439

• O «NOVO URBANISMO» 439

• O IBA EM BERLIM 442

• UMA EXPERI~NClA FRANCESA: A ZAC GUILLEMINOT 446

• O «NOVO URBANISMO» EM PORTUGAL 452

6.11 EXPERJ~NCIAS E REAlIZAÇOES PESSOAIS 465

• O PLANO DA TRAFARIA·COSTA DA CAPARICA 469

• O PLANO DO MARTIM MONIZ 471

• ESTUDO DO ALTO DO PARQUE EDUARDO VII 479

• PLANEAMENTO EM PONTA DELGADA· ILHA DE S. MIGUEL, AÇORES 481

• PLANEAMENTO DA CIDADE DA HORTA· ILHA DO FAIAL, AÇORES 493

• PLANOS DE CENTROS HISTÓRICOS. TAVIRA· MOURA· PONTE DA BARCA 501

• PLANO DIRECTOR DA EXPO 98 509

• PLANO DE PORMENOR DO MQUARTEIRÃO DA GARAGEM MILITAR" EM LISBOA 519

• PLANO EM PORMENOR E ORDENAMENTO DO RECINTO DAEPAL NOS OLIVAIS 523

• PROJECTO DE VALORIZAÇÃO DA CERCA DO CASTELO DE ÓBIDOS 527

PARTE VII CONCLUSÃO. DESENHO DA CIDADE 533

NOTAS À PARTE I 542

NOTAS À PARTE" 543

NOTAS À PARTE III 549

NOTAS À PARTE IV 555

NOTAS À PARTE V 559

NOTAS À PARTE VI 565

INDICE BIBLIOGRÁFICO DAS FIGURAS 575

BIBLIOGRAFIA 581

10

PREFÁCIO

A redacção deste prefácio foi para mim ocasião de relembrar uma relação de ami­
zade e colaboração profissional já longa de anos, iniciada na Faculdade de Arqui­
tectura de Lisboa, onde eu e José Lamas éramos docentes, e continuada depois na so­
ciedade que formámos. Os Planos da Trafaria - Vila Nova - Costa da Caparica, do
Martim Moniz, de Ponta Delgada e, mais recentemente, da EXPO 98, entre outros, e
um número considerável de projectos de arquitectura, cobrindo programas tão varia­
dos como os de instalações escolares e centros de cultura, habitação e turismo, foram, e
são, o dia-o-dia de uma relação de trabalho que se prolonga habitualmente num dis­
correr sem fim sobre arquitectura, que é, de resto, o «vfcio» conhecido da generalidade
dos arquitectos.
Curiosamente, esta proximidade diária não impediu uma certa sensação de surpre­
sa quando li este livro pela primeira vez. Surpresa misturada com familiaridade, porque
muitas ideias ali expostas, e agora ordenadas num todo coerente, tinham sido objedo
de conversas e discussão ocasional entre ambos.
O livro surge numa altura em que se verifica um novo interesse dos arquitectos pelos
problemas do Urbanismo e pelo estudo de matérias que lhe são próprias, manifestado
na realização de colóquios e reuniões de vária fndo/e e na publicação, aqui e ali, de
textos e projectos recentes.
Neste renascer de interesse pela cidade e o urbanismo em Portugal, este livro é um
acontecimento de relevo a assinalar. Ele trata do desenho da cidade do Ocidente euro­
peu ao longo da História, e, nesse processo, José Lamas vI a cidade como lugar carre­
gado de marcas, sinais e sfmbolos de culturas do passado e do presente que exigem co­
nhecimento e reflexão séria por parte daqueles que hoje intervêm na sua construção.
Por isso, este livro se inscreve numa linha de pensamento que tem os seus antecessores
ilustres em homens como Camillo Siffe, Geddes, Mumford ou Marcel Poête. O que é di­
zer muito.
Mas, como arquitecto, o que lhe interessa prioritariamente investigar é a morfol,'gia
da cidade e a história da forma urbana, onde pretende encontrar razões e justificações
últimas para as concepções que perfilha. «A cidade não é um produto determinista de
contextos económicos, polfticos e sociais», afirma, em certa altura, e, nesta perspectiva,
acentua a contribuição especrfica dos arquitectos através do desenho urbano. Eisto é
feito num estilo vivo, directo, e de fácil leitura, mas não isento de paixão nas posições
que assume.

11

o livro foi amadurecido e rédigido numa altura em que a prática do urbanismo ra­
cionalista tinha atingido a ex~ustão e em que se verificavam 'eituras revivalistas dos
modelos passados do Renascimento, do Barroco e do Neoclássico, na generalidade
dos casos em termos de grande superficialidade e ligeireza.
Consciente disso, José Lamas procura explicar o porquê da actualidade de determi­
nadas tipologias urbanas do passado e filia a sua permanência em razões de cultura e
vivência social no mundo de ho;e. O que consegue com razoável êxito. Mais controver­
sa será a sua análise da contribuição do Movimento Moderno para a forma da cidade,
apesar da ob;ectividade de que se reclama. Mas será posslvel ser-se completamente
ob;ectivo em matéria como esta'
O livro dirige-se a toda a gente, mas, naturalmente, os mais interessados serão os
arquitectos e estudantes de arquitectura, que aqui encontrarão larga matéria de infor­
mação e discussão te6rica. Ele contribuirá de certeza para torná-los mais conscientes
do seu papel na construção da cidade. Eda alta responsabilidade de que se reveste es­
sa intervenção.

Carlos Duarte
Prof. Arquitecto

12

NOTA INTRODUTÓRIA À 2° EDIÇÃO

A 2° edição deste livro, ocorrida mais de 10 anos após a sua escrita, levanta
algumas quest6es de oportunidade que não desejaria esconder.

Em primeiro lugar, a larga procura que a primeira edição terá tido em Portugal,
essencialmente nos meios universitórios, nas Escolas de Arquitectura e Urbanismo,
sem que pra'ticamente tivessem sido feitas recens6es, criticas, referincias escritas
ou publicidade. Os 3.000 exemplares da primeira edição esgotaram-se em apenas
3 anos (de 1995 a 1998). O que para o autor seró gratificante, é também uma
inquietação pela maior responsabilidade no confronto com a opinião e formação
dos leitores. Neste contexto é também de constatar o apoio bibliogrófico que o
trabalho tem constituído nas disciplinas de Desenho Urbano ou às dissertaç6es de
Mestrado e DO.utoramento em problemas afins nas Universidades Portuguesas.

Em segundo lugar, questiona-se a actualidade das ideias e reflex6es expostas.


10 anos é algum tempol Tempo suficiente para que muita coisa se passasse no
Urbanismo europeu e acontecesse em Portugal. Tempo que jó permite olhar para trás,
com o distanciamento clarificador que esbate o pormenor e acentua o essencial.

Em terceiro lugar, a procura continuada (após esgotar-se a 1a edição) cons­


tituiria quase um dever de informação aos estudantes e estudiosos do Desenho
Urbano no final do séc. XX e inicio de um novo milénio. Quanto mais não seja, a
efeméride suscita e acende esperanças de um mundo melhor - neste tema,
melhores cidades e cidades melhoradas pelo Desenho.

Por outro lado, atrevo-me a pensar que as experiências urbanísticas da década


de noventa na Europa e em Portugal não contradisseram significativamente ou
anularam as reflexões e ideias do trabalho.

De facto, quem desenha a cidade tem hoje um léxico vasto, eventualmente


ecléctico, de formas urbanas e modelos ao seu dispor. Novas relaç6es entre
espaços construídos e espaços livres vão sendo procuradas. Registo o contributo da
paisagística e do desenho dos espaços verdes com o aparecimento de novos
jardins e parques urbanos, sedor onde talvez mais contributos se t6m feito sentir
com novos conceitos e propostas de evidente inovação e significado para a vida
urbana.

13

Generatiza-se o inter.sse pelo ttrranro :8 quoHfitaçOo dos espaços púhfieos,quer


dcrs cidades consolidados, quer dos periférios degradados. A salvaguardo e valo­
'rilo'ção dos centros históritos torna-se consensual na convicção dos valores
..,ac:ja~s '8 construtivos dosoMigos COtcOS urbotlOl.

Consolidou-se em definitivo o alastraMento da cidode"emergeme", ditumdo-se


,em dtversOli formas de habitet noterri'tório 'otravis dê t10VOS e ;melhcnes sistemas
dt 'r'Clrt'sporte,.Finolmente., 'O' meios de cotnunicação ,estão :me$mo de fado ar..­
vt'ha_or urndos elementos fl.mdcunerlt. dGSsocá'edClde~ 'tom -trtlpac,tO'S uinda
4~iM '. $istemàtizar na otliJp'ClÇÕO do territórto >tdN'enho das tidodel.

Nfité 'cont-tXto, em Portugal, :8 'com o d'$lTtfme dGS 'di,rlM~i:ros 'wr.l.:1S" :po ..


deritlt:JIt1é:O'AteÇároportu,nidades ,paTO fOier ,melhores t:tth.tdes 'e fazei ,melhor 'o
cidade, -q1JéSth ~oraa 'q~",Il:Jrno 'pcn'ht dos ·arqu-ttee:tos 'e urbon~ se sente 'Cada
V'e1mais ip\1)f~ndom8'nte môtivada. 'Ccmt&xto :em \1-ueo-pt1'rétt'm ticencicllt"lros
especializados em urbanismo e desenho urbano e um renovado ínter~sse ,pelas
'q"e&t6esurbO'r:u~'S.

1'40SélJtodo, esteconjuntG de questõesjlilstific:ou ,prosseguir tom a ,reediçao da


"Morfologia Urbana e Desenhóda Cidadê",.

Justificou 'também que se ~mpri'rn;ssê oltumo revisão à 'parte final do tfobolho,


essencialMente :no 'q'ue $e refere 6refle~odec()'rrente dos eJCperiênciaspessools e
oulros 'Oc;~rrid(js ,nosúltjmos lO'an'os..

Ultirt1osa'nos nOs qua'is se t.m -afirmo'do l) 'omé2dlt1recimento $ôbre Q utilircaçôo


das 10rmas urbanas 'do cidade tradidondle :do cidademodêrAo/ obrindo-se uma
'Ire 'tlelétíta temperoda ;pelas ,;n:ft"'êlllcias i(hJs~rutivist(Js oe :um c&rto revNo1ismo
,do MovimtmtoModérnono o-seNko Urbt!f1o.

Toc1tJvio, 'se (I;n1.h)"nda 'd.$'(on$t'r~.iviS1G tem parecido lnttoduflt alguma


'~ lftG$ ;pr~poslOs de Oes&tlho U~~ t~o "tifo 'lnois p1íJa 'Co~Jexidode
,oftl'ecidCll 'na '$obrepo'lç6~ fe sistemCil$ 'g-eol'ftMl'icbS do cru e ,'~aintrodoç&o :de
verdodttfr<ls ;novos tom:ftrtGS ,de 'espaço 'o.rb<m'o Ol!l nC)$ 'modos de 'o :pr-oduzif..

iR.p&ti,ndo, 'C()lIífi~u'O V'ofida 'O ,dicotom'io rentre tnorioiJogtOu.rboMl da ddadé


tr.iI'fJicl<)ntJ\, t'()m ,oSSéUS c::otlf~~t:Jo'$ ;con~tNtdGS e refaç60 iestreitQ ~.5I'àÇotOm os
edl'ffdos,e a 'Cidade modema, com os seus ediflcios solt<)Snt) território, ;AiMlÜor
generosidadt de espo.ço pijblito e a independência entre e,spoço· urbonQ, ec!if(clQS
e ou.tfOS sittemo$ de CQmpcWç60 da· cidade.

Continua vátida por M$O rotOO também o oportunidQde do conhecimento dO$


proceuos de foler c_de o do· estudo dQS formas u.rbQnQs c;:omo f.rram.."ta
indi$peM6vel de des~bo urbanG. E justifico (1 oporiunidad, d,t "mo squndo.:
~~ .

Usboa., AbriV1999

15

PARTE I

,.,
INTRODUÇAO

17

«Les lois

dê I'architecture

peuvent ,ir.
comprile$
d. tout I, motlde.,
INTRODUÇÃO

V,OLllT.Lf.Duc
Entretiens lur I'architectvre (1) Comecei este trabalho em 1974, no quadro do Douto­
ramento efectuado no Institut cJ'Aménagement Régional
d'Aix~en·Provence. Atesé então apresentado (2) aborda­
va as mesmos questões cujo enunciado é por de mais sin..
gelo: como desenhar a cidade e qual a intervenção e o papel da arquitectura (e do ar..
qultecto) no desenho urbano e no processo de produção da cidade.
Corno é natural, o trabalho de Aix-en..Provence seria influenciado pelo ambiente
tultural e profissional desse período. Estava-se no início da década de $etenta e a insa­
tisfação crescente pelos resultados da cidade moderna motivava estudantes e profissio­
nais a procurarem uma saída paro a crise da urbanística e do pr6pria arquitectura.
Uma quinzena de anos passou e os trabalhos e as experiências da minha vida pro­
fissionat permitiram encontrar resposta para muitas interrogações, desde então. Os
anos como docente de Planeamehto Urbano e Projecto no Departamento de Arquitec­
tura da ESBAL e no Faculdade de Arquitectura da UTl serviram também pora aprofun.
dare amadurecer ideias e aprender muitos coisas sobre a cidade. Nao é novidade que
se aprende ensinando e que o arquitecto preciso de ultrapassar alguns anos de ttaba~
lho paro atingir as suas melhores capacidades.
Também muitas experiências, realizações e acontédmentos se sucederam entretan­
to, através das quois muito se aprendeu. Mas também novas questões surgiram.
Assim, desde 1974 até hoje, fui reflectindo sobre a mesma questão, ainda (e tolvel
sempre) em aberto - O DESENHO DA CIDADE. Fui acumulando memórias, investiga­
ções, leituras, próticas e experiências pessoais e alheias. O temo, tão vasto quanto mo­
tivante, não cansoria. Quis falar balanço do que aprendi e reflecti.
Recordo que, hó mais de vinte anos, os estudantes aprendiam a desenhar a cidade
dispondo vias, edifrcios e manchas verdes no terreno, usando critérios de equilrbrio vo­
lumétrico nas regras abstractas do Plan Mosse. Sobre a folha de papel, traçavam vias e
faziam volumes com sombras até encontrarem uma solucão I
de bom efeito gróflco.
Aqualidade residia na originalidade das formos, na inovaçõo das soluções, através
de regras um tonto abstractas, tantas vezes mais escult6rios, gráficas ou até ilusórias do
que urbanísticas e espaciais...
Exagerol As coisas não eram assim tão simples ou ligeiras...
Havia regras de desenho e composição urbana para os volumes e os seus equilí­
brios; havia horror à simetria e aos eixos de composição; evitavam-se as formas que

19

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l-L A formo humanizado do território - assentamento megalltico de Filifoso - Córsega


1. Plano de conjunto. 2. Planto de pormenor dos monumentos este e oeste

20
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1·2..Citania de Briteiros - Portugal. Plano efectuado segundo as escavações. Planta de caSas


com vestlbulos e reconstituição oe um monumento funer6rio

21
evocassem qualquer cidade antiga, dássica ou barrocai exacerbava-se a imaginaçao
para descobrir formas ainda não experimentadasl Cada qual exprimia, também, a sev
temperamento e estados de alma. Etambém se copiavam os mestres modernos, se fo..
lheavam exemplos em revistas e publicações, e se estudavam as realizações da époco.
Hoie, na mesma Escola, agora Faculdade, Qvtros estudantes lançam de imediato no
papet formos geo.métricas de gran~e semelhança com ruos, praços e quarteirões, trQ.~
çam eixos e simetrias, organizam os edifrcio$ segundo regras da cultura urbana aduot
num retorno evidente às composições tradicionais. .
Entre estas duas práticas, processou-se umo importante mudança na maneira de
entend~ O desenho urbano.
Asimples constatação destas duas atitudes. implito uma profunda reflexão sobre (IS
bases culturais que as apoiam - ou deveriam apoiar. Em ambos os casos não se trote::.
de modas ou de virtuosismos superficiais, de feitios ou de caprichos no «pronto a V~.$tirlt
dClt formas urbanas.
Em primeiro lugar, devo ter presente que o detenho urbano exige um dominio pro,.
fundo de duas áreas do conhecimento: o processo de forlTl(Jçao da ddade, que é histó­
rico e cultural e que se interliga às formos utilizadas no passado mais ou menos longín­
quo, e que hoie estão disponíveis como mater~is de trabalho do arquitecto urbemisto; e
a reflexão sobre a FORMA URBANA enquanto obiectivo do urbanismo, ou melhor., en..
quanto corpo ou materialização da cidade capaz de determinar o vida humano em co~
munidade. Sem o profundo conhecimento da morfo~ogiQ urbana e da história da forma
urbano, arriscam-se os arquitectos a desenhar a cidade segundo práticas superfidais"
usando .feitios» sem conteúdo disciplinar.· .
A reflexão e investigação sobre a forma urbana, pretendo dar o contrrbvto deste
trabalho. Contributo de um profissional empenhado na s.ua prótica, dscando soluções e
vivendo os problemas que hoje se colocam ao arquitecto urbanista - um prc.mssional
que interroga e questiono o suo pratica, métodos e resultados do seu trabalho.
Contributo também de um docente cuio cIJltura e formação constitui um corpo de
conhecimentos que deve transmitir na Escola, corno o local da reflexão disciplinar.
Mos, antes do mais, esta dissertação é um trabalho de arquitectura, o que quer di­
zer que Q arquitectura é um campo diiciplinar preciso, racionalmente construrdo e com
um significado bem definido. Aarquitectura sempre teve como obiectivos o criaçao do
mais propkio ambiente à vida humana, e o seu contributo coloca-se (I diferente$ níveis
- do interior de um café, às grandes composições urbanas -, sendo por isso mesmo,
de difícil delimitação. Aarquitectura aparece na mais simples habitação rural, na ala­
meda de árvores alinhadas, nas grandes infra-estruturas ou em todos os factos cons­
trurdos quando as necessidades espadais do homem interpretam o sítio e procuram a
harmonia ou a intenção estética. Aarquitectura é a arte de construir e u~rapassa a sim­

22

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1-3, Lisboa. Gravura de "Urbium Proecipuorum Mundi Theotrum Quintum."


Georgio Braunio 1593

23
pies assemblagem lógica de elementos construtivos para traduzir a realidade humana
como força criativa e voluntória. Nasceu com os primeiros assentamentos humanos, in­
separóvel da vida humana e da sociedade, como obra colectiva que tem a sua plena
dimensão como facto urbano. Todavia a construção da cidade e a resotução da com­
plexidade dos problemas do ambiente humano exigem actualmente numerosasquali­
dades, múltiplos conhecimentos e a acção de indivíduos que, pelo seu saber e criativi­
dade, se tornam executantes de uma vontade colectiva, explicitando os espaços para
essa vontade.
O arquitecto faz da cidade um problema pessoal, para o qual contribui com as suas
qualidades: o desenho e a sensibilidade ao sítio e ao contexto; a· criatividade e imagi­
nação; a capacidade de síntese, a visão global dos problemas. Contribui com um méto­
do de trabalho, uma técnica de concepção e de comunicação de ideias em relação com
os processos de construção. Mas o arquitecto traz também uma experiência ligado ao
presente e ao passado, os quais conhece da vivência da cidade, onde o material da
História é uma fonte inesgotóvel de aprendizagem e de reflexão. A História ou o recur­
~.
so a ela estó sempre presente no estirador e no processo de desenho, sem o rigor dos
métodos históricos ou o sentido que da História tem o historiador, mas como realidade
viva e campo de experiências nas quais se apoia a prótica profissional.
A arquitectura à escala urbana, enquanto desenho de cidade, defronta-se hoje com
toda uma série de interrogações e até de dúvidas, de que são exemplos as diferentes
alternativas surgidas do pós-guerra até aos nossos dias, em que ainda não se chegou a
total acordo quanto às morfologias urbanas mais adequadas e a um consenso generaU­
zado sobre a forma ~a cidade. Estas dificuldades arrastam ainda as sequelas da ruptu­
ra criada pelo urbanismo moderno em relação à cidade tradicional e a dificuldade ou
incapacidade que os arquitectos modernos revelaram em definir formas urbanas ade­
quadas à sociedade a que se destinavam.
Adependência maior que o urbanismo e o desenho revelam em relação aos siste­
mas políticos e económicos, e o fracasso das tentativas de controlar a cidade como ob­
jecto finito - ou peça de arquitectura - concorreram também para a crise da urbanís­
tica, em parte desmotivando as energias criativas do desenho urbano e dando ao
objecto arquitectónico isolado um excessivo grau de autonomia e importância no deba­
te profissional. .
O reacender do interesse pela dimensão urbana da arquitectura, pelas relações en­
tre arquitectura e cidade, e pelo modo de formar cidades, tem sido um dos temas mais
fecundos do debate arquitectónico dos últimos quinze anos.
A alternativa hoje presente entre objecto arquitectónico e desenho urbano colo­
ca a questão de saber se a organização do espaço urbano se pode resolver pela
simples intervenção arquitectónica ou se exige um nível específico e autónomo de

24

1·4. A infra·estrutura monumental constrói o território: auto-estrada directa Roma-Florença.


Viaduto dei Paglia

25
projecto. Por outras palavras, poderá ainda existir autonomia da composição urbana'
. Aprodução da cidade não pode ser entendida como um mero processo de distribuir
edifícios no território, resolver problemas funcionais, ou criar condições para o investi­
mento económico. Antes do mais, o espaço habitado e construído pelo homem é maté­
ria de competência da arquitectura, e não de um somatório de disciplinas, de técnicas e
de outras preocupações também necessárias. Assim sendo, como se' poderá introduzir
no urbanismo a visão arquitectónica, estética e formal'
Parto do prindpio de que a forma (física) do espaço é uma realidade para a qual
contribuiu um conjunto de factores socioeconómicos, políticos e culturais. Sem dúvida
que a economia, ou as condições sodoeconómicas de produção do espaço, se reflec­
tem profundamente na sua forma. Isto é muito importante. Mas a forma urbana é
também, ou deverá ser, o resultado da produção voluntária do espaço. Entendo por
voluntário um processo que, tomando em conta os objectivos de planeamento (econó­
micos, sociais, administrativos), os organiza e resolve utilizando os conhecimentos cul­
turais e arquitectónicos sobre esse mesmo espaço e materializando-os através da sua
FORMA.
Tal objectivo é mais ambicioso do que o mero funcionamento (mesmo que perfeito)
da cidade e pretende criar um ambiente humanamente válido, através da expressão
estética do espaço urbano.
Esta atitude só pode provir da correcta intervenção da arquitectura na produção do
meio urbano. Tenho implrcito que a natureza da concepção arquitectónica (e urbanísti­
ca) é essencialmente formal. As noções de Forma Urbana e Forma do Território são
eminentemente arquitectónicas. Aarquitectura introduz no planeamento e no urbanis­
mo um objectivo fundamental: a construção da FORMA DO ESPAÇO HUMANIZADO.
Éno processo de planeamento, que deverá ser contínuo, desde os objectivos e pro­
gramas até à construção de edifícios e infra-estruturas, que importa clarificar a inter­
venção da arquitectura e, por corolário, do arquitecto que a introduz. Seria demasiado
contraditório que a disciplina sobre a qual vão desembocar desde o início todas as de­
cisões de planeamento se limitasse a só intervir no final do processo para formalizar ou
desenhar os programas e decisões anteriores.
Aprodução do espaço não pode ser unicamente resolvida pelos níveis da planifica­
ção regional e ur.bana e das realizações das construções. Aetapa intermédia do dese­
nho urbano é indispensável. De resto, tal etapa inicia-se nas opções de planificação e
prolonga-se até à realização do edificado, constituindo um dos momentos essenciais da
arquitectura. Trata-se, antes do mais e sem qualquer prejuízo dos outros objectivos do
urbanismo, de contribuir com um método e disciplina de trabalho que permitirá melho­
rar e tornar esteticamente válido o produto do planeamento.
Convirá ter presente a crítica sociológica e a demonstração de que nem todas as

26

1·5. Plano de Olivais Norte, 1955·1958. GEU - Gabinete Estudos de Urbanização - CML.
Pormenor do Plano de Olivais Sul. Arq.os Carlos Duarte e José Rafael Botelho - 1960. Os
dois planos estão à mesmo escala

27
formas urbanas, têm igual potencial ou simplesmente o potencial tout court de engen­
drar a vida social.
As formas não têm apenas a ver com concepções estéticas, ideológicas, culturais ou
arquitectónicas, mas encontram-se indissociavelmente ligadas a comportamentos, à
apropriação e utilização do espaço, e à vida e comunitária dos cidadãos.
Esta questão coloca-se com grande acuidade na utilização das formas urbanas (se­
jam estas de blocos, torres, quarteirões ou contrnuos construrdos) e, na medida em que
qualquer dessas formas influenciará diferentemente a vida social, no comportamento e
bem-estar dos cidadãos.
Nos últimos quinze anos, assistimos a uma profunda reviravolta no desenho da ci­
daqe, modificação profunda na produção arquitectónica, modificação [las metodolo­
gias de intervenção, nos temas e nos programas.
As propostas desenhadas actualmente nas_Escolas, nos ateliers de arquitectos mais
protagonistas, nada têm a ver com o que se passava nos anos sessenta. Aparentemen­
te, foi retomada a tradição da urbanrstica formal através da recuperação de elementos
da cidade tradicional como a rua, a praça ou -o quarteirão, que, há duas décadas, pa­
reciam esquecidos e esmagados pelas proezas tecnológicas das megaestruturas, do ur­
banismo do plan masse e da planta livre.
Efectivamente, a partir do inkio da década de setenta, o urbanismo e o desenho ur­
bano sofreram uma profunda revisão. Diga-se em boa verdade que, desde os anos ses­
senta, se iniciou a agonia da «cidade moderna. com as suas perversões posteriores.
A preocupação com a FORMA URBANA - tanto estrutura física como funcional ­
passou a constituir o elemento dominante do projecto' urbano, enquanto, paralelamen­
te, novos conceitos, métodos e programas surgiram na prática urbanística.
Todavia esta rejeição da cidade moderna foi tão apaixonada e emotiva quanto fora
onos antes a condenação da cidade tradicional e da rue corridor feita por Le Corbusier
e pelos CIAM. Quero com isto dizer que tanto num caso como no outro tais condena­
.ções não se apoiaram em reflexão crítica profunda. Recordo a frase de Fernando Mon­
tes «Aujourd'hui, la seule forme qui nous reste d'être modernes est d'appliquer à /'ar­
chitecture modeme les mêmes remedes qu'elle appliqua à /'académisme» (31.
Parece-me algo inconsequente a condenação sem o juízo e a investigação. Posso
aderir ao novo urbanismo, mas necessito de reflectir tanto sobre as propostas moder­
nas como sobre as tradicionais de cidade. Nessa ordem de ideias, longe de ter simplifi­
cado as coisas, «separando o bem do mal., ainda torno mais complexas as interroga­
ções...
Hoje, desenhar a cidade e nela intervir é também compreender e conhecer a cidade
antiga e a cidade moderna, as suas morfologias e processos de formação. Assim, fala­
rei de cidade antiga e de cidade moderna como modelos disponíveis na vasta gama de

28

o 100 :100 MO _ _-­


iiiiii~!~~$i'iiiiiii'~~·~!iiiiiiiil!........

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~ Via pedonal
Espacol públicos 5. Centro Cultural 10. Electricidade Nacional
1. CÂmara de Deputadol 6, Piscina e patinagem lobre gelo 11. Ajuda r..iliar
2. Complexo administrativo 7. Cinemas e centros comerciais 12. Correios
3. Câmara Municipaf 8. Reparticão de Desenvolvimento 13. Palácio de exposições
4. Armazóns (centro comercial) 9. Reparticio de Se9uranca Social 14. Parque (jarda)

1·6. Plano do centro de Cérgy - Pontoise. Arredores de Paris - 1968-1970

29
1·7. Urbanismo operacional e o território sem forma. Cidade nova de Champigny
sur Mame. Região de Paris. Vista aérea, 1968·1970

30

hipóteses para o desenho da cidade contempor6nea. Modelos que importa conhecer


em profundidade, tantos nas suas caraderrsticas morfológicas como nos processos cul­
turais e sociais da sua formação.
O interesse pela fORMA URBANA teró de avaliar com objectividade os conteúdos
da cidade moderna e da cidade tradicional, e só dessa avaliação poderão nascer pis­
tas para o desenho da cidade contempor6nea. Tais serão alguns dos objedivos deste
trabalho.
,e fundamentalmente a dimensão frsica e morfológica da cidade que me preocupa,
porque é essa a dimensão arquitectónica e a que melhor permite o entendimento cultu·
ral da cidade.
Esta abordagem do desenho da cidade dentro da disciplina. arquitectónica não
invalida '~ue as formas urbanas dependam da sociedade que as produz e das condi·
ções históricas, sociais, económicas e polrticas em que a sociedade gera o seu espaço e
o habita, e o arquitedo o desenha.
Porém nunca seró de mais reivindicar um determinado grau de autonomia para a
produção arquitectónica. Acidade não é um simples produto determinista dos contex·
tos económicos, polrticos e sociais: é também o resultado de teorias e posições culturais
e estéticas dos arquitectos urbanistas.
Todavia um primeiro grau de leitura da cidade é eminentemente frsico-espacial e
o
morfológico, portanto espedfico da arquitectura, e único que permite evidenciar
a diferença entre este e outro espaço, entre esta e aquela forma, e explicar as carade­
rrsticas de cada parte da cidade. Aeste se juntam outros nrveis de leitura que revelam
diferentes conteúdos (históricos, económicos, sociais e outros). Mas esse conjunto de
leituras só é possrvel porque a cidade existe como fado frsico e material. Todos os ins·
trumentos de leitura lêem o mesmo objecto - o espaço frsico, a fORMA URBANA.
e esta leitura arquitedónica que me interessa e cuja validade procurarei provar, co·
mo contributo para a prótica do desenho urbano.
Retomo aqui o centro da polémica que nos últimos anos tem agitado o dêbate pro­
fissional - ca cidade como lugar de arquitectura e onde esta encontra o seu pleno sig­
nificado». A qualidade arquitectural da cidade não-pode ser entendida apenas pela
realização de edifrcios, e não basta ao arquitecto a competência na realização das
construções. Asua- eficócia reside justamente na capacidade de entender e confrontar.
-se com os problemas do planeamento, através do desenho urbano.
Confesso também que a obrigação académica de produzir uma dissertação consti­
tuiu uma oportunidade excelente de reAexão sobre este tema, ao qual tenho dado
grande importtmcia na minha vida profissional.
Num pars em que pouco se escreve sobre arquitectura, pareceu·me adequado que
este trabalho pudesse ccnstituir um balanço e reflexão sobre os problemas do desenho

31

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1·8. L'on Krier. Proposta para o concurlo de ordenamento de La Vil.ft., 1975

32

1-9. Plano de Renovação Urbana do Martim Moniz - Lisboa. Arq.os Carlos Duarte e José la­

mas, 1980

33

e das morfologias urbanas. Tanto mais que sobre esta matéria são necessários estudos
que ultrapassam a divulgação de opiniões pessoais ou o tratamento particular e disper­
so de variadas questões. ~ também meu objectivo que este trabalho possa ser acessível,
didáctico e orientador da aprendizagem, académica e profissional. Porque se as meto· .
dologias e técnicas do desenho urbano permitem traçar naturalmente quadrrculas,
quarteirões, ruas e praças, não parece seguro que a tal desenho corresponda a ade­
quada reflexão disciplinar que a fundamente.
Temos todos de saber porque riscamos e como riscamos, dentro de um campo disci­
plinar comum e global, que, por ser comum e global, permita, aqui e ali, os rasgos par­
ticulares da imaginação e da invenção. No mais, haverá que atingir um determinado
grav de consenso, de unidade metodológica e cultural no desenho da cidade. .
Tarefa bem difícil, na medida em que o desenho é também espelho e produto da
cultura e da visão pessoal dos seus autores. Mas, por isso mesmo, necessita de assentar
em alicerces comuns. Tarefa importante, porque se trata, afinal, de reflectir sobre o
meio próprio do homem, a cidade, ou seja, a maior criação da humanidade.
Para finalizar, não resisto à amarga tentação de registar a enorme distância entre
as preocupações deste trabalho e a prática profissional no nosso País, onde os proble­
mas de urbanismo são encarados de modo disléxico e desinteressado. A urbanística
portuguesa, parente pobre e distante da arquitectura (ela também não muito bem
tratada), não tem estatuto, e pouco preocupa responsáveis, autarcas ou Governos.
Quanto muito, é encarada como um mal necessário a que se recorre para organizar
exigências de programas económicos, legitimar compromissos e permitir jogadas políti­
cas, especulações imobiliárias ou sórdidos negócios. Assim, pareceriam descabidas es­
tas questões na triste e feia realidade portuguesa, se não fora pensar na formação dos
jovens arquitectos, nó inserção da cultura arquitectónica portuguesa e, finalmente, em
nós, arquitectos, e em mim próprio, e na impossibilidade intelectual de escorraçar o sa­
ber e a cultura.
Espero sinceramente que o produto deste trabalho possa frutificar na prática urba­
nística e no ensino, quanto mais não seja para permitir o debate, recordar factos, ligar
hipóteses.

Lisboa, Janeiro de 1990

34

PARTE II

AMORFOLOGIA URBANA

35

,Une succession d'oventures d'ame c'est lo


vie de lo cité. Mais le plein sens de lo vie ur·
boine ne souroit s'oquérir que si I'on distin­
2.1 AMORFOLOGIA URBANA
gue 1'8tre urboin, qui constitue en soi I'ogré­
gat social qui compose essentiel/ement lo vil­
le, de lo forme urboine, outrement dit de o termo «morfologia. utiliza-se para designar o estu­
I'ensemble des voies, constructions et espa­ do da configuração e da estrutura exterior de um objec..
ces plontés por quoi lo vil/e s'offre m_otérie/· to. ~ a ciência que estuda as formas, interligando-as com
lement à nos yeux. Or, c'est à 1'8tre qui os fenómenos que lhes deram origem (11.
s'oppliquent les lois biologiques. Lo fOlme
n'est que lo motiere inerte ou de lo verdure A morfologia urbana estudará essencialmente os as­
que 1'8tre o foçonnée ou élisposée et qui, pectos exteriores do meio urbano e as suas relaçõesrecr­
por conséquent, ne souroit se confondre procas, definindo e explicando a paisagem urbana e a
ovec lui. Adéquate à ses besoins quond ii lo sua estrutura (21.
crée, el/e n'y co"espond plus qu'imporfoi­
O conhecimento do meio urbano implica necessaria­
tement quond ce sont les générations sui­
vontes qui utilisent cette forme, conservée mente a existência de instrumentos de leitura que permi­
néomoins porce qu'il y o un fond permonent tam organizar e estruturar os elementos apreendidos, e
dons I'être. A cette forme oncienne oinsi uma relação objecto-observador. Estes dois aspectos
mointenue, viennent s'o;outer les formes defrontam-se com questões de objectividade na medida
nouvel/es que ces générotions mettent ou
em que dependem de fenómenos culturais. Um texto de
;our et qui sant I'expression de nouveoux
besoins qui leur sont proposés. Les généro­ Cerasi elucida melhor esta questão:
tions successives qui composent I'être «Para descrever ou analisar a forma flsica de uma ci­
s'écoulent: c'est lo forme -qui reste - qui dade ou mesmo de um edifrcio, pressupõe-se já a existên­
nous rend opporente I'ôme urboine.• cia de um instrumento de 'eitura que hierarquize a impor­
MARCEL POtTE
tância dos diferentes elementos da forma. Assim, os fios
Paris, son. évolution créotive (1938) de eledricidade de uma rua não têm a mesma importân­
cia na descrição do espaço frsico dessa rua como a altura
dos edifícios, etc. Portanto, a leitura, mesmo querendo-se objediva, passa já por uma
operação da cultura que selecciona os elementos, os hierarquiza e lhes atribui valo­
res.» (31
O meio urbano pode ser objecto de múltiplas leituras, consoante os instrumentos ou
esquemas de anólise utilizados. No essencial, os instrumentos de análise vão fazer res­
saltar os fenómenos implicados na produção do espaço. As inúmeras significações (41
que se encontram ,no meio urbano e na arquitectura correspondem aos inúmeros fenó­
menos que os originaram.
A leitura disciplinar, se bem que rica de conteúdos e esclarecimentos sobre o objec­
to, não o explicaró totalmente, quer na sua configuração quer no seu processo de for­
mação. Só o cruzamento de diferentes leituras e informações poderá explicar um ob­
jecto tão complexo como a cidade. No entanto, é frequente que, na produção das for­
mas urbanas, exista um fenómeno que seja determinante e, portanto que assuma maior

37

preponderância em qualquer análise. De igual modo, o arquitecto, ao «produzir» o seu


espaço, poderá dar maior 6nfase a este ou àquele aspecto, o qual se revelará mais evi­
dente em análise posterior.
Nas cidades actuais, certas formas apenas revelam uma total sujeição do urbanis­
mo à rentabilidade do solo e à especulação fundiária. Adestruição da paisagem rural
e urbana portuguesa efectuada nos últimos trinta anos revela, e bem, as condições cul­
turais, polrticas e sociais em que se projecta e se deixa construir em Portugal. Arenova­
ção imobiliária das «Avenidast em Lisboa revela com toda a evidência as condições de
administração da capital e a ideia que da cidade e da gestão urbanística têm os seus
responsáveis técnicos e polrticos. .
Amorfologia urbana supõe a convergência e ÇI utilização de dados habitualmente
recolhidos por disciplinas diferentes - economia, sociologia, história, geografia, arqui­
tectura, etc. - a fim de explicar um facto concreto: a cidade como fenómeno físico e
construído. Explicação essa que visa a compreensão total da forma urbana e do seu
processo de formação. Com imprecisão de linguagem, no calão arquitectónico, muitas
vezes as palavras morfologia e forma são usadas indistintamente e sem diferenciação
de significado. Importa clarificar que a morfologia urbana é a disciplina que estuda o
objecto - a forma urbana - nas suas características exteriores, físicas, e na sua evolu­
ção no tempo.
~ a justo trtulo que a morfologia urbana se inscreve nas áreas do urbanismo, da
arquitectura e do desenho urbano. Nesse sentido, poderei defini·la pelo estudo dos
factos construídos considerados do ponto de vista da sua produção e na relação das
partes entre si e com o conjunto urbano que definem (51.
Esta noção leva a clarificar essencialmente três pontos:

• A morfologia (urbana) é o estudo da forma do meio urbano nas suas partes físicas
exteriores, ou elementos morfológicos, e na sua produção e transformação no tem­
po. Todavia, é necessário sublinhar que um estudo morfológico não se ocupo do pro­
cesso de urbanização, quer dizer, do conjunto de fenómenos sociais, económicos e
outros, motores da urbanização. Estes convergem na morfologia como explicação
da produção da forma, mas não como objecto de estudo.
• Um estudo de morfologia urbana ocupa-se da divisão do meio urbano em partes
(elementos morfológicos) e da articulação destes entre si e com o conjunto que defi·
nem - os lugares que constituem o espaço urbano (61. O que remete de imediato pa­
ra a nêCessidades de identificação e clarificação dos elementos morfológicos, quer
em ordem à leitura ou análise do espaço quer em ordem à sua concepção ou produ­
ção.

38
• Um estudo morfol6gico deve necessariamente tomar em consideração os nfveis ou
momentos de produção do espaço urbano. Nfveis esses que possuem, dentro da dis­
ciplina urbanrstico-arquitect6nica, a sua lógica pr6pria, articulada sobre estratégias
polrtico-sociais. Um estudo morfológico deve também identificar 05 níveis de produ­
çõo da forma urbana e as suas inter-relações.

Ao longo da História, esses ntveis foram, essencialmente, a formalização ou compo­


sição urbana, a que poderei chamar «desenho urbano), e a realização das constru­
ções. (O plano da cidade ou das suas partes e o projecto dos edifícios ou das diferentes
construções.)
Só mais recentemente surgiu outro ntvel: o da planificação e programação das
quantidades, das utilizações (organização quantitativa e funcional) e das localizações,
que, de um modo geral, precederó o desenho urbano.

39

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2-1. FORMA URBANA: Tavira no séc. XVI, segundo uma gravura da época, e planta da cidade
no séc. XVIII

40
2.2 A FORMA URBANA
o conceito mais geral de forma de um objecto refere-se à sua aparência ou configu­
ração exterior. Conceito que se pode apreender com facilidade e que faz parte da
experiência quotidiana do Universo. Conhecemos os objectos e a sua forma. Mas tal
conhecimento refere-se fundamentalmente a um instrumento de leitura - visual - ex­
terior que não revelará certamente todos os conteúdos da forma. A descoberta de ou­
tros conteúdos implica outros instrumentos de leitura.
À morfologia urbana interessam, em primeiro lugar, os instrumentos de leitura ur­
banísticos e arquitecturais - partindo do princípio de que as disciplinas de concepção
do espaço têm instrumentos de leitura que lhes são próprios: a leitura da cidade como
facto arquitectural.
Esta posição implica aceitar que a construção do espaço físico passa necessaria­
mente pela arquitectura (7). Então, a noção de «forma urbana» corresponderia ao meio
urbano como arquitectura, ou seja, um conjunto de objectos arquitectónicos ligados·
entre si por relações espaciais. A arquitectura será assim a chave da interpretação cor­
recta e global da cidade como estrutura espacial. Refiro o importante contributo de
Rossi, particularmente esclarecedor das relações entre arquitectura e cidade:
«A forma da cidade corresponde à maneira como se organiza e se articula a sua ar­
quitectura. Entendendo por 'arquitectura da cidade' dois aspectos: 'Uma manufactura
ou obra de engenharia e de arquitectura maior ou menor, mais ou menos complexa,
que cresce no tempo, e igualmente os factos urbanos caracterizados por uma arquitec­
tura própria e por uma forma própria'. Este é também o ponto de vista mais correcto
para afrontar o problema da forma urbana, porque é através da arquitectura da cida­
de que melhor se pode definir e caracterizar o espaço urbano.» (8)
Neste contexto, a arquitectura não pode s~r compreendida senão como uma parte
da cidade, como um acontecimento submerso num sistema complexo de relações (es­
paciais e outras) com o resto do espaço urbanizado.
A forma física é um dado real que predomina em qualquer descrição de uma cida­
de: Aix-en-Provence é diferente de Paris ou de Lisboa. O Cours Mirabeau é diferente
dos Campos Elíseos ou da Avenida da Liberdade. A noção de «forma» aplica-se a todo
o espaço construído em que o homem introduziu a sua ordem (9) e refere-se ao meio ur­
bano, quer como objecto de análise quer como objectivo final de concepção arquitec­
tónica. «O objectivo final da concepção é a forma.» (10)
O urbanismo assumirá na concepção da forma do meio urbano todos os contributos

41

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2.2. DIFERENTES FORMAS URBANAS relacionadas com os parâmetros urbanísticos e quantita­


tivos

42

2·3. Diferentes organizações espaciais do mesmo terreno, com diferentes densidades e ocupa­
ções do solo, segundo o FULHAM STUDY. 1e 2 - a mesma densidade de 260 hab/ha, com dife­
rente ocupação do 5010. Em 1, à maior libertação de solo corresponde maior altura de edifícios.
3 e 4 - o mesmo terreno estudado respectivamente poro 380 hab/ha e 560 hab/ho

43

das diferentes disciplinas e ciências que lhe estão ligadas. Aforma urbana é o resultado
final dos problemas postos às disciplinas urbanística e arquitectónica (11 ).
É necessário ter sempre presente que tanto a arquitectura como o urbanismo são
disciplinas criativas cujo fim é uma intervenção no espaço, transformando-o.
Aconcepção arquitectural é essencialmente formal (121, ocupando-se não s6 da con­
cepção dos diferentes factos construídos, mas também da definição das ligações que
podem existir entre as edificações e os lugares por elas definidos. O seu domínio
caracteriza-se fundamentalmente pela concepção do meio que o homem habita.
A «forma» surge como resposta a um problema espacial (retomo Alexander):
«A forma é a solução do problema posto pelo contexto.» (13) Ou seja, a forma física
a
torna-se o prQduto de uma acção e solução de um problema. .
Chegado a este ponto, poderei definir a forma urbana como: aspecto da realidade,
ou modo como se organizam os elementos morfológicos que constituem e definem o es­
paço' urbano, relativamente à materialização dos aspectos de organização funcional e
quantitativa e dos aspectos qualitativos e figurativos. Aforma, sendo o objectivo final
de toda a concepção, está em conexão com o «desenho» (141, quer dizer, com as linhas,
espaços, volumes, geometrias, planos e cores, a fim de definir um modo de utilização e
de comunicação figurativa que constitui a «arquitectura da cidade».
Esta noção é mais vasta do que a que tende a reduzir a forma apenas às caracterís­
ticas dos objectos que podem ser perceptíveis; e só pode ser totalmente compreendida
utilizando a arquitectura como disciplina de análise, e concepção do espaço.
Antes de continuar, devo clarificar certas noções utilizadas:
• Aspectos quantitativos - Todos os aspectos da realidade urbana que podem ser
quantificáveis e que se referem a uma organização quantitativa: densidades, superfí­
cies, fluxos, coeficientes volumétricos, dimensões perfis, etc. Todos esses dados quan­
tificáveis são utilizados para controlar aspectos físicos da cidade.
• Aspectos de organização funcionai - Relacionam-se com as actividades humanas
(habitar, instruir-se, tratar-se, comerciar, trabalhar, etc.) e também com o uso de
uma área, espaço ou edifício (residencial, escolar, comercial, sanitário, industrial, .
etc.), ou seja, ao tipo de uso do solo. Uso a que é destinado e uso que dele se faz.
• Aspectos qualitativos - Referem-se ao tratamento dos espaços, ao «conforto» e à
«comodidade» do utilizador. Nos edifícios, poderão ser a insonorização, o isolamen­
to térmico, a correcta insolação, etc., - e, no meio urbano poderão ser característi­
cas como o estado dos pavimentos, a adaptação ao clima (insolação, abrigo dos
ventos e das chuvas), a acessibilidade, etc. Os aspectos qualitativos podem também
ser quantificáveis através de parâmetros (os decibéis que medem a intensidade de
conforto sonoro, o lux, como medida do conforto da iluminação, etc.) 1151.

