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Um teatro em rastro atrás: Jorge Andrade

U m teatro em rastro atrás:


Jorge Andrade

J . Guinsburg

C
omeçarei por dizer que os três principais A lembrança que guardo dessa ocasião é, nova-
críticos deste dramaturgo, que analisaram mente, a de uma inquietação que irrompia do
as suas peças e suas implicações enquanto fundo de uma existência e se abatia, impositiva,
ele ainda vivia, foram Décio de Almeida sobre o interlocutor.
Prado, Sábato Magaldi e Anatol Rosenfeld. Sempre que me era dado estar com Jorge
Dos três, Sábato Magaldi ocupa um lugar à par- Andrade isto me impressionava. Parecia-me
te, pois não só Jorge Andrade tinha nele uma percebê-lo no seu olhar, na inflexão de sua voz
espécie de alter-ego, a quem lia primeiro os seus e nas suas palavras. Era a inquietação de alguém
textos e com quem discutia os problemas e as intensa e obsessivamente às voltas com algo que
opções de seu trabalho criativo, como foi Sábato eu não podia definir, mas que o perseguia ou
Magaldi quem mais se deteve no exame de sua que ele perseguia como numa caçada ou num
obra. De fato, ao que eu saiba, deve-se-lhe o ajuste de contas sem fim: um caçador apaixo-
maior número de recensões críticas sobre Jorge nado e inextricavelmente correndo pelas trilhas
Andrade e, após a morte do dramaturgo, pelo do “rastro atrás”. Tal fato não significava que no
menos dois estudos de conjunto a seu respeito: diálogo ele não discutisse temas de todo tipo,
um, publicado como posfácio à segunda edição tanto ligados à vida e à arte, como à política. É
de Marta, a Árvore e o Relógio, e o outro, mais verdade que sua observação nesses tópicos tam-
recentemente, como ensaio na Revista da USP. bém era algo amarga, irônica e marcada sempre
A Sábato Magaldi também se associa, no de um toque de desencanto de quem parecia
meu caso, o meu primeiro e o meu último con- olhar estas coisas de uma distância menos críti-
tato com Jorge Andrade. Pois foi na casa de nos- ca do que vivencial. E, quando o assunto da
so amigo comum que vim a ser apresentado ao conversa era o seu próprio teatro, ao mesmo
dramaturgo, por volta dos anos sessenta, quan- tempo em que mostrava extremo interesse em
do ele já era um autor bem conhecido e eu um discuti-lo – sobretudo se o seu interlocutor fos-
espectador que, tendo assistido a várias de suas se uma pessoa a quem dispensasse respeito inte-
peças, desde A Moratória, ficara interessado em lectual –, mantinha uma reserva como se tives-
seu teatro. E também foi na casa de Sábato se de pôr entre parênteses o que lhe era dito na
Magaldi que o encontrei pela última vez, algu- troca de opiniões, uma desconfiança de que ha-
mas semanas antes de seu falecimento, creio eu. via um certo campo nas suas colocações a que o

