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a ÍilosoÍia da
Gomposição
pRerÁclo [ed]o süssekind
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2.ÍeimDÍGssão Ir-ernrsf
Copy'right da tradução O zou Léa Viveiros de Castro

Estelivro septe as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de ry9o,


adotado no Brasil em zoog.

Coordenação Editorial
Isadora Travassos

Produçao Editorial
Cristina Parga
Eduardo Süssekind
Larissa Salomé
Rodrigo Fontoura
Sofia Soter
r[máÍ10
Sofia Vaz

Revisão
Amanda Bastos

U PREFACIO
A lição aristotélica de Poe lPedro Süssekindl
Poe, Edgar Allan, r8o9-r849
A filosofia da composição / Edgar Âllan Poe; prefácio Pedro Süssekind; tradução
t / A íilosofia da composição
Léa Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Tletras, zou. zed.
l\ 'lha raven
Conteúdo parcial: The raven. O corvo / tradução de Fernando Pessoa.
O corvo / traduçâo de Machado de Assis ,l t ( ) corvo [tradução de Fernando pessoa)
rssN 978-85-7 577 -846-3

r. Poe, Edgar Allan, r8o9-r849. O corvó. z. Poe, Edgar Allan, r8o9-r849. Estética. 3.
t r ( ) corvo [tradução de Machado de Assis]
Poe, Edgar Allan, r8o9-r849. Crítica e interpretaÉo. t. Pessoa, Fernando, 1888-1935. tL
Assis, Machado de, r839-r9o8. ur. Süssekind, Pe dro, 974-. w. Castro, Lea Viveiros de.
Ílt lltliçóesconsultadas
v Título. VI. Titulo: O corvo. vrr. Série.

cop:8u
cou:8zr.rrr-r

Viveiros de Castro Editora Ltda.


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Tel. (zr) 2540-0076
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aÍilosoÍia da
Gomposição
lr saol
(lneRrns Dlcxrxs, NUMA NorA QUE está aqui na minha frente'
rrludindo a uma análise que frz uma vez sobre os mecanismos
rle "Barnaby Rudgel' diz:
"Caleb
Por falar nisso, você sabia que Godwin escreveu o seu
Williams" de trás para frente? Primeiro ele envolveu o seu
herói numa teia de dificuldades, formando o segundo volume'
e então, para o primeiro, imaginou uma maneira de dar conta
do que tinha feito.'

Eu não consigo achar que Godwin tenha procedido exa-


tamente assim - e, na realidade, o que ele próprio diz não com-
[rina inteiramente com a ideia do Sr. Dickens - mas o autor de
"(laleb Williams" era um artista bom demais para náo perceber
ir vantagem de um processo até certo ponto similar' É bastante
ribvio que todo enredo, que mereça este nome, deve ser ela-
borado até o fim antes que o autor escreYa uma só linha' Só
tendo em vista, constantemente, o final da história é que pode-
rrros dar a um enredo seu indispensável ar de consequência'
ou

Barnaby Rudge, romance histórico de Charles Dickens publicado em


mesma
rs+r, foi tema de uma resenha de Poe para a Graham's Magazine'
revista literária que publicou 'A filosofia da composição" em 1846' Na
r-rota citada,Dickens faz refêrência ao romance As aventuras de Caleb
Williamsou Ás coisas como elas sao (ry94), de William Godwin'

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causa, fazendo com que os incidentes, e especialmente o tom, dos escritores - poetas especialmente - prefere dar a entender
apontem, o tempo todo, para o desenvolvimento da intenção. que compõe numa espécie de furor positivo - um êxtase intui-
Existe um erro radical, na minha opinião, na forma usual tivo - e detestaria deixar o público dar uma olhada atrás da
de construir uma história. Ou a história oferece uma tese ou cena, ver a complicada e vacilante crveza do pensamento - os
esta é sugerida por um incidente acontecido no dia ou, na objetivos verdadeiros alcançados apenas no ultimo instante; os
melhor das hipóteses, o autor se põe a criar uma combinação inúmeros vislumbres de ideia que não chegaram à maturidade
de eventos impressionantes para formar simplesmente a base de uma visáo completa; as fantasias inteiramente amadureci-
do seu plano narrativo, em geral para preencher com descri- das que são abandonadas, com tristeza, por serem impossíveis