44
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• NUMERO oe HABITANTES I 46 600
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OCUPACAO ~ SOLO
OE CONSTRUCÁO

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2·4. Bairro de Alvalade, Lisboa - medição de parâmetros urbanlsticos, segundo o estudo For­
mas e Foctores do Crescimento Urbano de Lisboa, do Arq. o Isobel Costa, 1978

45

• Aspectos figurativos - Os aspectos figurativos relacionam-se essencialmente com


a comunicação estética. Retomarei este assunto mais tarde (16).
Convém distinguir desde já aspectos qualitativos e estéticos, embora tenham uma
órea d~ sobreposição. Os aspectos qualitativos não são necessariamente estéticoSi um
ambiente com um alto grau estético não implica necessariamente uma boa comodida­
L
de. Em formas urbanas e arquitecturas do passado, encontramos um alto grau de in­
tenções estéticas, sem que o seu conforto e qualidade sejam assinaláveis. Inversamen­
te, certos espaços actuais podem ser de qualidade (existência de espaços verdes, pas­ L
seios limpos e cuidados, estacionamentos necessários, etc., mas sem que por isso mes­
mo tenham grande interesse estético.
Aactual cidade antiga de Lisboa é um exemplo soberbo. Cidade degradada, a cair
em ruínas, incómoda, cheia de passeios e vias esburacadas, sem as comodidades das
capitais europeias, e, no entanto, desprende-se dela uma intensa e perturbante beleza.
Recordo A Cidade Branca, o filme de Alain Tanner, em que Lisboa é de uma beleza trá­
gica e melancólica. Abeleza da ruína, o fasdnio da decadência, certamente incómoda
e desqualificada, mas portadora de uma mensagem estética inconfundível, ultrapas­
sando o cenário e assumindo-se como protagonista.
Fica uma interrogação que se aplica' mais às novas produções de espaço do que à
análise do passado: até que ponto se pode falar de qualidade e conforto com ausência --
I

de intenções estéticas e vice-versa? Esta questão poderia originar outra investigação.


Finalmente, chamo elementos morfológicos às unidades ou partes físicas que, asso­
ciadas e estruturadas, constituem a forma. Interessa estabelecer' quais os elementos
morfológicos que são identificáveis tanto na leitura ou análise da cidade como no pro­
cesso (urbanrstico-arquitectónico) da sua concepção.
Em primeiro lugar, os elementos morfológicos devem relacionar-se tanto com a es­
cala de análise como de concepção do espaço. Quero com isto dizer que não serão os
mesmos, segundo se trate de uma rua, de uma praça, de um bairro ou de uma cidade.
Discutirei esse assunto mais tarde (17).
Interessará ainda acrescentar que a forma é um todo - são as leituras que a seccio­
nam e dela podem extrair ou evidenciar certos aspectos ou partes da sua estrutura. Efi­
co por aqUi.

FORMA E CONTEXTO

Qualquer forma deve satisfazer um conjunto de critérios que se designa geralmente


por «contexto» (18).

46
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C. Evolução dos aglomerados D. Coeficientes de ocupação do solo nos quarteirões da Trafaria
2·5. Plano Geral de Urbanização do Trafaria - Vila Novo - Costa de Caparica, 1980. Análise
dos formos urbanos no órea do plano: A- número de fogos e número de prédios. B- Tipolo·
gias habitacionais. C - Evolução dos aglomerados. O- Coeficientes de ocupação do solo nos
quarteirões do Trafaria

47
o contexto das formas arquitectónicas, ou urbanas, pode englobar tanto critérios
funcionais como económicos, tecnológicos, jurídico-administrativos (por exemplo, as
relações entre o parcelamento e as formas urbanos) ou critérios de natureza estética,
arquitectónica. A multiplicidade de critérios e a sua natureza heterogénea desaconse­
lham uma sistematização, a qual pouco adiantaria às questões aqui abordadas. .
A«forma urbana» deve constituir uma solução para o conjunto de problemas que o
planeamento urbanrstico pretende organizar e controlar. Éa materialização no espaço
da resposta a um contexto preciso. Desde sempre o desenho da cidade teve de equa­
cionar o contexto a que deveria responder, e através da arquitectura.
Ao longo da história do urbanismo, a variação dos contextos originou diferentes
propostas de desenho urbano, mesmo utilizando elementos morfológicos idênticos.
Entre as formas urbanas renascentista e barroca existem diferenças fundamentais
que resultam de diferentes contextos históricos e culturais e das respostas fornecidas.
Entre a perspectiva central, estática, da Renascença e d perspectiva dinâmica - do·
efeito cénico teatral - do Barroco, existem dois mundos profundamente diferentes;
Todavia os elementos morfológicos são semelhantes: rua e praça, edifrcios, facha­
das e planos marginais, monumentos isolados. As diferenças result~m do modo como
esses elementos se posicionam, se organizam e se articulam entre si para constituir o es­
paço urbano. Neste caso preciso, as diferenças são ditadas antes do mais por diferen­
tes atitudes culturais. Esta será parte da explicação das formas. Amudança do contexto
vai mudando as formas pela necessidade de resposta a situações diferentes.

FORMA E FUNÇÃO

Entre os critérios do contexto, as funções têm um relevo particular. Não seria sensa·
to negar as relações entre forma e função (19) que existem em toda a concepção arqui.
tectónica e que se podem observar na arquitectura e na 'cidade. Aforma terá de se re­
lacionar com a função de modo a permitir o desenvolvimento eficaz das actividades
que nela se processam. Neste sentido se percebe facilmente que uma fábrica seja dife­
rente de uma habitação, ou um copo de uma garrafa.
Adiscussão das relações entre a forma e a função é muito antiga e tem acompanha­
do a teoria da concepção arquitectónica. Ao longo da história, a importância e o grau
de determinismo dessa relação tiveram variações profundas.
Alberti (20), ao formular os prindpios da arquitectura, enuncia: a commoditas, rela­
cionando a função ligada a um programai afirmitas, a estrutura que depende da técni­
cai a voluptas, ou a qualidade formal, ou seja, a intenção estética. Posteriormente,

48

2·6. Antigas formas usadas paro novos funções. OM. Ungers - Museu de Arquitectura
Frankfurt. Fachada e axonométrica/corte. O temo do edifício dentro do edifício

49

Mies Van der Rohe define a especificidade da arquitectura pelo «que é possrvel con'stru­
tivamente, o que é necess6rio à utilização e o que é significativo como arte. (2 11.
Mas se os três prindpios básicos da arquitectura - a função, a construção e a arte
- estão sempre presentes na arquitectura e na cidade, j6 o peso que cada um deles as­
sume no processo criativo pode sofrer variações entre duas posições extremas:
Uma posição «funcionalista., segundo a qual uma forma frsica que corresponda lo­
gicamente aos problemas funcionais do contexto é bela, uma vez que a beleza é uma
qualidade inerente a todo o sistema bem resolvido. Na prática, o significado expressi­
vo encontra-se na adequação da forma à função: FORM FOLLOWS FUNCTION (22) ­
a célebre expressão de Sullivan - resume com ênfase esta posição.
O «antifuncionalismo» aceita que a concepção da forma seja ditada de modo inde­
pendente .por outros objectivos (nomeadamente estéticos), para criar a emoção ou o
embelezamento da estrutura.
Para o antifuncionalismo, as funções têm menor ou igual importância que outros cri­
térios do contexto. Exacerbando esta posição, Peter Blake escreveria FUNOION FOL­
LOWS FORM (23), ou seja, a pr6pria função também se adapta à forma - ou a mesma
função pode coexistir e processar-se em formas diferentes.
Em boa verdade, ambas os atitudes não são desprovidas de intenção estética. Mui­
to pelo contrário, significam processos diversos de atingir a perfeição arquitectónica.
As atitudes do funcionalismo e do antifuncionalismo poderiam parecer bizantinos,
se se esquecesse que têm dominado de modo explícito ou implícito o debate arquitectó­
nico e urbanístico nos últimos cinquenta anos.
Até há cinquenta anos, a arquitectura e o urbanismo tinham sabido encontrar um
equilíbrio sensato entre o utilitário e o artístico no relacionamento entre as formas e as
funções.
Todavia o Movimento Moderno contava no seu seio com muitos arquitectos funcio­
nalistas, para quem a função deveria assumir uma «feroz ditadura» sobre a forma.
Uma tal atitude adaptava-se bem à estrutura intelectual racionalista. Funcionalismo e
racionalismo combinavam na reacção contra as Beaux-Arts. Arte Nova e Artes Deco­
rativas. Estes três períodos estéticos, admitiam não s6 o ornato e a decoração, mas
também que a organi~oção do edifício e da cidade fosse determinada por regras estéti­
cas como a simetria, o equilíbrio, métricas, ritmos e proporções, os efeitos cénicos e vi­
suais - todo um conjunto de manipulações que profanavam o despojamento ideológi­
co e formal defendido pelos racionalistas e funcionalistas.
No cidade antiga, existia a mistura e a promiscuidade funcional. Haussman, em Pa­
ris, organiza os edifícios com utilizações diferentes por pisos - comércio no rés-do­
chão, a casa do comerciante na sobreloja, a famma burguesa nos primeiro e segundo
andares, e assim por diante, até aos empregados nas águas-furtadas. O quarteirão al­

50

2·7. Adaptaçao de antigos formos o novos Funções. Restauro e adaptação do Colégio dos Jesur­
tos o Biblioteca Público e Arquivo de Ponto Delgado. Axonométric:a do novo conjunto

51

bergava habitações, pequenos indústrias, artesanato, ateliers e comércio, etc. Eo com­


plexidade funcional da cidade traduzia-se também pela sua complexidade formal.
Écontra esta organização urbanística e arquitectónica que se erguem os arquitectos
funcionalistas que vão influir o Movimento Moderno.
Um texto de Bruno Taut sobre os caracteres do Movimento Moderno esclarece estas
posições (24). Diz Taut:
«, ... t •• t ••••••• '" •••••••••• t ••••••••• , •••••••••••••••••••••••• , ••••••••••••••••••••••••••

«1. A primeira exigência de cada edifício é conseguir a melhor utilização possível.


«2. Os materiais e sistema construtivos utilizados devem estar completamente subor­
dinados a esta exigência primária.
«3. A beleza consiste na relação directa entre o edifício e a finalidade, nas caracte­
rísticas adequadas dos materiais e na elegência do sistema construtivo.
«4. A estética da nova arquitectura não reconhece qualquer separação entre facha­
da e planta, entre rua e pátio, entre frente e traseiras. Nenhum pormenor vale
por si mesmo, senão que forma parte integrante do conjunto. O que funciona bem
tem uma apresentação assim mesmo boa. Já não cremos que algo tenha um as­
pecto feio, quando funcione bem.
«5. Também a casa, no seu conjunto, tal como os seus elementos, perde o isolamen­
to e a separação. Assim como as partes vivem na unidade dos relações redpro­
cas, o casa vive em relação com os edifícios que o rodeiam. A coso é o produto de
uma disposição colectivo e social. A repetição não deve já considerar-se como um
inconveniente que se deve evitar, mos, pelo contrário, constitui o meio mais im­
portante de expressão artístico. Poro exigências uniformes, edifícios uniformes,
enquanto o anomalia fico reservado poro os casos de exigências singulares ­
quer dizer, sobretudo poro os edifícios de importância geral e social.•
Mais tarde, o Carta de Atenas adopto idênticas posições. (251. O funcionalismo
generalizo-se até ser facilmente adoptado, acabando numa verdadeiro obsessão que
penetrou na linguagem e nas noções do quotidiano, determinando ,o gosto e o sentido
estético o vários níveis. Os móveis são funcionais, e o vestuário, também. Qualquer
equipamento, como os cinemas ou os teatros, etc., deve antes do mais, funcionar. Os
critérios de avaliação dos projectos centram-se no funcion-amento do programa. A es­
tético funcionalista estende-se 00 desenho de interiores, à decoração, 00 desenho in­
dustriai, à modo e 00 vestuário, e impregno o cultura pelo e facilidade com que os seus
conceitos e princípios puderam ser apreendidos e aplicados. O que antes fora estético
de vanguarda, detentora do forço da mensagem inovadora, universalizo-se, torno-se
acessível ao homem comum e como tal banalizo-se e é subvertida.
O bom funcionamento torna-se por si só um item de qualidade. No vocabulário do

52

quotidiano, «moderno» é sinónimo de funcional- nada é verdadeiramente «moderno»


que não seja funcional. E «funcional» é sinónimo de qualidade.
Cinquenta anos depois das palavras de B. Taut, a estética funcionalista, embora já
abastardada, ainda é universalmente aceite pelo consumidor comum. Qualquer dono
de obra pretenderá apenas, ainda hoje, que um edifício funcione bem (seja funcional),
o que para ele é suficiente, prescindindo da expressão de outros valores culturais da ar­
quitectura. No entanto, assimila sempre a beleza à boa resolução de um programa ou
de um problema.
A organização funcionalista das cidades anulou as considerações morfológicas. As
relações quantitativas e distributivas, o zonamento e a atribuição de uma função exclu­
siva a cada parcela do território tornaram-se métodos universais do urbanismo, produ­
zindo cidades monótonas e pouco estimulantes - eventualmente com tudo arrumado
no seu lugar, mas sem lugar para a surpresa, a complexidade e a emoção.
As teorias funcionalistas encontraram no urbanismo um campo de aplicação facili­
tado. Para tal, muito contribuiu o simplismo das técnicas do zonamento, reduzindo a
organização da cidade a uma distribuição lógica de zonas com programas específicos,
facilitando a realização de edifícios, de preferência monofuncionais, repetitivos, fáceis
de projectar e de executar. Se na cidade a aplicação e a utilização dos princípios fun­
cionalistas parece ter tido forte incidência, já na arquitectura de edifícios as coisas se
passaram de modo diferente. Como Peter Blake observa em FORM FOLLOWS FUNC~
TlON (26), na arquitectura moderna a forma nem sequer segue verdadeiramente a fun­
ção, na medida em que muitos arquitectos continuaram a dar autonomia a outros valo­
res, relações espaciais, caracteres construtivos e estruturais.
Em boa verdade, raro foi o arquitecto que praticou o funcionalismo em sentido es­
trito. A concepção seria dominada - e mais nos seus aspectos teóricos do que na práti­
ca do desenho - pelas preocupações de funcionamento. Todavia, em cada arquitecto,
a forma foi tendo outros graus de autonomia. O funcionalismo foi, sem dúvida, uma
teoria urbanística e arquitectónica, mas foi, antes do mais, uma estratégia da represen­
tação desenhada e construída. Na prática, traduziu-se mais pela imagem estética, grá­
fica e espacial do que por uma correlação exacta da forma com a função.
A observação da arquitectura e da cidade permite, de resto, comprovar a fragilida­
de do funcionalisl11o dogmático, desmentindo as relações lineares de causa-efeito na
relação forma-função. No seu conjunto, a cidade ea arquitectura apresentam uma di­
versidade de significações e de espaços que traduzem outros critérios, mais do que uma
simples organização funcional.
Por outro lado, uma mesma função pode existir convenientemente em formas distin­
tas, A reutilização de antigos edifícios tem permitido obter excelentes resultados no
grau de utilização, significação estética e quantidade ambiental, tantas vezes maior do

53

que em edifrcios projectados de raiz para o mesmo programa (271. De resto, a reutiliza­
ção de edifícios é já por si uma atitude não funcionalista.
Os espaços em que tudo se encontra programado para cada função têm-58 revela­
do extremamente limitadores e pouco versáteis na utilizaç60, e tantas vezes de grande
pobreza formal.
Nas cidades, a fragilidade do funcionalismo é mais evidente. As funções dos centros
urbanos evolurram, passando de lugares de defesa e de poder a lugares de cornércio,
serviços e trocas culturais. Os seus espaços foram recebendo essas diferentes funções,
sobrepondo-se com complexidade e dinâmica, bem permitido pela capacidade de res­
posta de traçados e formas urbanas à modificação funcional.
O entendimento destas questões posso certamente por um equilrbrio de bom-senso.
A função é um dos critérios do contexto, entre tontos outros, com o importância e a
hierarquia própria dada pela visão cultural subjacente à concepção arquitectónica e
urbanística. Tem certamente um estatuto de necessidade, mas nõo de suficiência, dado
que também pode ser manipulada com maior ou menor liberdade.
A concepçõo da forma não se esgota na correspondência a uma ou mais funções.
Tem também motivações mais complexas e profundas - culturais e estéticas.
Como Scrutton, diria que «a ideia de função de um ediBcio está longe de ser clara, nem
está claro como é que determinada função deve ser transferida para uma forma arquitec­
tural. O que podemos dizer - declinando alguma teoria estética mais adequada - é que
os edifícios têm usos e nõo deviam entender-se como se os nõo tivessem» (28).
A cidade e o espaço urbano têm usos e não deviam entender-se como se os nõo ti­
vessem - acrescento eu.

FORMA E FIGURA
(Aspectos estéticos do urbanismo)

«A forma arquitectónica de um fenómeno é, por um lado, a maneira como as partes ou


estratos se 'encontra~ dispostos no objecto, etambém o poder de explidtar e evidenciar es­
sa disposição. Estes dois aspectos sempre coexistiram. Todavia, se não existe objecto sem
forma, esta tem poderes de comunicação estética dispostos em nrveis muito diferentes.
Chamaremos forma ao primeiro aspecto, e figura, ao segundoi o valor da figura nunca é
nulo, pois que podemos reconhecê-Ia mesmo em nrveis extremamente degradados.
É unicamente através da figura que podemos descobrir o sentido do fenómeno e re­
construir a totalidade, a pluralidade dos seus elementos construtivos e das suas proposi­

54

2-8. Construções clandestinos no periferia de Lisboa

S5
r

ções. A estrutura da concepção projectual (o que caracteriza a obra arquitectural) é de na­


tureza eminentemente figurativa.» (29)
GREGOTTI, VITIORIO
II Territorio deI/'architettura

A intenção estética é inerente à humanidade, faz parte do nosso dia-a-dia, em todas as


nossas acções.
Da escolha do vestuário, em que o casaco combinará com os sapatos, à disposição dos
m6veis numa habitacão, à cor do automóvel, um sem-número de exemplos demonstra
que a emoção e o p;azer estéticos são inerentes ao quotidiano. Éuma necessidade, que
também se educa e se desenvolve e que tem manifestações primitivas, «selvagens», erudJtas
e sofisticadas, ou completamente deturpadas.
A estética da casa clandestina ou do emigrante, ou de edifícios projectados por de­
senhadores, engenheiros, topógrafos ou simples curiosos, é exemplificativa.
A amostragem de formas importadas ou inventadas pelas colagens das mais desa­
justadas inspirações revela uma imaginação delirante de construção civil, sem informa­
ção cultural arquitect6nica.
Sem aceitar essas manifestações pelo que significam de destruição do património
arquitectónico e urbanístico, não poderei negar que procuram um sentido estético pró­
prio, com regras que nada têm que ver com a cultura arquitectónica, popular ou erudi­
ta. Éuma estética (ou antiestética) própria, fechada, e certamente explicável por nume­
rosos fenómenos sociais, culturais, económicos, todos os que se quiser e muitos mais,
excepto os arquitectónicos!
Vulgarmente designadas por Kitsch, estas manifestações estéticas significam no·fun­
do um outro gosto, ou ausência de gosto, diferente da cultura erudita e cortado de um
.
relacionamento com a História, a sedimentacão cultural e a civilizacão..
A análise desta questão conduziria a estabelecer uma fronteira, ou zona de transi­
ção, entre «construção civil» e «arquitectura». Esta só existindo quando é ultrapassada
a fase primária de simples ligação de elementos construtivos e técnicos, com vista a
obter também efeitos estéticos de acordo com a cultura arquitect6nica.
Chegado a este ponto, interessa-me definir os aspectos figurativos das formas urba­
nas.
Entendo por «a'spectos figurativos» os aspectos da forma que são comunicáveis
através dos sentidos. E«figura», ao poder de comunicação estética da forma, ou seja,
ao modo como se organizam as diferentes partes que constituem a forma, com objecti­
vos de comunicação.
Nesta definição sigo de perto o texto de Vittorio Gregotti citado anteriormente.
Esse texto retoma a diferença entre construção civil e arquitectura, ou entre «ocupa­

56

:CCAL ­
IOI01lIMtellO O

2-9. Planta da Alhamb ra, Granada

57

ção do solo» e «arte urbana». Épela «figura», ou através da mensagem figurativa, que :\-­
a arquitectura e a arte urbana se revelam.
Toda a acção que humaniza a paisagem pode conter objectivos e valores estéticos
que se comunicam através dos sentidos ou da percepção. r
Apesar da forma não se resumir aos espectos sensoriais - portanto perceptíveis-,
estes são determinantes na sua compreensão.
Sem querer abordar a teoria da percepção, citaria Aristóteles: «Nada existe no es­
prrito que não tenha passado pelos sentidos.» O homem urbano está sujeito a sons,
r

cheiros, calor, luz, estímulos visuais, climáticos, e outros, que actuam sobre os seus sis­
temas perceptivos, através dos quais passam para mensagens organizadas e tratadas
rr.
pelo cérebro, produzindo o conhecimento do meio urbano. Não é objectivo aqui de­
senvolver a teoria da informação (30) nem discutir as acções entre o transmissor (meio
urbano) e o receptor (o homem), através de mensagens.
Basta registar o importância dos sentidos e da cultura na leitura fazer da cidade. r'
f
Resumindo, direi que os valores estéticos só são comunicáveis através dos sentidos e
que, apesar de as características da forma não se resumirem aos aspectos sensoriais
(portanto perceptíveisL estes são determinantes na sua compreensão. Um breve enun­ :; '

ciado dos sistemas sensoriais permitirá clarificá-los (3 11.

:­I
Sistema de orientação
A sua importância é grande no conhecimento da cidade, embora tenha sido «es­
quecido» por Jratadistas e geógrafos urbanos. Respeita, em primeiro lugar, ao equilí­
brio vertical e também a noções de acima/abaixo, esquerda/direita, horizontal/verti­
cal, alto/baixo, longe/perto, etc., que permitem ao homem orientar-se na cidade.
Será como que um «sexto sentido», e numa cidade dependerá fundamentalmente
dos sistemas de referência: marcos ou monumentos, zonas ou bairros, traçados, nós.
As análises de K. Linch (31) sobre a imagem da cidade constituem um importante contri­
buto para o esclarecimento deste problema. Lynch distingue o categoria a que chama
de «imagibilidade», relacionando-a com a possibilidade de orientação.
Atrevo-me a dizer que, nas civilizações ocidentais, o sistema de orientação está de
um modo geral ligado aos sistemas de referência da cidade tradicional.
A cultura ocidentàl sedimentou o conhecimento das cidades através dos eixos das
ruas e dos cruzamento e nós. A analogia é evidente com a formação matemática dos
eixos que permite localizar um ponto num plano. O jogo da «batalha naval» será uma
das mais singelas aplicações, que qualquer crionço aprende com facilidade; assim co­
mo qualquer criança aprende a orientar-se na cidade se tomar os sistemas viários orto­
gonais, os quarteirões, os monumentos e otJtros sinais de referência.

58
Sistema visual
Ésem dúvida o sistema que foi mais estudado no conhecimento do meio urbano,
porque sem dúvida é através da visão que se constrói a parte mais importante da ima­
gem da cidade (33). No entanto, o sistema visual de observação do espaço urbano,
pressupõe o movimento e a apreensão do espaço em sequência visual. Aeste tema vol­
tarei mais tarde.

Sistema táctil
Pode parecer menos importante, se não se considerar que no sistema táctil se in­
cluem todas as percepções térmicas e de fricção com a atmosfera: o vento, as correntes
de ar, o calor, o sol e o frio, que também são importantes na vivência, compreensão e
caracterização da cidade.

Sistema olfactivo
Em certas cidades norte-africanas ou asiáticas, os cheiros são muito mais intensos e
profundos do que no Ocidente e são pertença indissociável do espaço urbano: odores
de suor humano, excrementos, especiarias, comidas e esgotos pertencem aO espaço e
ao conhecimento desses lugares, como de resto o cheiro a forno de pão e a lenha quei­
mada evoca o mundo rural português. Não imagino as ruas das cidades da índia ou
certos bairros de Macau sem os seus cheiros caracterrsticos. Os cheiros e odores carac­
terizam os lugares e são partes do meio urbano. O sistema olfactivo pertence à expe­
riência da cidade, embora seja um factor de menor controlo e incidência no desenho
da forma urbana, tal como tem sido analisada.

Do enu nciado dos sistemas de percepção, verifica-se, grosso modo, que 'a cada sis­
tema vai corresponder uma caracterrstica da forma, que poderá ser perceptível.
Todavia as condições em que se realiza a comunicação com o ambiente são essen­
cialmente visuais e constituem um momento determinante na experiência de estética
urbana, porque os aspectos figurativos se manifestam predominantemente pela comu­
nicação visual.
Para estudar a imagem urbana, não se podem ignorar os trabalhos de Kevin Lynch,
de Kepesh e dos seus colaboradores do MIT (34), trabalhos que incidem sobre.uma análi­
se da forma urbana e que desenvolvem contributos fundamentais para a actividade do
arquitecto urbanista como criador de formas e de imagens. «A imagem da cidade» é
um meio de comunicar a sua forma física. Cito a tese de Lynch - «Seremos agora capa­

59

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2·10. Kevin Lynch - Os sistemas de arientaçõa na farmaçõa da imagem de Los Angeles. 1. A


imagem de Los Angeles extraída das entrevistas orais. 2. A imagem extraída dos esboços feitos
pelos entrevistados

60

zes de desenvolver a imagem do nosso ambiente, agindo sobre a sua forma frsica exte­
rior e também desenvolvendo um processo interno de aprendizagem.»
O grande interesse do trabalho de Lynch repousa sobretudo no regresso à leitura
ou experiência colectiva. Ao estabelecer a «média» das imagens apercebidas por cada
indivrduo, obter-se-á a imagem colectiva. E é justamente essa imagem colectiva que
Lynch propõe que seja procurada na composição urbana. Lynch demonstrou também a
importância do ambiente visual para o bem-estar do cidadão e para o seu comporta­
mento sociopsicológico. Por exemplo, num percurso, é fundamentalmente a visão que
determina a orientação e as sequências visuais que são essenciais para o conhecimento
da forma urbana (35).
Do que acaba de ser dito, sobressai que os elementos visuais serão determinantes
em toda a concepção e produção do espaço. Para que exista imagem (como em todo o
fenómeno correlacionado com a percepção), é necessária uma relação entre objecto e
observador. A forma urbana poderá ter uma multiplicidade de «imagens» que corres­
pondam a outros tantos observadores. No entanto, apesar de a imagem depender do
observador, depende primeiramente das características da forma. Se a problemática
da imagem visual é muito importante para o arquitecto urbanista, mais ainda é o co­
nhecimento dos elementos morfológicos, que são mais significativos visualmente, pois é
através desses elementos que se processa no essencial a comunicação figurativa.
Recorro de novo a Gregotti quando adianta a possibilidade de «qualquer forma
conter níveis de comunicação estética ainda que degradados», (36) ou seja, desde que
tenha existido a intenção estética, ainda que culturalmente alienada, a forma terá cer­
tamente níveis de comunicação estética.
O objectivo do desenho urbano e, por extensão, do urbanismo não será apenas or­
ganizar o território para acolher actividades, mas também actuar na forma para que
exista comunicação estética e significação. O que equivale a negar os modelos exclusi­
vamente funcionalistas - ainda que se possam encontrar estratos de comunicação es­
tética na correcta correspondência da forma à função. fi. própria forma, ou a imagem
urbana, pode ser organizada com relativa independência para atil'\gir a comunicação
visual; no fundo, trata-se de retomar os problemas da arte urbana e de embelezamen­
to da cidade com o objectivo de contribuir para um ambiente mais estimulante.

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2·11. O território como suporte dos formas urbanos. Horto - Faiol - o cidade e o paisagem
vistos do mar. Porto Pim - Horto - visto do praia

62
2.3 PRODUÇÃO E FORMA DA CIDADE E PRODUÇÃO
E FORMA DO TERRITÓRIO

o TERRITÓRIO COMO SUPORTE DA ARQUITECTURA


A expressão «territór,io» designa «a extensão da superfície terrestre na qual vive um
grupo humano» (37), ou melhor, o espaço construído pelo homem, em oposição ao que
poderíamos designar por «espaço natural» (38) e que não terá sido humanizado. É o es­
paço onde o homem exerce a sua acção, transformando-lhe as condições físicas,
impondo-lhe a «sua ordem» (39).
A actual paisagem da Europa, e de certo modo por todo o mundo, é já o resultado
da acção do homem sobre um suporte físico preexistente.
As estruturas rurais, tal como as urbanas, decorrem de uma acção humana que ten­
de a dominar os elementos físicos e o clima de modo a permitir e as actividades,quer es­
tas sejam urbanas, agrícolas ou florestais. Canais e valas, plantações, desaterros ater­
L
ros, socalcos e caminhos testemunham essa acção transformadora. Nas nossas regiões,
quase todo o espaço já sofreu a acção do homem. Muitas paisagens que se consideram
«naturais» são apenas paisagens «construídas», com meios e objectivos diferentes dos
L urbanos. A diferença entre os espaços rurais e os espaços urbanos refere-se essencial­
mente ao seu modo de utilizacão: em ambos os casos o homem actua sobre o território,
para nele viver, exercer actividades, e também de acordo com um sentido estético.
Trata-se de saber se as considerações anteriores sobre a forma urbana podem ser
extensíveis a todo o território, ou seja, se se pode considerar a construção do território
humanizado como fenómeno arquitectural. Questão que encontra também o seu lugar
no planeamento regional e urbanístico como disciplina de organização esp<1lcial.

ALARGAMENTO DA NOÇÃO DE FORMA URBANA


L
o sítio e o suporte geográfico
L A forma urbana não poderá ser desligada do seu suporte geográfico - e este é um
elemento tão importante como os factos construídos.
O sítio contém já em muitos casos a génese e o potencial gerador das formas cons­
truídas, pelo apontar de um traçado, pela expressão de um lugar.

63

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Rossi refere-se ao «sítio» designando-o pelo /ocus. Mas o /ocus não é propriamente
o sítio geográfico. Éa «relação singular que existe entre certa situação local e as cons­
truções que estão nesse lugar». A escolha do lugar, tanto para uma construção como
para uma cidade, tinha um valor proeminente no mundo clássico; a situação, o sítio, es­
tava governado pelo genius /oeil pela divindade local que presidia a tudo o que se de­
senvolvia nesse mesmo lugar. «O conceito de /ocus sempre esteve presente na tratadís­
tica clássica, embora já em PaI/adio e depois em Mi/izio o seu tratamento adquirisse
l

cada vez mais um aspecto de tipo topográfico e funciona!.» (40)


Pode-se verificar que o território preexistente - o lugar - constitui sempre um ele­
mento determinante na criação arquitectónica. Quando se utilizam modelos idênticos
em sítios distintos, a diversidade dos lugares conferirá identidade própria a cada um. O
templo grego repete um tipo arquitectónico, mas de santuário para santuário a diferen­
te situação geográfica faz variar o seu aspecto. Noutros casos é o lugar que, pelo seu
potencial sugestivo, gera a própria· arquitectura.
É frequente, em determinadas metodologias de projecto, o recurso sistemático a
qualquer preexistência como suporte da forma a criar. Recordo a obsessão das pree­
xistências, evidente no discurso de alguns arquitectos do Porto e Lisboa. Recordo ainda
alguém dizer que nada há de mais difícil do que projectar num terreno plano e nu. O
processo criativo utiliza sempre, a preexistência como apoio, e elemento e condiciona­
dor da forma arquitectónica. Por outras palavras, e como nos exemplos apresentados
por Rossi, o sítio é um «génio» determinante e inseparável da arquitectura que o ocupa­
rá - no fundo, é já a génese da arquitectura.
Concluindo, não se pode falar de forma urbana sem lhe associar o suporte geográ­
fico, porque a forma urbana é indissociável do seu sítio e do território.

Os limites da cidade
Actualmente é difícil ou quase impossível determinar os limites espaciais da «cida­
de». A distinção entre cidade e território considera o território como envolvente da su­
perfície terrestre onde o homem exerce a sua acção transformadora, e a cidade como
o meio geográfico e social formado por um conjunto de construções e cujos habitantes
trabalham em maioria no seu interior (41).
A antiga cidade era geralmente pequena (42). A sua forma ligava-se estreitamente a
um sítio e a limites (defensivos, administrativos e de fiscalização) que estabeleciam uma
barreira entre espaço «construído» e não construído (espaço rural).
Com a evolução das técnicas militares e com a industrialização, a cidade transbor­
dou esses perfmetros, diluindo-se a separação entre construído e não construído. Os
consumos de áreas para novos hábitos e necessidades das populações produziram a

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65

sucessiva colonização de espaços livres, tornando-os parte de um todo mais complexo.


Citaria, por exemplo, os espaços livres ou de recreio para o lazer de fim-de-semana,
para práticas desportivas ou de vida ao ar livre. A cidade que antigamente tinha jar­
dins tem hoje também grandes parques, áreas verdes, e de protecção no seu interior e
exterior. As praias da Caparica ou a Serra de Sintra, as suas matas, falésias e zonas
«naturais» fazem parte de Lisboa como cidade-metr6pole e interessam aos seus habi­
tantes, tal como o Parque Eduardo VII ou o parque de Monsanto.
Aforma urbana que antigamente se ligava a um sítio liga-se actualmente a um terri­
tório. Acidade deixa de ter uma forma definida e marcada, evoluindo para um conjun­
to de formas inter-relacionadas entre si e com o território-suporte.
Por outro lado, os meios de transporte - do automóvel ao avião - originam novas
«formas» de crescimento e modos diferentes de compreensão do espaço.
A mobilidade tornou-se uma quarta dimensão que já não pode ser ignorada quer
na leitura quer na composição espacial.
Se antigamente a intervenção do arquitecto se concentrava em limites precisos no
interior de um perímetro urbano, hoje a sua intervenção alargou-se, não só em dimen­
são, mas também no campo da actuação, pela escala dos problemas que tem de en­
frentar. Aconcepção da forma urbana mudou claramente de escala. E, logicamente, a
escala da concepção arquitectural também mudou: do espaço urbano bem delimitado
e bem definido passou a todo o territ6rio como lugar de arquitectura.
A arquitectura terá necessariamente de se orientar para uma concepção da paisá­
gem como conjunto total construído - a paisagem como arquitectura -, e este alargar
do campo de actuação acarreta níveis diferenciados de actuação.

A PAISAGEM COMO OBJECTO ESTÉTICO, A PAISAGEM "COMO ARQUITECTURA


E A ESTÉTICA DA PAISAGEM NATURAL

Um terceiro ponto consiste em considerar a morfologia urbana como uma parte da


morfologia do território, ou seja, considerar a construção de toda a paisagem humani­
zada como acção arquitectural.
Relembro que'a paisagem humanizada e a paisagem natural adquiriram ao longo
dos dois últimos séculos qualidades figurativas através de vários fen6menos culturais e
sociais: pelo valor simbólico ou mágico de certos sítios; pela exaltação iconográfica fei­
ta pelas artes como a pintura, a fotografia e a literatura; e também por reacção à de­
gradação qualitativa e baixo teor estético das urbanizações. Através destes processos,
as paisagens foram sendo carregadas com os atributos da beleza, capazes de provo­
car a emoção estética. Aemoção estética na contemplação da paisagem tõrnou-se um

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2-13. ilho de Moçombique. A regloo,

67

factor cultural. Emoção estética que pode existir de igual modo perante uma paisagem
ou um quadro de Picasso: um pôr do sol, um campo verde, uma aldeia, podem ser per­
cebidos como objectos estéticos de modo semelhante que os objectos manufacturados
ou as formas de arte. Valor que provém também de que a paisagem humanizada, a ci­
dade e o território são fenómenos culturais.
A beleza dos sítios tem justificado o próprio ordenamento do território para a defe­
sa e preservação do ambiente e a sua fruição: miradouros, vias panorâmicas, áreas de
protecção, parques e reservas naturais são exemplos.
A paisagem humanizada e o ambiente arquitectónico são patrimónios colectivos.
Os cidadãos têm direito a viver em ambientes esteticamente qualificados. O direito à
qualidade da paisagem e da arquitectura é um direito social e, noutro sentido, funda­
mento da intervenção do arquitecto.
A defesa da paisagem é uma noção recente que surge justamente da ameaça cre~'
cente sobre a integridade dos sítios que se vão tornando um bem raro, logo precioso, e
quando, a partir do século XX, o uso e exploração do território se sobrepõem a qual­
quer processo harmonioso da sua utilização. A defesa da paisagem significa, implícita
ou explicitamente, o reconhecimento da existência de aspectos figurativos. Por outras
palavras, permite considerar que as operações sobre a paisagem (conservação ou
transformação) são também do domínio arquitectónico-urbanístico (43).
Uma outra ordem de questões prende-se com a construção da própria paisagem,
entendida como arte de jardinaria ou «arquitectura paisagística». O seu ponto de parti­
da é bastante antigo: desde os «jardins suspensos» da Mesopotâmia aos traçados clás­
sicos do fim dos séculos XVII e XVIII que se ultrapassaram as simples noções de jardim
de Versailles a Fontainebleau, aos parques românticos, aos traçados das florestas de
caça, a construção da paisagem processou-se como extensão do meio edificado, pro­
pondo ao domínio arquitectónico novas organizações do território com novos «mate­
riais». No século XVIII, o alargamento da noção de «jardim» a uma vasta paisagem,
alargando as concepções estéticas da arquitectura à grande escala, perfila duas atitu­
des: a concepção naturalista inglesa e a racionalista, geometrizada, cartesiana, fran-'
cesa.
A arte de jardinaria inglesa desenvolve-se a partir da época dos Tudor até atingir o
seu apogeu no sécul.o XVIII, coniugando a arquitectura dos edifícios com o desenho da
Natureza, relacionando a casa senhorial com o verde dos campos exteriores. Arte e
Natureza fundem-se numa síntese. O «horizonte» do jardim alarga-se até incluir toda a
paisagem, auscultando o «espírito do lugar», e respeitando os elementos existentes: a
irregularidade do solo, os prados e os cursos de água, são organizados para criar ima­
gens pictóricas. São estas mesmas paisagens trabalhadas ao «natural» que os pintores
exaltam, reproduzem e inventam. Pelo contrário, a racionalização francesa da paisa­

68

2·14. Montanha de Sainfe Vic/arie - Aix-en-Provence - pintada por Cézanne em 4 quadros


diiferentes

69

gem encontra no traçado a cordel rectilíneo e na geometria os prindpios de organiza­


çõo espacial, estendendo pelo campo ou jardim o modelo dos traçados clássicos urba­
nos.
A origem do «desenho» da Natureza encontra-se na própria arquitectura, como ar­
te de organização do espaço, sem distinção de materiais utilizados: elementos «duros»
ou minerais, como a madeira, a pedra e o betão, ou elementos vegetais, como plantas
e órvores. Quaisquer destes são igualmente elementos morfológicos porque são parte
de uma estrutura e definem um espaço e uma forma.
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A racionalização dos campos disciplinares e a complexidade dos conhecimentos I;
contribuíram para o divisão entre o arquitectura urbana e o arquitectura da paisagem
- esta também entendida como um alargar do campo do orte de jardinaria. r-"
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FORMA URBANA E FORMA DO TERRITÓRIO

Pelo que ficou exposto, e alargando a noção de dorma urbana» a todo o território,
poder-se-á utilizar a noção de FORMA DO TERRITÓRIO (44).
O campo de estudo do morfologia será então a totalidade do território como lugar
de transformações produzidos pelo homem, ou, por outros palavras, todo o território
como lugar de intervenção da arquitectura.
Com efeito, a organização formal do território não se faz exclusivamente pela or­
ganização de actividades humanas: situa-se também a dimensões e escalos que ultra­
passam a área ocupada por edificações utilizando outros elementos morfológicos.
Assim, quando o Plano da Área Metropolitana de Marselh-a propunha a salvaguar­
da das montanhas de Sainte Victorie e da Étoíle/ ou quando o mesmo plano desenhava
um conjunto de «cidades novas» em redor da lagoa de Berre e distribuía os eixos de
crescimento de Marselha desenvolvia uma acção formal-arquitectónica cujas escala e
dimensão são territoriais.
Os interesses, ou melhor, o «território» da arquitectura alargou de escala, dimensão
e conteúdo e, naturalmente, a «arte de construir»viu constituirem-se disciplinas comple­
mentares ou específicas como a "paisagística».
Adoptando estes pontos de vista, poder-se-á falar indistintamente de produção
morfológica do cidade ou de produção morfológica do território, de morfologia urba­
na ou de morfologia do território. Os seus conteúdos são idênticos. A metodologia de
trabalho (arquitectónico), também.

70

2-15, Tavira - o território orgcnizado para díversas funções e activídades humanas: a cidade
e os servíços; a pesca e os portos; o campo e a agricuttura; as sa~na5 e a· indústria do sal;
as praias e o turismo

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2·16. Escolas sectoriais, urbanos e territoriais - Tavira. 1. Um espaco urbano: o largo ou o


praca do Alagoa. 2. O bairro/a escolo urbano. 3. A cidadelo território/a escola territorial

72

2.4 DIMENSÕES ESPACIAIS NA MORFOLOGIA URBANA

Avanço agora duas hipóteses relacionadas com a dimensão da forma urbana.

• A noção de FORMA aplica-se a conjuntos urbanos de diversas grandezas e comple­


xidade. Fala-se de «forma física» para uma praça, uma rua, um bairro, uma cidade e
até para uma área metropolitana. Não existe um limite específico, mas sem dúvida a
dimensão e a escala estão sempre implícitas nas formas urbanas.
• O espaço humanizado público (45) constitui um ambiente global que só como tal pode
ser compreendido. O homem vive numa continuidade ambiental, e as formas urba­
nas ou territoriais são constituídas pela composição de diferentes unidades espaciais
e elementos morfológicos. Na forma de uma rua ou de uma praça, podem­
-se distinguir as particularidades dos edifícios que as delimitam e as estruturam; no
forma de um bairro, podem-se distinguir as ruas e praças que o compõem e nas quais
este se subdivide. E assim por diante.

Estas duas hipóteses relacionam-se quer com a análise das formas construídas quer
com as metodologias da sua concepção.
A compreensão e concepção das formas urbanas ou do território coloca-se a dife­
rentes níveis, diferenciados pelas unidades de leitura e de concepção.
Nesta ordem de ideias, pode-se recortar o espaço em partes identificáveis. O crité­
rio para esta subdivisão decorrerá quer do modo como se processa a leitura quer do
modo como o espaço é produzido.
A Baixa de Lisboa é composta por uma malha de ruas ortogonais que ligam praças
nos extremos. Mas a Baixa é identificável como um todo e subdivisível em ruas, praças,
quarteirões e edifícios.
No vegetal em branco sobre o estirador, o arquitecto tenderá a conceber o espaço
quer a partir das unidades estruturantes quer por adição de elementos.
Assim, pode-se estabelecer uma classificação das escalas ou dimensões da forma
urbana.

DIMENSÃO SECTORIAL - A ESCALA DA RUA

Será a mais pequena unidade, ou porção de espaço urbano, com forma própria.
Ébem ilustrada por uma rua ou uma praça. Para a sua apreensão quase nem será ne­
cessário o movimento ou basta o movimento em circuito fechado. Num ponto, o obser­

73

vador consegue abarcar a unidade espacial no seu conjunto. Os estudos de Gordon


Cullen em Townscape ,~), ou de Ivor de Wolff, em /ta/ian Townscape (47), permitem-nos
uma ideia sistemática dos elementos morfológicos e das características desta dimensão:
fachadas e os seus pormenores construtivos, mobiliário urbano, pavimentos, cores, tex­
turas, letreiros, árvores, monumentos isolados - uma infinidade de elementos que, or­
ganizados entre si, definem a forma urbana. Entre estes, sem dúvida que os edifícios e
a relação que estabelecem com o espaço por eles definido ocupam um lugar proemi­
nente, a par também do tratamento do solo e da sua superfrcie.

DIMENSÃO URBANA - A ESCALA DO BAIRRO

Éa partir desta dimensão, ou escala, que existe verdadeiramente a área urbana, a


cidade ou parte dela. Pressupõe uma estrutura de ruas, praças ou formas de escalas in­
feriores. Corresponde numa cidade aos bairros, às partes homogéneas identificáveis, e
pode englobar a totalidade da vila, aldeia, ou da própria cidade. Aesta dimensão, os
elementos morfológicos terão de ser identificados com as formas a escala inferior e a
análise da forma necessita do movimento e de vários percursos.

DIMENSÃO TERRITORIAL - A ESCALA DA CIDADE

Nesta dimensão, a forma estrutura-se através da articulação de diferentes formas à


dimensão urbana, diferentes bairros ligados entre si. Aforma das cidades define-se pe­
la distribuição dos seus elementos primários ou estruturantes: o macrossistema de ar­
ruamentos e os bairros, as zonas habitacionais, centrais ou produtivas, que se articu­
lam entre si e com o suporte geográfico.
Éevidente a importância do movimento no conhecimento da forma da cidade, mo­
vimento mais rápido que o necessário nas dimensões anteriores. Acidentalmente, al­
guns sítios permitem uma visão global da cidade: a ponte sobre o Tejo, em Lisboa, por
exemplo. Quando tal sucede trata-se de um ponto de visão excepcional (481.
Aestrutura global das cidades pode-se assimilar a alguns tipos reconhecíveis: cida­
des lineares, radioçoncêntricas, em malha ortogonal, radiais, etc.
Estes tipos correspondem às macrorganizações e são reconhecíveis em quase todos
os assentamentos urbanos. Correspondem também aos elementos operacionais e distri­
butivos do planeamento urbanístico a esta escala.
Adisseminação da urbanização no território fez surgir outros tipos de que a área me­
tropolitana e a conurbação são exemplos.
O planeamento tem contribuído com outras tipologias. O Plano da Grande Lon­

74

dres, de P. Abercombrie, em 1944, avançou com um tipo de macrorganização que fez


escola e foi posteriormente aplicado ao planeamento das cidades: o núcleo central e o
anel verde green belf, as precinfas e, finalmente, as cidades novas que envolviam o
green belf a distâncias variáveis. Os esquemas de Howard, sistematizados na teoria
das garden cifies, são outro exemplo. Acidade linear de Milliutyin também. Qualquer
destes esquemas corresponde à necessidade de ordenar racionalmente vastos territó­
rios urbanos entendidos nos seus conteúdos funcionais, urbanísticos e também cultu­
rOls.

***

A classificação intentada apoia-se em classificações anteriormente apontadas por


Tricart e retomadas por Rossi. Tricart, no seu Curso de Geografia Humana, define três
escalas principais na paisagem urbana:

• .A escala da rua ou «parte da rua» (bout de rue), que corresponde ao espaço abran­
gido por um observador num ponto qualquer da cidade.
• A escala de bairro, entendida como um conjunto de quarteirões de edifícios, ruas,
praças, etc.
• Aescala da cidade inteira, entendida como uma assemblage de bairros (49).

