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ELISABETE DA TRINDADE CONTADA POR ELA MESMA

Conrad de Meester

APRESENTAÇÃO

Elisabete da Trindade, contada por ela mesma, é uma pequena biografia da jovem carmelita
francesa de Dijon.
Elisabete Catez viveu 26 anos e meio. Nasceu no campo militar de Avor no dia 18 de Julho
de 1880 e morreu no dia 9 de Novembro de 1906. Depois da morte do pai, aos sete anos, foi
educada, humana e religiosamente, junto de sua mãe e a sua irmã Guida. Fez a Primeira Comunhão
e recebeu a Confirmação. Aos 14 anos fez em privado o voto de virgindade perpétua e consagrou-se
à Virgem Maria. Recebeu o primeiro prêmio de solfejo superior e o primeiro prêmio de piano no
Conservatório de música de Dijon. A sua juventude foi alegre e socialmente partilhada com as suas
amigas e as de sua mãe. Durante as férias, passeou bastante, viajou muito, visitou Lourdes.
No dia 2 de Agosto de 1901 entrou no Carmelo de Dijon, com vinte e um anos, onde
recebeu o nome de Elisabete da Trindade. Viveu aí seis anos de vida contemplativa. No dia 8 de
Dezembro de 1901 tomou o hábito. No dia 11 de Janeiro de 1903 fez a Profissão religiosa. A 21 de
Novembro de 1904 escreveu a sua célebre oração Ó meu Deus, Trindade que eu adoro. Em Março
de 1906 ingressou na enfermaria conventual gravemente doente. Em Julho escreveu para sua irmã
Guida O Céu na fé. Fez o seu retiro pessoal de 15 a 31 de Agosto e anotou os seus pensamentos e
sentimentos espirituais. A 24 de Setembro entregou o caderno à Madre Germana de Jesus com o
título Último Retiro espiritual de Laudem gloriae. A 1o. de Novembro comungou pela última vez.
No dia 9, depois do toque do Angelus, a "casa de Deus" partiu, às seis da manhã, para a "casa do
Pai" onde é para sempre "louvor de glória da Santíssima Trindade".
Uma vida breve, mas densa de conteúdo humano e riqueza espiritual, na qual não faltou a
aventura da santidade. Elisabete enraizada e fundada no amor (Ef 3, 17), viveu "a grandeza da sua
vocação" como "templo do Espírito Santo", como "humanidade de acréscimo" que completa na sua
carne a paixão de Cristo (Cl 1, 24), como "louvor de glória" da Trindade. Encontrou na abertura à
Palavra de Deus as razões da sua vida consagrada a Deus. O seu magistério espiritual é
essencialmente escrito e estende-se principalmente ao círculo familiar - sua mãe e irmã e às amigas,
aos seminaristas e aos sacerdotes. Além das Obras espirituais - o Céu na fé, a Grandeza da nossa
vocação, o Último Retiro e Deixa-te amar - legou-nos um conjunto de Cartas, o Diário, as Notas
íntimas, as Poesias.
A influência do seu magistério cresceu depois da sua morte, especialmente entre os jovens e
os seminaristas. O Padre Philippon, o Padre Gabriel, e Urs von Balthasar, teólogos de renome,
aprofundaram a sua doutrina espiritual e deram-na a conhecer no seio da Igreja universal. João
Paulo II beatificou-a no dia 25 de Novembro de 1984 como testemunha da habitação do Pai, do
Filho e do Espírito Santo no mais íntimo de si mesma. "Uma nova luz brilha para nós, um novo
guia certo e seguro se apresenta" ,
O Padre Conrad De Meester, carmelita descalço da Bélgica, editor crítico das suas obras,
deu-se ao trabalho de escolher os textos mais autobiográficos de Elisabete Catez. Estamos diante de
uma verdadeira Elisabete da Trindade, contada por ela mesma.
Oxalá os leitores de Portugal apreciem a "mão branda" do Pai, o "toque delicado" do Filho e
o "cautério suave" do Espírito Santo na vida desta jovem "Bem-aventurada". Que Elisabete,
profetisa da Trindade, junto da "Janua coeli", nos introduza nos "segredos do rei", do "Rei da
Glória".
Pe. Manuel Reis, OCD.

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SIGLAS

Poesias - P
Carta - Ct
Diário - D
Nota Íntima - NI
O Céu na fé - CF
Último Retiro - UR
A Grandeza da nossa vocação - GV
Deixa-te amar - DA
Recordações - R
(...) indica a omissão de uma passagem de Elisabete.

As citações foram tomadas dos três volumes da edição crítica das Obras completas de
Elisabete da Trindade, apresentadas pelo Padre Conrad De Meester, nas Edições du Cerf (1979-
1980), da qual seguimos a numeração dos documentos.

