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do Nordeste:
Ceará e Piauí
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Ministro da Educação
José Henrique Paim Fernandes
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Prof. Antônio Cláudio Lima Guimarães
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Presidente
Prof. Antônio Cláudio Lima Guimarães
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Profa Angela Maria R. Mota de Gutiérrez
Prof. Gil de Aquino Farias
Prof. Italo Gurgel
Prof. José Edmar da Silva Ribeiro
José Arimatea Barros Bezerra
(Organizador)
Alimentos Tradicionais
do Nordeste:
Ceará e Piauí
Fortaleza
2014
Alimentos Tradicionais do Nordeste: Ceará e Piauí
© 2014 Copyright by José Arimatea Barros Bezerra [organizador]
Impresso no Brasil / Printed In Brazil
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Coordenação Editorial
Moacir Ribeiro da Silva
Revisão de Texto
Leonora Vale de Albuquerque
Capa
Valdianio Araújo Macedo
Catalogação na Fonte
Bibliotecária: Perpétua Socorro T. Guimarães CRB 3 801–98
Alimentos Tradicionais do Nordeste: Ceará e Piauí. José Arimatea Barros Bezerra
[organizador] et al... – Fortaleza: Edições UFC, 2014.
119 p.:il.
ISBN: 978-85-7282-622-8
CDD: 363.8
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO............................................................................................. 7
Essa região serrana, que compõe o cená- d’água, elegeu-se a manufatura do azeite de
rio das recordações acima, é composta pelas coco para descrever.
localidades de Baixa Grande, Palmeiras, Ca- Apresento a seguir um relato do saber fazer
choeira, Buriti dos Braz, Cidade dos Cocos, da senhora Ana Lúcia Gomes Carneiro, mo-
Sítio Araras, Baixa da Cruz, Uruçu, Cafun- radora da localidade de Cachoeira, que possui
dó, Serra do Meio. Os agricultores familiares vasta experiência em “tirar” azeite de coco
que ali residem produzem feijão, milho, fari- babaçu. Relato obtido a partir de observação,
nha de mandioca, macaxeira, frutas (manga, fotografias e entrevista. Minha aproximação
tangerina, laranja) e azeite de coco, como é e contato inicial com essa senhora foram feitos
conhecido localmente o óleo de babaçu na re- com a ajuda de Cícera Silva Costa Batista, a
gião, designação que foi mantida neste relato. Cicinha, que, em companhia de sua filha Ma-
Na Baixa Grande, até idos dos anos de 1970, ria Jarlene Costa da Silva, foram minhas guias
predominavam os plantios de cana-de-açú- para chegar à localidade e poder adentrar a
car, da qual produziam rapadura. casa de dona Lúcia, notadamente, chegar aos
Região localizada no município de Ipa- espaços específicos de tirar o óleo, que são a
poranga, cujo território abrange sertão e cozinha e o quintal, lugares cujo acesso não é
serra. Trata-se da monumental Serra da facilitado a homens de fora.
Ibiapaba, conhecida na região como Serra
Grande, que estabelece limites entre os es- A Manufatura do Azeite de Babaçu
tados do Ceará e do Piauí.
Ipaporanga pertence à Mesorregião dos O processo observado, que demorou cerca
Sertões Cearenses e à Microrregião Sertão de oito horas, se inicia com a coleta do coco
de Crateús, no limite com a Serra da Ibia- babaçu (Orbignya Phalerata), também conhe-
paba, distante 375 km de Fortaleza. Ocupa cido como coco de macaco, que é feita nas
uma área de 710,990 km²; possui 11.335 encostas dos morros ou boqueirões, terrenos
habitantes e IDH 0,609, segundo dados do livres, onde as “taperas” (cachos de coco) são
censo IBGE/2010. Foi distrito do município derrubadas das palmeiras e os cocos recolhi-
de Nova Russas, do
qual se emancipou
em 18 de setembro
de 1987. Dessa re-
gião produtora de
alimentos, possui-
d o r a d e u m r ic o
manancial de água
doce cristalina que
jorra de fontes co-
nhecidas como olhos
dos. Cada tapera contém cerca de 250 cocos Após a quebra do coco e separação de
que, em geral, são transportados para casa, todas as suas partes que têm utilidades di-
com casca ou quebrados no local de coleta. versas, ocorre a torragem das amêndoas,
A quebra do coco é realizada utilizando uma atividade realizada em uma panela de
uma foice (algumas quebradeiras de coco ferro, no fogão a lenha. Necessita que se fi-
usam um machado) e um cacete (pedaço de que mexendo, do início ao final do processo,
madeira resistente com cerca de 50 cm de para que sejam torradas por igual.
comprimento). Nessa fase, retira-se: a casca Todas as operações de manufatura do
ou “carrasco” (Epicarpo, camada externa e óleo, notadamente a apuração, são realiza-
fibrosa), a entrecasca que é uma massa, cha- das evitando-se a presença de certas pessoas,
mada de “pó” (Mesocarpo, camada abaixo cuja presença pode “botar a perder a feitu-
do epicarpo, rica em amido), chegando ao ra”, efeito que se manifestaria com a fala e/
Endocarpo (corpo do coco no qual se alojam ou com a presença de tais pessoas. Isso sig-
as amêndoas - chamadas localmente de “ba- nifica que tirar óleo de coco tem “ciência”.
gens”), do qual se obtém carvão vegetal. E, Feita a torragem, é hora de pilar as amên-
finalmente, as amêndoas, cuja ocorrência, doas. Trata-se de uma ação realizada em um
nessa região, é de duas a cinco por fruto; têm pilão de madeira, pela qual as amêndoas
coloração branca e são recobertas por uma são amolecidas e formam uma pasta. Está
película de cor acastanhada. no ponto quando a massa começa a soltar
do pilão e endurecer quando se acrescenta
um pouco de água.
Processo de Retirada do Azeite Cru Sua casa, situada no limite frontal do sítio
da família, é cercada frontalmente por uma
Não é necessário torrar, nem pisar as amên- cerca de faxina (estilo pau a pique) e as laterais
doas, pois devem ser moídas cruas. Essa mo- e fundos por cerca de arame farpado. Nesse
agem geralmente é feita em forrageiras, que espaço, são cultivados: mandioca, milho, fei-
são máquinas de moer capim, milho e forra- jão, limão, manga, ata, banana; ervas medi-
gem para o gado e criações. Após a moagem, cinais como canela brava e menta; pimentão,
acrescenta água quente à massa resultante, na cebolinha, coentro e pimenta de cheiro. Cria
proporção de mais ou menos quatro litros de galinha, capote, peru e porco, sendo esse úl-
água para um quilo de amêndoas. Deixa em timo somente para consumo familiar, o que é
descanso até o dia seguinte, momento em que feito em um chiqueiro distante da casa.
retira o óleo que “deitou” por cima da água. Há uma cisterna de placas construída por
Apura o óleo conforme o processo descrito aci- um programa de abastecimento d’água do se-
ma. A massa fibrosa que resulta da moagem miárido, para captação de água da chuva; água
é utilizada para alimentar animais. encanada proveniente de uma fonte, chamada
de olho d’água, que abastece toda a comunida-
Saberes Práticos e Múltiplos Usos de. A pressão da vazão e a altitude dessa fonte
do Babaçu lançam a água em uma caixa d’água coletiva
que a distribui para as casas da localidade.
Dona Lúcia aprendeu a tirar óleo de coco,
ou azeite de coco, com sua mãe que aprendeu
com sua avó que, por sua vez, foi ensinada
pela bisavó. Trata-se de um conhecimento
especializado, de domínio das mulheres que,
nas áreas de grande produção de babaçu, que
abrange os estados do Piauí, Maranhão e To-
cantins, são conhecidas como quebradeiras
de coco. Um saber construído pela experiên-
cia, predominantemente racional, em termos
Senhora Ana Lúcia Gomes Carneiro
de ações gerais de extração do azeite, porém
Dona Lúcia é uma dona de casa que reside marcado por atitudes e comportamentos
na localidade de Cachoeira. Tem quatro fi- místicos em sua execução.
lhos: uma moça que mora em Fortaleza com Cinzas, pequenos pedaços de carvão e
parentes; um filho rapaz, Antônio Hélio, que folhas verdes de algumas plantas, vez por
completou 18 anos e, na época, estava com outra estão envolvidos no processo, como
planos de mudar para Fortaleza onde traba- formas de prevenção contra a influência preju-
lharia na área de construção civil e dois me- dicial de pessoas, cuja presença pode estragar
ninos, Leandro e Dione, que são estudantes. o processo de tirar o azeite. É a “ciência” do
14 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE
fazer, da qual não se fala, pelo menos com Da borra, que resulta da apuração
estranhos e suspeitos de terem “sangue ruim”. do óleo, elabora-se a farofa de farinha
A cultura do babaçu, nas localidades de mandioca, acrescida de rapadura ou
onde ela existe, é aproveitada de forma in- açúcar. Com o óleo ainda são feitos se-
tegral. Possui uma vinculação sentimental quilhos, que na região do Cariri cearense,
e está presente em diversos aspectos da vida são servidos nas “Festas de renovação”.
material dessa população: no alimento, na Os gongos, larvas que se constituem como
moradia, em maneiras diversas de enfrentar pragas que afetam a produção da amên-
o cotidiano e de interpretar o mundo. doa de babaçu, se transformam em ingre-
O azeite de coco é usado localmente em dientes saborosos, que depois de fritos são
diferentes preparações culinárias: carnes, consumidos em deliciosa farofa.
feijão, arroz, bruacas, dentre outras, e fri- Da casca do coco (epicarpo, casca, ou
turas em geral, assim como o leite de coco. “carrasco”) se manufatura um tipo de carvão
Para fazer a bruaca, são utilizados os seguin- vegetal de alto valor calórico. Em algumas
tes ingredientes: farinha de milho ou de trigo regiões é também matéria-prima de artesa-
(sem fermento), água ou leite, açúcar ou sal e nato. Das folhas, ou palhas, são feitas cober-
óleo de coco. Misturar a farinha com a água tura de casas e abrigos para animais; cestos,
ou leite até obter a consistência de bolo de urus (balaios), abanos, surrões e esteiras. Até
frigideira; acrescentar açúcar ou sal e fritar. meados da década de 1970, predominavam
Uru e carvão
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 15
nessa região do Ceará as casas cobertas de cos, que lhes servirão de alimento. O galo,
palha, sendo algumas construídas com pa- sempre atento, fica na espreita e impede que
lha de babaçu, inclusive as paredes. os capotes se aproximem das galinhas.