Rossi encontra também três escalas, reequacionando a divisão de Tricart:


• A escala de rua;
• Aescala de bairro, formada por um conjunto de quarteirões com caracterhticas co­
muns.
• A escala da cidade, considerada como um conjunto de bairros.

Para Rossi, os elementos fundamentais da paisagem urbana à escala da rua são os


imóveis de habitação, entendendo o imóvel «como uma parcela cadastral em que a
principal ocupação do solo é constituída por construção» (50).
Rossi segue a classificação de Tricart e introduz também contribuições estudadas
por Marcel Poete e Henri Lavedan. A perspectiva destes dois autores, essencialmente
analítica e interpretativa, deixa em aberto a correlação com o processo e método da
concepção arquitectónica e do desenho urbano. As categorias estabelecidas permitem
sistematizar o conhecimento do espaço urbano, mas serão tanto mais válidas quanto
puderem corresponder também às etapas, metodologias e processos operativos de
concepção arquitectónico-urbanística.

75
Parto do princípio de que a disciplina arquitectónica é antes do mais criativa e pro~
dutiva. A actividade analítica será um instrumento de suporte, porque a finalidade da
disciplina arquitectónico-urbanística não é a análise, mas a produção do espaço. Nesta
fronteira se situa a separação com a geografia, que tem o mesmo objectivo de estudo,
mas ópticas diferentes, essas, sim, fundamentalmente analíticas.
A leitura do espaço faz-se ao nível directo da percepção dos seus elementos morfo­
lógicos, organizados em sequências. Eatravés da sucessão .e estruturação de formas
de dimensões sectoriais que compreendemos as formas à dimensão urbana, e pela arti­
culação destas que passamos à dimensão territorial. A forma de um bairro será com­
posta de diferentes unidades espaciais (ruas, praças, pátios, jardins, etc.). Ea forma de
uma cidade será composta de elementos cuja escala é diferente: bairros, vias, nós viá­
rios, parques, etc. Adecomposição da forma é um processo que se relaciona quer com
a análise quer com a concepção do espaço. O desenho urbano - por necessidades dG
estrutura mental e operativa humana organiza a forma pela adição e composição dos
elementos morfológicos, ou formas de escalas inferiores.
A correspondência entre as escalas da forma urbana e a metodologia da concep­
ção urbanística é extensível aos escalões de planeamento ou tipos de planos.
A metodologia urbanística hierarquiza os planos, diferenciando-os quer pela natu­
reza dos problemas quer pela dimensão ou escala de intervenção. A prática portugue­
sa consubstancia até agora três grandes grupos de intervenções: o Plano-Director Mu­
nicipal, de acção territorial; o Plano de Urbanização, de acção essencialmente urbana
(a totalidade da cidade e a sua área de expansão); e o Plano de Pormenor, incidindo
sobre uma parte da cidade ou área urbana (5 1l.
Estes tipos de planos conservam, pela sua escala de intervenção, correlação estreita
com as divisões apontadas.
As disciplinas espaciais utilizam o método de aproximações sucessivas, começando
por conceber o objecto na sua generalidade, descendo em seguida por etapas até aos
diversos pormenores. A possibilidade de processos de feed-back (retorno) e de traba­
lho simultâneo em várias escalas permite, em qualquer momento, repensar o trabalho,
enriquecendo-o. O processo de operações encadeadas vai saturando o trabalho com
pormenores, opções e intenções. No vegetal em branco, aparecem primeiro as gran­
des manchas volum~tricas, distributivas e figurativas, finalizando-se pelos desenhos de
um pilar ou de uma janela. Mas estes podem também ser registados e pensados em si­
multâneo, como reservas para o momento em que interferem na composição. A cada
escala de intervenção correspondem os seus próprios valores espaciais. Em cada mu­
dança de escala, o produto enriquece-se pela introdução de novos valores e elementos
morfológicos cada vez mais próximos da realidade.
Ao retomar o nível seguinte, as decisões tomadas anteriormente deverão poder ser

76

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'}·17. Organização do morfologia do território: O Plano do Grande Londres - 1944, de Sir


Patrick Abercrombie

77

reutilizadas, deixando, apesar de tudo, margens de liberdade a cada mudança de es­


cala. E.lCiste assim uma enorme interdependência entre as diversas dimensões em que se
opera sobre o território: opções e decisões tomadas a um escalão superior condicio­
nam os escalões inferiores e vice-versa. E o seu encadeamento é fundamental, se se
pretende uma coerência formal e estética no espaço construído. Por exemplo, nas op­
ções de localização de uma órea urbana numa encosta ou em terreno plano, são ime­
diatamente excluídos certos traçados e malhas urbanas, jogos de volumes e formas.
Numa encosta, as «vistas» poderão ser completamente ocultas e inexistentes, obstruí­
das pelas construções ou, pelo contrário, serem elementos do espaço urbano, se forem
voluntariamente procuradas.
. Estas questõ.es são complexas, porque, se no escalão do desenho urbano é corrente
e «padfica» a existência de preocupações formais, já no planeamento regional, se tor­
na mais difícil explicitar as preocupações estéticas. Na leitura ou intervenção nume
área metropolitana, não interessará saber quais os pavimentos, ou a tipologia de por­
tas e janelas. O que contará a esta escala será antes a organização dos grandes ele­
mentos estruturantes: grandes eixos viários e perímetros urbanos, zonas arborizadas
ou verdes, etc. A este escalão, existe um vasto campo de pesquisa e investigação sobre
o modo como introduzir as preocupações morfológicas, estéticas e arquitectónicas sem
cair em preocupações meramente visuais, e de modo a tornar operativo o encadea­
mento com os escalões inferiores do planeamento.
Em resumo e finalizando, diria que a classificação enunciada pretendeu clarificar
a leitura do território, articulando-a com os diferentes níveis de produção do espaço.
Esta correspondência é extremamente importante. Por um lado, permite a com­
preensão do território em cada nível de planeamento, aí explicitando as variáveis ou
atributos de carácter formal; por outro, permite introduzir no planeamento urbanístico
preocupações morfológicas que geralmente se diluem em métodos que relegam as
preocupações arquitectónicas para os últimos níveis da produção espacial, tantas ve­
.zes pela falta de instrumentos operativos que permitam tratar as questões formais em
qualquer escalão.

78

2.5 os ELEMENTOS MORFOLÓGICOS DO ESPAÇO


URBANO

A identificação de elementos morfológicos pressupõe conhecer quais as partes


da forma e o modo como se estruturam nas diferentes escalas identificadas.
Sendo a leitura e composição urbanas essencialmente arquitectónicas, podemos
aplicar ao espaço urbano os mesmo métodos interpretativos da arquitectura.
Num edifício, os elementos morfológicos são também elementos construtivos e
espaciais. Nas épocas clássicas, do Renascimento ao Barroco, podem-se identificar
as colunas, o frontão, o entablamento, a cornija, o soco e tantos outros. Na arqui­
tectura «moderna», tais elementos não existem, mas existem outros: o pilar, a viga,
a pala de betão e por aí fora. São elementos diferentes e, por serem diferentes e pe­
lo modo como se organizam, diferenciam a arquitectura dessas épocas.
Janelas e escadas e outros elementos sempre existiram e sempre desempenha­
ram idênticas funções: iluminação interior ou união entre níveis diferentes. Tiveram
dimensões e formas diferentes, posicionamentos diversos, intenções estéticas distin­
tas: umas vezes tratados como simples elementos funcionais e discretamente inseri­
dos no edifício, outras tratados como elementos estéticos, marcantes, exacerbados,
como a janela do Convento de Cristo, em Tomar. Estes elementos são, à partida e
em si mesmos, exigências funcionais e construtivas. O modo como se posicionam e
se estruturam nos edifícios tem a ver com essas exigências, mas depende das inten­
ções de comunicação estética ou daquilo a que se convencionou chamar a «lingua­
gem arquitectónica». Éevidente que, ao dizer isto, aceito os contributos da semiolo­
gia arquitectónica, na medida em que a codificação dos elementos arquitectónicos
e a analogia com a linguagem é um contributo teórico interessante (52).
Os elementos mais génericos, como as paredes, as coberturas, as janelas, os
vãos, as portas, as escadas, as rampas e tantos outros, são relativamente constan­
tes na arquitectura (como, no sentido m.ais geral, são relativamente constantes as
palavras na linguagem ao longo dos tempos). As suas características e aspecto ex­
terior, o modo co'mo se inter-relacionam num edifício é que variam de época para
época ou de autor para autor e têm a ver com uma linguagem, com a estética e a
comunicação e com a organização do próprio espaço.
Em toda a arquitectura ocidental, podem-se identificar tais elementos: são aque­
las partes mínimas reconhecíveis nos edifícios com uma função construtiva ou pro­
gramática, uma finalidade estética e significante.

79
Recorrendo a analogias estruturalistas da semiologia e com alguma prudência, po­
deria comparar a linguagem arquitectónica e os elementos morfológicos dos edifkios
com a linguagem literária (53), na qual existem o texto e as palavras. Estas articulam-se e
posicionam-se para formar frases e ideias. Para transmitir uma ideia num texto, existem
várias possibilidades linguísticas, literárias, de estilo e de forma, tal como o mesmo edi­
fício ou programa pode ser organizado e construído com formas e «linguagens» arqui­
tectónicas diversas.
Pode-se também verificar que, sendo os elementos morfológicos relativamente
constantes' na arquitectura, é através do modo como se estruturam e se organizam que
provém a comunicação estética do objecto arquitectónico.
Esta constatação é também extensiva ao espaço urbano. Na cidade, o sentido figu­
rativo, como obra de arte colectiva, provém dos objectos - edifícios (ou construções)
- e da sua articulação com o espaço por eles definido.
O que disse sobre os edifícios é extrapolável para o espaço urbano. Todavia, desde
logo, existe a necessidade de estabelecer uma «escala de leitura», ou seja, estabelecer
quais os elementos mínimos na forma urbana!
«Sub-repticiamente» já o havia feito, quando, ao falar de portas, não mencionei as
dobradiças, as fechaduras e batentes, ou, ao falar de escadas, não referi o degrau, o
cobertor, o espelho, ou, ao falar do espaço urbano, não falei dos postes de iluminação
ou dos fios eléctricos, que também são importantes, mas certamente já em outro nível
de leitura.

o SOLO - O PAVIMENTO

Éa partir do território existente e da sua topografia que se desenha ou constrói a ci­


dade, e começaria no «chão que se pisa» a identificar os elementos morfológicos do es­
paço urbano. É a topografia e modelação do terreno, mas são também os revestimen­
tos e pavimentos, os degraus e passeios empedrados, os lancis, as faixas asfaltadas, os
carris dos eléctricos e tantos outros aspectos.
-'
O solo-pavimento é um elemento de grande importância no espaço urbano, mas
elemento também de grande fragilidade e sujeito a contínuas mudanças. Basta relem­
brar as evoluções dqs pavimentos, ao longo dos tempos. Mas, em contrapartida, re­
lembraria a enorme diferença de aspecto e comodidade que o correcto tratamento do
solo e a pavimentação conferem à cidade.
Registo os conflitos dos interesses que disputam o solo público - o tráfego rodoviá­
rio e o uso pedonal, pelo menos, e a evolução negativa deste conflito em cidades como
Lisboa, em que de ano para o ano o solo disponível para o peão vai inexoravelmente
diminuindo.

ao
UlRTE f.':>D.UEM.lTf(J) Of TlUHDD DE íf.'JúURO

2-18. As coberturas dos edifícios no formo do cidade: os "Telhados de tesouro" em Tavira.


Em baixo à direito, um dos mais interessantes conjuntos no Ruo Almirante Cândido dos
Reis, junto à Ermida de N. Sr" do Livramento. Destruído em Junho 2000.

81
2.19. A formo urbano determinado pelo exasperação dos elementos morfológicos: os edifí·
cios. A especulação sobre o solo, e o dinheiro, determinam o formo do cidade: New York.
Vistas axonométricos do porte meridional de M(ll1holton. Des. em 1980

82
2-20. O edifício como elemento do formo urbano. O conjunto "Amoreiras» - Arq. o Tomás Ta­
veira

83

OS EDIFíCIOS - O ELEMENTO MíNIMO

Para definir qual o mínimo elemento morfológico identificável na cidade, há que es­
tab~lecer uma hierarquia de valores e fazer uma selecção entre as colecções de objec­
tos que povoam o espaço urbano.
Em primeiró lugar, há que mencionar os objectos «parasitários», (54) tão profusa­
mente ilustrados nas cidades capitalistas: néons, anúncios, escaparates, montras, etc.,
sucedem-se em profusão, com variações que alteram a imagem da cidade. Aoutro es­
calão, o mobiliário urbano: o banco, a bica, o quiosque e ainda a árvore, o canteiro ou
as plantas caracterizam a imagem do espaço urbano.
Estas colecções de objectos são, «elementos móveis», afectando diferentemente a
forma da cidade. Distinguiria, no entanto, a árvore, pela sua importância e papel qua­
se idênticos aos dos edifícios. A esta questão voltarei mais tarde.
Éatravés dos edifícios que se constitui o espaço urbano e se organizam os diferentes
espaços identificáveis e com «forma própria»: a rua, a praça, o beco, a avenida ou ou­
tros espaços mais complexos e historicamente determinados como as invenções dos ur­
banistas ingleses do século XVIII: crescents, squares, circus, etc., ou, de outro modo, se
identificam os espaços urbanos modernos.
A Rue de Rivoli ou a Praça do Comércio seriam bem diferentes se os seus edifícios
não tivessem as arcadas e expressão arquitectónica que as caracterizam.
Os «telhados de tesouro», em Tavira, sendo apenas partes dos edifícios, contam de
modo determinante na forma da cidade.
As varandas de «pato bravo» (com balanços de cerca de 1,50 metros) constituem
particularidades agressivas em cidades antigas. Romperam a lógica do espaço urbancI,
constituída por edifícios de fachada plana ou com ligeiras saliências, destruindo os en­
fiamentos visuais de ruas e perspectivas. Todos estes elementos são determinantes I"a
forma do espaço urbano, embora ao tratar de certas questões os tenhade secundari­
zar. É uma necessidade interpretativa, como quando se se'micerram os olhos para me·
Ihor captar os traços essenciais do objecto. ~
Não seria possível continuar a abordar estCl questão sem referir os estudos de
Aymonino, Rossi e outros, da Faculdade de Arquitectura de Veneza, sobre as relações
entre a «morfologia urbana e a tipologia edificada» (55). Nesses trabalhos, os elementos
primários da forma' urbana são identificados com os tipos construtivos. Os edifícios
agrupam-se em diferentes tipos, decorrentes da sua função e forma, estabelecendo re­
lações biunívocas e dialécticas com as formas urbanas.
Aquestão dos tipos edificados, tem sido abordada por vários autores: desde Palia­
dio, em que os tipos se identificam com as vil/as residenciais, às propostas classificativas
de Quatremere de Quincy ou de Durand. Para este último, «o tipo é um esquema que

84

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•••••• 2·21. Variações arquitectónicas da utilizaçãa do tipo edificado. J. N. L. DURAND. Emem·
b/e d'edifices resu/lonl de diverses combinoisons horizonlo/es el verlico/es, d'oprés /e corre
divise en deux, en Iro is, en quolre, el porches ouverls por des enlrecolonnemenls. Segundo
o Précis des Leçom d'Archileclure Donnes ci /'Ecole Polylechnique. Editado em 1813

85
respeita as necessidades funcionais e permite elaborar um projecto», (56) distinguindo-se
do «modelo», que será a representação de uma outra realidade.
Das relações tipologia-morfologia, ressalta que o espaço urbano depende dos tipos
edificados e do modo como estes se agrupam.
A tipologia edificada determina a forma urbana, e a forma urbana é condicionado­
ra da tipologia edificada, numa relação dialéctica. A evolução da arquitectura e do ur­
banismo no período entre as duas guerras (1918-1939) revela inúmeros exemplos de
procuras tipológicas no habitat residencial: no quarteirão nos bairros holandeses, nas
Siedlungen sociais-democráticas alemãs, ou nas Hoff austríacas, e até exemplos mais
extremos, como a Unité d'Habitation, de Le Corbusier, é o tipo edificado que vai origi­
nar e detrminar as formas urbanàs.
Esta interdependência é um dos campos mais sólidos em que se colocam as relações
entre a cidade e a arquitectura. Pode ser observada ao longo da História, onde a for
ma urbana é resultado, produto, e simultaneamente geradora da tipologia edificada,
numa relação eminentemente dialéctica entre cidade e arquitectura, entre forma urba­
na e edifícios.

o LOTE - A PARCELA FUNDIÁRIA

o edifício não pode ser desligado do lote ou superfície de solo que ocupa. O lote
não é apenas uma porção cadastral: é também a génese e fundamento do edificado.
Não é sem razão que, na gíria do construtor, as expressões «lote» e «loteamento» subs­
tituem as expressões «edifício» e «urbanização». O lote é um princípio essencial da rela­
ção dos edifícios com o terreno. A urbanização implica parcelamento, quer subdividin­
do os parcelamentos rurais quer impondo nova divisão cadastral.
Desde as mais antigas cidades até ao período moderno, a edificação urbana foi in­
terdependente da divisão cadastral. Construir uma cidade foi também separar o domí­
nio público do domínio privado.
A forma do lote é condicionante da forma do edHício e, consequentemente, da for­
ma da cidade. Até aos anos vinte-trinta, o lote foi o lugar do edifício e um meio e instru­
mento de planificação e separação entre o espaço público e o privado. A colectiviza­
ção do espaço urbano veio conferir ao lote o estrito papel de assento das edificações,
retirando-lhe uma das suas principais características. Na unidade de habitação de
Le Corbusier, o lote deixa, por assim dizer, de existir, uma vez que o edifício não ocupa
o solo definido pela sua projecção vertical. Assenta em pilares que saem de um terreno
público, como público é todo o espaço circundante.

86

2-22. loteamentos c/andestinos no concelho de Almada. Planto Cadastral, I. G. c., 1977,


e Levantamento Urbanfstica do Plano do Trafaria - Vila Novo - Costa do Caparica, de
Carlos Duarte·Jasé Lamas

87
Esta é, de resto, uma importante ruptura provocada pela cidade moderna, num
quadro de relações diferentes dos elementos morfológicos com o espaço urbano.
Os estudos do Laboratório de Urbanismo de Barcelona sistematizam três etapas no
crescimento urbano: o Parcelamento (crescimento), a Urbanização (infra-estruturação)
e a Edificação (construção de edifícios), e, verificam que nem sempre as três existem ou
se encadeiam igualmente. Mas, na expansão urbana da cidade tradicional o parcela­
mento precede a urbanização, enquanto no conjunto moderno a ênfase é dada na ur­
banização e edificação, já que o loteamento não existe, embora se possa sempre iden­
tificar como loté o terreno debaixo do edifício (57).

o QUARTEIRÃO
A definição do quarteirão tanto pode basear-se na sua forma construída como no
processo de traçado e divisão fundiária.
O quarteirão é um contínuo de edifícios agrupados entre si em anel, ou sistema fe­
chado e separado dos demais; é o espaço delimitado pelo cruzamento de três ou mais
vias e subdivisível em parcelas de cadastro (lotes) para construção de edifícios. É tam­
bém um modelo de distribuição de terra por proprietários fundiários. Como é também
o modo de agrupar edifícios no espaço delimitado pelo cruzamento de traçados.
O sistema do quarteirão é muito antigo. Éum processo geométrico elementar, e co­
mo tal começou a sua existência. A partir desse processo elementar, foi adquirindo es­
tatuto na produção da cidade, como unidade morfológica. Agrupa subunidades, mas
pode também constituir a parte mínima identificável na estrutura urbana.
Em muitas situações, o quarteirão subdivide-se num conjunto de edifícios e é delimi­
tado por quatro vias. Os edifícios delimitados pelo lote constituem partes do quartei­
rão, partes essas por vezes diferenciadas em altura, em profundidade, em programa.
Noutros casos, como na Baixa Pombalina, o quarteirão confunde-se com um grande
edifício ou grande parcela. No Plano do Martim Moniz, (58) as unidades-base da forma
urbana são quarteirões identificados com lotes ou os próprios edifícios, fornecendo uni­
dades de edificação operativas no parcelamento do solo em «direito de superfície».
Todavia, se a marçação do lote se identifica com a delimitação do edifício, a marca­
ção do quarteirão pressupõe uma hierarquia superior, identificando-se com a definição
do espaço urbano. O quarteirão não é autónomo dos restantes elementos do espaço
urbano - os traçados, ou as vias, os espaços públicos, os lotes e os edifícios. É simulta­
neamente o resultado de regras geométricas de divisão fundiária do solo e de ordena­
mento do espaço urbano, e um instrumento operativo de produção da cidade tradicio­
nal. Esta dualidade confere-lhe um lugar determinante na cidade tradicional como

88

22 PISO

2t PISO ,. PISO

11 PISO

CORTE 1~ PISO

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O I I L lO

ALÇAOO AlÇAOO

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22 PISO

CASA URBANA MEDIEVAL CASA URBANA PRE-RENASCENTISTA CASA URBANA CLASSICA


Corresponde 10 mede lo de habitação EvoluCÃo tipoléjica da anterior, mantém
urb~na anterior ao Jéc. XV, tipica como ela a fachada eatreita, com porta eo modelo de casa de 2 piaos. chall4da localMnte de
na are. do ca.telo (antls das e chaminé de escuta, mas apresenta um -sobrado·. O pilo ~uperior (corresponde ao ·piano mobile-)
demolições), na Mouraria (onde existem segundo piso a que corresponde jane la é reservado iS habitação, enquanto o lo piso sedeatio. a

~lnda variados _exemploi) e na primeira na fachada. 'Jsas utilitário. como armazéns, cozinha, lojas, etc ..
area de expanaao extraBlUros, ao 10n90 O primeiro piso ê abobadado e acede-se A organizaçio funcional define-se por uC4 sequência de
da Rua de AIouche. Normalmente ao andar superior por escada. espaços rectangulares ligados entre si lem hierarquia
apresenta uma façhada e8treí.u (4-6m). :1ormalmente de cotovelo. aparente.
com porta e chaminé de escuta (às Ao distribuição é semelhante ã do caso
O lo piso é abobadado nos espaços maiore. definido. por
~eus mes,!"o ~e~ chaJllinél. O espaço anterior a, em certos C4S06, para
lnterior • dlVldido em dois obter espaçolS maiorps recorre-se a parede. meltras e o ace••o ao andar superior faz-se também
compartimento. no piso, que arcos estruturais. por escada como no tipo precedente.
correspondem i cozinha/sala e quarto. • Na fachada são 1ntrodudd46 molduras A cOClpollçio da fachada respeita o l\Odelo clássico e a
lonas de estar e dom!r. Quando se de vãos de desenho clássico e a cobertura é de duas águas paralelas ã rua.
t~rna necessário mais de um. quarto, cobertura é de dUAS áquas.
no feitas divisões por tabiques no Além do. elemento. já referenciados, caracterizam ainda a
ex! stente. As vezes é ainda morfologia tradícional o uso de lOCO e cunhais, ou
pilastras. definindo a frente construída; a utilizaçio de
acrescentado um meio piso. A cobertura
e de uma água (às vezes c1uas). Quase Janelas de peito na lo piso, alinhadas COP\. sacadas no 20
sempre existe um pequeno l09radouro piso e Mantendo um ritmo horizontal constante, eRl que a
nas traseiras. dimensio do vão é sempre Inferior ao pano de parede que o
separa do s~quinte.

2-23. Tipologias construtivos, segundo o anólise do Plano do Centro Histórico de Mouro (arq.OI
C. Duarte e José Lamas)

89

i)

OCUPAçAO DO LOTE, ORGANIZAÇAO DA

FACHADA

A forma de ocupação do lote

prooede, geralmente, de acordo 001


....J

~
o prino!pio de aproveitar toda a

extensão da frente do lote, que

corresponde à faohada, e progredil

mt!JU1 para o interior do lote ocupando

Ulll8 uior ou menor Ir.. confOl'llle I

neoessidades, salvaguardando sempl

alquma área para logradouro.

" :::! ii A organização da faohada fixa-se

. :::,,:1;· num modelo caraoterlstioo de

Tavira, Um ou doil pilOS, àl

"liUi' vezes três, cobertos por telhados

de tesouro ou de 4 áquas, 1111 que e

19 piso, quando existem outros, é

utilitário (comércio, armazém,

etc.l, e os reltantel de habitaçãe

Assim, os vãos são de porta e jane

no 19 piso, e no segundo, de sacaI

na generalidade dos casos.

Ao longo do tempo assinalam-se dI

tendênciasl 1. a conformação mais

regular do lote e da área ocupaaa

2. a multiplicação do núm~o de vi

que se tornam mais estreitos e

diminuem o espaço entre 11. E, ao

2. 1'1~o~ mesmo tempo duas parmanincias: 1.

......... " .. DO'> nl. 4 Á6LJ4." fachada que conforma o elpaço da

rua, e 2. o logradouro que e

definido no interior do lote, peli

área edificada.

': ,:":L"
',III: <',III, ,

o DE REABILlTAç)o E SALV~ DO· CENTRO HISTÓRICO DE TAV1RA IIIS


9 sintese ,evolução
tipologlca
aglomerado e do edificado

2-24. Análise da ocupação do lote e organização das fachadas e volumetrias no centro


histórico da Tavira. Segundo o plano de Carlos Duarte· José Lamas

90

ti :

VOLUMETRIA
I - Pequeno volume, de 1 piso, ou
articulado com OUtJ:OI, de 1
ou mais ptsos. ?rente estreita
• qrande profundidade. Cobertu
ras com telhados de 2 áquas (I)
ou de tesouro (2) ! Terraço(3l.
II - Viria. volumes' articulados,
1.8 2 pisos, cobertos oom
telhados de tesouro e terraço~
(4, 5, 6)

III - Grande. volumes, de 2 pisos,


telhados de 4 ãguas ,üintcos
ou mdlt1plos),' e um terraço
anexo (7, 8, 9)
10. Grande volume, muito
profundo, c6lll telhado de
2 áquas perpendicular ã
fachada, caracterlstico
de armazéns e oficinas.
Note-se o desenno da
platibanda.

o DE REABILITAÇÃO E SALV~ DD CENTRO HISTÓRICO DE TAVIRA 1m 9 síntese, evolu~io t1pologlca do


T~.JaIE I.AHOS. DIUllllS O! l'lAH!MeNIl E <OIIOWlI:1W.1JlIl OIIIeeç.i.O!lERA' e<lUI'll4ENIO REGIONAl E 1Il!l'lCl a lomerado e do edificado

2-25. Anólise da volumetria das construções e ocupação do lote. Segundo Plano de Centro
Histórico de Tavira

91
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2-27. Recomendações sobre a organização dos qu~rteirães e loteamentos. Segunda Ed. Joyant
- Traité d'Urbanisme, Paris, 1929. Parcelamento na renovaçõo dos quarteirões da zona da Bal·
sa em Marselha, segundo o Plano Hebrard e Ramasso (1906), mastrando os alinhamentos, volu·
mes e redistribuição fundiária.

93

elemento morfológico autónomo ou elemento físico, mínimo à escala do bairro (do


mesmo modo que ao escalão inferior se identificou o edifício).
Ao longo da sua evolução, o quarteirão foi sedimentando modos de utilização so­
cial que culminaram nas complexas estruturas da cidade europeia dos finais do sécu­
lo XIX, de que são exemplos o quarteirão de Haussmann, em Paris, de Cerdá, em Bar­
celona, ou de Ressano Garcia, em Lisboa. Nessas estruturas, o quarteirão organiza
funções habitacionais, comerciais, de serviços e trabalho - artesanato. e pequenas
indústrias em função de práticas sociais de utilização do espaço público: a rua da fren­
te, a fachada principal, a entrada principali espaço semicolectivo no logradouro inte­
rior, com a entrada de serviço nas traseiras; espaço privado no interior do prédio e dos
alojamentos.
O quarteirão agrega e organiza também os outros elementos da estrutura urbana:
o lote e o edifício, o traçado e a rua, e as relações que estabelecem com os espaços pú­
blicos, semipúblicos e privados.
O quarteirão foi (e é) um instrumento de trabalho urbanístico na produção da cida­
de tradicional, permitindo a localização e definição da arquitectura e relacionando-a
com estrutura urbana. Foi um elemento morfológico sempre presente nas cidades até
ao período moderno, constituindo elemento da estética urbana.
O Movimento Moderno imprimiu ao quarteirão um processo de transformações su­
cessivas que culminaram no seu abandono. num quadro mais vasto de profundas modi­
ficações na maneira de pensar e organizar a cidade.
O quarteirão durou até ao pós-guerra, altura em que cedeu o lugar a outras formas
urbanas, para voltar à cena da composição urbanística nos últimos dez anos.
Por isso, reservo para mais tarde outras referências ao lugar e papel desempenha­
do pelo quarteirão na estrutura urbana.

A FACHADA, O PLANO MARGINAL

Na cidade tradicional, a relação do edifício com o espaço urbano vai processar-se


pela fachada. Entalado entre duas outras empenas, cada edifício dispõe apenas da fa­
chada para a comunicação com o espaço urbano.
A importância da fachada decorre da posição hierarquizada que o lote ocupa no
quarteirão. E a situação descrita é a situação corrente das tipologias habitacionais,
com excepções evidentes quando o edifício se situa no meio de um quarteirão ou do lo­
te mais vasto que ocupa.
São as fachadas que vão exprimir as características distributivas (programas, fun­
ções, organização), o tipo edificado, as características e linguagem arquitectónica (o

94

SÉc. XVI EANTERIORES SÉc. XVII E 10 METADE DO SÉC. XVIII

~
20 METADE DO SÉc. XVIII 10 METADE DO SÉc. XIX ~
~
~

2 3 4
20 METADE DO SÉc. XIX

~
T::I' ~
1. Gótico
~
.-/

o
2. Manuelino
3. Início Renascimento
4.,
5. Séculos XVI e XVII
6.
7. Barroco· séc. XVIII
7 --- 8 8. Séc. XIX
_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _'t!'Z5"'CETT 7 11 JS* itQí!IISlitii'ii.D.ftIW_u.i'i4lllr1llll'l

2·28. Análise do forma dos VÓvs e organização das fachadas no centro histórico de Tavira.
Plano do Centro Histórico de Tavira - C. Duarte· J. Lamas

95
estilo, a expressão estética, a época), em suma, um conjunto de elementos que irão
moldar a imagem da cidade. Éatravés das fachadas dos ediffcios (e dos seus volumes)
que se definem os espaços urbanos. Afachada é o invólucro visível da massa construí­
da, e é também o cenário que define o espaço urbano.
Eugénio dos Santos, na Baixa Pombalina (1756); Percier e Fontaine, na Rue de Ri­
voli (1819); Haussmann, nas renovações de Paris (1856); e também Wood (pai e filho),
em 80th (1728 e 1774) acentuaram ainda mais a relação da forma urbana com as fa­
chadas dos edifícios, através de sistemas em que a fachada é desenhada previamente.
A fachada obedece aí a desenhos repetitivos. Por detrás das fachadas, os edifícios
construíam-se com relativa independência, segundo programas diferentes.
Este sistema evidencia outra «função» da fachada, a transição entre o mundo colec­
tivo do espaço urbano e o mundo privado das edificações. A fachada assume em de­
terminadas épocas concentração do esforço estético, procurando o aparato, a repre­
sentatividade, a ostentação e o prestígio, moldando a imagem e a estética das cidades.
A partir do urbanismo moderno, o edifício, e consequentemente a sua fachada, dei­
xa de ocupar no espaço urbano a posição que detinha na cidade tradicional, passando
a ser um objecto isolado em redor do qual existe espaço livre. Desaparecem as empe- .
nas, e os lados passam a ser vistos e a pertencer à imagem da cidade. Consequente­
mente, a orientação dos edifícios deixa de ser determinada pela orientação dos traça­
dos e deixa de existir a «fachada principal» para a rua. Neste contexto, modifica-se for­
temente a posição e a importância da fachada na morfologia urbana.
Em paralelo, as regras de organização e desenho dos edifícios também se modifi­
cam. Até ao Movimento Moderno, a fachada admitia graus de autonomia em relação
ao interior do edifício, obedecendo a leis de simetria, repetição, equilíbrio, hierarquia e
enfatização de alguns elementos mais significantes (a porta principal, o andar nobre, o
eixo de simetria e a parte central, etc.), evidentes nas arquitecturas eruditas e tantas ve­
zes nas arquitectura populares. Tais regras eram aplicadas em função de uma imagem
exterior pretendida, a que por vezes se subordinava o interior dos edifícios.
Aarquitectura moderna vai «moralizar» esta situação, pela obrigação de traduzir o
espaço interno e as funções do edifício na imagem exterior. À planta deve correspon­
der a fachada. A leitura dos textos de Bruno Zevi 159) evidencia o esforço moderno de
relacionamento entr.e o interior e o exterior dos edifícios.
Essa atitude teria no limite algumas perversões nos anos sessenta, em que os edifí­
cios se organizavam como se de «organigramas» com paredes se tratasse.
Por via das regras modernas, a importância da fachada é eliminada pela diferente
posição do edifício na estrutura urbana e o volume e a massa edificada vão absorver o
esforço de comunicação estética entre o edifício e o espaço urbano, substituindo a mé­
trica, ritmos e a estética das fachadas.

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2-29. Aimportôncio das fachadas no espaço urbano. 1. Os desenhos de Percier e Fontoine poro
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o Rue de Rívoli (1800). 2. Os desenhos de Eugénio dos Santos e Carlos Mordei poro o Baixo Pom­
balino. 3. Fachadas dos palócios sobre o rio Gilão em Tavira (sécs. XVI, XVII, XVIII e XIX)

97
Como se pode concluir, a fachada tem uma importância e significado diferentes na
morfologia urbana da cidade tradicional e na cidade moderna.
Para finalizar, direi que, ao identificar a fachada como um elemento morfológico, a
entendo como um elemento determinante na forma e imagem da cidade, elemento ao
qual desde sempre se atribuiu um alto significado no projecto arquitectónico. O reen­
contro com a arte urbana terá de assumir de novo o cenário urbano - não desligando
o desenho das fachadas dos problemas de urbanismo - e através desta questão 'esta­
belecer também um elo de continuidade e integração entre desenho urbano e projecto
arquitectónico.

o LOGRADOURO
o logradouro constitui o espaço privado do lote não ocupado por construção, as
traseiras, o espaço privado, separado do espaco público pelos contínuos edificados.
O logradouro foi, também, na cidade tradicional, um resíduo, ou resultado dos
acertos de loteamentos e de geometrias de ocupações dos lotes.
Teve várias utilizações ao longo das épocas, desde a horta ou quintal até à oficina,
garagem ou anexo, ou utilização colectiva em situações mais recentes, em sistema de
condómino. É, em boa medida, na utilização do logradouro que se torna possível a
evolução das malhas urbanas: densificação, reconstrução, ocupação. O logradouro
vai oferecendo solo às modificações e intensificações de usos acolhendo numerosas ac­
tividades que não encontram outro lugar na cidade.
É através da utilização e desenho do logradouro que se faz parcialmente a evolu­
ção das formas urbanas do «quarteirão» até ao «bloco».
Todavia não creio que o logradouro constituísse um elemento morfológico autóno­
mo. É, fundamentalmente, um complemento residual, um ~spaço que fica escondido:
não é utilizado pela habitação nem contribui para a forma dos espaços públicos. Este
lugar modesto na morfologia da cidade tradicional é justamente o seu maior atributo,
permitindo-lhe jogar um papel relevante na evolução da cidade.
É através da utilização e desenho do logradouro que se faz parcialmente a evolu­
ção das formas ur~anas do «quarteirão» até ao «bloco» construfdo.

O TRAÇADO/A RUA

O traçado é um dos elementos mais claramente identificáveis tanto na forma de


uma cidade como no gesto de a projectar. Assenta num suporte geográfico preexisten­

98

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2·30. Os traçados: 1. Projecto de urbanização da parte ocidental de Lisboa, por Eugénio d~s
Santos e Carlos Mardel (1756); 2, Traçado de Brasília, por Lúcio Cosia (1956), esboço inicial

99

te, regula a disposição dos edifícios e quarteirões, liga os vários espaços e partes da ci­
dade, e confunde-se com o gesto criador.
As antigas cidades romanas, de assentamento militar, provinham da disposição de
dois traçados ortogonais principais (cardus e o decumanus maximus), eles próprios na
sua orientação e posição recíproca revestidos de atributos c6smicos e religiosos. Dois
mil anos mais tarde Lúcio Costa explica assim o «traçado» de Brasília:
«Nasceu do gesto inicial com que qualquer um localiza um lugar e dele toma posse.
Dois eixos que se cruzam em ângulo recto, formando o sinal da cruz. Este sinal
adaptou-se depois à topografia, à inclinação natural do terreno e à melhor orientação:
os extremos de um dos eixos curvaram-se, formando um sinal que pode inscrever-se
num triângulo equilátero que limita a zona a urbanizar» (60).
O gesto do traçado - quase fenómeno c6smico enraizado na humanidade - é en­
contrado também nos assentamentos coloniais, nas cidades militares e, de um modo
geral, em todas as cidades planeadas.
Para Poete, Lavedan e Tricart (61), o traçado tem um carácter de permanência, não
totalmente modificável, que lhe permite resistir às transformações urbanas.
Assim, encontramos o traçado romano ainda visível em muitas cidades.
O traçado estabelece a relação mais directa de assentamento entre a cidade e o
territ6rio. Na análise de M. Poete, a rua ou o traçado relaciona-se directamente com a
formação e crescimento da cidade de modo hierarquizado, em função do importância
funcional da deslocação, do percurso e da mobilidade de bens, pessoas e ideias. É o
traçado que define o plano - intervindo na organização da forma urbana a diferentes
dimensões. É também de importância vital na orientação em uma qualquer cidade.
Para finalizar, diria que o traçado, a rua, existem como elementos morfológicos nos
vários níveis ou escalas da forma urbana. Desde a rua de peões à travessa, à avenida,
ou à via rápido, encontra-se uma correspondência entre a hierarquia dos traçados e o
hierarquia das escalas da forma urbana.

A PRAÇA

Nas cidades islâmicas, a praça não existe. Quanto muito, o cruzamento de ruas
produz uma área mais larga no ponto de confluência. A praça é um elemento morfoló­
gico das cidades ocidentais e distingue-se de outros espaços, que são resultado aciden­
tai de alargamento ou confluência de traçados - pela organização espacial e intencio­
nalidade de desenho. Esta intencionalidade repousa na situação da praça na estrutura
urbana no seu desenho e nos elementos morfol6gicos (edifícios) que a caracterizam.
A praça pressupõe a vontade e o desenho de urna forma e de um programa. Se a rua,

100

2·31. Robert Krier. Diferentes formos de praças apresentados em L'Espace de la Ville

101

o traçado, são os lugares de circulação, a praça é o lugar intencional do encontro, da


permanência, dos acontecimentos, de práticas sociais, de manifestações de vida urba­
na e comunitária e de prestígio, e, consequentemente, de funções estruturantes e arqui­
tecturas significativas. Outros espaços como o largo, o terreiro, não podem ser assimi­
lados ao conceito de praça. São de certa maneira espaços acidentais: vazios ou alar­
gamentos da estrutura urbana e que, com o tempo, foram apropriados e usados. Mas
nunca adquirem significação igual ao da praça porque não nasceram como tal. Praça,
largo, terreiro, são também elementos morfológicos identificáveis na forma da cidade e
utilizáveis no desenho urbano na concepção arquitectónica.
A geometria de uma praça pode variar do quadrado ao triângulo, passando por
círculos, semicírculos, elipses, paralelogramos regulares, irregulares, etc. Robert Krier,
no Espaço da Cidade (62), tenta uma colecção algo exaustiva de formas geométricas das
praças. Colecção inesgotável, embora possa ser sistematizada.
A praça é um elemento de grande permanência nas cidades. A Lisboa anterior ao
terramoto de 1755 tinha já o Terreiro do Paço - no mesmo local onde Eugénio dos
Santos desenha a Praça do Comércio. A Praça de São Marcos, em Veneza, evoluiu
com modificações de forma e pormenores, mas mantendo a sua localização.
O largo do mercado, o adro fronteiro à igreja, ou outros pequenos espaços vazios
da cidade medieval não são ainda verdadeiras praças. É a partir do Renascimento que
a praça se inscreve em definitivo na estrutura urbana e adquire o seu estatuto até fazer
parte obrigatória do desenho urbano nos séculos XVIII e XIX.
Adefinição de praça na cidade tradicional implica, como na rua, a estreita relação
do vazio (espaço de permanência) com os edifícios, os seus planos marginais e as fa­
chadas. Estas definem os limites da praça e caracterizam-na, organizando o cenário
urbano. A praça reúne a ênfase do desenho urbano como espaço colectivo de signifi­
cação importante. Este é um dos seus atributos principais e que a distingue dos outros
vazios da estrutura das cidades. Na urbanística moderna, a praça permanece, embora
suscitando as dificuldades de delimitação e definição provocadas pela menor incidên­
cia dos edifícios e fachadas na sua definição. No «novo urbanismo» actualmente, o re­
curso ao desenho de praças tem sido por vezes um logro, na medida em que o desenho
do espaço não é acompanhado pela qualificação e significação funcional.

o MONUMENTO
Os dicionários definem o monumento como «construção, obra de arquitectura ou es­
cultura destinada a transmitir à posteridade a recordação de um grande homem ou feito;
ou obra de arquitectura considerável pela sua dimensão ou magnificiência; ou constru­
ção que recobre uma sepultura».

102
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2-32. A Praça do Plano Director da EXPO 98 apresentado pela Candidatura Portuguesa ao
B. E.I. (1991/1992) (arq.O\ Carlos Duarte e José Lamas) como exemplo de espaço individualizado
à dimensão sectorial

103
o monumento é um facto urbano singular, elemento morfológico individualizado
pela sua presença, configuração e posicionamento na cidade e pelo seu significado.
Para Poete, é um dos elementos que fundamentam o princípio das permanências - um
dos factos urbanos que melhor persistem no tecido urbano e resistem a transformações.
A sua presença é determinante na imagem da cidade. A imagem de Roma, Paris ou Lis­
boa é também a imagem dada pelos seus monumentos, sejam eles marcos sem 'finalida­
de de uso, mas com significação social, histórica ou cultural (a coluna de Traiano, o
obelisco da Concorde ou a estátua equestre de D. José), ou edifícios utilitários com va­
lor social e importância cultural. Poete identifica também no monumento um dos ele­
mentos de maior potencial na composição da cidade, mesmo após a perda do seu sig­
nificado utilitário: «O edifício público ou o monumento como individualidade e como lo­
calização devem intervir em primeira mão na composição da cidade. Não se localizam
em qualquer ponto. Têm o seu lugar marcado. Servem para compor a fisionomia urba­
na.» (63)
Rossi é mais peremptório ao afirmar que os «os factos urbanos persistentes se identi­
ficam c~m os monumentos, são persistentes na cidade e efectivamente persistem fisica­
mente (excepto, finalmente, em casos bastante particulares)>> (64).
O estudo dos monumentos permite também questionar as teorias funcionalistas so­
bre a cidade. A existência do monumento situa-se muito para lá do desempenho de
uma função e assume significados culturais, históricos e estéticos bem precisos, mesmo
quando a sua função primitiva já não existe.
O monumento desempenha um papel essencial no desenho urbano, caracteriza a
área ou bairro e torna-se pólo estruturante da cidade. Nas «urbanizações operacio­
nais», a ausência de monumentos representa, de certo modo, o vazio de significado
destas estruturas e o vazio cultural das gestões urbanísticas contemporâneas.
A ampliação do conceito de monumento desenvolvida nas últimas décadas partiu
do elemento singular arquitectónico ou escultório para abranger conjuntos urbanos,
centros históricos ou as próprias cidades. A evolução destes conceitos e um novo olhar
sobre a cidade do passado como «cidade do presente» alteraram a «maneira de pensar
o urbanismo», recolocando o património edificado na vida da sociedade.
A distância é grande de atitudes como a do Plan Voisin, para Paris, ou as enuncia­
das na Carta de Atenas e referentes ao património edificado. As áreas históricas e as
áreas antigas vão assim constituir permanências nCl cidade como os monumentos, mui­
to embora o seu uso e função possa ser completamente diferente. As atitudes de Six­
to V, ao traçar a Roma barroca sobre as ruínas da Roma Imperial, ou de Haussmann,
ao destruir/reconstruindo o casco histórico da Paris medieval, ou de Le Corbusier, pro­
pondo a renovação do ilôt insalubre no Plan Voisin, já não são defensáveis nem deve­
riam ser possíveis.

104
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2-33. O monumento. Desenho de Eugénio dos Santos poro a estátua equestre de D. José no
Praça do Comércio e máquina para transporte e colocação no pedestrai (1757). O chafariz no
Rua do Junqueira, em Lisboa (1826). O monumento 00 25 de Abril, em Lisboa. Concurso (1985)
- proposto do Arq. A. Marques Miguel

105
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A polémica internacional que envolveu a destruição da Maison du Peuple de Victor


Horta, em Bruxelas, ou a operação das Halles, em Paris, com a demolição dos pavi­
lhões Baltard, em 1968, marcou o ponto de viragem na reutilização dos velhos edifícios
e das áreas antigas das cidades. Hoje, todos os arquitectos, urbanistas, administrado­
res e a população em geral, estariam de acordo em salvar, com adaptação e novos
usos, os famosos pavilhões. Todavia foi necessário cometer grandes erros (as Halles,
em Paris, o Monumental, em Lisboa vinte anos depois ... e tantos outros), para que a
consciencialização destes problemas se fosse enraizando na cultura urbana. Quer isto
dizer que se ampliou e diversificou o conceito de monumento e de património em con­
teúdo cultural e em área geográfica, aplicando-se no caso-limite à totalidade da forma
urbana. Conceito que se tornou operativo na gestão da cidade pela reabilitação e re­
cuperação dos factos urbanos antigos para novos usos e novas funções.