ções, diiílogos ou comentários qualquer brecha nos fatos ou de tratar; as seleçóes e rejeições cautelosas; as rasuras e alte-
na ação que possa surgir de uma página para outra. raçóes trabalhosas - em suma, as rodas e engrenagens, a aPa-
Eu prefiro começar com a consideração de uma emoção. relhagem para mudar de cena, as escadas e alçapões, as Penas
Mantendo sempre em vista a originalidade - pois mente para de galo, a tinta vermelha e os tapa-olhos que, em noventa e
si mesmo quem se aventura a dispensar uma fonte de interesse nove por cento dos casos, constituem os objetos de cena da
tão óbvia e fácil de conseguir -, eu digo para mim mesmo, teatralidade literária.
em primeiro lugar: "Das inúmeras emoções, ou impressões, a Estou ciente, por outro lado, de que náo é nada comum
que o coração, o intelecto, ou (mais frequentemente) a alma é que um autor tenha condições de rcfazer o caminho percor-
suscetível, qual eu escolho neste momento?" Tendo escolhido rido para aüngir sua finalização. Em geral, sugestões, que
uma emoção nova, em primeiro lugar, e intensa, em segundo, surgem de forma desordenada, são seguidas e esquecidas da
eu penso se ela pode ser melhor trabalhada por incidente ou mesma forma.
tom - se por incidentes comuns e tom peculiar, ou o contrário, De minha parte, não tenho simpatia pela repugnân-
ou pela peculiaridade tanto de incidentes quanto de tom - pro- cia aludida nem, em tempo algum, a menor dificuldade
curando em seguida minha volta (ou melhoç dentro de mim)
à em recordar os passos progressivos de qualquer uma de
aquelas combinações de eventos, ou de tom, que melhor me minhas composições, e, já que o interesse de uma análise ou
ajudem na construção da emoçáo. reconstrução, do tipo que considerei desejável, é inteiramente
Muitas vezes eu imaginei como seria interessante um independente de qualquer interesse real ou imaginário pela
artigo de revista escrito por um autor que quisesse - quer dizer, coisa analisada, não será considerada uma quebra de decoro
que pudesse - detalhar, passo a passo, os processos através dos de minha parte mostrx o modus operandi pelo qual uma de
quais suas composições atingiram uma completa finalização. minhas obras foi construída. Escolho "O Corvo" por ser a
Por que um artigo desses nunca foi mostrado ao mundo, eu mais conhecida. É meu propósito deixar claro que nenhum
não sei üzer - mas, talvez, a vaidade da autoria tenha tido mais detalhe de sua composiçáo pode ser atribuído a acidente ou
a ver com essa omissão do que qualquer outra coisa. A maioria intuição - que o trabalho foi realizado Passo a passo, até o

