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Alimentos Tradicionais

do Nordeste:
Ceará e Piauí
Presidente da República
Dilma Vana Roussef
Ministro da Educação
José Henrique Paim Fernandes

Universidade Federal do Ceará – UFC


Reitor
Prof. Jesualdo Pereira Farias
Vice-Reitor
Prof. Henry de Holanda Campos

Editora UFC
Diretor e Editor
Prof. Antônio Cláudio Lima Guimarães
Conselho Editorial
Presidente
Prof. Antônio Cláudio Lima Guimarães
Conselheiros
Profa Adelaide Maria Gonçalves Pereira
Profa Angela Maria R. Mota de Gutiérrez
Prof. Gil de Aquino Farias
Prof. Italo Gurgel
Prof. José Edmar da Silva Ribeiro
José Arimatea Barros Bezerra
(Organizador)

Alimentos Tradicionais
do Nordeste:
Ceará e Piauí

Fortaleza
2014
Alimentos Tradicionais do Nordeste: Ceará e Piauí
© 2014 Copyright by José Arimatea Barros Bezerra [organizador]
Impresso no Brasil / Printed In Brazil
Todos os Direitos Reservados
Editora da Universidade Federal do Ceará – UFC
Av. da Universidade, 2932 – Benfica – Fortaleza – Ceará
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3366.7499 (Distribuição) 3366.7439 (Livraria)
Site: www.editora.ufc.br – E-mail: editora@ufc.br

Coordenação Editorial
Moacir Ribeiro da Silva

Revisão de Texto
Leonora Vale de Albuquerque

Normalização Bibliográfica – Normas da ABNT


Perpétua Socorro Tavares Guimarães

Programação Visual e Diagramação


Carlos Raoni Kachille Cidrão

Capa
Valdianio Araújo Macedo

Crédito das imagens da capa


José Lourenço Gonzaga (Xilogravura Lira Nordestina)

Catalogação na Fonte
Bibliotecária: Perpétua Socorro T. Guimarães CRB 3 801–98
Alimentos Tradicionais do Nordeste: Ceará e Piauí. José Arimatea Barros Bezerra
[organizador] et al... – Fortaleza: Edições UFC, 2014.
119 p.:il.
ISBN: 978-85-7282-622-8

1. Segurança alimentar e nutricional 2. Educação popular 3. Alimentos


do Nordeste – Ceará e Piauí. I. Bezerra, José Arimatea Barros. II. Titulo.

CDD: 363.8
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO............................................................................................. 7

AZEITE DE BABAÇU: Saberes Práticos e Usos Diversos


José Arimatea Barros Bezerra............................................................................................... 9

CULTURA DO MILHO: do Plantio ao Mugunzá Servido na Escola


Tiago Sampaio Bastos
Hermano José Maia Campos Filho
José Arimatea Barros Bezerra............................................................................................. 17

MUGUNZÁ E PAMONHA: Tradições do Milho e das Festas Juninas


José Arimatea Barros Bezerra............................................................................................. 25

O CHOURIÇO DA FAZENDA PEDRAS PRETAS, EM CANINDÉ – CEARÁ


Rodrigo Araújo Viriato
José Arimatea Barros Bezerra
Leopoldo Gondim Neto
Jorge Washington da Silva Frota......................................................................................... 33

O PEIXE ASSADO NA BRASA COM PIRÃO ESCALDADO: Tradição Alimentar


do Mar, na Praia da Caponga, Cascavel – Ceará
Beatriz Helena Peixoto Brandão
Alice Nayara dos Santos
Bruno Alves Gualberto
Ana Karoline de Oliveira Costa........................................................................................... 43

DAS TERRAS DE CARNAÚBAS AO SABOR DO SOL: a Carne de Sol de Campo


Maior – Piauí.
Alice Nayara dos Santos .................................................................................................... 57

“BOLO CAGÃO:” Feito Também com História de Vida


Rafaela dos Santos............................................................................................................ 65
MACIÇO DE BATURITÉ: dos Saberes do Bolo Pé de Moleque aos Sabores do Baião
de Fava
Ana Karine da Silveira Pinheiro
Anna Erika Ferreira Lima
Márcia Maria Leal de Medeiros
Patrícia Sobreira Holanda Costa
Rafaela Maria Temóteo de Lima ........................................................................................ 71

NA CASA DA MEMÓRIA: a Mandioca e a Farinhada no Crato – Ceará


Ariza Maria Rocha
Cicero Antonio Mariano dos Santos..................................................................................... 83

SABORES DE VIÇOSA DO CEARÁ: Tradições Alimentares da Serra da Ibiapaba


Adriana Camurça Pontes Siqueira
Claúdia Sales de Alcântara
Marlene Lopes Cidrack...................................................................................................... 93

A CAJUÍNA ARTESANAL DE FLORIANO, PIAUÍ


Samara Mendes Araújo Silva............................................................................................. 101

SOBRE OS AUTORES................................................................................................. 115


Apresentação
É indispensável iniciar com um alerta ao Essa pesquisa foi financiada pelo Con-
leitor em relação à natureza desta obra: não selho Nacional de Desenvolvimento Cien-
se trata de livro de receitas, tampouco de tífico e Tecnológico (CNPq) e Ministérios
conhecimentos acadêmicos sobre alimentos. da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCT),
Os relatos aqui apresentados buscam uma por meio do Edital nº 019/2010, direcionado
aproximação do conhecimento popular, mo- ao apoio a pesquisa em Tecnologias Sociais
vidos pelo desejo de registro de saberes prá- em Segurança Alimentar e Nutricional.
ticos sobre alimentos do Nordeste brasileiro. Obteve aprovação do Comitê de Ética em
E de onde vieram tais relatos? Trata-se de um Pesquisa da Universidade Federal do Ce-
dos produtos da Pesquisa Alimentos do Nordes- ará – COMEPE, Protocolo nº 284/11 e os
te, ALINE, que teve como norte a identificação dados que se relacionam ao discurso e às
de alimentos tradicionais, dos estados do Ceará imagens foram obtidos, dos colaboradores,
e Piauí, possíveis de serem recompostos como mediante Termo de Consentimento Livre e
potenciais de geração de segurança alimentar Esclarecido – TCLE.
e nutricional. Especificamente, objetivou: 1) Teve como instituição de execução a
Mapear alimentos tradicionais no limite es- Universidade Federal do Ceará, unidades
pacial dos estados do Ceará e Piauí; 2) Iden- acadêmicas Faculdade de Educação e Ins-
tificar, dentre os alimentos mapeados, aqueles tituto de Cultura e Arte, com pesquisadores
com possibilidades de serem apropriados em dos Grupos de Pesquisa Alimentação, Gos-
suas formas tradicionais, como instrumentos tos e Saberes (AGostoS) e Laboratório de
indutores de fortalecimento da agricultura fa- Gastronomia: ciência, cultura e arte. Foi de-
miliar e geração de renda em função de sua senvolvida por pesquisadores de quatro ins-
inserção em políticas públicas de alimentação tituições de ensino superior: Universidade
e nutrição, notadamente no Programa Nacio- Federal do Ceará, instituição de execução
nal de Alimentação Escolar – PNAE; 3) De- da pesquisa, Ciência e Tecnologia do Cea-
senvolver uma descrição de tais alimentos, os rá - IFCE, Campus Baturité; Universidade
mais significativos de cada lugar, constituindo Regional do Cariri - URCA e Universidade
um registro de saberes tradicionais, bem como Estadual do Piauí, UESPI.
técnicas e artefatos utilizados na sua produção, Os textos que compõem este livro re-
seus significados sociais e culturais e valores sultam, então, da consecução do objeti-
nutricionais; 4) Identificar as possibilidades, vo de número três supracitado, buscando
bem como os entraves burocráticos, políticos, descrever saberes, técnicas, fatos e arte-
educacionais e culturais relacionados à inserção fatos, bem como significados relaciona-
desses alimentos no PNAE. dos a uma dezena e meia de preparações
representativas das práticas alimentares dados levantados nos trabalhos de campo,
de regiões dos dois estados onde ocorreu libertando-se da tendência analítica acerca
a pesquisa. do que foi observado, presenciado e relata-
Do estado do Ceará, apresentam-se os do. A proposta de mapeamento tinha de se
seguintes alimentos: azeite de babaçu, mu- orientar pelo esforço de construção de um
gunzá, pamonha, chouriço, peixe assado lastro descritivo de práticas alimentares que
com pirão, baião de dois de fava, farinha de predominantemente têm ficado à margem
mandioca, tapioca, peta, rapadura, doce de dos registros escritos e das pesquisas aca-
leite, doce de banana, bolo pé de moleque. dêmicas. Assim, por um lado, o leitor en-
Do Piauí, constam Maria Isabel de carne contra textos fluentes, belos e sensíveis. Por
de sol e cajuína. outro, há alguns que expressam as dificul-
Contudo, há uma preparação que foge à dades dos pesquisadores na apreensão e no
regra de pertencimento à pesquisa, o bolo registro do que pesquisaram; todavia, não
“cagão”, originário do estado de Alagoas, deixam de ser relevantes frente ao propósito
que foi incluído a convite do organizador, de contribuir na salvaguarda de aspectos do
tendo em vista sua característica de valori- saber em foco.
zação do conhecimento popular e signifi- Finalmente, o desejo mais caro desta
cados referentes a essa preparação, critérios obra: a avaliação da mesma pelas pessoas
que orientaram a seleção dos demais textos com as quais tanto se aprendeu e que, de
que compõem o livro. forma gentil, compartilharam seus saberes,
E é sobre as características dos textos, ensinando, a todos os pesquisadores envol-
que há outro alerta: as limitações dos rela- vidos, não somente lições sobre alimentos
tos, que estão diretamente relacionadas com do Nordeste, mas aprendizados sobre ge-
a representação adequada do saber popular nerosidade, desprendimento, educação e o
por pesquisadores acadêmicos, das quais jeito simples e acolhedor do nordestino inte-
se pode destacar pelo menos duas. Apesar riorano. Os sinceros agradecimentos a elas.
de todos os cuidados tomados pelo grupo,
predominou a dificuldade de o pesquisa- Fortaleza, Ceará, dezembro de 2013.
dor entender e apreender o saber presente
nas práticas alimentares cotidianas. Essa Prof. José Arimatea Barros Bezerra
dificuldade se acentua com a precária e até
mesmo preconceituosa representação do
pesquisador, oriundo de ambientes urbanos,
em relação às práticas alimentares de outros
espaços, notadamente, do sertão.
A segunda limitação dos autores, que
não se parta da primeira, decorre da difi-
culdade de escrita, de registro descritivo dos
AZEITE DE BABAÇU:
Saberes Práticos e Usos Diversos
José Arimatea Barros Bezerra

A primeira lembrança do azeite de coco (babaçu) me


remete ao cheiro da comida dos serranos. Algumas
poucas vezes subi a serra, ainda menino, acompa-
nhando meu pai, na garupa de um cavalo que ele con-
duzia, tangendo alguns burros devidamente arreados
com cangalhas, surrões e jacás. Era a viagem à Baixa
Grande, localizada em cima da serra, a cerca de 8
quilômetros de onde minha família morava. Íamos lá
comprar farinha e rapadura para abastecimento da fa-
mília por alguns meses. Nessa época, comia-se muita
farinha e muita rapadura também, dois alimentos que
geralmente estavam juntos logo na primeira refeição
do dia, que se chamava de quebra-jejum. Ali, na Bai-
xa Grande, sentia o cheiro das comidas dos serranos
sendo preparadas com azeite de coco e ansiava por
experimentar. E experimentei essa comida, poucas
vezes, porque sempre voltávamos ao sertão antes do
almoço local. Era feijão no azeite de coco com fari-
nha. O cheiro do azeite, presente na comida dos ser-
ranos, se misturava, lembro bem, ao odor adocicado
dos engenhos de cana. Além de farinha e rapadura,
quando a viagem acontecia em tempo de moagem,
trazíamos batida, alfenim e cabaças contendo mel
de cana, garapa doce e garapa doida. (Memórias do
Autor, primeiros anos da década de 1970).
10 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

Essa região serrana, que compõe o cená- d’água, elegeu-se a manufatura do azeite de
rio das recordações acima, é composta pelas coco para descrever.
localidades de Baixa Grande, Palmeiras, Ca- Apresento a seguir um relato do saber fazer
choeira, Buriti dos Braz, Cidade dos Cocos, da senhora Ana Lúcia Gomes Carneiro, mo-
Sítio Araras, Baixa da Cruz, Uruçu, Cafun- radora da localidade de Cachoeira, que possui
dó, Serra do Meio. Os agricultores familiares vasta experiência em “tirar” azeite de coco
que ali residem produzem feijão, milho, fari- babaçu. Relato obtido a partir de observação,
nha de mandioca, macaxeira, frutas (manga, fotografias e entrevista. Minha aproximação
tangerina, laranja) e azeite de coco, como é e contato inicial com essa senhora foram feitos
conhecido localmente o óleo de babaçu na re- com a ajuda de Cícera Silva Costa Batista, a
gião, designação que foi mantida neste relato. Cicinha, que, em companhia de sua filha Ma-
Na Baixa Grande, até idos dos anos de 1970, ria Jarlene Costa da Silva, foram minhas guias
predominavam os plantios de cana-de-açú- para chegar à localidade e poder adentrar a
car, da qual produziam rapadura. casa de dona Lúcia, notadamente, chegar aos
Região localizada no município de Ipa- espaços específicos de tirar o óleo, que são a
poranga, cujo território abrange sertão e cozinha e o quintal, lugares cujo acesso não é
serra. Trata-se da monumental Serra da facilitado a homens de fora.
Ibiapaba, conhecida na região como Serra
Grande, que estabelece limites entre os es- A Manufatura do Azeite de Babaçu
tados do Ceará e do Piauí.
Ipaporanga pertence à Mesorregião dos O processo observado, que demorou cerca
Sertões Cearenses e à Microrregião Sertão de oito horas, se inicia com a coleta do coco
de Crateús, no limite com a Serra da Ibia- babaçu (Orbignya Phalerata), também conhe-
paba, distante 375 km de Fortaleza. Ocupa cido como coco de macaco, que é feita nas
uma área de 710,990 km²; possui 11.335 encostas dos morros ou boqueirões, terrenos
habitantes e IDH 0,609, segundo dados do livres, onde as “taperas” (cachos de coco) são
censo IBGE/2010. Foi distrito do município derrubadas das palmeiras e os cocos recolhi-
de Nova Russas, do
qual se emancipou
em 18 de setembro
de 1987. Dessa re-
gião produtora de
alimentos, possui-
d o r a d e u m r ic o
manancial de água
doce cristalina que
jorra de fontes co-
nhecidas como olhos

Folhas, tronco, taperas e cocos


A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 11

dos. Cada tapera contém cerca de 250 cocos Após a quebra do coco e separação de
que, em geral, são transportados para casa, todas as suas partes que têm utilidades di-
com casca ou quebrados no local de coleta. versas, ocorre a torragem das amêndoas,
A quebra do coco é realizada utilizando uma atividade realizada em uma panela de
uma foice (algumas quebradeiras de coco ferro, no fogão a lenha. Necessita que se fi-
usam um machado) e um cacete (pedaço de que mexendo, do início ao final do processo,
madeira resistente com cerca de 50 cm de para que sejam torradas por igual.
comprimento). Nessa fase, retira-se: a casca Todas as operações de manufatura do
ou “carrasco” (Epicarpo, camada externa e óleo, notadamente a apuração, são realiza-
fibrosa), a entrecasca que é uma massa, cha- das evitando-se a presença de certas pessoas,
mada de “pó” (Mesocarpo, camada abaixo cuja presença pode “botar a perder a feitu-
do epicarpo, rica em amido), chegando ao ra”, efeito que se manifestaria com a fala e/
Endocarpo (corpo do coco no qual se alojam ou com a presença de tais pessoas. Isso sig-
as amêndoas - chamadas localmente de “ba- nifica que tirar óleo de coco tem “ciência”.
gens”), do qual se obtém carvão vegetal. E, Feita a torragem, é hora de pilar as amên-
finalmente, as amêndoas, cuja ocorrência, doas. Trata-se de uma ação realizada em um
nessa região, é de duas a cinco por fruto; têm pilão de madeira, pela qual as amêndoas
coloração branca e são recobertas por uma são amolecidas e formam uma pasta. Está
película de cor acastanhada. no ponto quando a massa começa a soltar
do pilão e endurecer quando se acrescenta
um pouco de água.

Pilagem das amêndoas


A quebra do coco
Em seguida, ocorre
o cozimento da massa
(amêndoas pisadas) em
água. Na proporção de
três litros de massa para
quatro litros de água, leva
ao fogo as amêndoas pisa-

Torragem das amêndoas


12 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

das. Cozinha até a água secar, momento em que


o óleo sobe totalmente ficando a parte sólida,
chamada de borra, no fundo da panela.
Cozida a massa, inicia-se o processo de
apuração do azeite que deve ser fervido até
secar todo e qualquer resquício de água que
ainda possa restar após a retirada do óleo
feita no momento do cozimento. Durante a
fervura, vez por outra, dona Lúcia toma pe-
Cozimento das amêndoas torradas e piladas
quenas quantidades do óleo e coloca sobre a
chama; se “chiar”, ela afirma, significa que
ainda tem água e o processo continua até
não haver mais água, ou seja, até não chiar
mais. Após isso, retira o óleo, deixando a
borra no fundo da panela.
Para a retirada total do óleo da borra,
adiciona alguma quantidade de água à Apuração do azeite

borra para aproveitar o que ficou de óleo


junto à borra. Apanha o óleo por cima da
água, ferve novamente, fazendo o teste do
chiado. Junta o azeite com aquele obtido
no final da primeira apuração. É uma ação
de aproveitamento total.
Para obter o apuro final, o azeite é
novamente fervido, testando uma vez
mais, a presença de água. Se a água não
for totalmente retirada, o azeite tem me-
nor duração e rança com mais facilidade. Azeite apurado

Quando começa a “pipocar” (ciência!),


ou seja, o azeite começa a emitir um ba-
rulho seco de explosão das borbulhas da
fervura, significa que está totalmente puro
da presença de água. Terminado o apuro,
retira o azeite da panela.
Na etapa final do processo, o envasa-
mento, são utilizadas preferencialmente
garrafas de vidro, que devem estar limpas e
Azeite cru (à esquerda) e azeite torrado (à direita)
totalmente secas.
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 13

Processo de Retirada do Azeite Cru Sua casa, situada no limite frontal do sítio
da família, é cercada frontalmente por uma
Não é necessário torrar, nem pisar as amên- cerca de faxina (estilo pau a pique) e as laterais
doas, pois devem ser moídas cruas. Essa mo- e fundos por cerca de arame farpado. Nesse
agem geralmente é feita em forrageiras, que espaço, são cultivados: mandioca, milho, fei-
são máquinas de moer capim, milho e forra- jão, limão, manga, ata, banana; ervas medi-
gem para o gado e criações. Após a moagem, cinais como canela brava e menta; pimentão,
acrescenta água quente à massa resultante, na cebolinha, coentro e pimenta de cheiro. Cria
proporção de mais ou menos quatro litros de galinha, capote, peru e porco, sendo esse úl-
água para um quilo de amêndoas. Deixa em timo somente para consumo familiar, o que é
descanso até o dia seguinte, momento em que feito em um chiqueiro distante da casa.
retira o óleo que “deitou” por cima da água. Há uma cisterna de placas construída por
Apura o óleo conforme o processo descrito aci- um programa de abastecimento d’água do se-
ma. A massa fibrosa que resulta da moagem miárido, para captação de água da chuva; água
é utilizada para alimentar animais. encanada proveniente de uma fonte, chamada
de olho d’água, que abastece toda a comunida-
Saberes Práticos e Múltiplos Usos de. A pressão da vazão e a altitude dessa fonte
do Babaçu lançam a água em uma caixa d’água coletiva
que a distribui para as casas da localidade.
Dona Lúcia aprendeu a tirar óleo de coco,
ou azeite de coco, com sua mãe que aprendeu
com sua avó que, por sua vez, foi ensinada
pela bisavó. Trata-se de um conhecimento
especializado, de domínio das mulheres que,
nas áreas de grande produção de babaçu, que
abrange os estados do Piauí, Maranhão e To-
cantins, são conhecidas como quebradeiras
de coco. Um saber construído pela experiên-
cia, predominantemente racional, em termos
Senhora Ana Lúcia Gomes Carneiro
de ações gerais de extração do azeite, porém
Dona Lúcia é uma dona de casa que reside marcado por atitudes e comportamentos
na localidade de Cachoeira. Tem quatro fi- místicos em sua execução.
lhos: uma moça que mora em Fortaleza com Cinzas, pequenos pedaços de carvão e
parentes; um filho rapaz, Antônio Hélio, que folhas verdes de algumas plantas, vez por
completou 18 anos e, na época, estava com outra estão envolvidos no processo, como
planos de mudar para Fortaleza onde traba- formas de prevenção contra a influência preju-
lharia na área de construção civil e dois me- dicial de pessoas, cuja presença pode estragar
ninos, Leandro e Dione, que são estudantes. o processo de tirar o azeite. É a “ciência” do
14 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

fazer, da qual não se fala, pelo menos com Da borra, que resulta da apuração
estranhos e suspeitos de terem “sangue ruim”. do óleo, elabora-se a farofa de farinha
A cultura do babaçu, nas localidades de mandioca, acrescida de rapadura ou
onde ela existe, é aproveitada de forma in- açúcar. Com o óleo ainda são feitos se-
tegral. Possui uma vinculação sentimental quilhos, que na região do Cariri cearense,
e está presente em diversos aspectos da vida são servidos nas “Festas de renovação”.
material dessa população: no alimento, na Os gongos, larvas que se constituem como
moradia, em maneiras diversas de enfrentar pragas que afetam a produção da amên-
o cotidiano e de interpretar o mundo. doa de babaçu, se transformam em ingre-
O azeite de coco é usado localmente em dientes saborosos, que depois de fritos são
diferentes preparações culinárias: carnes, consumidos em deliciosa farofa.
feijão, arroz, bruacas, dentre outras, e fri- Da casca do coco (epicarpo, casca, ou
turas em geral, assim como o leite de coco. “carrasco”) se manufatura um tipo de carvão
Para fazer a bruaca, são utilizados os seguin- vegetal de alto valor calórico. Em algumas
tes ingredientes: farinha de milho ou de trigo regiões é também matéria-prima de artesa-
(sem fermento), água ou leite, açúcar ou sal e nato. Das folhas, ou palhas, são feitas cober-
óleo de coco. Misturar a farinha com a água tura de casas e abrigos para animais; cestos,
ou leite até obter a consistência de bolo de urus (balaios), abanos, surrões e esteiras. Até
frigideira; acrescentar açúcar ou sal e fritar. meados da década de 1970, predominavam

Feijão, arroz, carne e bruaca (à direita) preparados com óleo de babaçu

Uru e carvão
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 15

nessa região do Ceará as casas cobertas de cos, que lhes servirão de alimento. O galo,
palha, sendo algumas construídas com pa- sempre atento, fica na espreita e impede que
lha de babaçu, inclusive as paredes. os capotes se aproximem das galinhas.
O mesocarpo (entrecasca ou pó) tem uti- Dona Lúcia conta que, um certo dia, es-
lização medicinal: unguentos contra efeitos tavam ela e algumas de suas vizinhas que-
de picadas de insetos; como coagulante; brando coco em seu quintal. Movidas por
contra gastrite e outros males que afetam uma conversa boa, entremeada pelo barulho
o estômago. Sobre esse uso do pó do baba- da pancada do porrete sobre o coco, tudo
çu, dona Lúcia relatou uma emblemática corria normalmente. Contudo, durante um
história, descrita em seguida. desses golpes, uma lasca da casca do coco
A quebra do coco, bem como a pilagem foi arremessada ao longe atingindo a testa
das amêndoas são atividades realizadas de um dos meninos que estavam por perto.
no quintal das casas, debaixo de pequenos Concomitantemente ao grito do menino,
alpendres, mangueiras. Um quintal bem o sangue esguichou através do ferimento.
varrido, coco colhido, foice afiada, pedra Todas correram para acudi-lo. Todavia, o
de amolar, um porrete resistente compõem garoto continuava a sangrar. O que faze-
parte do cenário onde ocorrem essas duas mos? Será que o menino vai morrer? Vamos
etapas da extração do azeite. Outra parte chamar seu Zé Agostim? Eram as perguntas
comporta a assistência: meninos, meninas, que faziam umas as outras. Seu Zé Agos-
cachorros, gatos, pintos, galinhas, capotes tim era um conhecido e destacado rezador
e o galo. Meninos e meninas brincam no da região. Então, dona Lúcia lembrou-se
local escolhido para a quebra do coco, ou que o pó do coco é indicado para estancar
simplesmente quedam de cócoras espiando sangue. Deitaram o menino ali mesmo no
as mães em seus golpes perfeitos de porrete chão, esfarelaram a massa do mesocarpo
contra o coco, posto cuidadosamente so- do coco, e aplicaram em cima do ferimen-
bra a lâmina da foice. Com no máximo três to fazendo pressão. Em poucos minutos, a
golpes, um principal e outros dois comple- sangria estancou.
mentares, surgem nas mãos das mulheres as Ainda sobre a relação do pó com a cura
amêndoas produzidas pela maravilhosa pal- de enfermidades, ele é utilizado como re-
meira genuinamente brasileira. Apesar das médio para gastrite e outros males do es-
advertências para sair de perto, lá permane- tômago e intestino, seguindo-se a seguinte
cem os meninos. Desencadeado o processo, composição: três colheres de sopa de pó
os animais se agitam e animam-se, princi- diluída em um litro de água. Deixar des-
palmente as galinhas, os pintos e os capo- cansar por três dias, após os quais começa
tes, pois para eles aquela movimentação no a tomar uma xícara (tipo café) três vezes
quintal é sinal de que haverá fragmentos ao dia. É usado ainda, segundo Raimundo
de amêndoa e de massa, gongos e outros Domingos, morador local, em ferroada de
minúsculos insetos que acompanham os co- lacraia, abelha e maribondo, aplicando-se
16 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

sobre o local da ferroada um unguento


feito de pó de babaçu e banha de galinha.
A massa da amêndoa que resulta do pro-
cessamento do azeite cru, ou seja, aquele que
ocorre com ajuda de uma máquina de moer
e não é torrado, é utilizada como alimento
de animais como porcos, galinhas, capotes,
perus, sendo considerada como mais nutritiva
do que o milho.
Com o óleo, cozido ou cru, é feito sabão.
Tem ainda utilização cosmética, notadamen-
te para os cabelos. Segundo Dona Lúcia,

antigamente, muita gente usava no cabelo, mas hoje


em dia não quer mais. Botava um pouquinho de óleo
de coco em um vidro, vidro de desodorante, botava
perfume e ficava usando no cabelo. Minha mãe usa-
va muito. Diziam que era para o cabelo ficar melhor
de pentear e proteger a raiz.