A ÁRVORE E A VEGETAÇÃO

Do canteiro à árvore, ao jardim de bairro ou ao grande parque urbano, as estrutu­


ras verdes constituem também elementos identificáveis na estrutura urbana. Carac­
terizam a imagem da cidade; têm individualidade própria; desempenham funções pre­
cisas: são elementos de composição e do desenho urbano; servem para organizar, de­
finir e conter espaços. Certamente que a estrutura verde não tem a mesma «dureza» ou
permanência que as partes edificadas da cidade. Mas situa-se ao mesmo nível da hie­
rarquia morfológica e visual. Uma rua sem as suas árvores mudaria completamente de
forma e de imagem; um jardim ou um parque sem a sua vegetação transformar-se-ia
apenas num terreiro ... As simples árvores e vegetação existentes 7m logradouros pri­
vados são de grande importância na forma urbana, no controlo do clima e qualifica­
ção da cidade, e como tal deveriam ser entendidas no urbanismo e gestão urbana.
A este título veja-se a destruição das árvores na Rua da Junqueira, em Lisboa, realiza­
da em 1992. Uma rua histórica viu-se destruída pelas técnicas acéfalas do trânsito ro­
doviário, pela diminuição dos passeios e destruição das árvores, para o aumento da
faixa de circulação. O seu aspecto e forma mudaram radicalmente para pior.
A construção do território tanto pode utilizar elementos duros ou minerais como ve­
getais ou plantados.
Trata-se de um mesmo problema de desenho arquitectónico em que a árvore, as
plantações, se encontram na mesma escala de valores que a parede, a fachada ou ou­
tro elemento construtivo.
Um traçado pode ser definido tanto por um alinhamento de árvores como por um
alinhamento de edifícios. Uma praça também.

106

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2-34. Árvores e mobiliório urbano no Plano de Renovacõa Urbano do Área do Martim Moniz.
As órvores estõo alinhados e plantados em caldeiros nos faixas centrais do boulevard. Quiosques
e bancos desenhados pelo pintor Daciana Costa no equipo Carlos Duarte-José Lamas

107
Retomo aqui o que disse antes sobre a existência de arquitectura de intenção estéti·
ca tanto nas estruturas rurais como nas urbanas, tanto no jardim como na cidade.
O desenho do espaço não tem duas áreas ou níveis de trabalho - o do edificado e o
das estruturas verdes. São ambos elementos da mesma actuação, porventura exigindo
alguns conhecimentos disciplinares diferenciados.
Os exemplos da História são a este respeito concludentes. No Alhambra de Grana­
da, construção e vegetação confundem-se num todo coerente.
Haussmann, em Paris, compreende a importância da árvore nas avenidas e boula­
vards. Para evitar o crescimento das árvores, que retardaria por dezenas de anos a
contemplação e efeito da nova obra, desenvolve sistemas de transplantação de árvo­
res já adultas. A inauguração dos boulevards dá-se assim com as suas estruturas ver­
des totalmente desenvolvidas e acabadas, ou seja, com a sua imagem já sedimentada.
Nas transformações recentes em Barcelona, Sevilha ou Madrid, também árvores adul­
tas são plantadas, dando ao espaço recém-construído o seu aspecto final. E, de facto,
o alinhamento de árvores plantadas em caldeira é tão fundamental na cidade tradicio­
nal como é nas propostas actuais de novo urbanismo.

o MOBILIÁRIO URBANO
Deliberadamente, é no final que refiro o mobiliário urbano, constituído por elemen­
tos móveis que «mobilam» e equipam a cidade: o banco, o chafariz, o cesto de papéis,
o candeeiro, o marco do correio, a sinalização, etc., ou já com dimensão de constru­
ção, como o quiosque, o abrigo de transportes, e outros.
O mobiliário urbano situa-se na dimensão sectorial, na escala da rua, não podendo
ser considerado de ordem secundária, dadas as suas implicações na forma e equipa­
mento da cidade. Étambém de grande importância para o desenho da cidade e a sua
organização, para a qualidade do espaço e comodidade. Durante anos, terá sido des­
curado em muitos arranjos e intervenções.
Hoje voltou de novo à cena profissional, apoiando a requalificação da cidade e
acabando por interessar à própria produção industrial.
Também se pod~ria referir esse conjunto de elementos «parasitários» que nas socie­
dades de consumo invadem e se colam às estruturas edificadas, como elementos posti­
ços e móveis: anúncios, montras, sinais, reclamos, luzes, iluminações, etc.
Por simplificação de, exposição, não se conferiu a estes elementos a mesma impor­
tância e relevo dados aos elementos da morfologia urbana. Etambém por razões que
se relacionalizam quer com a mobilidade (sendo portanto efémeros, em constante mo­
dificação) quer com as suas características de elementos «postiços» e adicionais. Ven­

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2-35. O desenho dos espaças verdes: a órvore e vegetação. 1. Jardins da V,71o d'Este em Tívolí
(séc. XVI). 2. Plano do Parque de Bercy - projecto vencedor do cancurso. Arq.O\ M. Fernand e
I. le (aisne (paisagista)

109
turi, em Learning from Las Vagas, demonstra o grau de impacte e comunicação que es-
tes elementos levados à exacerbação e saturação podem assumir na imagem da cida-
de. A imagem de Las Vegas é constituída em boa parte pela presença dos elementos
parasitários e móveis: anúncios e letreiros, luzes, etc. Mas este é, sem dúvida, um caso
extremo, que não pode ser generalizado.

***
Chegado a este ponto, resta clarificar as relações dos elementos morfológicos com
as dimensões ou escalas do espaço urbano.

• Na dimensão sectorial, ou à escala de rua, os elementos morfológicos identificáveis


são essencialmente os edifícios (com as suas fachadas e planos marginais), o traçado
e também a árvore ou a estrutura verde, desenho do solo e o mobiliário urbano.
• Na dimensão urbana, ou escala de bairro, são os traçados e praças, os quarteirões
e monumentos, os jardins e áreas verdes, que constituem os elementos morfológicos
identificáveis. Diremos também que a forma a esta escala se constitui pela adição de
formas a escala inferior. O movimento é necessário ao entendimento da cidade e à li-
gação, ou colagem, das várias partes urbanas.
• Na dimensão territorial, ou escala urbana, os elementos morfológicos identificam-se
com os bairros, as grandes infra-estruturas viárias e as grandes zonas verdes relacio-
nadas com o suporte geográfjco e as estruturas físicas da paisagem.

Esta hierarquização dos etementos morfológicos encadeada por agregação de uni-


dades menores formando outras unidades a uma escala maior não significa a adopção
de um sistema em «árvore» (64). O homem vive numa totalidade de ambiente que nõo é
seccionada por fronteiras rígidas. A experiência ambiental pressupõe o conhecimento
de diversos conjuntos, a sua articulação e desagregação sucessivas.
A leitura da cidade e do território faz-se simultaneamente a diferentes níveis ou es-
calões e também pelo percurso e sequências, o que significa que a forma urbana só po-
de ser estudada e compreendida em sistema de semi-retícula (66).

110
2.6 EVOLUÇÃO DO TERRITÓRIO
«Le vieux Paris n'est plus; la forme d'une ville change plus vite, hélas, que le coeur
d'un morte/.»
BAUDELAIRE, c., Les fleurs du mal
Tableaux parisiens LCXXXIX - LE CYGNE

A cidade, como qualquer organismo vivo, encontra-se em contínua modificação.


Para falar de uma forma urbana, teria de a relacionar com um instante preciso.
A morfologia urbana engloba o estudo das cidades no tempo. Qualquer cidade
evoluiu encadeando, pedaço a pedaço, modificações no sua forma, (a menos que surja
algum cataclismo como em 1755 em Lisboa).
O tempo é fundamental para compreender o território como objecto físico e tam­
bém para posicionar a intervenção do arquitecto: intervenção num dado momento que
modifica a forma existente e que poderá também sofrer um processo de evolução.
Até os edifícios, sofrem necessariamente uma evolução formal, no envelhecimento
da textura e da cor, nos materiais e em pormenores, quando não na utilização. O pro­
cesso de leitura é também evolutivo, porque interligado à cultura, à interpretação que
fazemos da arquitectura. Um edifício, por melhor restaurado, será sempre diferente do
seu estado original, na medida em que a utilização mudou e se adaptou a exigências
de conforto, entre outras; e também porque será «visto» de modo diverso do que o
«viam» os nossos antepassados na época da sua construção.
O restauro é a adaptação da forma primitiva à imagem que dela possui a nossa cul­
tura. Os conceitos de conservação, reabilitação, recuperação, ou de restauro, não ten­
dem a manter imutável a imagem da cidade - mas antes a sua modificação controla­
da, admitindo a evolução ao longo do tempo. Modificação que necessariamente con·
duzirá os arquitectos a repensar continuamente a forma do meio urbano e do territó­
riO.
A evolução das formas urbanas põe duas ordens de questões:

1. A primeira relaciona-se com o desenvolvimento urbano. O estudo morfológico


pressupõe a consideração do crescimento urbano - indissociável do estudo das ci­
dades.
O desenvolvimento urbano é o conjunto de processos que conduzem ao crescimento
das cidades, por expansão ou por alterações no seu interior.

111

2. A segunda questão tem a ver com a reutilização das partes da cidade. As políticas
de recuperação, reabilitação e restauro de áreas urbanas pressupõem diferentes
usos e consequentes modificações da imagem e da forma: dos comércios que se ins­
talam, das habitações que são recuperadas, dos pavimentos refeitos, da população
que varia, etc.

A evolução da cidade, é um facto natural. A questão reside em estabelecer o neces­


sário controlo dessas transformacões, na medida em que no estado actual da cultura
arquitectónica não será admissív~1 aceitar modificações sem controlo e que qualquer
modificação seja possível.
Esta questão é uma arma de dois gumes. Tanto é utilizada pelos mais sérios arqui­
tectos e urbanistas como pelos especuladores e agentes que usam e abusam da cidade.
Qualquer promotor imobiliário, ou autarca com algumas leituras utiliza o argumento
da «cidade como organismo vivo» para justificar os piores abusos. Com este argumento
irrefutável, esquecem-se um e outro que qualquer organismo que cresce e se modifica o
faz de modo harmonioso.

o DOMÍNIO DAS TRANSFORMAÇÕES DO TERRITÓRIO


No «domínio» consideram-se implícitas duas acções: concepção e controlo. O con­
trolo do espaço não se pode exercer sem uma ideia prévia (plano ou projecto); do mes­
mo modo, o plano de nada servirá se não for implementado. Exceptuaria os projectos
cujo objectivo é o de manifesto ou afirmação polémica e cultural, e não a realização.
Por domínio, entendo o conjunto de operações que envolvem a concepção da for­
ma urbana e as acções da sua concretização.
A disciplina do urbanismo tem como objectivo dominar o território e os seus meca­
nismos de transformação: construir, adaptar ou conservar o espaço.
Todavia, entre a ambição do arquitecto e a possibilidade real de controlo da cida­
de, vai uma grande distância, regida pelo jogo de forças económicas, sociais, adminis­
trativas e outras que interferem na cidade.
Como referia Quaroni:
«O arquitecto tende, por sua natureza prÓpria e por deformação profissional, ao
controlo total da cidade, como se fora um único edifício. Mas a mítica Torre de Babel,
como se sabe, nunca chegou a construir-se.» (67)
Texto que resume o drama das relações entre a arquitectura e a cidade. Relações
que, em Portugal, se pautam pela consciência e saber disciplinares, desprovidos dos
instrumentos operacionais que permitam uma prática eficaz.

112

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2-36. Evolução do cidade de Aix-en·Provence. 1. Depois do séc. II d.e. 2. Até 00 séc. XII. 3.
Cerco de 1380. 4. Cerco de 1580. 5. Cerco de 1680. 6. Cerco de 1780

113

o espaço já não pode ser construído sem planos e projectos e a sua implementação.
Se em momentos históricos de lento crescimento, o bom~senso, o consenso e o
tempo eram suficientes para controlar a forma urbana, com os ritmos actuais é cada
vez maior a necessidade de planos e de vontade político-administrativa de os cumprir.
O controlo da cidade pressupõe a intervenção, a par e passo, em todas as transfor~
mações: desde as fachadas das lojas e mobiliário urbano, ao andar recuado e ti cércea
dos edifícios, até às grandes infra-estruturas e operações imobiliárias. Não basta con­
trolar os aspectos gerais, negligenciando os elementos particulares e vice-ver~a. O que
pressupõe a realização de planos, projectos, ideias, uma metodologia de trabalho co­
mum, organismos de controlo e implementação, e a presença dos arquitectos no pro­
cesso e nos vários níveis em que se trabalha na morfologia da cidade.

MECANISMOS DAS TRANSFORMAÇÕES DO TERRITÓRIO

As transformações da forma sobrevêm quando esta se revela inadaptada ao con­


texto (68), A permanência das mesmas formas urbanas foi possível porque o contexto no
qual essas formas foram produzidas não se modificou. As modificações da forma urba­
na são consequências da vitalidade social e económica das sociedades.
As modificações do contexto que causam a modi~cação da forma são diversas e di­
ficilmente comparáveis (69), Os estudos de Poete (70) demonstraram a permanência de
motivos que assegura a continuidade formal à cidade ao longo do tempo.
O estudo do solo urbano, dos traçados, do cadastro e da ocupação construída per­
mite veriflcar que, determinados elementos morfológicos ou arquitectónicos persistem
em qualquer cidade. Com estas conclusões, M. Poete estabelece o conceito de persis­ (­
t'ncia, que seguidamente é utilizado por Lavedan (71), o qual assemelha a «persistência»
a uma persistência de «espfrito» na geração do plano. Através dessa geratriz é possível
remontar na História e reconstituir a formação da cidade. A análise histórica da cidade
revela existirem elementos em contfnua transformação e elementos que não se modifi~
cam totalmente e persistem. Estes últimos são principalmente os monumentos, os traça~
dos ou vias e também, em certa medida, a estrutura fundiária.
As ro:ões dessa permanência sõo diversas e di~cilmente comparáveis (72), Para o
monumento existirá a carga cultural e significativa, o valor histórico, a memória colecti­
va. Razões que, fundamentam as políticas actuais de conservação do património e dos
centros históricos, e permitem verificar de que as transformações do espaço têm cam­
pos mais profundos que a correspondência simplista entre forma e função.
Para o traçado das vias, poderia avançar outras explicações: a existência de um
«espírito» urbanístico que conduz a soluções análogas (as mais lógicas) na interpreta­

114

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2-37. A forma do território: Aix-en-Provence. A cidade e os seus bairros, o centro antigo e peri.
ferias modernas e imagens do território

115
ção do território. É assim que os traçados foram evoluindo - caminhos rurais
tornaram-se vias urbanas, ruas, avenidas, etc. Éassim que muitos traçados foram reto­
mados em sucessivas intervenções por um denominador cultural comum que interpreta
o território, o sítio, o locus, (73) com expressões formais idênticas.
Recordo a expressão de Georges Meye-Heine «C'est inscrit sur le site» (74), para
aquelas soluções evidentes, quase imediatas, sugeridas pelo terreno e pelo «sítio».
No estado actual do urbanismo, a teoria das permanências deverá também nortear
a integração dos elementos físicos preexistentes nas intervenções urbanas.
Qualquer arquitecto terá de saber que não trabalha sobre tábua rasa, mas sobre
um território que já existe. Isto é tão válido para o edifício que substitui num lote a cons­
trução degradada, para a modificação de uma construção, como para os novos bair­
ros ou novos edifícios. Há que procurar no território os elementos estimulantes e gera­
dores do partido arquitectónico, e também os elementos que deverão ser mantidos.
O que significa trabalhar com conhecimento do mecanismo de transformações mor­
fológicas, interligando o conhecimento da cidade à produção do espaço.
Para a escala da rua, as transformações são facilmente detectáveis e podem ser
muito rápidas: desde as montras das lojas, cada dia renovadas, ao mobiliário urbano,
aos pavimentos, à arborização e a tantos outros elementos. Quotidianameryte, dão-se
modificações infinitesimais que vão transformando a imagem da cidade. A pedoniza.
ção de uma rua transformará a sua forma, adaptando-a a uma nova função pela au­
sência do automóvel, pelo arranjo de pavimentos, etc.
À dimensão urbana - escala do bairro -, o tipo de modificações é mais lento, e de
maior profundidade. Novas ruas, novos edifícios, arborização, etc., modificações que
se sentem mais nas periferias urbanas do que nos centros das cidades.
Na dimensão territorial, as modificações mais significativas ligam-se ao crescimento
da cidade: novas zonas urbanas, infra-estruturas, serviços, equipamentos e grandes in­
tervenções. Serão, mais percepHveis quando corresponderem a um elevado número de
elementos transformados e à dimensão da intervenção. Determinadas regiões, metro­
politanas, turísticas, submetidas a fortes pressões de construção alteram a sua forma a
um ritmo demasiadamente rápido que não permite um «encaixe» natural dessas modifi­
cações, necessitando por isso de maior de planeamento e controlo.
As transformações territoriais implicam também uma visão cultural.
A paisagem humanizada e a cidade são o resultado de centenas de anos de activi­
dade do homem; constituem uma herança cultural que não pode ser delapidada. Co­
mo tal, o controlo das transformações do território assume a maior importância na dis­
ciplina arquitectónica e urbanística. Implica a existência do plano (a ideia) e do planea­
mento (a acção de concretização e implementação do plano).

116

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2·38. Evolução do Proço de São Marcos em Venezo. 1. A praça no séc. XIV 2. No séc. XVI. 3.
No séc. XIX, depois do reestruturoção napoleónico. 4-5. Vistas da proço actualmente

117

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2-39. Permanência e transformação das formas urbanas. A Praça do Comércio, antes e depois
do terramoto de 1755, segundo gravuras do época. A adaptação islãmica de uma rua romana
com arcadas, em Damasco

118

2··40. Permanência e transformação dos formos urbanos: modificações no formo e imagem de


A;accio em quinze anos de expansão descontrolada. A silhueta da cidade histórica é abafado
por volumes fora de escala. Desenhos em 1974: transformações do espaço, segundo um estudo
de A. Blandel e L. Sully James. 1. A Pr'J~a dos Acácias em
Petifes Colombes (arredores de Paris)
em 1900 e nos anos setenta. 2. A coluna em Garenne - Colombes (arredores de Paris em 1900 e
nos anos setenta)

119

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2-41. Evolução do território por factores não humanos: a linha da Costa de Trafaria-Cova do
Vapor de 1843 a 1974. Adaptação da forma da cidade à forma do território: a ocupação urba­
na de Lisboa relacionada com o relevo

120
2.7 NívEIs DE PRODUÇÃO 00 ESPAÇO
A prótica do planeamento organiza-se em níveis de actuação determinados pela
pr6pria natureza dos métodos, objectivos e conteúdos, e escala dos problemas e
dimensão geogrófica das intervenções. Níveis de intervenção que são observáveis
nos processos de produção do espaço urbano e correspondem às escalas de leitura
do territ6rio e aos níveis de concepção da forma urbana. Correspondência que
deveró ter em conta que as acções sobre o territ6rio se processam em simultâneo em
diferentes escalas e por mecanismos complexos, simultaneamente diferenciados e inter­
ligados.
Parto do princfpio de que qualquer nível de planeamento tem implicações morfo­
lógicas. O ambiente frsico é interdependente das condições e sistemas (geográficos,
econ6micos, sociais, administrativos, políticos, culturais e outros) através dos quais se
efectua a acção do homem no territ6rio, sendo do foro do planeamento organizar es­
sas forças com o objectivo de transformar o territ6rio.
Todo o planeamento é uma acção que fica gravada no espaço. Mesmo níveis não
físicos, como a programação econ6mica ou demográfica, desembocará sobre transfor­
mações espaciais, na medida em que será necessário construir espaços para as activi­
dades, os serviços, as infra-estruturas.
Quer isto dizer que qualquer escalão de planeamento tem componentes físicas ar­
quitect6nicas explícitas ou implícitas.
Interessa, portanto, clarificar as etapas da prática arquitect6nica desde o estabele­
cimento dos programas até ao pormenor da «janela» num edifício.
Tentando sistematizar, distinguiria três níveis de produção do espaço:

1. Nível de Planeamento - Programação - PlaniflC8Ção


O arranque de todo o planeamento é uma fase de determinação de objectivos so­
cioecon6micos, ap6s o que serão espacializados, ou seja, «arrumados» no território.
Este escalão de programação-planificação pode abranger uma região, uma cidade
ou até uma rua. Implica um enfoque socioecon6mico e funcional, e a espacialização
adequada. Embora na prática nem tudo se processe linearmente, a programação apa­
rece como etapa preliminar das acções de urbanismo, na qual se fixa o programa que
será concretizado no futuro.

121
2. Nível Urbanístico - O Plano
Trata~se seguidamente de precisar os objectivos no espaço e no tempo e de espacia­
lizar com maior pormenor a execução dos propósitos anteriores.
Este nível implica já a definição das morfologias urbanas e a consideração das pos­
sibilidades frsicas do território. É a fase do plano e do desenha, do trabalho sobre a
«forma urbana». Pressupõe que estejam definidos ao nível precedente os objectivos de
ordem económica, social e política e que sejam posteriormente desenvolvidas e porme­
norizadas (no nível seguinte) as indicações do plano.
Este nível assume no desenho urbano a transcrição e resolução de todas as outras
questões postas à disciplina urbanística. O plano não pode ter dois vectores distintos
nem contraditórios o espacial e o socioeconómico e administrativo; é no desenho urba­
no que todas estas questões devem estar integradas e resolvidas.

3. Nível de Construção - O Projecto


Nc fase final, executa-se a construção do território de acordo com os objectivos e
programas definidos e com os meios tecnológicos disponíveis. Trata~se então de cons­
truir. Ê o fase de construção, preparada pelo projecto e concretizada na obra.

Estas vários operações têm uma finalidade comum que é organizar o território paro
que posso suportar as actividades humanas. São três níveis interligados e autónomos,
que se articulam sobre estratégias políticas, sociais e morfológicas diferentes. Cada ní­
vel tem o seu domínio próprio, que não pode ser substituído pelo nível seguinte nem de·
finido anteriormente. Mas todas têm um denominador comum que envolve por aproxi­
mações sucessivas a formo do território e de cidade. Desde o inicio que qualquer acção
de planeamento, cada decisão vai comprometendo essa forma: desde as diferentes so­
luções espaciais que cada programa permite até ao potencial expressivo de cada sítio,
até às opções de menor escalo, de carácter meramente construtivo.
Seria errado determinar as escolhas socioecon6micas e os politicas territoriais no
campo dos organizÇJções exclusivamente espaciais, e admitiria que, para planificar, é
necessário fixar previamente os objectivos de ordem económica, social e politico. Toda­
via a definição espacial desses objectivos é igualmente necessária - é o cimento que
colará os programas e decisões ao território e aos factos construídos.
Ao nível da programação e da planificação, não será possível determinar uma úni­
ca solução urbanístico-arquitectónica. A formo do território vai sendo determinada
através das quantidades, das áreas a construir e a libertar, do traçado das infra­

122

2-42. Hong Kong. A ocupação do molho urbano reticulado novecentista por um conjunto des­
mesurado de construções modernos isolados. Visto do cimo do PEAK, e perspectivas oxonométri·
cas do zona do Hong Kong ond Shongoi Bonk e do península de Kowloon

123
-estruturas em articulação com a paisagem preexistente (rios, lagos, montanhas, flores­
tas, praias, etc.), assentamentos humanos e espaços jó modificados. '
Em contrapartida, a intervenção arquitedónica deve começar desde que se trate de
localizar no território as intenções e programas de planeamento. No processo de pro­
dução do espaço, os problemas de morfologia e arquitectura situam-se a diferentes ní­
veis. Desde a planificação à realização da obra. O encadeamento das operações torna
a hierarquização complexa, mas irreversível. As decisões tomadas a um determinado
nível (ou a uma determinada dimensão) comprometem inexoravelmente as interven­
ções a um nível e a uma dimensão inferior... pelo que não é lícito imaginar que um bom
projedo possa salvar um mau programa ou que o projecto arquitectónico possa corri­
gir e salvar erros urbanísticos anteriores.

124

2.8 URBANISMO E ARQUITECTURA


(O desenho urbano entre o planeamento e o projecto dos edifícios)

Quando identifiquei a forma urbana pelas relações existentes entre os elementos


morfológicos e o espaço que definem, pensava que muitas das urbanizações actuais
não têm forma porque não há nenhuma relação inteligível entre as suas partes: edifí­
cios, bairros, ou outros fragmentos da estrutura urbana. Apenas traduzem, e quanto
muito, a rentabmdade económica e a especulação fundiária, e a visão da cidade, que
para tantos não é mais do que a exploração do uso solo e do investimento.
Para dar forma ao meio urbano, não é possível ter apenas como níveis de produção
do espaço a programação e o projecto. Para que exista forma, tem de existir o dese­
nho urbano.
Numerosas urbanizações que dão respostas favoráveis às exigências quantitativas
e funcionais de equipamentos e serviços são desagradáveis para viver, desprovidas de
qualidade arquitectónica e de significação cultural, porque a exclusiva organização
funcional de programação de usos e quantidades, mesmo minuciosa e pormenorizada,
não pode engendrar qualidade no ambiente urbano.
Por outro lado, a qualidade aquitectónica das construções não pode por si só dar
forma ao meio urbano. Os edifícios ou outras partes da estrutura urbana serão peças
isoladas, deslocadas do seu contexto espacial, como se fossem personagens de uma
reunião falando cada um por seu lado, mesmo com um «discurso» de qualidade.
Em casos raros, como Nova Iorque ou Hong-Kong, a justaposição de arranha-céus
contém, pela extensão e saturação, um potencial formidável de fascínio e comunicação
estética que atinge a monumentalidade - a obra de arte colectiva.
Mas estes são casos excepcionais, produzidos em contextos particulares e que não
podem ser generalizados ou servir de exemplo para outras cidades.
Em toda a transformação do território, é indispensável uma operação que defina as
relações e interligue os elementos construídos, as diferentes arquitecturas. Esta opera­
ção é essencialmente urbanística e tem como instrumento o desenho urbano.
O desenho urbano não deve ser o desenho dos edifícios ou factos construídos, mas
o desenho da «estrutura», o desenho daquilo que une e relaciona os diferentes elemen­
tos morfológicos ou as diferentes partes da cidade.
A operação de urbanismo não tem dimensão espacial privilegiada. O mesmo se
passa com a realização de construções. A construção de uma cidade tanto poderia ser
do domínio do planeamento urbanístico como do projecto arquitectónico. O que dife­

125

rencia o urbanismo da arquitectura não é a dimensão espacial nem o escalao do inter­


venção, mas a acção polrtico-administrol'iva a conduzir no tempo e no jogo de forças
económicos e sociais.
Se a arquitectura e o urbanismo têm objectivos e objectos comuns - a transforma­
ção do espaço ou do território -, diferenciam-se pelos práticas. O urbanismo implico
(repito) o condução de um plano no tempo e no jogo de agentes e actores políticos,
económicos e sociais. Também é seu objectivo a mediação e resolução dos conflitos en­
tre os interesses públicos e privados que disputam o fruição do espaço urbano. O pro­
jecto, pelo contrário, ligo-se preponderantemente à realização imediata da obro.
Posto isto, seró preferível utilizar a expressão «realização de construções» quando
falar da fase final do projecto de «arquitectura» e reservar a palavra arquitectura para
o método de intervenção - o «desenho». Assim entendida, a arquitectura existe tanto
no urbanismo como na construção: é o desenho do espaço, qualquer que seja a dimen­
são geográfica e o processo de realização no tempo.
Posso também concluir que a prática de definição da forma do território e da cidade
será diferente consoante o nível de produção do espaço.
Ao nrvel da construção tudo pode ser precisado - na segurança de uma realização
imediata e conforme o projecto.
Ao nível urbanístico, a forma desenhada deverá integrar.se numa acção a conduzir
no tempo e confrontar-se com as diferentes forças económicas e sociais que a realiza­
rão.
Por este facto, as morfologias espaciais serão diferentes, aceitando determinados
graus de adaptaçãO.
Esta visão que proponho é fundamentalmente morfológica e pretende reencontrar
a unidade arquitectónica que terá existido e terá sido responsável por tantas realiza­
ções de qualidade.
No passado, plano e projecto, cidade e edifícios, eram peças de um mesmo sistema.
Os arquitectos e os gestores ou administradores não fariam assim tanta separação en­
tre o plano e o projecto, entre a rua, o prédio e o bairro. Todos os elementos concor­
riam na definição da cidade e eram igualmente qualificados.
O desenho arquitectónico era um instrumento de definição da cidade e das constru­
ções. Tudo era arquitectura.
A separação entre urbanismo e arquitectura surge no século XX, com o desenvolvi­
mento do urbanismo moderno e a sua complexidade disciplinar, com o alargamento do
seu campo de intervenção a todo o território e com a divisão social do trabalho entre o
urbanista e o arquitecto.
Os problemas gerados por esta situação conduzem a colocar de novo este pro­
blema.

126
Trata-se de reflectir sobre a prática da arquitectura nos diferentes nfveis de produ­
ção do espaço, num processo encadeado a vários nfveis: desenho urbano e desenho
de edifícios não são mais que dois momentos de uma mesma disciplina: a arquitectura,
intervindo em diferentes momentos e com distintos processos (plano e projecto), mas
com um único instrumento fundamental: o desenho. Eserá especificada por um espe­
cialista - o arquitecto - que pode intervir a diferentes níveis e dimensões espaciais ­
como arquitecto planiflcador, arquitecto urbanista e arquitecto construtor -, mas com
um objectivo comum: o domfnio da forma ao território e da cidade como estruturas ffsi­
caso Porque é nessas estruturas físicas que vivem os cidadãos e é a estrutura física o que
resta das cidades na sua evolução e transformação no tempo.

127

2.9 EPÍLOGO
Ao longo desta segunda parte, abordei as questões relacionadas com a morfologia
urbana que julguei mais relevantes para compreender a forma da cidade e o processo
da sua formação, mantendo-me na área disciplinar urbanrstico-arquitectónica. Área
que julgo ser de reivindicar como' campo espedfico de trabalho, com os seus conteúdos
e métodos próprios, de grande importância na investigação sobre a cidade. Implicita­
mente, fui avançando com convicções e posicionamentos pessoais em numerosas ques­
tões, tais como o funcionalismo, a visão estética da arquitectura e da cidade e tantas
outras. O arquitecto não é nem pode ser um espectador neutro das questões que lhe
dizem respeito e nas quais se vai envolvendo e posicionando diariamente no exerdcio
profissional, no estirador e na actividade docente.
Reivindica-se assim o estatuto especffico da arquitectura e da urbanrs,tica como es­
trutura e campo disciplinar de bases sólidas. Bases essas que assentam, entre outras, na
Morfologia Urbana e na História, para além de outras ferramentas técnicas e cientr­
ficas.
Creio - e esse era o objectivo desta parte - que a discussão sobre a forma da cida­
de e, sobretudo, a polémica entre a cidade moderna e a cidade tradicional podem sair
clarificadas pelo que disse. O objectivo fundamental é permitir que o desenho urbano
assente em bases sólidas de conhecimento da cidade e do território, das suas estrutu­
ras, espaços e formas, e dos seus processos de formação.

129

PARTE m

FORMA DAS CIDADES EDESENHO

,# ,

URBANO ATE· AO PERIODO MODERNO

131

,<La fascination qui émane de nos vil/es histo­


riques vient sons nul doute de la diversité in­
finie de leurs espaces urbains et de leurs ar­
3.1 A LIÇÃO DO PASSADO
chitectures. Choque époque a rationalisé à
sa façon le moyens techniques, qu'il s'agisse
de colombage ou de construction massive Como fonte inesgotável de reflexão e de ensinamen­
en brique ou en gres. Mais ;amais cela ne tos, a história urbana interessa de modo particular à ur­
s'est fait ou détriment de I'architecture; toutbanística e à arquitectura. É a cidade antiga um grande
ao contraire! La richesse des formes d'ex­ exemplo vivo e vivido. Além do mais, ainda hoje as cida­
pression vient avant tout du fait que choque
des europeias se caracterizam pelos seus espaços sedi­
architecte pouvait encore comprendre sa
tâche dons son intégralité, qu'il disposait du mentados ao longo de séculos e nos quais se concentram
temps nécessaire pour élaborer des détails algumas das principais funções e utilizações urbana"s. Lis­
qui étaient souvent infiniment compliqués, et boa, Paris ou Madrid, Aix-en-Provence ou Tavira, apesar
que les clients comprenaient I'architecture de serem hoje bem maiores do que há centenas de anos,
comme un art et exigeaient qu'el/e le soit ef­
são caracterizadas pelas realizações do seu passado.
fectivement. On savait encore comment
construire en milieu rural. Dons la vil/e, I'ar­ As áreas históricas são áreas de sedimentação e
chitectture devait constamment dialoguer acumulação, enriquecidas por sucessivos contributos du­
avec les données historiques, et non pas, rante séculos e gerações, que seria impossível substituir
comme de nos ;ours, s'isoler de toutes les ou igualar. Além do mais, o espaço da cidade europeia,
structures urbaines fondamentales pour me­
ner une étrange existence solitaire, sons ;0­
tal como se constituiu até ao século XIX, pode ser o lugar
mais vraiment s'intégrer. Tout nouveau de reinterpretações, reutilizações e intervenções por acu­
pro;et dons la vil/e doit se soumettre à I'or­ mulação e qualificação. O exemplo recente dos grandes
dre de I'ensemble et apporter une réponse projectos em Paris - do Louvre ao Museu d'Orsay, ao
formelle aux espaces donnés!» Instituto do Mundo Árabe ou ao Museu Picasso - aponta
ROBERT KRIER
para uma via de constante reestruturação qualificadora
da cidade histórica como campo projectual de novas in­
L'Espace de la Ville tervenções.
Por tudo isto, e porque a vivemos e utilizamos, a cida­
de do passado enriquece a memória e a cultura, aferindo e testando o pensamento ur­
banístico actual.
Senti a necessidade de utilizar o passado como fundamentação de argumentos e
reavivar de memória, sem a mínima pretensão de esboçar qualquer «história da forma
das cidades», ou «.história do desenho urbano». De resto, nos últimos vinte anos, a «his­
tória urbana», ou da «forma urbana», tem sido tema de contributos muito importan­
tes (1). Nesses trabalhos, pude encontrar referências e verificar hipóteses da continuida­
de morfológica da cidade tradicional até aos nossos dias, examinando quais as regras
e processos que foram permanecendo.
Certamente que a forma das cidades foi mudando e o desenho urbano teve conteú­
dos e objectivos diversos ao longo das épocas.

133

Uma primeira questão refere-se aos modos de crescimento. Genericamente


observam-se dois processos fundamentais. O primeiro, segundo regras de espontanei­
dade, e que se convencionou designar por «orgânico»; o outro, segundo plano ou ideia
previamente traçada e adiante designado por «racional» (2).
O crescimento orgânico obedecia a uma ideia de cidade que nada teria de caótico,
apoiando-se também em regulamentos e regras construtivas, estéticas e urbanísticas.
A utilização continuada de processos construtivos, comprovados e de regras idênticas
nas relações dos edifícios entre si e com o território, garantia à cidade boa coerência
formal. Os ritmos vagarosos do crescimento permitiam que cada nova construção se
adaptasse à f.orma preexistente e a prolongasse com integração.
Outras vezes, as cidades cresceram segundo planos minuciosamente calculados, de
modo racional, procedentes de esquemas mentais predeterminados: desde a Grécia e
a Mesopotâmia até aos nossos dias, citaria numerosos exemplos, entre os quais Pría­
mo, Mileto, Ville Richelieu, Vila Real de Santo António ou a Baixa Pombalina; as cida­
des de colonização espanhola e portuguesa na América Latina (3), ou anglo-saxónica,
na América do Nortei a Barcelona de Cerdá, ou as cidades novas já no século XX.
Fundamentalmente utilizado em novos assentamentos, na colonização de territórios
ou em perrodos de forte e rápido desenvolvimento urbano, o processo racional pressu­
põe também uma autoridade que domine as transformações espaciais e faça cumprir o
plano. Foi também utilizado como instrumento de representação e afirmação do poder
e de prestígio, em sociedades organizadas e em períodos florescentes e dinâmicos.
Neste processo, o desenho urbano apoiou-se quase sempre em esquemas geométri­
cos, quer pela sua operacionalidade no terreno quer pela sua lógica fundiária, espacial
e funcional.
O traçado do plano determinava a distribuição das actividades e as regras de sepa­
ração entre o espaço público e o espaço privado. O controlo morfológico era assegu­
rado quer através do plano quer através dos elementos edificados.
Ambos os sistemas produziram arte urbana e foram utilizados em simultâneo nos
mesmos períodos históricos.
As diferenças entre o crescimento orgânico e racional são primeiro que tudo de or­
dem processual, pelo diferente modo de produção do espaçOi são também de ordem
morfológica, pela .diferenciação da forma geral das cidades decorrente da diferente
geometria de traçados. No entanto, em qualquer dos processos os elementos morfoló­
gicos serão utilizados de modo sensivelmente idêntico: quarteirão, lote, edifício, facha­
da, rua, praça, monumento, etc.
Arrisco a hipótese de que as cidades cresceram utilizando regras físicas constantes e
de grande simplicidade no relacionamento dos elementos morfológicos.
Esta questão parece·me muito importante, já que estabelece um denominador co­

134

3- 1. Crescimento orgônico. Lisboa antes do terramoto, segundo o planto de 1650. 2. Crescimen­


to racional. A reconstrucão pombalino, segundo o plano de Eugénio dos Santos-c. Mordei
(1755)

135
mum para a produção urbana até ao período moderno. Quaisquer que tenham sido os
processos de crescimento urbano, as regras morfológicas foram constantes e serviram
a diferentes objectivos culturais, estéticos, programáticos e funcionais.
Preparando a argumentação que se segue, tentaria resumir os denominadores co­
muns que caracterizam o desenho urbano até ao período moderno:

• O espaço urbano organiza-se em tipos identificáveis e reconhecíveis como a rua, a


praça, a avenida, o beco, etc., quaisquer que sejam as variações na sua aparên­
cia (4).
• Existe coerência, integração e dependência recíproca entre os vários elementos mor­
fológicos que compõem um espaço. Por exemplo, a rua é definida pelos edifícios e
constitui com estes uma unidade em que as várias partes são indissociáveis. A rua é
um espaço e tem uma função: a de circulação viária, de mercadorias, pessoas e
ideias. O espaço sobrepõe-se e identifica-se claramente com a função e é definido
quer pelo sistema de pavimentação quer pela forma dos edifícios e dos seus planos
marginais (fachadas, muros, etc.). No quarteirão, existe também total interdepen­
dência entre os elementos que o constituem: traçados, lotes, edifícios, fachadas, 10­
gradouros, etc., e assim por diante. É sobre o quarteirão que vão incidir maiores
transformações até ao seu completo desaparecimento no século XX. Porque, sendo
um elemento morfológico que interliga e estrutura vários outros, é também no quar­
teirão que se processa a separação entre o domínio público e privado, estruturando
as práticas sociais da sua utilização.

Este dois aspectos são observáveis nas cidades tal como se formaram até ao primei­
ro quartel do século XX e serão abandonados e abolidos na cidade moderna, para se­
rem retomados parcialmente nos últimos vinte anos, no «novo urbanismo».

136

3-2 Lisboa anterior ao terramoto de 1755. Maqueta emtente no Museu do Cidade

137

-------=~'I.

A B

de A - de 600 o 478 o.- C. B - de 478 o 339 o. C. C - 338 - 86


.. to de Atenos.
3·3. Cresclmen
o. C. O- 86 o. C. - 287 .

138
3.2 A MORFOLOGIA URBANA NA GRÉCIA E EM ROMA
A FORMA DAS CIDADES GREGAS

Falar das cidades gregas implicaria referir a organização social e política da Grécia
e as suas consequências no espaço urbano. As cidades gregas foram inicialmente o lu­
gar de concentração de proprietários que organizaram a estrutura urbana a partir das
necessidades de espaço.
O poder dos proprietários será cobiçado por outras camadas sociais em ascensão,
até se atingir o poder dos «tiranos», mais ou menos protectores do povo, e, finalmente,
no século de Péricles, o amadurecimento e consolidação do sistema social e político da
democracia. No século de Péricles, consubstancia-se também a racionalização do es­
paço com a organização funcional das cidades e a sua repartição por zonas de activi­
dades a que também correspondem características morfológicas diferenciadas, com
particular importância no posicionamento dos edifícios públicos.
Decorrente destas razões político-sociais, não se encontra na Grécia o tratamento
espacial da cidade para a glória e enaltecimento de um poder, uma família ou um rei.
Os espaços públicos significantes estão ligados à religião e ao poder «democrático».
A lógica da formação do espaço urbano apresenta aspectos e princípios que interes­
sa reter:

• A colocação de edifícios singulares - monumentos - em «composição orgânica»,


assimétrica, mas inter-relacionados por distâncias e vazios, e em situação predomi.
nante na estrutura urbana. O conjunto de grandes edifícios e equipamentos de ca·
rácter comercial, cívico, cultural e religioso ocupa os pontos fulcrais das cidades e or­
ganiza as estruturas urbanas. Os equipamentos são muito cuidados e organizados
para acolher as funções públicas: o ágora, envolvido pelo mercado, o teatro, etc.
• As áreas residenciais, bastante modestas, sem tratamento especial, organizam-se em
evidente contraste com os lugares públicos. A arquitectura da rua é de grande simpli­
cidade. O tecido habitacional é uniforme e é ordenado sem pretensões tanto por tra­
çados reguladores e repetitivos como por traçados irregulares e orgânicos.

A prioridade dos espaços, edifícios e lugares públicos sobre o tecido residencial de­
corre certamente do sistema social. Enquanto os lugares públicos são cuidados e con­
centram grande esforço colectivo e artístico, uma regulamentação minuciosa condicio­
na o tecido residencial, contendo-o numa grande modéstia. Em Esparta, os regulamen·
tos de edificação chegam a impedir ornamentos nas portas das residências ...

139

o espaço principal é o centro - que se forma a partir do santuário. Em volta do


santuário situa-se o ágora - «praça» -, com edifícios de funções administrativas e jurí­
dicas. A necessidade de defesa conduz ao envolvimento da cidade por muralhas.
Os espaços são definidos pela adição de volumes - edifícios e templos -, sem obri­
gação de simetria, numa relação dinâmica que só aparentemente é desordenada.
Os templos gregos não eram edifícios para habitar ou utilizar, mas para serem vis­
tos. O seu lugar na estrutura urbana exigia visibilidade e evidência. Para tal, o acesso é
organizado em percursos sinuosos, com vistas d~ escorço, e em diferença de cota, na
qual o observador vai «descobrindo» o monumento de pontos inferiores, reforçando o
efeito de monumentalidade.
O acesso ao Parténon exemplifica este modo de conceber o espaço, criando simul­
taneamente o percurso e a valorização visual do edifício e do santuário.
A quadrícula grega é um meio de organização fundiária do solo para construir ha­
bitação, e não um princípio de composição urbana. No caso de Mileto, é utilizada umà
quadrícula ortogonal para o tecido residencial, mas essa grelha não é utilizada nos es­
paços públicos e centrais.
Esta quadrícula sobrepõe-se indiferentemente à topografia, obrigando à constru­
ção de terraços e plataformas, para encaixe dos edifícios. Na área central, a quadrí­
cula desfaz-se, embora alguns edifícios ocupem a totalidade de uma «quadra».
Contrapõe as formas da área central de uma grande dinâmica e inter-relação com
a rigidez de uma malha ortogonal envolvente e de grande regularidade.
A aplicação intensiva da quadrícula em Mileto levou numerosos historiadores a atri­
buir a sua invenção a Hippodamus de Mileto, o arquitecto que terá traçado a cidade (5).
Na mesma época, utilizavam-se também na Grécia traçados completamente irregu­
lares, como acontecerá também nos períodos seguintes da história urbana.
Morris defende que o modo de os gregos abordarem o planeamento urbano terá si­
do essencialmente prático, dadas as dificuldades em encontrar textos e referências a
normas urbanísticas e, pelo contrário, a verificação possível do interesse e absorção
dos arquitectos e artistas pelos edifícios isolados, pelos seus volumes e pelas «questões
derivadas da massa física dos edifícios e esculturas, consideradas individualmente». As­
sim, a forma urbana até ao período helenista terá sido resultado da aplicação de prin­
cípios teóricos ao lugar, ao sítio, na óptica do urbanismo como arte prática. Só mais
tarde, a partir do século V a. c., se desenvolve o interesse por modelar o espaço (6).
Todavia esta questão é de somenos importância, já que se comprova, através das
descobertas e reconstituições arqueológicas, o contributo grego para o urbanismo eu­
ropeu e a continuidade em períodos seguintes.
No período helenístico, as cidades adquirem maior aparato e cuidado ambiental.
As perspectivas tornam-se elaboradas e procuram o espectáculo, até atingirem, em

140

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J-4. Reconstituição da Acrópole de Atenas (lado noroeste) e vistas sequenciais do acesso à Acró­
pole. Perspectivos centrois e em escorço dos monumentos

141
1. Agor~ norte
2. Delp~inion
3. Agor~ sul
4. Teatro
5. Ginállio
6. Estáttio
7. Agora oeste

8. Huralha-primi iva ~
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3·5. Plano de Mileto - Ásia Menor em 479 a. C. A quadrícula regular é cortado bruscamente
pelo relevo e murolhos. Os monumentos, edifícios e lugares públicos do centro ignoram a quadrí­
cula regular, que se destino à habitação

142

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3·6. Reconstituicão do cidade de Priamo, organizado segundo plano regular A - Agora. B - Tem­
plo de Zeus. C - Ginásio. D - Teatr:J. C- Templo de Ateneia. G - Entrado principal. Acrópole de
Pérgama, organizado segundo um esquema orgânico irregular. A - Templo de Trajano. B - Templo
de Ateneia. C - Agora superior. D - Armazéns. E - Quarh~is. F - Palócio. G - Porto principal

143
Pérgamo, requintados efeitos cénicos. São estes exemplos da Ásia Menor que os roma­
nos vão copiar, transportando para Roma essas concepções urbanísticas, monumentais
e espectaculares e de grande integração entre o desenho urbano e a arquitectura.
Em Pérgamo, são introduzidas modificações importantes no esquema:.base das ci­
dades gregas. O ágora, de espaço público e político, torna-se espaço simbólico. O lu­
gar do Poder desloca-se para o palácio, e a rua adquire um valor decorativo.
Desenham-se colunadas e pórticos ao longo das ruas, como elementos decorativos, e
no eixo das perspectivas são introduzidas esculturas e até arcos. É o início da perspecti­
va axial monumental, que os romanos utilizariam mais tarde e o Barroco interpretará
de modo singular. Em Pérgamo, a colunada é também cenário.
Estas referências às cidades gregas permitem evidenciar algumas características
desse período: a relação dos monumentos como peças fortes da estrutura urbana com
o tecido habitacional envolvente, regular e uniforme; a utilização da combinação de
geometrias orgânicas com quadrículas regulares; os efeitos de monumentalidade sem
recurso às perspectivas axiais e a valorização do monumento através da leitura em es­
corço, perspectiva oblíqua e o seu posicionamento em cota superior à do observador.
Facilmente se verifica que alguns dos pressupostos que dominarão a composição
europeia até aos nossos dias já existiam na Grécia de modo evidente ou embrionário.

o DESENHO URBANO NA ROMA ANTIGA

O urbanismo romano marcou a Europa e essencialmente as áreas mediterrânicas,


pela criação de novos assentamentos e pelas influências culturais introduzidas.
Existe um forte sentido religioso no plano da cidade romana. A delimitação do perí­
metro da cidade e o seu traçado obedeciam a um ritual religioso, a uma ordem sagra­
da. No perímetro da cidade, as religiões estrangeiras não pod,em entrar (e por essa ra­
zão o cristianismo desenvolve-se inicialmente nas catacumbas da periferia). A cidade
orienta-se de este a oeste - no sentido do nascer ao pôr do sol -, interligando-se a
uma ordem cósmica e universal. Os dois eixos principais - o Decumanus maximus,
O/E; e o Cardus, N/S - encontram-se no centro, lugar geométrico da área construída.
O traçado de dois ,eixos fundamentais é um gesto «quase cósmico» de ocupação do ter­
ritório e que perdurará no modo de desenhar as cidades em épocas posteriores.
Lúcio Costa, em Brasília, recorre ao mesmo traçado em cruz e descreve a ideia cria­
dora também com alusões místicas. O mesmo esquema recria noutras situações o mo­
delo inicial, em que se integram o nível religioso, 'sagrado ou simbólico, também o nível
técnico-construtivo e o nível distributivo na organização urbana.
É nas colónias romanas que maior utilização se faz da quadrícula, quer por razões

144

2 3

3-7. Timgod. Plano do assentamento romano, escavado pela Direcfion des Anfiquifés (Gov. do
Argélia). Fora do perímetro da cidade, vêem-se os subúrbios irregulares posteriores. 2. Planta­
tipo de castro romano. 3. Plano de Dogontyo, instalação romana fortificada na Jordânia.

