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O OLHO DO MESTREpor Joseph Losey

Por quase vinte e cinco anos, Bertolt Brecht inspirou minha vida e minha obra, mas só muito
recentemente voltei a ele, à sua obra, ao trabalho realizado em comum, e à influência que ele
exerceu sobre mim. Não que esse trabalho e essa influência não tenham me marcado:
simplesmente eles sempre foram, de alguma forma, o próprio ar que eu respiro, muito
concreto, em devir perpétuo.

Ao longo desses últimos anos, foram escritos mais do que poucas bobagens e absurdos sobre
o homem Brecht e suas teorias teatrais. No início de sua carreira, certamente ele próprio deu
uma contribuição não-negligenciável às especulações infindáveis de seus atuais bajuladores,
todo esse grupo de peixes pequenos, trabalhadores da última hora que escondem o jogo e se
intrometem em todos os lugares, esses descobridores de talentos, esses fiéis, esses familiares,
esses coveiros, todos esses seguidores que seguem apenas para estarem na corrida e não para
atingirem algum objetivo.

Quem são os verdadeiros discípulos? Como reconhecê-los? Classifico-os em duas categorias:


de um lado os homens de ação, e principalmente aqueles que possuem o que eu chamo de "o
olho"; do outro, aqueles que sabem, nas profundezas de si mesmos, no coração, nas tripas,
nos ossos, que o contato entre os homens, por não importa qual antena, se dá no nível mais
elevado. Quando Brecht é bem interpretado, os espectadores, na sua quase totalidade, o
sabem. Os herdeiros e os sucessores de Brecht – esses outros "olhos" – sabem. Alguns
trabalharam ao lado de Brecht, ou alhures em outras partes do mundo, na mesma época,
solitários como ele e separados de tudo. Alguns ainda, talvez menos dotados, menos
perseverantes, menos afortunados, sabem. Brecht, além de seu gênio, teve sorte com ele.

Escrever sobre Brecht significa para mim escolher dentre um monte de recordações. Isso me
toca ainda mais porque as circunstâncias nos reaproximaram várias vezes, às vezes um pouco
ao acaso, às vezes de forma muito contínua, até aquele derradeiro ano entre 1946-1947,
quando trabalhamos juntos quase ininterruptamente. Não tenho nenhuma intenção de
acrescentar meus comentários delirantes aos elogios escritos e falados já existentes, não
pretendo me unir aos fiéis do culto (dito isso, não tenho nada contra estudos sérios como o de
John Willett, malgrado as lacunas, imprecisões e erros que creio ter encontrado aqui e ali).

O HOMEM

Existe em Galileo Galilei uma das mais belas cenas já concebidas e escritas para o teatro: a
posse do cardeal-cientista Barberini, elevado ao papado. Essa cena me permitirá tropeçar
admiravelmente em quase tudo que tenho em mente sobre Brecht. É um exemplo perfeito da
maneira como em Brecht teatro e cinema se reúnem, e a ilustração de seu prodigioso sentido
visual. Lembremos, para aqueles que desconhecem a peça, que nela vemos Barberini revestir
progressivamente e com grande pompa os ornamentos de sua nova função, enquanto o
cardeal-inquisidor o auxilia nessa cerimônia e lentamente, traiçoeiramente arranca-lhe a
autorização para torturar Galileu. Barberini, o homem e o cientista, desaparece à medida em
que ele veste o manto papal, seus "nãos" tornam-se mais e mais fracos e finalmente ele cede a
todas as demandas da Inquisição. A cena é quase unicamente visual, poderíamos
compreendê-la praticamente sem a ajuda do menor diálogo.

Brecht chegou. Suas idéias estavam no ar ao redor do mundo. Nos EUA um pouco mais
tarde, na URSS um pouco antes, cada país a seu tempo: mas em todo lugar as mesmas ideias.
Ele sabia muito bem ao escrever Galileo que "jamais houve um livro que um único escritor
seria capaz de escrever". Nem uma peça de teatro. Deus sabe, apesar disso, que ele não
ignorava – ver novamente o Galileu – o papel crucial que um homem de gênio pode
desempenhar na evolução da civilização em uma determinada época e lugar. Mas ele estava
absolutamente convencido da sua própria missão, do seu destino, daquilo que, creio eu, ele
teria chamado o seu "job". Nenhum resquício de arrogância nele, simplesmente a certeza de
quem acredita ter encontrado o seu caminho, a confiança em seu "olho". O olho individual.
Nós jamais tivemos que discutir isso entre nós. Nós sabíamos e víamos como um só homem.
Durante todo o tempo em que trabalhei com ele, sequer uma única vez ele mencionou a
palavra "teoria".