O mesocarpo (entrecasca ou pó) tem uti- Dona Lúcia conta que, um certo dia, es-
lização medicinal: unguentos contra efeitos tavam ela e algumas de suas vizinhas que-
de picadas de insetos; como coagulante; brando coco em seu quintal. Movidas por
contra gastrite e outros males que afetam uma conversa boa, entremeada pelo barulho
o estômago. Sobre esse uso do pó do baba- da pancada do porrete sobre o coco, tudo
çu, dona Lúcia relatou uma emblemática corria normalmente. Contudo, durante um
história, descrita em seguida. desses golpes, uma lasca da casca do coco
A quebra do coco, bem como a pilagem foi arremessada ao longe atingindo a testa
das amêndoas são atividades realizadas de um dos meninos que estavam por perto.
no quintal das casas, debaixo de pequenos Concomitantemente ao grito do menino,
alpendres, mangueiras. Um quintal bem o sangue esguichou através do ferimento.
varrido, coco colhido, foice afiada, pedra Todas correram para acudi-lo. Todavia, o
de amolar, um porrete resistente compõem garoto continuava a sangrar. O que faze-
parte do cenário onde ocorrem essas duas mos? Será que o menino vai morrer? Vamos
etapas da extração do azeite. Outra parte chamar seu Zé Agostim? Eram as perguntas
comporta a assistência: meninos, meninas, que faziam umas as outras. Seu Zé Agos-
cachorros, gatos, pintos, galinhas, capotes tim era um conhecido e destacado rezador
e o galo. Meninos e meninas brincam no da região. Então, dona Lúcia lembrou-se
local escolhido para a quebra do coco, ou que o pó do coco é indicado para estancar
simplesmente quedam de cócoras espiando sangue. Deitaram o menino ali mesmo no
as mães em seus golpes perfeitos de porrete chão, esfarelaram a massa do mesocarpo
contra o coco, posto cuidadosamente so- do coco, e aplicaram em cima do ferimen-
bra a lâmina da foice. Com no máximo três to fazendo pressão. Em poucos minutos, a
golpes, um principal e outros dois comple- sangria estancou.
mentares, surgem nas mãos das mulheres as Ainda sobre a relação do pó com a cura
amêndoas produzidas pela maravilhosa pal- de enfermidades, ele é utilizado como re-
meira genuinamente brasileira. Apesar das médio para gastrite e outros males do es-
advertências para sair de perto, lá permane- tômago e intestino, seguindo-se a seguinte
cem os meninos. Desencadeado o processo, composição: três colheres de sopa de pó
os animais se agitam e animam-se, princi- diluída em um litro de água. Deixar des-
palmente as galinhas, os pintos e os capo- cansar por três dias, após os quais começa
tes, pois para eles aquela movimentação no a tomar uma xícara (tipo café) três vezes
quintal é sinal de que haverá fragmentos ao dia. É usado ainda, segundo Raimundo
de amêndoa e de massa, gongos e outros Domingos, morador local, em ferroada de
minúsculos insetos que acompanham os co- lacraia, abelha e maribondo, aplicando-se
16 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE
Oi pisa o milho
Penerô xerém
Oi pisa o milho
Penerô xerém
Eu não vou criar galinha
Pra dá pinto pra ninguém
A presente pesquisa, fruto do Projeto ALI- do couro” por conta da utilização do couro
NE, aconteceu no Sertão dos Inhamuns, re- do gado como matéria-prima para a maior
gião cearense que abrange uma área de apro- parte dos utensílios:
ximadamente 30.795,60 km². É composta por
De couro era a porta das cabanas, o rude leito
20 municípios: Aiuaba, Arneiroz, Crateús, applicado ao chão duro, e mais tarde a cama
Hidrolândia, Independência, Ipaporanga, para os partos; de couro todas as cordas, a
Ipu, Nova Russas, Novo Oriente, Parambu, borracha para carregar água, o mocó ou al-
Pires Ferreira, Quiterianópolis, Santa Qui- forje para levar comida, a maca para guardar
téria, Tamboril, Tauá, Ararendá, Catunda, roupa, a mochila para milhar cavallo, a peia
Ipueiras, Monsenhor Tabosa e Poranga. para prende-lo em viagem, as bainhas de faca,
Segundo dados do IBGE referentes ao ano as broacas e surrões, a roupa de entrar no mat-
to, os banguês para curtume ou para apurar
de 2010, tem população total estimada de
sal; para os açudes, o material de aterro era
524.175 habitantes, dos quais 235.562 vivem
levado em couros puxados por juntas de bois
na área rural, o que corresponde a 44,94% do que calcavam a terra com seu peso; em couro
total. Reúne 45.145 agricultores familiares, pisava-se o tabaco para o nariz. (1934, p. 143).
3.649 famílias assentadas, 12 comunidades
quilombolas e uma comunidade indígena. Os sábios nordestinos locais ainda cha-
Os Sertões de Crateús, subárea do Sertão mam Crateús com a denominação original
dos Inhamuns, recebe a designação ampla do de “Piranhas”. No século XIX, a região ain-
nome do município que nela mais se desta- da pertencia ao Piauí e recebeu esse nome
ca, Crateús. Nessa subárea, foram tomados em referência à abundância de peixes na
como espaços de estudo da cultura do mi- região. Posteriormente, passa a ser chama-
lho no estado do Ceará, especificamente os da de Príncipe Imperial e, no ano de 1880,
municípios de Novo Oriente e Ipaporanga. é anexada ao território do Ceará. De fato,
O topônimo “Crateús” vem do tupi ou é mais apropriado falar em troca. O Ceará
tapuia, podendo significar cará (batata) e cedeu ao Piauí o município de Amarração,
teú (lagarto conhecido também como tejo) atual Luís Correia e, em troca, o Piauí ofere-
ou ainda de kra (seco) mais té, kraté (coisa ceu dois municípios: Príncipe Imperial, atual
seca ou lugar seco) e (muito frequente), signi- Crateús, e Pelo Sinal, atual Independência.
ficando “lugar muito seco” ou ainda o nome Nessa região, o consumo do milho está
da tribo indígena que habitava a região: ka- presente nas práticas alimentares, seja in
rati, karatús ou karatis e us (povo ou tribo). natura, seja em preparações como canjica
É região de muitas histórias e que se ba- (doce e salgada), pamonha (doce e salgada),
nha com as águas do rio Poti, foi explora- pão de milho e mugunzá etc. Neste texto, os
da e dominada pelos vaqueiros do criatório pesquisadores do Projeto ALINE relatam
de gado da Casa da Torre, fundando o que sobre o cultivo do milho e a forma de prepa-
Capistrano de Abreu, no livro Capítulos de ração do mugunzá, servido na alimentação
História Colonial, denominou como “época escolar do município de Novo Oriente.
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 19
O Milho: Plantio, Colheita, Arma- lado poente (oeste). Formam-se dois grupos,
zenagem e Beneficiamento sendo que um grupo segue pelo lado norte
outro pelo sul, encontrando-se no limite do
No semiárido nordestino predomina nascente (leste). Caso a queimada não fi-
o cultivo do milho por meio da cultura de que a contento, fazem-se as coivaras; isto é,
sequeiro, de roças, que dependem da regu- amontoam-se as sobras que são queimadas
laridade da estação chuvosa, denominada isoladamente. Por fim, o roçado é cercado
regionalmente como “inverno”. O plantio para proteger da investida de animais.
do milho ocorre no início dessa estação, que Nessa realidade de clima e de práticas de
geralmente se inicia no mês de janeiro e se es- cultivo, encontra-se Novo Oriente, um mu-
tende até maio ou junho. Inverno que às vezes nicípio que se destaca, na subárea de Cra-
tarda, mas nem sempre falha, seja somente teús, pela atuação de produtores familiares
com nuvens ou com trovoadas. Representa de milho, que, de forma dinâmica e criativa,
água e vida. É a época que muda as feições e através de cooperativa e sindicato de traba-
refeições dos sertanejos, trazendo felicidade lhadores rurais, tornaram-se fornecedores
e sorrisos em rostos marcados pelo sol, pelo do Programa Nacional de Alimentação Es-
ar seco da caatinga e, nesses momentos, tam- colar - PNAE. Dessa integração, produção
bém pela satisfação da barriga cheia. agrícola familiar e alimentação escolar, o
A roça começa a ser preparada a partir mugunzá, readaptado aos gostos e prefe-
de agosto, com a derrubada da mata, que rências de crianças e adolescentes, passou
se chama broca, retirando-se e reservando a ser servido nas escolas, sendo apreciado
a madeira necessária ao cercado em volta por 95% dos alunos, conforme indicaram os
do roçado. Para a queimada, que ocorre ge- resultados de testes de aceitabilidade.
ralmente até novembro, fazem-se os aceiros, A agricultora Maria Luiza de Macêdo,
termo que designa contrafogo na linguagem Presidenta da Cooperativa Agropecuária
sertaneja; ou seja, uma limpeza total em vol- dos Pequenos e Médios Produtores de Novo
ta da broca, numa faixa de cerca de cinco Oriente - COOPENOL e do Sindicato dos
metros para evitar que o fogo se propague Trabalhadores Rurais daquele município,
além dos limites do roçado. Queimar um afirma que, antigamente,
roçado, melhor dizendo, “tocar fogo no ro-
a plantação do milho era feita na enxada: colocava
çado” é uma operação bem planejada que uma corda, riscava o chão, depois uma pessoa ca-
deve considerar: o horário do dia, sempre vava a cova, e outra pessoa botava o milho dentro
após a metade da tarde, nunca pela ma- da cova e ia plantando. Método utilizado até o final
nhã ou ao anoitecer, as condições de vento da década de 1990. Depois vieram as matracas, as
e pessoal. É uma atividade coletiva, para plantadeiras. Até o ano 2000, praticamente não
a qual se organiza um grupo de homens havia agricultor que colhesse mais de 100 sacas de
que, munidos de fachos acesos, começam milho. Hoje isso é muito comum.
Essa forma de preparação da terra para prefeitura, por meio de contrato de comoda-
o plantio, na enxada, ainda é predominante to. Depois de entregues no depósito, que fica
entre os agricultores familiares dessa região. nesse galpão, os grãos são despejados em um
A colheita dessa cultura acontece cerca de elevador elétrico que o conduz à máquina de
90 dias após o plantio, dependendo do ter- pré-limpeza, conforme fotos abaixo.
reno, da regularidade das chuvas e da qua- Após a pré-limpeza, o milho desce por
lidade das sementes. Contudo, o consumo uma tubulação e cai em outro elevador, se-
do milho se inicia logo após os grãos atingi- guindo parcialmente limpo para a segunda
rem o início da maturidade; é o milho verde máquina, chamada de canjiqueira.
que se come cozido ou assado. Quando fica A “máquina canjiqueira” prepara o mi-
em condições de ser ralado, é o ingrediente lho que será utilizado na feitura do mugun-
principal da pamonha, canjica e do pão de zá que compõe o cardápio das escolas da
milho também conhecido como cuscuz. rede municipal de Novo Oriente. Nessa fase,
A colheita principal é feita quando o grão são retirados o “olho” e a casca dos grãos,
está seco. Em seguida, é empaiolado, ou seja, resultando o canjicado e o farelo, sendo esse
guardam-se as espigas (grão, palha e sabugo) último aproveitado como ração animal. Em
em paióis. Ou então é inicialmente benefi- média, são beneficiadas 800 sacas de 60 kg
ciado, isto é, retirado da palha, debulhado de milho por ano.
e armazenado em recipientes lacrados com
cera de abelha, o que evita a entrada de ar
e proliferação de pragas, notadamente o
gorgulho e o envelhecimento pelo efeito da
combinação calor e ar.
Na realidade atual de Novo Oriente, a
armazenagem do milho é feita em galpão Elevador (à esquerda) que conduz o milho à má-
de armazenamento/beneficiamento, cedido quina de pré-limpeza do milho (à direita)
pela prefeitura municipal, sob a tutela da
COOPENOL. Alguns produtores fazem
o armazenamento do milho em tambores
em suas próprias casas e, aproximadamen-
te, uma vez por mês, entregam-no à coo-
perativa na quantidade necessária para o
beneficiamento, evitando que se estrague.
Segundo a presidenta da cooperativa, é exi-
gido que o milho seja entregue em grãos,
livres de resíduos e impurezas.
O beneficiamento do milho ocorre num
galpão, utilizando-se máquinas cedidas pela
Processo de pré-limpeza do milho
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 21
O Mugunzá
O mugunzá faz parte da cultura alimen- quando são colocados de “molho”, cada um
tar da região. A sua inserção no cardápio em recipientes diferentes (bacias plásticas),
das escolas municipais, com comprovada isto é, imersos em água para amolecerem,
aceitação pelos alunos, representa uma ex- permanecendo nesse estado durante a noite,
periência exitosa de inclusão de alimentos com a finalidade de facilitar o cozimento.
da agricultura familiar no PNAE. Essa in- Na manhã do dia seguinte, dia da feitura
clusão é exigência da lei nº 11.947/2009, que do Mugunzá, o milho canjicado e o feijão
dispõe sobre o atendimento da alimentação de corda são retirados do “molho” e lavados
escolar. Representa ainda uma engenhosa em duas águas, com o objetivo de deixá-los
adaptação aos gostos alimentares das crian- higienizados para o cozimento. Em segui-
ças e adolescentes das escolas municipais e à da, são colocados para cozinhar juntamente
praticidade necessária à operacionalização com os temperos (tomate, cheiro-verde, ce-
de um serviço de alimentação coletiva. bola e sal), em panelas de pressão diferentes,
Segundo Lourdirene Melo Catunda, e em nova água (terceira água) para iniciar
Diretora da Escola de Ensino Básico Dr. o processo de cozimento. Os temperos são
Antônio Eufrasino Neto, escola municipal processados para amenizar a recusa dos alu-
de Novo Oriente, o mugunzá preparado nos em relação a verduras e legumes.
nas escolas e servido aos alunos tem como Na terceira água, acrescentam-se os tem-
principais ingredientes o milho (canjicado) peros (tomate, cheiro-verde, cebola e sal) ao
e feijão de corda, os quais chegam às escolas milho e ao feijão, colocando-os para cozi-
municipais de Novo Oriente via Secretaria nhar em panelas distintas. Em outra panela
Municipal de Educação. Esses dois gêneros cozinha-se a carne de sol picada acrescida
ficam armazenados em recipientes fechados dos mesmos temperos. Após o cozimento
até a noite anterior à feitura do Mugunzá, desses três ingredientes básicos, juntam-se to-
dos em uma única panela, acrescentando-se ra familiar: carne de carneiro, queijo coalho,
linguiça fatiada e levando ao fogo por mais carne bovina, feijão, mamão, galinha caipira
trinta minutos. O tempo total da preparação e ovo. Ademais, o cheiro-verde, composto de
é aproximadamente de duas horas e meia. coentro e cebolinha, utilizado na alimentação
Essa forma de preparação do mugunzá escolar, é produzido na horta da escola, cujos
difere, em alguns aspectos, do cozimento e cuidados ficam sob o encargo de grupos de
de temperos, daquela utilizada por gerações alunos com a supervisão de um professor,
passadas. Contudo, permanecem os insumos uma atividade que desenvolvem em contra-
básicos: milho amarelo e feijão de corda. turno ao de suas aulas.