145
fundiárias - a divisão do terreno pelos colonos - quer pela facilidade de construção e
utilização de mão-de-obra, nem sempre qualificada nem inventiva, e à qual se fornece
um esquema predeterminado de fácil assimilação e adaptação às necessidades de
infra-estruturas de sistema viário, de abastecimento de água, esgotos e drenagens plu­
viais. A perfeição técnica tem também um substrato religioso na utilização de regras
matemáticas e geométricas: o triângulo de ouro, o número de ouro (o que, de resto, se
repetirá, como em le Corbusier e o «Modulor»).
Éem Roma que se coloca pela primeira vez, e com pleno sentido, a regulamentação
urbanístiéa. Afalta de espaço e de água, as necessidades de defesa e a grande dimen­
são obrigam a minuciosos regulamentos que o aparelho jurídico romano codifica e or­
ganiza: regras, posturas, interdições e obrigações, produzem um controlo apertado
sobre demolições e construções, circulação, distribuição de água ou crescimento urba­
no. Após o incêndio do Campo de Marte, em 64 a. c., é realizado um plano que pro­
põe a intervenção do Estado e da iniciativa privada, estabelecendo taxas, isenções e
direitos de construção numa antecipação aos processos de gestão urbanística (7).
O poder imperial faz-se representar através de grandes obras, monumentos e gran­
des infra-estruturas. Éa partir do poder político que se operam as grandes transforma­
ções urbanas. Em Roma é o imperador que dirige pessoalmente as novas construções,
arcos do triunfo, equipamentos como o mercado de Traiano, ou a residência imperial.
O «zonamento» é já consequência de hierarquia social e de técnicas de organiza­
ção urbana. Aprocura de espaço e a necessidade de expansão induzem a construir em
altura: as insu/ae atingem os seis andares e substituem os domus - de um único piso.
A organização da cidade tinha também em conta a preparação dos lugares públi­
cos para multidões: o Circus Maximus contem 400 000 lugares; constroem-se os tea­
tros, as termas, os mercados, os circos, numa escala e dimensão antes desconhecidas,
que desaparecem com o Império Romano e s6 voltam a existir com as exposições uni­
versais, os estádios olímpicos e os grandes equipamentos públicos nos séculos XIX e XX.
É aos romanos que se deve a invenção da «obra de arte» ou inrra-estrutura utilitá­
ria: a ponte, o aqueduto, o canal, são os exemplos mais evidentes. Estas obras de ar­
quitectura e engenharia fazem o sítio, constroem a paisagem e, com o tempo, tornam­
-se monumentos no sentido pleno do termo.
Nos Gregos, a procura de integração entre a arquitectura e a natureza comanda o
acto de construir. O sentido do grandioso e do monumental na arquitectura é romano.
~raduz o Império e a forte organização político-social, capaz de colonizar o mundo.
A delicadeza e subtileza da arquitectura e urbanismo gregos contrapõe-se a monu­
mentalidade romana, demonstrativa de força, capacidade técnica e realização. Gre­
gos e Romanos representavam já no essencial os modelos possíveis de diálogo do edifí­
cio com o sítio: por integração ou por afirmação.

146

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3-8. Reconstituição do centro de Roma - maquetá e plano de localização dos conjuntos monu­
mentais e edjfkios públicos. Aorientação da maqueta e do plano é idêntica para permitir a com·
paração

147
Algumas categorias de espaços e de elementos morfológicos são já utilizadas com
significado próprio na Grécia e em Roma: a rua, lugar de comércio, de circulação; a
praça - lugar de encontro cívico-social, lugar nobre e de prestígio, quer se chamasse
ágora ou forum; o monumento, a obra de «engenbaria», de infra-estrutura - como
elemento morfológico preponderante na estrutura e na imagem da cidade.
O espaço romano é concentrado e maciço. A monumentalidade é obtida pela satu­
ração de construções pela sua dimensão excepcional. É o crescimento por «acumula­
ção» (8) de volumes, de edifícios que comprimem o tecido urbano, sem a ideia prévia de
relações espaciais dialécticas, como na Grécia. A utilização sistemática de formas cir­
culares - meios cilindros, cilindros completos, círculos, esferas - produz imagens de
grande intensidade arquitectónica, mas que não dialogam por continuidade. A Roma
Imperial quase resulta num caos de grandes e monumentais edifícios ocupando o terri­
tório e comprimindo-se mutuamente.

o QUARTEIRÃO GREGO E O ROMANO


O que se sabe do quarteirão grego, helenístico e romano é o que é dado observar
pelas escavações e textos da época
Na Grécia, a con~tituição do quarteirão vai de par com a utilização da quadrícula.
Mileto, Príamo, Doura-Europos utilizam a quadrícula geométrica. Cada quadra corres­
ponde ao que se poderia designar por «quarteirão». Este quarteirão é essencialmente
ocupado por residências, já que o posicionamento e localização dos edifícios públicos é
indepentemente da malha geométrica. As retículas parecem ser essencialmente um
meio de loteamento residencial, ainda sem referências estéticas precisas.
O quarteirão grego é subdividido em lotes residenciais de diferentes tamanhos re­
sultantes de um parcelamento prévio que distribui terra a caqa família. A habitação, de
um só piso, ocupa áreas variáveis, na medida em que pode conter pátios e espaços li­
vres interiores, não havendo $eparação entre con~trução e logradouro.
Esta ocupação do quarteirão resulta do tipo de edifício habitacional em que as de­
pendências construídas se desenvolvem em redor de pátios. O quarteirão separa-se do
traçado através de muros ou de fachadas, nas quais podem existir portas e janelas.
A fachada ou o muro constituem a membrana de separacão entre a rua e a residência.
O quarteirão romano continua este tipo de organização. Éfundamentalmente resi­
dencial e subdivide-se em parcelas, cada qual ocupada por uma villa ou por uma insu­
lae. No quarteirão romano, é também o muro ou a fachada que seguem o traçado da
rua. Em ambos os casos - grego. e romano -, o quarteirão não tem logradouro ou
horta. No seu interior, os espaços livres correspondem a pátios, nãQ sobrando espaços

148

3·9. Pompeia. Planta de um sector com os quadras ou quarteirões e o parcelamento em insulae


(vivendas, pó tias em 1 e 2 pisos)

149

residuais ou intersticiais. No entanto, o aparato da habitação é muito maior em Roma


do que no Grécia, o que resulta da diferente organização social: da existência de mui~
tas famflias poderosas e também de um maior requinte e conforto no habitar.
Em Roma, os grandes ediffcios e espaços públicos integram-se com o sistema de
quadrrcula. O assentamento das grandes estruturas ocupa por vezes v6rios quartei~
rões, sem interromper os traçados que os delimitam.
Aimplantação e estrutura do quarteirão, quer na Grécia quer em Roma, retiram­
-lhe participação no desenho do espaço público, sobretudo no centro da cidade. Os
quarteirões ~ão (repito) meios de organização e divisão do solo em partes. Não fozem
ainda parte dos instrumentos da estética urbana como elementos significantes da cida~
de. Uma tal atitude s6 surge no fim da Idade Média e é desenvolvida posteriormente.

150

3.3 A FORMA URBANA MEDIEVAL


Após a queda do Império Romano, diminuiu o ritmo de crescimento demográfico e
a vida urbana foi substancialmente reduzida, até que nos séculos Xe XI a estabilidade
política e o ressurgimento do comércio voltaram a dinamizar as estruturas urbanas.
Nesse período de tempo, os centros urbanos da Europa foram-se modificando.
A formação das cidades medievais tem diversas origens:
• antigas cidades romanas que permaneceram, ou que, tendo sido abandonadas, são
posteriormente reocupadas;
• burgos que se formam na periferia da cidade romana, por vezes do outro lado do
rio, e que se desenvolvem até formar cidades;
• antigos santuários cristãos instalados fora das cidades romanas e que, no período
medieval, vão formar novos núcleos urbanos.
• cidades que se formam pelo crescimento de aldeias rurais;
• novas cidades, como as bastídes, fundadas, como bases comerciais e militares, a
partir de um plano geométrico predeterminado.

Destas diversas origens decorrem modelos urbanos diferenciados, mas cuja morfo­
logia tende, com o tempo,' a assemelhar-se. O crescimento e a instalação de novas fun­
ções, como as ordens militares e religiosas, conduzem a uma sobreposição de traça­
dos: aos restos do traçado ortogonal romano vai sobrepor-se o traçado radiocêntrico
da Idade Média. Mudanças funcionais, falta de espaço dentro do perímetro amuralha­
do, dificuldades na obtenção dos materiais de construção, levam a cidade medieval a
utilizar os restos das antigas cidades romanas: pedras de templos e edifícios.
Asobreposição de traçados e de construções realiza-se sem uma ordem predefinida
e com pontos de apoio nos eixos que ligam as cidades, estradas de passagem, portas
das muralhas, pontes sobre os rios, etc.
Assim, a formação da cidade medieval vai processar-se organicamente por desen­
volvimento das antigas estruturas romanas ou pela fundação de cidades novas organi­
zadas segundo um plano regulador.
No primeiro caso, a estrutura original romana perde-se durante séculos de abando­
no e não é totalmente retom.oda na reocupação, porque 'a quadrícula se revela de pou­
ca utilidade. O aspecto final· é de aparente desordem, muitas vezes favorecida pela to­
pografia do terreno, que desaconselha os traçados geométricos.
Adisposição dos traçados medievais também corresponde à divisão do terreno em
loteamento que se vai sobrepor às ruínas e restos dos assentamentos anteriores. Aope

151

ração de loteamento é mais evidente na fundação de bastides ou cidades novas, pelo


recurso à quadrícula e a geometrias de divisão do solo. A possibilidade de um traçado
em terreno livre conduz a formas regulares e a úma ideia predeterminada na concep­
ção espacial.
Gradualmente, novos conceitos de desenho vão tomando lugar: abandona-se a es­
cala monumental das cidades romanas em favor de uma morfologia mais intimista, cul­
minando na forma e escala das pequenas cidades medievais, cujo desenvolvimento se
apoia em classes sociais: o artesão e o comerciante, que se agrupam em sistemas de
corporação e poupança, dando mais tarde início à banca.
O desenvolvimento deste sistema social gera aumentos e redistribuições demográfi­
cas e necessidade de novos espaços. Episodicamentte, grandes flagelos, pestes, epide­
mias e guerras provocam diminuições demográficas e destruições. A cidade «cresce» e
«diminui» E!m períodos alternados.
A figura da página oposta representa uma cidade tal como existia no imaginário
medieval. Transmite uma entidade orgânica na sua dimensão e na sua forma circunscri­
ta pelas muralhas. Nesta imagem, existem os elementos e componentes que caracteri­
zam a cidade medieval. Passo a identificá-los.

AS MURALHAS

Quase todas as cidades possuíam as suas defesas, compostas de muros, torres, fos­
sos e muralhas. As muralhas são o seu perímetro defensivo e, simultaneamente, sepa­
ração com o campo e o mundo rural. Por razões de espaço, a cidade concentra-se até
ser necessário alargar o seu limite e construir novas muralhas que englobam as expan­
sões. Assim se formam os anéis sucessivos de construções e de sistemas defensivos. A
muralha delimita a cidade e caracteriza a sua imagem e forma.

AS RUAS

A rua é o elemento base do espaço urbano medieval e vai preencher quase todo o
interior do perímetro urbano. São concebidas para se andar a pé ou com animais de
carga. Servem a circulação e o acesso aos edifícios. A pa:,imentação é já utilizada fre­
quentemente a partir dos séculos XI e XII. Ligados aos sistemas de rua, encontram-se os
edifícios com as suas fachadas de grande valor comercial, já que os pisos térreos são
ocupados por lojas. A rua é também extensão do mercado e nela se negoceia, compra
e vende. As ruas delimitam quarteirões, que se subdividem em logradouros e em edifí­

152

153

cios. O sistema constituído pelo quarteirão, logradouro, prédio e fachada surge na


Idade Média e com variações vai manter-se até aos nossos dias.
Morris (9) desfaz a ideia de que as cidades medievais fossem insalubres e excessiva­
mente densas, pois a estreiteza das ruas seria compensada pela existência de hortas,
jardins e espaços livres no interior dos quarteirões.
Os edifícios habitacionais são regulares e uniformes e formam um pano de fundo da
estrutura urbana. Em épocas de crescimento, ocupam os espaços livres, avançando em
balanço sobre a rua, chegando a construir-se por todos os lados, até nas pontes.

OS ESPAÇOS PÚBLICOS: A PRAÇA E O MERCADO

O mercado corresponde à principal razão da cidade como lugar de trocas e servi­


ços. A posição do mercado varia ou até duplica, desde o adro da igreja ao centro da
cidade, ou junto a uma das suas portas. É o espaço aberto e público por excelência, e a
função comercial prolonga-se pelas ruas.
Apraça é geralmente irregular e resulta mais de um vazio aberto na estrutura urba­
na do que de um desenho prévio. É na Idade Média que se começa a esboçar o concei­
to de praça europeia, que atingirá o apogeu a partir do Renascimento. Apraça medie­
val é um largo de geometria irregular mas com funções importantes de comércio e reu­
nião social. Assim, as praças medievais dividem-se geralmente na praça do mercado e
na praça de igreja (adro), ou o parvis medieval. As suas funções são diferentes e a sua
localização na estrutura urbana, também.

OS EDIFíCIOS SINGULARES

A igreja ou a catedral, como principais lugares da religiosidade; o castelo, lugar de


defesa e de poder; o palácio e os torres senhoriais ou o Câmara Municipal, lugares de
poder, sobressaem na forma urbana medieval, contrapondo-se à estrutura anónimo e
modesto das habitações. São elementos fisica e ritualmente dominantes, embora não
estruturem traçados. Contrapõem ao perímetro amuralhado o sua formo e significa­
ção. São introduzidos por «acumulação» no estrutura urbano, estando muitas vezes as­
sociados 00 espaço público colectivo - o praça e o mercado.

O QUARTEIRÃO MEDIEVAL

O quarteirão medieval apresenta modificações importantes em relação ao quartei­


rão romano, quer na sua forma quer no posicionamento dos edifícios que o ocupam,

154


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3-11. Braga medieval, 1594 - extraída da livra Cívitates Orbis Terrarum de Georges Braun
(1542-1600). Vistas de Castela Branca, Idanha-a-Nava e Penomocor, segundo Duorte d' Armas

155

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PORTAS:
1. da Vila - porta princiE
te demolida, da fundaça
2. de O. Manuel I - ostent
do Rei, terá sido abert
3. da Afeição - de origem,
de beneficiação em 1273
de Afonso III. Foi demo
Um dos torreões foi dem
mente com o ediflcio da
nos anos 30 do nosso sé
4. do Buraco - apesar do n
também de origeml
5. 00 postigo, ou dos Mour
seguramente na época Ar
constituido apÕs a reco
porta de acesso princip
6. Porta Nova - junto ao t
extremo poente da mural
mente tapada no seu lad
aterros sucessivos e no
edificações, serviria d
fonte do cano e áreas a
anexas;
7. Porta da Vila Fria - Da
horta da Bela Fria, foi
tentativa de fecho em 1
frades do Convento da G
8. Porta dos Pelames - loc
ao rio, na Calçada de O
ainda hoje vestlgios de
9. Porta de S. Brás - Na m
da do rio, teri sido co
séc. XV ou XVI, sendo d,
1862.
la. Torre de Mar e Edifício
construido no reinado di
foi demolido o arco de :
muralhas em 1883, sendo
torre demolidos posteri<
.J 1888 por ocasião das Obl
~ alargamento da via e bel
~~---=!......!2!.!!....:!-~~~~~~~~.!-..!.!...~~~~-.:.-_-=-
~
.J"'l-.. Praça da Ribeira (Praça_

OE REABILITAÇÃO E SAlV~ 00 CENTRO HISTÓRICO DE TAVIRA 1f ase


19H

analise
3 evolução, histórica e

3- 12. Reconstituição dos muralhas árabes e medievais de Taviro, segundo o estudo do Plano do
Centro Histórico - atelier Carlos Duarte-José lamas

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3-13. 1. Planta actual de Serpa, com o núcleo medieval a tracejado, As muralhas medievais deli­
mitam o anligo castro romano. Aos traçados romanos do Cardus e Decumanos Maximos, mais ir­
regulares devido à topografia, sobrepõem-se os distorções medievais. 2. Aosta - plano do anti·
ga cidade romana e da cidade medieval sobreposta ao traçado romano. Desenho de Stübben re­
produzido por Unwin

157

quer no papel que desempenha na estrutura urbana. Os edifícios vão concentrar-se na


periferia ou no perímetro do quarteirão, em contacto directo com a rua, deixando livre
a zona posterior de cada lote. Este espaço livre é utilizado para hortas ou jardins priva·
dos e constitui uma área de reserva e salubridade urbana.
Nos antigos bairros de Lisboa, como Alfama e Mouraria, ainda se poderá encon­
trar a imagem dos quarteirões medievais, pese embora as modificações surgidas em
mais de quinhentos anos.
Aforma do quarteirão medieval é determinada pelos traçados viários. Quando es­
tes são regulares, quadriculados, originam quarteirões mais regulares. Não parece ter
sido abundante na Idade Média a utilização de módulos geométricos e de dimensÕes
predeterminadas, excepto nas cidades fundadas de novo. Os edifkios que na Idade
Média já possuem individualidade própria ocupam a periferia do quarteirão e variam
no desenho da fachada e na cércea, conferindo-lhe irregularidade volumétrica.
O quarteirão deixa de ser apenas um meio de loteamento e divisão cadastral do so­
lo, para se constituir também como elemento morfológico do espaço urbano.

•*.

Sobre estes elementos morfológicos da cidade medieval muito haveria para dizer,
mas basta registá-los pela importância que tiveram na formação do espaço urbano eu­
ropeu. Com efeito, a forma urbana medieval vai permanecer nas cidades europeias e
servir de referência na medida em que irá «simbolizar» a estrutura orgânica.
Adiversidade de formas e imagens assim obtidas produzirá efeitos cénicos,volumé­
tricos e visuais muito diversificados, os quais Sitte designaria de «pitorescos» (10).
Todavia há que esclarecer se o planeamento urbano medieval terá sido fruto do aca­
so ou pe prindpios de urbanismo aplicados ao crescimento orgânico.
Vários autores são contraditórios sobre esta matéria. Para Morris, exceptuando as
«decisões colectivas tomadas ocasionalmente e para os grandes problemas urbanos»,
existem escassos documentos que possam comprovar um planeamento e decisões sobre
traçado e estética no dia-a-dia do crescimento urbano medieval. Terá sido, de resto,
nas cidades medievais italianas que as preocupações estéticas mais se fizeram sentir.
Contrariando esta tese, Mumford (111 escreve com entusiasmo que já na Idade Mé­
dia se prolongaria uma rua para embelezar a cidade ou descobrir uma nova perspec­
tiva, exemplificando o interesse dos cidadão~ pela arquitectura e pela cidade, ao esco­
lherem os pilares da catedral de Florença.
A questão só tem resposta nos resultados espaciais e visuais da cidade medieval,
que apresentam grande riqueza na organização e sequência de percursos e nas vistas
e perspectivas das massas construfdas.

158
3·14. Óbidos. Planta com o núcleo medieval, as muralhas e a expansão posterior. Vista tirada
das muralhas para o castelo. Planta da praça da igreja, e mercado com o muro de suporte

159

Quero com isto dizer que me parece de excluir o «acaso» no urbanismo, quando os
resultados são estética e formalmente válidos. Admitiria que não existiram regras estéti­
cas (no sentido definido a partir do Renascimento) que determinassem o desenho urba­
no. Mas existiram, sem dúvida, outras regras, aplicadas ao modo de colocar edifícios,
aos processos construtivos, à unidade de materiais e formas. Esse conjunto de regras
aplicadas diariamente como prática de construir conduziria a qualidade estética e ar­
quitectónica, garantindo a coerência da imagem da cidade medieval.
O espaço e morfologia urbanos medievais serão uma referência importante em al­
guns períodos da história do urbanismo, servindo de modelo para a diversidade espa­
cial e animação em novas urbanizações.
Camillo Sitte, em 1889, terá sido dos primeiros a interessar-se pelo desenho urbano
medieval ao publicar Der Stadtebau nach seinen Kunst (12), Criticando o desenho urba­
no dos planos alemães e austríacos seus contemporâneos, que acusa de excessiva su­
bordinação aos problemas técnicos e de tráfego e de desatenção pelos resultados am­
bientais e estéticos, as propostas de Sitte partem da análise da cidade medieval para
revalorizarem a composição orgânica. Sitte recusa o edifício isolado, as linhas rectas,
as grandes perspectivas, a uniformidade geométrica dos planos, e os regulamentos
ubanísticos abstractos. Em contrapartida, baseia-se na exploração das particularida­
des topográficas, nas relações de escala e de assimetria, na volumetria diversificada ­
no fundo, aquilo que «tendenciosamente» procura ver na cidade medieval.
Pela sua sistematização, quase receituário de fórmulas espaciais, as propostas de
Sitte aplicavam-se, sem dúvida, à pequena escala, à rua e ao bairro, mas tornavam-se
inoperantes ao afrontar os problemas da grande cidade novecentista.
Anãs mais tarde, Unwin, em Town P/anning in Pratice (13), recoloca noutros moldes al­
guns valores espaciais da cidade medieval - a perspectiva fechada, a variação volumé­
trica, a escala humana -, que seriam introduzidos nos espaços de Letchworth e We/wyn.
A «tentação medieval» - identificada com a urbanística orgânica - surge em di­
versos períodos, servindo a recusa do racionalismo e do traçado geométrico.
Além do mais, a conservação até aos nossos dias de muitos centros históricos medie­
vais torna-os elementos disponíveis para a reflexão sobre o desenho da cidade.
Assim, a morfologia da cidade medieval não pode ser esquecida no estirador da
prática profissiona.!, como um dos «modelos» de composição do espaço. Porém modelo
difícil de utilizar, na medida em que será difícil recriar só pelo desenho a complexidade
visual e formal construída por sedimentação e acumulação durante séculos.
Como escreve Zevi (14), «a partir do final da Idade Média perdeu-se o gosto pela li­
berdade geométrica - que coincidirá simbolicamente com o gosto pela liberdade tout
court. Um edifício como o Pa/azzo Vecchio, em Florença, ou a Praça do Campo, em
Sienna, parecem actualmente pertencer a outro planeta.

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3-15. Plonos de 8 Bostides froncesos à mesmo escolo e orientocão o - Ville réol. b - Lolinde. c
- Costigliones. d - Eymet. e - Ville Fronche du Perigord. f- Domme. 9 - Beoumont. h - Mon·
lanquin. Plano de Montpozier, segundo desenho de Porker. Plono de Aigues Mortes (1250-1300)

161

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3·16. Análise do espaço urbano medieval de Bults/ed/ por Unwin no Town Plonning in Proc/ice

162

3-17. 5ienna. Planto do cidade no $éc. XVI e planto do Praça do Compo e vi$to aéreo

163

court. Um edifkio como o Pa/azzo Vecchio, em Florença, ou a Praça do Campo, em


Sienna, parecem actualmente pertencer a outro planeta.
«Os arquitectos, para os produzirem, devem ter deitado fora réguas, T, esquadros
e.compassos e todo o arsenal de desenho concebido em função da gramática e sintaxe
clássica. Com tais instrumentos, seria impossível reproduzir um episódio urbano como a
Praça do Campo, em Sienna.
A análise de Zevi é reveladora de que os resultados espaciais e formais da cidade
medieval decorrem não apenas de um sentido estético, mas também de um processo de
formação que criou um modelo de referência para o desenho urbano.
Referência ainda actual, na medida em que a preocupação com a «forma urbana»
não pode esquecer a utilização de geometrias irregulares. A morfologia urbana medie­
val continua a servir de referência e tem sido abundamentemente utilizada em em­
preendimentos como os aldeamentos turísticos, em que a natureza do programa e da
construção procuram a diversidade e a aparente desordem de implantações e volumes.
Todavia as preocupações recentes da cultura urbana parecem mais coladas ao traçado
rectilíneo e geométrico que facilita a produção em série.

164

7. Con la riga e la squadra, ii tavolo da disegno e iI tecnigrafo,


risulta difficile ed estenuante riprodurre un episodio urbano me·
dievale come la piazza dei Campo a Siena. Servendosi di questi
strumenti, si concepiscono soltanto arcrutetture scatolari, facil·
mente rappresentabili coi meccanismo dei sistema prospetuco.

9. Armato di riga a T, l'architetto non pensa piú I'architettura,


ma solo i1 modo di rappresentarla. La lingua prospettica <llo par·
la., costringendolo a progettare in termini di prismi e di ordini
prismatici sovrapposti, siano essi quelli dei palazzi rinascimentali
o dell'orrendo e grottesco <l Colosseo quadrato. dell'Eur a Roma.

3-18. Desenhos de Zevi em II Linguaggio Moderno deli Archifeffura. 1. Com a régua e o esqua·
dro, o estirador e máquina de desenho, é difícil e extenuante reproduzir um episódio urbano co­
mo a Piazza dei Campo, em Sienna. Com esses instrumentos. concebem-se apenas arquitecturas
escatológicas, facilmente representáveis com o mecanismo do sistema prospectivo. 2. Armado de
régua e T, o arquitecto já não pensa arquitectura, mas apenas o modo de a «representar•.
Demonstra-o a linguagem prospectiva, constringindo-o a projectar em termos de prismas e or­
dens prismáticos sobrepostas, quer sejam os dos palácios renascentistas ou do horrendo e grotes­
co Coliseu Quadrado da EUR em Roma

165

3·19. Cenórios urbanos dos pinturas do Renascimento. Pinturas em tóbuo atribuídos o Piero dei·
lo Francesco

166

3.4 O DESENHO URBANO NO RENASCIMENTO


ENOBARROCO

o período que se designa por Renascimento estende-se em Itália desde os princfpios


do século XV até finais do século XVIII. Na história da arquitectura,é consensual distin­
guir várias fases: o primeiro Renascimento, de 1420 a 1500 (essencialmente restringido
à Itália); o Renascimento tardio, que vai de 1500 a 1600; o Barroco, de 1600 até cerca
de 1765, e, finalmente, o período Rococó e Neoclássico, de 1750 a 1900, embora es­
tas datas tenham óbvias variações de país para país e de região para região (lS).
Etimologicamente, Renascimento significa «voltar a nascer», ou seja, voltar às for­
mas de arte da antiguidade romana e grega, como motivos de inspiração.
O Renascimento estabeleceu um quadro intelectual de mudança e «oposição» ao
misticismo medieval,assumindo um novo estilo na pintura, na escultura, na arquitectura
e no urbanismo. O Renascimento surgiu em Florença, e propagou-se ao resto da It61ia,
onde o gótico medieval não tinha grande aceitação (e onde a população, os intelec­
tuais e artistas se encontravam familiarizados com as obras romanas do passado, em­
bora por vezes apenas com as suas ruínas), e atinge mais tarde toda a Europa.
Outros dois factos pesaram significativamente: a descoberta em 1412 e a publica­
ção, em 1521, dos escritos em Vitruvio - De Architectura e o afluxo de muitos artistas
gregos a Itália, motivado pela conquista de Constantinopla pelos turcos, em 1453 (16).
Numa época em que os arquitectos e os artistas já imitavam e interpretavam os monu­
mentos antigos, os escritos de Vitruvio adquiriram um significado cultural e místico tal­
vez superior ao seu valor real.
Os novos esquemas arquitectónicos e urbanísticos são, numa primeira fase, desen­
volvidos através dos cenários da pintura. São os pintC5res (embora a prática das três ar­
tes seja uma característica do Renascimento) quem primeiro «constrói» o espaço urba­
no. Francesco da Giorgio e outros pintores produzem nos seus quadros a cidade renas­
centista: o espaço organiza-se por um grande eixo ladeado de edifícios nem sempre
iguais e simétricos. Assim, pintores, geómetras, matemáticos, vão explorando a recém­
descoberta ciência ~a perspectiva, desenhando as paisagens urbanas que serão reali­
zadas nos séculos seguintes.
A invenção da Imprensa (17), irá permitir a difusão das teorias e desenhos imagina­
dos pelos arquitectos renascentistas, alcançando todos os centros europeus. Deixava
então de ser necessário construir e realizar as obras para exemplificar as ideias arqui­
tectónicas. Os livros encarregavam-se dessa tarefa e os urbanistas renascentistas iriam
expressar-se mais facilmente na Imprensa do que nas cidades, ultrapassando as dificul­

167

dades sempre existentes nas realizações urbanas. Aparecem numerosos tratados de ar­
quitectura, de desenho e de construção de cidades (18},
Do século XV em diante, o desenho de arquitectura, as teorias estéticas e os princí­
pios de urbanismo irão obedecer a ideias semelhantes - sendo a principal O desejo de
ordem e disciplina geométrica. Énítido o contraste com a irregularidade urbana medie­
val, mesmo quando esta procede de um plano regular. Em «discursos., tratados, es­
quemas, projectos e realizações, a forma da cidade é subordinada à unidade e racio­
nalidade. Para Alberti (19), a cidade deve constituir-se com o objectivo do p"razer auste­
ro da geometria. A forma radioconcêntrica consubstancia esta perfeição geométrica,
como na proposta de Filarete (20), em que radiais ligam as portas da cidade ao seu
centro-praça - lugar dos edifícios públicos. Aforma radiúconcêntrica é objecto de nu­
merosas especulações renascentistas que a perfilham para o traçado da «cidade ideal».
Aintegração entre arquitectura e urbanística existirá desde o início do Renascimen­
to até ao século XIX. Todavia a arquitectura absorve primeiro as novas ideias nas reali­
zações, enquanto o urbanismo se desenvolve apenas em termos teóricos, desde a con­
cepção da cidade ideal aos tratados de arquitectura e desenho de cidades (21).
Aaplicação dos princípios renascentistas à urbanística foi condicionada pelo cresci­
mento demográfico, e transformações de renovação e intervenção no casco urbano.
O tamanho contido da cidade medieval não oferecia de início possibilidades de in­
tervenções em grande escala.
No início do Renascimento, a Europa não necessitava de novos núcleos, dada a ar­
madura territorial urbana que se havia constituído e completado na Idade Média. Só
do Renascimento (1500-1600) se criaram novas cidades por razões militares, como Pa/­
ma Nuova, Neuf-Brisach e Almeida, ou de poderio e prestígio como Ville-Riche/ieu, aí
se aplicando os princípios urbanisticos renascentistas.
A urbanística renascentista vai de início manifestar-se em alguns campos específi­
cos: construção de sistemas de fortificações; modificação de zonas da cidade com a
criação de espaços públicos ou praças e arruamentos rectilíneos; reestruturação de ci­
dades pelo rasgamento de nova rede viária; construção de novos bairros e expansões
urbanas, utilizando quadrículas regulares (o Bairro Alto, em Lisboa).
Benevolo situa na expansão renascentista de Ferrara, «desenhada» por Biaggio
Rossetti, a primeira manifestação de «urbanismo moderno» (22). Outros autores conside­
ram a Via Nuova; em Génova, em 1470, a primeira obra de urbanismo renascentista,
pelo ordenamento consciente de edifícios, ao longo de uma rua rectilínea.
A partir de finais do século XVII, todas as realizações serão influenciadas pelo Re­
nascimento. AEuropa entra em definitivo numa nova era cultural e estética cujos princí­
pios no campo urbanístico e arquitectónico só seriam definitivamente abandonados no
século XX, com o Movimento Moderno.

168
3-20. Cidades ideais renascentislas. 1. Cidade ideal por Vitruvia (descrito, mas não desenhado)
- reconstituição. 2. hlarete- Sfarzinda no Tralado d'ArchiteHvra, 1457-1464. 3. Pielro Cato­
neo - ArchiteHvro, 1554, 4, Donieli Barbado - Oieei Libll del/'ArchiteHvra, de M. Vitruvio,
1567. 5. Buonoiuto Lorini - Delle Fortificazione Libra Cinqvi, 1592. 6. Vicenzo ScamoZZl -­
L'Ideal del!'ArchileHvro Universole, 1615. 7. Scamozzi -- Palmo Nvovo, 1593, a única projecta­
da e realizada (desenho de Scomozzi e vista aerea)

169
Todavia será errado assimilar um tão longo período a uma unidade estética e cultu­
ral contínua, e só por comodidade de apresentação de ideias será lícito agrupar perío­
dos tão distintos como o primeiro Renascimento e a segunda metade do século XIX.
Entre a arquitectura e o urbanismo do primeiro Renascimento e o Barroco e o Clás­
sico dos séculos XVIII e XIX existem diferenças profundas, embora existam também uma
interligação e um fio condutor.
Wolfflin sintetizou com grande vivacidade a diferença entre o Renascimento e o
Barroco:
«... Em contraste com a arte do Renascimento, que tende à permanência e imobili­
dade de todas as coisas, o Barroco manifesta, desde o seu início, um grande sentido
de direcção e movimento (...). A arte do Renascimento é a arte da calma e da bele­
za ... as suas criações são perfeitas; não revelam que nada foi forçado ou inibido,
nem inquietação ou agitação. Não estamos equivocados se vemos nesta calma e sa­
tisfação celestiais a mais alta expressão do espírito artístico desta época. O Barroco
propõe operar de outro modo. Recorre ao poder da emoção para comover e subju­
gar com a força do seu impacte; tende a dar uma impressão instantânea, enquanto
o impacte de uma obra do Renascimento é mais suave e lento, e também mais dura­

douro - um modo que não se deseja jamais abandonar. O momentâneo impacte

que exerce o Barroco é poderoso, mas abandona-nos logo, deixando-nos um senti­

mento de desolação.» (23)

As observações de Wolfflin são também extensíveis ao campo urbanístico. A orga­

nização espacial renascentista aspira a um sossegado equilíbrio, completo em si mes­


mo, num espaço limitado e em repouso. Pelo contrário, o urbanismo barroco propõe
um espaço e de grande dinamismo e movimento.
Um belo exemplo será a comparação do espaço estático, equilibrado e caAlmo da
Píazza della Annunzíatta, em Florença, com a praça do Capitólio, de Miguel Angelo,
ou a Praça de S. Pedro, em Roma.
Sem retirar importância a esta questão, prefiro deter-me na observação dos ele­
mentos morfológicos que integraram a composição da cidade a partir do Renascimen­
to. Tais elementos serão constantes até ao século XIX, embora variem na sua expressão
estética e disposição no terreno, produzindo diferentes espaços.

AS FORTIFICAÇÕES

Seria restritivo falar apenas de muralhas. A evolução das técnicas militares e a ge­
neralização do canhão tornam obsoletas as muralhas medievais. As estratégias de de­
fesa vão apoiar-se em muralhas e na distância entre o sistema de fortificações e a cida­

170

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3-21. Almeida: a fortificação cidade medieval fortificada no séc. XVII. Vista aérea e plano.
Mouro: as fortificações do séc. XVII. O desenho do modelo teórico e plano da adaptação à situa­
ção real, segundo desenho de 1657

171

de que deveria obrigar o assaltante a parar antes que os seus canhões pudessem atin­
gir a cidade. Assim se criaram complexos sistemas de fossos, rampas, baluartes e mura­
lhas, segundo técnicas que Vauban desenvolveria e sistematizaria no século XVII (24).
Aeficácia destes sistemas defensivos altera a estrutura urbana. Enquanto a muralha
medieval podia ser substituída em anéis concêntricos, o sistema de fortificações renas­
centista é estático, custoso e pesado, impede o crescimento da cidade e comprime-a,
com consequências na elevação das densidades.
Aforma da cidade renascentista é muito condicionada pelas fortificações, que assu­
mem grande importância física e visual. Elvas ou Almeida demonstram esta questão.
A importância das fortificações vai estender-se até ao século XIX, embora com siste­
mas e processos diferentes. No cerco de Paris, em 1871, os prussianos são detidos por
linhas defensivas... quase no final do século XIX.
Mas nessa época já os sistemas defensivos são transformados, enquanto a evolução
das estratégias militares irá transferir as batalhas do cerco às cidades para o campo
aberto e tornando as muralhas obsoletas.
A outro nível, a concentraçõo humana motivada pelas necessidades de defesa irá
condicionar os modos de vida dos habitante\ favorecendo a urbanidade e a vida so­
cial.

A RUA

A rua, ou o traçado, irá tornar-se um elemento de grande importância. A rua re­


nascentista será um percurso rectilíneo (25) que mantém a função de acesso aos edifícios,
mas será, pela primeira vez, eixo de perspectiva, traço de união e de valorização entre
elementos urbanos. A rua deixa de ser apenas um percurso funcional - como na Idade
Média -, para se tornar também um percurso visual, decorativo, de aparato, próprio
à deslocação por carruagem e organizador de efeitos cénicos e estéticos.
A rua renascentista e as suas variações mais elaboradas, como a avenida, são recti­
líneas por razões estéticas e de perspectiva, e também para resolver problemas viários,
já que se generaliza a utilização de carroças e coches, para cujo tráfego as tortuosas e
estreitas ruas me.dievais não se encontravam preparadas. A rua renascentista será um
importante sistema de circulação, até se tornar, no período barroco, em cenário - cor­
redor para as grandes movimentações, procissões', cortejos e paradas.
A burguesia e a nobreza, que necessitam dàs fachadas dos seus palácios para os­
tentarem o poder e a magnificência, irão encontrar na rua o suporte do sistema social
que se serve da arquitectura como meio de ostentação.
É no período clássico (da Renascença ao Barroco) que se estabelecerá a perfeita

172

3·22. A Ploce A/berros. em Alx·en-Provence, organizado poro enquadramento e uporoto do


palácio A/berros (fronteiro). o vista e plonta. As fachados recobrem edifícios com upenos 2 a 3 ln
de espessura

173
identidade entre o traçado e as fachadas dos edifícios que o marginam. Através do de­
senho das fachadas, que em muitos casos se repetem com ordem e disciplina, o traçado
adquire grande unidade e intensidade estética. Torna-se o elemento gerador da forma
das cidades, hierarquizando-se pela sua importância funcional e perfil.
As árvores passam também a ser utilizadas no traçado por razões funcionais, climá­
ticas e estéticas.
O grande traçado barroco que une pontos da cidade é delimitado pelas fachadas
dos edifícios e integra arborização, sendo pontuado pelos monumentos.

o TRAÇADO RECTICULAR - A QUADRÍCULA

O uso da quadrícula geométrica que preenche os espaços entre os grandes traça­


dos vai constituir outro elemento importante da forma urbana.
A quadrícula continua a servir as necessidades distributivas, de organização habita­
cional e divisão cadastral; adapta-se na perfeição ao ideal renascentista de uniformiza­
ção estética e disciplina racional do espaço e permite a hierarquização das diferentes
ruas - como na Baixa Pombalina, em Lisboa.
Os elementos principais da estrutura urbana serão os traçados e as praças - e não
tanto a quadrícula, que, repito, resultaria do processo de cruzamento ortogonal de
ruas e permitia, como nos períodos precedentes, uma adequada subdivisão do solo.
De resto, o sistema reticulado estendido uniformemente a todo o espaço urbano se­
ria perigosamente monótono, pelo que necessitava de complementaridade de outros
elementos: os grandes traçados, tantas vezes, em diagonal, as praças e os largos.

A PRAÇA

A composição urbana clássica apresentará uma perfeita complementaridade entre


os três elementos geradores principais: o traçado rectilíneo, a quadrícula e a praça.
Alguns autores distinguem a «praça» propriamente dita dos «recintos espaciais»,
sendo a primeira uma verdadeira criação mediterrânica, italiana e francesa - a pioz­
zo ou ploce. Morri's distingue três categorias de recintos: «os espaços destinados ao trá­
fego e formando parte da rede principal de vias urbanas, usada tanto por peões como
por veículos; os espaços residenciais, pensados só para acesso pelo tráfego local aos
edi-fícios, e com propósitos recreativos; e, terceiro, os espaços pedonais, nos quais é ex­
cluído o tráfego rodado» (26). Esta classificação ressalta as diferenças que o «largo» e a
«praça» irão adquirir na estrutura urbana.

174
3-23. Praças em Paris, segundo os desenhos em perspectivo do P/an de Turgot. 1. P/ace Vend6­
me, projecto de Jules Hardouin - Mansart, 1689 (e planto do época). 2. A P/ace Dauphine orga·
nizada .no interior de um quarteirão•. 3. A P/ace Rora/e (P/ace des Vosges) , realizado em
1605·1612. 4. A P/ace des Victoires, desenhado por J. Hardouin Mansard em 1687

175
A praça é entendida como um recinto ou lugar especial, e não apenas um vazio na
estrutura urbana. É o lugar público, onde se concentram os principais edifícios e monu­
mentos - quadro importante da arte urbana. A praça adquire valor funcional e
político-social, e também o máximo valor simbólico e artístico. É a praça o elemento
básico da energia e criatividade do desenho urbano e da arquitectura. A praça é tam­
bém cenário, espaço embelezado, manifestação de vontade política e de prestígio.
As praças podiam ser delimitadas por edifkios públicos, por igrejas ou edifícios
religiosos, por filas de habitações ou palácios. Eram lugares de cenário urbano e deco­
ração, suporte e enquadramento de monumentos (obeliscos, estátuas ou fontes), e
também lugares de vida social e de manifestações do poder. Tinham por vezes rázões
meramente estéticas: A P/ace A/bertas, em Aix-en-Provence, ou o caso das praças na
Rua do Século (27), no Bairro Alto. A P/ace A/bertas foi desenhada para servir de enqua­
dramento e «respiração» ao palácio do mesmo nome, e é apenas uma «fachada» que
recobre edifícios cuja profundidade nalguns pontos atinge só 2 a 3 metros.
As praças da Rua do Século são também cenários para os palácios fronteiros.
A P/ace des Vasges (inicialmente P/ace Raya/e) é outro exemplo da conjugação de
fins utilitários com a arte urbana: resolveu um programa habitacional e teve logo fun­
ções recreativas, sendo afastada do tráfego, num exercício de desenho notável (2 8l,

A FACHADA

A necessidade de ordem visual no espaço urbano terá nascido em Itália, como uma
das primeiras manifestações do Renascimento, ou, se se quiser, da influência do passa­
do romano. Sabe-se que, em Sienno, após a conclusão da Câmara (1310-1344), se de­
cretou que as restantes construções na Praça do Campo deviam ter janelas semelhan­
tes. Retomava-se uma preocupação que os romanos já haviam manifestado ao unifica­
rem o forum de Pompeia com uma arcada igual que sustentaria edifícios diferentes.
Essa preocupação, esquecida na Idade Média (pelo menos fora da Itália), é reto­
mada com o Renascimento. A fachada dos edifícios vai autonomizar-se como elemento
do espaço urbano, quer pelo cuidado no seu desenho e organização (como símbolo de
prestígio, nobreza e poder) quer como elemento da própria composição urbanística.
Os princípios arquitectónicos renascentistas são aplicados às fachadas como obras
pictóricas, na busca do equilíbrio, desenhado através da simetria, proporção e ritmo.
A fachada ostentará uma ordem intelectual abstracta e métrica no primeiro Renas­
cimento, sensorial e exuberante no Barroco e no Rococó, autonomizando-se em rela­
ção ao próprio edifício, justificando sacrifícios interiores, para que a construção não fu­
ja aos cânones de beleza, proporções e ritmos de estética clássica.