Um dia, no entanto, enquanto eu me preparava nervosamente para a primeira leitura


de Galileu com os atores, me pus a ler alguns dos escritos teóricos de Brecht e algumas
dissertações laboriosas e acadêmicas de alguns brechtianos da época (1946-1947), a fim de
doutrinar o meu elenco. Bem no meio de uma breve introdução cuidadosamente preparada,
logo me dei conta da inutilidade e da pretensão de seus esforços.

Brecht...

Sua máscara mortuária me observa sarcasticamente em meu escritório. Ele é o


menos morto dentre os mortos que já conheci. A máscara é exatamente à imagem
do homem que ele foi em vida:

Ele era o homem mais penetrado pelo espírito do teatro que eu já conheci.

Ele era o mais profissional dos "profissionais".

Ele via tudo – ele via em você – ainda que não tivéssemos jamais tido uma
conversa "pessoal".

Ele era intransigente, mas flexível e aberto.

Ele tinha o fervor do puritano sem nada do gosto pela autopunição e do


sentimento de culpa. Como ele evitara esse duplo perigo, nunca vou saber.
Ele era um indivíduo em meio a homens organizados e amantes da organização.
Ele admitia a necessidade de organização, mas nem por um instante abdicou de
sua responsabilidade e visão individuais.

O humor de Brecht era extraordinário. Ele sempre dava piscadelas,


frequentemente com malícia. Ele dava risadinhas como uma garota adolescente,
mas a sua risada, enorme, seca, quase obscena, jorrando por trás de um
repugnante charuto mastigado, contaminava tudo. Ele sempre tinha o seu charuto
à mão, às vezes para não morrer de rir, às vezes para melhor martelar as suas
tiradas mordazes nos dias de irritação.

Por outro lado, Brecht trabalhando era um homem calmo. Ele sabia escutar. Ou
ficar sentado tranquilamente, ainda que às vezes a sua impaciência em esclarecer,
corrigir ou complementar o levasse a movimentos desordenados, sua voz
explodindo de repente ou cessando bruscamente.

Um sentido de disciplina como nenhum outro. Mais uma vez essa combinação de
uma energia ilimitada e a arte do relaxamento. Um uso rígido do tempo. Horários
constantemente interrompidos ou prolongados não importa quando, se necessário.
Em seguida, uma soneca. Esticado de costas, seu inseparável boné cobrindo
os olhos.

Objetivo perante não importa qual espetáculo, mas nunca insensível. Homem
apaixonado por excelência: capaz de uma raiva e de uma fúria repentinas,
profundamente engajado com suas opiniões, intolerante com aqueles que eram
incapazes de ver, sentir ou apreciar. Mais preocupado talvez com o grupo do que
com o indivíduo. Ao longo de sua vida, ele devorou os seres: cada pessoa, cada
coisa servia à sua arte.

Sua aparência foi muito frequentemente descrita, suas fotos são conhecidas e
assemelham-se impressionantemente a ele. Homem de baixa estatura, nervoso,
construído como um dançarino, os olhos tão móveis quanto as mãos, sempre
velozes. Seu macacão perfeitamente ajustado, de brim, simples, imitando o
uniforme do operário, mas ajustado de maneira muito chique (sempre o olho).

OLHO E ESTILO

Este artigo começa a tomar forma por conta própria. Meu desejo de selecionar e organizar,
temo, já foi esquecido há tempos. Depositar no papel apenas uma parte da minha experiência
pessoal e da minha tomada de consciência acerca de Brecht exigiria meses de trabalho e não
seria mais revelador do que essas poucas lembranças colhidas ao acaso. Na verdade, eu
sempre considerei Brecht e minha colaboração com ele como certas. Nunca tentei analisá-lo,
nunca busquei sua aprovação, não mais do que ele a me concedeu. Ele aceitava. A vida de
Brecht é repleta de experiências estranhas, assim absorvidas e utilizadas: alguns não teriam
sido nada sem ele, outros seguiram seus caminhos por conta própria. Nenhum, creio eu,
sofreu; alguns adquiriram uma nova dimensão, a "trupe".