Além do milho e do feijão, outros gê-
neros utilizados na alimentação escolar de
Novo Oriente são provenientes da agricultu-
MUGUNZÁ E
PAMONHA:
Tradições do Milho e das Festas Juninas
José Arimatea Barros Bezerra
26 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE
Mugunzá
No sertão nordestino, o aproveitamento das meninas, tanto pela beleza como pela
do milho como alimento se dá em sua to- utilidade lúdica, como brinquedo. Bonecas
talidade. As folhas, o caule e o sabugo são com lindos cabelos brilhantes, na cor ver-
utilizados na alimentação do gado, ove- melha ou amarela, davam vazão à imagi-
lhas e cabras. Os grãos alimentam tanto nação criativa das meninas sertanejas que
homens, quanto animais. brincavam de cuidar de crianças usando
Quando os grãos começam a se de- espigas de milho verde.
finir na espiga, as pessoas começam a O milho é o alimento protagonista de
consumi-lo, assado na brasa ou cozido. comemorações, notadamente, das festas
Antes de endurecer, é ingrediente básico de São João. Os festejos dos dias de Santo
para pamonha, canjica, pão de milho e Antônio, de São João e de São Pedro são
bolos. Quando está seco, pode ser torra- marcados por muita reza (novenas e ter-
do e moído dando origem ao fubá que ços), promessas de mulheres para arranjar
é consumido com açúcar ou rapadura, casamento, pagamento de promessas pela
acrescido ou não de leite. Posto de molho boa safra, grandes fogueiras e pessoas “pas-
até fermentar resulta no saboroso aluá sando fogo”, ou seja, assumindo compro-
que, na opinião de sertanejos idosos, era missos de compadres e comadres, afilha-
a bebida predominante nas festas em ge- dos e padrinhos ou madrinhas de fogueira.
ral, até meados do século XX. Esses compromissos são firmados por
É alimento mediador de diversões in- meio do ritual de “passar fogo”, utilizando
fantis. Das suas palhas secas eram feitas um tição aceso da fogueira: coloca o tição
petecas que alegravam a meninada em jo- no chão e cada pessoa fica de um dos la-
gos pelos terreiros das casas. A espiga em dos do mesmo; segurando a mão direita da
fase inicial de desenvolvimento é chamada outra e ambas repetem, ao mesmo tempo,
de boneca e sempre despertou a atenção as seguintes palavras:
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 29
Bonecas de milho
30 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE
Esse alimento tem como ingredientes: O milho deve ser ralado, aproveitando
milho verde ralado, nata (de boca de pote), somente a massa que cai pelos furos do ra-
manteiga, queijo coalho e sal. lador, o que evita que a casca e o olho do
Preliminarmente, deve-se despalhar as milho se ajuntem à massa. Se a massa re-
espigas de milho verde que já tenham sig- sultante for pouco úmida, dá o ponto com
nificativa quantidade de massa nos grãos. acréscimo de leite. Acrescenta nata, mantei-
Antes de despalhar, segundo dona Joana ga e sal a gosto, misturando bem.
Barros, há uma “ciência”: cortar a palha Para fazer o invólucro da massa, tomam-
ainda na espiga na altura do pé da mesma se duas palhas, juntando-as pela extremidade
para retirar a palha inteira, sem rasgos e fis- mais larga (aquele lado do corte da “ciên-
suras, que podem provocar o derramamento cia”), de modo que uma fique por cima da
da massa quando colocada para cozinhar. outra por cerca de três centímetros, forman-
As duas primeiras palhas são descartadas; do um recipiente côncavo. Coloca-se uma
as seguintes, mais resistentes, são reserva- porção de massa dentro dessas palhas, cerca
das para envolver a massa. de duas xícaras de chá e acrescentam-se dois
Para as amarrações são usadas as últimas pedaços, tirinhas de cerca de 10 centímetros
palhas mais próximas dos grãos, por serem de comprimento por um centímetro de lar-
mais finas e macias. São “riscadas”, isto é, ras- gura, de queijo coalho. Fecham-se as palhas,
gadas longitudinalmente, formando tiras de dobrando suas pontas das extremidades para
aproximadamente um centímetro de largura, o centro, no formato de um empacotamento,
e depois emendadas, amarradas duas a duas. amarrando-se a pamonha pelo meio.
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 31
“Enrolando” a pamonha
Concomitantemente à preparação da
massa na palha, colocar água para ferver,
em quantidade suficiente que dê para co-
brir as pamonhas. Aberta a fervura da água,
segundo dona Joana, é tempo de colocar a
pamonha dentro da panela para que a massa
não derrame ou entre água na preparação,
o que aconteceria caso utilizasse água fria.
Cobre com algumas palhas e tampa a pa-
nela. Cozinhar por cerca de 30 minutos, a
partir de quando a água começar a ferver.
Pamonha com café
A fazenda Pedras Pretas, localizada no aos pés da imensa imagem de São Francis-
distrito de Targinos, cerca de 40 km de Ca- co, a morte, ainda que velada, parecia nos
nindé, se apresentou inesperadamente. O cercar. O nervosismo era disfarçado pela eu-
início da viagem foi marcado para as 14 ho- foria e todos registravam o ambiente e nossa
ras, da região do bairro do Monte Castelo passagem com máquinas fotográficas. Nem
em Fortaleza, em função de ser mais próxi- todos os pesquisadores se conheciam bem;
mo da saída da cidade e pela proximidade sendo a viagem, portanto, um momento de
da residência da maioria dos pesquisadores. confraternização inicial e de apresentação.
Éramos um grupo de oito pessoas divididas Em Canindé, a imagem de São Francisco se
em dois carros, sendo sete pesquisadores, localiza em um serrote, o ponto mais alto da
José Arimatea Barros Bezerra, Hermano cidade, cercado por barracas onde são vendi-
Campos Filho, Yuri Poti, Alice Santos, das lembranças desse santo, onde pedintes e
Rodrigo Viriato, Jorge Washington Frota, crianças oferecem seus préstimos como guias
Tadeu Almeida Júnior e mais Lúcia Jucá turísticos; bodegas e botequins completavam
Ferreira, filha de nossos anfitriões. o ambiente local, ainda um tanto desprepa-
Iríamos verificar a preparação de chou- rado para receber turistas. Diante daquela
riço. E para ele precisávamos de sangue. moldura, afinal, é difícil acreditar que sequer
Era preciso matar um porco para preparar existisse essa intenção receptiva. No horizon-
esse doce do sertão e isso não saía da cabe- te, a aspereza e a aridez do sertão; na cidade,
ça da maioria dos pesquisadores. De fato, o colorido das casas simples e as torres im-
a ideia da matança parecia nos atormentar. ponentes das igrejas católicas se destacavam.
Muitos elementos, alimentos e o ambiente O sertão nunca pareceu tão triste; ao in-
eram novos para a maioria de nós. A ma- vés de festa junina e forró, cenário sertanejo
tança do porco nos instigou antes mesmo desenhado em nossas cabeças, sua aridez,
dos aproximados 170 km de distância a vista do alto do morro da estátua de São
serem percorridos. Francisco, tornara-se uma moldura ainda
Passar a noite numa varanda, quase ao mais impiedosa para o registro da morte do
ar livre, protegidos somente por uma rede, porco no dia seguinte.
sem concreto nem ar-condicionado, confor- Retornamos à estrada. Quilômetros
tados apenas com a luz do luar, o barulho adiante, tivemos um imprevisto: pneu fu-
dos animais e refrescados por uma brisa que rado. Paramos no primeiro espaço aberto
vinha do pé da Serra de Aratuba parecia às margens da rodovia, em frente a uma
uma aventura. O que mais controlaria nossa casa simples. O café veio fácil e a cortesia
atenção? O ambiente estranho aos nossos do sertanejo se apresentou mansa e descon-
costumes ou o anúncio daquilo proposto, a fiada. A astúcia de um garoto em desvendar
matança do porco e a preparação do doce? os segredos do macaco hidráulico para a
Fizemos a primeira parada em Canindé. troca do pneu nos surpreendeu, já que não
Apesar de alguns pedidos e agradecimentos sabíamos como operá-lo.
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 35
Nossa terceira parada foi numa encru- demos encontrá-la nas rugas dos rostos que
zilhada, em Targinos, último resquício de nos contam histórias e experiências. Fran-
asfalto antes de adentrarmos na estrada cisca Vieira Jucá, dona Iaiá, tinha história
de terra. A bodega cheirava a papel de para contar. Viveu e relatou as saliências
embrulho, cereal e cachaça. Era o cheiro do sertão, viveu e sobreviveu a seca de 1915
esperado. Servimo-nos de café, aguar- e muitas outras. Paramos, então, para que
dente, biscoito de polvilho, conhecido no Lúcia tomasse a bênção à sua avó, que ela
Ceará como peta e bolinhos de fubá. Um em verso descreve:
bate-papo breve no alpendre do estabele-
Gesto de avó é aviso, orientação dada com sorriso,
cimento em cadeiras de madeira rústica. abraço de avó é aconchego, porto seguro para espan-
Reiniciamos o trajeto, após alguns se abas- tar o medo, palavra de avó é sabedoria, ministrada
tecerem de biscoitos e outros produtos da com toda maestria, cheiro de avó é inesquecível, per-
cidade. Talvez existisse um receio da escas- fume que acalma no momento difícil, olhar de avó é
sez do sertão ou fosse, simplesmente, uma carinho, que acalenta, corrige e ensina o caminho,
forma de garantir uma ligação individual exemplo de avó é verdade, o tempo não apaga, dura
e de identidade com a cidade grande que uma eternidade, saudade de avó é doída, machuca e
revigora dando força para viver a vida. (Lúcia, 2012).
deixamos para trás. Essas dúvidas somente
vagavam ainda, porque muitos de nós não
conheciam a hospitalidade das pessoas do Conhecer mais sobre o sertão era um dos
sertão, sempre receptivos e com a mesa nossos objetivos. Era também uma meta
farta dentro de suas possibilidades. Aqui, traduzir tudo aquilo que observaríamos e
a comida viria para nós como um sinal escutaríamos em uma descrição. Na casa de
acalentado de boas-vindas. dona Iaiá, todavia, é difícil de fazê-lo; faz
Nossa quarta parada foi breve: tempo su- parte do tipo de arquitetura que precisamos
ficiente para entregar aos conhecidos, com- sentir e tocar. A estrada desviava da casa
padres e comadres, amigos e parentes de Lú- que se apresentava cercada de carnaúbas,
cia, algumas encomendas que ela lhes trazia tão bem plantadas e distribuídas que pare-
da cidade. A distribuição de encomendas é ciam ter sido semeadas intencionalmente. A
prática comum entre aqueles que migram à casa, apesar de se localizar no meio do nada
capital. Depois, debandam-se da cidade gran- – como dizemos na cidade – sem vizinhos
de, após uma temporada – como pássaros em próximos, tinha um muro baixo de cerca de
revoada – retornando ao sertão e trazendo um metro de altura, algo que facilmente se
coisas novas para os que lá aguardavam. transpunha; havia, porém, alguns peque-
A quinta parada foi na casa de dona Iaiá, nos pregos, poucos e espaçados fazendo a
senhora de 107 anos de idade, mãe da nos- função do que conhecemos na cidade como
sa anfitriã, dona Teresinha Jucá Ferreira. pega-ladrão. Curiosamente, pregos em um
Diante dela se percebe que nem toda histó- muro tão baixo e com um portão de ferro
ria se encontra em livros, mas também po- sem tranca, poderiam ser mais decorativos
36 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE
Por volta de oito horas da noite, fomos seiro de maracujá. Em um quase estado de
convidados para a sala de jantar da casa torpor, se não me engano, outro doce ainda
principal. Não era tão grande, mas o sufi- nos aguardava à mesa.