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3-24. Planos poro o reconstruçao dehLon r~s ~o


. - d d is do incêndio de 1666. 1. Plano de R. Hooke.
colhido e só parcialmente realizado. Re­
2. Plano de Evelyn. 3. Plano de Sir C ristop er ren, e~ des e altura das habitacões esta­
gras de construção dos edifícios em Londres: espessura os pore
belecidas pela lei de 1667

177

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3-25. Sistemalizacõo de fachadas em Amesterdõo_ 1. levantamento actual de uma ruo e corte


transversal. 2. D~senho dos fachadas 00 longo do Ruo dos Senhores, segundo gravura do
séc. XVIII. 3. Planto do séc. XVII com os parcelas, lotes e imagens dos canais

178

Estes prindpios nascem na arquitectura erudita e serão assimilados nas construções


correntes. Aplicados sistematicamente a vários lotes, conferirão ao espaço urbano
grande unidade, produzindo requintados e elegantes conjuntos.
A cidade clássica, renascentista e barroca adquire assim grande unidade estética e
visual, pensada como arquitectura em três dimensões. A urbanrstica integra o desenho
dos edifícios como instrumento da composição urbana, atingindo-se efeitos de grande
qualidade, como na Place des Vosges, na Baixa Pombalina, na Rue de Rivoli, nos cres­
cents de 8ath, ou na Place Vendôme. Nestes exemplos, o desenho urbano prolonga-se
pelo desenho das fachadas, admitindo-se que os construtores as respeitem e construam
o interior do edifício com perfeita liberdade. Como é evidente, este processo exigia um
planeamento minucioso e cuidado e uma autoridade capaz de comandar a indisciplina
dos construtores, obrigando-os a respeitar regras minuciosas. Tal sistema vai deixar in­
fluências. Mesmo quando não existe desenho prévio, a utilização repetida de elemen­
tos e pormenores construtivos confere unidade estética ao espaço urbano. Os primei­
ros edifícios das «avenidas» de Lisboa de Ressano Garcia contêm uma unidade estética
nos processos de construção que suprimem a falta de desenho uniformizador.
Assim se atingiram certamente alguns dos mais interessantes momentos da arte ur­
bana e se instituiu um processo sobre o qual seria oportuno meditar.
Estes objectivos perdem-se por completo no século XX, quando a defesa do liberalis­
mo urbano e da personalidade criativa do projectista, do construtor ou do proprietário
se sobrepõem aos interesses superiores da cidade, e quando a gestão urbana se torna
medíocre e desprovida de ambição.
Creio que o desenho das fachadas, entendido em termos contemporâneos, poderá
de novo integrar os planos como meio de disciplina estética da cidade.
Os planos não podem continuar a ser apenas regras planimétricas de traçado, as­
sim como a cidade não deve ser apenas terreno para construir prédios. Os planos têm
(de novo) de ser pensados em termos de arquitectura, da cidade.

OS EDIFíCIOS SINGULARES

Os edifícios de valor e significação social, política ou religiosa vão adquirir grande


individualidade e expressão no seu posicionamento urbano. A Câmara Municipal, o
palácio, a igreja serão colocados em posição predominante: fecham lados de praças e
de perspectivas rectilíneas, posicionam-se em escorço e em proeminência. A partir do
Renascimento, a praça e o traçado irão prover e necessitar de edifícios singulares para
o seu desenho, numa conjugação recíproca de efeito cénico e monumental.

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3·26. Posicionamento dos igreios açorianos na estrutura urbano. Ribeiro Grande. 1. Igreja do
Espírito Santo. 2. Igreja de S Francisco e hospital. 3. Motriz. 4. Igreja da Conceição

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3-27. Roma Barroco. O plano dos arruamentos de 1748, e gravura do séc. XVII mostrando o
troçado que conduz à Praça de S. Pedro. Desenho do Praça de S. Pedro, segundo Comillo Sitte
no Stadtebau

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3·28. Nancy. Esquema de desenvolvimento e sobreposição dos traçados. 1. Acidade medieval


com murqlhas renascentistas. 2. Aexpansão renascentista com fortificações estreladas. ABC - a
intervenção da séc. XVIII: a Praça Real (Placa I?oyole) e a grande avenida (eixo XX). 3. Os jardins
do séc. XIX. A Ploce I?oyole - desenho do séc. XIX

182

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3·29. Angra do Heroísmo. Acidade constituído nos séculos XVI e XVII, segundo os princípios re·
noscentistas. Troçados regulares e colocação dos monumentos. 1. Angra, segundo levantamento
do séc. XIX. 2. Planto actual do cidade com o localização dos principais monumentos - igrejas e
conventos

183
o edifkio singular torna-se peça do sistema urbano e autonomiza-se até ser ele pró­
prio gerador da forma urbana.
Recordo as igrejas açorianas, situadas em pódio/praça com escadaria, em escorço
e recuadas em relação ao traçado, num efeito de grande monumentalidade.
Esta característica irá perdurar em todo o período clássico até à urbanrstica formal
do século XX, mergulhando ainda no Movimento Moderno.

o MONUMENTO
Peça individual, arquitectónica e escultórica, com posicionamento destacado e ge­
rador de forma urbana, o monumento é, de certo modo, uma invencão renascentista.
Situação semelhante já havia existido na Grécia e na Roma antiga, o que é lógico,
se considerarmos a continuidade que o Renascimento pretende estabelecer com esses
períodos. São, de resto, algumas esculturas romanas que os homens do Renascimento
irão utilizar como monumentos: a estátua equestre de Marco Aurélio, na Praça do
Campídoglío, a coluna de Troiano, e outros.
A escultura, o obelisco, a fonte, o arco do triunfo, serão utilizados como meio de
embelezamento urbano, por vezes unindo-se a uma necessidade utilitária - como a
fonte e o chafariz -, ou apenas com significações religiosas, sociais, políticas e cultu­
rais.
Mesmo quando o ponto de partida é utilitário, como na fonte ou no chafariz, a obra
realizada transcende largamente essa função. Poete e Rossi (29l, dão-nos o entendimen­
to que o Renascimento e o Barroco têm do espaço urbano, como lugar de obras signifi­
cantes e simbólicas. Esta atitude, que se desenvolve após a Idade Média, jamais será
abandonada pela urbanística e pela arquitectura.
Todavia o que distingue a atitude do Renascimento e do Barroco é o carácter confe­
rido ao monumento na determinacão da forma urbana. O monumento não se destina a
«mobilar», completar o espaço ou'encher um vazio. É gerador do próprio espaço urba­
no, sem o qual perderia boa parte da sua razão de ser. As praças são pontuadas com
monumentos, ma~ estes fazem parte integrante da praça e da sua significação.
A partir do Renascimento e do Barroco, a forma da cidade europeia será desenvol­
vida e aperfeiçoada até hoje. A cidade não será apenas o lugar de vida e abrigo dos
hubitante, mas também o campo de actuação político-social, o lugar de significações e
da ostentação do poder.
Nesses objectivos, o monumento desempenhará um papel da maior importância co­
mo elemento autónomo e com importância própria na forma urbana.

184

3·30 Cidades coloniais portuguesas 1. Planta do Recife, segundo carta do séc. XVII. 2.
Projectos de fortificação da cidade de Belém do Pará executados no final do séc. XVII

185
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3·31. Cidades coloniais portuguesas no Oriente. 1. Planta de Goa, segundo levontamento da


Direcção de Obras Públicas, 1910.2. Plano de Damão, segundo carta do séc. XVII. 3. Fortaleza
e núcleo urbano de Baçaim, segundo desenho do séc. XVII. 4. Fortaleza de Chaul, segundo dese·
nho do séc. XVIII

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3·32. Cidades coloniais portuguesas. Desenho do cidade de Diu e fortificações no séc. XVII.
Perspectivo aéreo e visto

187
o QUARTEIRÃO

A partir do Barroco, o quarteirão vai atingir maior refinamento. Torna-se uma figu­
ra planimétrica delimitada por vias e que se subdivide em lotes e edificações - cum­
prindo a divisão fundiária do solo - e organização geométrica do espaço urbano.
O quarteirão vai assumir formas, dimensões e volumes diferentes, consoante o seu po­
sicionamento na estrutura urbana, em duas situaçãoes: a primeira, como resultado in­
tersticial ou resíduo «ocasional» dos traçados, assumindo formas irregulares; a segun­
da, corresponde à utilização do quarteirão como elemento morfológico-base, gerador
do espaço urbano, por repetição e multiplicação.
No primeiro caso, situaria os quarteirões das cidades ideais dos arquitectos renas­
centistas, de Filarete a Cataneo (30), e as suas concretizações mais aproximadas, como
as cidades novas (Naarde, Almeida ou Palma Nuova); os quarteirões do Bairro
Alto; os quarteirões resultantes dos traçados barrocos em Roma; ou, mais tarde, os
quarteirões da Paris de Haussmann. Neste exemplos, o quarteirão adquire formas
irregulares para organizar espaços regulares no tecido urbano, como as praças e
as vIas.
No segundo caso, situaria realizações como a Baixa Pombalina, as cidades novas
de colonização anglo-saxónica e francesa na América do Norte, ou de colonização
portuguesa e espanhola na América do Sul. O quarteirão é aí um elemento da quadrí­
cula repetível com a mesma geometria e dimensão - seguindo a tradição de Mileto.
É uma unidade-base elementar que, por repetição e extensão, formará a cidade.
Em ambas as situações, o quarteirão será sempre ocupado na periferia por constru­
ções, embora possa variar na capacidade e espaço livre interior. Consoante os casos, o
interior permanecerá livre ou ocupado por hortas e jardins (como no Bairro Alto), con­
tinuando a tradição medieval de espaço semipúblico; ou quase desaparece para dar
lugar a um «saguão», como na Baixa Pombalina, em que o quarteirão quase se identifi­
ca com o edifício, embora dividido em partes cadastrais. Noutras situações, é o próprio
quarteirão que serve para gerar espaços urbanos - como na Place Dauphine, em Pa­
ris -, uma praça dentro de um quarteirão; o quarteirão pode também ser ocupado
por um único ediHcio, palácio, equipamento ou igreja.
O quarteirão torna-se um elemento de composição da cidade, um sistema a três di­
mensões, mais complexo e figurativo do que o simples loteamento.
Quadrícula e quarteirão organizam o cadastro e a forma urbana; tornam-se um
meio universal e experimentado de desenho urbano e adptam-se às mais variadas si­
tuações morfológicas e topográficas.

188

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3-33. Bairro Alto - Lisboa. Planto actual indicando troçados, quarteirões e lotes. A escuro, os
duas praças de «aparato» no Ruo do Século

189
OS QUARTEIRÕES DO BAIRRO ALTO

Realizado no século XVI por loteamento de uma propriedade fora das Muralhas
Fernandinas, o Bairro Alto é a primeira realização urbanística renascentista em Lisboa.
Éum bairro geometrizado, com uma estrutura reticular, só de traçados/ruas e sem pra­
ças (certamente pela sua situação fora de portas).
Éhabitado pela nobreza, burguesia e homens do mar. Perto do porto, desafogado
em relação à labiríntica Lisboa medieval, torna-se lugar de prestígio habitacional.
O traçado renascentista desenvolve-se numa malha ortogonal N/S e E/O, a qual se
desfaz perante os grandes declives e diferenças de cotas e barreiras a Este.
A regularidade dos traçados define um conjunto de quadriláteros subdivididos em
lotes e com logradouros no interior. Ainda hoje, estes espaços livres servem de descom­
pressão às estreitas ruas, dando respiração à estrutura habitacional. Na sua simplici­
dade de traçado, a estrutura do Bairro Alto é já diferente da Lisboa medieval e repre­
sentou, para a época, um grande progresso nas regras de composição espacial.

OS QUARTEIRÕES DA BAIXA POMBALINA

A Baixa de Lisboa constitui um marco importante na história do urbanismo clássico,


pela dimensão da reconstrução após o sismo, e pelas características do seu plano.
Após o terramoto de 1755, a reconstrução de Lisboa coloca dois tipos de proble­
mas. De ordem cultural, na escolha do modelo de cidade a adoptar. De ordem técnica,
no que se refere aos processos de construção e à redivisão cadastral.
O plano escolhido, de Eugénio dos Santos e Carlos Mardel (31), organiza ambas as
questões: traçado ao gosto da época, mais influenciado por um racionalismo iluminista
do que pela exuberância do Barroco; sistema de quarteirões que permite a operação
fundiária e a gestão financeira da reconstrução da cidade.
A configuração do quarteirão pombalino afasta-o do sistema utilizado na época: é
estreito, quase um bloco edificado com um «saguão» ou vazio interior. Para esta ima­
gem, concorre também a regularidade e repetição das fachadas, a estandardização
de vãos e elementos construtivos e a altura uniforme dos edifícios. Na realidade, o
quarteirão é dividido em edifícios uniformes, quase iguais, numa disciplina arquitectó­
nica raras vezes conseguida. Raramente se terá obtido unidade tão completa entre ur­
banística e construção, entre cidade e arquitectura. O quarteirão da Baixa Pombalina
anuncia também as potencialidades do edifício-bloco, gerador da malha urbana. Em­
bora falte a sequência de exemplos que permita assegurar esta interpretação, pode-se
encontrar assimilação do quarteirão ao bloco num sentido de modernidade que volta a

190

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3·34. O Plano de Eugénio dos Santos e Carlos Mordei escolhido paro a reconstruçõo da Baixa
de Lisboa. Praço do Comércio em 1878 com o orca da Ruo Augusto ainda em construçõo

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3-35. Desenho dos fachadas normalizados poro os edifícios do Baixo, segundo desenhos de Eu­
génio dos Santos e Carlos Mordei

192
3·36, Visto aéreo do Praca do Comércio - Lisboa e aspectos dos edifícios e ambientes do Baixo

193

surgir mais tarde no século XX. O quarteirão da Baixa é, antes do mais, o elemento da
composição urbana, no volume, cércea, dimensão e estrutura arquitectónica, eviden­
ciando a orginalidade do plano de Eugénio dos Santos e Carlos Mardel.

ESPAÇOS VERDES

Finalmente, não poderei deixar de referir a árvore e o espaço verde, desde a ala­
meda ao jardim e ao parque, como elementos de composição da cidade.
A evolução e o requinte no modo de viver introduzirão a árvore na cidade, propor­
cionando a invenção de novos tipos espaciais: o recinto arborizado, o parque, o jar­
dim, o passeio e a alameda, como espaços de recreio e novas práticas sociais.
Éno período clássico barroco que se estrutura a arte da jardinaria como um campo
específico de arquitectura da paisagem e de organização territorial. Com os elementos
vegetais - a árvore, os canteiros, as plantas e os prados -, apoiados em elementos
construídos - muros, balaustradas, esculturas - realizam-se grandes composições de
domínio da Natureza que atingem uma qualificação nunca mais conseguidos.
A urbanística adquire novos instrumentos na utilização dos elementos vegetais e na
ampliação do seu território de intervenção dos jardins e parques, ao interlond palacia­
no e urbano, às florestas de caça e ao ordenamento do espaço não construído. Como
referi, esta atitude vai imprimir à Natureza os mesmo atributos culturais e estéticos que
à cidade, dando-lhe forma e conteúdo cultural e estético, e está na génese da manipu­
lação da paisagem como objecto estético.

OUTRAS TIPOLOGIAS

As invenções inglesas do século XVIII - O Crescent, o Circus e o Square

O século XVIII e o início do século XIX registam em Inglaterra o aparecimento de ou­


tras tipologias urbanas, tais como o crescent, o circus, experimentados no plano de
80th, (32) e o squo~e.
O crescent é, no essencial, uma banda de edifícios ou palácios, dispostos em semi­
círculo, cuja fachada principal se abre sobre um parque ou jardim. Fachada principal
cujo desenho repetitivo nos projectos para 80th (como no Queen Squore), constitui
uma imposição obrigatória para todos os construtores. O crescent de 80th, desenhado
por Wood (filho), e repetido em Edimburgo, é uma banda de trinta edifícios com facha­
das controladas, apesar de permitirem diferentes organizações no interior. A forma

194

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3-37. Versailles. O plano de Le Nôtre. no final do reinado de Luís XIV, com os troçados dos jor­
dins e florestas. Gravura de Pierre le Pautre

195
3-38. Troçados de jardins portugueses.
1. Planto de jardins do Palácio Fronteiro. S. Domingos de Benfica - Lisboa (séc. XVII). 2. Planto
do Quinto dos Laranjeiras - Lisboa (séc. XVIII). 3. Jardins do Marquês de Pombal em Oeiros
(séc. XVIII). 4. Planto dos jardins do Poço Nocional de Belém (séc. XVIII) - Lisboa

196
3-39. Etapas do desenho urbano clássico em Aix-en-Provence. 1. Quartier Mazarin - bairro do
nobreza e da burguesia mondado troçar pelo Cardeal Mazorin. 2. O Cours Mirabeau - como
espaço de transição entre o Quartier Mazarin e a cidade medieval, já com as muralhas destruí­
dos. 3. A formação do Rotunda no final do séc. XIX

197
básica é semi-elíptica, de 155 metros no eixo maior, abrindo-se sobre um prado e um
pequeno bosque mais adiante. Uma via, no limite do prado serve as fachadas, enquan­
to, outra, nas traseiras, assegura o serviço dos bens.
Os edifícios, o prado e a zona verde são os elementos compositivos do crescent.
O circus é um recinto espacial de forma rigorosamente circular. Porém é um recinto
com jardim central.
O square é também uma inovação do século XVIII. Não é uma praça propriamente
dita, mas um jardim ou pequeno parque delimitado por construções nos quatro lados.
Poder-se-ia encontrar as origens do square na Place des Vosges, construída em Pa­
ris no final do século XVI. Asua utilização no urbanismo anglo-saxónico do século XIX e
na Paris de Haussmann propiciará uma resposta a necessidades de conforto ambiental
e formas de vida urbana, atenuando as densidades excessivas.
O crescent, o circus ou o square serão sistemas complexos de construção e áreas
verdes ligados à burguesia e aristocracia inglesa, a que o estilo clássico e a utilização
das lições de Palladio vêm emprestar um notável requinte arquitectónico.
Poderia situar aqui o início da «destruição» do quarteirão, não fora a persistência
das relações entre edifício/fachada/espaço urbano, e não fora a falta de continuidade
e evolução destes modelos.

***

O sistema assim constituído por traçados rectilíneos, quadrículas, praças, monu­


mentos e zonas arborizadas, em que os espaços urbanos são definidos pelos edifícios e
as suas fachadas, é de uma grande coerência. A utilização e combinação sistemática
destes elementos perdurará com variações durante todo o século XVIII e pelo sécu­
lo XIX, até ao advento da cidade moderna.
Todavia o desenho urbano clássico não excluía também a invenção de engenhosas
situações espaciais, explorando as condições topográficas e acidentais do território e
utilizando-as para obter formas de grande significação.
Aescadaria que une a Piazza di Spagna à igreja da Trinitá dei Monti, o traçado cur­
vo da Calçada de '5. Francisco, em Lisboa, ou o posicionamento das igrejas açorianas,
sempre elevadas em relação ao traçado, criando um adro, são outros tantos exemplos.
Por vezes, como no Cours Mirabeau, em Aix-en-Provence, é com um espaço corre­
dor (o corso - o cours) arborizado que será resolvida a ligação entre duas áreas dis­
tintas: a cidade medieval irregular e o quartier Mazarin (séculos XVI e XVII), de quadrí­
cula geométrica e com praça central.

198

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3·40. Novos formas urbanas - 80th em 1810 - o crescent e o circus, o square, e os traçados
dos finais do séc. XVIII. O crescent e o circus de 80th à mesma escala, segundo Auzelle. O traça­
do de Regent's street em Londres por Jonh Nash, em 1813. Uma estrutura mais complexa do que
o traçado barroco rectilíneo une o Regent's Park ao st. James Park

199
Em quase todas estas situações, a composição da cidade irá atender a alguns princí­
pios de desenho essenciais para a determinação da forma urbana:
• A simetria que condiciona a distribuição funcional do programa e das massas cons­
truídas, de modo a constituir uma composição equilibrada em relação a um ou mais
eixos e planos.
• A subordinação da composição urbana aos efeitos espaciais e às perspectiva. Esta
será mais do que um elemento técnico de representação espacial- tornando-se ob­
jectivo da própria concepção, comandando o desenho urbano.
• A perspectiva fechada através do monumento ou edifício isolado. Sixto V, em Roma,
marca os pontos de fuga das vias - e assinala o centro de praças e espaços públicos
com obeliscos e monumentos. O monumento deixa de ser apenas um marco social,
político e cultural, para constituir tombém parte integrante do desenho urbano.
• Integração e subordinação dos edifícios a um conjunto urbanístico projectado como
um todo. Cada edifício subordina-se à regra do conjunto, embora possa conservar a
sua individualidade.

Este conjunto de princípios irá perdurar no urbanismo europeu até ao século XX.
O período barroco será o mais marcante, já pelas suas vastas realizações, já pela in­
fluência decisiva que terá na cidade burguesa dos finais do século XIX, como na Paris
de Haussmann ou na Barcelona de Cerdá. Mais tarde, na Urbanística da escola france­
sa do início de Novecentos, se encon'trarão fortes heranças do Barroco. Até hoje na ac­
tualidade muitos arquitectos detêm fortes referências desse período. Ainda aqui são
inegáveis as contribuições do Barroco para as cidades onde vivemos, nelas propician­
do benefícios de uma estética e cenário urbanos inigualáveis.

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3-41. Evolução de Turim até final do séc. XIX. 1. A cidade medieval construída sobre o traçado
romano [A). 2. As muralhas renascentistas no séc. XVI (B). 3. Aexpansão dos séculos XVI-XVII e
as fortificaçães c1óssicas e a cidadela (C, D). 4. No final do séc. XVII com o expansão barroco e
os fortificações estrelados. 5. Depois do demolição dos muralhas, em 1819, e o abertura dos
boulevards. Planto desenhada por Stübben no final do séc. XIX

201
3-42. A formoçõo do Ring de Viena. 1. A cidade medieval fortificada nos séculos XVI e XVII,
contra as invasões turcas. Fortificações poligonais e em campa aberto de 600 metros separam­
-na das expansões periféricas. As muralhas destruídas por Napoleõo I, em 1809, dõo origem,
cinquenta anos mais tarde, ao desenvolvimento de um anel verde e equipamentos: o ring

202
3.5 DESENHO E FORMAS URBANAS NO SÉCULO XIX

o século XIX é bastante complexo. É um século de charneira, caracterizado pela


continuidade da cidade clássica e barroca e pelo aparecimento de novas tipologias ur­
banas que vão preparando a cidade moderna. Éum período de embate na industriali­
zação e de forte crescimento demográfico. Modificações sociais importantes determi­
nam profundas transformações nas cidades e a sua adaptação a necessidades de infra­
estruturas, equipamentos, habitação, e novas exigências espaciais.
O primeiro quartel do século XIX é ainda de nítida continuidade com o urbanismo
clássico-barroco. É o período napoleónico, em que a utilização do «arsenal» da com­
posição barroca é colocada ao serviço do poder imperial e dos monarcas europeus.
Por esta razão, quando se estabelecem as referências ao século XIX, tende-se a fo­
car essencialmente a metade posterior a 1850.
Todavia verifico que, no século XIX, o desenho urbano vai continuar as regras tradi­
cionais de composição do espaço e de relacionamento das suas partes, ou «elementos
morfológicos». A rua, a praça, a avenida, as relações entre edifício fachada-espaço ur­
bano, a utilização de quadrículas e traçados, etc. A ruptura morfológica que se proces­
sa no século XIX é de dimensão, escala e forma geral da cidade. No século XIX, a cida­
de deixa de ser uma entidade física delimitada para alastrar pelo território, dando iní­
cio ao aparecimento de ocupações dispersas e à indefinição dos perímetros urbanos.
Éesta a primeira grande ruptura na morfologia tradicional, que será seguida mais
tarde pela ruptura produzida pela cidade moderna.
Em contrapartida, no século XIX serão produzidas as complexas estruturas e morfo­
logias urbanas que marcam o apogeu da cidade tradicional e tardo-barroca.
Seleccionei para um estudo mais aprofundado três exemplos que afirmam na sua
complexidade a urbanística oitocentista - Paris, Barcelona, e as avenidas de Lisboa
desenhadas por Ressono Garcia. Com a apresentação dessas intervenções, penso com­
pletar uma panorâmica da produção urbana oitocentista dentro dos objectivos desta
investigação. Começo pelos principais vectores da morfologia urbana do século XIX.

A CONTINUIDADE DO BARROCO E O APERFEIÇOAMENTO DA CIDADE BURGUESA

Um vector da produção urbana oitocenti~ta erudita continua as tendências do pe­


ríodo clássico, utilizando os sistemas de traçados, quadrículas, quarteirões, ruas, aveni­
das e praças, e refinando a morfologia do século XVIII, com inovações espaciais qUE.:

203

tornam as cidades mais complexas e enriquecem a estrutura urbana: jardins e parques;


alamedas e passeios públicos (33), avenidas e boulevards.
Em Inglaterra, os delicados desenhos de J. Nash (34), na Regent's Street e no Re­
gentis Park, testemunham grande requinte e subtileza, pesquisando novos espaços.
Em França, os traçados napoleónicos (de Napoleão I) preferem a grandiosidade e
monumentalidade: arcos do triunfo, grandes perspectivas, os foros imperiais (35).
Esta tendência prolonga-se por toda a segunda metade do século XIX nas expan­
sões e realizações desse período. A introdução de 6rgãos de equipamento e serviços
vai gerar grandes composições por renovação de áreas degradadas e a sua reestrutu­
ração ou por encaixe acumulativo das novas estruturas: gares de caminho-de-ferro,
hospitais, escolas, grandes armazéns comerciais, locais de diversão e lazer, etc.
A quadrícula, a geometria, o traçado regular e a perspectiva barroca são abun­
dantemente utilizados, sistematizados e melhorados, produzindo o apogeu da morfolo­
gia tradicional. O século XIX marca quase todas as cidades europeias, pelas grandes
transformacões e forte crescimento: Paris, Barcelona, Madrid, Lisboa, Viena, Berlim,
Milão, Turim, Washington e mais cidades americanas, e tantas outras. Embora com di­
ferenças sensíveis de caso para caso, existem princípios comuns de desenho e de forma
que, repito, prolongam e aperfeiçoam o urbanismo clássico barroco. O quarteirão
torna-se um processo sistemático e elaborado, com aperfeiçoamentos e melhorias. Ser­
ve paro organizar o loteamento e o crescimento rápido, em que se torno necessário
construir depressa e em grande quantidade. Serve também como elemento de compo­
sição e de arte urbano em que o repetição exaustivo é justificado por uma estético já in­
fluenciada pelo produção em série e pelo mecanização.

A DESTRUIÇÃO DAS MURALHAS E DOS LIMITES DA CIDADE

Coincidindo com os fenómenos de industrializaçãô, o evolução dos estratégias mili­


tares e o aparecimento de novos armas determinaram, o partir do início do século XIX,
alterações no organização das cidades e ocupação do território. Os novos canhões e o
deslocação do teatro do guerra dos cercos paro os batalhas de campo, bem como ou­
tros sistemas de conquista, tornam os muralhas pouco úteis.
A compressão' dos construções no interior dos perímetros fortificados torna-se des­
necessária e permite alterar o entendimento da cidade. Devido às necessidades de con­
sumo de solo pela industrialização e 00 aumento demográfico, o cidade invade o cam­
po e alastro indiscriminadamente poro foro dos muralhas e fortificações.
Uma segundo etapa consiste no destruição dos muralhas e aproveitamento do área
desocupado poro o construção de anéis viários envolventes. O boulevard nasce destas

204

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3·43, 1, PUGIN. Gravuras representando uma cidade cristã de 1440 a 1840, 2. Shinckel - es­
boço de viagem: as óreos industriais e portuórias de Londres, 3. Área periférica de Londres, lo­
teada segundo as regras das bye lows. 4, Sistemas de ocupação dos logradouras e quarteirões
nos bairros de Manchéster, segundo desenho de Engels

205

acções nas cidades da Europa. O ring de Viena ou de cidades mais pequenas como 8e­
sançon ou Aix-en-Provence constitui um dos melhores exemplos.
A cidade «intramuros» prolonga-se pela cidade da periferia, sem descontinuidade
construtiva.
Em lugar das muralhas, realizam-se avenidas, que facilitarão a circulação em anel,
e a construção de novos bairros. Acidade estende-se e fragmenta-se pelo território en·
volvente; a periferia cresce como cintura habitacional e industrial.
Este" período de euforia destrutiva das velhas muralhas retira às cidades um impor­
tante marco físico e histórico.
A imagem das cidades entendida como um todo construído, delimitado, como no
desenho de Pugin, tem o seu ponto final.

o SUBÚRBIO E A PERIFERIA
As primeiras realizações de subúrbio datam dos finais do século XVIII. São bairros
construídos no tempo de Jorge II, nos arredores de Londres (36), com habitações de
qualidade em meio de jardins e parques. Correspondem à ideologia da conciliação do
campo com a cidade, da habitação no meio da Natureza, com loteamentos privados,
de baixa densidade e utilizando as tipologias do crescent e circus: com habitações que
se abrem sobre grandes espaços verdes, relvados e bosques.
Estas primeiras realizações são, por assim dizer, pioneiras. Na segunda metade do
século XIX, a fuga aos males da cidade industrial, as possibilidades oferecidas pelos
transportes e a disponibilidade de espaço vão permitir a localização de empreendimen­
tos habitacionais de baixa densidade na periferia da cidade. Baixa densidade e casas
unifamiliares, com extensão territorial da urbanização, constituirão um dos figurinos
urbanos da expansão a partir do século XIX.
Os novos meios de transporte vão permitir a ligação dos centros urbanos e locais de
emprego à periferia, onde o solo barato permite o subúrbio como alternativa à concen·
tração urbana.
O subúrbio gerou a proliferação e extensão do solo construído com modificação
dos modelos espáciais e urbanísticos. A rua passa a ser um mero percurso. A «praça»
deixa de ser um espaço reservado ao encontro, à vida social e, pela falta de utilização,
transforma-se num simples largo. O quarteirão é abandonado, enquanto a baixa den­
sidade e a casa unifamiliar se revelam sem força nem estrutura para constituir verda­
deiro «espaço urbano». Aarborização e a vegetação substituem as relações do edifica­
do com o espaço urbano. A caracterização cuidada do espaço colectivo é substituída

206

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3·44_ .lIhas. no Porto. 1. Planto do zona do Ruo Anselmo-Ruo D. João IV com os ilhas em cin·
zento. 2. Planto do Ruo dos Antas 00 nível do rés·do-chão com os .ilhas» interiores. 3. Formos de
ocupação dos logradouros pelos .ilhas> e tipos construtivos. 4. Alçado do Ruo das Antas com os
entradas poro os .ilhas.

207
pela qualificação do espaço privado. O edifício vai situar-se no meio do lote. Éindivi-
dualizado e envolvido por jardins e deixa de contactar directamente com a' rua.
A membrana de separação do espaço público com o espaço privado deixa de ser a
fachada do edifício e passa a ser a vedação do lote, o muro. Numa primeira fase, o lo-
te mantém a sua individualidade como espaço privado que recebe um edifício. Numa
fase posterior, já no século XX, com a desprivatização do solo, o próprio lote tenderá a
desaparecer, pela implantação livre de edifícios no terreno.
O subúrbio e a cidade-jardim constituirão um momento de ruptura na morfologia
urbana tradicional e um entendimento diverso do habitar, preparando e antecedendo
as rupturas morfológicas da cidade moderna.

A ESPECULAÇÃO FUNDIÁRIA SEM DESENHO URBANO

Na cidade industrial, o desequilíbrio entre oferta e procura de alojamento abre


caminho à sobreposição dos interesses económicos sobre o desenho urbano. Os pro-
cessos de loteamento e edificação desligam-se da arte urbana e da arquitectura e
vão-se tornando meros instrumentos de preparação do solo para o investimento e a
construção. A especulação fundiária é desde logo incompatível com o desenho urbano.

Éneste período que surgem grandes extensões de loteamentos que repetem quadrí-
culas até à exaustão, sem preocupações urbanísticas ou estéticas. As bye laws (37) ingle-
sas alastram em mancha de azeite, produzindo um tecido habitacional monótono, de
extensas ruas, desprovido de intencionalidade estética. Os interiores dos quarteirões
são densificados. Aparecem as «ilhas» e as «vilas» (3B) como aproveitamento do solo, pa-
ra construção de casas para as classes operárias mais, desfavorecidas. A cidade
desenvolve-se por extensão de loteamentos e de construções, e não pela organização
do espaço urbano. São também estas urbanizações e a situação social e sanitária da
população que motivam o pensamento urbanístico e higienista no século XX.
Desde então, os urbanistas terão de se bater cada vez mais pela realização dos pia-
nos contra as dificuldades de implementação e falta de vontade político-administrativa.
A questão é de resto já anterior: o plano de Wren para Londres, em 1665, não é posto
em prática por falta de vontade e autoridade face aos intereses individuais...
Também Cerdá, em Barcelona, não consegue realizar totalmente o plano nas suas
propostas de maior generosidade espacial e oferta de área pública face aos interesses
na rentabilidade do solo. Paralelamente, as teorias do liberalismo económico (/aissez
faire, laissez passer), na gestão da cidade, vão agravando estas questões ao defende-
rem a passividade do controlo público sobre o investimento privado.

208
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3-45. o subúrbio: Pari Sunlight - Lancoshire. Iniciado em 1888 e sucessivamente reestruturado

209
A partir deste período, o urbanismo assume cada vez mais explicitamente a media-
ção de conflitos entre interesses públicos e privados. A luta contra a especulação fun-
diária passa a ser um dos objectivos urbanísticos, face às dificuldades de conciliar os in-
tereses económicos com a arte urbana. A especulação fundiária vai investir na constru-
ção e aproveita a perda de controlo público para comandar o desenvolvimento urbano
e assim vai modificar substancialmente a produção das formas urbanas.

UTOPIAS SOCIAIS

Os problemas da cidade industrial e burguesa do século XIX produziram reacções


do tipo social: as hipóteses de novas comunidades por reformas sociais e económicas.
Primeiro teorizadas e depois levadas à prática num conjunto de experimentações: os
falanstérios, os familistérios e outras utopias sociais, propõem a transformação da so-
ciedade criando novas comunidades e diferente distribuição no território, como alter-
nativa às condições de vida da sociedade industrial.
Para a nova estrutura social, deveriam surgir respostas claramente diferentes da ci-
dade existente e dos seus esquemas urbanísticos: outra organização social, outra orga-
nização do território contida em outra morfologia urbana e construtiva.
Owen e Fourier, para o falanstério e o Familistério (40), propõem conjuntos edifica-
dos que, se no esquema volumétrico se aparentam com o palácio da nobreza (Versa-
lhes), já na organização distributiva interna decorrem da organização comunitária.
O fracasso destas experiências torna difícil encontrar as repercurssões na morfolo-
gia urbana. Certamente que alguma semelhança existe com a Unidade de Habitação
de Le Corbusier ou os Dom Komplex soviéticos (41). No entanto, seria mais prudente dei-
xar essa aproximação para a dimensão populacional e comunitária dessas unidades, já
que a sua forma construtiva e urbanística decorre de pressupostos diferentes.
No seu conjunto, as utopias sociais apontam alternativas à sociedade industrial do
século XIX, embora sem grande continuidade nem influência urbanística posterior.
Em última análise, poder-se-ia encontrar aqui um elemento de ruptura com a cidade
tradicional - embora determinado pela reforma social.

EXPERlMENTAÇÃO URBANÍSTICA

Na segunda metade do século XIX, vão aparecer propostas de diferentes organiza-


ções e formas urbanas alternativas à cidade burguesa e industrial, utilizando as poten-
cialidades do desenvolvimento tecnológico e necessidades induzidas pelos novos mo-

210
r
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3-46. Complexos habitacionais poro trobolhdores: 1. Le Grond Hornu (França). 2. Solfoire (Rei·
no Unido). Cidades de lazer poro ricos: 3. Vichy. 4. Aix-Ies-Bonis. (Os desenhos nõo estõo à mes-
mo escola)

211
dos de vida. São os bairros ou cidades especializadas para os trabalhadores, ou o la-
zer e o recreio (42). As primeiras, promovidas pelos industriais mais «esclarecidos» e sen-
síveis às condições de vida dos trabalhadores; as segundas, como resposta à evolução
dos modos de vida, em que o recreio e as férias ocupam as classes mais favorecidas.
Em ambas, as morfologias encontradas aproximam-se das realizações suburbanas, da-
das as disponibilidades de solo que permitem a apropriação de óreas livres.
Surgem também inovações tecnológicas e espaciais, como a cidade linear, de Soria
e Mata (43), que articula o caminho-de-ferro com o desenvolvimento urbano e que terá
tido influência em propostas análogas de Le Corbusier ou dos construtivistas soviéticos.
. As propostas de Eugene Henard conjugam a adaptação da cidade aos novos meios
de transporte e às novas infra-estruturas. Prenunciam a evolução que se processou nas
cidades europeias e americanas com os meios de transporte motorizado, as grandes
infra-estruturas viárias e de abastecimento e as transformações decorrentes.
No seu conjunto, a experimentação urbanística da segunda metade do século XIX
representará a resposta às transformações sociais, económicas e demográficas da re-
volução industrial. Significa também a insatisfação com a urbanística barroca e clássica
na sua resposta aos novos problemas.

PARIS DE HAUSSMANN -- TRAÇADOS BARROCOS E QUARTEIRÕES

As transformações de Haussmann em Paris incidem fundamentalmente no casco ve-


lho da cidade. São renovacões
, . reestruturacão
com novos trocados, . fundiária, constru-
ção de infra-estruturas, equipamentos e espaços livres, obedecendo a um triplo objecti-
vo:
• Circulação fácil e cómoda dentro da cidade, indo de gare a gare, ou de bairro a
bairro.
• Eliminação da insalubridade e degradação dos bairros, «arejando» os densos inte-
riores, estabelecendo uma imagem geral de modernidade, criando uma cidade com
luz, espaço e arborização e uma nova arquitectura urbana.
• Revalorização e reenquadramento dos monumentos, unindo-os através de eixos viá-
rios e perspectivas.
As sucessivas intervencões de Haussmann vão construir uma obra-prima de arte ur-
bana: a imagem fundamental que ainda hoje existe em Paris e que será exportada pa-
ra outras cidades francesas e europeias.
Haussmann retalha a cidade segundo traçados que partem em feixes de praças ou
cruzamentos. No essencial, este desenho continua as tradicões barrocas do sécu-

212
3-47. Mapa das intervenções de Haussmann em Paris, A traço cheio as ruas; a quadriculado,
as novos expansões, e, o tracejado, os novos parques e jardins. A estética de Haussmann: Av.
Campos Elíseos e a Av. de lena

213
lo XVIII, nomeadamente algumas propostas já definidas no Plan des Artistes de
1793-1797 (44), e seria possível encontrar paralelismos com a actuação de Sixto V, em
Roma, no modo de lançar as vias unindo pontos da estrutura urbana. Mas Haussmann
trabalha a cidade existente numa sucessão de intervenções que, embora sem plano
prévio, revelam grande coerência final.
Se não fossem as inovações tecnológicas e o sentido do futuro, a expressão da Paris
de Haussmann seria mais barroca do que oitocentista (45). Os elementos utilizados são:
o traçado em avenida - o boulevard - que une pontos da cidade; a praça como lugar
de confluência de vias, e placa giratória das circulações, quase sempre em rotunda,
que organiza o cruzamento de vários traçados; o quarteirão, que é determinado como
produto «residual» de vários traçados, e não como módulo da composição urbana.
Tem forma irregular, poligonal, rectangular, triangular ou vai aproximar-se da forma
do «bloco», sendo então compacto, e apenas com um «saguão» no seu interior.
A estrutura interna do quarteirão corresponde a uma lógica de reparcelamento ca-
dastrai, segundo regras simples:

• Cada lote é definido por perpendiculares à rua;


• A divisória entre lotes corresponde à bissectriz do ângulo formado pelas ruas;
• A forma dos lotes é desenhada de modo a evitar parcelas de rua a rua ou demasia-
do extensas sobre o plano marginal.
Estas regras são consequência das formas triangulares dos quarteirões e também
do processo de gestão e financiamento utilizado. A dimensão e forma dos lotes deve
permitir a venda em hasta pública para construção de habitações burguesas e pagar
os custos da expropriação e da urbanização.
Paralelamente a arquitectura dos edifícios é controlada para regularizar o tecido
urbano. Embora sem a estandardização e prefabricação utilizada na Baixa Pombalina,
ou o desenho das fachadas da Rue de Rivo/i, de Percier e Fontaine, em 1812, ou da Pla-
ce Vendôme, a tipologia edificada de Haussmann tem uma unidade que concorre para
a alta qualidade formal da cidade: na organização das fachadas e coberturas, nos ma-
teriais e elementos construtivos - portas, janelas, cantarias, cornijas e outros pormeno-
res. Sem esta unidade arquitectónica, Paris seria bem diferente e não teria a força e
coerência de uma das mais belas cidades do mundol
Aparecem tombem diversas funções no interior do quarteirão, através da sua so-
breposição em vários pisos e pela introdução de equipamentos, de serviços, pequena
indústria, artesanato, garagens, recolha de viaturas, armazéns ou mesmo jardins.
Em outras situações, o quarteirão será rasgado por galerias comerciais - as «pas-
sagens» parisienses, aí se propondo o fim do quarteirão como unidade impenetrá-
vel -, prenúncio da evolução morfológica que surgirá no século XX.

214
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3-48. Paris de Haussmann. O traçado e reparcelamento da Av. de /'Opéra. Quarteirões e lotes


resultantes dos traçados e reparcelamentos de Haussmann, segundo o estudo da Castex
e Panerai

215
o quarteirão torna-se um elemento dotado de grande complexidade interna, fun-
cionai e espacial, moldando a vida social e a imagem de Paris.
No entanto, é necessário ter presente que a Paris de Haussmann é um caso específi-
co de trabalho sobre uma cidade existente. Noutras expansões oitocentistas, o quartei-
rão segue a lógica de quadrículas mais regulares. A importância de Paris decorre dos
resultados extraordinários obtidos e da influência que exerceu em outras cidades fran-
cesas e europeias e no urbanismo em geral. Não é possível abordar o século XIX sem
referir a construção da Paris de Haussmann.

BARCELONA DE CERDÁ

Extensão da quadrícula e subversão do quarteirão

o forte crescimento económico e cultural da Catalunha proporcionou, nos meados


do século XIX, a realização de um plano de expansão da capital que absorveu e orde-
nou as energias económicas, demográficas e sociais. Éassim que o Município de Barce-
lona destrói as muralhas que envolvem o núcleo medieval, ao que se seguem as deci-
sões de organizar a expansão. Depois de algumas propostas apresentadas por outros
arquitectos (46), Ildefonso Cerdá é encarregado pelo rei da execução de um plano de
expansão para Barcelona (o ensonche).
Aprovado por ordem real em 1859, o plano de Cerdá é imposto com autoridade ao
Município e consegue organizar a expansão até aos princípios do século XX, moldando
a imagem que ainda hoje temos de Barcelona.
Cerdá aborda duas ordens de problemas: a organização da grande expansão - o
«ensanche» - e a investigação sobre a quadrícula e do quarteirão.
Completa o plano a Teoria General de la Urbanización (47) - , onde Cerdá expõe o
sua metodologia, pensamento urbanístico e preocupações de carácter sociológico.
Cerdá será o «primeiro urbanista» no sentido moderno do termo, na medida em que
consegue coordenar os aspectos espaciais e físicos com preocupações funcionais, so-
ciológicas, económicas e administrativas, tratando pela primeira vez a cidade como um
organismo compl~xo e integrador de vários sistemas.
O Plano desenha uma grelha ortogonal, com módulos ou quarteirões de 113 me-
tros de lado e vias de 20 metros de perfil, de tal modo que cada conjunto de nove quar-
teirões e vias correspondentes se inscrevem num quadrado de 400 m de lado.
O sistema é cortado por diagonais que confluem numa grande praça. A quadrícula
regular estende-se até aos municípios vizinhos e envolve a velha cidade medieval, co-
mo se esta fosse um corpo distinto, rasgado por três artérias que dão continuidade aos

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3.49. Ildefonso Cerdó - O plano de Barcelona, 1864. Gravura da época e esquemas exemplifi-
cativos das formas dos quarteirões propostos por Cerdó

217
eixos do ensanche. As diagonais são desenhadas sobrepondo-se ao plano quadricula-
do e fazendo surgir quarteirões irregulares e outros largos ou praças.
Preparado para 800 000 habitantes, o plano de Barcelona contém uma escala pou-
co vulgar na Europa do século XIX. Aproxima-se mais das grandes expansões america-
nas da mesma época; como Nova Iorque e Filadélfia, em que os planos organizam a
rápida expansão, a construção das infra-estruturas, o loteamento e a divisão fundiária,
bem. como o investimento económico nas novas construcões..
É na malha quadriculada que o plano apresenta as mais importantes inovações:
Cerdá rompe com o sistema tradicional da construção contínua na periferia das qua-
dras: é no interior destas que, de modo ordenado pelas viás, se vão dispor os edifícios.
Para a ocupação da malha quadriculada são propostas duas hipóteses:
A primeira corresponde à ocupação periférica do quarteirão em apenas dois dos
lados, formando ruas de 20 metros, semelhantes às que existem hoje. A construção
não excederia dois terços da superfície do quarteirão, os blocos seriam paralelos e, no
espaço entre estes, criar-se-iam «corredores» arborizados e com equipamentos. Na se-
gunda hipótese, os edifícios adquiriam maior liberdade na implantação e podendo
dispor-se em Le com quatro LL formar uma praça no cruzamento de duas vias. A rua
tradicional seria substituída por grandes avenidas arborizadas.
Estas hipóteses definem as regras de construção da cidade, permitindo enorme di-
versidade de espaços. Os quarteirões organizar-se-iam com centros cívicos próprios,
contendo igreja e escola, de certo modo antecipando as «unidades de vizinhança». Os
equipamentos de escalão mais elevado distribuir-se-iam pelo tecido urbano sem criar
zonas privilegiadas na cidade.
No plano de Barcelona, a quadrícula é suporte geométrico para um «jogo combi-
natório» de composição urbana. As peças do jogo - edifícios e equipamentos -
podem-se dispor nesse tabuleiro segundo formas múltiplas, ou «lances» diferenciados.
Aquadrícula não aparece como um mero processo de loteamento ou divisão cadas-
trai, mas como espaço da cidade onde se localizam edifícios e equipamentos.
Deste modo, ultrapassa-se o relacionamento entre quarteirão, edifrcio e rua, ou se-
ja, o perímetro do quarteirão deixa de ser o limite do espaço público.
Embora conter:nporâneas, as visões de Haussmann e de Cerdá são diametralmente
diferentes. Uma primeira distinção é evidente: num caso trata-se de reordenar e adap-
tar a cidade existente; no outro, de organizar o crescimento em expansão - o ensan-
che. O interior do «quarteirão», que em Paris é espaço privado, ou semiprivado, em
Barcelona pode tornar-se espaço público.
O plano de Cerdá vai quebrar também regras de composição clássico-barrocas. Os
espaços-tipo identificáveis - a rua, a praça, o parque, a avenida - ainda permane-

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3·50, Ildefonso Cerdó - plano de Barcelona, Os espaços construídos. Os espaços e sistema de
circulação automóvel. Quarteirões tal como imaginados por Cerdó, e tal como foram realizados

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3·51. Visto aéreo de Barcelona, Desenho.montagem do exposição de 1980 no S,N,B,A. Evalu,


ção dos quarteirões de Barcelona por densificação e especulação fundiário

220
cem mas não se organizam obrigatoriamente a partir do perímetro dos quarteirões, já
que os edifícios se dispõem livremente no interior das quadrículas.
Cerdá antevê as potencialidades decorrentes da independência entre ruas, espaços
urbanos e planos marginais dos edifícios. Todavia, o estado da teoria e experimenta-
ção urbanística da época não permitiram prosseguir estas ideias. As propostas de Cer-
dá eram demasiado avançadas ou demasiado antiespeculativas. Permaneceu o traça-
do viário principal, enquanto as quadras iriam ser ocupadas na periferia e no logra-
douro, progredindo no sentido do quarteirão tradicional.