John Hubley, o artista que desenhou os agora mundialmente famosos croquis


de Galileu, contribuiu tanto quanto qualquer outro colaborador de Brecht para
fixar exatamente a imagem que o autor tinha de seu personagem. E porém, nunca
vi seu nome ser mencionado. Sem ele, nenhuma das minhas duas produções da
peça na América, não mais que a última, no Berliner Ensemble, teriam sido tudo
o que de fato foram. Devo ainda mencionar George Tabori, que colaborou com
Laughton e comigo na adaptação da versão nova-iorquina, encenada depois que
Brecht deixou a América, com uma cena final mais desenvolvida a partir de notas
deixadas por Brecht (a peça foi originalmente criada em Hollywood, em
colaboração com o autor). E também Helen Weigel, anfitriã maravilhosa e
colaboradora dos longos anos de exílio; o compositor Hanns Eisler, amigo e
companheiro, escravo e colega. E me esqueço de alguns.

Nenhum dentre nós, parece-me, jamais sentiu que estava fazendo história trabalhando com
Brecht. Não apenas porque ele tinha todo o direito de reivindicá-la para si (e o sabia), mas
porque, além disso, literalmente, ele era a sua época. Nada de sua época escapava ao seu
"olho" individual, fosse uma questão de observar a elegância da linha de um arco, a justeza
de uma cor, a aresta viva de uma nota psicológica ou social. É daí que nasceu a nossa
devoção inconsciente e é isso que ainda hoje explica certos entusiasmos. Não se pode imitar
Brecht, a menos que se seja um enorme criador.

As peças de Brecht nos ensinam o teatro vivo, oferecem ao ator possibilidades inesgotáveis,
são a suma da teatralidade. Elas observam a natureza, mas não a reproduzem. Brecht despoja
o real de todos os seus ouropéis e em seguida o recria. Para atingir esse objetivo, somente a
perfeição é aceitável:

Interpretação: Perfeição da observação e da execução. Um dia ele declarou


acerca de um ator incapaz de simplesmente tirar uma moeda de seu porta-moedas
e dá-la resmungando a um mendigo (Galileu) que "ele deveria ter observado mil
jeitos de se dar dinheiro de todas as maneiras e em todas as circunstâncias, e
armazenado-as em sua memória”.

Mas isso não significava naturalismo. A arte é maior do que a vida. Não há
espaço para a covardia inglesa, o receio de forçar o jogo de cena, de exagerar, de
"mostrar seus sentimentos". Se matam o seu filho, você deve senti-lo diretamente,
na boca do estômago, como Weigel em Mãe Coragem. Mas, na verdade,
o ator não sente neste momento: ele pensa.

Quando um ator que tinha o papel pouco importante de um monge no Vaticano,


na cena em que os monges zombam de Galileo, forçado a esperar numa antessala,
e de suas teorias sobre a curvatura da terra, quando esse ator então perguntou
"Quais são as motivações para o meu comportamento?" enquanto imitava uma
dança para mostrar que não dá para ficar de pé sobre uma bola giratória, Brecht,
sentado ao meu lado, replicou: "Então o equilibrista na corda-bamba precisa de
um motivo para não cair?". E estourou uma sonora gargalhada.

Sem método. Não importa qual método. Estilo e conteúdo.

O símbolo de realidade escolhido deve ser perfeito. Não esquecerei jamais de


uma cena grotesca, um dia por volta da meia-noite no escritório de Mike Todd,
que produziria Galileu. Tínhamos nos encontrado na grande sala de reuniões da
Universal em Hollywood: Todd, Brecht, Howard Bay (que era o nosso
decorador), Jack Moss, sócio de Todd, e eu. Todd explicou que ele queria montar
a produção com móveis renascentistas que seriam emprestados pelas oficinas de
Hollywood... Brecht contentava-se em escutar, dando risinhos nervosos. Mas a
partir desse instante, já não havia a menor chance de Todd fazer a peça. A única
cadeira, que acabou substituindo todo o mobiliário renascentista em nossa
produção, era simplesmente aquilo que chamamos coloquialmente de uma
"cadeira de diretor", de tecido e madeira, perfeitamente industrializada. Por que
essa substituição? Porque, por sua estrutura, nossa cadeira lembrava os assentos
da época, porque ela era bela, porque o grão do tecido e da madeira tinham
exatamente a tonalidade desejada, enfim, porque convinha.