ciente para caber todos os pesquisadores. A noite estava ganha. Tanto alimento
Foi então que começou uma sucessão de caseiro servido junto já justificava nossa
pratos, preparações que não sabemos se viagem. Aos poucos, fomos ao alpendre,
nos marcaram pelo afeto, pela quantidade mas antes, ambientados aos outros lugares
ou pelo inesperado. Tudo começou com da casa, ao ambiente do fogão a lenha, às
pães, tapioca fina e bolachas, servidos com prensas de queijo e à cozinha maior. Está-
manteiga e nata feitas lá mesmo na fazen- vamos muito bem alojados. Permanecemos,
da. Suco, leite e café coado acompanhavam assim, cada um em sua rede, conversando
a farta refeição. Na sequência, foi servida noite adentro e da madrugada. Naquele lo-
uma espécie de galinhada ou, como conhe- cal, o que menos importava eram as horas
cemos aqui no Nordeste, uma canja: gran- exatas do relógio.
des pedaços de frango caipira com arroz e Dormimos todos na varanda da casa sim-
legumes servidos no próprio caldo. Farta- ples, confortável e reconfortante. Durante a
mo-nos. Depois vieram queijo coalho, ovos noite, o canto de alguns pavões não nos deixa-
fritos, mais pães e nata e, quando nada mais va esquecer onde estávamos. Acordamos com
cabia no estômago, ofereceram-nos bolo ca- o sol, aliás, com o seu anunciar, mas não com
Da esquerda para a direita: fogão a lenha onde se deu a produção do chouriço; prensa de madeira para pro-
dução do queijo coalho; e aquecimento e retirada da nata do leite usado para o fabrico do queijo de coalho
38 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE
sua presença. Após o despertar, os atos urbanos vestia bermuda jeans, camiseta vermelha e
foram parcialmente esquecidos. Um grupo se chinelos; o outro era o vaqueiro que havía-
dirigiu ao curral e estábulo para acompanhar mos conhecido pela manhã, durante a visita
a ordenha e, também, para se contextualizar ao curral para ver a ordenha; vestia calça
e se ambientar com os cheiros que remetem os jeans, camiseta e calçava botas de borracha.
cearenses ao campo. Leite, estrume, carnaúba, Era gente de casa, pessoas que estavam ali
insetos e forragem: não é uma descrição po- por estarem acostumadas com a atividade do
ética e envolvente para um ambiente bonito. abate. Já foram identificando o porco, aliás,
Mas fazer o que se isso faz parte de nós? Essa uma leitoa, e preparando as ferramentas: três
primeira visita ao curral foi curta, porque a facas, um machado, um pedaço de corda,
morte espreitava instigante. Algo tão pesado baldes, mangueira e uma pedra de amolar.
por um doce. Não era o chouriço em si que se
impunha no momento, porém todo ato e com-
portamento daqueles que faziam o ambiente.
Pensávamos: Quem seria o carrasco?
Quem é esse carrasco? E que emoções ele
transpareceria? Na imaginação de alguns de
nós, os incautos, esse carrasco teria as ca-
racterísticas daqueles da Idade Média: forte,
alto, encapuzado, peito desnudo e roupas
pretas. Alguém sisudo e incapaz de se re- Amolação das facas utilizadas na sangria, limpeza
lacionar. Seria ele surdo-mudo ou alguém e retalhamento da leitoa
incapaz de qualquer outra atividade, senão
a da morte? O momento tão esperado foi Confesso que achamos que o animal me-
precedido pelo segundo banquete sertanejo. recia mais. O terreiro estava agitado: cachor-
Um momento em nossas vidas que dificil- ros cercavam o cenário como se já previssem
mente se repetirá, saboroso demais para os que mais tarde teriam ossos; as galinhas se
padrões de uma cidade cinzenta. Repetiu-se aproximavam espreitando se algo já lhes
todo o banquete da noite anterior, excluin- cabia e o chiqueiro grunhia, olhava e pro-
do-se a galinhada, mas se adicionando um testava. Os sons eram quase interpretáveis.
cuscuz: queijo de coalho, nata, tapioca, No momento do ato, cada pesquisador
bolo, coalhada, café e pão. De que mais apresentou um pouco de sua personalidade.
precisávamos? Apesar do banquete, a ten- Alice, a única mulher do grupo, não supor-
são provocada pela iminência da morte do tava o pedido de socorro feito pelo animal
porco disfarçava-se pela euforia. e se encurralou na casa no ambiente mais
Os carrascos chegaram. Eram dois, os distante, onde os grunhidos não fossem
quais mal foram percebidos por nós: magri- ouvidos, eximindo-se assim de qualquer
nhos e pequenos, sendo que o primeiro deles responsabilidade pela morte do animal.
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 39
José Arimatea, um homem do sertão, am- para os moradores da casa, vizinhos e ou-
bientado e mais acostumado com os ritos tros atores locais, a matança era um ritual,
da subsistência, soma-se à curiosidade de algo como um evento ou um momento de
acompanhar o abate mais de perto e vai co- celebração. O que para nós era pesquisa, para
laborar com os homens na atividade, aju- eles era festividade e felicidade em receber.
dando a aparar o sangue do animal com No final da matança ocorre o ato da partilha,
uma panela de alumínio. Um primeiro ou seja, a doação de partes do animal abatido
golpe com o dorso de um machado foi o para familiares, amigos e vizinhos, o que se
suficiente para instaurar um silêncio. Mas chama no sertão cearense de vizinhança.
o animal se contorcia, levando um segundo Outros membros do grupo, tardios, jun-
golpe e, na sequência, uma punhalada na taram-se a nós no sábado, bem cedo, e assim
base do pescoço para que o sangue fosse acompanharam a matança do porco e os
colhido com o animal ainda vivo, o que fa- outros procedimentos para a preparação do
vorece ao máximo o processo da sangria. doce. Esses pesquisadores tiveram a expecta-
Em outros abates de animais, os mesmos tiva ainda mais aumentada quando souberam
podem ser içados pelas patas traseiras para através da internet, sim, na fazenda acerca de
que a força da gravidade ajude a escoar o 170 km de Fortaleza já existe o sinal dos no-
sangue em maior volume. Não foi essa a vos tempos, que nossos anfitriões prepararam
forma utilizada. uma galinha na noite de sexta, o que eles per-
deram em decorrência do atraso. Já ficaram
imaginando como seria a região, a casa da
fazenda, os proprietários e, principalmente,
os novos sabores a serem descobertos, como o
chouriço, o queijo fresco e outras delícias que
os esperavam. Os atrasados, que se desloca-
ram juntos, eram apenas dois: Leopoldo Gon-
dim Neto e Fauston Negreiros, que durante
o percurso da viagem faziam planos sobre a
Lavagem da pele do animal antes do abate pesquisa e de como seria enfrentar a matança
do animal. Quando chegaram, foram recebi-
Os outros pesquisadores permaneceram dos pelo proprietário, senhor Alberto Clovis
no terreiro, todavia na responsabilidade do Ferreira, e por lauto café da manhã. Dona
registro, utilizando as câmeras como uma Teresinha já estava a postos e, como uma al-
lente de proteção. As máquinas registravam, quimista do sertão, preparava o chouriço.
mas também os excluíam: era como assistir A pós o recolhimento do sangue, os
ao abate pela televisão. Em todos os presen- executores permaneceram na atividade de
tes, contextualizados ou não, reinava uma limpeza do animal, a qual se deu com uti-
mistura de tensão e ansiedade. Contudo, lização de água quente para soltar o pelo,
40 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE
Leitoa abatida e retirada do pelo com ajuda de água quente e raspagem com faca
Coação do sangue que descansou para a retirada dos coágulos. Peneiração da farinha de mandioca
para ser utilizada no chouriço
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 41
Banha de porco na garrafa de vidro levada ao calor indireto da fornalha para se liquefazer e ser utili-
zada no chouriço. Adição do melaço de cana no sangue para o preparo do doce
Tem gente que diz que num tem... mas dá de comer a muita gente! A
gente sempre diz que a praia, pelo menos pra comunidade, é 80% que
sai daqui dessas embarcações! [...] Todo o peixe que uma embarcação
dessa traz...todo ele é consumido pela comunidade!
(Senhor Wilson, 2011)
44 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE
história tem um início e Seu Wilson pode seca à dinâmica da pesca artesanal. O pró-
conhecer a sua desde o dia em que nasceu; prio verbete Caponga, segundo o dicionário
dos ancestrais, herdou as boas e as más Houaiss, significa “pequeno lago de água
lembranças desse ofício e cada informa- doce formado no solo arenoso do litoral”,
ção e detalhe daquele trecho de mar estão bem como “linha de pescar com uma bola
inscritos na sua mente e em suas palavras. na ponta, em vez de anzol, para atrair o
Nosso jangadeiro conhece a distância de peixe, que é apanhado com a mão”. Tem
sua faixa de areia e não é cego frente às grande importância populacional, consti-
transformações e violências acontecidas du- tuindo-se uma das maiores áreas de aden-
rante o passar dos anos. Conhece a braveza samento do litoral do município. Localiza-
do sol, dia após dia, invadindo sua pele e se a 11 km do município de Cascavel, sua
marcando o seu rosto. Conhece também as sede, pelo acesso via CE 283, distante 72
histórias dos mais velhos, das mulheres, de km, aproximadamente, da capital Fortale-
quem vai e de quem fica. A vida da praia za. Engloba três localidades: Águas Belas,
não é exatamente uma vida de paz; não é Balbino e a Caponga propriamente dita. A
de guerra, tampouco. Assim como o mar, área comunitária de inf luência direta da
essas pessoas têm momentos de pura clareza pesca é denominada Caponga de Dentro ou
e tranquilidade; mas as ondas, agressivas, Caponga da Praia
lembram-nos das dificuldades, comove-os A pesca, atividade econômica predomi-
em sua indignação. Seu Wilson não é so- nante na região, desenvolve-se na categoria
mente um mestre pescador: é um mestre da de pequena escala, através de jangadas a vela
vida. E a vida, através de seus olhos, é muito com comprimento de no máximo oito metros
maior do que parece ser. e de limitado raio de ação marítima. Reali-
A história da Caponga, inscrita como za-se, portanto, com pouco distanciamento
distrito do município de Cascavel, é intrín- da costa. É ofício penoso e de alto risco, que
encontramos uma casa cercada de cajueiros, Aproximadamente dois meses após o pri-
adornada com portas e janelas azuis e paredes meiro encontro, dona Francisca nos convi-
pintadas de verde. Mais uma vez, deparamo- dou para preparar o peixe assado na brasa.
nos com a combinação de cores que tanto fala Ao contrário do que havíamos combinado (de
sobre essas pessoas: as cores do mar. Dona realizá-lo em uma barraca à beira-mar), fomos
Francisca abre a porta, dá-nos abraços e nos chamados à casa de sua mãe, dona Rosa.
reconforta. Éramos, então, visitantes bem Localizada no coração da comunidade
acolhidos; depois daquele susto do mangue, do Balbino, a missão de encontrar a casa
aquele sorriso terno era o melhor antídoto de dona Rosa nos deu a possibilidade de
para a apreensão. A vista da casa era surpre- desvendar um pouco mais sobre a locali-
endente em cima daquela duna, pois parecia dade. Em busca de referência, conversa-
que, ao subirmos os novos degraus, poderí- mos com moradores, os quais, pacientes,
amos encostar o céu e descobrir os segredos sorriam sempre ao escutar-nos falar do
daquele mangue. Céu azul intenso, claridade nosso íminente encontro com dona Fran-
a pino, ficamos imaginando como seriam as cisca. Dava-nos a impressão de ser uma
estrelas ao anoitecer naquele lugar. O som do pessoa realmente querida.