ELISABETE, JOVEM LEIGA

Elisabete Catez nasce na manhã de domingo, dia 18 de Julho de 1880, no campo militar de
Avor, Farges-en-Septain (Cher). O seu nascimento não deixa de ter dificuldades. Os dois médicos
presentes advertiram já o capitão Catez que haveria que sacrificar o seu primeiro filho.
A mãe sofreu muito durante trinta e seis horas. Mas ao terminar a Eucaristia que o capelão
Chaboisseau celebra pelas suas intenções, a pequena Elisabete vem ao mundo. A menina tem boa
saúde; "é muito linda, muito viva", lembrará a Senhora Catez. No dia 22 de Julho, festa de Santa
Maria Madalena (pormenor que agradará à futura contemplativa), recebe o Batismo.
Elisabete é nortenha por parte do pai. José Catez tinha nascido no dia 29 de Maio de 1832
em Aire-sur-la-Lys (Pas-de-Calais). É o quarto de seis irmãos. De família muito pobre, percorreu
um caminho na vida com a energia e a perseverança que caracterizarão a sua filha. Casado há um
ano, tem já quarenta anos quando ela nasce.
Elisabete é meridional e lorena por parte da mãe. Maria Rolland tinha nascido em
Luneville, no dia 30 de Agosto de 1846. A Senhora Catez é mulher sensível, dotada de uma
facilidade de relação que lhe granjeará muitas amigas. Bastante jansenista nos critérios, conforme
certos testemunhos.
No dia 10 de Maio de 1881, a companhia do capitão Catez muda-se para Auxonne (Côte-
d'Or). É aqui onde a sra. Catez nos dá notícias frescas sobre Elisabete, quando a pequena
borgonhesa tem vinte meses: "É um puro diabo, arrasta-se e cada dia necessita um par de calças
brancas". É também "uma grande faladora".
São essas as primeiras notícias da futura santa. Mas tem também pormenores religiosos...
"Foi à Oferenda, e abraçou o Crucifixo, abraçou já antes de chegar". Reza pela sua avozinha, que
está doente, e ensina a oração à sua boneca; "agora mesmo pô-la de joelhos muito devotamente".
Encontramos Elisabete com a sua famosa boneca Jeannette e fotografias desta época: é uma criança
que sabe o que quer.
Nova mudança de residência militar. Os Catez estabelecem-se em Dijon, na vila Billiet, rua
Lamartine, perto da estação, por volta de 1o. de Novembro de 1882. Aí nasce, no dia 20 de
Fevereiro de 1883, Margarida, "Guida". O que a pequena Guida terá de doce, o terá de turbulento
Elisabete, a pequena capitã. Mas Elisabete tem bom coração e gosta muito dos seus pais. Guida
recordará assim a infância da sua irmã: era "muito viva, mesmo colérica: as suas raivas eram
verdadeiras raivas; enfim, um diabinho". O seu ardor e a sua sensibilidade ainda não conseguem
orientar-se. A sua mãe fala dos "seus olhos furiosos". A sua grande amiga Maria Luísa Hallo
lembrar-se-á do seu "olhar de fogo", embora o diga num contexto de entusiasmo caloroso.
Na família Catez reina um bom entendimento. Basta tomar nota duma frase da Sra. Catez
ao seu "bom José", em viagem pelo Norte: "Não esqueças os meus conselhos, come, nada de
abusar da cerveja e dos cigarros, cuida da tua saúde e pensa em nós". Cinco imperativos em duas
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linhas: a esposa, que se estende gostosamente nas cartas, sabe também resumir!
Pode entrever-se por trás destas linhas o temperamento meticuloso e dominante da sra.
Catez (vê-lo-emos em filigrana no Diário de Elisabete) e, por parte do capitão, o aspecto vivaz e
social, unido ao sentido do dever e da lealdade.
Se a pequena Elisabete conheceu até agora as lágrimas da cólera e as do arrependimento
quando ofendeu a sua mãe, são lágrimas que brotam só dos olhos. Bem cedo vai conhecer os seus
primeiros sofrimentos reais e as lágrimas que brotam do coração. No dia 24 de Janeiro de 1887
morre o avô Rolland, que vivia com eles. Oito meses depois, novo luto, muito mais doloroso: na
manhã do domingo do dia 2 de Outubro, morre, de repente, o Sr. Catez, que já tivera freqüentes
crises cardíacas.
Com a pensão reduzida, a Sra Catez viu-se obrigada a mudar-se para o segundo andar de
uma casa, hoje desaparecida, na rua Prieur-de-la-Côte-d'Or, no outro lado da cidade. Pela janela, a
pequena Elisabete avista um edifício estranho dentro de um jardim: o "Carmelo".
O "trio" - a sra Catez, Elisabete e Guida - permanece muito unido, embora não fechado
sobre si mesmo. Têm amigos fiéis e visitam cada ano a família e a casa de pessoas amigas, no Midi
e na Lorena. A pequena Elisabete não tem horizontes curtos, porque em Dijon vive perto do grande
Parque e da campina.
Aos oito anos, Elisabete confia já ao Padre Angles, pároco de Santo Hilário no Aude, o seu
desejo de se fazer religiosa:
«Recordo-me ainda da minha alegria sempre que podia ter um pequeno encontro consigo e
confiar-lhe o meu grande segredo. Era apenas uma criança e, contudo, nunca duvidou do
chamamento divino». (Ct 111)
Sem ser rica, a Senhora Catez gozava de suficiente bem-estar para assegurar a formação das
suas filhas. Pelos sete anos, Elisabete recebe da Senhorita Gemeaux as suas primeiras lições
privadas de francês. A Senhora Catez matricula a sua filha, só com oito anos, no Conservatório de
Dijon. Os estudos clássicos continuam de forma espaçada, mas o primeiro lugar é ocupado pelas
longas horas diárias de piano.
A morte do pai suavizou a vivacidade da menina, mas a vida continua na mesma. E as
raivas também. Certamente que a Senhorita Gemeaux recordava a "vontade de ferro" da sua
pequena aluna e o seu surpreendente recolhimento ao entrar na Igreja. Pois é próprio da natureza de
Elisabete ir sempre ao fundo das coisas. Mas isso, não apaga os seus defeitos. Guida lembra-se de
que as iras da sua irmã eram às vezes tão violentas que "ameaçavam enviá-la e interná-la no Bom
Pastor (uma casa de correção, muito próxima) e até se lhe preparava a mala".
Mas Elisabete é, ao mesmo tempo, muito reta e quando compreende que não deve irritar os
outros, corrige-se imediatamente. A sua primeira confissão, por volta dos sete ou oito anos, lança-a
na luta contra os seus defeitos. E depois, há tão belas qualidades no seu coração atraente e
generoso. Eis o que a menina de oito anos e meio promete, não sem certo acento pitoresco, na sua
carta de ano novo:
«Querida mãezinha, queria ao desejar-te um bom ano prometer-te que serei uma boa
menina, muito obediente e não mais te irritarei, não chorarei mais e serei menina exemplar para te
agradar, mas não acreditarás em mim. Farei todo o possível por cumprir as minhas promessas para
não dizer uma mentira na minha carta como digo às vezes. Tinha na cabeça uma longa carta, longa,
mas não sei mais nada! Verás mesmo assim que serei boa menina. Abraço-te, querida mãezinha».
(Ct 4)
Dezesseis meses separam-na ainda da sua primeira Comunhão. Elisabete aplica-se com
ardor às lições de catecismo, o que não lhe impede de ser um dia castigada pelo Vigário a pôr-se de
joelhos, juntamente com uma amiguinha, no meio do passeio.
O que acontece no seu coração no dia 19 de Abril de 1891? Durante a missa e a ação de
graças, correm lágrimas de alegria pelo seu rosto... Quando sai de Saint-Michel, diz a Maria Luísa
Hallo: "Já não tenho fome, Jesus alimentou-me...".
Adivinha-se a intensidade deste primeiro encontro com o Corpo de Cristo por meio de uma
poesia escrita no sétimo aniversário desta comunhão, uma dessas poesias que escreve para si
mesma na presença de Jesus e que são um autêntico diário íntimo:
«No aniversário deste dia
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Em que Jesus fez em mim a sua morada,
Em que Deus tomou posse do meu coração,
Tanto e tão bem que depois desta hora,
Depois deste colóquio misterioso
Deste encontro divino, delicioso,
Não desejo senão dar a minha vida
Pagar um pouco do seu grande amor
Ao Bem-Amado da Eucaristia
Que repousava no meu fraco coração,
Inundando-o com todos os seus favores». (P 47)

No dia 8 de Junho de 1891 recebe o sacramento da Confirmação na Igreja de Notre-Dame.