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final, com a precisão e a rígida consequência de um problema Parece evidente, então, que existe um limite distinto, no
matemático. que se refere à extensão, para todas as obras literárias - o limite
Vamos deixar de lado, como irrelevante para o poema, de uma única sessáo de leitura - e que, embora em certas cate-
per a circunstância - ou, digamos, a necessidade - que,
se, gorias de composição em prosa, como "Robinson Crusoá' (que
em primeiro lugar, crio-u a intenção de compor um poema que não exige nenhuma unidade), este limite Possa ser proveitosa-
agradasse, ao mesmo tempo, o gosto popular e a crítica. mente ultrapassador ele nunca pode ser ultrapassado correta-
Comecernos, entáo, com esta intenção. mente em um poema. Considerando estelimite, a eÚensão de
A consideração inicial foi a extensão. Se alguma com- um poemâ pode ser calculada para guardar uma relaçáo mate-
posiçáo literária é longa demais para ser lida de uma só vez, mática com o seu mérito em outras palavras, corn a excitaçáo
-
temos que concordar em abrir mão do efeito imensamente ou elevaçâo - de novo, em outras palawas, com o grau de efeito
importante que deriva da unidade de impressão - pois, se realmente poético que ele é capaz de criar; pois está claro que
forem necessários dois momentos de leitura, os assuntos do a brevidade deve estar em relação direta com a intensidade do
mundo interferem e qualquer intençáo de totalidade é des- efeito pretenüdo - isto, com uma condição -, de que um certo
truída na mesma hora. Mas como, ceteris paribus,, nenhum grau de duraçáo é absolutamente necessário para a produção
poeta pode se dar ao luxo de dispensar qualquer coisa que de algum efeito.
possa contribuir para o seu objetivo, resta saber se existe, na Tendo em vista estas consideraçôes, bem como o fato de
extensão, alguma vantagem para contrabalançar a perda de que o grau de excitação que eu desejava não estava acima do
unidade que vem com ela. Aqui, eu digo que não, imediata- gosto popular e nem abaixo do gosto da crÍtica, eu concluí
mente, O que chamamos de um poema longo é, de fato, sirn- imediatamente qual seria o tamanho apropriado para o meu
plesmente uma sucessâo de poemas breves - isto é, de breves poema - uÍna extensão de cerca de cem versos. Ele tem, de
efeitos poéticos. Nâo é preciso demonstrar que um poema só é fato, cento e oito versos.
um poema se ele conseguir nos afetar intensamente, elevando Meupensamento seguinte foi arespeito daescolha de uma
a alma; e todas as emoçôes intensas sáo, por uma necessi- impressão, ou efeito, a ser causada: e aqui é bom que eu diga
dade psíquica, breves. Por esta razãa, no rnínimo a metade que, durante toda a construçáo, eu mantive firmemente em
de Paraíso yterdido é essencialmente prosa - uma sucessão de vista o propósito de tornar o trabalho universalmente apreciá-
excitações poéticas entremeadas, inevitavelmente, de depres- vel. Eu me afastaria demais do assunto se fosse demonstrar um
sôes correspondentes o todo sendo privado, pelo exagero
-, ponto aceÍca do qual tenho insistido muito, e que, no que se

de sua extensão, de um elemento artístico de enorme impor- refere à menor necessidade de demonstraçáo
poesia, não tem a

tância, a totalidade, ou unidade, de efeito. - o ponto a que me refiro é que a Beleza é o único terreno legí-
timo do poema. Umas poucas palawas, entretanto, para eluci-
' Mantidas inalteradas todas as outras coisas. dar o que quero realmente dizer, e que alguns dos rneus amigos