vento vindo do mar prenunciava a conversa Dentro de um conjunto de casas sim-
sobre as coisas da vida na praia e sobre o seu ples, cercada pelo onipresente cajueiro, a
marido, amigo do casa de dona Rosa
mar e ressabiado da estava erguida atrás
terra, tendo em vista da edificação de ou-
todos os problemas e tra morada. Contém
as ameaças sofridas um muro branco e
para defender esse porta de madeira;
mangue do Balbino, para acessá-la, tínha-
o imponente bioma mos de passar pelos
que traduz a identi- quintais de outras
dade do seu povo e a residências. Vimos
força de suas origens. cachorros surpresos,
Seu filho, também crianças observado-
conosco na sala, per- ras e desconfiadas,
maneceu calado. A galinhas muito indi-
dona da voz ali era ferentes. Nosso cená-
dona Francisca, a rio era tão simpático
qual, segura em sua quanto a casa para a
cadeira de canto, sa- qual nos direcioná-
nava todas as dúvidas vamos. Cercados de
que trouxemos. Dona Francisca borboletas e flores de
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 51
tantas outras cores, impossível não reparar de meio século, assando-o no mesmo forno
o gigante bougainville cor de rosa, planta tre- de lenha utilizado nesta demonstração. A
padeira que servia de moldura de todo um preparação, segundo o relato de dona Fran-
mangue que perfaz o quintal principal. Sa- cisca, era vendida pela mãe aos sábados na
bíamos, assim, que não poderia ser outra a grande Feira de São Bento, em Cascavel, de
casa de uma senhora chamada Rosa. Dentro forma a complementar a renda da família.
do lar, encontramos sala, quartos, cozinha
e tudo tinha memória. As paredes estavam Passo a passo do peixe assado na brasa
repletas de fotografias que rememoravam com pirão escaldado
outro tempo; um passado de uma mãe e
dona de casa, ora jovem e recém-casada. Da preparação do forno a lenha para
As anfitriãs eram três: dona Francis- produzir a brasa. A lenha para o carvão
ca, dona Margarida (irmãs) e a mãe, dona é coletada no próprio terreno. Para a pre-
Rosa, rainha da casa. Dentro de seu espaço, paração, foi utilizada madeira de cajueiro.
dona Rosa era uma senhora bem arrumada,
“muito alvinha e linda”, como descrevem as
filhas. Sentada em sua cadeira, com a ajuda
das duas, a senhora permaneceu calada por
todo o tempo que estivemos lá. Contempla-
va o horizonte com seu olhar infinito e não
sabíamos ao certo se estava ciente do que
acontecia a sua volta. As filhas a admiravam
e cuidavam dela como provavelmente ela
deve ter cuidado outrora - com afinco, amor,
sempre preservando o bem-estar da família.
Dona Margarida, concentrada, em seu ves- Forno a lenha
tido simples, seu boné e óculos escuros, apre-
sentou-se simpática e prestativa. Estava con- Para fazer grelhas de galhos de palmeiras
tente em nos receber e nos apresentar a casa. para assar o peixe na brasa. Dona Francisca
As duas, dona Francisca e dona Mar- caminha até o quintal e lá colhe um galho de
garida, contaram-nos que o peixe assado palmeira, com o uso de um facão. Desmembra
na brasa já era feito por dona Rosa há mais as folhas, reservando somente os talos.
Depois de limpar as varas com água cor- dondo com pequenas unhas, parecendo uma
rente, dona Francisca constrói uma espé- mão pequena com muitos dedos. Normal-
cie de grelha de madeira verde, mantendo mente, é utilizado na atividade de raspar a
como base dois tijolos. Ela tira o carvão que polpa do coco seco. Sentada sobre um banco,
já virou brasa para que seja colocado em- a pessoa, com as duas mãos, fricciona a pol-
baixo da grelha. pa nas pequenas garras do artefato metálico,
obtendo-se então o coco ralado. Dona Mar-
garida, a irmã de dona Francisca, executa a
tarefa de raspar cada coco individualmente
para retirada da polpa seca. Depois de ras-
pado, recolhe-se a polpa e leva-a ao liquidi-
ficador junto com um pouco de água, para
liberar o leite. dona Francisca relata que,
antes da chegada do liquidificador, esse pro-
cesso era feito manualmente com o auxílio
de um pano, um balde e água, coando-se o
leite ao torcer o tecido com as mãos. Natu-
Peixe sendo grelhado ralmente, esse processo foi substituído pelo
liquidificador que, segundo dona Francisca,
Da extração do leite de coco a partir do é bem mais eficiente. Assim que é batido,
coco seco. O leite de coco é obtido a partir o leite de coco é coado utilizando-se uma
de utensílio de cozinha tradicional denomi- peneira, de forma a retirar todo bagaço do
nado “rapa coco”, o qual se refere a um ins- sumo. Esse bagaço não será aproveitado na
trumento comum no litoral do Nordeste que preparação do prato, mas dona Francisca
é composto de um pedaço de madeira onde reutiliza esse bagaço para alimentar as ga-
se fixa um artefato de metal num formato re- linhas que cria no quintal.
Raspagem do coco
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 53
Do assar das postas de cavala na brasa. to direto com o fogo. Espera-se assar o peixe
As postas de cavala são colocadas em cima até que ele adquira um tom dourado, viran-
da grelha de madeira verde para assarem do sempre a carne de um lado para o outro.
somente com o uso do calor emanado pelo Deixa-se o peixe cozinhando internamente
carvão em brasa. Dessa forma, não há conta- e adquirindo a coloração dourada desejada.
Do preparo do pirão. Põe-se para aque- Da adição do peixe ao caldo. Ela adi-
cer na boca de fogo do forno de lenha, em ciona o peixe assado lavado ao caldo, assim
uma panela de alumínio, um caldo feito à como o caju azedo inteiro com casca e sem
base de água, do leite de coco e de todas as castanha. Segundo dona Francisca, o caju
ervas e demais vegetais da receita (cheiro- vai ajudar na apuração do sabor da prepara-
verde fatiado, pimentão, tomate e cebola ção, substituindo o vinagre. Deixa-se o caldo
cortados em cubos). ferver e mantém-se a mistura no fogo até que
Do lavar do peixe assado. Dona Francisca os vegetais, o leite de coco e o caju azedo fi-
ensina que se houver algum pedaço de peixe quem devidamente cozidos. Retira-se o peixe
muito tostado, é necessário raspar as partes do fogo e o reserva.
escuras antes de seguir com a próxima etapa Do preparo do pirão. Dona Francisca
de cozimento do peixe em caldo, de forma a peneira a farinha de mandioca para prepa-
evitar que a preparação fique amarga. Depois rar o pirão. Separa uma panela menor na
de selecionados e cuidadosamente raspados, qual, antes mesmo de ir ao fogo, adicionam-
os peixes são lavados em água para somente se um pouco do caldo do peixe já cozido, o
depois serem adicionados junto ao caldo.
Lavagem das postas de peixe assadas Peixe e caju azedo cozinhando no caldo
Mesa posta
DAS TERRAS DE
CARNAÚBAS AO
SABOR DO SOL:
a Carne de Sol de Campo Maior – Piauí.
Alice Nayara dos Santos
O vaqueiro do sertão
Que faz de um aboio, uma canção
Só tem lá em Campo Maior
Sabe sofrer, sabe amar
E agora vou lhe ofertar
Estes versos que eu canto em menor.
(Música Piauí, de Luiz Gonzaga)
58 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE
À semelhança com o que se faz em varais filhos. Tem trinta e cinco netos e dezesseis
de roupas, o grande pedaço da carne, também bisnetos. Uma família grande da qual se or-
conhecido como manta de carne, é pendurado gulha diariamente “Eu sempre digo, minha
em local com luz indireta do sol, à sombra e filha, sou rica de filhos e pobre de dinheiro”.
ao vento, para a carne sofrer a desidratação. Sua voz e seus relatos são saudosos, demons-
trando que a ausência dos filhos jamais é
superada, mesmo para quem é sertanejo
acostumado às agruras da vida nordestina.
Apesar de ter sido uma viagem curta, afirma
que já estava também sentindo falta de sua
vida tranquila em Campo Maior. Ela nos
recebeu com um sorriso no rosto para falar
da sua gente e da vida no interior.
O prazer dos relatos sobre a carne de sol
representa um enorme encanto, visível em
suas feições marcadas de sol. Sem divergir
Mantas de carne penduradas à sombra para de ninguém do município, seja da cidade
desidratar seja do campo, os alimentos também nela
despertam memórias da sua infância e das
Após esses processos de salga e matura- histórias de vaqueiros que ela presenciou
ção no vento e calor, espera-se a carne secar, e outras que lhes foram relatadas desde a
quando está pronta para consumo. Conhe- infância. O vaqueiro, símbolo distintivo
cido o processo de elaboração da carne de da região, está presente nas rezas cantadas
sol, passamos a explorar a preparação da e nas vestimentas que os moradores ain-
saborosa “Maria Isabel”, bastante apreciada da conservam naquele lugar. A carne de
pelos moradores de Campo Maior e oferta- sol que ela prepara, é também qualificada
da aos visitantes nos diversos restaurantes como especial. Relata que aprendeu com
e churrascarias da região. sua mãe, ainda menina, além dos afazeres
Essa exploração aconteceu com a gene- domésticos, a arte de conservar e fazer ren-
rosa colaboração de dona Jesus, uma dona der toda a carne que se dispunha: a salga.
de casa interiorana, sertaneja destemida e Ensaiou suas primeiras experiências na
trabalhadora. Junto com seu esposo cui- salga da carne em preparações para os irmãos,
dam de sua pequena propriedade, com gar- que eram onze. Depois, passou a preparar
ra e paixão pelas suas criações (galinhas, para aqueles que se arranchavam na sua casa,
ovelhas, cabras etc.). fossem visitantes, fossem viajantes. Finalmen-
Na época da pesquisa, julho de 2012, ela te, passou a preparar para o marido e filhos.
havia retornado há pouco tempo, de São Com um sorriso no rosto e a disponibi-
Paulo onde fora visitar alguns de seus doze lidade que somente o sertanejo tem, dona
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 61
INGREDIENTES:
“Maria Isabel”, mais que um prato saboro- nante história da sua vida. Questionada
so, é um ícone da cidade, é comida de vaquei- sobre como gostaria que fosse a foto final
ro, elaborada com uma carne que se conserva da atividade, afirmou que queria ser re-
em longas jornadas e é de fácil preparação, uti- tratada ao lado do esposo, senhor Chico
lizando-se uma só panela e de um único fogo. Dantas que também animou a cozinha
Em suas lidas, campeando o gado, basta uma com suas histórias, observando paciente-
trempe, acende o fogo, um pouco d’água, arroz mente dona Jesus cozinhar e cantar para
e carne-seca, conduzida nos seus alforjes, para todos.
o vaqueiro preparar tal referenciada comida. Na despedida, dona Jesus entoa mais
uma cantoria sertaneja, demonstrando a
fé desses nordestinos e a sensibilidade para
com a vida! “Mais uma música, minha fi-
lha”, diz ela e começa a cantar:
Dona Jesus, seu esposo e a “Maria Isabel” com carne de sol de Campo Maior
64 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE
Tradição é coisa séria: para os campo- corta o centro da sede do município, real-
maiorenses, não se pode falar simplesmente çando a imagem das casas e do céu azul
de carne de sol, tem sempre que enfatizar a claro do lugar. Chama sempre a atenção de
região, pois a carne de sol de Campo Maior todos que passam por lá.
é tradicional e especial. Há um movimento O vaqueiro é o símbolo cultural da re-
em prol da criação de um selo da carne, gião e é celebrado por todos em razão de seu
para atestar sua origem campomaiorense, saber. Sempre que se fala algo, o vaqueiro
seja no Brasil, seja no exterior. é lembrado; sua ciência de tanger o gado e
A carne de sol da região está sempre es- seu gosto pela comida são destacados nos
tendida em tendas à beira da BR-343, que gestos e nas falas dos moradores.