As testemunhas referem com unanimidade um progresso notável a partir da sua primeira
Comunhão, no caminho do dom de si mesma. Dom a quem? A Jesus: compreende o amor que Ele
nos manifestou no seu sofrimento e na sua morte, na sua presença eucarística entre os homens.
Jesus dá-lhe forças no mais profundo de si mesma. Freqüentemente, quando comunga, lágrimas de
alegria banham a sua cara. Com toda a força da sua vontade aprende a esquecer-se de si, por Jesus,
pelos outros. Os seus ímpetos de cólera passam a ser vividos e vencidos por dentro. Sabe-se ganha
por Jesus. Gosta de orar.
Pelos treze anos, o seu confessor ajuda-a a passar uma dolorosa fase de escrúpulos. A
catequese rodeava então a aproximação a Deus de prescrições meticulosas; o pecado ameaçava-a
por todos os lados; e o Juiz supremo não transige.
Elisabete Catez obtém, aos treze anos, o seu primeiro prêmio de piano no Conservatório.
Pode gozar de umas férias bem merecidas:
«Eu também estou entusiasmada com as minhas férias. Ficamos quinze dias em Gemeaux
com a sra. de Sourdon que não nos queria deixar partir, e divertimo-nos muito. Jogávamos muito
ao croquet, organizamos passeios, tocava freqüentemente piano: o Senhor de Gemeaux gosta muito
de música; fomos muitas vezes ao castelo.
Deixando Gemeaux fomos a Mirecourt. Realizaram-se jantares, grandes merendas em nossa
honra e os nossos quinze dias de estadia passaram depressa. Enfim, desde o dia 2 de Setembro
estamos no Jura onde fazemos grandes excursões. Gosto muito destas belas florestas de abetos».
(Ct 6)
Um dia, quando tinha catorze anos, depois de ter recebido o Corpo de Cristo, Elisabete
sente-se irresistivelmente impulsionada a oferecer-Lhe toda a sua vida, e pronuncia um voto de
virgindade perpétua. Um pouco mais adiante, o projeto de vida religiosa concretiza-se nesta palavra
que ouve interiormente: "Carmelo".
Mas não vejamos apenas a fisionomia interior daquela a quem o cônego Angles, grande
amigo da família, evocará como "constante cabeça da banda!". Elisabete completa a sua imagem
numa redação que a senhorita Forey, a sua nova instrutora, lhe deu:
«Fazer o próprio retrato físico e moral não é uma tarefa fácil, mas recorrendo a toda a
minha coragem, ponho mãos à obra e começo!...
Sem que pareça vaidade julgo que o conjunto da minha pessoa não é desagradável.Sou
morena e, segundo se diz, bastante crescida para a minha idade. Tenho uns olhos negros vivos,
umas sobrancelhas espessas que me dão um ar severo. O resto da minha pessoa é insignificante. Os
meus lindos pés poderiam dar-me o sobrenome de Elisabete dos pés grandes como a rainha
Berta!... Eis o meu retrato físico!
Visto estarmos no moral, direi que tenho bastante bom caráter. Sou alegre e, devo confessar,
um pouco irrefletida. Tenho bom coração. Sou de natural agradável... Sem ser um modelo de
paciência, sei geralmente conter-me. Não tenho rancor. Eis o meu retrato moral. Tenho os meus
defeitos, infelizmente poucas qualidades!... Espero adquiri-las. Enfim, eis que está terminado esse
exercício tão molesto. Estou muito contente com ele».
Mas não reflete aqui, evidentemente, nada da chama da sua vida, da alma da sua alma: o
seu amor a Jesus. Descobri-lo-á nuns versos quase contemporâneos dessa redação:

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«Jesus, de ti a minha alma é ciosa,
Quero ser em breve tua esposa.
Quero sofrer contigo
E morrer para te encontrar». (P 4)

Continua a estudar mais dois anos no Conservatório e conta com dignidade como lhe
roubaram, injustamente, o prêmio de honra de 1894:
«Houve uma grande agitação no Conservatório por minha causa: o júri tinha-me atribuído
um prêmio por unanimidade; mas o Senhor Fritsch, cujo aluno obtivera um, achou que eu eclipsaria
a glória do seu aluno; correu à prefeitura, e a Senhora Vendeur igualmente; fizeram-no tão bem que
o prefeito deu-lhes razão, dizendo que o júri não tinha o direito de dar esse prêmio.
Então os membros do júri, muito desgostosos, quiseram apresentar a sua demissão, e se o
Senhor Deroye, o presidente do júri, tivesse sido advertido, as coisas não se teriam passado assim,
porque ele se teria encontrado com o prefeito, disse ele ao Senhor Lévêque. Enfim, uma agitação
que não fazes idéia, e o Senhor Fritsch foi o causador de tudo isto; agiu muito mal; cortou relações
com o Senhor Diétrich. Margarida obteve um segundo prêmio de piano, é fantástico». (Ct 7)
Já é acompanhada interiormente por uma presença misteriosa. Poucos dos que a rodeiam se
dão conta de que a sua rica vitalidade se orienta para outra Vida, dentro, fora, mais além. A saudade
de Jesus, do Carmelo, do Céu habita esta jovem de quinze a dezesseis anos. Aos dezessete anos,
descobre as perspectivas terrenas que esse amor implica; aceita a sua situação concreta e tudo o que
faz sofrer o seu coração de jovem, animado já por um desejo de oblação claramente contemplativa:

«Pois o meu coração está sempre com Ele,


Noite e dia pensa sem cessar
Neste celeste e divino Amigo
Ao qual quereria provar a sua ternura. Também se eleva nele este desejo:
Não morrer, mas sofrer muito tempo, Sofrer por Deus, dar-Lhe a minha vida
Orando sempre pelos pecadores». (P 43)