Lembro-me de uma outra ocasião, um dia às quatro da manhã, depois de um


ensaio com figurinos de Galileu, quando Brecht literalmente explodiu de raiva ao
ver uma camada de verniz que tínhamos passado sobre a estrutura em madeira do
cenário, nua, bela, funcional: “Vocês destruíram a textura da madeira!". O que
estava correto; mas nós estávamos cansados demais para prestar atenção nisso;
ele não. Raspamos a camada de verniz e a madeira recuperou a sua textura antes
da estreia, que ocorreu à noite.

Esses exemplos poderiam ser multiplicados infinitamente. Apenas uma coisa conta: a
perfeição, o estilo, o olho, a linha, a cor. Acho que me lembrarei para sempre – e talvez essa
seja a principal razão pela qual Brecht e eu nos demos tão bem – me lembrarei não apenas da
justeza da espiral de uma escada em caracol, mas também da linha do seu conteúdo e das
intenções do autor. Nós "víamos" juntos. Mas Brecht me ensinou uma atenção escrupulosa
aos detalhes em todas as áreas: imagens, palavras, gestos, movimentos, sons, música.

MINHA CARREIRA EM POUCAS PALAVRAS

Por volta de 1935 eu estava vagabundeando, desencantado, tentando aprender meu ofício. Eu
já havia dirigido na Broadway. Eu chegara ao teatro em 1929, na hora do crash da bolsa,
recém-saído da universidade. Na universidade, eu tateara o expressionismo com Bride for the
Unicorn de Denis Johnston e Great God Brown de Eugene O'Neill. Embarquei para a
Europa. Destino: Leningrado e Moscou, via Inglaterra e Escandinávia. Naquele ano, Moscou
era para o teatro e para o cinema o que Florença fora nos anos 20 para Gordon Craig. O
próprio Craig encontrava-se em Moscou, com recursos ilimitados à sua disposição para uma
produção de Macbeth no Mali Theatre (apenas Craig chegou a vê-la). Havia também Brecht,
Eisler, Lotte Lenya, estudantes da Vassar, a grande universidade feminina americana, Norris
Houghton, Jay Leyda, Paul Strand, vários membros do Group Theatre incluindo Clurman e,
acho eu, até mesmo Strasberg. Nosso protetor era o embaixador americano William Bullitt.
Eu conheci Brecht e Eisler, eu ouvi Lenya cantar. Me pus a traduzir o Teatro Político de
Piscator. Mas eu desconhecia tudo sobre eles, para dizer a verdade; quem eles eram, de onde
vinham. Eu tinha ouvido falar dos estragos cometidos por Hitler, mas não da Berlim que
os precedera.

O teatro em Moscou durante esse período era notável. Okhlopkov com seu teatro circular,
retangular, hexagonal; Meyerhold brilhante e já um pouco decadente, etc. Eu retornei a Nova
York para criar o "The Living Newspaper"[1]. Era teatro brechtiano, mas eu não sabia.
Brecht, durante uma primeira estadia na América, viu e adorou. E, apesar da sua austeridade
quanto à cor, sua preferência pela luz branca e pelas cores neutras, ele apreciou
particularmente a passagem em que vesti meus proletários de fúcsia e rosa. Me revoltei
contra a ideia de que a massa proletária é visualmente monótona, de que o trabalhador só
gosta de cinza. Lembro-me de Brecht, as pernas cruzadas no piso da sala, seu boné, seu
charuto e sua roupa austera se destacando dos cetins e Noguchis que decoravam a casa da
minha mulher, que era então Elizabeth Hawes, explicando a ela as suas teorias, articulando
com o seu "olho" que era também o nosso olho. Mas tudo isso não significa grande coisa.