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{r p.- r= evidenciaram uma tendência a interpretar erroneamente. Esse
t!''ür'.':-
.''f,.- . Considerando, então, aBelezacomo sendo o meuterreno,
prazer que é, ao mesmo tempo, o mais intenso, o mais elevado
minha questão seguinte foi quanto ao tom de sua mais alta
e o mais puro é, eu acredito, encontrado na contemplação do
manifestação - e toda experiência demonstrou que este tom é de
belo. Quando, de fato, os homens falam em Beleza,eles estão
se tristeza. Beleza de qualquer tipo, em sua manifestação suprema,
referindo, precisamente, náo a uma qualidade, como se supõe,
leva, invariavelmente, a alma sensivel às lágrimas. A melancolia
mas a um efeito - eles se referem, em suma, àquela intensa e
é, portanto, o mais legítimo de todos os tons poéticos.
pura elevação da alma - não do intelecto ou do coração _ que
A extensão, o terreno eo tom, estando assim determina-
eu mencionei, e que é sentida ao se contemplar o,.belo,'.
Ora, dos, eu me dediquei a uma indução comum, com o objetivo de
eu designo aBeleza como o espaço do poema simplesmente
obter algo artisticamente estimulante que pudesse servir de
porque se trata de uma regra óbvia da Arte que os efeitos
tema na construção do poema - um eixo sobre o qual toda
devem derivar de causas diretas - que os objetivos devem a estrutura pudesse girar. Refletindo cuidadosamente sobre
ser
atingidos pelos meios que melhor se adaptem à sua consecu_ todos os efeitos artísticos usuais - ou, mais corretamente,
ção - até agora ninguém teve afraqueza de negar que a ele_ pontos, no sentido teatral - eu percebi imediatamente que
vação peculiar mencionada é mais prontamente alcançada nenhum tinha sido mais universalmente empregado do que
no
poema. Ora, o objetivo Verdade, ou a satisfação do intelecto, o refráo. A universalidade do seu emprego foi suficiente para
e o objetivo Paixão, ou a excitação do coração, embora até me assegurar do seu valor intrínseco, e me poupou a necessi-
certo ponto alcançáveis em poesia, são muito mais alcançáveis dade de submetê-lo a aniílise. Eu o avaliei, entretanto, com refe-
em prosa. A verdade, de fato, exige uma precisão, e a paixão, rência à sua suscetibilidade de aperfeiçoamento, e logo percebi
uma domesticidade (os verdadeiramente apaixonados irão sua condição primitiva. Como é comumente usado, o refráo,
compreender-me), que são absolutamente antagônicas àquela ou coro, não só se limita ao verso lírico, mas depende, para
Beleza que, eu afirmo, é a excitação ou a prazerosa elevação sua impressão, da força da monotonia - tanto em som quanto
da alma. Isso não quer dizer, de forma alguma, que a paixão, em pensamento. O prazü é derivado unicamente do sentido
ou mesmo a verdade, não possam ser introduzidas, e até pro_ de identidade - de repetição. Eu resolvi diversi-ficar, e, assim,
veitosamente introduzidas, num poema, porque elas podem aumentar o efeito, aderindo de forma geral à monotonia de
servir de elucidação, ou ajudar a causar o efeito geral, assim som, variando, entretanto, continuamente, a de pensamento:
como dissonâncias na música, por contraste _ mas o verda_ isto é, eu decidi criar continuamente efeitos novos, pela varia-
deiro artista irá sempre buscar, em primeiro lugar, colocá_las ção da aplicação do refráo - o refrão, em si, permanecendo,
num tom adequado de subserviência ao objetivo principal e, quase sempre, sem variação.
em segundo lugar, envolvê-las, até onde for possível, naquela Tendo resolvido estes pontos, eu me dediquei em seguida
Beleza que é a atmosfera e a essência do poema. à natureza do meu refrão. )á que sua aplicação seria con-
tinuamente variada, estava claro que o refrão em si devia
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ser breve, pois haveria uma dificuldade instransponível em capaz de falar e infinitamente mais capaz de manter o tom
variações frequentes de aplicação de uma frase longa. A pretendido
Eu tinha avançado até a concepção de um Corvo'
a ave
facilidade da variação seria, é claro, proporcional à brevidade
"ÍluÍrca
da frase. Isto me levou imediatamente a uma única palavra agourenta, repetindo monotonamente a expressão
como sendo o melhor refrâo. .uid' ,ro final de cada estrofe em um Poema de tom melan-
versos' Então' sem
Surgiu então a questão da natureza da palavra. Tendo me cólico, com uma extensão de cerca de cem
ou perfei-
decidido por um refráo, a divisão do poema em estrofes era, é nunca perder de vista o objetivo - superioridade
a mim mesmo: "De todos os temas
claro, uma consequência, com o refrão fechando cada estrofe. ção em tudo, eu perguntei
uni-
Este fechamento, para ter força, devia ser sonoro e suscetí- melancólicos, qual deles, de acordo com a compreensáo