Se o seu coração já está no Carmelo, daí que a sua mãe lhe proíba toda a comunicação com
as freiras, o seu amor a Jesus, a sua atenção calorosa para com os outros e a sua capacidade de
admiração, fazem-na tomar parte, não sem entusiasmo, na vida da sociedade. Testemunham-no as
cartas escritas durante as viagens anuais das férias grandes.
«Senti alegria ao ver que passaste umas férias agradáveis. Asseguro-te que as minhas
também o foram!
Passamos alguns dias em Saint-Hilaire, encantadora vila do cantão onde a mamãe viveu
quando tinha a minha idade. Deram-nos tais banquetes que os nossos estômagos já não
agüentavam... Em Limoux estamos a ser muito festejadas... Aqui dedico-me muito à música; a
minha amiga tem um excelente piano de cauda que faz as minhas delícias: tem sons maravilhosos e
nele passaria horas. Acompanho a prima da Gabriela que toca muito bem violino; o seu marido é
um excelente pianista e tocamos a quatro mãos». (Ct 11)
«Esta manhã estamos numa grande confusão: a menina Lalande dá um grande lanche em
nossa honra, e esta manhã ajudamo-la na mudança da casa. Levamos em Lunéville uma vida das
mais agradáveis, comendo em casa de uns, lanchando e jantando na casa de outros, jogando muitas
partidas de tênis com jovens muito gentis; enfim não temos um minuto livre e nem sabemos onde
estamos.
A 14 de Julho assistimos a uma maravilhosa parada militar no Campo de Mars. Não podes
imaginar como era belo ver o regimento de cavalaria com todos os cascos e couraças brilhando ao
sol. Pela noite fomos ao Bosquet, passeio magnífico, mais belo que o Parc; as luzes eram muito
lindas, julgávamos estar em Veneza!... Somos muito mimadas. Uma velha amiga da minha avó, a
Senhora de La Roque, deu-nos belíssimos anéis em ouro com turquesas. (...) Envio-te uma chuva de
beijos». (Ct 13)
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«A nossa estadia aqui não foi senão uma série de divertimentos: bailes, concertos, passeios
pelo campo, havia de tudo. A sociedade de Tarbes é muito agradável; convivi com uma quantidade
de jovens, muito encantadoras; estamos agradecidas pelo acolhimento que nos fizeram, e levamos
conosco uma deliciosa recordação de Tarbes... Os Rostang têm uma tia, a Senhora de São Miguel,
que passou alguns dias em Tarbes com a sua filha que tem vinte anos e que é encantadora e possui
grande talento musical; não deixávamos de tocar piano e as casas de música de Tarbes não
chegavam para nos fornecer partituras para as interpretarmos». (Ct 14) «Deixando Tarbes,
estivemos em Lourdes, este canto do Céu onde passamos três deliciosos dias como só se pode
passar ali; pensei muito em ti ao pé da gruta; ah! se soubesses que bons momentos ali passei e como
fiquei emocionada! Não havia grandes peregrinações, pudemos comungar na gruta, gosto de
Lourdes com esta calma. De Lourdes fomos a Pau visitar o castelo de Henrique IV, que merece ser
visto, porque tem tapeçarias maravilhosas, e nós não éramos as únicas a admirá-las. Na véspera,
estivemos em Cauterets, esta viagem foi em viatura. Depois fomos a Pierrefite. É admirável.
Permanecemos num mudo êxtase diante destas belas montanhas das quais sou louca e que nunca
queria abandonar. No entanto, Luchon reservava-nos alguma coisa de mais belo ainda. Para mim o
sítio é incomparável». (Ct 15)
«Em Marselha visitamos também um transatlântico, que me interessou muito. A mamãe
tinha um medo atroz porque o navio estava em pleno mar e, para lá chegar, o nosso pequeno barco
era bastante sacudido; assim sentiu-se muito feliz de me encontrar em terra porque não partilha todo
o meu entusiasmo por este belo mar que gosto tanto. O que admirei mais ainda foi a Grande
Cartuxa. Se soubesse como este belo caminho do Deserto é belo, como estas montanhas são verdes
e arborizadas... É a solidão mais profunda que podemos sonhar; julgamos estar a cem léguas do
mundo, tão perdidas estamos nestas montanhas que têm um aspecto excessivamente selvagem.
Dormimos no convento das Religiosas diante do dos Cartuxos, numa pequena cela, em camas
atrozmente duras, porque a penitência reina na Grande Cartuxa. Descemos a Grenoble pelo Sappey,
outra rota muito bela... Estivemos também em Genebra». (Ct 18)
Mas nas poesias lemos a outra cara, o lado interior do seu ser. Por exemplo numa poesia
composta no dia de Pentecostes de 1898:
De tuas ardentes e puras chamas
Espírito Santo, digna-te abrasar minha alma;
Consome-a com divino amor,
á Tu que invoco cada dia!...
Espírito de Deus, brilhante luz,
Tu que me cumulas de teus favores,
Tu que me inundas de tuas doçuras,
Queima, aniquila-me toda inteira!
Tu que me dás minha vocação,
Oh, conduz-me a essa união
Íntima, interior, a essa vida
Toda em Deus, que é meu desejo.
Que só em Jesus se funda minha esperança,
E que vivendo no meio do mundo,
Não aspire, não veja senão a Ele,
Ele, meu Amor, meu divino Amigo!
Espírito Santo, Bondade, Beleza suprema!
á Tu que adoro, ó Tu que amo!
Consome com tuas divinas chamas,
Este corpo, este coração, esta alma!
Esta esposa da Trindade
Que não deseja senão a sua vontade!... (P 54)
Aos dezenove anos, o Diário descobre-nos o seu amor a Cristo, a Maria, às almas para as
quais a grande missão de Dijon (Março de 1899) a inflama de ardor apostólico.
«Tive hoje a alegria de oferecer a Jesus vários sacrifícios em relação ao meu defeito
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dominante, mas como me custaram! Reconheço nisto a minha fraqueza. Parece-me que, quando
recebo uma observação injusta, sinto ferver o sangue nas veias, todo o meu ser se revolta!... mas
Jesus estava comigo, ouvia a voz d'Ele no fundo do meu coração, e, então, estava pronta a tudo
sofrer por amor d'Ele!...
Em cada festa de Maria, renovo a minha consagração a esta boa Mãe. Hoje confiei-me a
ela, e lancei-me de novo nos seus braços. Com a maior confiança, recomendei-lhe o meu futuro,
a minha vocação. Oh! visto que Jesus não quer ainda nada de mim, que seja feita a sua vontade, e