Ainda me lembro do cheiro do azeite de coco (de


babaçu) quando eu era criança. Essa lembrança, de
imediato, não me remete a essa ou aquela comida
dos serranos preparada com o azeite, porém aos
cabelos das mulheres da serra, das serranas, ao
passarem pela casa de meus pais, localizada no pé
da serra, em suas viagens ao sertão. Cabelos que
brilhavam sob a luz do sol, de aparência sempre
molhada, diferente da aparência dos cabelos das
mulheres que eu estava acostumado a ver em casa e
nos arredores de onde morava. E vinha a pergunta:
por que elas usam azeite no cabelo? Para ficarem
bonitas, para tratar e deixar o cabelo forte, respon-
diam-me os adultos. E minha imaginação infantil
ia longe, pensando muitas coisas sobre aqueles ca-
belos: será que é fácil de lavar? Será que dá formiga?
Por que somente as serranas usam? (Memórias do
Autor, primeiros anos da década de 1970).
CULTURA DO MILHO:
do Plantio ao Mugunzá Servido na Escola
Tiago Sampaio Bastos
Hermano José Maia Campos Filho
José Arimatea Barros Bezerra

Oi pisa o milho
Penerô xerém
Oi pisa o milho
Penerô xerém
Eu não vou criar galinha
Pra dá pinto pra ninguém

Na minha terra dá de tudo que plantar


O Brasil dá tanta coisa que eu nem posso decorar
Dona Chiquinha bota o milho pra pilar
Pro angú, pra canjiquinha, pro xerém, pro mugunzá
Só passa fome quem não sabe trabalhar
Essa vida é muito boa pra quem sabe aproveitar
Pego na peneira, me dano a saculejá
De um lado fica o xerém de outro sai o fubá
Saculeja, saculeja, saculeja
Penerô xerém
Saculeja, saculeja, saculeja ja (repetir)
(Música: “Penerô”, de Luiz Gonzaga)
18 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

A presente pesquisa, fruto do Projeto ALI- do couro” por conta da utilização do couro
NE, aconteceu no Sertão dos Inhamuns, re- do gado como matéria-prima para a maior
gião cearense que abrange uma área de apro- parte dos utensílios:
ximadamente 30.795,60 km². É composta por
De couro era a porta das cabanas, o rude leito
20 municípios: Aiuaba, Arneiroz, Crateús, applicado ao chão duro, e mais tarde a cama
Hidrolândia, Independência, Ipaporanga, para os partos; de couro todas as cordas, a
Ipu, Nova Russas, Novo Oriente, Parambu, borracha para carregar água, o mocó ou al-
Pires Ferreira, Quiterianópolis, Santa Qui- forje para levar comida, a maca para guardar
téria, Tamboril, Tauá, Ararendá, Catunda, roupa, a mochila para milhar cavallo, a peia
Ipueiras, Monsenhor Tabosa e Poranga. para prende-lo em viagem, as bainhas de faca,
Segundo dados do IBGE referentes ao ano as broacas e surrões, a roupa de entrar no mat-
to, os banguês para curtume ou para apurar
de 2010, tem população total estimada de
sal; para os açudes, o material de aterro era
524.175 habitantes, dos quais 235.562 vivem
levado em couros puxados por juntas de bois
na área rural, o que corresponde a 44,94% do que calcavam a terra com seu peso; em couro
total. Reúne 45.145 agricultores familiares, pisava-se o tabaco para o nariz. (1934, p. 143).
3.649 famílias assentadas, 12 comunidades
quilombolas e uma comunidade indígena. Os sábios nordestinos locais ainda cha-
Os Sertões de Crateús, subárea do Sertão mam Crateús com a denominação original
dos Inhamuns, recebe a designação ampla do de “Piranhas”. No século XIX, a região ain-
nome do município que nela mais se desta- da pertencia ao Piauí e recebeu esse nome
ca, Crateús. Nessa subárea, foram tomados em referência à abundância de peixes na
como espaços de estudo da cultura do mi- região. Posteriormente, passa a ser chama-
lho no estado do Ceará, especificamente os da de Príncipe Imperial e, no ano de 1880,
municípios de Novo Oriente e Ipaporanga. é anexada ao território do Ceará. De fato,
O topônimo “Crateús” vem do tupi ou é mais apropriado falar em troca. O Ceará
tapuia, podendo significar cará (batata) e cedeu ao Piauí o município de Amarração,
teú (lagarto conhecido também como tejo) atual Luís Correia e, em troca, o Piauí ofere-
ou ainda de kra (seco) mais té, kraté (coisa ceu dois municípios: Príncipe Imperial, atual
seca ou lugar seco) e (muito frequente), signi- Crateús, e Pelo Sinal, atual Independência.
ficando “lugar muito seco” ou ainda o nome Nessa região, o consumo do milho está
da tribo indígena que habitava a região: ka- presente nas práticas alimentares, seja in
rati, karatús ou karatis e us (povo ou tribo). natura, seja em preparações como canjica
É região de muitas histórias e que se ba- (doce e salgada), pamonha (doce e salgada),
nha com as águas do rio Poti, foi explora- pão de milho e mugunzá etc. Neste texto, os
da e dominada pelos vaqueiros do criatório pesquisadores do Projeto ALINE relatam
de gado da Casa da Torre, fundando o que sobre o cultivo do milho e a forma de prepa-
Capistrano de Abreu, no livro Capítulos de ração do mugunzá, servido na alimentação
História Colonial, denominou como “época escolar do município de Novo Oriente.
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 19

O Milho: Plantio, Colheita, Arma- lado poente (oeste). Formam-se dois grupos,
zenagem e Beneficiamento sendo que um grupo segue pelo lado norte
outro pelo sul, encontrando-se no limite do
No semiárido nordestino predomina nascente (leste). Caso a queimada não fi-
o cultivo do milho por meio da cultura de que a contento, fazem-se as coivaras; isto é,
sequeiro, de roças, que dependem da regu- amontoam-se as sobras que são queimadas
laridade da estação chuvosa, denominada isoladamente. Por fim, o roçado é cercado
regionalmente como “inverno”. O plantio para proteger da investida de animais.
do milho ocorre no início dessa estação, que Nessa realidade de clima e de práticas de
geralmente se inicia no mês de janeiro e se es- cultivo, encontra-se Novo Oriente, um mu-
tende até maio ou junho. Inverno que às vezes nicípio que se destaca, na subárea de Cra-
tarda, mas nem sempre falha, seja somente teús, pela atuação de produtores familiares
com nuvens ou com trovoadas. Representa de milho, que, de forma dinâmica e criativa,
água e vida. É a época que muda as feições e através de cooperativa e sindicato de traba-
refeições dos sertanejos, trazendo felicidade lhadores rurais, tornaram-se fornecedores
e sorrisos em rostos marcados pelo sol, pelo do Programa Nacional de Alimentação Es-
ar seco da caatinga e, nesses momentos, tam- colar - PNAE. Dessa integração, produção
bém pela satisfação da barriga cheia. agrícola familiar e alimentação escolar, o
A roça começa a ser preparada a partir mugunzá, readaptado aos gostos e prefe-
de agosto, com a derrubada da mata, que rências de crianças e adolescentes, passou
se chama broca, retirando-se e reservando a ser servido nas escolas, sendo apreciado
a madeira necessária ao cercado em volta por 95% dos alunos, conforme indicaram os
do roçado. Para a queimada, que ocorre ge- resultados de testes de aceitabilidade.
ralmente até novembro, fazem-se os aceiros, A agricultora Maria Luiza de Macêdo,
termo que designa contrafogo na linguagem Presidenta da Cooperativa Agropecuária
sertaneja; ou seja, uma limpeza total em vol- dos Pequenos e Médios Produtores de Novo
ta da broca, numa faixa de cerca de cinco Oriente - COOPENOL e do Sindicato dos
metros para evitar que o fogo se propague Trabalhadores Rurais daquele município,
além dos limites do roçado. Queimar um afirma que, antigamente,
roçado, melhor dizendo, “tocar fogo no ro-
a plantação do milho era feita na enxada: colocava
çado” é uma operação bem planejada que uma corda, riscava o chão, depois uma pessoa ca-
deve considerar: o horário do dia, sempre vava a cova, e outra pessoa botava o milho dentro
após a metade da tarde, nunca pela ma- da cova e ia plantando. Método utilizado até o final
nhã ou ao anoitecer, as condições de vento da década de 1990. Depois vieram as matracas, as
e pessoal. É uma atividade coletiva, para plantadeiras. Até o ano 2000, praticamente não
a qual se organiza um grupo de homens havia agricultor que colhesse mais de 100 sacas de
que, munidos de fachos acesos, começam milho. Hoje isso é muito comum.

a atear fogo pela parte da roça que fica no


20 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

Essa forma de preparação da terra para prefeitura, por meio de contrato de comoda-
o plantio, na enxada, ainda é predominante to. Depois de entregues no depósito, que fica
entre os agricultores familiares dessa região. nesse galpão, os grãos são despejados em um
A colheita dessa cultura acontece cerca de elevador elétrico que o conduz à máquina de
90 dias após o plantio, dependendo do ter- pré-limpeza, conforme fotos abaixo.
reno, da regularidade das chuvas e da qua- Após a pré-limpeza, o milho desce por
lidade das sementes. Contudo, o consumo uma tubulação e cai em outro elevador, se-
do milho se inicia logo após os grãos atingi- guindo parcialmente limpo para a segunda
rem o início da maturidade; é o milho verde máquina, chamada de canjiqueira.
que se come cozido ou assado. Quando fica A “máquina canjiqueira” prepara o mi-
em condições de ser ralado, é o ingrediente lho que será utilizado na feitura do mugun-
principal da pamonha, canjica e do pão de zá que compõe o cardápio das escolas da
milho também conhecido como cuscuz. rede municipal de Novo Oriente. Nessa fase,
A colheita principal é feita quando o grão são retirados o “olho” e a casca dos grãos,
está seco. Em seguida, é empaiolado, ou seja, resultando o canjicado e o farelo, sendo esse
guardam-se as espigas (grão, palha e sabugo) último aproveitado como ração animal. Em
em paióis. Ou então é inicialmente benefi- média, são beneficiadas 800 sacas de 60 kg
ciado, isto é, retirado da palha, debulhado de milho por ano.
e armazenado em recipientes lacrados com
cera de abelha, o que evita a entrada de ar
e proliferação de pragas, notadamente o
gorgulho e o envelhecimento pelo efeito da
combinação calor e ar.
Na realidade atual de Novo Oriente, a
armazenagem do milho é feita em galpão Elevador (à esquerda) que conduz o milho à má-
de armazenamento/beneficiamento, cedido quina de pré-limpeza do milho (à direita)
pela prefeitura municipal, sob a tutela da
COOPENOL. Alguns produtores fazem
o armazenamento do milho em tambores
em suas próprias casas e, aproximadamen-
te, uma vez por mês, entregam-no à coo-
perativa na quantidade necessária para o
beneficiamento, evitando que se estrague.
Segundo a presidenta da cooperativa, é exi-
gido que o milho seja entregue em grãos,
livres de resíduos e impurezas.
O beneficiamento do milho ocorre num
galpão, utilizando-se máquinas cedidas pela
Processo de pré-limpeza do milho
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 21

Máquina “canjiqueira”, milho “canjicando” e milho separado do farelo (“olho do milho”)

O Mugunzá

Escola de Ensino Básico Dr. Antônio Eufrasino Neto

A Engenhosa Adaptação do Mugunzá à


Alimentação Escolar de Novo Oriente

Desde o ano de 2009, o mugunzá integra Rurais, Companhia Nacional de Abasteci-


o cardápio da alimentação escolar do mu- mento - CONAB e Prefeitura Municipal de
nicípio, por meio de parceria entre a CO- Novo Oriente, com amparo no Programa
OPENOL e Sindicato dos Trabalhadores Nacional de Alimentação Escolar - PNAE.
22 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

O mugunzá faz parte da cultura alimen- quando são colocados de “molho”, cada um
tar da região. A sua inserção no cardápio em recipientes diferentes (bacias plásticas),
das escolas municipais, com comprovada isto é, imersos em água para amolecerem,
aceitação pelos alunos, representa uma ex- permanecendo nesse estado durante a noite,
periência exitosa de inclusão de alimentos com a finalidade de facilitar o cozimento.
da agricultura familiar no PNAE. Essa in- Na manhã do dia seguinte, dia da feitura
clusão é exigência da lei nº 11.947/2009, que do Mugunzá, o milho canjicado e o feijão
dispõe sobre o atendimento da alimentação de corda são retirados do “molho” e lavados
escolar. Representa ainda uma engenhosa em duas águas, com o objetivo de deixá-los
adaptação aos gostos alimentares das crian- higienizados para o cozimento. Em segui-
ças e adolescentes das escolas municipais e à da, são colocados para cozinhar juntamente
praticidade necessária à operacionalização com os temperos (tomate, cheiro-verde, ce-
de um serviço de alimentação coletiva. bola e sal), em panelas de pressão diferentes,
Segundo Lourdirene Melo Catunda, e em nova água (terceira água) para iniciar
Diretora da Escola de Ensino Básico Dr. o processo de cozimento. Os temperos são
Antônio Eufrasino Neto, escola municipal processados para amenizar a recusa dos alu-
de Novo Oriente, o mugunzá preparado nos em relação a verduras e legumes.
nas escolas e servido aos alunos tem como Na terceira água, acrescentam-se os tem-
principais ingredientes o milho (canjicado) peros (tomate, cheiro-verde, cebola e sal) ao
e feijão de corda, os quais chegam às escolas milho e ao feijão, colocando-os para cozi-
municipais de Novo Oriente via Secretaria nhar em panelas distintas. Em outra panela
Municipal de Educação. Esses dois gêneros cozinha-se a carne de sol picada acrescida
ficam armazenados em recipientes fechados dos mesmos temperos. Após o cozimento
até a noite anterior à feitura do Mugunzá, desses três ingredientes básicos, juntam-se to-

Parte da feitura do Mugunzá; aluno consumindo a preparação


A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 23

dos em uma única panela, acrescentando-se ra familiar: carne de carneiro, queijo coalho,
linguiça fatiada e levando ao fogo por mais carne bovina, feijão, mamão, galinha caipira
trinta minutos. O tempo total da preparação e ovo. Ademais, o cheiro-verde, composto de
é aproximadamente de duas horas e meia. coentro e cebolinha, utilizado na alimentação
Essa forma de preparação do mugunzá escolar, é produzido na horta da escola, cujos
difere, em alguns aspectos, do cozimento e cuidados ficam sob o encargo de grupos de
de temperos, daquela utilizada por gerações alunos com a supervisão de um professor,
passadas. Contudo, permanecem os insumos uma atividade que desenvolvem em contra-
básicos: milho amarelo e feijão de corda. turno ao de suas aulas.
Além do milho e do feijão, outros gê-
neros utilizados na alimentação escolar de
Novo Oriente são provenientes da agricultu-
MUGUNZÁ E
PAMONHA:
Tradições do Milho e das Festas Juninas
José Arimatea Barros Bezerra
26 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

Dentre os alimentos representativos da meio rural e se dedicou às lides domésticas


cultura do milho, na Região dos Inhamuns, como cozinhar, costurar, tendo sido também
subárea Crateús, destacaram-se dois - o mu- professora alfabetizadora entre as décadas de
gunzá e a pamonha. O mugunzá sempre 1940 e 1950. Sempre preparou apetitosos do-
foi de consumo rotineiro, o que tem dimi- ces – de banana, de gergelim, de leite e chouri-
nuído significativamente nas últimas três ço. O significado dessas duas últimas prepara-
décadas. O segundo, a pamonha, destaca-se ções ultrapassa o de sobremesa, representando
por ser sazonal, da época da colheita do dádivas para pessoas amigas, da família ou
milho, e festivo pelo destaque que ganha vizinhas, constituindo-se como elementos de
nos festejos de São João. estreitamento de laços de amizade. Possui exí-
O mugunzá tradicional tem como base mio saber sobre o leite de vaca e a feitura de
três ingredientes: milho amarelo, feijão de seus derivados – queijo coalho, nata, coalhada
corda e partes de carne de porco salgada, o manteiga, coalhada escorrida, molho de soro e
que geralmente é tido como menos consu- de preparações com milho – canjica, mugun-
mido, mas que não deve ser desperdiçado, zá, cuscuz, pipoca (fubá) e pamonha.
a exemplo do mocotó, rabo e toucinho. Do A preparação do milho pelado, segundo
milho devem ser retirados o olho e a casca, fi- relato de dona Joana Leitão Barros, ocorre da
cando “pelado”, na linguagem sertaneja; esse seguinte maneira: colocam-se os grãos secos
tratamento dado ao milho, de pelar, difere de milho em um pilão de madeira junto com
de pilar que significa quebrar, reduzir ao pó. algumas palhas secas de milho “riscadas”,
No município de Novo Oriente, a designação ou seja, rasgadas no sentido longitudinal, no
de milho pelado vem sendo substituída por “comprido”. Juntam-se as palhas “riscadas”
milho canjicado, que é o termo usado pelo com os grãos e essa mistura é umedecida com
Programa Nacional de Alimentação Escolar água. A umidade é para facilitar a retirada da
- PNAE, para definir o milho beneficiado, pele e do olho do milho. Quando essas partes
aquele quebrado, sem pele e sem olho, tudo são extraídas, retira-se do pilão essa mistura e
isso operado mecanicamente. leva-se para “ventar”, operação que consiste na
Essa descrição sobre a preparação do mu- separação do grão quebrado de fragmentos do
gunzá, bem como a seguinte sobre a pamo- olho e da casca por meio do vento. Ao vento,
nha, foi feita por dona Joana Leitão Barros, vai-se transpondo a mistura de uma cuia para
residente na zona rural de Ipaporanga, situ- outra, até que permaneçam somente os grãos
ado na região do Sertão de Crateús, distante quebrados; ou ainda com o uso da urupema,
400 quilômetros de Fortaleza. O município, um tipo de peneira, com a qual se faz a sepa-
criado em 1989, tem uma área de cerca de ração da pele, olho e grão. Os grãos que ainda
700 quilômetros quadrados e uma popula- tiverem pele e olho são separados e pelados
ção de aproximadamente 12 mil pessoas. novamente, recomeçando todo o processo.
Essa senhora octogenária, com precisa- O milho pelado é lavado e posto para
mente 87 anos em 2013, sempre morou no cozinhar, por cerca de três horas, em uma
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 27

panela de barro, com água “a favor”, ou e água. Acompanhar o cozimento, em fogo


seja, com água suficiente. Não se coloca sal. médio, como se estivesse preparando feijão.
Deve-se evitar cozinhar totalmente o milho, Mexer muito pouco e sem atingir o fundo da
pois o caldo engrossa e a preparação pode panela, pois, do contrário, o caldo engrossa e
queimar ou pregar no fundo da panela. a preparação gruda no fundo da panela.
Deve-se usar preferencialmente panela de O mugunzá, geralmente, é servido no
barro, porque, conforme o saber sertanejo, jantar, pois se trata de um processo longo
a panela de ferro escurece muito o feijão, que se desenvolve por quase todo o dia.
ingrediente acrescentado na fase seguinte. Enquanto estão preparando o almoço, no
Quando o milho começar a amolecer, fogão a lenha, aproveita-se uma das bocas
acrescentar o feijão vermelho, sendo o de cor- da fornalha para colocar o milho para cozi-
da o mais comum, pois o feijão branco não dá nhar. Depois acrescenta o feijão e os ingre-
sabor, segundo dona Joana. A proporção é de dientes e o cozimento continua no período
três para um, isto é, para cada três medidas de da tarde. É um prato considerado completo,
milho, uma de feijão. Em seguida, acrescen- servido sem nenhum acompanhamento.
tar o sal, toucinho, mocotó, orelha de porco

Senhora Joana Leitão Barros, autora dos relatos e demonstrações


28 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

Mugunzá

Comidas de milho e Festas Juninas

No sertão nordestino, o aproveitamento das meninas, tanto pela beleza como pela
do milho como alimento se dá em sua to- utilidade lúdica, como brinquedo. Bonecas
talidade. As folhas, o caule e o sabugo são com lindos cabelos brilhantes, na cor ver-
utilizados na alimentação do gado, ove- melha ou amarela, davam vazão à imagi-
lhas e cabras. Os grãos alimentam tanto nação criativa das meninas sertanejas que
homens, quanto animais. brincavam de cuidar de crianças usando
Quando os grãos começam a se de- espigas de milho verde.
finir na espiga, as pessoas começam a O milho é o alimento protagonista de
consumi-lo, assado na brasa ou cozido. comemorações, notadamente, das festas
Antes de endurecer, é ingrediente básico de São João. Os festejos dos dias de Santo
para pamonha, canjica, pão de milho e Antônio, de São João e de São Pedro são
bolos. Quando está seco, pode ser torra- marcados por muita reza (novenas e ter-
do e moído dando origem ao fubá que ços), promessas de mulheres para arranjar
é consumido com açúcar ou rapadura, casamento, pagamento de promessas pela
acrescido ou não de leite. Posto de molho boa safra, grandes fogueiras e pessoas “pas-
até fermentar resulta no saboroso aluá sando fogo”, ou seja, assumindo compro-
que, na opinião de sertanejos idosos, era missos de compadres e comadres, afilha-
a bebida predominante nas festas em ge- dos e padrinhos ou madrinhas de fogueira.
ral, até meados do século XX. Esses compromissos são firmados por
É alimento mediador de diversões in- meio do ritual de “passar fogo”, utilizando
fantis. Das suas palhas secas eram feitas um tição aceso da fogueira: coloca o tição
petecas que alegravam a meninada em jo- no chão e cada pessoa fica de um dos la-
gos pelos terreiros das casas. A espiga em dos do mesmo; segurando a mão direita da
fase inicial de desenvolvimento é chamada outra e ambas repetem, ao mesmo tempo,
de boneca e sempre despertou a atenção as seguintes palavras:
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 29

São João disse, São Pedro confirmou: que


nós vamos ser compadres (ou comadres, ou
sempre vai ter que tomar a bênção e o pa-
afilhado, ou madrinha, ou padrinho) porque drinho ou madrinha vão ter que abençoá-lo.
Nosso Senhor mandou. Viva São João! Viva As festividades juninas geralmente são
São Pedro! E viva nós, meu compadre (ou animadas por grupos musicais formados
comadre, ou afilhado, ou madrinha, ou pa- por pessoas da região que tocam sanfona,
drinho)! pandeiro e triângulo e, em quase todo o ser-
tão nordestino, coincidem com o final do
Esses gestos e palavras se repetem por período das chuvas e da colheita do milho.
três vezes, sendo que a cada repetição tro- Predomina a comida farta em volta da fo-
cam de lado em relação ao tição, manten- gueira, nas cozinhas e alpendres das casas:
do-se as mãos dadas. Ao final, se abraçam. milho assado e cozido; canjicas salgadas
Desse momento em diante, o compromisso e doces; bolos de milho e de fubá; aluá e
está selado e a relação atada. Por toda vida mugunzá; pamonha e jerimum assado na
vão considerar o outro e assim chamar de fogueira. E é do modo de fazer da pamonha,
padrinho, madrinha, afilhado; o afilhado que esse relato se ocupa agora.

Bonecas de milho
30 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

Da preparação da pamonha: processo tradicional

Preparo das Pamonhas

Esse alimento tem como ingredientes: O milho deve ser ralado, aproveitando
milho verde ralado, nata (de boca de pote), somente a massa que cai pelos furos do ra-
manteiga, queijo coalho e sal. lador, o que evita que a casca e o olho do
Preliminarmente, deve-se despalhar as milho se ajuntem à massa. Se a massa re-
espigas de milho verde que já tenham sig- sultante for pouco úmida, dá o ponto com
nificativa quantidade de massa nos grãos. acréscimo de leite. Acrescenta nata, mantei-
Antes de despalhar, segundo dona Joana ga e sal a gosto, misturando bem.
Barros, há uma “ciência”: cortar a palha Para fazer o invólucro da massa, tomam-
ainda na espiga na altura do pé da mesma se duas palhas, juntando-as pela extremidade
para retirar a palha inteira, sem rasgos e fis- mais larga (aquele lado do corte da “ciên-
suras, que podem provocar o derramamento cia”), de modo que uma fique por cima da
da massa quando colocada para cozinhar. outra por cerca de três centímetros, forman-
As duas primeiras palhas são descartadas; do um recipiente côncavo. Coloca-se uma
as seguintes, mais resistentes, são reserva- porção de massa dentro dessas palhas, cerca
das para envolver a massa. de duas xícaras de chá e acrescentam-se dois
Para as amarrações são usadas as últimas pedaços, tirinhas de cerca de 10 centímetros
palhas mais próximas dos grãos, por serem de comprimento por um centímetro de lar-
mais finas e macias. São “riscadas”, isto é, ras- gura, de queijo coalho. Fecham-se as palhas,
gadas longitudinalmente, formando tiras de dobrando suas pontas das extremidades para
aproximadamente um centímetro de largura, o centro, no formato de um empacotamento,
e depois emendadas, amarradas duas a duas. amarrando-se a pamonha pelo meio.
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 31

ção segue a mesma


m a ne i r a r el a t a d a
acima. Contudo, a
diferença entre as
duas está na predo-
minância do açúcar
na feitura dessa últi-
ma, a pamonha doce.
Ambas são preferen-
cialmente consumi-
das com café.