Dona Jesus apresenta a “Maria Isabel” com carne de sol de Campo Maior
“BOLO CAGÃO:”
Feito Também com Histórias de Vida
Rafaela dos Santos
Preparação
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 69
O bolo cagão é enrolado em palhas de cozida. Nesse caso, o bolinho será virado para
bananeiras e assado em um forno, seme- ser cozido também do outro lado. Às vezes
lhante ao em que se torra farinha, que deve quando acontece a queima da palha por causa
estar pré-aquecido. As palhas de bananei- da temperatura do forno é necessário trocá-la.
ras são limpas e assadas sobre o forno antes O armazenamento do bolo cagão é feito
de ser utilizadas para enrolar a mistura. atualmente em caixotes de madeira, plástico
Esse cuidado é necessário por duas razões: ou em caixa de isopor. O recipiente é forrado
primeiro, porque é uma forma de higieni- com uma ou duas toalhas de mesa e por uma
zar as palhas e, segundo, as palhas assadas toalha de plástico que serve como isolante
se tornam mais flexíveis que quando cruas, térmico. A disposição dos bolinhos dentro
facilitando na hora de enrolar os bolinhos do caixote se dá em camadas separadas por
sem que se quebrem. palhas de bananeiras devidamente assadas.
Para enrolar a massa na palha da bananei- A intenção é fazer com que demore a esfriar.
ra, coloca-se um punhado de massa e, com
cuidado e habilidade, vai se juntando as ares- O Bolo Cagão: Valor Cultural
tas da palha. Dessa maneira, o bolinho toma
forma arredondada, indo logo em seguida O bolo cagão assim como a grande maioria
para o forno aquecido. Assa primeiro um lado dos guisados do povoado é comercializado
e depois o outro. Mas não é tão simples como em vários nichos, inclusive em outros muni-
dizer “assa-se primeiro um lado e depois o cípios. Semanalmente, sete mães de famílias
outro”, é necessário saber quando o bolinho produzem uma quantidade considerável da
está no ponto de desenrolar para virar o lado. iguaria que já tem consumidor certo a sua es-
As guisadeiras fazem um tipo de teste, ba- pera. Mas o cunho cultural é o que caracteriza
tendo na palha que está virada para baixo com com maior relevância todos os processos que
a ponta do dedo para saber se a massa está envolvem a produção dos guisados.
fogo para aquecer um pouco e ficar mais seco, formas retangulares untadas com margari-
mexendo sempre. Retirar do fogo e triturar no na. Decorar com castanhas de caju e levar
moinho, liquidificador ou multi-processador. ao forno do fogão a lenha por aproximada-
Realizar o mesmo procedimento com o cravo. mente 40 minutos ou até que, espetando um
Enquanto fazia isso, dona Marilene nos rela- palito, este saia limpo.
tava sobre a importância de levar o cravo e a
erva-doce ao fogo antes de moer, pois deixa
o bolo mais gostoso.
Moer as castanhas de caju. Uma parte
das castanhas de caju é usada para decorar o
bolo e a outra deve ser moída para misturar
à massa. Colocar a farinha de mandioca em
uma tigela ou bacia. Acrescentar a mistura
de erva-doce, cravo e as castanhas de caju
moídos e reservar.
Margarina derretida
Cravo aquecido e castanha de caju
Massa do pé de moleque
Bolo pé de moleque
há sítio sem uma pequena plantação dessa apreciavam esse “símbolo de amor”, que
fruta tão popular, saboreada por todas as é o doce para dona Marilene, relatamos a
idades e paladares. Foi nesse processo de seguir o modo de preparo do mesmo.
encantamento e desvelamento das riquezas
gastronômicas de Baturité, que dona Mari- Modo de Preparo do Doce de Banana
lene também nos apresentou o doce de bana-
na, descrito abaixo com os saberes e sabores Colheita da banana. Fomos até o Sítio
que somente ali se encontram. Jordão, localizado no município de Baturi-
Para o cearense é tradicional o hábito de té, Ceará. Leonardo Vasconcelos Pinto Cas-
“adoçar a boca” após as refeições. Esse ado- telo Branco, de 23 anos, concedeu-nos um
çar vai desde um pedaço de rapadura aos relato referente à forma como era realizado
mais elaborados doces. E, para isso, desen- o cultivo da bananeira nos tempos dos seus
volveu-se uma variedade de doces: de leite, avós. Ele, neto de dona Marilene, senhora
de goiaba, de caju, de banana, de mamão que nos demonstrou o modo de fazer do
com coco etc. Entre os alimentos identifi- doce de banana semelhante ao que apren-
cadores da região do Maciço de Baturité, deu com sua mãe, descreveu detalhes dessa
encontramos o doce de banana em massa, arte, hoje não mais tão preservada.
cozido em tachos e no fogão a lenha, utensí- De acordo com o relato de Leonardo,
lios característicos da região baturiteense. Ao deve-se plantar o que é chamado de “batata”
preparar o doce de banana, dona Marilene da bananeira. A batata é a raiz da planta que
nos relata o seu saber, ensinado e aprendido crescerá originando a bananeira. Da “ba-
por gerações de mulheres tata” vão saindo os fios e
de sua família. de cada um dos fios nas-
Em Baturité, um dos cerá uma nova bananeira.
principais municípios da Quando saem cinco fios
Região do Maciço, con- e dois deles são conside-
centra-se um grande nú- rados “fracos”, é melhor
mero de plantações de retirá-los, pois os mesmos
bananeira. Ao olhar sob a irão “puxar a força” dos
serra, veem-se mares de ba- outros, enfraquecendo-os,
naneiral que enverdecem e afirma Leonardo. O culti-
enfeitam a paisagem. As- vo da banana deve iniciar
sim, a banana é uma fruta no mês de outubro, para
expressivamente consumi- quando chegar o inver-
da nesse cenário. no ela já estar enraizada.
Entre lembranças e re- Planta-se a “batata” de ca-
cordações da vida na ser- beça para baixo. São seis
ra e dos familiares que Dona Marilene meses até o primeiro
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 77
cacho “ficar de vez”, que “pra mim é quan- utilizam-se bananas maduras, com cascas
do a fruta não está madura suficiente, mas bem amareladas, selecionando os frutos
é a única que está disponível, está na vez com ausência de manchas na casca.
de ser colhida”. Depois do primeiro cacho,
geralmente colhe-se a banana de quinze em
quinze dias. São feitas duas “roças” (lim-
peza e retirada das palhas secas) ao ano.
Leonardo nos relata que isso somente é fei-
to quando estritamente necessário, “pois se
limpar demais, a bananeira torna-se muito
vulnerável, descoberta, desprotegida”. A co-
lheita é feita ainda com a banana “de vez”,
que significa um estado inicial da fruta em
relação ao amadurecimento.
Banana verde ou “de vez”
A distância entre uma planta e outra é de mais ou
menos três (3) a quatro (4) metros. A gente colhe
o primeiro cacho da bananeira de um ano a um Descascar e moer as bananas. Após a
ano e meio depois de plantada, em função do local. colheita e o amadurecimento dos frutos, os
Nos anos seguintes cada touceira produz de 1 a 2 mesmos são descascados manualmente e
cachos por ano, sem precisar plantar novamente depois processados em moinhos para trans-
(Léo Vasconcelos Pinto Castelo Branco, 11 de no- formar em polpa. Dependendo do volume,
vembro de 2011). o processamento pode ser manual, podendo
amassar com utensílios de cozinha. Dona
Após o relato sobre o plantio e cuidados Marilene utilizou um moinho manual, pas-
com a bananeira e a colheita da banana, sando os frutos no moinho até obter uma
vamos relatar como se faz o delicioso doce pasta grossa. A polpa obtida deve apresen-
dessa fruta. tar pequenos pedaços, isso evita que o doce
queime durante o cozimento.
Preparo do Doce de Banana
Cozinhar a polpa. Juntar o açúcar na nos potes, que podem ser de vidro ou plástico
proporção de dois para um, ou seja, para resistente. As embalagens devem estar bem
cada dois quilos de polpa de banana usa-se limpas, a fim de preservá-lo por mais tempo.
um quilo de açúcar. Coloca-se em um tacho Está feito, então, o doce de banana.
grande, que pode ser de cobre ou alumínio. O Assim, como para Dona Marilene, a
cozimento é feito com fogo a lenha, disposto elaboração do doce de banana remeteu
no chão. Deve-se mexer constantemente os as pesquisadoras a muitas lembranças de
ingredientes para que não grudem no tacho. infância. dona Marlene lembrou-se da
A fervura da mistura da polpa com o açúcar brincadeira “pega-pega” entre os bana-
inicia-se em um tempo de aproximadamen- nais carregados de bananas que saciavam
te uma hora. Após levantar fervura, deve-se a fome e do cheiro da lenha queiman-
mexer com mais vigor, pois a polpa vai fi- do vindo do fogão da casa da sua avó,
cando mais homogênea e facilmente gruda avisando que o doce de banana e outras
no tacho. Meia hora depois de levantar a comidas estavam prontas ou em prepa-
fervura, a massa ganha formato e apresenta ração. O degustar do doce feito por dona
viscosidade elevada e coloração bem escura. Marilene proporcionou às pesquisadoras
O envasamento deve ser feito com o doce uma grande experiência com cheiro e sa-
ainda quente, pois caso esfrie, pode solidifi- bor, e a cada colherada, mais sorrisos,
car e açucarar, dificultando sua distribuição aromas e doçura.
macios ao paladar, além de deixar um sabor Foi, portanto, nesse percurso pelos sa-
que lembra feijão maduro. bores da região do Maciço de Baturité,
Nesses relatos, ressaltamos que o baião passando por Baturité com o bolo pé de
de fava pode apresentar-se como uma alter- moleque e o doce de banana e finalizando
nativa para que comunidades tradicionais com o baião de fava em Aracoiaba, que se
tenham melhores condições de vida, poden- inscrevem a tradição, a história e o amor
do contribuir para o desenvolvimento local por uma região que nos encanta e revela
e regional, bem como ter uma compreensão satisfação na voz dos gentílicos, do quão
do modo de produção e de que forma esse rico um lugar pode ser se olhado mais
alimento tem se mantido na cultura tradi- de perto. Aprendemos mais que receitas.
cional alimentar da região. Aprendemos sobre a vida.
ziria em massa, causando imenso prejuízo avós e assim as práticas têm continuidade:
à vegetação. É diferente, portanto, daquele sabe hoje o que seus avós já faziam e ensi-
pequeno agricultor que produz mandioca naram aos filhos e aos netos. Assim ocorre
somente para a subsistência familiar, ou a transmissão da arte do saber-fazer que
seja, somente “uma goma para fazer uma transforma a raiz – potencialmente tóxica
tapioca para a merenda da tarde”, nas pa- – em comida e símbolo de tradição. Essa
lavras do senhor Silva. arte-ciência nasceu com a experiência do
trato com a terra. Ele explica ainda que al-
O Plantio e os Cuidados com a guns dos aviamentos (artefatos utilizados
Mandioca no processo de manufatura da farinha) fo-
ram herdados daqueles que o antecederam,
Enquanto o senhor Silva apresentava como, por exemplo, a roda de cruz, moirão,
sua plantação, explicava-nos o processo caititu (ralador), cochos, prensa, urupema,
do plantio da mandioca. Assim, a maniva, forno de alvenaria e o rodo.
como denomina o caule, é usada no plantio. Em outra opor t unidade, visitamos
Para saber se a maniva está em condições de também a casa de farinha pertencente
plantio é preciso observar a queda natural à família Da Hora, a qual nos acolheu
das folhas da base à extremidade. Caso este- com a gentileza de pessoas simples e de
ja ocorrendo essa queda, prossegue-se com mesa farta. Na ocasião, nosso atraso se
o plantio. Depois, espera-se o momento cer- deu não pelos problemas do caminho, mas
to para colher, transportar, limpar, raspar, pela dificuldade em encontrar a casa. Por
triturar, deixar de molho, prensar, quebrar, volta de nove horas localizamos a residên-
peneirar e torrar no forno. cia. No entanto, ficamos receosos em nos
O trato da mandioca revela também o aproximar, pois havia um cachorro gran-
cuidado com a eliminação de seu conteúdo de, preto e pouco cortês amarrado no por-
tóxico, visto como um veneno e denomi- tão da casa. De longe, gritamos para que
nado manipueira – ácido anídrico, para os alguém da casa viesse ao nosso encontro.
químicos – que escorre da massa quando Foi quando apareceu uma simpática se-
prensada. A esse respeito, o senhor Silva nhora, dona da casa, e, logo em seguida,
conta o caso de um porco que, por descui- seu filho Rodrigo.