eu me santifique no mundo: que isso não me impeça de ir a Ele, que as futilidades da terra não
me ocupem, e eu não me apegue a elas. Sou a esposa de Jesus; estamos unidos tão intimamente...
Nada nos pode separar. Oh! que eu me mostre sempre digna do meu Esposo Bem-Amado, que
não esbanje todas as graças que Ele me confiou e sinta a alegria de Lhe provar o meu amor.
Vamos ter uma grande missão para o fim da Quaresma. Rezo já pelo sucesso desta
missão. Oh! como desejo tanto levar almas ao meu Jesus! Daria a minha vida só para contribuir
no resgate de uma destas almas que Jesus tanto amou. Ah, quereria dá-lo a conhecer, fazê-lo
amar por toda a terra». (D 1-3)
«Oh! que três deliciosos dias acabo de passar! Pela tarde, fazia uma boa meia hora de
adoração ao Santíssimo Sacramento antes do ofício das 8 horas: quem poderia dizer a doçura
deste coração a coração durante os quais não nos julgamos mais sobre a terra e não vemos mais,
não ouvimos mais senão a Deus! Deus fala à alma, Deus, que lhe diz coisas tão doces, Deus que
lhe pede para sofrer. Jesus deseja um pouco de amor para o consolar!... (...) Quero amá-lo por
todos aqueles que não O amam, e quero também levar-Lhe essas almas que Ele tanto amou!». (D
8)
«Estou neste momento a ler o Caminho de Perfeição de Santa Teresa. O que me interessa
muitíssimo e me faz muito bem. A Madre Teresa diz coisas tão boas sobre a oração e a
mortificação interior, esta mortificação a que desejo chegar com a ajuda de Deus. E porque não
posso impor-me grandes sofrimentos por enquanto, posso pelo menos, a cada instante do dia
imolar a minha vontade!»...
A oração, como gosto da maneira como Santa Teresa trata deste assunto, quando fala da
contemplação, deste grau de oração no qual é Deus que faz tudo e nós nada fazemos, em que Ele
une a nossa alma tão intimamente a Ele, que já não somos mais nós quem vivemos, mas Deus
que vive em nós, etc., Oh!, como tive aí sublimes momentos de êxtase em que o Mestre se
dignou elevar-me muitas vezes durante este retiro e depois dele». (D 13-14)
«Visto que apenas posso fazer mortificações, tenho que convencer-me de que a
mortificação física e corporal só é um meio, ainda que admirável, para chegar à mortificação
interior e ao esquecimento absoluto de si mesmo. Ó Jesus, minha Vida, meu Amor, meu Esposo,
ajuda-me; necessito absolutamente de chegar a isto». (D 16)
«Ó meu Deus, sabeis que, se sofro, se desejo sofrer muito, ah! não é pensando na minha
eternidade, mas somente para vos consolar, para vos resgatar almas, para vos provar que vos
amo. Porque vos dei o meu coração, um coração que não pensa, que não vive senão para Vós, um
coração que vos ama até à morte». (D 32)
«Amo-te tanto, o meu coração arde de um tal amor por ti que não posso mais viver feliz e
tranqüila enquanto Tu, meu Esposo Bem-Amado, sofres. Partilhar as tuas dores, suavizá-las,
seguir-te levando uma cruz grossa e pesada, esse é o meu desejo. Amo-te, vida minha, amo-te até
morrer.
Oh! feriste o meu coração com o dardo do teu amor, e já não posso ser feliz aqui em
baixo. Só Tu podes dar-me a felicidade permitindo-me partilhar dos teus sofrimentos. Obrigada,
Jesus, obrigada!...». (D 95)
No dia 26 de Março de 1899, a sra Catez dá finalmente o seu consentimento para que a
sua filha entre no Carmelo, mas apenas dentro de dois anos... Pois bem, cinco dias mais tarde,
apesar de ser Sexta-Feira Santa, faz-lhe uma estranha proposta.
«Esta manhã, a mamãe chegou bastante tarde e toda perturbada... Falaram-lhe de um
casamento para mim, um partido esplêndido que eu nunca encontraria. Ela foi ter com o Senhor
Padre, para lhe perguntar o que devia fazer, pois ele conhecia-me melhor do que ninguém, e ele
respondeu à mamãe que devia falar-me desse casamento, mostrar-me as vantagens, o que é uma
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prova para mim, mas que devo refletir, pois ele não se pode pronunciar sobre a minha vocação;
entretanto não organizar nenhum encontro sem me prevenir. Estava longe de esperar tal coisa.
Mas como fico indiferente a essa proposta sedutora! Ah, o meu coração já não é livre, dei-o ao
Rei dos reis, não posso mais dispor dele. Ah, ouço a voz do meu Amado no fundo do meu
coração: "Minha esposa, diz-me Ele, recusa toda a felicidade na terra para me seguir. No meu
seguimento passarás pela dor, pela Cruz, terás que suportar muitos sofrimentos. Se Eu não te
sustentar não os poderás suportar. Mesmo as consolações espirituais tão doces à alma te serão
tiradas. Quantas provas, minha bem-amada, quando se caminha após Mim, mas também quantas
alegrias, quantas doçuras te farei saborear nessas tribulações. A parte que escolhi para ti é a mais
bela; é preciso amar-te muito, para ta ter reservado, minha bem-amada. Tu que sentes tanto amor
pelo teu Jesus, aceitas esses sofrimentos? Queres consolar-me? Ah, estou tão abandonado...
Milha filha, não me deixes, quero o teu coração, amo-o, escolhi-o para mim, desejo o dia em que
serás toda para mim, oh! guarda para mim o teu coração!" - "Sim, meu Amor, minha Vida,
Esposo Bem-Amado que adoro, sim, fica tranqüilo, estou pronta para te seguir nesse via de
sacrifícios. Oh, queres mostrar-me todos os espinhos que encontrarei. Bom Jesus, atravessá-los-
emos juntos; no teu seguimento, contigo, serei forte. Oh obrigada por teres escolhido uma pobre
pequena criatura como eu para te consolar; Tu, sabias que não te abandonaria. Se o fizesse seria
mais culpada que os malvados que te crucificaram há vinte séculos! Ó supremo Amor, sou toda
para ti; fortalece-me, unicamente, porque sem ti sou capaz de todas as baixezas, de todos os
crimes"...
O que me faz pena é afligir a minha querida mãe. Ah, ela é admirável, é um milagre de
Maria; ela nem tenta influenciar-me. Disse-lhe, quando me pediu para refletir, que a minha
resposta era hoje a mesma que há oito dias, mas que se lhe agradava, eu aceitaria que ela não
respondesse logo... Agora ela compreende-me...