“Enrolando” a pamonha

Concomitantemente à preparação da
massa na palha, colocar água para ferver,
em quantidade suficiente que dê para co-
brir as pamonhas. Aberta a fervura da água,
segundo dona Joana, é tempo de colocar a
pamonha dentro da panela para que a massa
não derrame ou entre água na preparação,
o que aconteceria caso utilizasse água fria.
Cobre com algumas palhas e tampa a pa-
nela. Cozinhar por cerca de 30 minutos, a
partir de quando a água começar a ferver.
Pamonha com café

Enfim, seja como ingrediente principal


em preparações salgadas, a exemplo do mu-
gunzá, ou doces, como a pamonha; ora con-
sumido cotidianamente ou em momentos
Cozimento das pamonhas festivos, o milho foi e continua sendo um
dos três alimentos protagonistas das práti-
A preferência pela pamonha salgada cas alimentares do sertão cearense, ao lado
prevalece na região. Contudo, em menor do feijão e da farinha de mandioca.
escala, há o gosto pela doce, cuja prepara-
O CHOURIÇO DA FAZENDA
PEDRAS PRETAS,
EM CANINDÉ – CEARÁ
Rodrigo Araújo Viriato
José Arimatea Barros Bezerra
Leopoldo Gondim Neto
Jorge Washington da Silva Frota
34 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

A fazenda Pedras Pretas, localizada no aos pés da imensa imagem de São Francis-
distrito de Targinos, cerca de 40 km de Ca- co, a morte, ainda que velada, parecia nos
nindé, se apresentou inesperadamente. O cercar. O nervosismo era disfarçado pela eu-
início da viagem foi marcado para as 14 ho- foria e todos registravam o ambiente e nossa
ras, da região do bairro do Monte Castelo passagem com máquinas fotográficas. Nem
em Fortaleza, em função de ser mais próxi- todos os pesquisadores se conheciam bem;
mo da saída da cidade e pela proximidade sendo a viagem, portanto, um momento de
da residência da maioria dos pesquisadores. confraternização inicial e de apresentação.
Éramos um grupo de oito pessoas divididas Em Canindé, a imagem de São Francisco se
em dois carros, sendo sete pesquisadores, localiza em um serrote, o ponto mais alto da
José Arimatea Barros Bezerra, Hermano cidade, cercado por barracas onde são vendi-
Campos Filho, Yuri Poti, Alice Santos, das lembranças desse santo, onde pedintes e
Rodrigo Viriato, Jorge Washington Frota, crianças oferecem seus préstimos como guias
Tadeu Almeida Júnior e mais Lúcia Jucá turísticos; bodegas e botequins completavam
Ferreira, filha de nossos anfitriões. o ambiente local, ainda um tanto desprepa-
Iríamos verificar a preparação de chou- rado para receber turistas. Diante daquela
riço. E para ele precisávamos de sangue. moldura, afinal, é difícil acreditar que sequer
Era preciso matar um porco para preparar existisse essa intenção receptiva. No horizon-
esse doce do sertão e isso não saía da cabe- te, a aspereza e a aridez do sertão; na cidade,
ça da maioria dos pesquisadores. De fato, o colorido das casas simples e as torres im-
a ideia da matança parecia nos atormentar. ponentes das igrejas católicas se destacavam.
Muitos elementos, alimentos e o ambiente O sertão nunca pareceu tão triste; ao in-
eram novos para a maioria de nós. A ma- vés de festa junina e forró, cenário sertanejo
tança do porco nos instigou antes mesmo desenhado em nossas cabeças, sua aridez,
dos aproximados 170 km de distância a vista do alto do morro da estátua de São
serem percorridos. Francisco, tornara-se uma moldura ainda
Passar a noite numa varanda, quase ao mais impiedosa para o registro da morte do
ar livre, protegidos somente por uma rede, porco no dia seguinte.
sem concreto nem ar-condicionado, confor- Retornamos à estrada. Quilômetros
tados apenas com a luz do luar, o barulho adiante, tivemos um imprevisto: pneu fu-
dos animais e refrescados por uma brisa que rado. Paramos no primeiro espaço aberto
vinha do pé da Serra de Aratuba parecia às margens da rodovia, em frente a uma
uma aventura. O que mais controlaria nossa casa simples. O café veio fácil e a cortesia
atenção? O ambiente estranho aos nossos do sertanejo se apresentou mansa e descon-
costumes ou o anúncio daquilo proposto, a fiada. A astúcia de um garoto em desvendar
matança do porco e a preparação do doce? os segredos do macaco hidráulico para a
Fizemos a primeira parada em Canindé. troca do pneu nos surpreendeu, já que não
Apesar de alguns pedidos e agradecimentos sabíamos como operá-lo.
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 35

Nossa terceira parada foi numa encru- demos encontrá-la nas rugas dos rostos que
zilhada, em Targinos, último resquício de nos contam histórias e experiências. Fran-
asfalto antes de adentrarmos na estrada cisca Vieira Jucá, dona Iaiá, tinha história
de terra. A bodega cheirava a papel de para contar. Viveu e relatou as saliências
embrulho, cereal e cachaça. Era o cheiro do sertão, viveu e sobreviveu a seca de 1915
esperado. Servimo-nos de café, aguar- e muitas outras. Paramos, então, para que
dente, biscoito de polvilho, conhecido no Lúcia tomasse a bênção à sua avó, que ela
Ceará como peta e bolinhos de fubá. Um em verso descreve:
bate-papo breve no alpendre do estabele-
Gesto de avó é aviso, orientação dada com sorriso,
cimento em cadeiras de madeira rústica. abraço de avó é aconchego, porto seguro para espan-
Reiniciamos o trajeto, após alguns se abas- tar o medo, palavra de avó é sabedoria, ministrada
tecerem de biscoitos e outros produtos da com toda maestria, cheiro de avó é inesquecível, per-
cidade. Talvez existisse um receio da escas- fume que acalma no momento difícil, olhar de avó é
sez do sertão ou fosse, simplesmente, uma carinho, que acalenta, corrige e ensina o caminho,
forma de garantir uma ligação individual exemplo de avó é verdade, o tempo não apaga, dura
e de identidade com a cidade grande que uma eternidade, saudade de avó é doída, machuca e
revigora dando força para viver a vida. (Lúcia, 2012).
deixamos para trás. Essas dúvidas somente
vagavam ainda, porque muitos de nós não
conheciam a hospitalidade das pessoas do Conhecer mais sobre o sertão era um dos
sertão, sempre receptivos e com a mesa nossos objetivos. Era também uma meta
farta dentro de suas possibilidades. Aqui, traduzir tudo aquilo que observaríamos e
a comida viria para nós como um sinal escutaríamos em uma descrição. Na casa de
acalentado de boas-vindas. dona Iaiá, todavia, é difícil de fazê-lo; faz
Nossa quarta parada foi breve: tempo su- parte do tipo de arquitetura que precisamos
ficiente para entregar aos conhecidos, com- sentir e tocar. A estrada desviava da casa
padres e comadres, amigos e parentes de Lú- que se apresentava cercada de carnaúbas,
cia, algumas encomendas que ela lhes trazia tão bem plantadas e distribuídas que pare-
da cidade. A distribuição de encomendas é ciam ter sido semeadas intencionalmente. A
prática comum entre aqueles que migram à casa, apesar de se localizar no meio do nada
capital. Depois, debandam-se da cidade gran- – como dizemos na cidade – sem vizinhos
de, após uma temporada – como pássaros em próximos, tinha um muro baixo de cerca de
revoada – retornando ao sertão e trazendo um metro de altura, algo que facilmente se
coisas novas para os que lá aguardavam. transpunha; havia, porém, alguns peque-
A quinta parada foi na casa de dona Iaiá, nos pregos, poucos e espaçados fazendo a
senhora de 107 anos de idade, mãe da nos- função do que conhecemos na cidade como
sa anfitriã, dona Teresinha Jucá Ferreira. pega-ladrão. Curiosamente, pregos em um
Diante dela se percebe que nem toda histó- muro tão baixo e com um portão de ferro
ria se encontra em livros, mas também po- sem tranca, poderiam ser mais decorativos
36 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

e menos funcionais. Depois, obtivemos a tes, um riacho, nas margens do qual há um


informação de que tais pregos foram postos cacimbão, fonte principal de abastecimento
para evitar que o muro se transformasse em de água da casa. O senhor Clóvis está sempre
lugar de namoro das netas e outras pessoas. acompanhado de uma caixa de cds e de um
Uma cisterna estava ao lado da casa, para pequeno aparelho para reproduzi-los. É de
captação de água da chuva pelo telhado, pouca fala e aparentemente avesso a grandes
indicava que ali a água nem sempre é farta, e longos discursos. Era difícil arrancar dele
ausência notada em quase todo sertão. No muita informação e suas frases eram sempre
mais, traços simples, casa caiada, telha de muito curtas, porém precisas.
barro feita sem técnica avançada e com as- Nossa anfitriã, por sua vez, veladamente
pecto antigo. Se pudessem falar, certamente descrita como comandante da casa – dona
relatariam muitas vidas e muitas histórias. Terezinha Jucá Ferreira. De pouca fala,
Continuamos mais um quilômetro até apresentou-se aparentemente tímida ou,
nosso destino final, fazenda Pedras Pretas, quem sabe, intimidada pela invasão de tan-
a qual se apresentou como um sítio. A casa ta gente desconhecida. Não conseguia de-
sede – a única instância que pudemos co- monstrar o afeto que a impregnava através
nhecer – ficava na margem da estrada, o de toques ou da fala, porém comunicava seu
que não nos propiciou desvendar o tamanho carinho com a oferta de alimentos e com a
real do terreno. Era uma casa de aspecto maneira confortável da recepção. Descrevê
simples, porém já se mostrava confortável. -los como grandes anfitriões não é somente
Tinha cores caiadas em tons diferentes de uma forma de agradecer os bons momentos
branco, verde-água e traços que mostravam lá vividos. O reflexo dessa hospitalidade era
uma clara ampliação em épocas bem distin- percebido no desenho da casa construída
tas. Já chegamos ao anoitecer, com escassos para receber várias pessoas: muitos quartos
raios de sol. No sertão, naquele momento, para os hóspedes, dos quais contamos, no
o pôr do sol tinha um aspecto diferente. A mínimo, sete em toda a casa, somados a
ausência de nuvens fazia com que o céu ti- um grande alpendre e muitos armadores de
vesse menos cores, parecia proposital para rede espalhados por todos os cantos, o que
combinar com o tom cinza amarelado da mostrava que ali se gosta de receber.
vegetação. E fomos recebidos pelos donos Fomos levados à área reservada aos hós-
da casa, senhor Alberto e dona Terezinha. pedes, encostada e ligada à casa principal,
Nosso anfitrião, o senhor Alberto Clóvis mas com certa independência, que resguar-
Ferreira, gosta de música. Ele estava no al- dava os visitantes e os moradores. Ficamos
pendre onde dormiríamos, o mais amplo e alojados nos vários quartos, mas apressados
ventilado da casa e que apresenta ainda uma para reservar os melhores espaços de rede
vista limitada. Ao longe, veem-se luzes que no grande alpendre. Aos poucos, fomos nos
ele descrevia como sendo da cidade de Ara- arranchando, enquanto aguardávamos algu-
tuba. Dali avistava-se também alguns serro- ma refeição, talvez um café preto com pão.
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 37

Por volta de oito horas da noite, fomos seiro de maracujá. Em um quase estado de
convidados para a sala de jantar da casa torpor, se não me engano, outro doce ainda
principal. Não era tão grande, mas o sufi- nos aguardava à mesa.
ciente para caber todos os pesquisadores. A noite estava ganha. Tanto alimento
Foi então que começou uma sucessão de caseiro servido junto já justificava nossa
pratos, preparações que não sabemos se viagem. Aos poucos, fomos ao alpendre,
nos marcaram pelo afeto, pela quantidade mas antes, ambientados aos outros lugares
ou pelo inesperado. Tudo começou com da casa, ao ambiente do fogão a lenha, às
pães, tapioca fina e bolachas, servidos com prensas de queijo e à cozinha maior. Está-
manteiga e nata feitas lá mesmo na fazen- vamos muito bem alojados. Permanecemos,
da. Suco, leite e café coado acompanhavam assim, cada um em sua rede, conversando
a farta refeição. Na sequência, foi servida noite adentro e da madrugada. Naquele lo-
uma espécie de galinhada ou, como conhe- cal, o que menos importava eram as horas
cemos aqui no Nordeste, uma canja: gran- exatas do relógio.
des pedaços de frango caipira com arroz e Dormimos todos na varanda da casa sim-
legumes servidos no próprio caldo. Farta- ples, confortável e reconfortante. Durante a
mo-nos. Depois vieram queijo coalho, ovos noite, o canto de alguns pavões não nos deixa-
fritos, mais pães e nata e, quando nada mais va esquecer onde estávamos. Acordamos com
cabia no estômago, ofereceram-nos bolo ca- o sol, aliás, com o seu anunciar, mas não com

Da esquerda para a direita: fogão a lenha onde se deu a produção do chouriço; prensa de madeira para pro-
dução do queijo coalho; e aquecimento e retirada da nata do leite usado para o fabrico do queijo de coalho
38 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

sua presença. Após o despertar, os atos urbanos vestia bermuda jeans, camiseta vermelha e
foram parcialmente esquecidos. Um grupo se chinelos; o outro era o vaqueiro que havía-
dirigiu ao curral e estábulo para acompanhar mos conhecido pela manhã, durante a visita
a ordenha e, também, para se contextualizar ao curral para ver a ordenha; vestia calça
e se ambientar com os cheiros que remetem os jeans, camiseta e calçava botas de borracha.
cearenses ao campo. Leite, estrume, carnaúba, Era gente de casa, pessoas que estavam ali
insetos e forragem: não é uma descrição po- por estarem acostumadas com a atividade do
ética e envolvente para um ambiente bonito. abate. Já foram identificando o porco, aliás,
Mas fazer o que se isso faz parte de nós? Essa uma leitoa, e preparando as ferramentas: três
primeira visita ao curral foi curta, porque a facas, um machado, um pedaço de corda,
morte espreitava instigante. Algo tão pesado baldes, mangueira e uma pedra de amolar.
por um doce. Não era o chouriço em si que se
impunha no momento, porém todo ato e com-
portamento daqueles que faziam o ambiente.
Pensávamos: Quem seria o carrasco?
Quem é esse carrasco? E que emoções ele
transpareceria? Na imaginação de alguns de
nós, os incautos, esse carrasco teria as ca-
racterísticas daqueles da Idade Média: forte,
alto, encapuzado, peito desnudo e roupas
pretas. Alguém sisudo e incapaz de se re- Amolação das facas utilizadas na sangria, limpeza
lacionar. Seria ele surdo-mudo ou alguém e retalhamento da leitoa
incapaz de qualquer outra atividade, senão
a da morte? O momento tão esperado foi Confesso que achamos que o animal me-
precedido pelo segundo banquete sertanejo. recia mais. O terreiro estava agitado: cachor-
Um momento em nossas vidas que dificil- ros cercavam o cenário como se já previssem
mente se repetirá, saboroso demais para os que mais tarde teriam ossos; as galinhas se
padrões de uma cidade cinzenta. Repetiu-se aproximavam espreitando se algo já lhes
todo o banquete da noite anterior, excluin- cabia e o chiqueiro grunhia, olhava e pro-
do-se a galinhada, mas se adicionando um testava. Os sons eram quase interpretáveis.
cuscuz: queijo de coalho, nata, tapioca, No momento do ato, cada pesquisador
bolo, coalhada, café e pão. De que mais apresentou um pouco de sua personalidade.
precisávamos? Apesar do banquete, a ten- Alice, a única mulher do grupo, não supor-
são provocada pela iminência da morte do tava o pedido de socorro feito pelo animal
porco disfarçava-se pela euforia. e se encurralou na casa no ambiente mais
Os carrascos chegaram. Eram dois, os distante, onde os grunhidos não fossem
quais mal foram percebidos por nós: magri- ouvidos, eximindo-se assim de qualquer
nhos e pequenos, sendo que o primeiro deles responsabilidade pela morte do animal.
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 39

José Arimatea, um homem do sertão, am- para os moradores da casa, vizinhos e ou-
bientado e mais acostumado com os ritos tros atores locais, a matança era um ritual,
da subsistência, soma-se à curiosidade de algo como um evento ou um momento de
acompanhar o abate mais de perto e vai co- celebração. O que para nós era pesquisa, para
laborar com os homens na atividade, aju- eles era festividade e felicidade em receber.
dando a aparar o sangue do animal com No final da matança ocorre o ato da partilha,
uma panela de alumínio. Um primeiro ou seja, a doação de partes do animal abatido
golpe com o dorso de um machado foi o para familiares, amigos e vizinhos, o que se
suficiente para instaurar um silêncio. Mas chama no sertão cearense de vizinhança.
o animal se contorcia, levando um segundo Outros membros do grupo, tardios, jun-
golpe e, na sequência, uma punhalada na taram-se a nós no sábado, bem cedo, e assim
base do pescoço para que o sangue fosse acompanharam a matança do porco e os
colhido com o animal ainda vivo, o que fa- outros procedimentos para a preparação do
vorece ao máximo o processo da sangria. doce. Esses pesquisadores tiveram a expecta-
Em outros abates de animais, os mesmos tiva ainda mais aumentada quando souberam
podem ser içados pelas patas traseiras para através da internet, sim, na fazenda acerca de
que a força da gravidade ajude a escoar o 170 km de Fortaleza já existe o sinal dos no-
sangue em maior volume. Não foi essa a vos tempos, que nossos anfitriões prepararam
forma utilizada. uma galinha na noite de sexta, o que eles per-
deram em decorrência do atraso. Já ficaram
imaginando como seria a região, a casa da
fazenda, os proprietários e, principalmente,
os novos sabores a serem descobertos, como o
chouriço, o queijo fresco e outras delícias que
os esperavam. Os atrasados, que se desloca-
ram juntos, eram apenas dois: Leopoldo Gon-
dim Neto e Fauston Negreiros, que durante
o percurso da viagem faziam planos sobre a
Lavagem da pele do animal antes do abate pesquisa e de como seria enfrentar a matança
do animal. Quando chegaram, foram recebi-
Os outros pesquisadores permaneceram dos pelo proprietário, senhor Alberto Clovis
no terreiro, todavia na responsabilidade do Ferreira, e por lauto café da manhã. Dona
registro, utilizando as câmeras como uma Teresinha já estava a postos e, como uma al-
lente de proteção. As máquinas registravam, quimista do sertão, preparava o chouriço.
mas também os excluíam: era como assistir A pós o recolhimento do sangue, os
ao abate pela televisão. Em todos os presen- executores permaneceram na atividade de
tes, contextualizados ou não, reinava uma limpeza do animal, a qual se deu com uti-
mistura de tensão e ansiedade. Contudo, lização de água quente para soltar o pelo,
40 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

vindo em seguida o esquartejamento. Nós castanhas trituradas, gergelim em forma


almoçaríamos a carne do animal abatido. de leite e pimenta do reino. Depois, adi-
Para a execução do chouriço, a fari- cionou-se a gordura, agora líquida, até
nha de mandioca foi peneirada. O sangue formar uma pasta que foi adicionada ao
descansou um pouco e foi coado para a sangue e levada ao fogo.
retirada dos coágulos. Uma parte do es- Mexer a panela constantemente por cerca
tômago do abatido, chamada de coalho, de duas horas até a consistência ficar bem
foi retirada para a feitura do queijo, essa grossa. Todos se revezaram na atividade
parte é utilizada para coalhar, talhar o de mexer o tacho. Tudo confirmava que
leite, início do processo de feitura do estávamos em um laboratório matuto onde
queijo coalho. a ciência popular, passada de geração em
Foi preparado o mel de rapadura e tri- geração, era posta em prática.
turadas as castanhas e amendoins. A ba- A cor do doce é muito atraente, caracte-
nha, que estava guardada numa garrafa de rística de muitos doces cearenses, como a
vidro, foi levada à beira do fogão a lenha rapadura e o doce de caju. Sua distribuição
para derreter. em recipientes reaproveitados de margarina
Ao sangue foram adicionados o mel deixou-o com aspecto mais caseiro e afetuoso.
de rapadura, a farinha peneirada e as Muitos de nós ainda somos do tempo em que

Leitoa abatida e retirada do pelo com ajuda de água quente e raspagem com faca

Coação do sangue que descansou para a retirada dos coágulos. Peneiração da farinha de mandioca
para ser utilizada no chouriço
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 41

os alimentos produzidos em casa eram acon- execução ritualística, envolvendo um grupo


dicionados em potes de sorvete, margarina, de pessoas e o abatimento de um animal, nos
manteiga, latas de goiabada e de sardinha. O remete a instintos e compreensões inconfes-
sabor do doce se assemelha ao do bolo Pé de sáveis. Os pudores e os procedimentos sociais
Moleque, mas com a consistência parecida que envolvem o comportamento politicamen-
com a de um doce de caju. te aceitável de hoje vem de encontro a muito
Nossa experiência com o chouriço foi do que aqui observamos pelo enfoque huma-
carregada de aprendizados transdisciplina- no, nutricional e sanitário. O chouriço, entre-
res. O chouriço não é apenas um doce. Sua tanto, é também cultura e os procedimentos

Banha de porco na garrafa de vidro levada ao calor indireto da fornalha para se liquefazer e ser utili-
zada no chouriço. Adição do melaço de cana no sangue para o preparo do doce

Cozedura do Chouriço em fogão a lenha

Adição da banha de porco


42 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

e métodos necessários para a manutenção de do sertão. Aproveitamos o momento para


qualquer que seja a habitualidade deve ser nos abastecermos do maravilhoso queijo de
compreendida de forma relacional. coalho que dona Terezinha prepara e vende,
Naquele momento, estávamos extasiados uma das fontes de renda da família.
e envolvidos por demais para entrarmos em Era depois do almoço, o calor estava in-
quaisquer questionamentos. Prosseguimos tenso, o vento soprava quente. Nem mesmo
então com outros preparos, já aguardando na sombra era possível estar. Resolvemos pelo
a refeição que se seguiria: muita carne de nosso retorno a Fortaleza. Percorremos os 170
porco guisada ou torrada na brasa, feijão de km de volta com tranquilidade, contentes e re-
corda, farofa e o fígado cozido e passado, latando o que mais nos instigou em tão breve e
dentre outras guarnições. Finalizamos toda valorosa viagem, com surpresas reveladas em
a produção ao redor da mesa, um banquete cada ato praticado naquela cozinha generosa.

Dona Terezinha mostra a consistência final do


chouriço

Porcionamento, embalagem e decoração do chouriço


com castanha de caju
O PEIXE ASSADO NA
BRASA COM PIRÃO
ESCALDADO:
Tradição Alimentar do Mar, na Praia da
Caponga, Cascavel – Ceará
Beatriz Helena Peixoto Brandão
Alice Nayara dos Santos
Bruno Alves Gualberto
Ana Karoline de Oliveira Costa

Tem gente que diz que num tem... mas dá de comer a muita gente! A
gente sempre diz que a praia, pelo menos pra comunidade, é 80% que
sai daqui dessas embarcações! [...] Todo o peixe que uma embarcação
dessa traz...todo ele é consumido pela comunidade!
(Senhor Wilson, 2011)
44 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

A presente pesquisa toma como cená- de tudo, um forte; mas, diferentemente do


rio a praia da Caponga, no litoral leste ce- homem do sertão, traz o verde e azul do
arense. O grupo de quatro pesquisadores mar impresso em tudo o que faz.
do Projeto ALINE, a partir dessa conexão No segundo encontro, Seu Wilson está
entre a academia e um contexto praiano, na praia, junto dos seus companheiros de
traz impressões individuais e coletivas sobre trabalho: dessa vez, foi como assistir a um
essa experiência, assim como abre espaço herói em ação. Aquele homem outrora sen-
para a voz e o olhar do povo do mar. tado na cadeira, em sua casa, agora estava
A praia da Caponga, relatada na fala de erguido sobre uma jangada, dando ordens,
Seu Wilson - querido jangadeiro e pescador em uma fascinante desenvoltura. Camisa
local - é uma importante parte do grande branca enrolada na cabeça, protegendo-se
mosaico do litoral cearense. Tivemos dois do sol e os dois pés descalços; por todo lado,
primeiros encontros com nosso entrevista- companheiros de pesca, incontáveis peixes,
do: em sua casa e à beira do mar. O primeiro gente estranha, novos e velhos amigos vis-
encontro, em seu lar, revelou-nos um ho- toriando, prestando atenção em tudo e em
mem ao mesmo tempo pacato e inquieto. todos. Depois de alguns poucos minutos,
Dentro daquela tranquilidade, acolhe uma ao nos perceber, transforma o semblante
boa conversa e isso faz com que, natural- sisudo e traz de volta o sorriso que conhe-
mente, deixe passar pelo seu discurso muitas cemos inicialmente. Felizmente, ele não
coisas de seu mundo. É um homem cortês, abandona a expressão. Na praia, ambien-
paciente e muito agradável. Não esperava tado, Seu Wilson parece o de sempre e, ao
visita, de fato, o que torna ainda mais sur- mesmo tempo, causa uma boa estranheza,
preendente a expressão calorosa. Vestia-se uma misteriosa curiosidade que nos instiga.
de forma simples, sem cerimônia: camisa, É fácil perceber que os nossos pescado-
bermuda, chinelos. Não se envergonha de res da Caponga, representados na figura de
nada, ama sua vida, parece feliz. Dentre Seu Wilson, amam os seus lares, seja na
os relatos sobre as pessoas da comunidade terra, seja no mar. Demorou um pouco para
– repleto de Chicos, Josés e Marias – Seu notarmos que esses são homens que preci-
Wilson dá pistas sobre os problemas que sam do ir e vir das jangadas. Esse proces-
a comunidade enfrenta, sobre transtornos so é necessário e agora o sabemos: aquela
políticos locais e sobre as contrariedades imagem de praia-jangada-mar, gravada na
resultantes da luta pela preservação do seu retina, narra homens que não podem viver
ofício. Relata, então, sobre a situação difícil sem o lá nem o cá.
da pesca artesanal com inesperada calma e Nas palavras do nosso novo amigo, a Ca-
eloquência, traduzindo memórias que ferem ponga não seria narrada de forma frágil e
em palavras simples e doloridas. Esse pesca- romântica. O personagem criado pela nossa
dor cearense, assim como nosso sertanejo - imaginação confronta-se com a figura real
parafraseando Euclides da Cunha – é, antes retratada em suas diversas versões. Cada
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 45

história tem um início e Seu Wilson pode seca à dinâmica da pesca artesanal. O pró-
conhecer a sua desde o dia em que nasceu; prio verbete Caponga, segundo o dicionário
dos ancestrais, herdou as boas e as más Houaiss, significa “pequeno lago de água
lembranças desse ofício e cada informa- doce formado no solo arenoso do litoral”,
ção e detalhe daquele trecho de mar estão bem como “linha de pescar com uma bola
inscritos na sua mente e em suas palavras. na ponta, em vez de anzol, para atrair o
Nosso jangadeiro conhece a distância de peixe, que é apanhado com a mão”. Tem
sua faixa de areia e não é cego frente às grande importância populacional, consti-
transformações e violências acontecidas du- tuindo-se uma das maiores áreas de aden-
rante o passar dos anos. Conhece a braveza samento do litoral do município. Localiza-
do sol, dia após dia, invadindo sua pele e se a 11 km do município de Cascavel, sua
marcando o seu rosto. Conhece também as sede, pelo acesso via CE 283, distante 72
histórias dos mais velhos, das mulheres, de km, aproximadamente, da capital Fortale-
quem vai e de quem fica. A vida da praia za. Engloba três localidades: Águas Belas,
não é exatamente uma vida de paz; não é Balbino e a Caponga propriamente dita. A
de guerra, tampouco. Assim como o mar, área comunitária de inf luência direta da
essas pessoas têm momentos de pura clareza pesca é denominada Caponga de Dentro ou
e tranquilidade; mas as ondas, agressivas, Caponga da Praia
lembram-nos das dificuldades, comove-os A pesca, atividade econômica predomi-
em sua indignação. Seu Wilson não é so- nante na região, desenvolve-se na categoria
mente um mestre pescador: é um mestre da de pequena escala, através de jangadas a vela
vida. E a vida, através de seus olhos, é muito com comprimento de no máximo oito metros
maior do que parece ser. e de limitado raio de ação marítima. Reali-
A história da Caponga, inscrita como za-se, portanto, com pouco distanciamento
distrito do município de Cascavel, é intrín- da costa. É ofício penoso e de alto risco, que

Pescadores aguardando ida ao mar na Caponga, CE.