Esse Brecht desapareceu da minha vida até nos reencontrarmos muito depois na capital do
cinema, em Hollywood. Íamos montar Galileu juntos. Eu o encontrei na sua pequena casa
pré-fabricada em Santa Mônica, marcada pela sua presença e pela de Helen Weigel, com o
piso de madeira bem arrumado, as gravuras chinesas, o piano vertical com suas ranhuras, a
caixa cheia de manuscritos, a bela porcelana inglesa que "Helle" (Helen Weigel) tinha
desenterrado no mercado de antiguidades. Nada fora desperdiçado durante o exílio. O
trabalho continuava. Ele aceitava as consequências de suas convicções e estava sempre
pronto, na primeira oportunidade, para se lançar em uma produção ou montar seu teatro. Eu
nunca ouvi ninguém se queixar.
Quando Brecht foi convocado a Washington como um dos “dez” para testemunhar, eu o
acompanhei e passamos a noite inteira caminhando pelas ruas desertas desta cidade-
mausoléu, discutindo a tarefa terrível que o aguardava no dia seguinte, quando ele deveria
comparecer perante o tribunal de "Bauern", presidido pelo deputado Parnell J. Thomas. Mais
tarde, Thomas foi condenado por desvio de dinheiro e foi se juntar às suas vítimas na prisão.
A calma, o humor, a fineza e o brio com os quais Brecht se portou nesta ocasião pertencem
agora à história. Eu o acompanhei até o seu avião, que o levou à Suíça e eventualmente à
Alemanha. Nossa correspondência tornou-se esparsa. Eu nunca mais o vi.

Brecht enviou-me um presente, embrulhado cuidadosamente em celofane, acompanhado por


uma mensagem verbal de Weigel: "Diz ao Joe que ele deveria relaxar!" (Tell Joe he should
relax!). O presente consistia em um cachimbo de ópio, magnificamente esculpido. É o
contato mais pessoal e mais íntimo que tive com ele. Logo depois, Laughton e eu
trabalhamos na produção nova-iorquina de Galileu, depois Laughton desapareceu com uma
discrição que ele cuidou de mencionar em sua autobiografia. Brecht não teria ficado surpreso
com o jeito monstruoso de Laughton em distorcer os fatos e de não responder a Weigel nem a
mim quando noticiaram a morte de Brecht. Brecht era um grande romântico; quando se
tratava de descobrir talentos, ele os procurava com paixão. Mas ele nunca cometeu o erro de
identificar talento com caráter. É maravilhoso quando essas duas qualidades são encontradas
no mesmo homem, mas isso raramente acontece. Brecht era antes de tudo um pragmático:
“Isso funciona? O que posso extrair disso?"

Brecht era impiedoso, mas não tinha nada de sádico. Ele transbordava de admiração e paixão
pelo conteúdo, pela forma, pela estrutura da vida dinâmica, dialética, que moldara seu olho
individual. A inscrição citada como epígrafe de Galileu, que é emprestada dos discorsi[2] de
Galileu, se aplicaria bem ao próprio Brecht:

"Considero a Terra nobilíssima e admirável pelas tantas e tão variadas


alterações, mutações e criações que nela ocorrem incessantemente."

"DIE WAHRHEIT IS KONKRET" ["A verdade é concreta"]

Esse aforismo Hegeliano estava pregado em letras maiúsculas numa parede nua perto da
mesa de desenho que constituía o escritório de Brecht em seu apartamento nova-iorquino,
57th Street, onde eu morei por seis meses em 1946. Eu o interpretei como significando para
Brecht não que a verdade é absoluta, mas que ela é precisa, que existe uma boa maneira de
acessá-la: justeza da observação, economia dos meios de comunicação.

Essa economia e essa precisão são tomadas por alguns como frieza e inconsistência. Dizem
que Brecht no teatro é chato, frio, fastidioso, pedante. Sim, ele pode ser chato, se os atores e o
diretor são chatos. Fastidioso, se não aproveitam as oportunidades que Brecht os oferece para
enriquecerem e florescerem no palco. Inconsistente, se não se busca a exatidão desejada na
linha, no gesto, no ritmo, na composição, na textura. Pedante, se detém-se apenas no aspecto
didático de Brecht. Brecht transmitia a sua mensagem em termos de poesia, pela beleza da
forma, da palavra, da ideia. Ele era um autêntico materialista dialético, um marxista. Ele
compreendia o processo contínuo de mudança e interação do vivo. Ele sabia que viver
é "tornar-se".