"Teria sido para mim um descanso disse-me ela, mas Deus quis que fosse de outra
maneira”. (D 124)
No mesmo dia Elisabete reafirma a sua total e exclusiva pertença a Jesus:
Ao pé da tua Cruz, Bem-Amado,
Jesus, meu Amor crucificado,
Venho dizer-te que tomes
O meu coração sem jamais mo devolver.
Celeste Esposo, divino Salvador,
Ah, renuncio a toda a felicidade,
A toda a união sobre esta terra
Para te pertencer toda inteira.
Quero ser para ti sem partilha
A fim de te amar mais,
E para responder ao teu amor
Entrego-me a ti para sempre.
Ó meu Esposo, meu supremo Bem,
Só Tu sabes quanto te amo». (P 69)
Perante a oposição de sua mãe à sua vocação contemplativa, e mais ainda os problemas de
saúde que lhe coloca a pouca saúde daquela, Elisabete aceita cumprir plenamente a vontade
concreta do Senhor, mesmo quando tenha que ir contra o seu próprio projeto pessoal. O Diário faz-
nos entrever que a jovem, sem ter feito voto de obediência como as suas vizinhas, as Carmelitas,
teve numerosas ocasiões de praticá-la... Escreverá do Carmelo:
«O abandono, querida Senhora, eis o que nos entrega a Deus. Sou muito jovem, mas
parece-me que algumas vezes já sofri muito. Quando tudo se complicava, oh, então, quando o
presente era tão doloroso e o futuro me aparecia ainda mais sombrio, fechava os olhos,
abandonava-me como uma criança nos braços deste Pai que está nos Céus». (Ct 129)
Enquanto espera, Elisabete vive um abandono total. Mergulha, "sem fazer contorsões", (a
expressão é do seu confessor) na sua situação de jovem leiga no mundo.
8
Continua a viajar durante o Verão e a reunir-se com as suas amigas de Dijon. Veste-se com
elegância. O seu penteado é impecável. Distingue-se no círculo das famílias dos militares e durante
os serões de baile, onde faz numerosas amizades; um bispo orgulhar-se-á de ter dançado com ela
na sua juventude. A sua primeira biografia dilui-se voluntariamente num certo vazio: "... os seus
encantos visíveis faziam conceber em volta dela muitas esperanças...". Mas os jovens, bons
psicólogos, diziam entre eles: "Não é para nós, vede o seu olhar...".
Elisabete irradia o seu Amor. Durante um serão de baile, uma dama diz-lhe repentinamente:
"Elisabete, tu vês a Deus...", Todo o seu ser orienta-se para Ele.
Quando Carlos Hallo a enche de piropos (mimos) pelas suas qualidades, ela responde com
acento de enfado: ''Carlos, aborresces-me!".
O que a apaixona é Jesus, é "partilhar" - uma palavra que ela gosta muito e que exprime
muito bem o que entende por amor - as dores e as alegrias de Cristo, segui-lo e dar-Lhe
absolutamente tudo. Ao não poder viver ainda a sua presença no Carmelo, interioriza a "sua cela",
como Catarina de Sena.
«Concedei-me a solidão do coração. Fazei que viva em íntima união convosco e que nada,
nada me possa distrair de Vós, e que a minha vida seja uma oração permanente. Já o sabeis,
querido Mestre, que a minha consolação, quando assisto a essas reuniões e a essas festas, o meu
consolo é apenas o de me recolher e gozar da vossa presença, porque, ó meu supremo Bem, sinto-
vos em mim de tal maneira... Nestas reuniões quase se não pensa em Vós, e parece-me que vos
alegrais por, mesmo apenas um pobre e miserável coração como o meu, não vos esquecer...». (D
138)
«Que eu viva no mundo sem ser do mundo; posso ser carmelita no interior e quero sê-lo...
Ó meu Jesus, dei-vos tudo desde há muito tempo, renovo hoje esta oferenda, sou a tua pequena
vítima. Ah, que Elisabete desapareça, que fique o seu Jesus!». (NI 6)
«Ó Jesus, meu Bem-Amado, como é doce amar-te, pertencer-te, ter-te por único Tudo! Ah,
agora que vens diariamente ao meu coração, que a nossa união seja ainda mais íntima. Que a
minha vida seja uma oração contínua, um longo ato de amor. Que nada me possa distrair de ti, nem
ruídos, nem distrações, nada, não é verdade? Gostaria tanto, ó meu Mestre, de viver contigo no
silêncio. Mas o que acima de tudo amo é fazer a tua vontade, e dado que ainda me queres no
mundo, submeto-me de todo o meu coração por amor de ti. Ofereço-te a cela do meu coração, que
seja a tua pequena Betânia; vem aqui repousar-te, amo-te tanto...
Queria consolar-te e ofereço-me a ti como vítima, ó Mestre, por ti, contigo. Aceito
antecipadamente todos os sacrifícios, todas as provas, mesmo as de não te sentir mais comigo. Não
te peço senão uma única coisa: que eu seja sempre, sempre, generosa e fiel; pelo menos que nunca
me arrependa. Quero cumprir perfeitamente a tua vontade, responder sempre à tua graça; desejo
ser santa contigo e para ti, mas, sinto a minha incapacidade, oh! sê a minha santidade. Peço-te
encarecidamente, e suplico-te que nunca me arrependa: enquanto eu for ainda tudo para ti, leva-
me, faz-me morrer.
Sou a tua "pequena mimada", Tu mo dizes, mas talvez, em breve, venha a provação e,
então, hei de ser eu a retribuir-te. Mestre, não são estes dons, estas consolações de que me enches
que procuro; és Tu, oh! unicamente a ti! Ampara-me sempre, toma-me cada vez mais; que tudo em
mim te pertença; quebra, arranca tudo o que te desagradar para que eu tudo seja para ti. Oh!, cada
batimento do meu coração é um ato de amor. Meu Jesus, meu Deus, como é bom amar-te, ser
inteiramente tua!». (NI 5)
A palavra "vítima" que encontramos aqui, provém de Teresa de Lisieux. Em 1899, uma das
primeiras conquistadas pela História de uma Alma é Elisabete... Teresa ajuda-a a desfazer-se do
que ainda lhe resta de jansenismo na sua concepção de Deus. Mas o melhor antídoto contra o medo
é a experiência mística de Deus a inundar o seu coração. Antes mesmo da sua entrada no Carmelo,
Elisabete dá a Deus um nome que recordará sempre com carinho: Deus "todo Amor".
A jovem sonhava tomar bem cedo no Carmelo o nome de Elisabete de Jesus. Não sem certo
sacrifício aceita o de Elisabete da Trindade proposto pela Priora.
Em 1900 encontra-se com o Padre Vallée, dominicano. Enriquece-se com o que o Padre lhe
diz sobre o amor que, não somente Jesus, mas também Deus, Pai, Filho e Espírito Santo, lhe tem.