46 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

envolve altas jornadas de trabalho, grande Nesse cenário percebe-se, todavia, a


exposição à radiação solar, vigoroso esforço mulher como uma ativa defensora das prá-
físico, uma rotina repleta de perigos. Todos ticas alimentares e da pesca artesanal. O
esses fatores trazem um panorama, para o seu papel, portanto, não se limita a cuidar
pescador artesanal, de um trabalho a ser da casa; as mulheres da Caponga adentram
enfrentado de forma precária por boa parte ativamente na luta pela preservação e pela
da população masculina adulta. Remanesce, valorização de suas atividades, sendo tam-
nesse quadro, a bravura do jangadeiro, tão bém responsáveis pela sobrevivência da
afinada com a bravura daquele sertanejo va- estrutura artesanal e simples do bem viver
queiro distante do mar. Diante de condições local. São notórios o papel masculino no
demasiadamente adversas, mantém-se a pai- mar e o feminino no lar. Poucas ou quase
xão pelo ofício e uma inegável honradez, dois nenhuma mulher se arrisca na pesca maríti-
elementos que aproximam esses dois típicos ma. Existe, todavia, a modalidade de pesca-
atores do ideário cearense. dora marisqueira, representada por aquelas
Para ilustrar o desafio, sabe-se que a pes- que pescam nos rios e no mangue.
ca em alto-mar impõe aos pescadores, em
[...] a mulher pesca mais no mangue. Pelo menos, até
suas pequenas jangadas, uma média de dois agora, eu só conheço duas que pescam direto no mar.
a quatro dias a 60 km da praia. Muitos deles Em Fortim... e em Fortaleza. (Seu Wilson, 2011).
receiam o que podem encontrar em seu cami-
nho, bem como têm medo do que uma trans- Os pescadores tradicionais, cientes da
formação repentina de tempo pode compro- tarefa que enfrentarão, sempre obedecem
meter. Existe um medo compartilhado: ficar a regras bem estabelecidas sobre o uso das
à deriva. Dona Guida, adorável moradora da marés, dos regimes de ventos, das correntes
Caponga de Dentro, marisqueira e rendeira de e da sazonalidade da pesca. No seu coti-
bilro, narra um pouco da angústia das mulhe- diano, incorporam informações recorren-
res que ficavam nas casas aguardando o re- tes, transmitem o conhecimento e elaboram
torno de seus filhos, pais e maridos, inseguras estratégias para a realização da atividade.
pela ameaça do mar e pelas difíceis condições Atenta-se aos sinais da natureza e ao saber
de vida. A renda de bilro, que fala muito do popular do mar, o qual é transmitido de ge-
Ceará, espanta a saudade no seu vaivém dos ração em geração, carregado por eles quase
rolos almofadados, porque antecipa as horas que em um processo intuitivo. Em função
do relógio que lá não existe, compassando os de todas essas precauções, suas incursões
corações angustiados: variam bastante quanto ao tempo de perma-
[...] Uma vez, Joãozim foi pro mar e eu fiquei sem
nência planejado, ao trajeto navegado e ao
nada dessa vida. Nesse tempo, as coisas eram tão tipo de pescado que pretendem conseguir.
difíceis, meu Deus. Os pescadores iam pro mar e Capturam, desembarcam e comercializam
deixavam a gente com dois toes [tostões]! Que dia- quase toda sua produção na própria praia
bo é dois tões? [...] Hoje em dia, quem sabe mais o
que é dois tões?! (Dona Guida, 2011)
e na Caponga de Dentro.
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 47

Segundo dados do Relatório Técnico molhar, a jangada mira no rumo da praia,


Final de Monitoramento de Atividade Pes- recolhe parte de sua vela e passa a ser con-
queira do Litoral do Brasil do IBAMA, de duzida pela mão de homens que empurram
2006, a produção pesqueira de pequena es- a embarcação contra a vontade das ondas.
cala na Caponga é considerada uma das três Tudo pode demorar até uma hora e é um
maiores do litoral leste e um dos principais momento de celebração. Outros pescadores,
pontos de desembarque de pescado no Cea- em atividade ou não, atravessadores e pos-
rá (ao lado de Parajuru, em Beberibe; Praia síveis compradores ficam sempre à beira da
da Redonda e Praia do Icapuí, em Icapuí). praia durante o dia, aguardando o retorno
Uma só jangada de pesca em alto-mar, em delas para acompanhar a divisão dos peixes,
tempo bom, segundo relato de Seu Wilson, para comprá-los ou somente para verificar
tem capacidade de trazer à praia cerca de o apurado. Causa uma reação de euforia
400 kg de pescado. A fertilidade do litoral quando a jangada chega carregada de peixe
leste cearense é representada pela captura e promete uma boa repartição.
de espécies como o Ariacó, Cangulo, Ca- Assim que a jangada se assenta na areia,
vala, Bonito, Guaiuba, Dourado, Garoupa, todos se alinham perto dela para observar o
Biquara, Sapuruna e Arraia. despejo e a separação dos peixes. Passam a
A chegada da jangada simboliza um dos disputar por eles, prevendo quais e quantos
momentos mais aguardados do dia. Nave- vão levar, causando um agradável alvoro-
gando contra a maré e a favor do vento, ço. Todos recebem sua parte, até aquele que
empurrada pela vela remendada e velha empurrou por dois tempos os pesados tron-
que o homem do mar não pode parar de cos de cajueiro, os quais, em revezamento,

Variedade de pescado apurado na embarcação de Seu Wilson


48 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

Assado na brasa. Fazia o foguinho de lenha,


vão servindo de roda para trazer de volta a
botava as duas trempinhas uma do lado, outra
embarcação à areia. Os velhos pescadores, d’outro. Botava dois pauzinhos em cima e aí as-
cujo viço se foi na proporção das rugas, não sava o peixe. Aí, só pra dizer, a gente passava
perdem sua parte da partilha. Mesmo dian- um salzim e assava. Tanto a gente comia ele as-
te das dificuldades que rondam a região, os sim, assadim bem assadim, como passava só um
pescadores não se esquecem daqueles que o pouco pra comer cozido. (Dona Guida, 2011).
tempo outrora acalentou. É certo dizer que
experiência e saber nesse recanto têm valor. O pirão escaldado, assim chamado o pi-
A Caponga da Praia depende da pesca arte- rão de farinha de mandioca cozido na água
sanal: idosos, pescadores em atividade, ina- – normalmente com ervas e verduras da
tivos, mulheres, crianças, enfermos. Dessa terra, tais como o cheiro-verde de coentro
forma, emergem as relações de troca e a no- e cebolinha – é acompanhamento também
ção clara de proteção dos necessitados den- tradicional do peixe assado na brasa:
tro de uma fraternidade difícil de encontrar.
Chegava o peixe ou siri ou camarão, fosse que fosse,
O peixe é vendido para quem tem condições vem chegando, a gente botava no fogo, fazia aquele
de comprá-lo, doado a quem não tem e ce- pirão e comia. (Dona Guida, 2011).
lebrado por todos como o alimento da vida
social e econômica de quem tem morada no A senhora descreve, no entanto, que as
litoral. É, pois, alimento e dádiva, capaz de crianças e os adolescentes tendem, em de-
revelar muito sobre a vida desse povo. corrência da facilidade de acesso através
Dona Guida, referida marisqueira dos mercados locais, a apreciarem outros
e rendeira de bilro, tem muito que falar alimentos em detrimento do peixe, tais
dessa vida. A porta-voz das mulheres da como carne de gado, frango de granja, pães,
Caponga – guerreiras em terra firme – co- embutidos, laticínios, elementos estranhos
nhece a dinâmica dos lares, os hábitos e os à cultura da praia.
contos por trás da espera. Enquanto seus
[...] É pão passado, é a mortadela, é uma tal de...
homens estavam ao mar, as mulheres ti- como é, meu Deus? De empanada! [...] Eu digo:
nham o dever de manter seus filhos e casas. ‘ai, meu filho... é isso mesmo... hoje você bota uma
Plantavam e colhiam ervas, assim como banca dessa! E os pais de vocês nunca puderam
conservavam, manipulavam e preparavam ter uma vida dessa que vocês têm hoje!’ Num ti-
o peixe para o consumo diário. Dessa for- nham mesmo! Que ali o que a gente tivesse era o
que comer! Hoje em dia, não! Às vezes tem uma
ma, Dona Guida acompanhou o gosto e
carne, tem um peixe, eles não querem. A mãe vai
os modos alimentares de gerações e sabe pra acolá, quando vê, vem com a mortadela, a
indicar, assim, as mudanças percebidas ao linguiça. Nessa época, nós não usávamos nada
longo de sua vida. No que diz respeito aos disso. Essas coisas ninguém sabia nem se exis-
hábitos de consumo alimentar, Dona Gui- tia no mundo! E não existia mesmo, não! Isso
da nos indica uma predileção tradicional é inventado de um certo tempo pra cá! Galinha
de granja... Algum dia no mundo a gente viu ao
da comunidade pelo peixe assado:
menos falar em granja?! (Dona Guida, 2011).
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 49

A gente fazia o doce de coco. A gente mesmo fazia


O Peixe Assado na Brasa no fogo. Quando a gente terminava, a gente comia
uma colheradinha de doce.
No peixe assado na brasa são utilizados A gente bota a rapadura pra derreter no fogo.
os seguintes ingredientes: Quando está derretida, coloca o coco dentro
• Postas de cavala; e fica mexendo, mexendo, até d á o ponto do
• Água; doce. É, tem que dar o ponto. O doce tem que
• Sal; tá soltinho. (Dona Guida, 2011).
• Leite de coco;
• Cheiro-verde fatiado; Para a realização da preparação do pei-
• Cebola, tomate e pimentão picados; xe assado na brasa com pirão escaldado,
• Caju azedo inteiro com casca; convidamos dona Francisca, marisqueira
• Farinha de mandioca; natural de Balbino – localidade integrante
• Colorífico de urucum (colorau). do distrito da Caponga - reconhecida por
A cavala é uma espécie de peixe ampla- sua luta pela preservação do mangue da
mente capturada na região da Caponga. região, bem como pela sua belíssima pro-
O cajueiro é outro gênero constante, parte dução de renda. Uma mulher fascinante,
integrante da paisagem da região: da fruta, que envolve o interlocutor com sua narra-
consome-se largamente o suco e a castanha, tiva sobre a vida de luta e de vitórias diante
além de derivados, como a cajuína. De sua das dificuldades de manutenção ambiental
madeira, fazem-se rolos para suportar as daquela terra na década de 1980.
jangadas, além de funcionar como carvão O primeiro encontro com dona Francis-
dos fornos a lenha. O cheiro-verde, por sua ca para combinar os detalhes da prepara-
vez, na combinação nordestina de coentro e ção acontecera meses antes, em sua casa no
cebolinha, costumava ser plantado nos quin- Balbino. O local, distante e de difícil acesso,
tais das casas na Caponga. Esse hábito do força-nos a abandonar o conforto do veículo
cultivo do cheiro-verde, ainda praticado por e seguir a pé por um trecho de caminho enla-
algumas famílias, deixou de ser relevante, meado. À direita, plantas e algumas casinhas
uma vez em que agora preferem comprá-lo em cima de uma encosta. À esquerda, o man-
nos mercados locais. O coco é outra pre- gue denso, vivo e vibrante. Fomos repreen-
sença marcante, pois, antigamente, todas didos – e assustados - por algumas galinhas
as casas possuíam um coqueiro, conside- d’Angola nesse caminho. Por aproximada-
rando-o como alimento abundante. De sua mente um quilômetro de caminhada, sons e
polpa, extrai-se o leite do qual é feito o pirão ruídos desconhecidos vindos do mangue nos
escaldado mencionado. Dona Guida fala, acompanharam, os quais se misturavam ao
ainda, de um doce de coco com rapadura barulho emanado por um jumento amarrado
tradicional que marcou sua infância: num tronco de árvore, que mais parecia recla-
mar de sua condição. Ao chegarmos à casa
[...] Só se comia às vezes porque nessa época o coco
era fácil porque que em toda casa tinha coqueiro.
de dona Francisca, nesse primeiro contato,
50 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

encontramos uma casa cercada de cajueiros, Aproximadamente dois meses após o pri-
adornada com portas e janelas azuis e paredes meiro encontro, dona Francisca nos convi-
pintadas de verde. Mais uma vez, deparamo- dou para preparar o peixe assado na brasa.
nos com a combinação de cores que tanto fala Ao contrário do que havíamos combinado (de
sobre essas pessoas: as cores do mar. Dona realizá-lo em uma barraca à beira-mar), fomos
Francisca abre a porta, dá-nos abraços e nos chamados à casa de sua mãe, dona Rosa.
reconforta. Éramos, então, visitantes bem Localizada no coração da comunidade
acolhidos; depois daquele susto do mangue, do Balbino, a missão de encontrar a casa
aquele sorriso terno era o melhor antídoto de dona Rosa nos deu a possibilidade de
para a apreensão. A vista da casa era surpre- desvendar um pouco mais sobre a locali-
endente em cima daquela duna, pois parecia dade. Em busca de referência, conversa-
que, ao subirmos os novos degraus, poderí- mos com moradores, os quais, pacientes,
amos encostar o céu e descobrir os segredos sorriam sempre ao escutar-nos falar do
daquele mangue. Céu azul intenso, claridade nosso íminente encontro com dona Fran-
a pino, ficamos imaginando como seriam as cisca. Dava-nos a impressão de ser uma
estrelas ao anoitecer naquele lugar. O som do pessoa realmente querida.
vento vindo do mar prenunciava a conversa Dentro de um conjunto de casas sim-
sobre as coisas da vida na praia e sobre o seu ples, cercada pelo onipresente cajueiro, a
marido, amigo do casa de dona Rosa
mar e ressabiado da estava erguida atrás
terra, tendo em vista da edificação de ou-
todos os problemas e tra morada. Contém
as ameaças sofridas um muro branco e
para defender esse porta de madeira;
mangue do Balbino, para acessá-la, tínha-
o imponente bioma mos de passar pelos
que traduz a identi- quintais de outras
dade do seu povo e a residências. Vimos
força de suas origens. cachorros surpresos,
Seu filho, também crianças observado-
conosco na sala, per- ras e desconfiadas,
maneceu calado. A galinhas muito indi-
dona da voz ali era ferentes. Nosso cená-
dona Francisca, a rio era tão simpático
qual, segura em sua quanto a casa para a
cadeira de canto, sa- qual nos direcioná-
nava todas as dúvidas vamos. Cercados de
que trouxemos. Dona Francisca borboletas e flores de
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 51

tantas outras cores, impossível não reparar de meio século, assando-o no mesmo forno
o gigante bougainville cor de rosa, planta tre- de lenha utilizado nesta demonstração. A
padeira que servia de moldura de todo um preparação, segundo o relato de dona Fran-
mangue que perfaz o quintal principal. Sa- cisca, era vendida pela mãe aos sábados na
bíamos, assim, que não poderia ser outra a grande Feira de São Bento, em Cascavel, de
casa de uma senhora chamada Rosa. Dentro forma a complementar a renda da família.
do lar, encontramos sala, quartos, cozinha
e tudo tinha memória. As paredes estavam Passo a passo do peixe assado na brasa
repletas de fotografias que rememoravam com pirão escaldado
outro tempo; um passado de uma mãe e
dona de casa, ora jovem e recém-casada. Da preparação do forno a lenha para
As anfitriãs eram três: dona Francis- produzir a brasa. A lenha para o carvão
ca, dona Margarida (irmãs) e a mãe, dona é coletada no próprio terreno. Para a pre-
Rosa, rainha da casa. Dentro de seu espaço, paração, foi utilizada madeira de cajueiro.
dona Rosa era uma senhora bem arrumada,
“muito alvinha e linda”, como descrevem as
filhas. Sentada em sua cadeira, com a ajuda
das duas, a senhora permaneceu calada por
todo o tempo que estivemos lá. Contempla-
va o horizonte com seu olhar infinito e não
sabíamos ao certo se estava ciente do que
acontecia a sua volta. As filhas a admiravam
e cuidavam dela como provavelmente ela
deve ter cuidado outrora - com afinco, amor,
sempre preservando o bem-estar da família.
Dona Margarida, concentrada, em seu ves- Forno a lenha
tido simples, seu boné e óculos escuros, apre-
sentou-se simpática e prestativa. Estava con- Para fazer grelhas de galhos de palmeiras
tente em nos receber e nos apresentar a casa. para assar o peixe na brasa. Dona Francisca
As duas, dona Francisca e dona Mar- caminha até o quintal e lá colhe um galho de
garida, contaram-nos que o peixe assado palmeira, com o uso de um facão. Desmembra
na brasa já era feito por dona Rosa há mais as folhas, reservando somente os talos.

Coleta de galhos de palmeira


52 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

Depois de limpar as varas com água cor- dondo com pequenas unhas, parecendo uma
rente, dona Francisca constrói uma espé- mão pequena com muitos dedos. Normal-
cie de grelha de madeira verde, mantendo mente, é utilizado na atividade de raspar a
como base dois tijolos. Ela tira o carvão que polpa do coco seco. Sentada sobre um banco,
já virou brasa para que seja colocado em- a pessoa, com as duas mãos, fricciona a pol-
baixo da grelha. pa nas pequenas garras do artefato metálico,
obtendo-se então o coco ralado. Dona Mar-
garida, a irmã de dona Francisca, executa a
tarefa de raspar cada coco individualmente
para retirada da polpa seca. Depois de ras-
pado, recolhe-se a polpa e leva-a ao liquidi-
ficador junto com um pouco de água, para
liberar o leite. dona Francisca relata que,
antes da chegada do liquidificador, esse pro-
cesso era feito manualmente com o auxílio
de um pano, um balde e água, coando-se o
leite ao torcer o tecido com as mãos. Natu-
Peixe sendo grelhado ralmente, esse processo foi substituído pelo
liquidificador que, segundo dona Francisca,
Da extração do leite de coco a partir do é bem mais eficiente. Assim que é batido,
coco seco. O leite de coco é obtido a partir o leite de coco é coado utilizando-se uma
de utensílio de cozinha tradicional denomi- peneira, de forma a retirar todo bagaço do
nado “rapa coco”, o qual se refere a um ins- sumo. Esse bagaço não será aproveitado na
trumento comum no litoral do Nordeste que preparação do prato, mas dona Francisca
é composto de um pedaço de madeira onde reutiliza esse bagaço para alimentar as ga-
se fixa um artefato de metal num formato re- linhas que cria no quintal.

Raspagem do coco
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 53

Dona Francisca umedecendo o coco para retirar o leite

Do assar das postas de cavala na brasa. to direto com o fogo. Espera-se assar o peixe
As postas de cavala são colocadas em cima até que ele adquira um tom dourado, viran-
da grelha de madeira verde para assarem do sempre a carne de um lado para o outro.
somente com o uso do calor emanado pelo Deixa-se o peixe cozinhando internamente
carvão em brasa. Dessa forma, não há conta- e adquirindo a coloração dourada desejada.

Peixe dourando no calor da brasa


54 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

Do preparo do pirão. Põe-se para aque- Da adição do peixe ao caldo. Ela adi-
cer na boca de fogo do forno de lenha, em ciona o peixe assado lavado ao caldo, assim
uma panela de alumínio, um caldo feito à como o caju azedo inteiro com casca e sem
base de água, do leite de coco e de todas as castanha. Segundo dona Francisca, o caju
ervas e demais vegetais da receita (cheiro- vai ajudar na apuração do sabor da prepara-
verde fatiado, pimentão, tomate e cebola ção, substituindo o vinagre. Deixa-se o caldo
cortados em cubos). ferver e mantém-se a mistura no fogo até que
Do lavar do peixe assado. Dona Francisca os vegetais, o leite de coco e o caju azedo fi-
ensina que se houver algum pedaço de peixe quem devidamente cozidos. Retira-se o peixe
muito tostado, é necessário raspar as partes do fogo e o reserva.
escuras antes de seguir com a próxima etapa Do preparo do pirão. Dona Francisca
de cozimento do peixe em caldo, de forma a peneira a farinha de mandioca para prepa-
evitar que a preparação fique amarga. Depois rar o pirão. Separa uma panela menor na
de selecionados e cuidadosamente raspados, qual, antes mesmo de ir ao fogo, adicionam-
os peixes são lavados em água para somente se um pouco do caldo do peixe já cozido, o
depois serem adicionados junto ao caldo.

Lavagem das postas de peixe assadas Peixe e caju azedo cozinhando no caldo

Preparação do pirão escaldado


A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 55

colorífico de urucum (colorau) e a farinha gonista do seu contexto alimentar, embora


de mandioca peneirada, mexendo bem para ele ainda seja o principal meio de vida das
uniformizar a mistura. Ela leva a panela localidades da Caponga.
ao fogo, mexendo sempre o caldo com fari-
Essas coisas assim que eu tenho pra contar... Essas coi-
nha até que se chegue ao ponto do pirão, de sas do meu tempo. Hoje... Eu não sei nem o que é que
consistência firme e cremosa. Serve-se bem conto de hoje, porque é tudo diferente. Mas nessa época,
quente, junto com o peixe cozido. ave Maria, era bom demais! (Dona Guida, 2011)
Diante de um componente alimentar
carregado de memórias, dona Francisca e Memórias, faces iluminadas, rosas, man-
dona Margarida relataram que, há 50 anos, gues e o mar. Conhecer o peixe assado à
esse processo descrito de prepará-lo (à bra- moda do povo da praia muda nossa capa-
sa, no fogão a lenha) era predominante na cidade de ver o mundo, de escutar e de con-
região. Comentaram, ainda, o fato de como tar as memórias. Ao degustar tão saborosa
a percepção dos alimentos ditos tradicio- comida e conversar sobre ela, mudamos o
nais tem mudado na comunidade e que, até nosso olhar sobre o alimento que adentrou
mesmo esses alimentos não cativam mais as nossos corpos. A experiência toda transfor-
novas gerações. Diante do crescimento do mou-nos – estrangeiros – em lutadores jun-
comércio local, há considerável ampliação to a eles, bravos pescadores e marisqueiras,
da oferta de alimentos, principalmente de narradores de uma história rica revelada
produtos industrializados. Considerando por gostos e gestos. Conhecer todos esses
esses novos objetos de desejo alimentar, as homens e mulheres, os quais levam a vida
irmãs apontam que os jovens da região não como uma jornada surpreendente, traz para
veem mais o peixe como alimento prota- a vida um sentido extraordinário.

Mesa posta
DAS TERRAS DE
CARNAÚBAS AO
SABOR DO SOL:
a Carne de Sol de Campo Maior – Piauí.
Alice Nayara dos Santos

O vaqueiro do sertão
Que faz de um aboio, uma canção
Só tem lá em Campo Maior
Sabe sofrer, sabe amar
E agora vou lhe ofertar
Estes versos que eu canto em menor.
(Música Piauí, de Luiz Gonzaga)
58 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

Distante 84 km de Teresina, capital do Campo Maior é um município com uma


Piauí, Campo Maior agrega tradição, comi- população de 45.177 habitantes, numa área
da e luta. Foi neste município que aconte- de 1.676 km², e a economia está pautada
ceu a única batalha pela Independência do principalmente na atividade comercial, agri-
Brasil, em 13 de março de 1823. Sangrenta cultura e pecuária. Destacam-se a carnaúba,
e combatida, apesar do pouco armamento o vaqueiro no seu modo de viver e sua sabe-
do povo do sertão para guerrear contra o doria do trabalho e a carne de sol de Campo
major João José da Cunha Fidié, então co- Maior, símbolo da luta pela sobrevivência
mandante das tropas portuguesas, encarre- do nordestino, que pode ser consumida em
gado de manter o norte da ex-colônia fiel à diferentes preparos: na paçoca, assada na
Coroa Portuguesa. Ressalta-se que os bra- brasa, frita com baião de dois, dentre outros.
vos brasileiros lutaram com armas simples, Porém, a preparação mais apreciada pelos
impróprias à guerra, e sem experiência, e nativos é a “Maria Isabel”, feita com carne
mesmo sabendo da condição desvantajosa de sol, que é relatada a partir de registros
da luta. Esta foi perdida, porém, não em feitos pela pesquisadora Alice Santos.
vão. Fizeram com que as tropas desviassem Partimos de Teresina às 7 horas da ma-
seu caminho e destino que era Oeiras, então nhã do dia 19 de julho de 2012. “Fazia sol
capital do Piauí, onde talvez não encontras- quente” como é habitual em Teresina, mas
sem resistência e cumpririam seu objetivo. para nós esse é o clima de casa. Viajei acom-
Conhecida como Batalha do Jenipapo, panhada de um ex-morador da cidade, que
por ter ocorrido às margens do rio Jenipapo, mantém o vínculo com a terra pela sua famí-
braço do rio Longá que é af luente do rio lia e o hábito de passar os fins de semana em
Parnaíba, o principal do Piauí. Batalha de terras campomaiorenses. Percorremos os 84
vaqueiros e agricultores, perdida pela fra- km em uma hora e 30 minutos. O percurso
gilidade da foice, dos facões e das velhas foi rápido pelas boas condições da estrada.
espingardas de caça, porém honrada pelo Ao chegarmos em Campo Maior chamou-
conhecimento da mata. Os portugueses me a atenção as cores vivas da cidade que
foram posteriormente saqueados e presos contrasta com a cor sólida das carnes pen-
no Maranhão. A Batalha do Jenipapo é um duradas nas portas das casas residenciais e
evento histórico de muito orgulho para to- de comércio, como um adereço decorativo,
dos os piauienses e campomaiorenses. Há, mas que significa a sobrevivência daqueles
no município, um monumento em homena- e o símbolo da sua tradição.
gem aos heróis que lutaram na batalha à bei- Seguimos explorando a cidade, conver-
ra do rio Jenipapo, e, no mesmo, encontra-se sando com moradores. Numa prosa boa,
um cemitério onde estão enterrados esses todos contavam como era feita a carne de
heróis. Essa história prenuncia as pessoas sol, tentavam esconder seus segredos e não
que lá residem, assim como o que lá se come diziam tudo. Contudo, o discurso era unís-
e se vive. Povo bravo, aguerrido e vitorioso. sono em afirmar que a carne de sol de Cam-
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 59

po Maior é especial. Encontramos o senhor


Júnior que concordou em nos mostrar como
se faz essa delícia sertaneja. O ambiente da
salga era um puxadinho no cruzamento de
duas avenidas, bem à “beira da pista” como
se costuma falar por lá.
É nesse puxadinho que se faz a salga e a
carne é exposta à venda. O ambiente é aberto,
com um cheiro misto de carne fresca e san-
gue. Em bacias de plástico, a carne recebe o sal
para então ficar exposta aos moradores e aos
futuros compradores como descrevo a seguir.
É consenso entre os moradores de Cam- Amarração da carne de sol para ser estendida
po Maior que o segredo da carne de sol da à sombra
região é a carne não ser exposta diretamente
ao sol forte, sendo protegida por uma cober-
ta. Isso mesmo! A carne de sol é desidratada
na sombra, em local ventilado.
Para preparar a carne de sol, utiliza-se
somente “carne de vaca”. Segundo os mo-
radores, ela tem maior concentração de
gordura e é mais macia, resultando numa
melhor qualidade. A carne é desossada e
são cortadas as partes que eles consideram
especiais, como a traseira ou a posta gorda
da dianteira. Feitos os cortes, que alguns
chamam de retalhamento, e salga, a carne
é posta na salmoura imersa, por aproxima-
damente um dia, até ela começar a ficar
escura. Em seguida é lavada e espichada
com varas de madeira e colocada à sombra
para tomar vento e mormaço. Amarram-se
os pedaços de carne com um barbante para
que eles possam receber os pedaços de vara
de forma que fiquem bem esticados.
São introduzidos, de uma lateral à outra
Mantas de carne sendo espichadas
da carne, varetas de madeira de modo que
os cortes permaneçam bem esticados.
60 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

À semelhança com o que se faz em varais filhos. Tem trinta e cinco netos e dezesseis
de roupas, o grande pedaço da carne, também bisnetos. Uma família grande da qual se or-
conhecido como manta de carne, é pendurado gulha diariamente “Eu sempre digo, minha
em local com luz indireta do sol, à sombra e filha, sou rica de filhos e pobre de dinheiro”.
ao vento, para a carne sofrer a desidratação. Sua voz e seus relatos são saudosos, demons-
trando que a ausência dos filhos jamais é
superada, mesmo para quem é sertanejo
acostumado às agruras da vida nordestina.
Apesar de ter sido uma viagem curta, afirma
que já estava também sentindo falta de sua
vida tranquila em Campo Maior. Ela nos
recebeu com um sorriso no rosto para falar
da sua gente e da vida no interior.
O prazer dos relatos sobre a carne de sol
representa um enorme encanto, visível em
suas feições marcadas de sol. Sem divergir
Mantas de carne penduradas à sombra para de ninguém do município, seja da cidade
desidratar seja do campo, os alimentos também nela
despertam memórias da sua infância e das
Após esses processos de salga e matura- histórias de vaqueiros que ela presenciou
ção no vento e calor, espera-se a carne secar, e outras que lhes foram relatadas desde a
quando está pronta para consumo. Conhe- infância. O vaqueiro, símbolo distintivo
cido o processo de elaboração da carne de da região, está presente nas rezas cantadas
sol, passamos a explorar a preparação da e nas vestimentas que os moradores ain-
saborosa “Maria Isabel”, bastante apreciada da conservam naquele lugar. A carne de
pelos moradores de Campo Maior e oferta- sol que ela prepara, é também qualificada
da aos visitantes nos diversos restaurantes como especial. Relata que aprendeu com
e churrascarias da região. sua mãe, ainda menina, além dos afazeres
Essa exploração aconteceu com a gene- domésticos, a arte de conservar e fazer ren-
rosa colaboração de dona Jesus, uma dona der toda a carne que se dispunha: a salga.
de casa interiorana, sertaneja destemida e Ensaiou suas primeiras experiências na
trabalhadora. Junto com seu esposo cui- salga da carne em preparações para os irmãos,
dam de sua pequena propriedade, com gar- que eram onze. Depois, passou a preparar
ra e paixão pelas suas criações (galinhas, para aqueles que se arranchavam na sua casa,
ovelhas, cabras etc.). fossem visitantes, fossem viajantes. Finalmen-
Na época da pesquisa, julho de 2012, ela te, passou a preparar para o marido e filhos.
havia retornado há pouco tempo, de São Com um sorriso no rosto e a disponibi-
Paulo onde fora visitar alguns de seus doze lidade que somente o sertanejo tem, dona
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 61

Jesus encanta enquanto cozinha. Ela canta


músicas de lamúrias dos caboclos, hinos sa-
cros que aprendera em romarias para Ca-
nindé e Juazeiro do Norte no Ceará. Entoa
cantoria de violeiros que homenageiam as
mães sertanejas. Deslumbrava-nos de todo
jeito enquanto preparava e nos presenteava,
com maestria e exatidão, esse prato cheio de
significados, tradições e histórias. Preparo dos cortes de carne

INGREDIENTES:

• ½ kg de carne de sol de Campo Maior;


• 1 xícara de arroz cru;
• ½ tomate e ½ cebola.
• Pedaços de cheiro-verde (coentro e
cebolinha);
• Corante de urucum (colorau), pimen-
Carne de sol sendo temperada
ta do reino, cominho e alho (a gosto).