versal dahumanidade, é o mais melancólico
detodos?"' Morte'
vel a uma ênfase prolongada, náo devia admitir nenhuma
rnelancólico
dúúda, e estas considerações me levaram, inevitavelmente, foi a resposta óbvia. "E quandoi eu disse"b mais
o que já expliquei
ao o longo como sendo a vogal rnais sonora, acompanhado dos temas é mais poético?" Considerando
é óbvia -
do r, a consoante mais producente. com certo detalhe, a resPosta neste caso também
uma
Estando assim determinado o som do refrão, tornou-se "Quando ela está mais aliada à Beleza: entáo' a morte de
mais poético
necessário escolher uma palawa que contivesse este som e, ao mulher bonita é, inquestionavelmente' o tema
que os lábios mais
mesmo tempo, conservasse aquela melancolia que eu tinha pre- do mundo, e também náo há dúvida de
enlutado'l
determinado como sendo o tom do poema. Nesta busca, teria adequados para este terna sáo os de um amante
nneyermore" Eu tinha agora que combinar as duas ideias'
do amante
sido absolutamente impossível ignorar a palawa
conti-
(nunca mais). De fato, ela foi a primeira que se apresentou. lamentando a morte da amada e do corvo repetindo
que combinar as
A segunda aspiração era um pretexto para o uso contí- nuamente a palavra "nevermore"' Eu tinha
a aplicação da
nuo da expressão "nuÍlca mais". Ao verificar a dificuldade que duas, lembrando-me do meu o§etivo de variar
combina-
senti imediatamente em inventar uma razão suficientemente palawa repetida, mas a única forma inteligível desta
empregando a palawa em resposta às
plausível para sua contínua repetição, eu percebi que esta difi- çao e imugit ar o Corvo
indagações do amante. E foi aqui que eu vi
imediatamente a
culdade vinha unicamente da pressuposiçâo de que a palavra
o
deveria ser continuamente ou monotonamente falada por um opoÀnidade de conseguir o efeito que eu desejava' isto é'
podia criar primeira
efeito da variação da aplicaçáo' Eu vi que
a
ser humano - eu percebi, em suma, que a dificuldade estava
que
na conciliação desta monotonia com o exercício da razáo pergunta apresentada pelo amante - a primeira Pergunta
poderia tor-
por parte da criatura que a repetia. Surgiu, então, imediata- à cãrrro responderia com "nevermore" -' que eu
a segunda
mente, a ideia de uma criatura não racional capaz de falar, e, nar esta primeira Pergunta uma pergunta comum'
por diante'
muito naturalmente, me veio à mente um papagaio, mas este menos comuln, a terceira menos ainda' e assim
original pela
foi substituído logo em seguida por um Coryo, igualmente até que o amante, sacudido da sua inüferença
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natuÍeza melancólica da própria palavra, por sua repetição
relação à seriedade e importância, as perguntas anteriores do
frequente, e por uma reflexão acerca da reputação
agourenta amante, e, em segundo, porque eu poderia estabelecer defini-
da ave que a pronunciava, deixa-se agitar pela superstição
e tivamente o ritmo, amétrica e a extensão eorganizaçâo geral
começa a fazer perguntas de uma naturezainteiramente
dife_ iriam preceder,
da estrofe, bem como graduar as estrofes que a
rente - perguntas cuja resposta ele guarda apaixonadamente
para que nenhuma delas a suplantasse em efeito rítmico. Se
no coração -, faz as perguntas metade por superstição,
metade no decorrer da composição do poema eu tivesse construído
naquela espécie de desespero que se apraz em torturar
a si estrofes mais vigorosas, eu as teria enfraquecido sem escrúpu-
mesmo -, faz as perguntas não porque acredita na natureza
los para que elas não interferissem com o efeito crucial.
profética ou demoníaca da ave (que a razáo diza
ele que está E aqui eu posso dizer algumas palawas sobre versifica-
apenas repetindo uma lição aprendida na rotina),
mas porque
ção. Meu primeiro objetivo (como sempre) era originalidade.
sente um prazer frenéticoem formular suas perguntas
de forma A medida em que isto tem sido ignorado em versificação é
a receber do esperado "Nunca mais,, o mais delicioso
porque o uma das coisas mais incompreensíveis do mundo. Mesmo
mais intolerável dos sofrimentos. percebendo a oportunidade
admitindo que existem poucas possibilidades de variedade no
que me fora apresentada, ou melhor, empurrada
à força no ritmo, ainda está claro que as variedades de métrica e estrofe
processo de criação, eu primeiro defini na minha
mente o clí- são infinitas; no entanto, durante séculos, ninguém, em verso,
max ou a pergunta final - aquela pergunta para a qual ..Nunca
jamais fez, nem ao que parece tentou fazer, algo original. O
mais" seria em último lugar uma resposta _, aquela pergunta
fato é que originalidade (a náo ser em mentes de força muito