9
Elisabete tem vinte anos. No Verão de 1900 diz adeus ao mundo durante uma viagem de
três meses. Visita novamente Lourdes, Tarbes... Passa depois um bom momento em Carlipa no
Aude.
«Antes de chegar a Carlipa, fomos passar um dia a Biarritz para conhecer o Oceano. Como
é belo, querida amiga, não te posso dizer quanto é grandioso este espetáculo; gosto deste horizonte
sem margens, sem limites! A Mamãe e a Guida não podiam arrancar-me da minha contemplação, e
creio que me achavam um pouco molesta». (Ct 30)
«Não é verdade que não nos cansamos de contemplar este belo mar? Lembras-te da última
vez que o vimos juntas no Rochedo da Virgem, em Biarritz? Que belas horas passei ali, era tão
belo ver aquelas ondas avançando e irrompendo contra as rochas! A minha alma vibrava diante
deste espetáculo tão grandioso». (Ct 144)
«De regresso a Dijon, ficamos dois dias em Paris em casa de uma boa amiga que estávamos
desejosas de a voltar a ver. Tive a felicidade de ir a Montmartre e a Nossa Senhora das Vitórias;
Oh! como rezei por ti, querida Maria Luísa, e por todos aqueles que te são queridos! Estivemos
duas vezes na Exposição. É muito linda, mas detesto esse barulho e essa multidão. Margarida ria-se
de mim e dizia que eu tinha o ar de vir do Congo». (Ct 35)
Mas dá-se também este outro olhar retrospectivo, quatro anos mais tarde, já como
carmelita:
«Diz à querida Senhora Lignon que a sua amiguinha a ama sempre mais, e não esquece as
belas férias em Santo Hi1ário, os alegres serões, e a dança... Recordo-me, querida mamãe, que
quando dançava como os outros e jogava às quadras, lá embaixo no grande salão, estava como que
enfeitiçada por este Carmelo que me atraía tanto e onde, um ano mais tarde, devia encontrar tanta
felicidade. Que mistério! Oh, não me arrependo de me ter dado a Ele, Ele queria-o, e também sabes
bem que sou sempre toda tua». (Ct 178)
Pela última vez acontecem em Dijon os encontros e as festas, mas também o apostolado nas
paróquias de São Miguel e de São Pedro: o cuidado das crianças dos trabalhadores da fábrica de
tabaco, a catequese para as crianças que se preparam para a primeira Comunhão, as visitas aos seus
familiares e aos doentes, o coro...
Escutemos Elisabete oito meses antes da sua entrada no Carmelo. Escreve ao cônego
Angles:
«Obrigada pelas suas orações, tenho tanta necessidade delas: se soubesse tudo o que sofro
ao ver a minha pobre mamãe desolar-se ao aproximarem-se os meus vinte e um anos... Ela sofre
várias influências: um dia diz-me uma coisa, no dia seguinte diz-me o contrário. No dia dos
Defuntos parecia perfeitamente disposta, disse-me mesmo que neste Verão poderia partir. Tinha
rezado tanto ao meu pobre papai para lhe soprar boas coisas! Mas dois dias depois, todas as suas
idéias tinham mudado! O Senhor Pároco diz-me que nada prometa a esta querida mamãe quando
ela me pede que espere, que não devo atar-me a nada; rezais por mim, não é verdade? Como é duro
fazer sofrer aqueles que amamos, mas é por Ele! Se Ele não me sustivesse, em certos momentos
pergunto-me o que me aconteceria, mas Ele está comigo, e com Ele podemos tudo. Como é bom
perder-se, desaparecer n'Ele, sentimos bem que não somos senão uma máquina, que é Ele que age,
que é Tudo!
Assim entrego-me, abandono-me a este divino Bem-Amado, estou muito tranqüila, sei a
Quem me confio. Ele é Todo-poderoso, que faça tudo segundo o seu bel prazer, não quero senão o
que Ele quer, não desejo senão o que Ele deseja, só Lhe peço uma coisa: amá-lo com toda a minha
alma, mas com um amor verdadeiro, forte e generoso! Nestes tempos estamos muito ocupadas por
uma quantidade de coisas, além disso recomeçam as reuniões; sabe o pouco que gosto disso; enfim
ofereço-o a Deus. Parece-me que nada pode distrair d'Ele, quando agimos só por Ele, sempre na
sua santa presença, sob esse divino olhar que penetra no mais íntimo da alma; mesmo no meio do
mundo podemos escutá-lo no silêncio de um coração que não quer ser senão para Ele! (Ct 38)
O tempo passa depressa. Os seus vinte e um anos e a sua entrada no Carmelo aproximam-
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se. Elisabete atravessa um período de obscuridade na sua busca de Deus.
«Quanto sofro, ó meu Deus. Mas quero permanecer neste estado tanto quanto vos agradar,
pois este feliz sofrimento purifica a minha alma que quereis unir mais intimamente aVós. Mais e
mais, tanto quanto queirais, mas sustende-me, que sou tão frágil. Sabeis bem que é a Vós
unicamente que amo, só a Vós me prendo!... Ó Amor, que bom é oferecer-te alguma coisa a ti, que
tanto me mimaste». (NI 11)
«É aí, ao pé da Cruz, onde cada uma se sente sua prometida; todas essas obscuridades, esses
sofrimentos desapegam-na para a unir ao nosso Único Tudo, e purificam-na também para chegar à
União. Ah!, minha irmã, esta divina união quando será consumada nas nossas almas? "Deus em
mim, eu n'Ele", seja esta a nossa divisa. Ah! como é agradável esta presença divina dentro de nós,
nesse santuário íntimo das nossas almas. Ali O encontramos sempre ainda que pelo sentimento não