“E é assim que se faz”, diz dona Jesus:


Corta a carne de sol em pequenos pe-
daços: primeiro em pedaços compridos e
depois em pedaços menores.
Em seguida, lava os pedaços de carne
para retirar o excesso de sal e tempera so-
mente com corante, pimenta do reino, co-
minho e alho
Preparação dos temperos, tomate e cebola
Deixa a carne de sol temperada “descan-
sando”, enquanto corta a cebola e o tomate.
Reser va esses temperos e coloca a
carne de sol temperada em uma panela
para fritar em uma pequena quantidade
de óleo. Dona Jesus usou óleo de soja
( já usou, em épocas passadas, o azeite
de coco babaçu), até que a carne de sol
fique bem dourada.

Fritando a carne de sol


62 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

Depois de refogar o tomate e a cebola fogo, tampa a panela e espera o término


em outra panela, mistura bem a carne de do cozimento. Dona Jesus destampa a pa-
sol ao refogado. Em seguida, lava o arroz nela a cada 10 minutos e aperta o arroz,
cru, acrescentando-o à carne de sol e aos com os dedos, verificando o seu cozimen-
temperos, misturando-os. to. Verificado que está cozido, finaliza
Acrescenta água até marcar o meio acrescentando o cheiro-verde com a pa-
da colher de pau sem enterrá-la no arroz, nela ainda sob o fogo. Deixar aquecendo
como ensina dona Jesus. Cozer em fogo por alguns minutos, findos os quais deve
alto até a água secar. Depois abaixa o apagar o fogo e servir.

Junção do arroz cru, a carne e os temperos, numa panela só

Finalização da preparação da “Maria Isabel” e acréscimo de cheiro-verde


A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 63

“Maria Isabel”, mais que um prato saboro- nante história da sua vida. Questionada
so, é um ícone da cidade, é comida de vaquei- sobre como gostaria que fosse a foto final
ro, elaborada com uma carne que se conserva da atividade, afirmou que queria ser re-
em longas jornadas e é de fácil preparação, uti- tratada ao lado do esposo, senhor Chico
lizando-se uma só panela e de um único fogo. Dantas que também animou a cozinha
Em suas lidas, campeando o gado, basta uma com suas histórias, observando paciente-
trempe, acende o fogo, um pouco d’água, arroz mente dona Jesus cozinhar e cantar para
e carne-seca, conduzida nos seus alforjes, para todos.
o vaqueiro preparar tal referenciada comida. Na despedida, dona Jesus entoa mais
uma cantoria sertaneja, demonstrando a
fé desses nordestinos e a sensibilidade para
com a vida! “Mais uma música, minha fi-
lha”, diz ela e começa a cantar:

Eu tenho fome meu Senhor do pão da vida


Eu tenho sede da palavra do Senhor,
Com o coração cheio de esperança,
As pessoas se aproximam para jantar,
Vamos receber Jesus com toda confiança
e na santa mesa nos podemos almoçar...

“Maria Isabel” pronta


E, por fim, diz: Às vezes, eu estou
Dona Jesus exibe vaidosamente seu chorando e, às vezes, estou cantando,
prato sertanejo, uma obra temperada com é assim a vida, minha filha [...] (Dona
suas músicas de romaria e com a fasci- Jesus, 2012).

Dona Jesus, seu esposo e a “Maria Isabel” com carne de sol de Campo Maior
64 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

EM CAMPO MAIOR É ASSIM:

Tradição é coisa séria: para os campo- corta o centro da sede do município, real-
maiorenses, não se pode falar simplesmente çando a imagem das casas e do céu azul
de carne de sol, tem sempre que enfatizar a claro do lugar. Chama sempre a atenção de
região, pois a carne de sol de Campo Maior todos que passam por lá.
é tradicional e especial. Há um movimento O vaqueiro é o símbolo cultural da re-
em prol da criação de um selo da carne, gião e é celebrado por todos em razão de seu
para atestar sua origem campomaiorense, saber. Sempre que se fala algo, o vaqueiro
seja no Brasil, seja no exterior. é lembrado; sua ciência de tanger o gado e
A carne de sol da região está sempre es- seu gosto pela comida são destacados nos
tendida em tendas à beira da BR-343, que gestos e nas falas dos moradores.

Dona Jesus apresenta a “Maria Isabel” com carne de sol de Campo Maior
“BOLO CAGÃO:”
Feito Também com Histórias de Vida
Rafaela dos Santos

O carnaval pra mim é muito mais que um período


de festas... a euforia é tamanha que assusta, tudo
assusta... tanta gente, tanto carro, tanto barulho
em um pequeno povoado acostumado com o mo-
nótono do dia a dia. O que mais assusta? O partir
de cocos no meio da madrugada, o barulho do
raspador de cocos fazendo ziziz, ziziz, num ritmo
incrível e incessante que me faz acordar, pular
da cama e ajudar minha mãe com os fazeres dos
guisados... Há anos não moro mais lá, vivendo
carnavais longe da minha terra, não sinto falta do
monte de carros e gente estranha, sinto falta de
acordar no meio da noite com o partir dos cocos,
com o barulho do raspador, do cheiro de palha de
bananeira assando no forno, sinto falta da textura
da massa misturada ao leite do coco escoando
entre meus dedos, sinto falta... porque sou filha
da terra e sei fazer guisados.
(Filha de uma guisadeira, 2011).
66 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

A terra se chama Miai de Baixo e é um O que se escreve aqui faz par te da


povoado praiano que faz parte do município história de vida de sete famílias da co-
de Coruripe. O município está localizado munidade que se identifica nos detalhes
no litoral sul do estado de Alagoas, na me- de cada alimento produzido em fornos
sorregião do leste alagoano e microrregião aquecidos muito mais com a força da tra-
de São Miguel dos Campos. Distante 85 km dição do que com lenha. Basta estar à
da capital Maceió, Coruripe limita-se ao beira de um forno com um punhado de
norte com os municípios de Teotônio Vile- mulheres e crianças em volta e perguntar
la, São Miguel dos Campos e Junqueiro; ao como aprenderam a fazer uma broa, um
sul, Feliz Deserto; a oeste, Penedo e Igreja beiju... um bolo cagão. A resposta será
Nova; e a leste com o Oceano Atlântico. “faço desde criança”.
Com casas simples, composto por famí- Os guisados fazem parte da vida des-
lias de pescadores e agricultores, o povoado é sas sete famílias miaienses há gerações.
cortado pela estrada AL-101 litoral sul, fican- São mães de família que sustentam seus
do praticamente à margem do Oceano Atlân- filhos ou complementam a renda familiar
tico. A comunidade sobrevive de atividades com a comercialização desses produtos.
como coletar e descascar cocos da baía, corte Elas aprenderam a fazê-los, na prática,
da cana-de-açúcar, pescaria, ocupação em observando e ajudando suas mães e avós
alguns postos de trabalho derivados da pre- durante o preparo.
feitura e na produção dos guisados. Guisado Ao todo, são 11 produtos preparados se-
é uma designação local dos alimentos deri- manalmente para a comercialização: bolo
vados da mandioca, como: beijus, tapiocas, de puba, bolo de macaxeira com e sem
broas, farinhas, que se caracterizam por queijo, broas, beijus grosso e fino, tapio-
serem feitos para a comercialização e/ou o cas “ripiada”, dobrada, “ma casada”, pé de
envolvimento de várias pessoas no processo moleque “comprido” e o redondo, conheci-
de preparo. O cuscuz de puba, apesar de ser do como bolo cagão. Todas as variedades
um alimento derivado da mandioca, não é de guisados têm um valor significativo na
considerado um guisado, pois seu preparo é comunidade, tanto com relação à cultura
individual e não é comercializado. como com a comercialização, sendo que
o “bolo cagão” juntamente com a “ma ca-
sada” ( tapioca amassada com coco e sal e
assada na palha da bananeira) são os dois
produtos mais antigos quando nos referi-
mos a comercialização.
Rafaela dos Santos apresenta, neste re-
lato, como se dá o preparo do bolo cagão
do povoado Miai de Baixo. É uma receita
realizada por um grupo de mulheres e en-
Variedade de guisados na feira de Coruripe, Alagoas
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 67

volve o saber fazer transmitido de geração


a geração. A apresentação se embasa na
pesquisa de campo com entrevistas e re-
gistro fotográfico.
O “bolo cagão” é praticamente a mesma
receita do pé de moleque feito em outras
localidades e conhecido em grande parte
do Nordeste, porém é chamado de “bolo
cagão” no povoado devido a sua forma
arredondada. Ele é preparado com massa
puba, leite de coco, açúcar, margarina (in- Mandioca de molho

grediente mais atual na receita), sal, cravo


e canela a gosto, algumas guisadeiras põem Quando as raízes estiverem moles (fer-
coco ralado também. mentadas), escoa-se a água e põe-se as
As guisadeiras do povoado não dispõem mandiocas em uma peneira. Com a mão,
de terras para o cultivo da mandioca para fazem-se movimentos de vaivém deixan-
a extração da fécula e massa puba. Para do a massa cair em uma bacia que fica
isso, é necessário comprá-la de pequenos abaixo da peneira. Esse processo serve
produtores nas imediações do povoado. De para extrair os fiados da massa. Logo em
posse da mandioca, é hora de sentar ao re- seguida, a massa da bacia deve ser coloca-
dor do monte de raízes e começar o ofício da em um saco de pano, para ser lavada
das guisadeiras. várias vezes no intuito de extrair a acidez
da mandioca fermentada. Para saber se
O Preparo do Bolo Cagão o ácido já não é significativo na massa é
necessário experimentá-la.
Para a obtenção da massa puba, descas- Após a lavagem da massa é hora de
ca-se uma boa quantidade de mandioca, espremê-la para retirar o excesso da água.
após lavá-la para retirar os excessos de Isso é feito à mão quando a quantida-
terra, pondo de molho por, no mínimo, de for pouca, cerca de cinco quilos, ou
três dias em baldes grandes. Nessa etapa, na prensa, quando for uma quantidade
se for uma mulher que irá pôr de molho maior. Geralmente, na preparação do
há um cuidado em observar se a mesma bolo cagão, a massa é espremida com as
está com “cabeça boa”, pois se acredita que mãos, em um pano resistente. Essa mas-
quem estiver com a cabeça ruim (associa- sa, que é conhecida em outros locais do
do principalmente com o período de mens- Nordeste como carimã, é posta no pano e
truação) não pode fazer isso, pois os dias espremida até não sair mais água da mas-
de molho se prolongam substantivamente, sa. Depois é só peneirar com uma peneira
sendo inviável para o processo. de pequenos furos.
68 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

Após a massa ficar pronta, é hora de centa-se a margarina e mistura-se ainda


preparar o bolo cagão. É necessário ter mais, amassando com as mãos como se
em mãos: cocos, açúcar, margarina, sal estivesse lavando roupa em uma tábua.
e palha de bananeira. O cravo e a canela Logo em seguida o leite do coco também
são opcionais. Primeiro é preciso raspar é acrescentado e os movimentos das mãos
os cocos, tirar o leite e deixar reservado. não cessam. O cravo e a canela são es-
Despeja-se em uma bacia a massa devida- peciarias acrescentadas nesse momento,
mente peneirada, o açúcar e uma peque- ou seja, quando a massa estiver pronta,
na porção de sal e misturar tudo. Acres- promovendo gosto e cor específicos.

Massa de mandioca, peneirada e seca

Preparação
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 69

O bolo cagão é enrolado em palhas de cozida. Nesse caso, o bolinho será virado para
bananeiras e assado em um forno, seme- ser cozido também do outro lado. Às vezes
lhante ao em que se torra farinha, que deve quando acontece a queima da palha por causa
estar pré-aquecido. As palhas de bananei- da temperatura do forno é necessário trocá-la.
ras são limpas e assadas sobre o forno antes O armazenamento do bolo cagão é feito
de ser utilizadas para enrolar a mistura. atualmente em caixotes de madeira, plástico
Esse cuidado é necessário por duas razões: ou em caixa de isopor. O recipiente é forrado
primeiro, porque é uma forma de higieni- com uma ou duas toalhas de mesa e por uma
zar as palhas e, segundo, as palhas assadas toalha de plástico que serve como isolante
se tornam mais flexíveis que quando cruas, térmico. A disposição dos bolinhos dentro
facilitando na hora de enrolar os bolinhos do caixote se dá em camadas separadas por
sem que se quebrem. palhas de bananeiras devidamente assadas.
Para enrolar a massa na palha da bananei- A intenção é fazer com que demore a esfriar.
ra, coloca-se um punhado de massa e, com
cuidado e habilidade, vai se juntando as ares- O Bolo Cagão: Valor Cultural
tas da palha. Dessa maneira, o bolinho toma
forma arredondada, indo logo em seguida O bolo cagão assim como a grande maioria
para o forno aquecido. Assa primeiro um lado dos guisados do povoado é comercializado
e depois o outro. Mas não é tão simples como em vários nichos, inclusive em outros muni-
dizer “assa-se primeiro um lado e depois o cípios. Semanalmente, sete mães de famílias
outro”, é necessário saber quando o bolinho produzem uma quantidade considerável da
está no ponto de desenrolar para virar o lado. iguaria que já tem consumidor certo a sua es-
As guisadeiras fazem um tipo de teste, ba- pera. Mas o cunho cultural é o que caracteriza
tendo na palha que está virada para baixo com com maior relevância todos os processos que
a ponta do dedo para saber se a massa está envolvem a produção dos guisados.

Fornos utilizados para assar o bolo cagão


70 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

Primeiramente, porque ninguém escre- anos não favoreceram a boa produtivida-


veu àquelas mulheres as receitas nem como de da mesma, diminuindo a quantidade e
proceder nas várias situações que aconte- encarecendo o produto no ato da compra.
cem a cada semana. Da mesma forma que Com isso, as sete famílias diminuíram a
elas não escreveram aos seus filhos e filhas quantidade de bolos.
tudo que eles apreenderam sobre a produ- Contudo, as famílias envolvidas têm
ção dos guisados. Tudo foi passado de ge- a intenção de continuar com o oficio de
ração a geração nas práticas do dia a dia. A guisadeiras. Procuram outros nichos de
memória guarda o livro da vida. compra da mandioca ou compram a mas-
Os i n st r umentos ut i l i zados como sa já pronta, um pouco mais cara, mas
bacias, raspadores de cocos, peneiras, tudo é válido para não parar com a pro-
baldes, prensas, o forno, a vassoura de dução dos guisados.
palha, a velha foice de ferro etc., têm um
Minha mãe fazia, colocava em sacos de pano e eu
valor agregado, pois fazem com que se e meu irmão ia vender na feira de Pindorama, via-
lembrem do passado; uma lembrança da java um dia em cima de um burro pra chegar lá.
mãe, por exemplo, ensinando os velhos Quando vendia tudo, voltava pra casa e o dinheiro
truques para saber raspar os cocos dei- era pra comprar a comida, […] hoje eu faço e vendo
xando-os branquinhos. na feira de Coruripe, criei meus filhos com o dinhei-
Assim como os instrumentos, as téc- ro dos bolinhos. (Dona Antônia Dilma, 2011).
nicas corporais executadas pelas pessoas
que produzem os guisados estão imbuí-
das de valores culturais. As batidas da
foice para partir o coco e o barulho do
raspador ao cortar a polpa da fruta não
são meros ruídos que entremeiam as me-
mórias daquelas famílias, são indícios de
que é hora de acordar e começar a ajudar
a fazer os guisados.
A produção do bolo cagão faz par-
te do cotidiano dos miaienses há mais
de 80 anos. Atualmente as guisadeiras
enfrentam a dificuldade de captação da
principal matéria-prima, a mandioca,
principalmente por dois motivos: a ex-
tinção quase total das roças no povoado
devido, sobretudo, ao avanço dos cana-
viais e mais recentemente por causa das
condições climáticas, que nos últimos
MACIÇO DE BATURITÉ:
dos Saberes do Bolo Pé de Moleque aos
Sabores do Baião de Fava
Ana Karine da Silveira Pinheiro
Anna Erika Ferreira Lima
Márcia Maria Leal de Medeiros
Patrícia Sobreira Holanda Costa
Rafaela Maria Temóteo de Lima
72 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

Bolo Pé de Moleque: Encantamento te pelos doces e bolos caseiros, cheios de


e Tradição saber e tradição, incorporados aos hábitos
alimentares locais.
A região do Maciço de Baturité abran- Entre as portadoras do saber culinário,
ge três sub-regiões do estado do Ceará: a encontramos várias “boleiras e doceiras de
serrana - corredor verde (Guaramiranga, mão cheia”, como a dona Marilene, de 77
Pacoti, Palmácia, Mulungu e Aratuba); a anos, avó do Léo, que também é agricultor,
sub-região dos vales/sertão - corredor his- poeta e percussionista. Ouvir os relatos de
tórico ferroviário (Baturité, Capistrano, dona Marilene sobre seus quitutes foi uma
Itapiúna, Aracoiaba, Redenção e Acarape) experiência emocionante e enriquecedora.
e a de transição - sertão/litoral (Barreira e Senhora simpática, um pouco tímida, po-
Ocara). Os municípios encontram-se próxi- rém muito feliz em compartilhar suas recei-
mos à serra de Guaramiranga, localizando- tas – seus tesouros – tiradas de um caderno
se Baturité no pé da serra abrangendo ainda já amarelado pelo tempo, com algumas
alguns sítios ao longo da subida. Apresenta folhas soltas, recheado de lembranças e de
clima tropical semiárido, e sua economia histórias de vida.
está baseada na agricultura com predomi- Nós, professoras do curso de Gastrono-
nância da fruticultura. mia do Instituto Federal do Ceará - IFCE,
Assim demos início a uma excursão do fomos gentilmente recebidas por dona Ma-
gosto. Passeamos pela história e sabor do rilene, Leonardo e Izamara. Enquanto dona
destacado pé de moleque e doce de banana Marilene, auxiliada por Leonardo, mos-
no município de Baturité e finalizamos ao trava como preparar o bolo pé de moleque
sabor do sal e da resistência alimentar com feito no forno do fogão a lenha, Izamara
o baião de fava de carne de sol no municí- preparou um delicioso almoço composto de
pio de Aracoiaba. Uma excursão de vida, feijão verde, arroz, galinha caipira e pirão
história e sabor. Vamos a Baturité! de farinha de mandioca.
A cidade de Baturité conta com um belo Dona Marilene relatou que, para o pre-
patrimônio histórico e cultural, com igrejas paro do bolo pé de moleque, são utilizados
em estilo neoclássico e modernista e com diversos ingredientes, dentre os quais farinha
antiga estação de trem, inaugurada em de mandioca e carimã, que é a massa fermen-
1882, que hoje abriga um dos museus da tada de farinha de mandioca lavada. A fari-
cidade, com exposição e comercialização nha de mandioca sempre foi indispensável
de belíssimo artesanato, feito com a fibra em preparações à base de leite, em mingaus,
da bananeira, que está presente em grandes escaldados, pirão, farofa e paçoca. O amido
plantações no entorno da cidade e na serra da mandioca é transformado em goma, e uti-
de Guaramiranga. Diante desse potencial lizado no preparo de beiju, de tapioca e de
turístico, vale ressaltar a culinária local que, iguarias doces como bulins - também conhe-
em Baturité, é representada principalmen- cidas como fogosas, broas, bolos e filhoses.
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 73

tinha história de margarina nem manteiga, usava


Para conhecermos o cultivo da man- manteiga da terra. E era na palha da bananeira.
dioca, visitamos o sítio Jordão, no municí- Forra a forma, pega aquela massa com leite de coco
pio de Baturité, propriedade de dona Mari- bem forte, espalha, bota a castanha. Aí quando está
lene, que hoje mora próximo à igreja matriz assando, mistura o cheiro do bolo com o cheiro da
do município. No sítio, Leonardo, neto de palha da bananeira. Muito bom! Hoje em dia não
dona Marilene e, à época, estudante do dá pra fazer assim mais não... (Dona Nenen Maia).

curso de Gastronomia do IFCE, levou-nos


a uma cachoeira para falar sobre o plantio A Feitura do Pé de Moleque de Au-
da mandioca e nos mostrou alguns bura- toria de dona Marilene
cos feitos naturalmente na rocha onde sua
avó, antigamente, colocava a mandioca de Ingredientes: Para o mel: 2 rapaduras
molho para preparar a carimã, principal pretas de 500g, 2 xícaras (chá) de água. Para
ingrediente do bolo pé de moleque. a massa do bolo: 2 xícaras (chá) de farinha
de mandioca, 2 colheres (sopa) de erva-do-
A mandioca deve ser plantada em “terra frouxa”,
que é o tipo de terra encontrada na serra de Baturi-
ce, 2 colheres (sopa) de cravo da índia, 2
té. Faz-se um buraco do tamanho da própria enxa- xícaras (chá) de castanha de caju, 2 cocos
da e põe a terra pra frente. Então cava-se o buraco (médios) ralados, 2 copos (200ml) de água,
na frente e com a terra do buraco da frente, cobre-se 1 copo (200ml) de leite, 2 colheres (sopa) de
o buraco de trás, ficando esse com a terra frouxa. margarina com sal, 2 kg de carimã (massa
No sertão que a terra é mista, mais dura, essa téc- fermentada de farinha de mandioca lavada)
nica ajuda a obter esse “afrouxamento”. (Leonardo Para fazer o mel de rapadura, dona Mari-
Vasconcelos Pinto Castelo Branco – agricultor do
lene colocou as duas rapaduras e a água no
sítio Jordão, em Baturité).
fogo, deixando-as derreter, mexendo sem-
pre até formar um mel. Deixou esfriando
Vale destacar, dentre outras pessoas en- enquanto misturava os outros ingredientes
trevistadas, dona Nenen Maia, de 83 anos, da massa do bolo.
cuja casa se localiza na Comunidade do
Brejo, na ladeira de Guaramiranga. Ela nos
recebeu em sua casa com tranquilidade e
alegria, falou do café torrado no tacho, dos
biscoitinhos de goma, do baião de dois, da
galinha a cabidela e galinha ao molho pardo.
E sobre o pé de moleque, assim nos disse: Rapadura e mel de rapadura

É o pé de moleque mesmo... Moreninho, o moleque


legítimo, molequizinho com força, cafuso, moreno.
A preparação da massa do bolo é com-
Assim como eu sarará, rosto todo sarará – coisa posta por algumas fases:
dos antigos... Moleque forte, assim como a rapa- Secar e moer o cravo e a erva-doce. Colo-
dura, a castanha, o gergelim, o leite de coco. Não car a erva-doce numa frigideira e levar ao
74 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

fogo para aquecer um pouco e ficar mais seco, formas retangulares untadas com margari-
mexendo sempre. Retirar do fogo e triturar no na. Decorar com castanhas de caju e levar
moinho, liquidificador ou multi-processador. ao forno do fogão a lenha por aproximada-
Realizar o mesmo procedimento com o cravo. mente 40 minutos ou até que, espetando um
Enquanto fazia isso, dona Marilene nos rela- palito, este saia limpo.
tava sobre a importância de levar o cravo e a
erva-doce ao fogo antes de moer, pois deixa
o bolo mais gostoso.
Moer as castanhas de caju. Uma parte
das castanhas de caju é usada para decorar o
bolo e a outra deve ser moída para misturar
à massa. Colocar a farinha de mandioca em
uma tigela ou bacia. Acrescentar a mistura
de erva-doce, cravo e as castanhas de caju
moídos e reservar.

Margarina derretida
Cravo aquecido e castanha de caju

Preparar os cocos e derreter a margarina.


Para isso, dona Marilene com a ajuda de seu
neto, utilizou raspador e moinho manual.
A margarina derretida deve ser reservada.
Nessa etapa, deve-se untar três formas re-
tangulares de tamanho médio.
Misturar a carimã. Numa outra bacia
ou tigela, esfarelar a carimã com as mãos
e misturá-la ao coco moído. Em seguida
acrescentar a farinha de mandioca, mistu-
rada com os “temperos” - erva-doce, cravo e
castanha, a margarina derretida e o mel de
rapadura, misturando bem a massa até que
Carimã
ela fique pastosa. Colocar a massa nas três
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 75

Presenciamos, assim, de forma empol-


gante, a preparação de um tradicional e de-
licioso bolo de Baturité no Ceará, recheado
de saberes, histórias e sentimentos. Ao sair
do forno, o pé de moleque com seu aroma
inebriante de carimã, de cravo, de castanha
e de mel de rapadura, espalhava-se pelo ar,
misturando-se com o aroma do café forte.
Harmonizava-se o amargo com pouco doce
e sutilmente azedo. De textura – “nem fofa”,
nem aerada, um pouco firme, um pouco
macia, de cor marrom dourada na casca e
A mistura dos ingredientes um incrível sabor a cada fatia, derretia-se
suavemente em nossas bocas com o café.