J. Guinsburg é professor emérito da Escola de Comunicações e Artes da USP

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seu parceiro de discussão jamais poderia chegar. publicar o seu teatro na então recém-fundada
Era como se ali existisse um núcleo de motiva- Editora Perspectiva. Apontada a lebre, o caça-
ções inacessíveis à abordagem de outrem, pela dor não descansou mais... O projeto, na época,
razão da palavra. Ou, como se tudo o que ele era bastante ambicioso, considerando-se o por-
gostaria de revelar e em que se empenhava com te da editora. Mas tanto ele como eu tínhamos
a força de uma necessidade em fazê-lo, não ti- um certo gosto pela aventura e começamos a
vesse, apesar de tudo, lá no âmago, uma levar à frente a idéia. Digo nós, porque é claro
decodificação possível na linguagem, que não que a definição dos textos a serem incluídos e
obstante constituía também o objeto imperati- do caráter do volume era da exclusiva compe-
vo de seu esforço de comunicação. tência do autor. Contudo, ao fixar a seleção das
No meu caso pessoal, essa curiosa dialé- peças, Jorge Andrade, que acabava de concluir
tica exprimia-se não menos pelo tratamento ce- As Confrarias e O Sumidouro, começou a entre-
rimonioso que me dispensou durante algum ver um estreito entrelaçamento dramático no
tempo. Chamava-me de professor e, por algu- universo textual assim composto e uma suces-
ma razão, talvez por meu sobrenome ou por são histórica nos diferentes episódios abordados.
confundir-me com alguma outra pessoa, pen- E isto o induziu à concepção – ou à objetivação
sava que eu fosse de origem alemã... Ora, nem de um sentimento que sempre nutrira em seu
professor eu era, naquela época, nem tivera, em íntimo, afirmou-me – de que o conjunto de sua
qualquer outra, nada a ver com a ‘germanidade’. produção dramatúrgica constituía, em essência
De todo modo, com o desenvolvimento de nos- e sem premeditação específica, um ciclo que
sa relação, os dois equívocos se desfizeram e a fora se tecendo por e em cada uma das peças e
formalidade distanciadora se dissipou. que agora se completava e encerrava, com sua
Um outro episódio relacionado com Jor- efetiva explicitação. Descobria aí o sentido mai-
ge Andrade e no qual me vi envolvido pessoal- or de seu teatro. Empolgado com a idéia, pôs-
mente, surgiu por ocasião do concurso de peças se a discuti-la intensamente com Sábato Magal-
do Serviço Nacional de Teatro, em 1966. Não di e outros críticos a cuja opinião recorria, mas
sei por que e por quem fui indicado para mem- discutiu-a também comigo numa série de en-
bro do júri, ao lado de Alfredo Mesquita, contros em minha casa. Pude observar então
Gianni Ratto, Paula Lima e outros, sob a presi- como era cuidadoso na elaboração das persona-
dência de Bárbara Heliodora. Na reta final do gens e de suas motivações ou na construção de
julgamento, dois textos se destacaram. Apesar seus enredos.
do anonimato regulamentar, o resguardo da A edição, tal como foi planejada, compre-
identidade dos autores não resistiu à leitura de endia duas partes: as peças e a fortuna crítica.
suas peças: uma, Rastro Atrás, era de Jorge An- Queria que eu escrevesse um ensaio introdu-
drade, e outra, Os Azaredos mais os Benevides, tório e eu lhe sugeri, por várias razões, o nome
de Vianinha. É fácil imaginar que, naquele pe- de Anatol H. Rosenfeld. Convidamo-lo. E o
ríodo intensamente politizado da vida brasilei- belo estudo que Anatol realizou mostra o acer-
ra, a briga foi de foice, mas, apesar da disputa to da indicação. Jorge, porém, insistiu que eu
acirrada, palmo a palmo, com empate e voto de contribuísse com um texto para o livro. Creio
Minerva, Rastro Atrás foi a peça vencedora. que isto se devia ao meu acompanhamento do
Um momento, porém, de contato mais processo de definição do ciclo. E foi em função
constante com a obra e a pessoa de Jorge An- deste pedido que escrevi então À Guisa de Post-
drade, deu-se a propósito da edição de Marta, a Scriptum.
Árvore e o Relógio. Numa conversa que tivemos, E como post-scriptum ao post-scriptum,
por volta de 1969, mais uma vez em casa de eu acrescentaria que Marta, a Árvore e o Relógio,
Sábato Magaldi, eu levantei a possibilidade de na época em que foi concebida, e tomada no