do seu, ingeriu a manipueira e poucos dias Depois dos primeiros cumprimentos,
depois, morreu envenenado. nos esforços para explicar rapidamente
A cultura da mandioca é um costume e nossas intenções de pesquisa, fomos con-
expressa um legado indígena. Relembrando vidados para entrar na residência. A re-
seu tempo de menino, o senhor Silva ex- cepção foi calorosa. Rodrigo e sua mãe
plicou que tudo o que aprendeu sobre essa ofereceram-nos água e suco de mangaba,
cultura veio de seu pai. Esse, por sua vez, tão marcante na região. Em seguida, apre-
recebeu o saber de herança repassado pelos sentou-nos o sítio, uma propriedade gran-
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 87
de onde existem: uma casa de farinha, as como professora. Nesse espaço, juntamente
casas dos filhos, galinhas criadas soltas no com os aviamentos da casa de farinha, esta-
quintal, um pé de jaca, horta, flores, além vam carteiras escolares, lousa, giz, alguns
de várias árvores que eles faziam questão livros e cadernos de alunos. De fato, um
de apresentar e de relacionar o que faziam espaço democrático onde conviviam todas
com cada fruto. Pareceu-nos que eles já as formas de aprender.
estavam empolgados com o interesse da Nesse mesmo local funciona, também,
pesquisa. Diziam-nos, por exemplo, que do o Conselho de Base de Agricultores e a
pequi se faz o óleo, remédio, sorvete e tem- Associação de Trabalhadoras Rurais da
pero; do andu, baião de dois; da imbiriba, Agricultura Familiar – ATR AF. É um
suco e condimentos; da mangaba, o suco conselho composto por mulheres que se
que provamos, além de sorvete e mingau; reúnem mensalmente para discutir os
da pimenta de mico, tempero e remédio problemas, ações, receitas e estratégias da
caseiro; e, finalmente, do jatobá, do murici, agricultura familiar. Dessa forma, fortale-
do araticum e do cambuí, o suco. cem a prática econômica e culinária, pois
Após percorrermos o sítio, escutan- há a troca de receitas alimentares entre as
do essas explicações, a dona da casa nos agricultoras familiares.
ofereceu almoço. Inicialmente, ficamos Visitando a propriedade e conhecendo
desconcertados, já que não esperávamos o processo da casa de farinha e a feitura
tamanha naturalidade e cordialidade. da mandioca mais detalhadamente, foi
Éramos visitas inesperadas, contudo, bem possível perceber similaridades entre a
acolhidas. Tentamos explicar que iríamos casa de farinha do senhor Silva e da fa-
almoçar em outro lugar, mas conseguimos mília Da Hora, uma vez que ambas exe-
nos esquivar, uma vez em que a família fez cutam o mesmo trabalho artesanal no
questão da nossa presença, dando-nos a seio da região do Cariri. Dentre outras
certeza do seu prazer em compartilhar co- semelhanças, emerge o trabalho prove-
nosco o almoço. Naquela ocasião, o dono niente da agricultura familiar, o trabalho
da casa estava em viagem a Fortaleza para comunitário, espaço de sociabilidade e
comercializar a produção agrícola da fa- o modo de saber-fazer que se transmite
mília. Após um delicioso almoço, inicia- por gerações. Ainda somando as apro-
mos as entrevistas, tendo a casa de farinha ximações, estão alinhados os modos de
como referência para as explicações do plantio, de processamento da farinha, os
processo da cultura da mandioca. aviamentos e a função que cada um exer-
Observamos que a casa de farinha da ce nesse processo.
propriedade da família Da Hora é ampla, A seguir, relatamos as explicações da famí-
bem organizada e desempenhava outras lia Da Hora sobre o passo a passo do cultivo da
funções, tais como o de Escola de Jovens e mandioca e da feitura da farinha, gentil e gene-
Adultos - EJA, em que a matriarca trabalha rosamente cedidas, inclusive com fotografias.
88 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE
chamado caititu.
Logo em seguida à trituração, a massa é
posta de molho em água parada para a obten-
ção da massa final. Este processo é realizado
com o auxílio de bacias de plástico ou dentro
de cochos – espécie de calha – de cimento
ou de madeira. Após a massa se assentar no
fundo do cocho, procede-se à coação, a qual
é feita em peneiras (sacos de nylon ou de pa-
lha de carnaúba) para a retirada do excesso
de água do produto. O próximo passo é a
passagem da massa pela prensa que consiste cerca de noventa minutos com o forno
na retirada do excesso de água, o que é reali- pré-aquecido.
zado em prensas de madeira confeccionadas
artesanalmente.
A Prensa
Fonte: Arquivo da família Da Hora. Depois de pronta, torrada, a farinha de
mandioca recebe dois destinos: divisão com
Após a retirada do excesso de água, a mas- familiares e ajudantes da farinhada; acon-
sa é transportada para o cocho de quebra onde dicionamento em sacos de nylon para venda
os blocos de goma são quebrados com marrete nas feiras locais. Durante muito tempo, a
de madeira no formato de pequenos grãos. guarda em grandes caixões de madeira era
a forma mais comum de armazenamento
da farinha a ser consumida pela família.
Preparo da peta
A Produção de Doce de Leite – e nos contou sua história e sua relação com
os doces. Relatou-nos que há mais de vinte
Dona Zilmar, uma conhecida produtora anos produz doces para comercialização. A
de diferentes tipos de doces, mostrou-nos o princípio, era apenas para amigos e familia-
preparo do doce de leite, enquanto seu auxi- res. Há oito anos, após o falecimento de um
liar habilidoso mexia o tacho de cobre com dos seus filhos, ela transformou esse prazer
o orgulho de quem já domina o preparo. As em trabalho. Nasceu então a ideia de trans-
frutas que utiliza na preparação dos doces formar sua casa em uma pequena fábrica,
são produzidas na propriedade. onde produz doces variados (de leite, buriti,
Misturando os ingredientes. Para o pre- jaca, laranja, goiaba, caju, maracujá, entre ou-
paro do doce de leite cremoso são necessá- tros), casadinhos, suspiros (convencional e de
rios: 10 litros de leite e 2 quilos de açúcar. café, este de sabor indescritível) e biscoitos.
Sobre o modo de misturar esses ingredien- Depois de mais de uma hora de conver-
tes, o funcionário nos explicou: sa, voltamos ao tacho onde estava sendo
feito o doce de leite cremoso. Para a nossa
Coloca dez litro de leite, dois quilos de açúcar. [...]
O leite é de Viçosa mesmo. [...] Aí coloca no fogo [a
surpresa, ainda estava sendo mexido pelo
lenha]. Eu vou mexer engrossar, só que não deixa funcionário da dona Zilmar, que esperava
encaroçar, tem que mexer até desmanchar tudo e dar o ponto. Ele nos explicou que o leite,
deixa descansar um pouquinho. É assim que eu gos- quando começa a ferver, tem que ser aba-
to de fazer. Assim no começo, vai ferver, vai botar nado para que não derrame do tacho. Daí,
massa, agora, coloca na frigideira fria. até o ponto, é um trabalho de paciência e de
muito cuidado para que o doce não grude
no fundo do tacho, tampouco derrame.
Depois de mais algum tempo, o funcio-
nário para de mexer o doce no tacho e arras-
ta-o para fora da boca do fogão a lenha. Vira-
se para nós e fala apontando para o doce:
Envasar, rotular e vender. Dona Zilmar ria das fartas mesas de doces, bolos e sucos
prepara os rótulos e as embalagens do doce de frutas da região oferecidos por dona Zil-
de leite, que será comercializado juntamen- mar; de petas, roscas e biscoitos oferecidos
te com os demais tipos de doce, ali mesmo, por dona Maria de Jesus; de rapadura tijolo
em uma pequena lojinha que fica ao lado ainda quente, prontinho para ir à forma, no
da fábrica de doces. engenho do senhor José Alberto. Sem dúvi-
Após presenciar tantas preparações e da, ficaram doces e saborosas lembranças
degustar tantas comidas serranas, fizemos de Viçosa do Ceará.
nossas despedidas de Viçosa com a memó-
O cajueiro é árvore nativa das Améri- processo produtivo, cujos saberes e práti-
cas, muito provável que seja originário do cas, já no início do século XX, eram de
Nordeste brasileiro. Se não o é, já nos apro- domínio de muitos círculos familiares
priamos dele; senão de direito, nos apro- piauienses. O conhecimento sempre foi
priamos de fato, pois explorá-lo é meio de transmitido pela oralidade, da prosa e do
vida, direito e dever dos habitantes dessa diálogo de mulheres da família e de ami-
terra. A paisagem demonstra essa verdade gas, na informalidade entre integrantes das
incontestável: ao cajueiro convém habitar diferentes gerações de famílias locais, inde-
em toda parte, de forma bela, imponente, pendentemente de condição social.
revelando seu traço vigilante, copas ora Sobre essa cultura e, mais especifica-
gigantes ora pequeninas, ambos com mil mente, sobre a cajuína piauiense, conheci-
braços que sempre parecem querer abraçar da Brasil afora não tanto pela degustação
quem dele se aproxima. Milhares de pessoas e pelo seu sabor, mas pelo imenso legado
se alimentam de seu fruto, a castanha, do de adoração impressa em prosa e verso, é
pedúnculo, do qual se elaboram o suco - na relatado aqui o processo de elaboração des-
forma comum e no formato cristalino que sa bebida, reconhecida por alguns como a
se designa de cajuína, de seu mel, doces e champanhe do Piauí.
outras preparações, todos riquíssimos em
ferro. A utilização das diferentes partes do A Produção de Caju no Piauí, entre
caju na alimentação humana e de animais os anos 2011 e 2012
integra o nosso cotidiano ameríndio desde
antes da chegada do colonizador europeu. A mais natural das plantações de cajuei-
Fruto nativo da região, o cultivo do caju ros no Piauí tem sofrido, entre os anos de
é, em geral, feito por aqueles que de alguma 2010 e 2012, os efeitos da estiagem prolon-
forma têm sua subsistência vinculada a essa gada, tendo como consequência, a maior
cultura, a qual dispensa a necessidade de queda na produção dos últimos cinco anos.
irrigação. Há diferentes tipos de cajueiro: A crise foi tamanha que, em 2012, terceiro
os mais comuns, imensos e que sobrevivem ano seguido de estiagem, perdeu-se grande
por décadas; há os de menor estatura, co- parte da safra. Nas palavras do técnico José
nhecidos como cajueiro-anão, dentre outras Lopes, da Empresa Brasileira de Pesquisa
variedades. Sobre a fruta em si, existem ca- Agropecuária – EMBRAPA, a flor do caju
jus doces e travosos, pequenos e grandes, de secou e não houve uma produção satisfa-
cor amarela ou vermelha. tória. Alguns produtores recuperaram um
A elaboração da cajuína iniciou-se no pouco do investimento com uma nova safra
século XIX. É a passagem do suco de caju de cajueiros recém-plantados. Na região, os
para um elemento clarificado, quando o agricultores utilizam pouco a irrigação –
açúcar da própria fruta é potencializado diante da característica resistência dessa
pelas técnicas de filtragem e fervura. Um cultura e dos escassos recursos hídricos – o
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 103
que deixa toda a lavoura quase que exclu- Em busca de produtores artesanais de
sivamente dependente das chuvas. cajuína, visitamos áreas rurais, as quais são
A seca do Nordeste é matéria anunciada habitadas por moradores que sobreviviam
por muitos meios. Mais uma vez, em face exclusivamente daquilo que se extraía da
da vilania do clima, o Sertão se reprime terra. Desde o ano de 2010, predominava a
diante de suas possibilidades e potenciali- desesperança, uma assombrosa insegurança
dades. Persiste a antiga, dolorosa e sensível em relação ao futuro, pois a cada inverno
representação da seca como um fantasma a chovia menos e a vida que se conhecia pa-
assombrar homens e mulheres. Longe das recia, a cada dia, impraticável.
estatísticas frias dos poderes estatais e da Além de nos sentirmos impotentes,
assistência de órgãos governamentais, o diante daquele quadro de insegurança e
agricultor e a produção de alimentos local de instabilidade econômica e social, co-
se ressentem, de fato, da falta de água e da meçamos a duvidar de que seríamos ca-
crueldade do clima com a ausência de pe- pazes de concluir, no prazo determinado,
ríodos chuvosos. Essa é mais uma prova de a tarefa de descrever o processo de fabri-
que a natureza age sob suas próprias regras, cação artesanal da cajuína. Lamenta uma
dobrando-se frente aos seus próprios pode- agricultora, cansada de tanta carestia: “não
res, apesar do conhecimento científico ter havia cajus, não se pode fazer cajuína, minha
elaborado, há muito tempo, técnicas e práti- filha!”. E acrescenta: “você precisa pelo menos
cas de superação da escassez hídrica nesses de um balde grande cheio de cajus bons para
períodos de estiagem. O povo do Sertão – fazer umas duas garrafas de cajuína. E não tem
faminto de comida e de assistência social e caju que dê nem meio balde!”. Essa mensagem
técnica do poder público – reconhece mais a se repetia entre as mulheres agricultoras
onipotência da natureza do que a do Estado. familiares, pois conheciam a bebida com
uma intimidade impressionante. Por onde
Em Busca da Cajuína... passávamos, nos lugares em que tivemos a
chance de conversar, fosse em Teresina, em
Finalmente, estávamos em campo para Campo Maior, em Valença, em Ipiranga
conhecer de perto a preparação da bebida do Piauí e nas demais cidades, o discurso
mais popular do Piauí. Deparamo-nos – se repetia, pois era verdadeiramente uma
confirmando aqueles primeiros dados téc- tristeza compartilhada.
nicos – com o cenário real e a triste sina do Em nossa última tentativa de encontrar
sertanejo: mais uma vez seca, pura e simples, um produtor de cajuína com uma quantida-
diante de nossos incrédulos olhos. Apesar de significativa de caju, recorremos aos téc-
de quatrocentos anos de vivência, a convi- nicos da Empresa de Assistência Técnica e
vência com este fenômeno climático ainda Extensão Rural – EMATER, que desenvol-
é motivo das tensões no interior nordestino. vem o Projeto Cajuína do Piauí: implantação
do pomar e aproveitamento do pedúnculo.