Massa do pé de moleque
Bolo pé de moleque

Doce de Banana: o Fazer e o Degustar

No Nordeste, especialmente no Ceará,


ainda resistem a produção e o consumo de
doces artesanais, principalmente aqueles
que são feitos com frutas. No Maciço de Ba-
turité há ainda uma preferência pelo doce de
banana porque é uma região produtora dessa
fruta. Não há casa que não tenha pelo menos
Forno a lenha uma bananeira no quintal, assim como não
76 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

há sítio sem uma pequena plantação dessa apreciavam esse “símbolo de amor”, que
fruta tão popular, saboreada por todas as é o doce para dona Marilene, relatamos a
idades e paladares. Foi nesse processo de seguir o modo de preparo do mesmo.
encantamento e desvelamento das riquezas
gastronômicas de Baturité, que dona Mari- Modo de Preparo do Doce de Banana
lene também nos apresentou o doce de bana-
na, descrito abaixo com os saberes e sabores Colheita da banana. Fomos até o Sítio
que somente ali se encontram. Jordão, localizado no município de Baturi-
Para o cearense é tradicional o hábito de té, Ceará. Leonardo Vasconcelos Pinto Cas-
“adoçar a boca” após as refeições. Esse ado- telo Branco, de 23 anos, concedeu-nos um
çar vai desde um pedaço de rapadura aos relato referente à forma como era realizado
mais elaborados doces. E, para isso, desen- o cultivo da bananeira nos tempos dos seus
volveu-se uma variedade de doces: de leite, avós. Ele, neto de dona Marilene, senhora
de goiaba, de caju, de banana, de mamão que nos demonstrou o modo de fazer do
com coco etc. Entre os alimentos identifi- doce de banana semelhante ao que apren-
cadores da região do Maciço de Baturité, deu com sua mãe, descreveu detalhes dessa
encontramos o doce de banana em massa, arte, hoje não mais tão preservada.
cozido em tachos e no fogão a lenha, utensí- De acordo com o relato de Leonardo,
lios característicos da região baturiteense. Ao deve-se plantar o que é chamado de “batata”
preparar o doce de banana, dona Marilene da bananeira. A batata é a raiz da planta que
nos relata o seu saber, ensinado e aprendido crescerá originando a bananeira. Da “ba-
por gerações de mulheres tata” vão saindo os fios e
de sua família. de cada um dos fios nas-
Em Baturité, um dos cerá uma nova bananeira.
principais municípios da Quando saem cinco fios
Região do Maciço, con- e dois deles são conside-
centra-se um grande nú- rados “fracos”, é melhor
mero de plantações de retirá-los, pois os mesmos
bananeira. Ao olhar sob a irão “puxar a força” dos
serra, veem-se mares de ba- outros, enfraquecendo-os,
naneiral que enverdecem e afirma Leonardo. O culti-
enfeitam a paisagem. As- vo da banana deve iniciar
sim, a banana é uma fruta no mês de outubro, para
expressivamente consumi- quando chegar o inver-
da nesse cenário. no ela já estar enraizada.
Entre lembranças e re- Planta-se a “batata” de ca-
cordações da vida na ser- beça para baixo. São seis
ra e dos familiares que Dona Marilene meses até o primeiro
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 77

cacho “ficar de vez”, que “pra mim é quan- utilizam-se bananas maduras, com cascas
do a fruta não está madura suficiente, mas bem amareladas, selecionando os frutos
é a única que está disponível, está na vez com ausência de manchas na casca.
de ser colhida”. Depois do primeiro cacho,
geralmente colhe-se a banana de quinze em
quinze dias. São feitas duas “roças” (lim-
peza e retirada das palhas secas) ao ano.
Leonardo nos relata que isso somente é fei-
to quando estritamente necessário, “pois se
limpar demais, a bananeira torna-se muito
vulnerável, descoberta, desprotegida”. A co-
lheita é feita ainda com a banana “de vez”,
que significa um estado inicial da fruta em
relação ao amadurecimento.
Banana verde ou “de vez”
A distância entre uma planta e outra é de mais ou
menos três (3) a quatro (4) metros. A gente colhe
o primeiro cacho da bananeira de um ano a um Descascar e moer as bananas. Após a
ano e meio depois de plantada, em função do local. colheita e o amadurecimento dos frutos, os
Nos anos seguintes cada touceira produz de 1 a 2 mesmos são descascados manualmente e
cachos por ano, sem precisar plantar novamente depois processados em moinhos para trans-
(Léo Vasconcelos Pinto Castelo Branco, 11 de no- formar em polpa. Dependendo do volume,
vembro de 2011). o processamento pode ser manual, podendo
amassar com utensílios de cozinha. Dona
Após o relato sobre o plantio e cuidados Marilene utilizou um moinho manual, pas-
com a bananeira e a colheita da banana, sando os frutos no moinho até obter uma
vamos relatar como se faz o delicioso doce pasta grossa. A polpa obtida deve apresen-
dessa fruta. tar pequenos pedaços, isso evita que o doce
queime durante o cozimento.
Preparo do Doce de Banana

Ingredientes: 15 kg de polpa de banana,


6 kg de açúcar.

Colher a banana. A banana é colhida


no estágio verde de maturação, ou “de vez”
como afirmam Leonardo e dona Marilene,
deixando que a mesma amadureça fora da
planta. Para a produção artesanal do doce, Moinho manual
78 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

Cozinhar a polpa. Juntar o açúcar na nos potes, que podem ser de vidro ou plástico
proporção de dois para um, ou seja, para resistente. As embalagens devem estar bem
cada dois quilos de polpa de banana usa-se limpas, a fim de preservá-lo por mais tempo.
um quilo de açúcar. Coloca-se em um tacho Está feito, então, o doce de banana.
grande, que pode ser de cobre ou alumínio. O Assim, como para Dona Marilene, a
cozimento é feito com fogo a lenha, disposto elaboração do doce de banana remeteu
no chão. Deve-se mexer constantemente os as pesquisadoras a muitas lembranças de
ingredientes para que não grudem no tacho. infância. dona Marlene lembrou-se da
A fervura da mistura da polpa com o açúcar brincadeira “pega-pega” entre os bana-
inicia-se em um tempo de aproximadamen- nais carregados de bananas que saciavam
te uma hora. Após levantar fervura, deve-se a fome e do cheiro da lenha queiman-
mexer com mais vigor, pois a polpa vai fi- do vindo do fogão da casa da sua avó,
cando mais homogênea e facilmente gruda avisando que o doce de banana e outras
no tacho. Meia hora depois de levantar a comidas estavam prontas ou em prepa-
fervura, a massa ganha formato e apresenta ração. O degustar do doce feito por dona
viscosidade elevada e coloração bem escura. Marilene proporcionou às pesquisadoras
O envasamento deve ser feito com o doce uma grande experiência com cheiro e sa-
ainda quente, pois caso esfrie, pode solidifi- bor, e a cada colherada, mais sorrisos,
car e açucarar, dificultando sua distribuição aromas e doçura.

Cozimento da polpa de banana em tacho para Doce de banana pronto


produção do doce em fogo a lenha
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 79

Baião de Fava: Histórias da Nossa Aracoiaba é um dos treze municípios que


Tradição compõem o Maciço de Baturité e possui,
segundo dados do IBGE/2010, uma popu-
lação de 25.391 habitantes, 656,532 km² de
área. Pertence à sub-região designada Cor-
redor Vale/Sertão. Sendo sertão, representa
o ambiente da diversificação de relações e
do desenvolvimento de produtos que per-
mitiram a sobrevivência da população que
ali vive. Sua economia está ligada princi-
palmente à agricultura, sendo a banana, o
arroz, a cana-de-açúcar, o milho e o feijão,
os principais gêneros cultivados. Em se tra-
tando de criação de animais, destacam-se:
bovinos, suínos e aves. É nesse lugar aco-
lhedor que dona Brígida nos mostra como é
feito o baião de fava, reunindo ingredientes
Dona Brígida de modo tradicional e revelando os sabores
desse prato cheio de história.
Após “adoçarmos a boca”, ativarmos
o convívio e a memória, fomos encanta- O fazer baião de fava
dos por um prato salgado, que diz muito
sobre a tradição do Maciço de Baturité, o O baião de fava é consumido habitual-
baião de fava. Mais que um prato saboro- mente na região do Maciço de Baturité. O
so, representa um indício da resistência do fazer dessa comida está relacionado com a
saber fazer mantido por muitas gerações. oferta de fava nessa região. De acordo com
Saímos de Baturité e fomos ao sertão, ao dona Brígida, há um consumo maior dessa
município vizinho, Aracoiaba, onde en- preparação em períodos festivos da região,
contramos dona Brígida, que nos presen- como as festas de São João.
teou com a demonstração de uma perfeita A fava é um alimento facilmente encon-
combinação de fava, arroz, carne de sol e trado no Maciço de Baturité e o seu preparo
queijo, unidos e harmonizados, compon- apresenta melhor aceitação quando lhe é re-
do a arte do fazer baião de fava. O relato tirado o sabor amargo, sabor o qual, segun-
de dona Brígida, moradora do distrito do a entrevistada, existe somente em alguns
de Lagoa de São João, no município de tipos de fava. Contudo, é possível eliminá-lo
Aracoiaba, distante 75 km de Fortaleza, desprezando a primeira água da fervura dos
nos permitiu apreender o detalhamento grãos. Quando ela ferve, a gente escorre e tira aquela
do modo de prepará-lo. primeira água, (Dona Brígida, 2012).
80 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

Colheita da fava e do arroz da terra aos arrozais comerciais. A produção de


arroz da terra no Maciço de Baturité pode
ser identificada, principalmente no municí-
pio de Redenção, onde as áreas de várzea
ainda são utilizadas para o plantio direto,
geralmente a lanço – sementes espalhadas
manual ou mecanicamente pelo terreno uti-
lizando semeadoras, ou em linhas – método
tradicional. Outra etapa importante para o
cultivo do arroz é o preparo do solo, chama-
do inundado, para realizar o renivelamento
e alisamento do terreno.
Grãos de fava Fava e arroz são os ingredientes básicos
dessa preparação, porém, os seus sabores são
A fava. Esse grão possui um bom de- evidenciados através da combinação de car-
senvolvimento em solos pobres e em locais ne de sol, queijo, pimenta de cheiro e outros
onde o clima seco é uma realidade, como é ingredientes que aromatizam e destacam as
o caso do município de Aracoiaba. Plantada sensações causadas ao degustá-la. Os tempe-
diretamente no solo, ou semeadura direta, ros, como cheiro-verde, alho, pimentão, toma-
em covas com distância entre si de um me- te, cebola e pimenta de cheiro, utilizados no
tro por 50 centímetros e com profundidade preparo, foram adquiridos próximo a casa de
entre dois e cinco centímetros, nas quais são dona Brígida. Antigamente, alguns temperos
colocadas entre três e quatro grãos. Seu pe- como pimenta de cheiro e cheiro-verde eram
ríodo de plantio se dá principalmente entre cultivados em seu quintal, porém, essa práti-
os meses de dezembro e janeiro e a colhei- ca está se perdendo devido à oferta desses no
ta ocorre entre os meses de março a junho. mercado local. Em seguida, descrevemos a
Para dona Brígida o período da colheita da va- demonstração de Dona Brígida sobre a pre-
gem é muito bom! A gente debulha durante toda a paração do baião de fava, cujo aprendizado
primeira semana que ela foi tirada do roçado [...] se deu com sua mãe.
Assim, fica um gosto melhor.
O arroz da terra. O arroz vermelho, tam- O Modo de Preparo do Baião de Fava
bém chamado de arroz da terra, foi o pri-
meiro a chegar no Brasil, em 1535, trazido Ingredientes: meio quilo de fava, meio
pelos portugueses. O arroz branco, por sua quilo de carne de sol bovina, um quilo de ar-
vez, somente chegou ao país em 1765. Infe- roz, uma xícara de queijo cortado em cubos,
lizmente, nos dias atuais, o arroz da terra é meio tomate, dois dentes de alho, metade de
uma lavoura rara, sendo comum encontrá-la uma cebola, metade de um pimentão, uma
em seu estado selvagem, crescendo junto pimenta de cheiro, sal a gosto, meia xícara
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 81

gosto ruim, você troca a água da fervura e prova


óleo, um maço de cheiro-verde, água. de novo (Dona Brígida, 2012).
Preparo da carne de sol. A carne de sol
bovina é cortada em cubos e escaldada para Caso esteja com sabor amargo, a primei-
retirar o excesso de sal. A água utilizada ra água da fervura deve ser desprezada; se
para esse fim não é reaproveitada no prepa- não amargar, continua o preparo com essa
ro. Em seguida, a carne é lavada e reservada. mesma água, adicionando a carne de sol.
São adicionados alho e óleo. Se os grãos
de fava forem colocados de molho de um
dia para o outro, não é necessário o uso da
panela de pressão. Se usar panela de barro,
sem deixar os grãos de molho, o cozimen-
to pode durar até três horas, acrescentando
água se for necessário.

É bom quando a gente usa aquelas panelas


boas de barro. Aquelas que a comida fica com o
gosto apurado! Ali minha mãe usava [...] Os tempos
eram outros (Dona Brígida, 2012).

Preparo do baião de fava. A fava cozida


é colocada em outra panela na qual foram
adicionados os seguintes ingredientes: chei-
ro-verde, tomate, cebola, pimentão, pimenta
de cheiro, todos bem picados. Em seguida é
adicionado o arroz. Quando o arroz estiver
cozido é adicionado o queijo já cortado em
cubinhos, finalizando a preparação.
Preparo da carne de sol O preparo do prato da maneira tradicio-
nal requer, além da fava, o uso do arroz da
Preparo da fava. A fava é debulhada, terra, o qual tem sua produção diminuída
catada, lavada e colocada para ferver em cada vez mais, não apenas na região, mas
panela com água em quantidade suficien- em todo o Nordeste.
te para cobrir as sementes. Quando a água A adição de carne de sol deixa o prato
ferver, deve ser provada para saber se está mais saboroso e cheiroso. Dona Brígida
com sabor amargo. dona Brígida detalha a relata que, antigamente, adicionavam-se
importância de se provar a água devido ao ingredientes como bicarbonato de sódio e/
sabor característico da fava. ou vinagre para amaciar os grãos. Para ela,
colocar a fava de molho de um dia para ou-
E a gente tem que provar para saber se ficou aquele
amargor. Se você ferve e prova e ainda tá com o
tro com vinagre deixa os grãos ainda mais
82 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

macios ao paladar, além de deixar um sabor Foi, portanto, nesse percurso pelos sa-
que lembra feijão maduro. bores da região do Maciço de Baturité,
Nesses relatos, ressaltamos que o baião passando por Baturité com o bolo pé de
de fava pode apresentar-se como uma alter- moleque e o doce de banana e finalizando
nativa para que comunidades tradicionais com o baião de fava em Aracoiaba, que se
tenham melhores condições de vida, poden- inscrevem a tradição, a história e o amor
do contribuir para o desenvolvimento local por uma região que nos encanta e revela
e regional, bem como ter uma compreensão satisfação na voz dos gentílicos, do quão
do modo de produção e de que forma esse rico um lugar pode ser se olhado mais
alimento tem se mantido na cultura tradi- de perto. Aprendemos mais que receitas.
cional alimentar da região. Aprendemos sobre a vida.

Baião de fava cozinhando e preparado


NA CASA DA MEMÓRIA:
a Mandioca e a Farinhada no Crato – Ceará
Ariza Maria Rocha
Cicero Antonio Mariano dos Santos
84 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

A partir de falas e de vivências obser- possibilidade de apreciar o caminho, au-


vadas e registradas em fotografias e entre- mentando as expectativas e alimentando a
vistas com agricultores rurais, este texto imaginação sobre o que estaria por vir.
apresenta um relato sobre a mandioca e as Nosso primeiro destino foi a casa de
casas de farinha como manifestações cul- farinha do senhor Silva, que se localiza
turais e cotidianas sertanejas. no fundo de seu sítio, onde atende vários
Teve-se como espaço de pesquisa a loca- moradores da redondeza, aos parentes, aos
lidade Baixa do Maracujá, distrito de Santa chegados e aos amigos. Com mãos grossas
Fé, município do Crato. Conhecido como o calejadas, fruto do trabalho dedicado, o
“Oásis do Sertão”, devido à riqueza das águas agricultor nos cumprimenta e nos apresen-
nas nascentes e a diversidade de gêneros que ta sua família, o simpático sítio que possui,
ali se cultiva, o Crato se localiza no sopé da a sua casa, bem como a do irmão. Por trás
Chapada do Araripe, no extremo sul do Ceará desses espaços, de forma harmoniosa, há a
e dentro da microrregião do marcante Cariri. residência de um velho amigo.
Frente ao objetivo de relatar aspectos da A casa de nosso anfitrião, particular-
biodiversidade alimentar na região, faz-se uma mente, é cercada de inúmeras plantas, que
aproximação dos alimentos tradicionais, pro- formam um rico e belo jardim. Há um can-
dutos que portam o modo de ser da região e que teiro com plantas medicinais, legumes, tem-
podem desempenhar um papel significativo na peros e hortaliças, além de uma exuberante
segurança alimentar e nutricional da região. mangabeira. No fundo do sítio descansa-
Considerando esse cenário, Ariza Maria vam uns pés de nossa preciosa mandioca,
Rocha e Cicero Antonio Mariano dos Santos uma pequena criação de porcos, algumas
apresentam uma descrição da cultura da man- bananeiras, um pequeno poço e, finalmen-
dioca e das casas de farinha sob o ponto de vis- te, a casa de farinha, pronta para servir a
ta do conhecimento popular caririense. O leitor todos da comunidade e para celebrar a man-
é convidado a apreciar a ciência do sertanejo, dioca com suas múltiplas possibilidades.
a qual guiará a descrição desde o manejo e o Inicialmente surpreso com a nossa visita
cuidado com a terra (escolha do local, plantio, e o interesse pela mandioca e casas de fari-
cultivo e colheita) até a feitura da farinha. nha, o senhor Silva afirma que, na década
de 1950, ali na Baixa do Maracujá, existiam
As Farinhadas na Baixa do Maracujá 40 casas de farinha semelhantes à dele. E
acrescenta que, desse total, somente três so-
Partimos do Crato às 7 horas da manhã. breviveram e funcionam nos dias de hoje.
O trajeto até o Distrito de Santa Fé nos deu Ele recorda saudosamente o quão grande era
a vista da paisagem próspera e do verde da a produção de beiju, tapioca, bulins, broas e
vegetação da região. A estrada estava em filhoses que eram vendidos nas movimenta-
péssimas condições, causando atraso em das feiras do Crato. Nossa presença, naquele
nosso percurso; porém, trouxe-nos essa instante, fez aquele senhor voltar no tempo,
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 85

reconhecer as transformações e o quanto de nho daquela oferecida aos familiares e aos


história ainda vive nas suas lembranças. amigos de longa data. Se não é a prova defi-
É na farinhada que se dá o processo de nitiva do bem receber sertanejo, pelo menos
transformação da mandioca em farinha. É invoca mais ainda a alegria da farinhada.
um evento complexo que demanda várias A manufatura da mandioca é designada
etapas para sua conclusão, desenvolvidas localmente como fazer farinha. Esse fazer,
com a habilidade que somente a experiência nas casas de farinha, conta com a ajuda de
é capaz de promover, sendo naturalmente muitas pessoas, cada qual com uma função
coordenadas. Fazer farinha é um ofício ár- determinada pelo saber prático sobre o qual
duo, contudo, bastante esperado e desejado. a pessoa tem domínio. São homens, mulhe-
A farinhada é um evento repleto de signi- res, jovens, velhos, fortes e fracos. Trabalho
ficado e sintetiza um conjunto de pequenos coletivo, formado pela família (irmãos, pri-
eventos. Ali, papéis são devidamente iden- mos, tios e amigos próximos) que envolve
tificados e divididos: quem vai descascar a um acordo informal e tácito, porém solidário
mandioca, quem vai moer, quem vai torrar e agregador, com o qual todos concordam.
etc. As conversas alegres e em tom alto são Ao final da farinhada, remunera-se o tra-
quase uma música, que aproxima o processo balho com a distribuição de farinha, de goma,
artesanal com celebração, promovendo ares puba ou carimã, o que abre espaço para uma
de uma festa verdadeira, barulhenta. Até pa- imensa gama de preparações culinárias, ad-
rece mais uma brincadeira levada a sério e vindas do saber tradicional, íntimo do paladar
compartilhada por todos, do que trabalho. local: tapiocas, beijus, papas, mingaus, pirão,
Além da produção da farinha, divide-se tam- bolo de puba, biscoitos, roscas, filhoses.
bém o saber-fazer das gerações, a apreciação Fazer farinha, para o agricultor, significa
do sabor do produto, valorização da cultura garantir a sobrevivência da família e rea-
da mandioca e os laços de solidariedade e cender a esperança em dias melhores, posto
amizade entre os parentes e vizinhos. que atualmente essa prática alimentar do
Ficamos imaginando quantas histórias, agricultor familiar caririense convive com
quanto riso e felicidade já tinham existido os riscos provenientes do extrativismo da
naquele lugar. Quantas farinhadas já se pas- mandioca em larga escala, na Serra do Ara-
saram e o quanto elas foram estritamente ne- ripe, e da concorrência da farinha indus-
cessárias para a manutenção e coesão daque- trializada do município cearense de Salitre.
le grupo, daquela comunidade de irmãos e Dessa forma, evidencia-se a desmotiva-
amigos, companheiros das lidas cotidianas. ção de muitos agricultores familiares com
Apesar de não termos acompanhado o a plantação da mandioca, os quais recla-
processo de feitura da farinha como nós mam do desequilíbrio causado à f loresta
gostaríamos, fomos recompensados com a nativa da região, fato imputado às práticas
comida ofertada. Embora fôssemos visitas, da grande agricultura. Segundo relato do
a refeição servida veio com o mesmo cari- senhor Silva, o grande proprietário produ-
86 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

ziria em massa, causando imenso prejuízo avós e assim as práticas têm continuidade:
à vegetação. É diferente, portanto, daquele sabe hoje o que seus avós já faziam e ensi-
pequeno agricultor que produz mandioca naram aos filhos e aos netos. Assim ocorre
somente para a subsistência familiar, ou a transmissão da arte do saber-fazer que
seja, somente “uma goma para fazer uma transforma a raiz – potencialmente tóxica
tapioca para a merenda da tarde”, nas pa- – em comida e símbolo de tradição. Essa
lavras do senhor Silva. arte-ciência nasceu com a experiência do
trato com a terra. Ele explica ainda que al-
O Plantio e os Cuidados com a guns dos aviamentos (artefatos utilizados
Mandioca no processo de manufatura da farinha) fo-
ram herdados daqueles que o antecederam,
Enquanto o senhor Silva apresentava como, por exemplo, a roda de cruz, moirão,
sua plantação, explicava-nos o processo caititu (ralador), cochos, prensa, urupema,
do plantio da mandioca. Assim, a maniva, forno de alvenaria e o rodo.
como denomina o caule, é usada no plantio. Em outra opor t unidade, visitamos
Para saber se a maniva está em condições de também a casa de farinha pertencente
plantio é preciso observar a queda natural à família Da Hora, a qual nos acolheu
das folhas da base à extremidade. Caso este- com a gentileza de pessoas simples e de
ja ocorrendo essa queda, prossegue-se com mesa farta. Na ocasião, nosso atraso se
o plantio. Depois, espera-se o momento cer- deu não pelos problemas do caminho, mas
to para colher, transportar, limpar, raspar, pela dificuldade em encontrar a casa. Por
triturar, deixar de molho, prensar, quebrar, volta de nove horas localizamos a residên-
peneirar e torrar no forno. cia. No entanto, ficamos receosos em nos
O trato da mandioca revela também o aproximar, pois havia um cachorro gran-
cuidado com a eliminação de seu conteúdo de, preto e pouco cortês amarrado no por-
tóxico, visto como um veneno e denomi- tão da casa. De longe, gritamos para que
nado manipueira – ácido anídrico, para os alguém da casa viesse ao nosso encontro.
químicos – que escorre da massa quando Foi quando apareceu uma simpática se-
prensada. A esse respeito, o senhor Silva nhora, dona da casa, e, logo em seguida,
conta o caso de um porco que, por descui- seu filho Rodrigo.
do seu, ingeriu a manipueira e poucos dias Depois dos primeiros cumprimentos,
depois, morreu envenenado. nos esforços para explicar rapidamente
A cultura da mandioca é um costume e nossas intenções de pesquisa, fomos con-
expressa um legado indígena. Relembrando vidados para entrar na residência. A re-
seu tempo de menino, o senhor Silva ex- cepção foi calorosa. Rodrigo e sua mãe
plicou que tudo o que aprendeu sobre essa ofereceram-nos água e suco de mangaba,
cultura veio de seu pai. Esse, por sua vez, tão marcante na região. Em seguida, apre-
recebeu o saber de herança repassado pelos sentou-nos o sítio, uma propriedade gran-
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 87

de onde existem: uma casa de farinha, as como professora. Nesse espaço, juntamente
casas dos filhos, galinhas criadas soltas no com os aviamentos da casa de farinha, esta-
quintal, um pé de jaca, horta, flores, além vam carteiras escolares, lousa, giz, alguns
de várias árvores que eles faziam questão livros e cadernos de alunos. De fato, um
de apresentar e de relacionar o que faziam espaço democrático onde conviviam todas
com cada fruto. Pareceu-nos que eles já as formas de aprender.
estavam empolgados com o interesse da Nesse mesmo local funciona, também,
pesquisa. Diziam-nos, por exemplo, que do o Conselho de Base de Agricultores e a
pequi se faz o óleo, remédio, sorvete e tem- Associação de Trabalhadoras Rurais da
pero; do andu, baião de dois; da imbiriba, Agricultura Familiar – ATR AF. É um
suco e condimentos; da mangaba, o suco conselho composto por mulheres que se
que provamos, além de sorvete e mingau; reúnem mensalmente para discutir os
da pimenta de mico, tempero e remédio problemas, ações, receitas e estratégias da
caseiro; e, finalmente, do jatobá, do murici, agricultura familiar. Dessa forma, fortale-
do araticum e do cambuí, o suco. cem a prática econômica e culinária, pois
Após percorrermos o sítio, escutan- há a troca de receitas alimentares entre as
do essas explicações, a dona da casa nos agricultoras familiares.
ofereceu almoço. Inicialmente, ficamos Visitando a propriedade e conhecendo
desconcertados, já que não esperávamos o processo da casa de farinha e a feitura
tamanha naturalidade e cordialidade. da mandioca mais detalhadamente, foi
Éramos visitas inesperadas, contudo, bem possível perceber similaridades entre a
acolhidas. Tentamos explicar que iríamos casa de farinha do senhor Silva e da fa-
almoçar em outro lugar, mas conseguimos mília Da Hora, uma vez que ambas exe-
nos esquivar, uma vez em que a família fez cutam o mesmo trabalho artesanal no
questão da nossa presença, dando-nos a seio da região do Cariri. Dentre outras
certeza do seu prazer em compartilhar co- semelhanças, emerge o trabalho prove-
nosco o almoço. Naquela ocasião, o dono niente da agricultura familiar, o trabalho
da casa estava em viagem a Fortaleza para comunitário, espaço de sociabilidade e
comercializar a produção agrícola da fa- o modo de saber-fazer que se transmite
mília. Após um delicioso almoço, inicia- por gerações. Ainda somando as apro-
mos as entrevistas, tendo a casa de farinha ximações, estão alinhados os modos de
como referência para as explicações do plantio, de processamento da farinha, os
processo da cultura da mandioca. aviamentos e a função que cada um exer-
Observamos que a casa de farinha da ce nesse processo.
propriedade da família Da Hora é ampla, A seguir, relatamos as explicações da famí-
bem organizada e desempenhava outras lia Da Hora sobre o passo a passo do cultivo da
funções, tais como o de Escola de Jovens e mandioca e da feitura da farinha, gentil e gene-
Adultos - EJA, em que a matriarca trabalha rosamente cedidas, inclusive com fotografias.
88 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

Na colheita, a planta é arrancada por


completo. Em seguida, é feita a capação
da planta, ou seja, separa-se a parte aérea,
que é o caule e as folhas, das raízes. As
raízes, ainda inteiras, são transportadas
até a casa de farinha. Esse transporte é
realizado em carroças por tração animal
ou em ancas colocadas em seu dorso, ge-
ralmente de um jumento ou burro.
Após a chegada à casa de farinha, as
mandiocas são raspadas até a retirada total Mandioca arrancada e capada
da casca. Tal trabalho é realizado geralmen-
te pelas mulheres, herança de uma práti-
ca indígena, em que os homens colhiam a
mandioca e as mulheres faziam o restante
do trabalho de processamento.
Depois de raspada e limpa, a mandio-
ca é triturada para a obtenção da mas-
sa. A trituração da massa pode ser feita
manual ou mecanicamente com o uso de
trituradoras elétricas adaptadas. O mais
comum sempre foi um instrumento co-
nhecido por caititu, designação que de-
corre da semelhança entre o ruído que Raspagem da Mandioca

faz o grunhido de um porco selvagem Fonte: Arquivo da família Da Hora

chamado caititu.
Logo em seguida à trituração, a massa é
posta de molho em água parada para a obten-
ção da massa final. Este processo é realizado
com o auxílio de bacias de plástico ou dentro
de cochos – espécie de calha – de cimento
ou de madeira. Após a massa se assentar no
fundo do cocho, procede-se à coação, a qual
é feita em peneiras (sacos de nylon ou de pa-
lha de carnaúba) para a retirada do excesso
de água do produto. O próximo passo é a

Trituração mecânica da mandioca


Fonte: Arquivo da família Da Hora
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 89

passagem da massa pela prensa que consiste cerca de noventa minutos com o forno
na retirada do excesso de água, o que é reali- pré-aquecido.
zado em prensas de madeira confeccionadas
artesanalmente.