AS AVENIDAS DE LISBOA DE RESSANO GARCIA

Traçados barrocos e quadrículas

o crescimento de Lisboa no século XIX dá-se mais tardiamente que em outras capi-
tais europeias. A Lisboa da segunda metade do século XIX enfrenta também necessida-
des de crescimento e criação de uma imagem de modernidade adequada ao papel de
capital europeia e de um império colonial.
Interessava também canalizar o investimento imobiliário e criar novas zonas resi-
denciais. Seria ocioso negar a influência que os exemplos de Paris e Barcelona exercem
em técnicos e políticos. Neste contexto, o clima municipal, encontrava-se sensibilizado
para a necessidade de novos planos que se concretizariam com o eng. Frederico Ressa-
no Garcia (1847-1911) na chefia da Repartição Técnica da Câmara de Lisboa. Enge-
nheiro, construtor, humanista e racionalista, Ressano Garcia diplomara-se em Ponts et
Chaussés pela Ecole Polytechnique de Paris, onde permaneceu até 1871, trazendo con-
sigo as ideias de Haussmann e o conhecimento de técnicas e processos necessários ao
crescimento ordenado de uma cidade. Com estas ideias e formação, organiza, a partir
de 1888, a expansão de Lisboa, através de vários planos que se articulam entre si. Ca-
da plano corresponde a uma área definida pela topografia e pela configuração de um
futuro bairro. A identidade de cada zona, ou cada plano, ainda hoje é visível, pela uti-
lização de malhas ortogonais, com quarteirões de diferentes dimensões. As bases do
crescimento serão. a «avenida» de gosto haussmanniano e o quarteirão regular, os
quais se adaptam bem à configuração topográfica e escala lisboeta.
A influência de Paris é quase natural, dada a irradiação cultural da «cidade das lu-
zes» e a formação que Ressano Garcia aí recebe (48).
Mas Lisboa não vai renovar o seu casco antigo, como Paris, mas organizar a expan-
são. A influência haussmanniana é sobretudo técnica e processual, já que a morfologia
urbana combina com equilíbrio o traçado viário em estrela, a praça circular confluC 1-

221
LISBOA 1897
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AVeNI DA DA LIBERDADE
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3-52. Frederico Ressono Garcia. Os planos das Avenidas em Lisboa. Planta de 1897, mostran-
do as intervenções em Lisboa. Vistas de Lisboa: o parque do Campo Grande (em 1915). o Av.
Fontes Pereira de Melo (1905-1908), a Av. António Augusto de Aguiar (1920)

222
3-53. F. Ressano Garcia - Planos das Avenidas em Lisboa, 1888-1900. 1. Planto da zona entre
a Praça Saldanha e o Campo Grande. 2. A mesmo zona na planto de 1911 da CM. L.

223
cia de avenidas, e uma quadrícula regular que muda de orientação e dimensão em ca-
da bairro. Os grandes traçados seguem a expressão barroca: a Avenida da Liberdade
que rematará no Parque Eduardo VII (a analogia com os Campos Elíseos/Bois de Bou-
logne é evidente), a Avenida Fontes Pereira de Melo, a Avenida da República, as pra-
ças em convergência de eixos viários como o Marquês de Pombal, o Saldanha. Mas o
perfil das avenidas introduz modificações sensíveis em relação ao boulevard parisien-
se, a arborização passa para as faixas centrais, criando passeios pedonais, melhor
adaptados às condições locais e à estrutura habitacional.
A forma urbana organiza-se à base de quatro princípios: o traçado, a praça con-
vergente, o quarteirão e a malha reticulada. Estes elementos criam uma nova imagem
estética para Lisboa. A iniciativa privada realiza os edifícios. Todavia, o quarteirão
apresenta algumas particularidades. Admite ocupações pontuais deixando espaços in-
tersticiais de penetração entre duas empenas; subdivide-se segundo uma lógica geo-
métrica em lotes que podem receber diferentes tipologias habitacionais: moradia-
residência burguesa ou prédio de rendimento. Eestas tipologias distribuem-se na ofer-
ta de lotes hierarquizando-os pela importância das ruas e dos sítios, mas criando um te-
cido urbano com descontinuidades na volumetria e na ocupação do solo.
O plano baseia-se nos processos de expropriação e preparação do solo, e divisão
em parcelas para construção. O quarteirão subdivide-se de modo geométrico e regu-
lar em seis lotes, cada qual ocupado por um edifício e um logradouro. O interior do
quarteirão é privatizado em logradouros, jardins ou hortas ligadas aos baixos dos edi-
fícios, dando-lhes compensações em espaços verdes. São criadas penetrações entre
empenas cuja utilidade se justifica nas práticas sociais da habitação burguesa: a entra-
da nobre e a entrada de serviço, a frente e as traseiras, estas últimas para os emprega-
dos e o abastecimento.
Os quarteirões das avenidas evoluem já na segunda metade do século ,XX por in-
tensa renovação e densificação imobiliária. Lote a lote, parcela a parcela, as avenidas
suportaram e suportam ainda a mais estúpida, ignorante e desastrada evolução. Os
edifícios foram demolidos e novos prédios cresceram com ocupação máxima do lote e
sem qualquer integração de conjunto nem contrapartida pública.
A excessiva terciarização e a medíocre arquitectura, desenquadrada de lote para
lote, completam o ~spectáculo de degradação!
Das avenidas traçadas por Ressano Garcia ficou essencialmente o perímetro dos
quart~irões, os traçados é a arborização (esta última também objecto, nas vias mais im-
portantes, de corte e degradação).
Pode-se dizer que os elementos mais fortes da estrutura urbana foram permanecen-
do, mas do equilibrado desenho inicial pouco já resta, tantas e tão monstruosas reno-
vações foram executadas.

224
3-54. As "Avenidas" de Lisboa. Fotografia aérea da zona da Av. Fontes Pereira de Melo -
Anos 30. A Avenida da República antes de 1910, segundo fotografia da época

225
2

3-55. 1 - ~isboo - propostas de F. Ressono Garcia.


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Planta pareioi da cidade, entre a Praça do Comércio e a Campo Grande, com todos os mel-
horamentos aprovados e em via de execusão a norte do Parque Eduardo VII, para justificação
dos estudos que se lhe seguem. Desenhada em 1903; 2 - Planta de arborização do Av. da
Liberdade. 3 - Corte da Av. do Liberdade marcando arruamentos, passeios a arborização

226
3.6 SÍNTESE - APRENDENDO NO PASSADO

Muito ficou certamente por dizer sobre as formas urbanas até ao período moderno.
Deliberadamente, não pretendia que esta parte fosse um trabalho de História, ain-
da que sintético e abreviado.
Os exemplos aqui apresentados são referências poro chegar às constatações e con-
clusões que pretendia. Tais conclusões podem resumir-se a um ponto essencial: até ao
período moderno, mas sobrefudo a partir do Renascimento, o desenho da cidade e a
composição urbana foram utilizando as mesmas ferramentas, O'U seja, o me'Smo sistema
de relações entre os elementos morfológicos, ou partes da cidade, e o espaço urbano.
Nestes períodos, os elementos morfológicos serão, invariavelmente, o traçado ou a
rua; o quarteirão subdividido em lotes, edifícios e logradouros; a praça e os recintos; os
prédios com as suas fachadas; os edifícios singulares; os monumentos; as fortificações;
outros elementos como as árvores e os jardins, é, acessoriamente, o mobiliário urbano.
Certo é que as utilizações destes elementos foram diferentes na intencionalidade es-
pacial e estética e funcional - e por isso produziram resultados diferentes -, que dis-
tingue as formas urbanas em cada período histórico. Mas mantêm-se os aspectos essen-
ciais da morfologia urbana porque se mantém no essencial o sistema de
relações entre os elementos morfológicos da cidade. Será o modo de combinação e jus-
taposição desses elementos e os suaS particularidades que diversificarão as formas ur-
banas. Tudo se passa como num iogo, com as SUas regras definidas, invari'óveis, e que,
ao ser jogado, admite inúmeras variações em cada lance, de jogada para jogada.
As variações decorrem de infençõei espaciais, estéticas" de estílo e de gosto, de
condicionantes preexistentes, topogróficos ou terrifor'iois, mas, no fundo, são secundá-
rias, face ao que pretendo demonstrar.
Isto é essencial para compreender a morfologia urbano tradiciond, poro ajuizar da
sua utilizaçãÇ> e para nelo se poder intervir criteriô'samente.
Servirá também poro compreender a~ rupturas e trcnsfórmações produzidas pela
urbanística moderna, e a evolução que a urbCHlísiíca formal seguio na primeira metade
do século XX e, finalmenfe, ponderar com objectividade os pressupo~tos do retorno à
forma urbana pelo «novo urbanismo>" nos últimos vinte anos.
O passado também fornece pistas paro o desenho da cidade. Assim, ao longo desta
parte III, fui procurando os dados e razões paro o compreensão da cidade e o conjun-
to dessas regras que produziram inúmeros e notáveis espaços urbanos, ainda hoje ver-
dadeiras lições para o eterna problema: como dispor ediHdos no terreno e com eles
produzir arte urbana, espaço, e dar forma Q cidade.

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3·56, Plano Geral de Melhoramentos do Capital. Desenho de 1903

228
PARTE IV
I
I

AURBANISTICA FORMAL

~ _ _>~~_i2';_.dL t _ U_ I ... ,.

229
«En el reflujo dei urbanismo funcionalis-
ta, mientras las periferias de las grandes
ciudades muestran los fracassos de los
4.1 INTRODUÇÃO
bloques residenciales, la edificación en
altura y los grandes vacios de suelo in-
tersticial descuidado e inútil, vuelven a
A DISCIPLINA URBANÍSTICA: DO INÍCIO AO URBA-
plantearse algunas de las perennes NISMO FORMAL DE ENTRE AS DUAS GUERRAS
cuestiones que ya preocuparon a Ray-
mond Unwin, y que de manera explícita
No final do século XIX e até à guerra de 1914-1918,
se situaron en el centro de su frabajo.»
as cidades europeias submetidas a profundas dinâmicas
Manuel de Solá Moralas i Rubió sociais, económicas e urbanística~ atingem já grande
complexidade estrutural e morfológica, com todas as ino-
Introdução a vações em infra-estruturas, serviços e equipamentos, e
La practica deI Urbanismo
novas tipologias espaciais.
de R. UNWIN
Nesta mesma época, se constitui o urbanismo como
disciplina autónoma, síntese artística e técnica, do conhe-
cimento e intervenção na cidade.
Em boa verdade, o urbanismo existiu desde sempre, como nos exemplos romano e
grego, nos momentos altos europeus, desde Biaggio Rosseti, em Ferrara (li, ou Eugénio
dos Santos, em Lisboa. Mas os exemplos de urbanismo até aos finais do século XIX es-
tão mais ligados ao desenho urbano como actividade empírica ou arte urbana do que
à visão integrada e pluridisciplinar que a urbanística, vai ter da cidade.
De início, o urbanismo foi o alargar da arquitectura a novos conhecimentos.
Deliberadamente, resisto à tentação de historiar o aparecimento do urbanismo e
dos fenómenos que o originaram. Desde as profundas transformações industriais ao
crescimento demográfico, às utopias sociais, aos problemas de higiene e salubridade,
um conjunto numeroso de questões converge para criar a necessidade de um campo
autónomo e muito vasto de estudo e intervenção na cidade.
De início, o urbanismo adquirirá autonomia em relação à arquitectura, embora
conservando estreitas relações quer pela importância do desenho urbano quer por ser
obra de arquitectos, cuja formação académica provinda das Beaux-Arts não diferen-
ciava, senão pela escala, a composição urbanística da composição arquitectónico.
Nos primeiros t~mpos, existe continuidade entre os processos da jovem disciplina ur-
banístico e as realizações anteriores do século XIX. Mas as cidades entõo projectadas já
não serão simples repetições das cidades oitocentistas, quer pela busca de novas solu-
ções espaciais quer pela atenção ao conjunto de problemas urbanos e socioeconómicos.
Tais problemas colocam a necessidade de respostas estruturadas em moldes científi-
cos e espaciais. A organização das áreas habitacionais e do alojamento - fornecendo
casas a todos -, a criação de condições de higiene e salubridade, a organização das

231
4·1. Oito Wagner. 1. Ordenamento da Karl Platz - Viena 1909. Vi"J aéreo de conjunto. 2.
Perspectivo aéreo do centro do Distrito 22 do Plano Regularizador do Grossfadf (Viena) 1911

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4.2. Urbanisma progressista e formal na Holanda. 1. H. P. Berlaje: plano de expansão de Haia


1908. 2. Uma ruo do conjunto mercatorplein, Amsterdam, 1925. Foto da época

233
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funções industriais e do expansão urbana, o infra·estrutura e o equipamento, consti-


tuem os maiores problemas que a urbanística teve de enfrentar desde o inkio.
Para responder a esses problemas, dispunham os recém-instituídos urbanistas dos
instrum~ntos e ferramentas do arquitectura e de um espírito novo de abertura e curiosi·
dade poro com o complexo realidade urbano.
O início do século XX foi um período de intenso actividade: 00 nrvel teórico com o
aparecimento de trotados, investigações, e os primeiros revistos de urbanismo; ao nível
institucional, pelo criação dos primeiros. corpos legais que regulamentaram o gestõo
das cidades, criando pelo primeiro vez a obrigação de realização de planos; 00 nível
das realizações, pelo forte actividade de construção de edifrcios e equipamentos e do
expansão das cidades, e até de novos assentamentos urbanos: no Europa, devido à re·
construçõo dos desvastações dos guerras de 1870 e 1914·18 e transformações econó-
micos, demográficas e sociais; no América, pelo grande desenvolvimento e crescimento
demográfico ligado à emigração e à conquisto de novos territórios; na África e no
Ásia, devido à colonização europeia e exploração intensivo dos colónias.
Toda esta prática urbanístico dará continuidade às morfologias urbanas tradicio·
nais e aceitará inoVàções resultantes de outros contributos disciplinares.
Aesta prático urbanístico, convencionarei chamar «URBANrSTICA FORMAL», reto-
mando os termos com que os seus autores se designavam, e o importância por eles con-
ferido à FORMA URBANA (2),
Foram, sem dúvida, os arquitectos do «Urbanístico Formal» quem conduziu o urba-
nismo europeu na primeira metade do século XX (até à Segundo Grande Guerra), já
que os arquitectos modernos, adversórios desse entendimento morfológico do cidade,
se encontravam desligados dos trabalhos de ordenamento urbano.
Foi a escola francesa quem mais profundamente marcou a urbanístico formal, tanto
pelo ensino do urbanismo (03) como pelas influências internacionais que obteve, «expor-
tando» urbanistas que realizaram os planos das principais cidades do mundo. Deve-se
também este êxito à influência dos traçados de Haussmann e à eficácia e simplicidade
que permitiam no planeamento das cidades.
Aurbanístico francesa tem neste período o seu ponto alto no Europa, nas colónias e
no estrangeiro. Cito os excepcionais realizações em Marrocos, seguindo até 00 Orien·
te, como em Saigão ,e outros cidades dos colónias asiáticos.
A raiz haussmanniana destas cidades está bem potente no suo formo e traçados.
Noutros ambientes, territórios e sítios, o urbanístico formal comprovava o êxito da sua
transplantação de Paris para Marrocos ou outros terras orientais.
Acolonização inglesa teria no ordenamento de Nova Deli, segundo o plano de Sir
Edwin Lutyens, em 1912, um traçado grandioso, preservando o «antigo» Deli (4).
Ainda hoje, a imagem de Nova Deli se assimila aos grandes eixos monumentais, na ~

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4·3. H. P. Berlaje. Plano de expansão de Amsterdam Zuid. 1915. Perpectiva aérea

235
focagem dos monumentos e, sobretudo, na relação estreita entre o traçado urbano e a
arquitectura: o palácio do governador, os Ministérios e o centro na Conaught Place,
com a sua rotunda, interpretação monumental dos circus de Bath.
Pondo de parte a questão colonial no modo como é imposta uma cidade europeia,
numa cultura milenária que lhe é totalmente estranha, Nova Deli consubstancia um dos
melhores momentos da urbanística inglesa nas suas colónias. Outros exemplos pode-
riam ser referidos desde Hong-Kong até Cabul e cidades do Egipto, como Heliópolis.
A urbanística italiana seguirá os mesmos princípios, na Itália e nas colónias da líbia
e Eritreia, ao proceder à renovação dos centros e expansões das cidades.
A Alemanha e a Áustria contribuem com grandes urbanistas e investigadores, desde
Stübben e Camillo Sitte a Otto Wagner, e com metodologias particulares nas suas reali-
zações habitacionais: as Hoff, as Siedlugen. Posteriormente, o nazismo irá impor o re-
gresso a uma tradição urbana mais discutível.
Classificando a corrente funcionalista de «judaico-bolchevique», e não alemã, o na-
zismo adopta um primarismo clássico e um conservadorismo arquitectónico pesado e
pouco inovador.
A ideologia do poder, imporia a monumentalidade, enquanto a arquitectura ofi-
ciai, que se reclamava de Shinkel e dos clássicos, torna pesada e monótona a forma ur-
bana. Todavia, como nota Lars Anderson no seu livro A. Speer e os Planos para Ber-
lim (5), os arquitectos dos anos trinta-quarenta, sob o III Reich, «abordavam igualmente
questões de arquitectura e urbanística, embora sob pontos de vista diferentes».
Pese embora a dificuldade de se esquecer a ideologia nazi, haverá que considerar
a urbanística alemã no debate sobre a forma urbana, na medida em que constituiu um
dos períodos de produção urbana na primeira metade do século XX.
Verifico também que formas idênticas podem ser utilizadas em contextos diferencia-
dos. As transformações para Berlim propostas por A. Speer são monumentais e desme-
suradas, sem dúvida, mas ocupam-se inequivocamente da forma da cidade.
A urbanística portuguesa será nessa época influenciada fortemente pela a Alema-
nha e a Itália (favorecidos pela aproximação dos regimes) e sobretudo pelos contactos
com a França, quer pela influência da cultura francesa quer pela permanência de urba-
nistas franceses em Portugal, como Forestier, Agache e De Groer, em Lisboa (6).
Agache deixará- no ordenamento da Costa do Sol algumas propostas de grande
qualidade, como a ressistematização do Parque do Estoril, hoje em dia em curso de
destruição pela especulação imobiliária e o adensamento abusivo das construções.
De Groer trabalha prolongadamente em Portugal, nos planos de Lisboa, Almada e
Costa do Sol, Coimbra, Évora e Vila Franca de Xira, entre outros.
Será em Lisboa que, nos anos quarenta e cinquenta, se constrói um dos mais interes-
santes exemplos de urbanismo: os bairros de Alvalade e do Areeiro, planeados por Fa-

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237
ria da Costa, e que analisarei mais adiante. Alvalade e Areeiro, apesar dos «maus tra-
tos», testemunham ainda hoje as qualidades do seu traçado.
Outras cidades e bairros dessa época, e algumas cidades coloniais, como Lourenço
Marques, Luanda ou Macau, foram organizadas pelos mesmos princípios, com traça-
dos que durante muitos anos iriam organizar e modelar a sua forma.
Convirá referir que se produzem as primeiras e importantes legislações urbanfsticas
em todos os países europeus, que imporão a realização obrigatória de planos, com no-
táveis consequências no reconhecimento do papel dos urbanistas. Definiram-se regras
de higiene, salubridade, equipamentos e serviços que constituirão suporte legal e
administrativo à prática urbanística, com efeitos sensíveis no desenho das cidades até à
Segunda Grande Guerra.
Étambém no mesmo período que são escritos e publicados alguns importantes tra-
balhos sobre estética e desenho urbano como A Arte de Construir as Cidades, de Ca-
mil lo Sitte, ou A Prática do Planeamento Urbano, de Unwin (7), tratados que tiveram
enormes repercussões e influência na primeira metade do século XX.
Os textos legais, os tratados teóricos e as realizações, dão um panorama completo
do modo de entender a cidade pela urbanística formal de entre as duas guerras.
Tenho para mim que este período do urbanismo se relaciona de modo inequívoco
com o debate actual sobre a forma urbana.
Na realidade, é grande a proximidade morfológica entre muitas propostas actuais
e os desenhos dos urbanistas da primeira metade do século XX. Por razões que se expli-
cam, todo esse período foi praticamente esquecido da memória disciplinar, prejudican-
do a confrontação com as questões actuais e a própria cidade moderna.

SILÊNCIO SOBRE A TRADIÇÃO


Quando, na década de setenta, se desenvolveu a crítica à urbanística moderna - e
a revalorização dos espaços urbanos tradicionais - os modelos de referência foram
inevitavelmente tomados das cidades clássico-barrocas e do século XIX, ou até das ci-
dades medievais. Sem excepção, os arquitectos saltavam por cima da urbanística for-
mai de entre as duas guerras, esquecendo modelos de grande interessei
Este facto será explicável. Desde o pós-guerra até aos anos oitenta haviam desapa-
recido as referências ao urbanismo formal nos meios difusores da cultura, o que, além
do mais, teria implicações profundas na formação de gerações de arquitectos.
É preciso não esquecer que a implantação do movimento moderno se realizou -
como em outros movimentos culturais - através de batalhas renhidas, numa guerra
sem tréguas, cujo rescaldo iria, entre outras repercussões, produzir o esquecimento da
urbanística formal em todos os meios de difusão cultural e na memória disciplinar.

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4-5. 1- Saigôo, Indochina. O plano europeu de 1878 2· O plano de Herbrard, 1921 para Hanoi

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Em primeiro lugar, pelo silêncio dos principais historiadores dos pós-guerra, como
Gideon, Zevi e Benevolo (8), nos seus trabalhos de história da arquitectura e do urba-
nismo. A razão é simples: os seus autores, todos próximos do Movimento Moderno ou
nele protagonistas, naturalmente calaram adversários e o pensamento a que se opu-
nham. O que se pode compreend~r pelo seu envolvimento pessoal na arquitectura mo-
derna, e pelo interesse que a cultura moderna foi dedicando à inovação, à diferença e
ao valor do novo contra o tradicional, da vanguarda contra o academismo, e à cono-
tação pejorativa que atribuiu à tradição. Além do mais, regimes conservadores, totali-
tários e fascistas haviam utilizado esses modelos urbanísticos nas realizações oficiais -
como Portugal, Espanha, Itália e Alemanha nazi -, o que conduziu, no rescaldo do
pós-guerra, à natural identificação de formas urbanas com ideologias políticas e sociais
e ao repúdio moral de umas e de outras. Nesta ordem de ideias, a urbanística moder-
na, de conteúdo democrático e social inequívoco, aparecia como a urbanística da li-
bertação e da democracia.
A acção desses historiadores teve profundas repercussões na formação dos arqui-
tectos a partir dos anos quarenta. Ao registar obras e autores, esquecendo uns, promo-
vendo outros, obedeciam a determinações culturais e ideológicas, influenciando decisi-
vamente o ensino, as escolas e os arquitectos pelas referências e críticas que forneciam.
Os principais meios de comunicação e difusão da cultura urbanística, como as revis-
tas de especialidade, iriam também alinhar nas teses modernas, e, desinteressando-se
de referenciar a urbanística formal, remetê-la-iam ao esquecimento.
De igual modo, as escolas de arquitectura e a administração do urbanismo iriam
progressivamente ter dirigentes mais jovens, entusiasmados pelos ideais modernos, o
que provocaria o afastamento dos urbanistas tradicionais. O vasto terreno conquista-
do pela urbanística moderna irá em definitivo tornar a urbanística formal «obsoleta»,
antiquada e pejorativamente académica, face à sedução dos novos métodos.
Os poderes públicos aderirão, a partir dos anos cinquenta, inequivocamente, à ur-
banística moderna, oficializando-a e institucionalizando-a até à banalização.
No seu conjunto, estes diversos vectores contribuíram para que se afastasse o urba-
nismo formal da memória profissional. Não admira, portanto, que o debate sobre a
forma urbana nos anos setenta tenha de início tomado como referência a cidade anti-
ga. Num certo sentido, os autores do «regresso ao urbano» cometia-m o mesmo lapso
dos historiadores dá arquitectura moderna, (a quem deviam a sua formação). De res-
to, só recentemente se vai dispondo da informação necessária ao estudo desse perío-
.
do. A reedicão das obras de Marcel Poete, Lavedan, Unwin ou Camillo Sitte, ou o
aparecimento de trabalhos sistematizados como a História do Urbanismo, de Sicca (91,
permitem avaliar com extensão e profundidade os contributos da «urbanística formal»
e verificar o grau de elaboração e maturidade a que esta havia chegado.

240

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NEW DELHI

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4-6. Sir Edwin Lutyens. O plano de Nova Deli - 19'11 Vistas aéreas da zona da Palácio dos
Vice-Reis e grande avenida, e do Conaughth Cicus - anos trinta. A grande avenida com os
Ministérios e o Palácio dos Vice-Reis ao fundo.

241
2

4·7. Albert Speer e o GBI. Plono de Berlim 1934-1945. 1. Desenho de Speer poro o Grande Ave- '
nida, 1936.2. Plano definitivo do Grande Avenida, ligando {de cimo poro baixo} o Estação Nor-
te, Câmara Municipol, Reichstag (com o grande cúpula), o Chancelario, OKH, o Memorial do
Soldado, AEG, Ópera, e Ministérios, o praça octogonal, o Arco do Triunro e o Estaçâo Sul. 3.
Maquetas dos zonas residenciais de expansão. Sectores norte e sul de Sudsstadt

242
4-8. Albert Speer e o Plano de Berlim. Maqueta do Grande Avenida com o Arco do Triunfo e
o cúpula do Reichstog, 1940.

243
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A metodologia seguida pela urbanística francesa e europeiâ, da primeira metade
do século XX utilizará o desenho como síntese da resposta aos problemas urbanos e co-
mo comunicação de uma imagem e ideia da cidade, comprovando a eficácia dos traça-
dos em diferentes ambientes e territ6rios. Não tratava apenas de «estética urbana» -
como faria supor a palavra «embelezamento» titulando os planos -, mas da verdadei-
ra estrutura das cidades. Para essa estrutura, contavam igualmente questões de natu-
reza tão diferente como controlo demográfico, as deslocações, percursos e trânsito, a
configuração de unidades urbanas como o bairro e suas forma de vida, etc.
A urbanística formal Filtra e integra diversas análises e contributos de outras áreas
disciplinais que possam melhorar a cidade, e integra também experiências desenvolvi-
das pelo Movimento Moderno. Assim não é de estranhar que em Agache ou Faria da
Costa (e outros da mesma escola) surjam ideias relacionadas com a 'unidade de vizi- .
nhança, alguns princípios funcionalistas na organização distributiva das actividades e
equipamentos - o zonn;ng e a observação de regras de urbanismo, higiene e salubri-
dade -, compartilhadas com os arquitectos modernos, ou a aplicação de teorias como
os green belts (anéis verdes) e as cidades-satélite, a desprivatização do solo e tantas
outras. Neste campo, a morfologia tradicional aceita evoluções profundas como a des-
privatização do interior do quarteirão e a sua utilização como espaço público ou semi-
público, introduzindo maior diversidade nas formas urbanas.
Todas estas questões continuaram integradas num entendimento morfológico da ci-
dade que atinge grande complexidade e elaboração, já não apenas em ordem a efei-
tos cénicos, visuais e físicos, mas também sociológicos, funcionais e estruturais.
Neste contexto, o arquitecto urbanista é entendido e aceite como o especialista da
cidade, detentor de uma formação complexa, de grande seriedade e..notoriedade, e si-
multaneamente maestro de uma orquestra de diversos contributos disciplinares que se
integram e sintetizam no desenho. É assim que algumas Administrações chamam gran-
des nomes do urbanismo para tratar das suas cidades, demonstrando o reconhecimen-
to da sabedoria do urbanista e da importância do desenho. (Arrisco a comparação
com a situação portuguesa actual, em que qualquer executivo municipal em exercício
se sente investido de poderes e conhecimentos para decidir sobre a cidade.)
Todavia, se a Figura do arquitecto urbanista era prestigiada, tal se devia também à
acção dos pronssionqis, à unidade das suas acções e à seriedade na execução dos pia-
nos. Etambém à eficácia dos métodos de planeamento, aos traçados regulares capa-
zes de definir uma imagem da cidade.
No seu conjunto, a «urbanística formal» representa um vastíssimo campo de realiza-
ções e propostas continuadoras da cidade tradicional que não podem ser esquecidas.
Além do mais, interessa avaliar e compreender a sua semelhança com numerosas
propostas surgidas nos últimos vinte anos.

244
4-9. Sabaudia. Plano da cidade nova na região dos pântanos Agro-Pontinos, Itólia, 1931
Arq.os Cancelloti, Montuori, Piccinato, Scalpelli. Solução escolhida em concurso

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4-10. 1. Planta de Lourenço Marques, segundo carta de 1926. 2. Plano de urbanizaçaõ de


S. Tomé - anos cinquenta

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4-11. 1. Plano de urbanização de Luanda. Gabinete de Urbanização do Ultramar, anos


cinquenta. 2. Planta de Luanda - 1949

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in Practice

248
4.2 os TRATADISTAS DO INÍCIO DO SÉCULO XX
E A VALORIZAÇÃO DO DESENHO URBANO

STÜBBEN E CAMILLü SITTE

o aparecimento do urbanismo como disciplina é acompanhado por trabalhos teóri-


cos incidindo sobre o desenho urbano que tiveram grande sucesso e influenciaram for-
temente a sua época. Retenho essencialmente três autores: Stübben, Camillo Sitte e Un-
wm.
As recentes reedições de Town Planning in Practice (lO), de Unwin, ou de Stadte-
bau (l1), de Sitte, permitem, passados cerca de oitenta anos sobre o seu aparecimento,
fazer o balanço da influência que tiveram e avaliar a sua actualidade.
Joseph Stübben (1845-1936) será o teórico e prático mais prestigiado na Alemanha
de 1880 até à Primeira Guerra. A sua «enciclopédia» - Der Statebau, Handbuch der
Architektur (12) - conhece um enorme sucesso, várias reedições e a divulgação em nu-
merosos países. Stübben conjuga o urbanismo com a arquitectura, abordando a estéti-
ca e a técnica de construção de edifícios e da cidade em função do plano e da integra-
ção e continuidade de dois momentos de fazer a cidade: o urbanismo e a arquitectura.
A obra de Stübben estuda uma selecção de exemplos característicos da urbanística
oitocentista, como modelos repetíveis e cuja aplicação permite resolver os problemas
identificáveis na cidade. Preocupa-se em isolar os problemas e resolvê-los através de
modelos: a cada problema, o seu modelo espacial-físico, integrado na organização ge-
rai da cidade. Pela divulgação do tratado, pela actividade como teórico em congres-
sos, manifestações, e revistas e pelos planos de que é encarregado, Stübben assume
um papel de primeira linha, constituindo ponto de referência obrigatório e de epílogo
na prática urbana tardo-oitocentista europeia, fazendo-lhe a síntese e o remate.
Camillo Sitte (1843-1903) introduzirá uma orientação diversa, baseada fortemente
nos princípios compositivos e arquitectónicos medievais. Critica a rigidez e falta de ima-
ginação dos traçados repetitivos dos planos de expansão alemães, que considera mais
determinados por questões, como o tráfego e as infra-estruturas, e menos preocupados
com os resultados paisagísticos, ambientais e morfológicos.
Segue as lições da História, mas recusa a tradição haussmanniana, de alinhamento
rectilíneo, propondo em contrapartida sequências construídas organizadas de modo
orgânico, assimétrico e variado, explorando as particularidades do terreno. Organiza
a composição urbana em três dimensões, a partir de sequências. Apoiando-se na rein-

249
I

4·13. Camillo Sitte. Página do manuscrito original do Stadtebau, A Arfe de Construir Cidades, o
Urbanismo, Segundo Princfpios Arffsticos, capftulo II

250
A.PI.cu.
L, II., IV. PIacet ,rojeú•• ,nl dt
l'fcIiM VodY..
III. Amuai dt l'fcIiM Vodn.
V. P1ace de 1'UlÚttnlú.
VI. P1ace dt 1'H6w ele VIIk.
VII. Grandt,\aQe dll Nitre.
VIII. 'ctile pu du Nitr•.
IX. !I,1enadt dll ,.mment.
x. P1ace dant 11 Volbtamn.
XI. 'lace dll ,aIaIt de Jlllrice.

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V ~. li. Laborltoln d. chilnle.
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I c. I!m,lacemmr d'un arand mo-
numene.
ti. Uninniú.
I. H6cel de ViIIc.
f. Jlurttbclcer.
I. AiJe projerée dll ButJtheater.
h. Temple de Tb~lée.
j. Emplatemenr du monument
de Gcetbc.
.. NOllvel idifice Ron d~terminé.
L Palais de JIlltÍce.
m. NOllvel1e alie de la Holbllfl.
". kc de Triomphe projeú.

4·14. Comi/lo SiHe - no Stadtebau. 1. Conjunto de intervenções propostos poro o reordena-


mento de uma zona do ring de Viena. como demonstração de Urbanismo Segundo Fundamentos
Artísticos. 2. A composição de um edifício público pode formar conjunto urbano e criar vários
praças

251
terpretação medieval, relega para segundo plano questões como o zonamento, as
infra-estruturas, densidades, índices urbanísticos ou o funcionamento da cidade.
Sitte domina com à-vontade a pequena escala, mas revela incapacidade para con-
r
trolar o organismo urbano e a grande cidade, a qual exigiria certamente outros méto-
dos tais como elementos estruturantes e grandes traçados. O seu receituário ~erve pa-
r
ra pequenas sequências, mas torna-se de impossível utilização a grande escala.
Não resisto a estabelecer um paralelo com Gordon Cullen no Townscape (13), tam-
bém este preocupado pelas sequências espaciais, com igual predomínio dos espaços
r
medievais e da pequena escala, e raras referências às quadrículas, malhas ou sistemas
ortogonais e extensivos. Cullen, à sua maneira, retomou alguns ensinamentos de Sitte, r
ou, se se quiser, a paixão de Sitte pela morfologia medieval.
A vasta obra de Sitte e os seus escritos influenciaram fortemente os urbanistas den-
tro. da Alemanha, onde se formou uma escola que aprofunda e aplica os seus ensina-
r
mentos e, fora desta, por toda a Europa, marca a jovem disciplina urbanística.
Até o próprio Le Corbusier, nas suas primeiras reflexões sobre a arquitectura, terá
sido influenciado por Sitte (14).
r
O Movimento Moderno assimilou tanto os trabalhos de Stübben como os de Sitte
mais superficialmente aos seus aspectos de revivalismo medieval do que ao seu conteú-
r
do essencial - a arte de desenhar a cidade, ou a composição da forma urbana.
De novo haverá que reflectir sobre Sitte (a reedição do seu livro já o permite) (15),
pelas inúmeras pistas que fornece para a actuação na cidade histórica e para interven-
r
ções pontuais de cicatrização de tecidos urbanos.
r
UNWIN - A PRÁTICA DO URBANISMO E DO DESENHO URBANO
r
Em 1909 o Parlamento Inglês aprova a primeira lei sobre planeamento urbanístico
e é publicado o Town Planning in Practice (16), que, no dizer do autor, serviria, «entre
outros objectivos, para melhorar e estimular a aplicação da lei do urbanismo face ao
r
I
empobrecimento estético e qualitativo das cidades e à sua uniformização».
Apesar da apresentação modesta, o livro adquire grande repercussão em Inglater- r-
I
ra e ressonância internacional. A primeira edição esgota-se rapidamente; a segunda,
aparece meses mais farde; a terceira, já revista, em 1911, e outras se sucedem entre
1919 e 1932. Ernest May, discípulo de Unwin, traduz o livro para alemão em 1922;
Léon Jaussely prefacia-o e tradu-lo para francês em 1924; Clarence Stein e Henri
Wright difundem-no nos Estados Unidos, e seguem-se edições em russo e italiano.
O objectivo principal do Town Planning in Practice são os métodos de projecta.r a ci-
dade e os seus bairros - a «boa forma da cidade» (17), Este objectivo domina todo o tra-

I~

252 II~
I
4-15. Barry Parker e Raymond Unwin. Plano de Letchworth - cidade-jardim, 1903, publicado
no Town Planning in Pactrice

253
balho. Mas os exemplos que Unwin retira da experiência de Letchworth e Hampstead
terão provocado uma associação excessiva com a cidade-jardim, em detrimento do
Unwin urbanista talentoso e investigador, inventor de novas tipologias urbanas e ca-
paz de abordar o projecto da cidade em toda a sua complexidade morfológica.
O Town Planning in Practice pouco tem de teoria da cidade-jardim, sendo, pelo
contrário, um verdadeiro tratado de desenho urbano. Escrito vai para mais de oitenta
anos, readquire hoje grande actualidade, atestada pela reedição em várias línguas (181.
Revela, desde logo, a influência de Sitte e a continuidade com a obra do mestre, di-
vulgada vinte anos antes na Stadtebau de Viena. Todavia a influência de Sitte é mais
marcada nos dois primeiros capítulos - Da arte pública como expressão da vida comu-
nitária e Da individualidade das cidades - do que nos restantes.
No terceiro capítulo - Da beleza do regular e do irregular -, Unwin afasta-se já
claramente de Sitte, ao confrontar o formalismo (<<o regular») dos traçados clássicos e
em retículas que favorecem o tráfego, com outro tipo de urbanismo que nasce do res-
peito pela individualidade do sítio e da valorização do contraste e da surpresa, carac-
terística dos espaços medievais (<<o irregular»).
Neste confronto do REGULAR com o IRREGULAR, Unwin evidencia as vantagens e
inconvenientes, de ambos, e os casos em que um se justifica, e outro, não, e explora,
com eclectismo, as contribuições de ambos os sistemas. Tal como hoje se oferece aos ar-
quitectos a utilização de morfologias modernas ou tradicionais, Unwin reflecte sobre a
problemática (ainda hoje em aberto) do «irregular» e o «regular».
O seu método apoia-se tanto em exemplos criteriosamente escolhidos como em tra-
balhos pessoais. Os exemplos reais são completados e comparados com esquemas grá-
ficos explicativos e com as experiências realizadas em Letchworth, Hampstead e Earths-
wick, permitindo reflectir sobre as soluções conseguidas. Aí, como se verá, dá-se um
dos primeiros passos na ruptura da cidade tradicional, pela reformulação das relações
da rua com o lote e o edifício. Problema complexo, na medida em que não é a vontade
de destruir a cidade tradicional que conduz Unwin nessa ruptura, mas apenas a conse-
quência lógica do «material» com que trabalha: a casa unifamiliar, a baixa densidade e
a máxima recuperação do solo livre para o verde da «cidade-jardim».
O discurso de Unwin é preciso e sistemático, libertado do empirismo dos seus antecesso-
res, e procura o equilíbrio entre as necessidades funcionais eos objectivos estéticos na cidade.
A este respeito, o capítulo VIII, sobre a organização viária, é exemplar. Para Unwin
as vias são canais de tráfego, e esta é a sua primeira razão. Mas são também o lugar
de implantação dos edifícios e pretexto para evidenciar as suas características volumé-
tricas visíveis e as suas fachadas, assim formando a imagem, mais relevante nos cruza-
mentos e nos nós. Posição que seria retomada por Lynch (19).
Para exemplificar estas pesquisas, Unwin reflecte sobre perfis e larguras de traça-

254
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4·16. Raymond Unwin - Town Planning in Pac/rice, Estudo de diferentes soluções para o con·
iunto de vias, intersecções, vias curvas e impasses, obtendo diferentes efeitos visuais, .lIustrações
do Tawn Planning in Pac/rice

255
dos e seus cruzamentos, preocupa-se com a arborização das vias, numa dosagem equi-
librada entre o funcionalismo e a autonomia estética do desenho urbano.
Aborda também o problema da estrutura fundiária: a dimensão, a forma das par-
celas, a sua ocupação e modo de agregação, e a posição face aos arruamentos consti-
tuem a base da edificação e alicerce do desenho urbano. Para os cruzamentos e as es-
quinas, as partes mais complexas do sistema viário e edificado, Unwin desenvolve hipó-
teses de colocação do lote no terreno e no esquema urbano de modo a atingir objecti-
vos volumétricos e construtivos da «boa forma da cidade». Parcelamento e edificação
(ou arquitectura) constituem sistemas interdependentes de construção da cidade.
Outro princípio básico refere-se à necessidade de subordinar cada edifkio a um tra-
tamento unitário do conjunto.
Mesmo com tipologias residenciais de baixa densidade e de vivendas unifamiliares,
os edifícios subordinam-se ao conjunto e só assim se obtém um adequado controlo do~
espaços públicos resultantes. Apesar da baixa densidade, Unwin oferece um conjunto
muito amplo de soluções e hipóteses que produziram forte influência nos seus continua-
dores e no urbanismo tradicional, ao longo da primeira metade do século XX.
Unwin propõe também que o controlo da cidade seja exercido simultaneamente na
escala geral (organização dos traçados principais, dos equipamentos e funções) e na
pequena escala (o bairro, o quarteirão, a rua).
A primeira designa de town planning, e a segunda, de site planning.
Entre as opções gerais de traçados, equipamentos e funções e o desenho das ruas e
residências deverá existir correspondência e continuidade.
Projectadas as vias principais, os terrenos deverão ser urbanizados de modo a se
obter o melhor partido para os edifícios, através da metodologia do Site Planning.
Esta dualidade entre o «plano geral» e o «plano de pormenon>, entre a escala terri-
torial e a escala urbana, é confrontada com o «regular» e o «irregular». Receita para a
escala de pormenor, maior variedade e liberdade, e até aceita graus de «acaso» e a in-
tervenção de vários urbanistas, tentando recriar os processos orgânicos de formaçã9
das cidades - retomando a nostalgia da cidade medieval.
Ao revalorizar a cidade medieval, Unwin coloca também uma questão ainda hoje
insuficientemente resolvida: a cidade histórica, com a sua complexidade espacial,
formou-se, por sedi~entação e contributos de várias épocas e períodos, materializados
em sobreposição de malhas viárias, sistemas espaciais e construções. Deste processo
resultou um ambiente a muitos títulos fascinante, rico de surpresas e de variações. Mas
um processo de acumulação será difícil, senão impossível, de recriar no estirador - e
as realizações tentadas resultaram em pálidas imagens, da a riqueza e complexidade
das cidades históricas. Mas esta é uma questão que há que ponderar, aceitando a ne-
cessidade do tempo na conclusão da cidade. De resto, o próprio Unwin sistematiza o

256
que o urbanista apreende na leitura da cidade e as repercussões desses ensinamentos
na prática do seu ofício, transpondo-as em linguagem e formas contemporâneas.
Numa altura em que o desenho urbano já havia passado por um conjunto de expe·
riências muito ricas e diversificadas e atingido a maturidade, o tratado de Unwin dá os
contributos metodológicos necessários à prática cada vez mais complexa do urbanista
e do arquitecto - prática projectual por excelência, essencialmente' morfológica.
Se influências de Unwin poderão ser encontradas em Agache, Groer, Prost ou Faria
da Costa, e nos urbanistas franceses de entre guerras, verifica-se também que Unwin
desenvolve princípios e modelos que rompem com o sistema de quarteirão fechado, in-
fluenciando as pesquisas habitacionais holandesas dos anos vinte-trinta. Os sistemas de
impasses o c e, etc., também serão retomados pelos seus seguidores americanos -
Claren e Stein, q e aperfeiçoa o «impasse» no modelo de Radburn, ou Taut, Berlage,
Klein, o próprio Gropius'ou até o Le Corbusier dos seus primeiros tempos. Fica também
de Unwin a influência exercida no urbanismo anglo-saxónico, que nunca aderiu total-
mente ao racionalismo moderno, e vem eclodir, sessenta anos mais tarde, com Cullen,
Nairn e Wolfe, no Townscape, ou na Imagem da Cidade, de Lynch.
As recentes edições da obra de Unwin permitem também descobrir alguma «bato-
ta» cometida por teóricos recentes do novo urbanismo, ao recorrerem às cidades euro-
peias dos séculos XVIII e XIX como fontes de inspiração, esquecendo contributos a este
e outros autores, afinal bem mais actuais. Por sucessivos lapsos da História (do «lapso»
dos historiadores modernos ao «lapso» dos teóricos antimodernos dos últimos anos),
autores como Unwin têm sido aparentemente ignorados. Hoje, o debate sobre a mor-
fologia urbana e a revalorização da cidade tradicional permite um enfoque diferente.
Depois de oitenta anos sobre a edição original, reler o Town Planning in Practice é
reencontrar a possibilidade do planeamento da cidade a partir das variáveis físicas,
morfológicas, no interior de uma dimensão intelectual e científica dos problemas.
Estas referências são talvez insuficientes para situar a obra de Unwin no seu verdadei-
ro contexto e lugar na história do urbanismo e do desenho urbano: dou-me conta da for-
te actualidade do Town Planning in Practice, em relação ao qual muitos textos e manuais
posteriores pouco ou nada acrescentaram, senão uma apresentação gráfica diferente.
A obra de Unwin apresenta-se hoje como se tivesse sido escrita por alguém prota-
gonista da polémiGa dos últimos vinte anos sobre o desenho e a forma da cidade.
Alguém sereno, profundo conhecedor dos mecanismos de produção da cidade, das
particularidades do território e dos sítios, e das formas urbanas, e manejando com ex-
periência as técnicas do desenho. Alguém com experiência do «ofíci~ de urbanista» -
que é o do arquitecto que trabalha no desenho da cidade.
Tenho para mim que o estudo do texto de Unwin deveria constituir um dos manuais
de desenho urbano das escolas de arquitectura.