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conjunto em que acabou se constituindo, arti- nomes de O’Neill, Tennessee Williams, Arthur
cula uma reflexão sobre a sócio-história do Bra- Miller ou Brecht, para dar as coordenadas de
sil passada e recente, que traduz não só o grau Jorge Andrade. Ele os conheceu, teve afinida-
de consciência crítica de Jorge Andrade, como des com eles, como tivera com o teatro grego,
a radicalidade de sua recusa à opressão que o re- mas o que importa é que soube introjetá-los e
gime discricionário vinha impondo ao país. Po- submetê-los a seus próprios espíritos, que não
rém, mais do que a contestação, sobreleva nesse eram nada pálidos, ainda que muitas vezes
teatro uma busca ansiosa, obsessiva, de identi- fantasmagóricos, como se tem visto.
dade, do eu e do nós, que se converte, crescen- Jorge Andrade tinha o domínio da escri-
temente, sem perder seu caráter específico, na tura teatral, dos procedimentos e da maquina-
procura da identidade coletiva e nacional. ria cênica. Aliás, naquilo que lhe interessava,
Mas o envolvimento pessoal, vivencial, mostrou ser um virtuose. Basta ver as suas dis-
fortemente emocional de Jorge Andrade com posições cenográficas para o contraponto entre
sua obra não deve induzir a uma falsa pista. Tan- a realidade e a memória, magistralmente justa-
to quanto um reencontro consigo próprio, com postas para o jogo da interlocução não só ver-
as raízes de seu modo de ser e sentir – um con- bal, como visual, e os seus flashes back, que não
fessionário imagístico e dramático de alguém se limitam a operar dramatizações psicológicas,
que está todo contido em sua concha e dentro pois viabilizam também um certo metateatro e
dela correndo atrás de si próprio ou do olhar epicizações brechtianas.
crítico que sai desta concha e avalia e pesa o que Não me alongarei num exame mais deti-
a gerou e a situou, só para voltar de novo ao seu do desses elementos que estão, de um ou de
interior –, o dramaturgo está à cata, consciente outro modo, arrolados em quase todos os estu-
e objetivamente, ao lado da expressão de seus dos sobre o teatro do dramaturgo paulista. Eu
demônios íntimos, da dicção e da linguagem diria apenas que, tão demonstrativo de seu do-
artísticas e teatrais. Esta procura o inquieta e o mínio da linguagem da cena quanto de outros
incita no mesmo grau que a outra. Ela é tão recursos, é a sua relação com os gêneros cômico
detonadora de seu processo criativo quanto os e trágico. À primeira vista seria de supor, pelos
dilemas e as angústias pessoais. A sua opção foi leit-motiv de seu estro e de sua temática, que a
desde logo não o divã do psicanalista, mas o produção de Jorge Andrade estaria concentrada
palco de arte, da arte cênica. na máscara da tragédia, mesmo quando, como
Neste sentido, não é irrelevante que Jor- autor atual, mescle a ela inflexões de humor irô-
ge Andrade haja iniciado a sua carreira teatral nico ou francamente cômicas, em moldes do
na Escola de Arte Dramática, onde fez o curso “dramático” moderno. Mas, na realidade, ele se
de ator. É sensível em suas criações o senso do mostrou não menos à vontade quando utilizou
teatro em ato e a preocupação estética em todos o registro inteiramente cômico, como em Os
os níveis do organismo dramático, a começar ossos do Barão. O fulcro temático desta peça é,
pelo texto. Por isto, a cada nova peça, reem- em essência, na vertente urbana, o mesmo que
prendia a ansiosa peregrinação a seus consulto- aparece em várias outras, na vertente rural.
res (ou lares...) críticos, colhendo impressões e Mas, Jorge Andrade consegue controlá-lo a tal
reações e devolvendo versões sobre versões. ponto que é capaz de enquadrá-lo com todo o
Queria escrever a cada composição, não apenas distanciamento crítico do cômico. É claro que
uma obra, mas a obra. Para tanto, recorreu e continua ligado sentimentalmente àquilo de
procurou dominar todo o instrumental artísti- que ri, mas conhece e manipula com maestria
co validado pelo teatro e pelas experiências tea- o seu ridículo. Quer dizer, converte o mundo
trais de seu tempo. É claro que, sendo um cria- de seus demônios em objeto intencional da
dor em faixa própria, não basta invocar os gargalhada.

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O seu pecado como dramaturgo foi, se- tivamente ao público de hoje, no Brasil. O tea-
gundo certa óptica, o de ser um bom escritor, tro não é um palco de exclusões dogmáticas.
ou melhor, um grande escritor, cuja produção Vanguarda e pesquisa de linguagem não exclu-
tem validade literária além da primordial, é cer- em o texto do teatro nem o teatro de texto. Pois
to, que é a cênica. Por isto, em um teatro como nada mais literário do que Shakespeare, Calde-
o nosso, onde certos avanços ou modismos da ron, Molière ou Büchner, Tchékhov ou Piran-
linguagem cênica são feitos em detrimento de dello que, no entanto, continuam sempre em
outras expressões não menos legítimas da cena, cena, no teatro vivo. De modo que não há como
as suas peças passaram por um longo período questionar a existência de um espaço certo no
de rejeição a título de literatura. Este fato foi tablado para uma obra e um autor do naipe de
sua grande frustração. A falta de um teatro de Jorge Andrade. E que assim o é, provou-o Antu-
repertório que encene constantemente o nosso nes Filho – por ter apresentado a potencialidade
acervo teatral, como ocorre em outros países, é, de Vereda da Salvação em duas leituras diferen-
sem dúvida, um dos responsáveis por tal situa- tes. E não há dúvida de que a mais recente mos-
ção. Mas outra causa e, talvez mais ainda grave, trou a força poética e dramática, à luz da
é a concepção reinante, e às vezes redutora, so- teatralidade de hoje, de Jorge Andrade.
bre que estilo e repertório de imagens falam efe-

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