Forno da secagem da farinha


Fonte: Arquivo da família Da Hora

A Prensa
Fonte: Arquivo da família Da Hora. Depois de pronta, torrada, a farinha de
mandioca recebe dois destinos: divisão com
Após a retirada do excesso de água, a mas- familiares e ajudantes da farinhada; acon-
sa é transportada para o cocho de quebra onde dicionamento em sacos de nylon para venda
os blocos de goma são quebrados com marrete nas feiras locais. Durante muito tempo, a
de madeira no formato de pequenos grãos. guarda em grandes caixões de madeira era
a forma mais comum de armazenamento
da farinha a ser consumida pela família.

Cocho de quebra da massa de mandioca


Fonte: Arquivo da família Da Hora

O último passo consiste em torrar a


massa em fornos de cimento para a reti-
rada total da umidade e a diminuição do
grão de farinha. Este processo consiste de Produto final: Farinha de Mandioca
movimentos contínuos (vaivem) de mexer Fonte: Arquivo da família Da Hora

a massa com um rodo de madeira por


90 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

Tava na penera eu tava penerando/Eu tava no


O Projeto Mandioca namoro eu tava namorando./ Na farinhada lá
na Serra do Teixeira/ Namorei uma cabôca nun-
A família Da Hora explica que a cultura ca vi tão feiticeira/ A mininada descascava
da mandioca e as farinhadas são tão im- macaxeira/ Zé Migué no caititu e eu e ela na
portantes para a região e para suas famílias penera./ Tava na peneira eu tava penerando/
que, entre os anos 2003 e 2010, eles criaram Eu tava no namoro eu tava namorando./ O
um projeto intitulado Mandioca. Tinha por vento dava sacudia a cabilêra/ Levantava a
saia dela no balanço da peneira...
objetivo incentivar a produção e o uso da
mandioca, além de ajudar na divulgação
cultural. Tratava-se de uma festa que dura- Ademais, muitas são as deliciosas
va um dia inteiro e que tinha as seguintes preparações derivadas da mandioca e as
atividades: corrida de jumento, competição receitas são tantas que não comportam
para avaliar quem colhia a maior raiz e a nestas poucas páginas. Contudo, dentre
mulher que raspava mais rápido o maior tantas, destaca-se a tapioca, merenda
número de mandiocas, desfiles de meninas sempre bem-vinda bem cedo, à tarde ou
para escolha da Rainha da Terra, concurso à noite e que representa o modo caririense
de receitas culinárias etc. de comer e de conviver com a comida. De
No entanto, em 2010, o projeto foi refor- preparação rápida, apresentamos a seguir
mulado devido à crise do plantio na forma a forma mais usual e cotidiana em todo o
de monocultura e aos riscos de sua primazia interior nordestino.
ao ecossistema. O projeto renasce, então,
com a designação de Nativos, tendo por Preparação da Tapioca
objetivo divulgar não somente a cultura
agrícola da mandioca, mas também outras Ingredientes: meio quilo de goma de man-
culturas locais. dioca, água, sal a gosto.
A família explica ainda que, apesar do
trabalho pesado exigido pelas farinhadas, Inicialmente, deve-se umedecer, molhar
entrar noites adentro nessa atividade traz a goma, até o ponto que permita a massa
também a alegria do encontro com os fami- ficar ligada quando aquecida. Conseguir
liares e amigos. O cansaço é amenizado e esse ponto não é tão simples e exige certo
celebrado com algum sanfoneiro e cantador, aprendizado e cuidados, “é ciência!” como
animando a noitada que se transforma em dizem os sertanejos, pois se a goma ficar
festa. Transforma-se, assim, um espaço de seca ou mais úmida do que o necessário, a
sociabilidade que reforça as relações fami- tapioca se desmancha ou vira grude. Depois
liares e comunitárias, o que é bem represen- de molhada a goma, esfregar bem a massa
tado nos versos da canção Farinhada, cuja com as mãos para desmanchar os caroços
letra foi composta por Zé Dantas e ficou formados pela umidade, podendo passar
conhecida na voz de Luiz Gonzaga: a massa por uma peneira para obter uma
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 91

tapioca mais delicada e fina. A preferência numa trajetória semicircular e aparando


sertaneja é pela tapioca mais grossa, cuja com a frigideira, de forma que a parte
massa, em alguns locais, é acrescida de um que já foi assada fique para cima; ou seja,
pouco de farinha de mandioca. Adicionar saltear a massa, segundo a linguagem
o sal. Despejar uma porção da massa em gastronômica. Servir a tapioca quente
uma frigideira pré-aquecida, espalhar a ou fria, com manteiga ou nata, acompa-
goma, apertando um pouco a massa contra o nhada de café, café com leite ou chá, ou
fundo da frigideira. Quando a massa estiver de outro acompanhamento preferido de
soltando da frigideira, virar com ajuda de quem vai consumir.
uma colher ou jogando a massa para o alto,
SABORES DE VIÇOSA
DO CEARÁ:
Tradições Alimentares na Serra da Ibiapaba
Adriana Camurça Pontes Siqueira
Cláudia Sales de Alcântara
Marlene Lopes Cidrack
94 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

Doce! É a primeira impressão afetiva e vi- Apesar de o município estar, em gran-


sual que tivemos ao chegar à linda Viçosa do de parte, localizado na Serra da Ibiapaba,
Ceará. Tudo nos remete a esse sabor: o clima nota-se que uma grande área é de rele-
agradável, as flores, a abundância das frutas e vo característico das regiões tipicamen-
a alegria do povo em preservar suas tradições, te sertanejas. É uma região muito rica,
inclusive no modo de preparar e o cheiro da apresentando diversos biomas, desde o
rapadura, do doce de caju, dos suspiros, dos cerrado até a mata atlântica. Nesse sen-
tabletes de doce de buriti, entre outras delícias. tido, o município possui clima tropical
Sabe-se que as casas de engenho são es- quente, semiárido brando nas regiões de
paços de domínio dos homens, mas as recei- menor altitude (próximas à divisa com
tas dos doces saem das mãos habilidosas de o Piauí) e tropical quente subúmido nas
mulheres que têm muita história para con- regiões de maior altitude e nas encostas
tar. E as petas! Adoráveis petas que guar- da Serra da Ibiapaba.
dam segredos passados de mãe para filha. Em busca dos alimentos considerados
Criada em 1882, tornando-se o primeiro tradicionais no município de Viçosa, as
município da Serra da Ibiapaba, Viçosa é do- pesquisadoras Adriana Camurça Pontes
tada de um clima bastante agradável e que Siqueira e Cláudia Sales de Alcântara se
chama a atenção de quem chega a cidade. Lo- encantaram com a riqueza da região. Den-
calizada a 348,8 km da capital Fortaleza, com tre tantos alimentos, registraram como
54.961 habitantes e uma área de 1.311,62 km² é feita a rapadura tijolo, os detalhes do
(IBGE, 2010), o município está subdividido preparo dos deliciosos doces da região e
em uma sede e sete distritos: General Tibúrcio, como se produz a estimada peta, espécie
Lambedouro, Manhoso, Padre Vieira, Juá dos de biscoito elaborado com a massa da
Vieiras, Passagem da Onça e Quatiguaba. mandioca, muito apreciado.

Vista panorâmica da cidade de Viçosa do Ceará


A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 95

Os registros que se seguem apresentam o


passo a passo da feitura desses produtos que
são destaque na cultura alimentar local, na
perspectiva dos relatos dos moradores sobre
seus saberes e suas práticas.

A Produção da Rapadura Tijolo

Na localidade de Ingá, o receptivo admi-


nistrador da casa de engenho, senhor José
Alberto, mostrou-nos como produz a rapa- Fervura do melaço da cana-de-açúcar
dura tijolo, a partir da mistura da garapa
(caldo, sumo) de cana-de-açúcar com o talo Adição da mamona e do talo do ma-
do mamoeiro moído, procedimento descrito moeiro. Adiciona-se uma porção de meio
abaixo. De sabor único, a rapadura tijolo é litro de mamoeiro moído, o qual foi pre-
muito procurada pela população de Viçosa, viamente colocado em uma garrafa com-
visitantes e passageiros em trânsito pela Ser- plementada com água.
ra da Ibiapaba. É facilmente encontrada nas
Fazem isto há mais de trezentos anos. [...] Daqui
feiras e mercados de toda a região e supera, passa pra ali, e dali pra acolá. [...] Já tá no ponto
em consumo, a rapadura comum. de misturar. Coloca meio litro de mamona numa
Fervura da garapa. A garapa extraída da garrafa e completa com água e joga dentro do ta-
cana-de-açúcar é colocada para ferver em cho, no qual está fervendo a garapa. Fica mexendo
grandes tachos de ferro acrescida de um pou- sempre, porque se não mexer não dá certo.
co de água (quatro tachos de garapa fervem
um ao lado do outro). No primeiro tacho, Explica-nos que, para fazê-lo, utiliza o
coloca-se um maço de folhas de uma árvore talo do mamoeiro, mas este pode ser substi-
chamada mutamba para ajudar a retirar toda tuído pelo mamão verde. Em seguida, con-
a espuma (sujidades). Quando as sujidades forme o melaço vai engrossando, continua
vão sendo retiradas e o mel da cana vai en- mexendo bem.
grossando, o melaço vai passando de um ta-
É o talo, mas a fruta também presta. Só que
cho para o outro sem parar de mexer, usando dá um tijolo resfriado e o pessoal não quer.
grandes pás (espécie de colheres) de madeira. Da fruta é mais gostoso que do pau, mas pra
comércio ele não tem vez.
A gente joga tudo ali e depois deixa ela com água.
Vai tirando o sujo, o tempo todo, de um tacho para
outro. A gente limpa e coloca nestes três tachos aqui. Adição do “branquite”. Com o mel da
Deixa engrossar [tira o excesso d´água de um para cana apurado, sempre em ponto de fervura
outro], e assim sucessivamente nos quatro tachos. e mexendo sem parar, coloca-se uma subs-
(Senhor José Alberto). tância em pó branca, chamada de “bran-
96 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

quite” (branquiste), um produto clareador No engenho, o senhor José Alberto conta


à base de cal, que clareia a rapadura. Ele que são produzidas diariamente 500 rapaduras
nos explica que a rapadura escura não tem tijolo, vendidas a R$ 1,00 (um real) cada uma.
valor comercial no mercado local, embora
seja mais saborosa que a clara: Preparação da Peta
Se você chegar no mercado e não tiver um branco,
você não quer. Não é pelo gosto não, é pela cor. Por
Na localidade de Queimadas – onde
isso é que a gente usa isto aqui [mostra um vidro com existem cerca de 80 casas de farinha em fun-
um pó branco]. É um pó para clarear mais ainda a cionamento – é fabricada também a goma
rapadura. Este pó não sei de que é feito não. A gente de mandioca, a qual é utilizada em diferen-
já compra ele assim, é chamado de branquite. Se tes preparações, tais como: tapiocas, beijus,
você não botar isto aí fica roxo. Coloca um pouco roscas e a destacada peta de Viçosa. Dona
no tacho e vai clareando sim. Não era pra ter isto aí Maria de Jesus, uma das mais conhecidas
não, mas começou antes de eu nascer. Os primeiros
produtoras de petas e roscas da região de
não tinham isto não. Só era o mamão puro.
Viçosa, explicou como ocorre o processo da
preparação da peta, que vem sendo passado
Formando o tijolo. O melaço já bem apu- na sua família de geração a geração.
rado e claro vai esfriar numa gamela (recipien-
te retangular de madeira), sem que se pare de
mexer. Em seguida, passa-se o produto para
as formas de madeira para que descansem e
terminem de esfriar e endurecer. Encerrado
todo o processo, uma a uma, as rapaduras vão
sendo colocadas numa bancada, onde serão
embaladas e enviadas para o comércio local.

Preparo da peta

Casas de Farinha do Distrito de


Queimadas em Viçosa

Preparando a massa com goma de man-


dioca. Para a feitura da massa, são necessários:
7 litros de massa fresca de goma (elas não utili-
A rapadura tijolo saindo das formas zam o quilo como medida de peso. Compram
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 97

Coloca a massa num funil aberto em baixo e vai


a massa a granel e usam uma lata de óleo de 1 colocando pequenas porções na bandeja de metal,
litro como medida); 9 ovos; ½ vasilha de água e vai dando forma as petas que irão para o forno.
(a vasilha utilizada era uma leiteira de apro- Fica uma consistência meio pastosa, parecendo
ximadamente 2 litros); 2 xícaras de óleo; sal. maionese, e aí faz as tirinhas e coloca no forno a
Sobre o modo de fazer, a própria dona lenha. Quando as petas ficam secas são retiradas
Maria de Jesus, que há 22 anos faz petas na do forno. (Dona Maria de Jesus, 2011).

sede do distrito, conta-nos:

Pega a goma da mandioca acrescenta óleo, faz a


mistura, e acrescenta água fervendo, e deixa para
escaldar. Depois deixa esfriar, e quando estiver mor-
no, ou quase frio coloca os ovos, amassa com a mão e
joga um pouco de água fria pra ganhar consistência
da massa, fica com uma aparência de uma pasta.

Maria de Jesus formando as petas

A massa fica no forno por aproximada-


mente 25 minutos, sendo viradas na metade
do tempo. Quando saem do forno, podemos
ouvi-las estalando de tão crocantes que ficam!
Porcionando e embalando. Após retira-
das do forno, as petas são colocadas em cestos
de palha para esfriar e, em seguida, em sacos
O preparo da massa de mandioca para produção
plásticos de 200g e 500g, para serem comer-
da peta
cializadas no mercado local. Muito apre-
ciadas por todos os moradores da região, as
Modelando e assando as petas. As petas petas fazem parte da cultura alimentar local.
são preparadas e modeladas no quintal da
casa de dona Maria de Jesus.
Depois de pronta, a massa é colocada em
um saco de arroz de cinco quilos, com um
furo em uma das extremidades para fazer
as tirinhas que formam as petas. No lugar
de assadeiras, são utilizados latões de tintas
abertos, o que possibilita a colocação de um
maior número de petas no forno. As petas esfriando em cestos de palha
98 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

A Produção de Doce de Leite – e nos contou sua história e sua relação com
os doces. Relatou-nos que há mais de vinte
Dona Zilmar, uma conhecida produtora anos produz doces para comercialização. A
de diferentes tipos de doces, mostrou-nos o princípio, era apenas para amigos e familia-
preparo do doce de leite, enquanto seu auxi- res. Há oito anos, após o falecimento de um
liar habilidoso mexia o tacho de cobre com dos seus filhos, ela transformou esse prazer
o orgulho de quem já domina o preparo. As em trabalho. Nasceu então a ideia de trans-
frutas que utiliza na preparação dos doces formar sua casa em uma pequena fábrica,
são produzidas na propriedade. onde produz doces variados (de leite, buriti,
Misturando os ingredientes. Para o pre- jaca, laranja, goiaba, caju, maracujá, entre ou-
paro do doce de leite cremoso são necessá- tros), casadinhos, suspiros (convencional e de
rios: 10 litros de leite e 2 quilos de açúcar. café, este de sabor indescritível) e biscoitos.
Sobre o modo de misturar esses ingredien- Depois de mais de uma hora de conver-
tes, o funcionário nos explicou: sa, voltamos ao tacho onde estava sendo
feito o doce de leite cremoso. Para a nossa
Coloca dez litro de leite, dois quilos de açúcar. [...]
O leite é de Viçosa mesmo. [...] Aí coloca no fogo [a
surpresa, ainda estava sendo mexido pelo
lenha]. Eu vou mexer engrossar, só que não deixa funcionário da dona Zilmar, que esperava
encaroçar, tem que mexer até desmanchar tudo e dar o ponto. Ele nos explicou que o leite,
deixa descansar um pouquinho. É assim que eu gos- quando começa a ferver, tem que ser aba-
to de fazer. Assim no começo, vai ferver, vai botar nado para que não derrame do tacho. Daí,
massa, agora, coloca na frigideira fria. até o ponto, é um trabalho de paciência e de
muito cuidado para que o doce não grude
no fundo do tacho, tampouco derrame.
Depois de mais algum tempo, o funcio-
nário para de mexer o doce no tacho e arras-
ta-o para fora da boca do fogão a lenha. Vira-
se para nós e fala apontando para o doce:

Aqui já é o ponto. Ainda está um pouco mole, mas


até que ele esfrie, ele endurece. Quando ele não está
mais correndo aqui (no tacho), passo pra vasilha.
Pego e tiro assim do fogo e dou uma mexidinha nele
pra não pedrar. E deixa esfriar. Pega uma panela
lá dentro pra colocar o doce dentro e ele está quente
Em um fogão a lenha, o leite é colocado em um
demais, tem que mexer, assim, vai esfriando. Olhe,
tacho de cobre junto com o açúcar
aqui tem um cisquinho, mas é do açúcar, açúcar
sempre tem cisco. O doce é então colocado numa
O ponto certo do doce. Enquanto o doce
panela, raspando cuidadosamente o tacho.
de leite engrossava, dona Zilmar nos convi-
dou para um lanche delicioso – bolo com suco
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 99

Envasar, rotular e vender. Dona Zilmar ria das fartas mesas de doces, bolos e sucos
prepara os rótulos e as embalagens do doce de frutas da região oferecidos por dona Zil-
de leite, que será comercializado juntamen- mar; de petas, roscas e biscoitos oferecidos
te com os demais tipos de doce, ali mesmo, por dona Maria de Jesus; de rapadura tijolo
em uma pequena lojinha que fica ao lado ainda quente, prontinho para ir à forma, no
da fábrica de doces. engenho do senhor José Alberto. Sem dúvi-
Após presenciar tantas preparações e da, ficaram doces e saborosas lembranças
degustar tantas comidas serranas, fizemos de Viçosa do Ceará.
nossas despedidas de Viçosa com a memó-

Preparação do doce de leite

O doce de leite em tablete na prateleira da loja de


dona Zilmar
A CAJUÍNA ARTESANAL DE
FLORIANO, PIAUÍ

Samara Mendes Araújo Silva


102 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

O cajueiro é árvore nativa das Améri- processo produtivo, cujos saberes e práti-
cas, muito provável que seja originário do cas, já no início do século XX, eram de
Nordeste brasileiro. Se não o é, já nos apro- domínio de muitos círculos familiares
priamos dele; senão de direito, nos apro- piauienses. O conhecimento sempre foi
priamos de fato, pois explorá-lo é meio de transmitido pela oralidade, da prosa e do
vida, direito e dever dos habitantes dessa diálogo de mulheres da família e de ami-
terra. A paisagem demonstra essa verdade gas, na informalidade entre integrantes das
incontestável: ao cajueiro convém habitar diferentes gerações de famílias locais, inde-
em toda parte, de forma bela, imponente, pendentemente de condição social.
revelando seu traço vigilante, copas ora Sobre essa cultura e, mais especifica-
gigantes ora pequeninas, ambos com mil mente, sobre a cajuína piauiense, conheci-
braços que sempre parecem querer abraçar da Brasil afora não tanto pela degustação
quem dele se aproxima. Milhares de pessoas e pelo seu sabor, mas pelo imenso legado
se alimentam de seu fruto, a castanha, do de adoração impressa em prosa e verso, é
pedúnculo, do qual se elaboram o suco - na relatado aqui o processo de elaboração des-
forma comum e no formato cristalino que sa bebida, reconhecida por alguns como a
se designa de cajuína, de seu mel, doces e champanhe do Piauí.
outras preparações, todos riquíssimos em
ferro. A utilização das diferentes partes do A Produção de Caju no Piauí, entre
caju na alimentação humana e de animais os anos 2011 e 2012
integra o nosso cotidiano ameríndio desde
antes da chegada do colonizador europeu. A mais natural das plantações de cajuei-
Fruto nativo da região, o cultivo do caju ros no Piauí tem sofrido, entre os anos de
é, em geral, feito por aqueles que de alguma 2010 e 2012, os efeitos da estiagem prolon-
forma têm sua subsistência vinculada a essa gada, tendo como consequência, a maior
cultura, a qual dispensa a necessidade de queda na produção dos últimos cinco anos.
irrigação. Há diferentes tipos de cajueiro: A crise foi tamanha que, em 2012, terceiro
os mais comuns, imensos e que sobrevivem ano seguido de estiagem, perdeu-se grande
por décadas; há os de menor estatura, co- parte da safra. Nas palavras do técnico José
nhecidos como cajueiro-anão, dentre outras Lopes, da Empresa Brasileira de Pesquisa
variedades. Sobre a fruta em si, existem ca- Agropecuária – EMBRAPA, a flor do caju
jus doces e travosos, pequenos e grandes, de secou e não houve uma produção satisfa-
cor amarela ou vermelha. tória. Alguns produtores recuperaram um
A elaboração da cajuína iniciou-se no pouco do investimento com uma nova safra
século XIX. É a passagem do suco de caju de cajueiros recém-plantados. Na região, os
para um elemento clarificado, quando o agricultores utilizam pouco a irrigação –
açúcar da própria fruta é potencializado diante da característica resistência dessa
pelas técnicas de filtragem e fervura. Um cultura e dos escassos recursos hídricos – o
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 103

que deixa toda a lavoura quase que exclu- Em busca de produtores artesanais de
sivamente dependente das chuvas. cajuína, visitamos áreas rurais, as quais são
A seca do Nordeste é matéria anunciada habitadas por moradores que sobreviviam
por muitos meios. Mais uma vez, em face exclusivamente daquilo que se extraía da
da vilania do clima, o Sertão se reprime terra. Desde o ano de 2010, predominava a
diante de suas possibilidades e potenciali- desesperança, uma assombrosa insegurança
dades. Persiste a antiga, dolorosa e sensível em relação ao futuro, pois a cada inverno
representação da seca como um fantasma a chovia menos e a vida que se conhecia pa-
assombrar homens e mulheres. Longe das recia, a cada dia, impraticável.
estatísticas frias dos poderes estatais e da Além de nos sentirmos impotentes,
assistência de órgãos governamentais, o diante daquele quadro de insegurança e
agricultor e a produção de alimentos local de instabilidade econômica e social, co-
se ressentem, de fato, da falta de água e da meçamos a duvidar de que seríamos ca-
crueldade do clima com a ausência de pe- pazes de concluir, no prazo determinado,
ríodos chuvosos. Essa é mais uma prova de a tarefa de descrever o processo de fabri-
que a natureza age sob suas próprias regras, cação artesanal da cajuína. Lamenta uma
dobrando-se frente aos seus próprios pode- agricultora, cansada de tanta carestia: “não
res, apesar do conhecimento científico ter havia cajus, não se pode fazer cajuína, minha
elaborado, há muito tempo, técnicas e práti- filha!”. E acrescenta: “você precisa pelo menos
cas de superação da escassez hídrica nesses de um balde grande cheio de cajus bons para
períodos de estiagem. O povo do Sertão – fazer umas duas garrafas de cajuína. E não tem
faminto de comida e de assistência social e caju que dê nem meio balde!”. Essa mensagem
técnica do poder público – reconhece mais a se repetia entre as mulheres agricultoras
onipotência da natureza do que a do Estado. familiares, pois conheciam a bebida com
uma intimidade impressionante. Por onde
Em Busca da Cajuína... passávamos, nos lugares em que tivemos a
chance de conversar, fosse em Teresina, em
Finalmente, estávamos em campo para Campo Maior, em Valença, em Ipiranga
conhecer de perto a preparação da bebida do Piauí e nas demais cidades, o discurso
mais popular do Piauí. Deparamo-nos – se repetia, pois era verdadeiramente uma
confirmando aqueles primeiros dados téc- tristeza compartilhada.
nicos – com o cenário real e a triste sina do Em nossa última tentativa de encontrar
sertanejo: mais uma vez seca, pura e simples, um produtor de cajuína com uma quantida-
diante de nossos incrédulos olhos. Apesar de significativa de caju, recorremos aos téc-
de quatrocentos anos de vivência, a convi- nicos da Empresa de Assistência Técnica e
vência com este fenômeno climático ainda Extensão Rural – EMATER, que desenvol-
é motivo das tensões no interior nordestino. vem o Projeto Cajuína do Piauí: implantação
do pomar e aproveitamento do pedúnculo.
104 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

Por meio desse projeto, os técnicos visam tivamente como atividade mais importan-
desenvolver ações que incluem os cuidados te. Com a morte de Domingos Mafrense,
básicos na produção do caju (implantação trinta de suas fazendas foram doadas à
do pomar desde as mudas de caju, passando Companhia de Jesus. Após a expulsão dos
pela colheita e higienização dos frutos até o padres jesuítas, em 1760, a administração
aproveitamento integral do fruto). Os pro- das terras passou para o domínio estatal,
fissionais da empresa agrícola, dessa forma, atingindo significativo crescimento.
buscaram informações junto às famílias Historicamente, a cidade foi fundada
produtoras de cajuína em todo o estado e pelo agrônomo Francisco Parentes, e se
observaram atentamente o processo tradi- inaugurou, inclusive, a primeira escola de
cional de produção da bebida. agronomia das Américas. Essa instituição
A partir dessa possibilidade, fixamos se destinava à educação de filhos de escra-
o nosso destino. A empresa nos havia in- vos, órfãos e libertos, segundo as prescri-
formado que uma de suas técnicas iria mi- ções da Lei de 28 de setembro de 1871. Em
nistrar um curso com o objetivo de formar 1897, o pequeno povoado, que se chamava
multiplicadores para toda a microrregião Colônia Rural de São Pedro de Alcântara,
de Floriano (distante 234 km da capital foi elevado à categoria de cidade, com seu
Teresina), o que nos dava pistas de que ali nome atual, em homenagem ao marechal
poderíamos vivenciar esse processo. Na Floriano Peixoto.
programação do curso, como proposta de Muitos e muitos anos se passaram até se
amenização do difícil acesso ao caju, além atingir a configuração atual do município.
da fabricação da cajuína, seriam propostas Dotada de novos ares – embora ainda lhe
atividades tendo em vista o aproveitamento falte, felizmente, todo o folclore urbano de
integral da polpa do fruto. cidade grande – não se pode negar o levan-
tar dos prédios e a presença de jovens vin-
A Cidade de Floriano dos de todas as partes do Piauí e do Brasil,
impulsionados pela chegada do campus da
Conhecida no estado como a Prince- Universidade Federal do Piauí - UFPI. A
sinha do Sul, segundo referências locais, saber, a Floriano de hoje alberga o campo
Floriano é uma cidade originária de qua- e a urbe, o saber popular e o acadêmico, o
tro antigas sesmarias, a maioria doada a velho e o novo, sintetizando o espírito des-
Domingos Afonso Mafrense, em 1676, ses dois mundos.
sendo ele o responsável pela implantação
das primeiras fazendas. Primeiro, fixou-se A Elaboração do Suco de Caju Cris-
como atividade econômica predominante talino – a Cajuína
o cultivo da cana-de-açúcar; posterior-
mente, elevou-se a hegemonia da pecuária O curso sobre cajuína realizou-se, por-
extensiva, que veio a se estabelecer defini- tanto, no Centro de Ensino São Francisco
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 105

de Assis, uma escola para famílias de agri- o processo e os saberes continuam prati-
cultores familiares, administrada por reli- camente iguais àqueles desenvolvidos há
giosos, situada na zona rural de Floriano. mais de um século.
Por conta das chuvas esparsas que caíram Agendamos a viagem para Floriano
por lá, em 2012, um pouco mais que nas ou- com a recomendação de Betinalva de
tras regiões do Piauí, ainda se contava com que “era preciso que passássemos pelo menos
uma pequena produção de cajus, suficiente dois dias”, embora o processo da cajuína,
para ministrar o curso com o objetivo de segundo a técnica, não pedisse um perí-
preparar essas famílias, denominadas mul- odo extenso, uma vez em que a feitura
tiplicadores, em matéria dos diversos usos deve começar e terminar no mesmo dia.
dessa fruta. A responsável pelo curso foi a Caso contrário, o suco de caju fermen-
técnica Teresinha Betinalva Lima de Gois, ta e se transforma em vinagre, bastante
que trabalha com a produção de cajuína acidificado, sendo reutilizado somente
há mais de trinta anos, que nos permitiu a para fazer vinho de caju. Ademais, ao se
nossa inserção no grupo, bem como o acom- chegar a Floriano, ter-se-ia que verificar
panhamento daquela atividade. e preparar tudo: filtros, varal, moedor,
Betinalva nos informou que os profissio- bacias etc. Atentamente, constatar que
nais da Empresa de Assistência Técnica e nada está faltando, antes de começar,
Extensão Rural – EMATER, por trabalha- para finalmente, no dia seguinte, começar
rem com a extensão rural, dedicam-se ao a colheita dos cajus bem cedo.
melhoramento e aproveitamento integral No dia marcado, saímos de Teresina às
conforme a safra de cada produto. Dentre cinco horas da manhã e seguimos em dire-
os vários produtos com os quais trabalham, ção a Floriano. Chegamos por volta das oito
figuram a soja, o sorgo (tipo de milho muito e meia e fomos direto para o local previsto
resistente à seca), o coco babaçu e o caju. para a realização do curso, onde os alunos
Quanto à cajuína, antes de elaborarem nos esperavam. Algumas pessoas diziam
o curso que hoje ministram, tiveram de re- que “havia poucos cajus nos pés e não sa-
alizar uma larga pesquisa junto às comuni- biam se o curso ia dar certo!”. Betinalva os
dades que produzem a bebida. Houve algu- tranquilizou e foi verificar a quantidade de
mas alterações que foram introduzidas no frutos existentes nas árvores. Ao retornar
curso e que envolvem o processo de fabri- do cajueiral, ela afirmou aos presentes: “Não
cação da cajuína: a substituição da cola de tem com que se preocupar, tem caju que sobra!
sapateiro por gelatina, a padronização das Vamos trabalhar”.
garrafas, todas transparentes e com volume A produção de cajus no Piauí inicia-se
aproximado de 500 milílitros, a necessi- anualmente entre os meses de setembro e ou-
dade do uso dos rótulos para identificar e tubro, quando ocorrem as primeiras chuvas
valorizar o produtor, além da aplicação do que indicam o fim do período de estiagem,
varal para secar as garrafas. Contudo, todo denominadas “chuvas do caju”. Tais chuvas,
106 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

segundo o saber sertanejo, é que fazem flo-


rescer, amadurecer e adocicar os cajus. No
ano de 2012, como já relatado, a escassez
fez com que os cajueiros reduzissem drasti-
camente a produção de frutos, o que com-
prometeu a produção artesanal da cajuína.