para a qual a expressão "Nunca mais,, envolveria
o máximo rara) não é uma questáo, como alguns supõem, de impulso ou
possível de tristeza e desespero.
intuição. Em geral, para ser conseguida, ela deve ser extrema-
Foi aqui, então, que o poema começou pelo frm, onde
- mente trabalhada, e embora seja um grande mérito, para ser
todas as obras de arte deviam começar _, pois foi neste
ponto alcançada, ela exige mais negação do que invençáo.
de minhas pré-considerações que usei tinta e papel
para com_ É claro que eu não pretendo nenhuma originalidade no
por a estrofe:
ritmo ou no metro de "O Corvo." O primeiro é trocaico - o
"Profeta," disse eu, 'profeta ou demônio segundo é octâmetro acatalético, alternando-se com heptâ-
- ou ave preta!
Pelo Deus ante quem ambos somos fracos e mortais.
metro catalético repetido no refrão do quinto verso e termi-
Dize a esta alma entristecida se no Éden de outra vida
Verá essa hoje perdida entre hostes celestiais, nando com tetrâmetro catalético. Menos pedantemente, os
Essa cujo nome sabem as hostes celestiais!,, pés empregados em todo o poema (troqueus) consistem em
Disse o corvo, "Nunca mais.. uma sílaba longa seguida por uma curta, o primeiro verso da
estrofe consiste em oito desses pés, o segundo em sete e meio
Eu compus esta estrofe, neste ponto, primeiro porque,
ao (com efeito, dois terços), o terceiro em oito, o quarto em sete
estabelecer o clímax, eu poderia variar e graduar
melhor, com e meio, o quinto a mesma coisa, o sexto em três e meio. Ora,
z6
aa
cada um desses versos tomados individualmente já foi usado Eufiz anoite tempestuosa, primeiro para justificar o fato
antes, e qualquer originalidade que "O Coryo" porventura de o Corvo estâr querendo entrar, segundo pelo efeito de con-
tenha está na combinação desses versos em estrofes; nada, traste com a serenidade (física) dentro do quarto'
nem remotamente, parecido jamais foi tentado. O efeito desta Erfrz aave Pousar no busto de Palas também pelo efeito
originalidade de combinaçáo é intensificado por outros efeitos de contraste entre o mármore e a plumagem - entendendo-se
pouco comuns, alguns inteiramente novos, que surgem de uma que o busto foi inteiramente sugerido pela ave -, escolhido o
extensão da aplicação dos princípios de rima e aliteração. busto de Palas, em primeiro lugar, como o que mais se ajus-
O próximo ponto a ser considerado foi o modo usado tava ao nível intelectual do amante e, em segundo lugar, pela
para juntar o amante e o Corvo - e o primeiro aspecto desta sonoridade da palavra Palas, em si.
consideração é o lugar. Para isto, a sugestão mais natural pode- Em torno da metade do poema, eu me beneficiei da força
ria dar a impressão de ser uma floresta, ou o campo - mas do contraste, com o obletivo de intensifrcar a impressão final' Por
sempre me pareceu que um espaço bem circunscrito é abso- exemplo, um ar fantástico - tão próximo do ridículo quanto
lutamente necessário para criar o efeito de incidente isolado, era admissível - é dado à entrada do Corvo. Ele entra 'tom
ele tem a força de uma moldura para o quadro. Ele tem uma muita negaça."
indiscutível força moral em manter a atenção concentrada, e,
Não fez nenhum cumprimento, não parou nem um momento,
é claro, não deve ser confundido com mera unidade de lugar. Mas com ar solene e lento pousou sobre os meus umbrais
Eu resolvi, então, colocar o amante em seu quarto -
num quarto que se tornou sagrado para ele pelas lembranças Nas duas estrofes seguintes, o objetivo é atingido mais
daquela que o tinha üsitado. O quarto é apresentado como claramente:
sendo ricamente mobiliado - isto simplesmente para estar de
E esta ave estranha e escura fez sorrir minha amargura
acordo com as ideias que já expliquei acerca da Beleza, como Com o solene decoro de seus ares rituais'
a única tese poética verdadeira. "Tens o aspecto tosquiado," disse eu, "mas de nobre e ousado,
Tendo, assim, determinado o lugar, eu tinha agora O velho corvo emigrado lá das trevas infernais!
Dize-me qual o teu nome lá das trevas infernais"'
que apresentar a ave - e a ideia de introduzi-la pela janela
Disse o corvo, "Nunca mais."
foi inevitável. A ideia de fazer o amante supor, no primeiro
momento, que o bater das asas do pássaro contra a janela era Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais'
uma "batida" na porta originou-se de um desejo de aumen-
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
tar a curiosidade do leitor, prolongando-a, e de um desejo de Que uma ave tenha tido pousada nos meus umbrais,
admitir o efeito incidental que vem do fato de o amante abrir Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
a porta, deparando-se com a escuridão, e então ter a fantasia Como o nome "Nunca maisl'