O teatro e o "olho" brechtianos só parecem frios aos que são incapazes de ver, aos que
confundem despojamento com ausência de gosto. O seu apartamento em Nova Iorque era
recoberto de gesso branco, sem decoração, as estantes de sua biblioteca feitas à mão com
tijolos apoiados uns sobre os outros e algumas tábuas. O divã e as cortinas eram de um tecido
grosso de Hesse. A iluminação vinha do teto, a luz era branca, crua. A decoração era
composta de um simples pergaminho chinês, admirável. A ordenação e a escolha dos objetos
era irrepreensível, o olho não cessava de vagar pelo apartamento. Ele não se perdia, não se
irritava, podia se concentrar em um ponto preciso. O aspecto visual do teatro de Brecht é
comparável ao melhor da contribuição de Frank Lloyd Wright e Mies Van der Rohe na
arquitetura. Brecht tinha a arte de justapor contrastes, de demonstrar pelo raciocínio dialético,
pela verdade irrefutável da sua observação. O seu próprio estilo, enquanto homem e enquanto
artista, exige um estilo equivalente da parte de seu diretor e dos atores. Brecht, o homem
mesmo, tanto quanto o artista, era a essência do estilo, isto é, do que é correto. Tudo isso
pode parecer um pouco místico; não é.

Como toda arte verdadeiramente individual, a de Brecht é intransmissível aos seus discípulos,
mas apesar disso a sua influência permanece ininterrupta e considerável, porque ela é parte
integrante de sua época. Mas a imagem e a palavra são únicas, insidiosas, não podemos
escapar delas, nunca cessam de agir. Brecht frequentemente foi denegrido por uma citação
em que afirma que não basta saber o que se quer dizer, é preciso também ter "astúcia" para
dizê-lo. Substitua astúcia por: talento, espírito, arte, "olho". Que importa que o traje do
príncipe em Galileu tenha sido copiado do retrato de um alfaiate da época ("The Tailor" de
Moroni, que encontra-se na National Gallery de Londres)? Ele era justo. Que importa que
vários personagens estivessem vestidos de acordo com Brueghel, embora a ação se passasse
na Florença dos Médici? Não importa nada, porque o resultado era justo.

BRECHT E O CINEMA

Quais são as relações entre eles? Brecht era um apaixonado pelo cinema, particularmente
durante sua estadia na América. Ele, Weigel e Eisler frequentemente o visitavam várias vezes
ao dia. Suas próprias experiências não foram muito felizes. Os Carrascos Também
Morrem foi reescrito por John Wexley, que não poderia estar mais distante da sensibilidade
de Brecht, do que ele desejava e dos valores que representava. O Puntila de Cavalcanti foi
uma catástrofe. Os filmes inspirados em Brecht que tiveram o maior sucesso foram as duas
versões, francesa e alemã, de A Ópera dos Três Vinténs (Dreigroschenoper). Mas eu sei que
Brecht não gostou nem de uma nem da outra. Não sei bem o porquê, já que nunca discuti isso
com ele. Eu suspeito que ele as achava melosas, românticas, confusas em seu conteúdo, como
de fato eram.

O controle que Brecht demanda e exige é tão mais difícil de se obter no cinema – porque o
instrumento é mais difícil de manejar, porque o sistema econômico é mais rígido – que um
equivalente estilístico exato ainda não foi encontrado. Ainda não houve uma tentativa; eu
acho que pode sim ser feito. Brecht nunca tentou. Talvez ele tivesse medo de o fazer. Nesse
caso, ele tinha razão em ter medo. A solução não será fácil de encontrar, se algum dia a
encontrarmos, e espero que um dia encontremos. Talvez com Galileu. Mas não pela maneira
realista (naturalista), com exteriores "reais" em Florença e Roma; a realidade deverá ser
cuidadosamente reconstruída e selecionada. A aproximação mais honrosa que conheço do
estilo visual brechtiano até hoje seria o último filme de Ingmar Bergman, A Fonte da
Donzela. O estilo visual de Bergman, sua maneira de selecionar, sua noção da época e dos
momentos em que a história parece em suspensão, esses elementos são brechtianos. A forma
é brechtiana, sem o conteúdo.

Quais são as particularidades do teatro brechtiano e do homem, tal como o conheci, que
poderiam ter uma relação direta com o cinema e que influenciaram diretamente a minha
atividade cinematográfica?

O despojamento da realidade e a sua reconstrução precisa através de uma seleção


de símbolos-realidade.

A importância da precisão do gesto, da textura e da linha nos objetos.

A economia do movimento, de atores e da câmera; não mexer nada sem um


objetivo. A diferença entre calma e imobilidade.

O controle do olho pelo uso exato das objetivas e dos movimentos de câmera.

A fluidez da composição.

A justaposição de contrastes e a contradição, graças à montagem e ao texto; são o


jeito mais simples de se obter o tão famoso "efeito de distanciamento".

A importância da palavra, do som, da música exata.

A exaltação da realidade para enobrecê-la.