Da Organização dos Materiais e


Equipamentos
Montagem do filtro ou coador de tecido de
É consenso o saber afirmativo de que
algodão
a manufatura de uma boa cajuína come-
ça com a colheita. Para procedê-la, todo o
material instrumental tem que estar pre- Em seguida, foi montado o varal onde as
viamente preparado, disponível e acessível. garrafas irão secar depois de lavadas. Esse
Tem-se que pensar exatamente onde colocar varal, desenvolvido no Piauí, serve para
os cajus colhidos, pensar também sobre o que, depois de higienizadas, as garrafas fi-
local onde os pedúnculos serão lavados e quem secando ao ar livre sem que a boca das
moídos, bem como onde o suco será filtrado mesmas tenha qualquer contato direto com
e cozido. Foi essa a tarefa central no primei- alguma superfície e material. Os multiplica-
ro dia: um galpão foi arrumado, preparado dores difundem seu uso, tendo em vista sua
para o processo tão importante e significa- praticidade e manuseio, bem como o baixo
tivo que seria sediado ali no dia seguinte. custo de fabricação, posto que é confecciona-
Foram postas duas mesas, lado a lado, do somente com fios de barbante e madeira.
onde os cajus colhidos seriam separados pela
cor. Depois, em outra mesa, foi instalado o
moinho onde os cajus, depois de lavados, se-
riam moídos e prensados para tirar a maior
quantidade possível de suco. No espaço se-
guinte, foram montados os filtros, que são, na
verdade, grandes cortes de tecido de algodão,
bem finos, montados em formato de cone, por
onde o suco de caju deve passar várias vezes.
Embaixo desses filtros são colocados baldes
tampados com o mesmo tecido de algodão por
onde o suco passa uma vez mais, sendo nova- O varal de garrafas
mente coado. Dessa forma, o suco é coado,
filtrado, etapa que garante pureza e limpidez.
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 107

O Passo a Passo da Elaboração da área, reforçando-se o sentimento de união,


Cajuína de trabalho comunitário.
Depois de colhidos, os frutos são le-
O caju é colhido bem cedo, “antes do sol vados e, em seguida, separados, pois na
esquentar, senão os cajus ficam moles, e com elaboração da cajuína “não podem ser
todo cuidado e de preferência com as mãos misturados cajus vermelhos com os ama-
para não ferir a fruta”. Para agilizar a colheita relos”, disseram os mais antigos. Como
dos cajus, todas as pessoas disponíveis devem relata dona Francisca Costa, não se po-
participar dessa empreitada. No grupo, não dem juntar todos, “porque cada tipo de
houve distinção: no processo de produção da caju tem um gosto.” Betinalva nos expli-
cajuína, todos – mulheres, homens, crianças e cou que antigamente existia essa crença
jovens – participam do processo inteiro, não de que não se podia misturar os cajus de
há uma rígida divisão de trabalho. cores diferentes, posto que estragaria a
Atualmente, o processo de fabricação da cajuína. Nos dias atuais, pesquisas indi-
cajuína é uma atividade geralmente coletiva. cam que o desandar, na expressão popular,
Outrora, quando era uma atividade exclusi- não tem relação com as cores da fruta e
vamente familiar, nem todos os membros do que essa tradição é mantida em respeito
grupo se envolviam diretamente na produ- àqueles que ainda creem nisso. A seleção,
ção. Como atividade que se tornou geradora na verdade, serviu basicamente para sepa-
de renda e trabalho para comunidade, a cada rar cajus verdes e maduros daqueles frutos
dia os moradores de uma determinada área machucados. Nesse momento, tem que ha-
se reúnem em uma propriedade para produ- ver cuidado e atenção para não machucar
zir a cajuína com os cajus colhidos naquela aqueles que estão íntegros.

À direita, cajus misturados aguardando a separação e, à esquerda, cajus amarelos separados


108 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

Depois de selecionados, os cajus foram


levados a um local, fora do galpão, para
serem lavados, higienizados. São retira-
dos quaisquer resíduos como areia, folhas,
fragmentos de caule etc.

Retirada manual das castanhas – descastanhar

Após a retirada das castanhas, os frutos


são levados para a extração do suco, utilizan-
do-se de um moinho manual para moer os ca-
jus. Antes, jogava-se fora a fibra e o bagaço do
caju ou destinava-o para a ração dos animais.
Hoje, incentivado por técnicos, já se começa a
Lavagem dos cajus ensaiar o aproveitamento da fibra em prepa-
rações doces e salgadas. Essa riqueza decorre
Para a retirada da castanha - o descasta- de progressivo conhecimento, popular e cien-
nhar -, o trabalho desenvolvido é manual tífico, acerca do aproveitamento total do caju.
e realizado com muito cuidado para não
machucar os frutos ou sujá-los.
É um momento de descontração quan-
do se tenta lançar dentro do balde, ao lon-
ge, as castanhas arrancadas do pedúncu-
lo. Passado o divertimento, alguém alerta
que aquele é um momento de seriedade
e não “de brincadeira”, porque as casta-
nhas são partes essenciais do caju e têm
maior valor de mercado. Depois de re-
tiradas do pedúnculo, as castanhas são
assadas e utilizadas em receitas doces e
salgadas, podem ser vendidas para con-
sumo em diversas preparações ou ainda
consumidas in natura.

Moedura dos cajus para extração do suco


A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 109

Depois de moer, é hora de tirar o travo misturar bem. Deixa-se o suco em repouso
do suco. É necessário fazer a suavização do por aproximadamente 15 minutos antes de
tanino, substância própria do fruto que pro- se realizar a filtragem. A prática de cortar
duz o seu gosto travoso característico. Anti- o ranço, aliada à quantidade de filtragens,
gamente, o “corte da água do caju” era feito bem como o tempo de fervura são fatores
com resina do próprio caju. Para fins de cla- determinantes da coloração da cajuína.
rificação, já foi, no passado, feito uso da cola Terminada a preparação do suco, rea-
de sapateiro. Betinalva explica que, durante liza-se a filtragem para retirada de quais-
as pesquisas desenvolvidas em parceria com quer impurezas que ainda possam existir.
a UFPI, descobriu-se que quando a barra de O suco é passado várias vezes pelos filtros
cola de sapateiro era dissolvida no suco de de algodão até que se obtenha a cor mais
caju, remanesciam resíduos tóxicos. Aos pou- clara possível. É nessa fase que, segundo
cos, portanto, conseguiram superar o uso da os participantes do curso, reina o segredo
cola, substituindo-a por gelatina sem sabor. da obtenção da cor, quando a coloração é
A gelatina industrializada é utilizada na definida conforme “a ciência e o conheci-
proporção de 0,2 gramas por litro de suco. mento de quem está produzindo a cajuína,
Depois de acrescentar a gelatina, deve-se por isso tem umas mais claras que outras.”

Aplicação da gelatina para “cortar o ranço” do caju

Filtragem do suco
110 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

Após a retirada do ranço e feita a fil-


tragem, o suco cristalino passa para a
fase do engarrafamento. As garrafas de
vidro que receberão o líquido foram de-
vidamente limpas e secas no varal. Se
não estiverem limpas e secas, podem
“azedar” a cajuína. As garrafas foram
padronizadas no volume de 500 milíli-
tros e na coloração transparente, como
dito anteriormente. Antigamente, usava-
se qualquer garrafa disponível. A única
exigência, portanto, era que elas tinham
que ser previamente lavadas, esteriliza-
das e colocadas para secar para que não
comprometessem de for ma alg uma a
qualidade e o sabor da bebida.
Então, enquanto alguns filtravam o suco,
Lavagem das garrafas
outros lavavam e colocavam as garrafas
para secar no varal. Depois de secas, foram
trazidas para dentro do galpão e colocadas
nas mesas para que, então, recebessem o
suco filtrado e clarificado.
Finalizada a introdução do suco nas gar-
rafas, tamparam-se os recipientes. Nessa
fase, usou-se uma máquina simples desen-
volvida para esse fim, uma espécie de tor-
no de ferro preso a um pedaço de madeira.
Após o engarrafamento, uma garrafa de ca-
juína somente será aberta pelo consumidor
final, afirmaram os participantes.

Engarrafamento do suco
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 111

Após o cozimento, as garrafas de cajuína


são retiradas dos tachos e expostas ao ar li-
vre para atingirem a temperatura ambiente.

Processo de vedação das garrafas

Cajuína resfriando ao ar livre


Suco engarrafado

Devidamente lacradas, as cajuínas foram Foi introduzido o uso de rótulos para


levadas para ser cozidas por algumas horas em identificação dos produtores da bebida,
grandes vasilhames. Do lado de fora do galpão, necessidade nascida com a busca da pro-
foram montadas e acesas duas trempes e, sobre fissionalização do processo de fabricação
elas, colocados grandes tachos cheios de água, da cajuína. Outra inovação do processo
onde o suco envasado foi posto para cozinhar. é a utilização de embalagens que fazem
referência direta ao Piauí. No processo
tradicional de produção da cajuína, a fa-
bricação se encerra com o resfriamento
das garrafas, as quais, posteriormente,
são guardadas para consumo próprio da
família que a produziu ou para presentear
parentes, amigos e compadres.

Fervura das garrafas


112 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

Finalizando... amigo recém-falecido, em Teresina – apenas


os dois em tão grande e incompleta casa – foi
Atualmente, a cajuína pode chegar ao presenteado por ele com uma rosa menina
consumidor final, piauienses e visitantes, de enquanto chorava compulsivamente, con-
diferentes formas: compra direta do produ- solado por um copo de cajuína e pelo afago
tor em feiras, mercados, quiosques localiza- do pai de seu amigo. A letra da canção diz:
dos nas margens de estradas; indiretamente,
Existirmos: a que será que se destina?
por meio de cooperativas de produtores que Pois quando tu me deste a rosa pequenina;
negociam com pequenos, médios e grandes Vi que és um homem lindo e que se acaso a sina;
comércios das áreas urbanas. Do menino infeliz não se nos ilumina;
Para os piauienses, a cajuína não simbo- Tampouco turva-se a lágrima nordestina;
liza apenas uma bebida, mas se relaciona Apenas a matéria vida era tão fina;
diretamente com a história da formação do E éramos olharmo-nos intacta retina;
território e com os laços familiares. Dessa A cajuína cristalina em Teresina.

forma, a Fundação Cultural do Piauí - FUN-


DAC e o Instituto do Patrimônio Histórico Na suave malemolência nordestina, fren-
e Artístico Nacional - IPHAN realizaram te à dureza do sol escaldante do sertão e
pesquisas que demonstram o fato de a bebi- do descampado dos campos do Piauí, to-
da estar diretamente ligada ao sentimento de davia, traduzimos esses versos de Caetano
pertencimento ao Piauí, além de estar identi- com carinho. Para nós, a canção apoia seus
ficada com as práticas alimentares tradicio- versos na descrição de um cotidiano que
nais locais. A cajuína, alimentada por essas nem sempre nos presenteia com um obje-
iniciativas, foi tombada como patrimônio tivo, mas que nos envia mensagens através
histórico cultural do Piauí pelo governo do de pequenos símbolos: quem sabe o miste-
estado. Tramita, ainda, em âmbito federal, rioso nascimento de uma flor do cajueiro
o processo de registro da bebida como bem possa explicar os motivos que nos levam a
cultural imaterial nacional. aceitar as durezas impostas, ainda sentindo
Um bem cantado em versos que povoa a ausência daqueles que o calor do sertão
a imaginação piauiense, quando Caetano levou. Essas emoções são despertadas e
Veloso canta sua Cajuína, remete-nos, ini- suavizadas pelos presentes abençoados do
cialmente, à romântica ideia de homenagem sertão, nosso caju e a bem-vinda cajuína.
à Teresina, à doce bebida e a essa vida ser- Se a intenção da canção não era lembrar-se
taneja repleta de dureza. A realidade, con- desse todo complexo de piauienses e nordes-
trariamente, desmancha essa nossa primeira tinos, ainda assim, como artesãos do caju,
impressão: a canção aproxima-nos, por sua homenageados nos sentimos.
vez, de Torquato Neto, parceiro de Caetano
na Tropicália que acabara de se suicidar. O
compositor relata que, em visita ao pai do
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 113

Rotulagem das garrafas


SOBRE OS AUTORES
José Arimatea Barros Bezerra Alice Nayara dos Santos

Licenciado em Pedagogia pela Univer- Licenciada em Geografia pela Univer-


sidade Estadual do Ceará, especialista em sidade Estadual do Piauí e em Pedagogia
Educação Popular em Saúde pela Universi- pela Universidade Federal do Piauí. Mes-
dade Estadual do Ceará e Escola de Saúde tra e aluna do Doutorado em Educação do
Pública do Ceará. Doutor em Educação Programa de Pós-Graduação em Educação
Brasileira, pela Universidade Federal do da Universidade Federal do Ceará. Membro
Ceará (UFC), e Pós-Doutor em Histó- do Grupo Alimentação, Gostos e Saberes
ria pela Universidade Federal do Paraná. – AGostoS. É bolsista de Doutorado pelo
Professor da UFC (Faculdade de Educa- Conselho Nacional de Desenvolvimento
ção – curso de Pedagogia, Programa de Científico e Tecnológico (CNPQ).
Pós-Graduação em Educação Brasileira e E-mail: alicesantos.ufpi@gmail.com
curso de Bacharelado em Gastronomia).
Coordenador do Projeto Alimentos Tradi- Anna Erika Ferreira Lima
cionais do Nordeste (ALINE) e do Grupo
Alimentação, Gostos e Saberes (AGostoS), Licenciada e bacharel em Geografia pela
vinculado ao programa de Pós-Graduação Universidade Federal do Ceará (UFC), mes-
em Educação Brasileira (UFC) e líder do tra em Desenvolvimento e Meio Ambiente
Grupo de Pesquisas Laboratório de Gas- pela UFC e aluna do Doutorado em Geo-
tronomia: ciência, cultura e arte. grafia (UFC). Professora do curso superior
E-mail: ja.bezerra@uol.com.br de Tecnologia em Gastronomia do Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
Adriana Camurça Pontes Siqueira do Ceará (IFCE), campus Baturité.
Membro do Conselho de Segurança Ali-
Bacharel em Nutrição pela Pontifícia mentar e Nutricional (CONSEA) do Ceará.
Universidade Católica de Campinas, mes- E-mail: annaerikaufc@yahoo.com.br
tre e doutora em Ciência da Nutrição pela
Faculdade de Engenharia de Alimentos da Ana Karine da Silveira Pinheiro
Universidade de Campinas. Professora do
curso de Bacharelado em Gastronomia da Bacharel em Economia Doméstica pela
Universidade Federal do Ceará. Universidade Federal do Ceará (UFC) e em
E-mail: adriana.nutri@ig.com.br Turismo pela Faculdade Evolutivo. Mestra
em Cultura do Alimento e do Vinho para a
116 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

Gestão de Recursos Enogastronômicos pela Beatriz Helena Peixoto Brandão


Universidade de Ca´Foscari Venezia, Itália.
Professora do curso superior de Tecnologia Bacharel em Direito (UFC) inscrita na
em Gastronomia do Instituto Federal de Ordem dos Advogados do Brasil, Ceará.
Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará Aluna do Mestrado em Educação do Pro-
(IFCE), Campus Baturité. grama de Pós-Graduação em Educação
E-mail: karinesilveira@ifce.edu.br da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Membro do Grupo AGostoS e do Labora-
Ana Karoline de Oliveira Costa tório de Gastronomia: ciência, cultura e
arte. Foi bolsista de Iniciação Tecnológi-
Bacharel em Nutrição pela Universidade ca e Industrial do Conselho Nacional de
de Fortaleza, aluna do curso de Bacharelado Desenvolvimento Científico e Tecnológico
em Gastronomia e do Mestrado em Ciência (CNPQ) do Projeto Práticas Alimentares
e Tecnologia de Alimentos da Universidade Nordestinas: estudo sobre alimentos tradi-
Federal do Ceará. Foi bolsista de Iniciação cionais dos estados do Ceará e do Piauí,
Tecnológica e Industrial do Conselho Nacio- Projeto ALINE. É bolsista de mestrado da
nal de Desenvolvimento Científico e Tecno- Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal
lógico (CNPQ) do Projeto Práticas Alimen- de Nível Superior (CAPES).
tares Nordestinas: estudo sobre alimentos E-mail: beatrizhpb@hotmail.com
tradicionais dos estados do Ceará e do Piauí,
Projeto ALINE. É bolsista de mestrado da Bruno Alves Gualberto 
Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES). Aluno do curso de Bacharelado em
E-mail: karol_nutri@hotmail.com Gastronomia da Universidade Federal do
Ceará. Foi bolsista de Iniciação Tecnológi-
Ariza Maria Rocha ca e Industrial do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico
Licenciada em Educação Física pela (CNPQ) do Projeto Práticas Alimentares
Universidade de Fortaleza (UNIFOR), Nordestinas: estudo sobre alimentos tradi-
especialista em Educação Física Infantil cionais dos estados do Ceará e do Piauí,
(UNIFOR) e Filosofia Política pela Uni- Projeto ALINE.
versidade Federal do Ceará (UFC). Mes- E-mail: bag3z@yahoo.com.br
tra e Doutora em Educação Brasileira pelo
Programa de Pós-Graduação em Educa- Cláudia Sales de Alcântara
ção da UFC. Professora do curso de Edu-
cação Física na Universidade Regional do Bacharel em Arquitetura e Urbanismo
Cariri (URCA). pela Universidade Federal do Ceará pela
E-mail: arizarocha2000@yahoo.com.br Universidade Federal do Ceará (UFC) e em
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 117

Teologia pelo Instituto Cristão de Estudos Hermano José Maia Campos Filho
Contemporâneos, licenciada em Pedagogia
pela Universidade Metodista de São Paulo. Licenciado em Educação Física pela
Mestra e Doutora em Educação Brasileira Faculdade de Educação da Universidade
pelo Programa de Pós-Graduação em Edu- Federal do Ceará (UFC), Chef de Cozinha
cação da UFC. Italiana pelo Italian Culinary Institute for
E-mail: claudia.comunicacao@gmail.com Foreigners (ICIF), especialista em Gastro-
nomia pela Faculdade Católica do Ceará.
Cicero Antonio Mariano dos Santos Professor do curso de Bacharelado em Gas-
tronomia da UFC.
Bacharel em Engenharia Agronômica E-mail: hermano_jt@yahoo.com.br
pela Universidade Federal do Ceará, cam-
pus Cariri e aluno do Mestrado em Ento- Jorge Washington da Silva Frota
mologia da Universidade Federal de Viço-
sa. Foi bolsista de Iniciação Científica do Licenciado em Educação Física pela Fa-
Conselho Nacional de Desenvolvimento culdade de Educação da Universidade Fe-
Científico e Tecnológico (CNPQ) do Projeto deral do Ceará (UFC), Mestre em Educação
Práticas Alimentares Nordestinas: estudo Brasileira pelo Programa de Pós-Graduação
sobre alimentos tradicionais dos estados do em Educação da UFC. É membro do Corpo
Ceará e do Piauí, Projeto ALINE. de Bombeiros do estado do Ceará e professor
E-mail: anttony.ms@gmail.com da rede municipal de ensino de Fortaleza.
E-mail: jorgeetech@yahoo.com.br
Francisco José Alves de Aragão
Leopoldo Gondim Neto
Bacharel em Música pela Universida-
de Estadual do Ceará e aluno do curso de Graduado em Direito pela Universidade
Bacharelado em História da Universidade Federal do Ceará (UFC) e em Gastronomia
Federal do Ceará. Foi bolsista de Inicia- pela Faculdade de Turismo e Hotelaria do
ção Tecnológica e Industrial do Conselho Serviço Nacional de Aprendizagem Co-
Nacional de Desenvolvimento Científico e mercial (SENAC), com aperfeiçoamento
Tecnológico (CNPQ) do Projeto Práticas na Escola Cordon Bleu de Paris. Especia-
Alimentares Nordestinas: estudo sobre ali- lista em Gestão Pública e em Qualidade
mentos tradicionais dos estados do Ceará e dos Serviços de Alimentação pela Univer-
do Piauí, Projeto ALINE. sidade Estadual do Ceará (UECE), mestre
E-mail: zezearagao@gmail.com em Educação Brasileira pela Universidade
Federal do Ceará (UFC). Professor do curso
de Bacharelado em Gastronomia da UFC.
E-mail: leoggneto@hotmail.com
118 A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE

Márcia Maria Leal de Medeiros Rafaela Maria Temóteo Lima

Bacharel em Engenharia de Alimentos Bacharel em Engenharia de Alimentos


pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e pela Universidade Federal do Ceará (UFC),
Mestra em Ciência e Tecnologia de Alimen- Mestra em Ciência e Tecnologia de Alimen-
tos pela UFC. Professora do curso superior tos pela UFC, aluna do Doutorado em Ci-
de Tecnologia em Gastronomia do Instituto ência e Tecnologia de Alimentos (UFC).
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Professora do curso superior de Tecnologia
do Ceará (IFCE), campus Baturité. em Gastronomia do Instituto Federal de
E-mail: mleal@ifce.edu.br Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará
(IFCE), campus Baturité.
Marlene Lopes Cidrack E-mail: rtemoteo@ifce.edu.br

Bacharel em Odontologia pela Universi- Rafaela dos Santos


dade Federal do Ceará (UFC), especialista
nas seguintes áreas: Periodontia, Educação Licenciada em Geografia pela Universi-
em Saúde Coletiva e Metodologia do Ensi- dade Federal de Sergipe (UFS), membro do
no e Pesquisa. Gerontóloga pela Socieda- Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Alimen-
de Brasileira de Geriatria e Gerontologia tos e Manifestações Tradicionais da UFS.
(SBGG), Mestra em Educação em Saúde E-mail: rafaela.ufs@hotmail.com
pela Universidade de Fortaleza e Doutora
em Educação Brasileira pela UFC. Presi- Rodrigo Viriato Araújo
dente do Comitê de Ética em Pesquisa da
Academia Cearense de Odontologia. Bacharel em Ciências Contábeis pela
E-mail: mcidrack@gmail.com Universidade Federal do Ceará (UFC),
Mestre em Educação Brasileira pelo Pro-
Patrícia Sobreira Holanda Costa grama de Pós-Graduação em Educação da
UFC, Cozinheiro Chefe Internacional pelo
Bacharel em Economia Doméstica pela SENAC/São Paulo, em associação com o
Universidade Federal do Ceará (UFC), es- The Culinary Institute of America, Nova
pecialista em Ciência de Alimentos pela York, e Chef Confeiteiro formado pela Eco-
Universidade Estadual do Ceará. Professora le Ritz Escoffier, Paris. Professor bachare-
do curso superior de Tecnologia em Gastro- lado em Gastronomia da UFC.
nomia do Instituto Federal de Educação, E-mail: rviriato@gmail.com
Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), cam-
pus Baturité.
E-mail: patriciaholanda@bol.com.br
A LIMENTOS TRaDICIONaIS DO NORDESTE 119

Samara Mendes Araújo Silva

Graduada em História, Comunicação


Social-Jornalismo e Teologia. Especialista
em História Sócio-Cultural pela Universi-
dade Federal do Piauí, UFPI. Mestra em
Educação pela UFPI e Doutora em Edu-
cação Brasileira pela Universidade Federal
do Ceará. Pós-Doutorado em História na
Universidade Federal do Paraná, junto ao
Grupo de Pesquisa História da Alimenta-
ção: história, cultura e sociedade. É docente
do curso de História da Universidade Esta-
dual do Piauí e professora da Secretaria da
Educação do Piauí.
E-mail: samara.mendes@ig.com.br

Tiago Sampaio Bastos

Licenciado em Educação Física pela


Faculdade de Educação da Universidade
Federal do Ceará (UFC), Mestre em Edu-
cação Brasileira pelo Programa de Pós-Gra-
duação em Educação da UFC, professor da
rede estadual de ensino do Ceará.
E-mail: tiago_ufc1@hotmail.com

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