104 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE
Por meio desse projeto, os técnicos visam tivamente como atividade mais importan-
desenvolver ações que incluem os cuidados te. Com a morte de Domingos Mafrense,
básicos na produção do caju (implantação trinta de suas fazendas foram doadas à
do pomar desde as mudas de caju, passando Companhia de Jesus. Após a expulsão dos
pela colheita e higienização dos frutos até o padres jesuítas, em 1760, a administração
aproveitamento integral do fruto). Os pro- das terras passou para o domínio estatal,
fissionais da empresa agrícola, dessa forma, atingindo significativo crescimento.
buscaram informações junto às famílias Historicamente, a cidade foi fundada
produtoras de cajuína em todo o estado e pelo agrônomo Francisco Parentes, e se
observaram atentamente o processo tradi- inaugurou, inclusive, a primeira escola de
cional de produção da bebida. agronomia das Américas. Essa instituição
A partir dessa possibilidade, fixamos se destinava à educação de filhos de escra-
o nosso destino. A empresa nos havia in- vos, órfãos e libertos, segundo as prescri-
formado que uma de suas técnicas iria mi- ções da Lei de 28 de setembro de 1871. Em
nistrar um curso com o objetivo de formar 1897, o pequeno povoado, que se chamava
multiplicadores para toda a microrregião Colônia Rural de São Pedro de Alcântara,
de Floriano (distante 234 km da capital foi elevado à categoria de cidade, com seu
Teresina), o que nos dava pistas de que ali nome atual, em homenagem ao marechal
poderíamos vivenciar esse processo. Na Floriano Peixoto.
programação do curso, como proposta de Muitos e muitos anos se passaram até se
amenização do difícil acesso ao caju, além atingir a configuração atual do município.
da fabricação da cajuína, seriam propostas Dotada de novos ares – embora ainda lhe
atividades tendo em vista o aproveitamento falte, felizmente, todo o folclore urbano de
integral da polpa do fruto. cidade grande – não se pode negar o levan-
tar dos prédios e a presença de jovens vin-
A Cidade de Floriano dos de todas as partes do Piauí e do Brasil,
impulsionados pela chegada do campus da
Conhecida no estado como a Prince- Universidade Federal do Piauí - UFPI. A
sinha do Sul, segundo referências locais, saber, a Floriano de hoje alberga o campo
Floriano é uma cidade originária de qua- e a urbe, o saber popular e o acadêmico, o
tro antigas sesmarias, a maioria doada a velho e o novo, sintetizando o espírito des-
Domingos Afonso Mafrense, em 1676, ses dois mundos.
sendo ele o responsável pela implantação
das primeiras fazendas. Primeiro, fixou-se A Elaboração do Suco de Caju Cris-
como atividade econômica predominante talino – a Cajuína
o cultivo da cana-de-açúcar; posterior-
mente, elevou-se a hegemonia da pecuária O curso sobre cajuína realizou-se, por-
extensiva, que veio a se estabelecer defini- tanto, no Centro de Ensino São Francisco
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 105
de Assis, uma escola para famílias de agri- o processo e os saberes continuam prati-
cultores familiares, administrada por reli- camente iguais àqueles desenvolvidos há
giosos, situada na zona rural de Floriano. mais de um século.
Por conta das chuvas esparsas que caíram Agendamos a viagem para Floriano
por lá, em 2012, um pouco mais que nas ou- com a recomendação de Betinalva de
tras regiões do Piauí, ainda se contava com que “era preciso que passássemos pelo menos
uma pequena produção de cajus, suficiente dois dias”, embora o processo da cajuína,
para ministrar o curso com o objetivo de segundo a técnica, não pedisse um perí-
preparar essas famílias, denominadas mul- odo extenso, uma vez em que a feitura
tiplicadores, em matéria dos diversos usos deve começar e terminar no mesmo dia.
dessa fruta. A responsável pelo curso foi a Caso contrário, o suco de caju fermen-
técnica Teresinha Betinalva Lima de Gois, ta e se transforma em vinagre, bastante
que trabalha com a produção de cajuína acidificado, sendo reutilizado somente
há mais de trinta anos, que nos permitiu a para fazer vinho de caju. Ademais, ao se
nossa inserção no grupo, bem como o acom- chegar a Floriano, ter-se-ia que verificar
panhamento daquela atividade. e preparar tudo: filtros, varal, moedor,
Betinalva nos informou que os profissio- bacias etc. Atentamente, constatar que
nais da Empresa de Assistência Técnica e nada está faltando, antes de começar,
Extensão Rural – EMATER, por trabalha- para finalmente, no dia seguinte, começar
rem com a extensão rural, dedicam-se ao a colheita dos cajus bem cedo.
melhoramento e aproveitamento integral No dia marcado, saímos de Teresina às
conforme a safra de cada produto. Dentre cinco horas da manhã e seguimos em dire-
os vários produtos com os quais trabalham, ção a Floriano. Chegamos por volta das oito
figuram a soja, o sorgo (tipo de milho muito e meia e fomos direto para o local previsto
resistente à seca), o coco babaçu e o caju. para a realização do curso, onde os alunos
Quanto à cajuína, antes de elaborarem nos esperavam. Algumas pessoas diziam
o curso que hoje ministram, tiveram de re- que “havia poucos cajus nos pés e não sa-
alizar uma larga pesquisa junto às comuni- biam se o curso ia dar certo!”. Betinalva os
dades que produzem a bebida. Houve algu- tranquilizou e foi verificar a quantidade de
mas alterações que foram introduzidas no frutos existentes nas árvores. Ao retornar
curso e que envolvem o processo de fabri- do cajueiral, ela afirmou aos presentes: “Não
cação da cajuína: a substituição da cola de tem com que se preocupar, tem caju que sobra!
sapateiro por gelatina, a padronização das Vamos trabalhar”.
garrafas, todas transparentes e com volume A produção de cajus no Piauí inicia-se
aproximado de 500 milílitros, a necessi- anualmente entre os meses de setembro e ou-
dade do uso dos rótulos para identificar e tubro, quando ocorrem as primeiras chuvas
valorizar o produtor, além da aplicação do que indicam o fim do período de estiagem,
varal para secar as garrafas. Contudo, todo denominadas “chuvas do caju”. Tais chuvas,
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Depois de moer, é hora de tirar o travo misturar bem. Deixa-se o suco em repouso
do suco. É necessário fazer a suavização do por aproximadamente 15 minutos antes de
tanino, substância própria do fruto que pro- se realizar a filtragem. A prática de cortar
duz o seu gosto travoso característico. Anti- o ranço, aliada à quantidade de filtragens,
gamente, o “corte da água do caju” era feito bem como o tempo de fervura são fatores
com resina do próprio caju. Para fins de cla- determinantes da coloração da cajuína.
rificação, já foi, no passado, feito uso da cola Terminada a preparação do suco, rea-
de sapateiro. Betinalva explica que, durante liza-se a filtragem para retirada de quais-
as pesquisas desenvolvidas em parceria com quer impurezas que ainda possam existir.
a UFPI, descobriu-se que quando a barra de O suco é passado várias vezes pelos filtros
cola de sapateiro era dissolvida no suco de de algodão até que se obtenha a cor mais
caju, remanesciam resíduos tóxicos. Aos pou- clara possível. É nessa fase que, segundo
cos, portanto, conseguiram superar o uso da os participantes do curso, reina o segredo
cola, substituindo-a por gelatina sem sabor. da obtenção da cor, quando a coloração é
A gelatina industrializada é utilizada na definida conforme “a ciência e o conheci-
proporção de 0,2 gramas por litro de suco. mento de quem está produzindo a cajuína,
Depois de acrescentar a gelatina, deve-se por isso tem umas mais claras que outras.”
Filtragem do suco
110 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE
Engarrafamento do suco
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 111
Teologia pelo Instituto Cristão de Estudos Hermano José Maia Campos Filho
Contemporâneos, licenciada em Pedagogia
pela Universidade Metodista de São Paulo. Licenciado em Educação Física pela
Mestra e Doutora em Educação Brasileira Faculdade de Educação da Universidade
pelo Programa de Pós-Graduação em Edu- Federal do Ceará (UFC), Chef de Cozinha
cação da UFC. Italiana pelo Italian Culinary Institute for
E-mail: claudia.comunicacao@gmail.com Foreigners (ICIF), especialista em Gastro-
nomia pela Faculdade Católica do Ceará.
Cicero Antonio Mariano dos Santos Professor do curso de Bacharelado em Gas-
tronomia da UFC.
Bacharel em Engenharia Agronômica E-mail: hermano_jt@yahoo.com.br
pela Universidade Federal do Ceará, cam-
pus Cariri e aluno do Mestrado em Ento- Jorge Washington da Silva Frota
mologia da Universidade Federal de Viço-
sa. Foi bolsista de Iniciação Científica do Licenciado em Educação Física pela Fa-
Conselho Nacional de Desenvolvimento culdade de Educação da Universidade Fe-
Científico e Tecnológico (CNPQ) do Projeto deral do Ceará (UFC), Mestre em Educação
Práticas Alimentares Nordestinas: estudo Brasileira pelo Programa de Pós-Graduação
sobre alimentos tradicionais dos estados do em Educação da UFC. É membro do Corpo
Ceará e do Piauí, Projeto ALINE. de Bombeiros do estado do Ceará e professor
E-mail: anttony.ms@gmail.com da rede municipal de ensino de Fortaleza.
E-mail: jorgeetech@yahoo.com.br
Francisco José Alves de Aragão
Leopoldo Gondim Neto
Bacharel em Música pela Universida-
de Estadual do Ceará e aluno do curso de Graduado em Direito pela Universidade
Bacharelado em História da Universidade Federal do Ceará (UFC) e em Gastronomia
Federal do Ceará. Foi bolsista de Inicia- pela Faculdade de Turismo e Hotelaria do
ção Tecnológica e Industrial do Conselho Serviço Nacional de Aprendizagem Co-
Nacional de Desenvolvimento Científico e mercial (SENAC), com aperfeiçoamento
Tecnológico (CNPQ) do Projeto Práticas na Escola Cordon Bleu de Paris. Especia-
Alimentares Nordestinas: estudo sobre ali- lista em Gestão Pública e em Qualidade
mentos tradicionais dos estados do Ceará e dos Serviços de Alimentação pela Univer-
do Piauí, Projeto ALINE. sidade Estadual do Ceará (UECE), mestre
E-mail: zezearagao@gmail.com em Educação Brasileira pela Universidade
Federal do Ceará (UFC). Professor do curso
de Bacharelado em Gastronomia da UFC.
E-mail: leoggneto@hotmail.com
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