A extensão da visão do olho individual.

***
Como Galileu, Brecht amou a reflexão mais do que qualquer homem que conheci.
Ao contrário de Galileu, ele era moderado na comida e na bebida mas, como
Galileu, imoderado no trabalho e no amor. Me contaram que os editores da
revista de teatro inglesa Encore perdem leitores toda vez que publicam um artigo
sobre Brecht; talvez publiquem textos de maus autores. Não devemos deixar que
Brecht seja montado e encenado por pessoas que não o compreendem, e nem
exigir que estas escrevam sobre ele. No caso destas linhas arriscarem aumentar o
pântano de merda que cerca Brecht hoje, eu gostaria de concluir dando uma lista
das coisas que ele não era:

Ele não era um teórico; ele pertencia ao teatro vivo, sempre em mudança.

Nem um político, ainda que fosse consciente do papel central da política na vida
organizada contemporânea.

Não frio, mas austero, mas de forma alguma do tipo "esmagado pela dor".

Germânico ele era, certamente, mas nunca desprovido de humor.

Egoísta também, mas em plena consciência.

De forma alguma dogmático, ainda que fosse teimoso como uma mula. Sólido
como uma pedra, defendendo em todas as circunstâncias a originalidade, a justeza
e a verdade da sua visão. E o que coloco acima de tudo, e pelo que o estimo e
honro no teatro e no cinema: ele não era um desses que ficam "em cima do
muro", incapazes de decidir quando devem afirmar a visão individual pela qual
todo verdadeiro artista triunfa ou quebra a cara.

Ele não era separado da vida, mas participava dela a todo instante. Sua vida e sua
arte eram inseparáveis, mas em certo sentido a arte vinha antes da vida: isto é, ela
assumia a primazia quando se tratava de seres humanos. Quanto à ética que
decorre disso, bem, a vida se desenvolvia e crescia na sua arte, como em qualquer
artista para quem a arte possui uma função purificadora. Às vezes, pessoas são
sacrificadas. Se não Brecht, então um terceiro, como ele mesmo diria. E no
entanto, que perda sofreu o mundo quando seu coração parou de bater!

Ele estava apenas começando, e quando será substituído?!

Ele estava do lado da vida e da beleza, do eterno milagre do crescimento e


da mudança.
Ele era um artista profundamente moral.

A luz da ciência está com você.Cuide bem dela e um bom uso lhe dê.
Cuidado, não deixe a chama cairOu a todos nós ela irá consumir.[3]

(Galileu, e a cortina se fecha)

– Joseph LOSEY.

(Traduzido para o Francês por Louis Marcorelles)

***

[NOTAS]

[1] "The Living Newspaper" foi criado na prática por mim, seu diretor, Arthur Arent, seu
autor principal, e Morris Watson, um jornalista. Era um teatro popular, a preços populares,
subsidiado pelo governo federal e que nos dava uma extraordinária liberdade de conteúdo e
experimentação: fazíamos uso de circo, music-hall, balé, projeções, música, mas
conseguíamos de alguma forma fundi-los em um todo unificado a cada vez por um tema
diferente (por exemplo, o programa agrícola lançado por Roosevelt sob o título "Triple-A
Plowed Under", ordens judiciais historicamente usadas contra o sindicalismo em "Injunction
Granted"). Infelizmente, o Federal Theatre e seu subsídio cessaram antes que pudéssemos ter
realmente criado um estilo. Mas os procedimentos e o caráter altamente cinematográfico do
"Living Newspaper" tiveram uma influência incalculável no teatro americano.

Mais tarde, alguns de nós – eu, Nicholas Ray, Kazan e outros cujos nomes são bem
conhecidos no cinema – tentaram continuar o experimento em uma empresa de teatro privada
que batizei de "The Social Circus". Ainda tenho os projetos deste teatro; infelizmente, nunca
passamos do estágio de preparação.

[2] [N. do T.] Na verdade, é do Dialogo sopra i due massimi sisteme. Tradução nossa, do
Italiano: "io per me reputo la Terra nobilissima ed ammirabile per le tante e sí diverse
alterazioni, mutazioni, generazioni, etc., che in lei incessabilmente si fanno".

[3] [N. do T.] Tradução nossa a partir da versão em Inglês de Charles Laughton: "May you
now guard science' light. / Kindle it and use it right, / Lest it be a flame to fall / Downward to
consume us all."

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