257
4-17. Léon Joussely: plano de Angoro - Turquia 1925. Desenho original, escalo 1:4 000 no ori-
ginai

258
4.3 A ESCOLA FRANCESA: URBANISMO FORMAL
E TRADIÇÃO PARISIENSE
A França conhece, na primeira metade do século XX, uma intensa actividade urba-
nística, de que retenho alguns momentos importantes. O primeiro, a constituição em
1913 da Société Française des Urbanistes (SFU), formada a partir da secção de Higiene
Urbana e Rural do Museu Social. Eugene Henard é o primeiro presidente da
S. F. U. (20), que conta com D. A. Agache, J. C. N. Forestier, Jaussely, Prost, Parenty,
De Sousa e Tony Garnier, entre outros. Três anos antes, em 1910, a nova ciência da or-
ganização dos assentamentos humanos no território era baptizada por Urbanisme (21).
A lei Cornudet, de 14 de Março de 1919, modificada em 1924, constituiria a primei-
ra Carta do Urbanismo, impondo a obrigação de um plano a todas as cidades com
mais de 10 000 habitantes. São os Planos de Extensão e Embelezamento - designação
que admitia também o interesse pelo aspecto estético e ordenamento visual da cidade.
Sob a lei Cornudet, são realizados planos, instituindo-se uma prática decisiva para
o desenvolvimento da urbanística francesa. O trabalho determinado pela lei orientou-
se para a reconstrução dos estragos da guerra, organização do crescimento, renova-
ção dos centros, controlando as transformações e dando formas às cidades.
Através do plano e numa visão integrada, eram coordenadas questões de natureza
diversa: das infra-estruturas e arruamentos à habitação e equipamentos, com um forte
senl'ido estético do ordenamento urbano.
Em 1919, Marcel Poete e outros criam a Éco/e Pratique d'Études Urbaines et d'Ad-
ministration Municipa/es, que sucedia à Éco/e Supérieure d'Art Publique, e que, em
1924, se torna o Institut d'Urbanisme de /'Université de Paris. Uma das primeiras esco-
las de urbanismo, o Instituto teve enorme prestígio e a ele acorreram estudantes de to-
do o mundo, futuros urbanistas em seus países, como Faria da Costa em Portugal.
Através do Institut d'Urbanisme, a França estabelecia o ensino do urbanismo, codi-
ficava e definia a metodologia de composição urbana.
A escola francesa seria caracterizada pela utilização de traçados clássicos, de qua-
drículas, praças e perspectivas - trabalhadas a aguarela e carvão, em impressionan-
tes desenhos que fixavam o ordenamento visual. Estas características fariam do urba-
nismo um artigo de exportação, prestigiando a irradiação da cultura francesa.
Seria simplista reduzir a escola francesa à aparência visual dos seus planos e reali-
zações, na medida em que o urbanismo era encarado como ciência - «ciência da ob-
servação» -, no dizer de Marcel Poete, para o qual cada cidade seria «um organismo
com vida própria que não a soma das vidas particulares». (22)

259
Assim, a urbanística francesa estabelecia a metodologia da realização dos planos.
Abordava matérias pluridisciplinares, preocupando-se com o «ser» (/'êfre urbain) (23),
que considerava distinto da forma - mas aceitava a «forma» como o produto final do
urbanismo, privilegiando o desenho como método de trabalho.
Os planos seriam iniciados por inquéritos e análises até atingirem as propostas, tra-
balhando a diferentes escalas territoriais, do geral ao particular, da cidade ao bairro,
numa metodologia cartesiana que deixou até hoje prindpios universais, como a neces-
sidade de observação e compreensão da cidade antes de nela intervir.
Nesse processo pluridisciplinar o urbanista-arquitecto deteria o papel do maestro,
coordenador das várias intervenções e único capaz da síntese, porque único apto a
«desenhar».
O urbanista é «não aquele que, tendo outra preparação, considera a cidade como
tal no seu campo de actividade, mas aquele para quem a cidade, na sua unidade orgâ-
nica própria, forma o centro de pesquisas e que só considera as outras ciências na me-
dida em que têm relações com a cidade» (24), ou, como refere V. Deznai (25), «a fim de
ser tratada como convém, esta ciência (o urbanismo) requer aptidões que não são o
simples somatório dos conhecimentos do arquitecto, do engenheiro, do sociólogo, do
urbanista, do administrador, do higienista, do geólogo, do climatólogo, do geógrafo,
do naturalista, do historiador, do etnógrafo, etc. O urbanismo, embora enformado
por todas essas ciências (suas auxiliares) no que se refere à cidade, compõe por si mes-
mo um conjunto orgânico cuja essência não se situa nos pormenores, mas nas relações
vivas entre esses elementos». Éeste o ponto de vista que é novo: a cidade já não é con-
siderada do ponto de vista da arquitectura, das técnicas, ou da sociologia ... mas sim-
plesmente do ponto de vista «cidade».
A escola francesa teve papel preponderante pelo debate teórico, realização de pIa-
nos, e pela irradiação internacional. Exportou saber e formação e os seus urbanistas
trabalharam na organização de muitas cidades pelo mundo, conferindo-lhes determi-
nada homogeneidade cultural, técnica e distributiva, ainda hoje reconhedvel.
Muitos desses arquitectos urbanistas foram distinguidos pelos sucessos do seu tem-
po: os Grands Prix de Rome, os primeiros lugares em grandes concursos internacionais,
grandes encomendas no estrangeiro, (26) planos para cidades como S. Petersburgo, Is-
tambul, Rio de Janeko, e também, nas colónias e nações em desenvolvimento da Amé-
rica do Sul, num conjunto de obras que foram o campo laboratorial da nova disciplina.
Apesar da realização de inúmeros planos em França, entre os quais o Plan d'Amé-
nagemenf de la Région Parisienne, executado nos anos 30 sob a direcção de Henry
Prost e notável pela dimensão e métodos, será nas colónias francesas e no estrangeiro
que se encontrarão as mais interessantes realizações da escola francesa.
Léon Jaussely ganha, em 1903, o concurso para o Plano de Barcelona (na sequên-

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261
4-19. Henri Prost durante o governo de Liautey. Plano de Fez, Marrocos, 1914-1916. A cidade
europeia e os relações com o cidade antigo muculmona. Desenho publicado por Auzelle no Ency-
clopédie d'Urbonisme

262
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4-20. Léon Joussely: plano de ordenamento e extensão de Paris, 1919. Proposto escolhido em
concurso

263
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cia do Plano Cerdá): Henri Prost, já citado, realiza os planos das cidades marroquinas
e de Istambul, onde trabalha durante quinze anos; Jacques Gréber, em 1917, ganha o
concurso para o Plano de Filadélfia e depois Otava e Montréal; Forestier desenha os
planos de Buenos Aires e de Havana; Hebrard reconstr6i Sal6nica, em 1918, e traba-
lha nos planos de Dalat, Hanói, Saigão, Hai Phong e Phnom Penh; Agache e De Groer
trabalham em Portugal (Planos de Lisboa, Costa do Sol, Coimbra, Évora, Almada,
etc.), orientando De Groer os Serviços de Urbanização montados por Duarte Pacheco.
Agache elabora também o Plano do Rio de Janeiro, e ganha o concurso para o PIa-
no de Camberra. Mais recentes são ainda os casos de Auzelle e Georges Meyer Heine,
que elaboram, respectivamente, os Planos de Porto e Lisboa (1963-1974).
Faria da Costa, formado em Paris, nos anos quarenta, foi um dos pioneiros e talvez
um dos maiores urbanistas em Portugal, seguido, anos mais tarde, por João Aguiar,
também formado na escola francesa e autor de numerosos planos de vilas e cidades.
Retenho também deste conjunto de exemplos o caso particular dq obra realizada
em Marrocos pelo Governo do general Liautey, que chama Henri Prost para dirigir a
equipa que, entre 1914 e 1930, planeia e levanta as cidades europeias em Casablan-
ca, Fez, Marrákech, Tânger e a capital administrativa em Robot.
Pela exemplar união entre a visão política e administrativa do governador e a urba-
nística de Prost, o território é organizado e as cidades existentes são dotadas de gran-
des expansões à europeia.
As «cidades novas» de colonização europeia são realizadas ao lado das cidades
marroquinas sem as destruir. Inovadoras para a época são as relações entre a expan-
são por traçados, afrancesada, e a cidade marroquina, respeitada como um todo, sem
qualquer atravessamento viário, vindo a constituir uma unidade urbana, numa atitude
que só teria equivalente no respeito actual pelos centros hist6ricos.
Liautey expõe, em 1921, em Robot (27), a síntese das teorias de planeamento urba-
nístico no protectorado marroquino: a necessidade de respeito pela cidade indígena,
justapondo-a à cidade eLlropeia, equipada e especializada funcionalmente. Justaposi-
ção que não produz danos a ambas as partes, permitindo-lhes conviver social e fisica-
mente. Uma articulação que contém a salvaguarda dos espaços tradicionais marroqui-
nos, embora aceitando a segregação racial e econ6mico-social entre as duas áreas.
A expansão europeia é essencialmente um esquema de traçados, de localizações
funcionais e de disposições edificadas segundo as regras e regulamentos que definem a
construção ao longo desses mesmos traçados, como, por exemplo, a determinação
obrigatória de arcadas no piso térreo, determinada pelo clima norte-africano.
Nos capítulos seguintes, são apresentados alguns autores referenciáveis. Tony Gar-
nier, Marcel Poete, Agache e as suas obras, que de certo modo, exemplificam o con·
teúdo e dão conta da influência que a escola francesa teve no mundo. O perlodo de in-

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4-21. J. M. Boutterin, 1933. Plano de extensão e embelezamento de Besonçon. Perspectiva aé·


rea e planta

265
4-22. Auguste Perret: plano de reconstrução do Havre. Esquema e imagens do época,
1944-1950

266
4·23. Fernand Pouillon: C1imat de France. Conjunto urbano de habitação social em Argel .-
3500 habitações. Maqueta do conjunto e vista da grande praça dos 200 Colunas. A evolução
da urbanística formal integrando propostas modernos e sentido da tradição urbano em
1956.

267
fluência e duração do urbanismo formal acaba sensivelmente com o fim da Segunda
Guerra Mundial, com o advento do «urbanismo moderno», que traz novas ideias.
Atrevo-me a afirmar que, quando foi interrompida e abandonada, a urbanística
formal encontrava-se em plena maturidade e apetrechada para responder aos proble-
mas e desafios da organização da cidade. A evolução em França é sintomática. Du-
rante o período entre as duas guerras são ainda os arquitectos urbanistas da SFU que
orientam o planeamento das cidades. Para a reconstrução, a partir de 1945, a ideolo-
gia moderna ir-se-á apoderando do aparelho de Estado até se tornar dominante. Atra-
vés da acção do ministro Claudius Petit (o mesmo que encomenda as unités d'habitation
a Le Corbusier em Marselha e Lyon), os urbanistas da SFU responsáveis pela reconstru-
ção das cidades irão ser substituídos por jovens arquitectos modernos e funcionalistas.
Esta substituição técnica entre 1945-1950 marcará a evolução do urbanismo francês e
a definitiva adopção do urbanismo e da arquitectura modernos.

TONY GARNIER E A CIDADE INDUSTRIAL

Garnier desenvolve a sua obra mais notável - a Ville Industrielle - como tese de
bolseiro Prix de Rome, que expõe ao público, quando, em 1904, regressa a França. A
segunda fase da sua actividade processa-se em Lyon como urbanista da cidade, onde
também projecta e constrói obras importantes.
A Cidade Industrial terá sido ponto de referência para aqueles que, sem visionarem
a ruptura com a cidade tradicional, propunham a sua evolução e adaptação; ponto de
referência pela metodologia utilizada, pelo carácter científico com que os problemas
são tratados e pelo sentido morfol6gico-arquitectónico das propostas.
Realizada em 1904 e publicada no mesmo ano na revista La Construetion Lyonnai-
se, A Cidade Industrial quase que permanecerá ignorada até 1917 (28!, ano em que é
divulgada em livro. Os Grands Travaux de la Vil/e de Marseil/e dão outra publicação,
em 1920, conjuntamente com os trabalhos já realizados por Garnier, em Lyon.
Enquanto os seus colegas actuam iunto da opinião pública e dos poderes, Tony
Garnier remete-se a um trabalho solitário, em Lyon. O impacte prometedor da Cidade
Industrial não terá -seguimento no seu trabalho posterior, que tem de afrontar um caso
real e problemas diários de uma cidade em desenvolvimento. .
Garnier não escreve, não viaja nem participa muito nas polémicas de vanguarda.
Não tem o entusiasmo combativo e militante que lhe permitiria tornar influentes as suas
ideias. Por estas razões e por falta de divulgação, permanecerá num plano «secundá-
rio», embora pertença ao grupo fundador da SFU.
Com o início do Movimento Moderno, Garnier será quase esquecido até aos anos

268
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2 filalu,e,
3. mine'j
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5. u,ine de produi" ,elradai,.,
6. champ, d' ."ai de, mol.u"
7 uhlizatioo d., déchel'
8. abaNai"
9. gare de I'u,ine
10. ,'o.ioo de la ville
11. viII. anc:iellne
I2. gare cent,al.
IJ quar'ie" r.,idenhel,
14. celllre de la ville
15. école, pr,maire,
16. écal", pro/euioonelle,
J 7. éloblissemenh sonita;re~
18. vieux chÔICOU el pare pubhc
19 címelrê(p,

4·24. Tony Garnier: a cidade industrial (1904). Plano geral de apresentação - desenho origi-
nai e esquema explicativo, segundo Ostrowski em L'Urbonisme Conlemporain

269
sessenta (29), altura em que a sua obra é «redescoberta» por historiadores que o envol-
vem na génese da cidade moderna ...
Sem negar a evidente aproximação de Garnier às inquietações que precedem a
cidade moderna e o carácter inovador das suas propostas, parece-me mais acertado
integrá-lo na urbanística formal da primeira metade do século XX.
As propostas da Vílle Industrielle apontam uma via simultaneamente de continuida-
de e inovação. Continuidade, porque se interligam aos sistemas de fazer cidade por
traçados, eixos e quadrículas, de reforma e inovação, porque indicam organizações
funcionais e físicas diferentes e que seriam incorporadas na cidade moderna.
Precisa organização distributiva e das actividades tipologia construtiva sistematiza-
da e relacionada com a morfologia urbana; permanência da relação traçado/rua/lo-
te/edifício, são, entre outras, as propostas de Garnier. Deixa livre a velha cidade, que
não entra no desenvolvimento urbano (antevendo o que será tema constante na urba-
nística moderna), transpondo no terreno o princípio do zonamento funcional, que per-
mite à cidade fragmentar-se por áreas distintas. O sector residencial é atravessado por
uma via central e organiza-se em «quarteirões» regulares. Cada quarteirão mede
150 x 30 metros e subdivide-se em lotes de 15 metros de lado, ocupados por casas ge-
minadas, que, na segunda versão, terão dois pisos). Cada lote tem sempre um lado pa-
ra a rua. Entre a fachada do edifício e a rua existe um pequeno jardim que envolve a
construção. O quarteirão é fragmentado e utilizado por verde público, do qual emer-
gem as edificações. Quase seria subvertido, se não se mantivessem a direcção dos ei-
xos viários e o alinhamento entre edifícios, lotes e arruamentos. É a partir da arquitec-
tura que se define a organização do espaço urbano. Garnier projecta os edifícios e os
ambientes urbanos por estes criados. Apresenta, numa sequência narrativa, um mode-
lo urbano, possível de utilização, afrontando com objectividade os sistemas político-
administrativos, técnicos, sociais, jurídicos e económicos que tal acção envolve, numa
demonstração da organização urbana para o século XX.

MARCEL POETE E A INVESTIGAÇÃO URBANA

Marcel Poete encontra-se na base do ensino e da investigação urbana em França.


A partir de 1903, desenvolve intensa actividade pedagógica e de investigação, criando
os fundamentos de uma análise histórica e morfológica das cidades.
Em 1903, institui o Cours d' Introduction à I' Histoire de Paris; participa, em 1913,
na fundacão da Société Francaise d'Urbanisme (30); institui, em 1916, o Institut d' Histoi-
re, de Géographie et d'Éco~omies Urbaines; participa na criação, em 1919, da École
Pratique d'Études Urbaines, a qual se transforma, em 1924, no Institut d'Urbanisme da
Universidade de Paris.

270
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4-25. Tony Gornier. A cidade industrial. Pormenor dos bairros habitacionais: planto dos
edifí-cios e perspectivo aéreo do conjunto. Perspectivo do gore ferroviória e do siderurgia
no zona industriol.

271
A obra de Poete já foi abundantemente referida a propósito da forma urbana, e
por aí se poderá julgar a sua metodologia de conhecimento da cidade, da qual me
aproximo.
Retenho a utilização da análise histórica comparada. O seu método histórico de co-
nhecimento decorre do estudo das cidades existentes ou passadas. Étambém científico,
pelo recurso ao conhecimento global e à explicação pluridisciplinar dos factos urbanos.
Para Poete, o urbanismo deve assentar no profundo conhecimento da história urba-
na e na evolução da cidade como facto construído. Procura o futuro da cidade no seu
passado e no presente.
Poete terá sido o «urbanista» no sentido do estudioso global da cidade, praticando
a pluridisciplinaridade do conhecimento do objecto urbano.
Aobra de Poete é prosseguida por outros autores como Henri lavedan (31), historia-
dor e seu discípulo.
Anos mais tarde, o próprio Mumf9rd continuará esta investigação, embora os tra-
balhos de Mumford, centrados essencialmente na história das cidades, sejam mais dis-
tanciadas da prática urbanística. O trabalho de Poete, mais centrado sobre a morfolo-
gia urbana, permite formular respostas mais directas para o desenho urbano.
Recordo os estudos sobre a origem e evolução dos traçados das ruas e praças, do
parcelamento e das estruturas fundiárias, a «teoria das permanências», o lugar dos mo-
numentos na estrutura urbana, e tantas outras considerações de grande validade e
actualidade para o estudo da cidade.
Poete trabalha na perspectiva do urbanista que, antes de traçar o plano, exige co-
nhecer o objecto da intervenção. Institucionaliza uma prática que se inicia com a análi-
se e finaliza na proposta. Através da investigação introduz no estirador a lição das ci-
dades antigas, que representam, no fundo, grande parte da experiência do presente.
O recurso à História como instrumento de aprendizagem fará parte integrante da
urbanística formal e particularmente da escola francesa. Desde Stubben, Camillo Sitte
ou Unwin, esta atitude é bem contrária ao anti-historicismo (ou corte com a História)
dos arquitectos modernos. Embora continuada por outros autores, a obra de Poete vai
ser confrontada com a polémica da cidade moderna, acabando por cair em desuso,
votada ao esquecimento pelos arquitectos, teóricos e historiadores modernos. O esgo-
tamento das edições, a sua idade e envelhecimento, a dificuldade de encontrar seus li-
vros nas bibliotecas, 'colocam-no na prateleira dos autores esquecidos; reduzindo-lhe a
influência progressivamente. De tal modo que, em 1965, quando Rossi, no trabalho (já I
hoje clássico) L'Architettura della Cittá, retoma e desenvolve algumas teorias do «ve- -'

lho» Poete, quase dará a ilusão de novidade e surpreendente actualidade.


Em parte, o texto de Rossi ressituara, trinta anos mais tarde, as teorias de Poete,
enquadrando-as numa crítica à cidade moderna e no processo de uma nova teoria da

272
cidade. A recente reedição das obras de Poete, como a Introduction à l'Urbanisme (32),
permite agora retomar as fontes originais e os ensinamentos que nos transmite.
Esta redescoberta irá de par também com o reencontro da urbanística com a arqui-
tectura e com a História - a lição da «presença do passado» - e, nesse campo, Poete
terá sido dos que melhor compreenderam a história urbana.
Tenho como certo que o estudo dos trabalhos de Poete deveria constituir de novo
objecto de formação arquitectónica e urbanística, leitura obrigatória para a compreen-
são dos processos de formação da cidade e do seu desenho.
Seria, além do mais, uma falha cultural só conhecer Poete através de Rossi, já filtra-
do pela «tendência» interpretativa do grande arquitecto italiano.

AGACHE E O PLANO DO RIO DE JANEIRO

A pr~sença de Agache neste trabalho deve-se a um par de razões: a dupla activida-


de como teórico e profissional permite com maior facilidade utilizar a sua obra para a
apresentação da urbanística francesa; a familiaridade deste autor com Portugal, por
onde passou em 1933, a convite de Duarte Pacheco, para fazer o Estudo Preliminar de
Urbanização da Zona de Lisboa a Estoril-Cascais. Trabalho que não terminou, sendo
sua a ressistematização do Parque do Estoril e do Casino, a partir de ideias anteriores,
de 1914, do arq. Martinet, de Paris, no empreendimento turístico de Fausto Figueiredo.
Éforçoso assinalar que, depois da construção deste espaço, poucos ou nenhuns outros
de igual interesse ou significado serão realizados na Costa do Estoril, até hoje.
Agache pertence ao conjunto de arquitectos que iniciam a divulgação do urbanismo
como prática e ciência de estudo e intervenção nas cidades. Co-fundador, em 1914, da
Société Françoise des Urbanistes, a sua actividade desenvolve-se quer como autor de
numerosos planos, sendo chamado directamente por Governos de países a braços com
problemas de ordenamento urbano (Portugal, Brasil), quer como vencedor de concur-
sos internacionais (Camberra, 1913), quer ainda como teórico e animador de debates
sobre a higiene urbana e a jovem disciplina urbanística, dando uma série de importan-
tes conferências entre 1922 e 1932 no Colégio Livre das Ciências Sociais.
Em 1928, o prefeito do Rio, António Prado Júnior, encomenda a Agache o plano de
urbanização ou remodelação da capital do Brasil. Agache acaba o plano em 1930, o
qual é aprovado em 1932. Nessas datas, publica a Cidade do Rio de Janeiro (1930),
depois traduzida em francês - La remodelation d'une capitale, aménagement, exten-
sion, embellissement (331.
A documentação existente facilita a abordagem de Agache nesta dissertação. Inte-
ressa-me o conteúdo do seu trabalho, exemplar da metodologia do urbanismo formal,

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4-26. Oonnat Alfred Agache: Plano do Rio de Janeiro, 1928-1930 - o Rio de Janeiro Maior.
Pormenor do zona central (Parlo do Brasil) e relação dos enfiamenlos com os elementos do
terrilário (Pão de Açucor) Praça do Porto do Brasil, perspectivo aéreo de noite. Marcação dos
lraçados no Esplanada do Castelo.

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4-27. D. A. Agache: Plano do Rio de Janeiro. Perspectivo axonométrica do centro monumental


e bairros de intercãmbio e negócios, Perspectivo dos hipóteses volumétricos do regulamento apli,
cado o um quarteirão, Desenho de Le Corbusier para o utilização de um quarteirão no Rio de Ja-
neiro poro o ediffcio do Ministério do Saúde

275
e a possibilidade de examinar o «confronto» com o «gigante» do Movimento Moderno
- Le Corbusier -,de passagem pelo Rio em digressão pela América do Sul, no momen-
to em que Agache trabalha no seu plano.
Diante de Agache e da Associação dos Arquitectos Brasileiros, Le Corbusier dá, em
, 929, uma conferência sobre a unidade do sistema moderno e das suas propostas - os
esquisses famosos para o Rio de Janeiro -, em que a gigantesca composição arquitec-
tónica assenta na grandiosa paisagem e com ela se relaciona de igual para igual. A
macroestrutura de Le Corbusier é sugerida pela escala da paisagem, assentando em
dois elementos principais: o «arranha-céus» e a auto-estrada. A natureza da proposta
de Le Corbusier é autónoma. Não é um plano, é um projecto; não é urbanismo, é ar-
quitectura, e como arquitectura se confronta com o território monumental do Rio, os
seus morros, o Pão de Açúcar, a costa e o mar. Na paisagem vista de avião, grandiosa
e monumental, encontra Le Corbusier o suporte para as suas ideias.
Desta confrontação e das conferências pronunciadas no Rio, deixa Le Corbusier o
fermento que marcaria a arquitectura e a urbanística brasileira moderna, de Niemeyer
a Lúcio Costa.
A comparação das propostas de le Corbusier com o plano de Agache exemplifica
com ênfase (apesar do caso extremo e paradigmático de Le Corbusier) o distanciamen-
to que o separa da urbanística formal.
Agache desenvolve um método e uma técnica operacional que assentam na estrutu-
ração da cidade a partir do zonning e do plano-director.
a zonning é a repartição racional das necessidades da vida urbana: habitação, tra-
balho, lazer, permitindo regulamentar o mercado fundiário, bloqueando a sobredensi-
ficação, definindo o bairro e controlando o crescimento urbano.
Fixa também a densidade e os tipos de habitação predominantes em cada bairro,
assim contribuindo para a definição da sua forma.
A conjugação entre morfologia urbana e tipologia habitacional é esquissada, como
dois instrumentos que vão definir a forma da rua, do bairro e da cidade. O sistema de
zonning proposto por Agache recusa o desenvolvimento da cidade em anéis concêntri-
cos, que considera caótico, optando pelo crescimento em estrela, que permite criar es-
paços livres no interior da mancha urbana.
A macroestrutwa da cidade é uma alternância de áreas construídas e zonas livres,
como ao nível urbano, a morfologia será a alternância de cheios e vazios, nos quartei-
rões, arruamentos e praças.
a plano-director define a estrutura urbana e os elementos funcionais da cidade,
hierarquizados nas suas posições no território. Os perímetros urbanos definem os limi-
tes das áreas a construir e são determinados pelas distâncias ao centro e pelos trans-
portes. É a «distância prática», medida em tempo de transporte, mais do que em quiló-

276
4-28 Agache. Plano do Rio de Janeiro. Projecto dos jardins poro o Ponto do Calabouço -
perspectivo. A Praça do Costela, centro de negócios

277
metros, que se conjuga com a unidade de vizinhança. Para Agache, a «unidade de vizi-
nhança» «ultrapassa a noção de bairro e define-se como associação de famílias ou indi-
víduos criada por ligações de vizinhança, sem as quais não é possível subtrair as rela-
ções económicas, como a troca de produtos, a prestação de trabalho e de serviços, as
relações indispensáveis em certas circunstâncias tristes ou alegres da vida, ou por servi-
dões, que são obrigatórias em vista do bem comum» (34).
Os bairros correspondem à ideia de «unidade de vizinhança», não sendo, contudo,
separados pelo anel verde «vazio», que faria receita no urbanismo anglo-saxónico, mas,
pelo contrário, estruturados numa continuidade urbana, como na cidade tradicional.
Para Agache, o urbanismo é também a arte da composição.
«Numa aglomeração importante, os diferentes bairros devem acusar a sua fisiono-
mia própria e diferenciarem-se uns dos outros, combinando-se numa harmonia ge-
rai» (35). A arte da composição deve traduzir a imagem coerente da cidade, tal como es-
ta se representa sobre o território. «A harmonia da cidade procura realizar plastica-
mente o quadro adequado à existência de uma colectividade organizada.» A corres-
pondência do plano com os valores institucionais, económicos e políticos dominantes
passa pela força imprimida ao desenho dos traçados e perspectivas monumentais e pe-
lo valor simbólico das massas construídas nos pontos principais: o centro de negócios, a
praça principal, as grandes funções comerciais e terciárias. A significação urbana esta-
belece a relação entre as formas e as funções. O centro é dominado por torres de escri-
tórios e comércio. «Esses edifícios de negócios dão à capital a fisionomia urbana de um
conjunto de silhuetas que as cidades antigas evidenciavam por meio dos seus numero-
sos edifícios religiosos, necessários à afirmação do poder urbano.» Agache transporta
essa significação para as funções contemporâneas. «Em vez de deixar os elementos ca-
racterísticos da nossa vida moderna espalharem-se aos ventos do acaso e perderem to-
da a expressão simbólica pela sua dispersão num conjunto caótico, é desejável
reagrupá-los (... ); é este, parece-nos, o verdadeiro lado do problema artístico da gran-
de cidade, cuja solução depende mais da organização de bons conjuntos do que da
construção de monumentos ou edifícios mais ou menos conseguidos (... ). Os edifícios,
se são bem estudados para se integrarem no quadro geral do conjunto, contribuirão
para o cenário geral; o seu porte, a sua massa, o fundo de perspectiva que ocuparão,
serão tantos elementos contribuindo para o embelezamento do organismo urbano e a
expressão de génio civil. É, portanto, necessário que o urbanista se ocupe não apenas
da disposição dos edifícios em plano, mas imagine igualmente o seu volume.» (36)
Agache, no Rio de Janeiro, em 1929-1930, utiliza com à-vontade e sabedoria a
composição clássica, o traçado e quarteirões para a definição do espaço, jogando com
todas as ferramentas do urbanismo barroco-haussmanniano: avenidas, boulevards,
praças, valorizações dos sítios, traçados geométricos e quarteirões.

278
Éo desenho urbano que comanda a arquitectura, ao mesmo tempo que o projecto
arquitectónico já transparece no desenho urbano. Plano de urbanismo e projecto de
edifícios são para Agache dois momentos de um processo único marcadamente ar-
quitectónico - tanto mais porque Agache foi também um arquitecto de grande sensibi-
lidade e invenção, como o testemunham alguns equipamentos realizados (37),
A relação da cidade com a Natureza (outro tema) passa pela interpretação do ter-
ritório numa relação dialéctica em que o sítio será o suporte interpretativo da cidade,
como que um «edifício natural» integrado na gradação arquitectural. Contrariamente a
Le Corbusier, em que a Natureza permanece independente da arquitectura (planos de
Argel, Rio ou Montevideu), para Agache, a Natureza é integrada na relação entre
cheios e vazios ou servindo de cenário a traçados e espaços públicos.
Para concluir, repito alguns aspectos das propostas de Agache que sintetizam a ur-
banística formal.

• A metodologia é essencialmente morfológica - tende a operar na forma urbana pe-


la função, dimensão e aspectos de comunicação estética.
a Os instrumentos de trabalho e de ordenamento da cidade são o traçado, o quartei-
rão, a praça e o edifício: elementos da cidade tradicional, tratados com sentido ino-
vador e integrando contributos mais recentes da disciplina urbanística.
• Os edifícios e os seus elementos - fachada, lote e volume - são determinados na
continuidade e desenvolvimento das intenções do plano. Urbanismo e Arquitectura,
ou melhor, plano e projecto são dois momentos em sequência de um mesmo processo
de desenho da cidade.

Esta rápida síntese do trabalho e teorias de Agache evidencia o requinte a que che-
gara a urbanística formal europeia e a escola francesa antes da Segunda Guerra Mun-
dial. Certamente que tal urbanística necessitaria de um poder político, voluntário e em-
penhado, capaz de levar por diante o controlo da cidade, o que, de resto, também foi
necessário para manter a coerência de cidades modernas como Brasília.

279
4-29. O Porque do Estoril e o Casino, segundo desenho de 1914, pelo arquitecto francês J. Mor-
tinet, no empreendimento de Fausto Figueiredo. Em baixo, o ressistemotizocào do parque e do
casino proposta por Agache em 1933

280
4.4 A URBANÍSTICA FORMAL PORTUGUESA
DE GROER, AGACHE E GASTON BARDET

De Groer aparece em Portugal como colaborador de Agache, que substituirá. A im-


possibilidade de iniciar o Plano da Costa do Sol por falta de levantamentos topográfi-
cos e de organização dos serviços conduz a que o Plano só arranque em 1942, sem que
Agache se possa encarregar dele directamente. Entretanto, De Groer estuda também
os planos de várias cidades: Braga, Coimbra, Évora, Abrantes e Almada, o Plano da
Costa do Sol e mais tarde o Plano da Região de Lisboa.
Estes trabalhos lançam em Portugal a visão urbanística de que a política desenvolvi-
mentista de Duarte Pacheco necessitava.
Ésem dúvida o Plano da Costa do Sol, mercê dos seus objectivos de criação de uma
zona turística internacional na Europa e mercê da atenção especial cada por Duarte
Pacheco, que terá tido a implementação mais completa e qualificada. E há que reco-
nhecer que, raras vezes, nos últimos cinquenta anos, se terá neste país ordenado uma
zona urbana de modo tão completo. Ainda hoje, o que de qualificado existe na Costa
do Sol data das propostas de Agache, primeiro, e de Etienne De Groer, depois.
A ressistematização do Parque do Estoril aproxima-o dos jardins para a Ponta do
Calabouço, no Rio de Janeiro, projectados pelo mesmo Agache segundo o esquema
clássico de alameda central ladeada por massas de árvores aproveitando o declive do
terreno. Esquema semelhante seria utilizado no Parque Eduardo VII, em 1944.
Qualquer destes exemplos são composições com forte identidade, dignas de nota
entre os espaços urbanos de qualidade construídos nas últimas décadas!
A acção dos outros planos de De Groer não terá sido tão completa, quer pelo me·
nor dinamismo das regiões e mais desinteressada intervenção pública quer pela dilata-
da realização no tempo, que dificultou a aplicação e descaracterizou os objectivos.
Anos mais tarde (1947), outro urbanista - Gaston Bardet - desenvolve actividade
em Portugal com conferências no Instituto Superior Técnico e textos publicados em re·
vistas como a Técnica e a Urbanização. A presença de Bardet prolongava a tradição
de convidar urban'istas franceses a planear as cidades portuguesas. Em 1927 Forestier
é chamado a dar um parecer e ideias sobre o prolongamento da Avenida da Liberda-
de (38); posteriormente nos anos sessenta Auzelle trabalha no Plano no Porto, e Georges
Meyer Heine, no Plano de Lisboa (39). Outros urbanistas não franceses como Piacentini
ou Dodi serão também chamados numa tradição de apelo a estrangeiros famosos e ex-
perientes e que, com o seu presença prestigio seduziam a Administração. As relações

281
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4-30. C. Forestier Plano de prolongamento da Avenida do Liberdade e expansão norte de


Lisboa - 1925

282
4-31. Cristino da Silva. Projecto para o alto do Porque Eduardo VII - Lisboa, 1963.
Perspectiva aéreo

283
da urbanística francesa prolongam-se também na personalidade de Faria da Costa,
talvez o maior urbanista português nestes últimos cinquenta anos.

FARlA DA COSTA E OS BAIRROS DE ALVALADE E DO AREEIRO

Os bairros de Alvalade e do Areeiro resultam da política desenvolvimentista de


Duarte Pacheco - de expansão planeada de Lisboa em terrenos expropriados, livres
de restrições fundiárias e com forte controlo público e municipal.
Simultaneamente, deveriam resolver problemas habitacionais, descentralizar servi-
ços e população para a periferia e aproveitar o espaço compreendido entre eixos viá-
rios importantes (a Avenida Alferes Malheiro, actual Avenida do Brasil, a Avenida dos
Estados Unidos da América e a Avenida do Aeroporto), criando novas estruturas de
circulação.
Para esta grande intervenção, é chamado Faria da Costa, arquitecto regressado a
Portugal após se haver diplomado em 1935 no Institut d'Urbanisme de Paris.
Era o urbanismo matéria relativamente nova em Portugal e que não parecia des-
pertar grande interesse nos arquitectos portugueses, apesar do incremento dado pela
política de Duarte Pacheco, com a obrigatória realização de planos de urbanização
para vilas e cidades, e o trabalho de Agache, de Groer, Piacentini ou Dodi. Faria da
Costa assume a autoria de boa parte dos planos nos anos trinta-cinquenta, entre os
quais algumas das mais interessantes realizações dessa época: os bairros de Alvalade e
do Areeiro, os planos da Costa de Caparica, da Trafaria e de Olhão, para só citar al-
guns (40).
Alvalade e Areeiro são projectados em momentos diferentes.
O Areeiro foi planeado em 1938, para 9000 habitantes, com 2680 fogos, em
32 hectares, sendo o projecto da praça propriamente dita confiado a Cristina da Silva.
Começou a ser construído em 1940 (primeira fase) e em 1948 (segunda fase).
Alvalade data de 1945. Inicialmente designado como Plano de Urbanização da Zo-
na a Sul da Avenida Alferes Malheiro (actual Avenida do Brasil), constituiria um grande
conjunto para 45 000 habitantes, em 12 000 alojamentos, ocupando 230 hectares.
Em 1948 o bairro de Alvalade estava já parcialmente concluído. Tanto Alvalade co-
mo o Areeiro se destinavam em parte a realojar habitantes provindos de zonas de re-
novação urbana como o Martim Moniz, demolido no início dos anos quarenta, e para
a qual Faria da Costa executa também um plano não realizado.
O Areeiro e Alvalade representam um exemplo equilibrado entre a cidade tradicio-
nal e os princípios da urbanística moderna, como a organização distributiva das fun-
ções e dos equipamentos, a hierarquização viária, a desprivatização do solo, a Iiberta-

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4-32. Faria da Casto: Plono do vila de Olhõo, 1948

285
ção do interior dos quarteirões para espaço colectivo, as zonas livres e arborizadas.
São também reconhecíveis os ensinamentos de experiências urbanísticas como as
habitacionais holandesas dos anos trinta, os estudos de Unwim no Town Planning, ou
os conceitos de «unidade de vizinhança».
Todo o bairro se organiza através de tipologias urbanas precisas: as vias, que se
hierarquizam em avenidas, ruas, impasses e caminhos de peões; as praças e largos lo-
calizados no cruzamento de vias; os quarteirões, lugar de disposição dos edifícios, são
utilizados no seu interior como zonas de jardim, estacionaménto e equipamentos; os
passeios de dimensão hierarquizada que, ao longo da Avenida de Roma, reinterpre-
tam e adaptam a imagem dos redents de Le Corbusier; contínuos arborizados e verdes
de canteiro e filas de árvores em caldeiras; edifícios repetitivos, de fachadas controla-
das em ordem e unidade arquitectónica, só enfatizados nos cruzamentos e gavetos,
marcando as intersecções com praças e espaços mais significantes.
Faria da Costa rejeita a antiga cidade, com os quarteirões de interior desaproveita-
dos. Propõe outro modelo adaptado à modernidade - que recorre à utilização da rua
tradicional e à continuidade edificada, mas (grande inovação para Lisboa) acaba com
a privatização do miolo dos quarteirões, quer pela disposição dos contínuos construí-
dos quer pela organização interna do quarteirão, destinando-o a locais de recreio,
equipamentos, áreas verdes e livres destinadas às relações de vizinhança e ao estacio-
namento. As habitações passam a dispor de uma fachada para a rua e de outra,prote-
gida do movimento, voltada para o espaço público no interior do quarteirão. Terá sido
neste aspecto (e arrisco a comparação com Barcelona de Cerdá) que as propostas do
plano foram menos seguidas, já que muitos interiores de quarteirão, não tendo sido ar-
ranjados, acabariam por ser «privatizados» pelos moradores.
Éevidente a introdução das inovações urbanísticas modernas, e só na aparência a
estrutura de Alvalade se assemelha à de outros bairros reticulados de Lisboa.
A primeira diferença reside na utilização de princípios da unidade de vizinhança
adaptados ao sistema proposto.
Os equipamentos de utilização diária localizam-se de modo a não distarem mais de
500 metros da habitação. A organização em células habitacionais com um centro de
equipamentos e uma escola primária permite que alunos e peões se movimentem em
percursos seguros, 'confortáveis, e não atravessem as grandes vias de tráfego.
Estas organizam os alinhamentos de comércio e serviço e delimitam as células com o
seu centro cívico-social. Pequena indústria, artesanato e armazéns vão complementar
a área habitacional e estabelecem a integração funcional do bairro com a cidade.
Alvalade nunca seria um bairro-dormitório, já pela mistura e complementaridade
de funções, já pela densidade habitacional e conjunto de equipamentos e serviços, já
pelas formas urbanas adoptadas.

286
4-33_ Fario rio COllo: Plano no bairro de Alvalade (zona o ,ul do Avenida Alferes Molheira) --
1945

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4-34. Faria da Costa: Plano do bairro de Alvalade - 1975. 1. Planta das tipologias habita-
cionais. 2. Planta dos espaços livres, edifícios públicos e transportes colectivos. 3. Planta do
zonamento. 4. Pormenor do planto de trabalho com topografia, cadastro e sobreposição dos
novos troçados 00 terreno existente

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4·35. Faria da Costa: Bairro de Alvalade: perfis viários-tipo aplicados no desenho do bairro

289
Os caminhos apontados por Alvalade e Areeiro à urbanística portuguesa não iriam
ter continuidade, pela incapacidade demonstrada pela Administração pública em do-
minar os processos de crescimento urbano e pelas políticas seguidas posteriormente.
A partir dos anos cinquenta, dá-se em Portugal a ruptura com a urbanística formal e
o alinhamento cultural dos arquitectos pelas teses modernas, as quais já influencia;am
os bairros como Olivais ou Cheias.
Por isso, Alvalade e o Areeiro não foram os exemplos para a geração seguinte, que
os foi procurar à Carfa de Atenas, ao Movimento Moderno, ao funcionalismo, ou às
experiências nórdicas e onglo-saxónicas.
A urbanística «moderna» surgiria já no próprio bairro, em partes que ficaram para
o fim, como nas construções da Avenida dos Estados Unidos da América, em que os
blocos se dispõem obliquamente (41). No Bairro das Estacas, desenhado em 1954 pelos
arquitectos Formosinho Sanches e Rui Athouguia para uma zona de Alvalade, serão já
seguidos princípios do Urbanismo Moderno e da Carfa de Atenas: os edifícios
constituem-se em blocos, paralelos e orientados a sul e perpendicularmente aos eixos
viários. Não existem contínuos construídos, e entre os blocos são realizados jardins e
impasses de parqueamento. Os edifícios assentam em pilotis e o piso térreo é vazado.
Nesta realização de grande qualidade e um dos melhores exemplos modernos em
Portugal, é já a morfologia urbana moderna que é adoptada, substituindo o desenho
de Faria da Costa.
Alvalade e Areeiro, na sua força e dimensão, aguentariam e encaixariam com rela-
tivo à-vontade este tipo de modificações (de resto projectadas com grande qualidade)
- e até mesmo outras determinadas pela burocracia municipal em anos posteriores.
Alvalade-Areeiro têm vida própria e aguentaram o envelhecimento!
Passados quarenta anos e perante os sucessivos desastres urbanísticos a que Lisboa
tem sido sujeita, forçoso é reconhecer que estes bairros constituem o que de melhor e
mais qualificado permanece, conjuntamente com o casco antigo, a Baixa Pombalina e
áreas do Séc. XVIII, as Avenidas, Campo de Ourique e posteriormente os Olivais.
Todos estes exemplos foram realizados sem mesquinhez e com recurso ao melhor
saber das suas épocas.
O Plano de Alvalade poderá ser de grande estímulo ao actual debate urbanístico
pelos profundos ensinamentos que contém nesse casamento equilibrado entre postula-
dos modernos e a cidade tradicional. Tenho para mim que existe neste bairro, pelo seu
traçado e pela prova de quarenta anos de vida, um teste que comptova profundas
qualidades e virtudes e uma interessante referência para o «novo urbanismo»,
Seria da maior importância iniciar o processo de reflexão e análise sobre a urbanís-
tica formal portuguesa dos anos trinta-quarenta, de que Alvalade é um bom exemplo.

290
4-36. Bairro do Areeiro: Av. de Paris - Av. Joõo XXI. Desenho urbano de Faria do Costa (1938)
e edifícios projectados por Alberto Pessoa, R. Chorõo Ramalho, José Bastos, Licínio Cruz, José
Segurado, Joaquim Fereira, Filipe Figueiredo e Guilherme Gomes

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4-37. Maqueta da conjunto residencial na Avenida das E. U. América (bairro de Alvalade-


Areeiro). Arq. João Simões, Hernâni Gandra, F. Castro. Célula 8 (Bairro das Estacas) no bairro
de Alvalade·Areeiro. Planta e pormenores dos edifícios. Arq. Formosinho Sanches e Rui Athou·
ghio

292
4.5 DA URBANÍSTICA FORMAL AO NOVO URBANISMO
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A discussão actual sobre o desenho urbano será incompleta sem a adequada aná-
lise e referências à urbanística formal de entre as duas guerras. Muito do que ultima-
mente tem sido produzido se situa na proximidade ou continuidade dessa urbanística, e
tal semelhança não é superficial. Significa uma filiação estética, conceptual e formal
idêntica. Significa também identidade de meios e respostas à complexidade dos proble-
mas do desenho da cidade.
Com efeito, a produção urbanística actual, que adiante designo por NOVO URBA-
NISMO, tem centrado a sua atenção em torno das questões da fORMA URBANA, re-
cuperando para a cidade espaços tão simples quanto tradicionais: a rua ou a praça, e
elementos morfológicos de desenho como a árvore alinhada ou a continuidade dos vo-
lumes construídos e das suas fachadas.
O que não é apenas coincidência. O «novo urbanismo» tem de comum com a
«urbanística formal» a mesma vontade de continuação com os espaços da cidade anti-
ga, reconhecendo o valor do desenho na produção da cidade, aí recolocando a arqui-
tectura como disciplina no complexo sistema de produção do espaço.
Por outro lado, as formulações teóricas e o conjunto de realizações da urbanística
da primeira metade do século XX constituem vasto material de reflexão, até porque
muitos dos problemas aí abordados são já problemas actuais.
Há também que ultrapassar a questão ideológica da identificação da arquitectura
moderna com a democracia, e da urbanística formal, com as ideologias totalitárias que
dela se serviram.
O regresso à forma urbana poderá encontrar um elo de continuidade na urbanísti-
ca formal sem recurso tão obsessivo às referências históricas dos séculos XIX, XVIII e
anteriores.
A recuperação da rua, do quarteirão, da praça e dos traçados não precisaria de ir
tão longe nas referências históricas, quando dispõe da experimentação e das realiza-
ções de entre as duas guerras para reatar o percurso interrompido. Ecom nítidas van-
tagens, na medida em que estas continham já respostas aos problemas contemporâ-
neos.
Em ambos os casos se trata de princípios da arte urbana como «arte pública», arte
da rua e do jardim, e da componente estética como elemento essencial do urbanismo.
Este campo é justamente um dos campos de debate do «novo urbanismo», e a vertente
formal do século XX é muito rica em hipóteses, experiências e realizações de desenho
urbano, o que redobra o seu interesse no momento actual.

293
Além do mais, não se podem ignorar os períodos menos conhecidos da História,
quando estes perfilam relações directas com o presente.
Dou-me conta de que o processo de conhecimento e de criatividade urbanística é de
acumulação, progredindo sobre estratos sedimentados. Não corresponde à descober-
ta espontânea de novidades. A concrel·ização das novas ideias faz-se tantas vezes por
ressaltos no passado, caminhos sinuosos e hesitações, mas raramente pela descoberta
iluminada. Muitos dos caminhos propostos ou linhas interrompidas acabam por ressur-
gir e frutificar noutros lugares e tempos mais tarde.
Por estas razões, me pareceu importante trazer aqui referências a este período, co-
mo meio de confrontação e enriquecimento do debate sobre a forma urbana.
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