de que foi o espírito da amante que bateu na porta.

z8 29
Tendo, assim, providenciado o efeito do desenlace, eu pensamentos sugeridos pela ocasião, é de novo surpreendido
imediatamente abandonei o tom fantástico por um tom da pela repetiçáo pela ave das palavras "nunca mais"' O estudante'
então, percebe o que está acontecendo, mas é impelido'
como
mais profunda seriedade - tom este que começa na estrofe que
expliquei antes, pela sede humana de autotortura e' em Parte'
vem logo depois da última citada, com o verso:
pela superstição, a fazer perguntas à ave que irão proporcio-
Mas o corvo, sobre o busto, nada mais dissera, augusto, etc,
nar ao amante o máximo de sofrimento, através da resposta
desta
Depois disso, o amante não graceja mais - e nem vê mais esperada, "nunca mais". Levando ao extremo a satisfaçáo
primeira fase ou
nada de fantástico no comportamento do corvo. Refere-se a ele autotortura, a narração, que eu denominei a
fase óbvia, tem um término natural e até aqui não foram
ultra-
como uma'hve negra e agoureira dos maus tempos ancestrais",
e sente os'blhos fatais" cravados em sua alma. Esta revolução passados os limites do real.
de pensamento, ou imaginação, por parte do amante pretende Mas em temas tratados desta forma, por maior que seja
dos
induzir uma revolução semelhante no leitor - paÍa preparar a a habilidade, ou por mais vívida que seja a apresentação
mente para o desenlace - que é então apresentado o mais direta incidentes, existe sempre uma certa dureza ou nudez que
e rapidamente possível. desagradam o olho artístico. Duas coisas são, invariavelmente'
Com o desenlace apropriado - com a resposta do Corvo, necessárias - primeiro, uma certa dose de complexidade'
ou'
uma
"Nunca maisj' à última pergunta do amante, se ele encontrará mais propriamente, de adaptação; e, em segundo lugar'
sua amada no outro mundo - o poema, na sua fase óbvia, a de certa dose de sugestão - uma corrente oculta' mesmo que
uma simples narrativa, foi completado. Até agora, tudo está indefinida, de sentido. É esta última, em especial' que con-
dentro dos limites do explicável - do real. Um corvo, tendo fere a uma obra de arte grande parte daquela riqueza
(para
aprendido por repetição as palavras "nunca mais" e tendo usar um termo convincente da linguagem coloquial)'
que nós
do
escapado da custódia do seu dono, é levado à meia-noite, pela temos a tendência de confundir com o ideal' É o excesso
violência de uma tempestade, a entrar por uma janela onde sentido sugerido - é tornando este a corrente explícita em
vez
uma luz ainda brilha - a janela do quarto de um estudante, de oculta do tema - que transforma em prosa
(e prosa do tipo
debruçado sobre um livro, sonhando com a amante morta. mais vulgar) a dita poesia dos ditos transcendentalistas'
Aberta a janela pelo bater das asas da ave, a ave pousa no local Pensando assim, eu acrescentei as duas últimas estrofes
mais conveniente, fora do alcance do estudante que, achando toda
do poema - para que seu poder de sugestão impregnasse
graça no incidente e no comportamento esquisito do seu visi- a narrativa que as precedeu. A corrente oculta de
sentido apa-
tante, pergunta, de brincadeira e sem esperar uma resposta, rece pela primeira vez no verso:
o nome dele. O Corvo responde com as palavras costumeiras,
"Tira o vulto de meu peitoe a sombra de meus umbrais!"
"nunca mais" - palawas que encontram eco imediato no cora-
Disse o corvo, "Nunca mais"'
ção melancólico do estudante, que, expressando alto certos
31
3o
Deve-se observar que as palawas "de meu peito" são a
primeira expressão metafórica do poema. Elas, junto com a
resposta, "Nunca mais", dispõem a mente a buscar uma moral
em tudo o que foi preüamente narrado. O leitor começa agora
a ver o Corvo como sendo emblemático - mas é só no último
verso da ultima estrofe que a intenção de torná-lo emblemá-
tico de Desolaçâo e de Memória sem fim pode ser claramente
percebida:

E o corvo, na noite infinda, está ainda, está ainda


No alvo busto de Atena que há por sobre os meus umbrais.
Seu olhar tem a medonha cor de um demônio que sonha,
E a luz lança-lhe a tristonha sombra no chão há mais e mais, the tauen
Libertar-se-á... nunca mais!

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