sintamos mais a sua presença, mas Ele está ali igualmente, talvez ainda mais perto». (Ct 47)
«Reza muito por mim, minha querida irmã, para mim também não é mais um véu, mas um
muro bem espesso que mo esconde. É muito duro, não é verdade, depois de O ter sentido tão perto,
mas estou pronta a permanecer neste estado de alma todo o tempo que agradar ao Meu Bem-
Amado deixar-me n'Ele, porque a fé diz-me que está na mesma presente, e para quê as doçuras, as
consolações? Não são Ele. E é Ele que nós procuramos, não é assim minha boa Margarida? Vamos
pois a Ele pela fé pura. Oh! minha irmã, nunca senti tanto a minha miséria, nunca me senti tão
miserável, mas esta miséria não me abate nada, pelo contrário, sirvo-me dela para ir até Deus, e
penso que é porque sou tão frágil que Ele me amou tanto, e me deu tanto». (Ct 53)
«Outro dia foi o aniversário da minha primeira comunhão, já faz dez anos! Penso nas
muitas graças com que me cumulou». (Ct 49)
Apesar de tudo isto, no seu comportamento exterior continua a ser uma jovem alegre, que
não tem outra preocupação que a de "refletir" o seu Cristo. Escreve a sua irmã e à sua mãe em
viagem:
«Fomos imediatamente comprar a flanela para a Maria Luísa na nova camisaria da rua da
Liberdade; tem um mostrador enorme, e não vale a pena escrever para Tarbes. Escolhemos uma
tipo escocês, rosa a fugir para granada, vamos cortá-la imediatamente, espero consegui-lo, porei
todo o meu cuidado! A Senhora Hallo convidou-nos a tomar algo na pastelaria; Fui em casa para
dar os meus labores a Clara; depois disto, estive na igreja, e instalei-me na minha nova morada
onde sou tão bem cuidada. A Senhora Hallo serviu-me m excelente jantar com um delicioso
entremeio, que quereria enviar-vos. Os vossos sanduíches chegaram em bom estado? Depois do
jantar, Carlos deu-nos um concerto; tocamos "O Barbeiro de Sevilha" Recomendo à Guida o
penteado da mamãe, não esqueças o pente de strass e faz antes um puxo; deves empapar a trança do
cabelo em pó antes de fazer o rolo». (Ct 46)
“Pensa em mim no domingo pela tarde, serás muito gentil. Irei à minha festa, o meu corpo
estará ali, mas é tudo, porque o meu coração, quem poderá distraí-lo d'Aquele que amo e, repara,
creio que Ele ficará contente de me ver lá. Pede-Lhe que esteja de tal modo em mim que O sintam
ao aproximar-se da sua pobre pequena prometida e pensem n'Ele.. Somos as suas hóstias vivas, os
seus pequenos cibórios, ah! que tudo em nós O reflita, demo-lo às almas. É tão bom ser d'Ele, ser
toda sua, sua presa, sua vítima de amor.
... é o amor que eu desejo para ti; esta palavra contém, parece-me, toda a santidade.
Amemo-lo pois apaixonadamente, mas com este amor profundo e calmo». (Ct 54 e 73)
Em Junho de 1901, tem um derrame sinovial, causado evidentemente pelas horas de oração
passadas de joelhos. Escreve ao Sr. cônego Angles:
«Fiquei privada de ir à igreja, da sagrada Comunhão, mas reparai, Deus não tem necessidade
do Sacramento para vir a mim, parece-me que O tenho da mesma forma; é tão boa esta presença de
Deus! É lá, bem no fundo, no Céu da minha alma, que gosto de O encontrar visto que Ele nunca me
deixa. "Deus em mim, eu n'Ele", oh! é a minha vida!... É tão bom, não é verdade, pensar que,
excetuando a visão, já O possuímos como os bem-aventurados O possuem lá no alto; que podemos
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nunca O abandonar, nem nunca nos deixar distrair d'Ele! Oh! rezai-Lhe para que eu me deixe tomar
e conduzir inteiramente!...
Nunca vos havia dito o meu nome no Carmelo: "Maria Elisabete da Trindade". Parece-me
que este nome indica uma vocação particular, não é belo? Amo tanto este mistério da Santíssima
Trindade, é um abismo em que me perco!...
Apenas um mês, caro Monsenhor! Estes últimos momentos são uma agonia, pobre mamãe,
ah! rezai por ela! Entrego tudo a Deus. "Pensa em Mim, eu pensarei em ti", dizia Ele a Santa
Catarina de Sena. É tão bom o abandono, sobretudo quando conhecemos Aquele a quem nos
entregamos! Adeus, caro Monsenhor, envio-vos a minha fotografia; quando a estava a tirar pensava
n'Ele, é Ele pois que ela lhe levará. Ao olhar para ela reze por mim, tenho necessidade, asseguro-
lhe». (Ct 62)
O cônego Angles recordará mais adiante os «dois amores» que, como um madeiro vertical e
outro horizontal, formam uma cruz no coração de Elisabete: "o amor de Deus e o amor de sua mãe, a
quem queria com loucura". "Meus pobres seres queridos que crucifico" (Ct 71), lamentava-se
quando pensava na sua mamãe e em Guida...
«Deus deu-me um coração muito terno, muito fiel, e quando amo não amo nada pouco!...».
(Ct 65)
«Estou desfeita. Esta manhã nem sequer estive na Missa, tendo passado a noite com a minha
bacia das mãos a meu lado. Sofro, minha Framboesa, de fazer sofrer os outros, tudo em mim se
ressente». (Ct 67)
Mas a filha do oficial não retrocede diante dos maiores sacrifícios quando se trata de
responder ao maior Amor.
A Priora do Carmelo conhece o valor da sua jovem postulante e decidiu levá-la com ela para
a nova fundação de Paray-le-Monial. As malas de Elisabete já estão prontas, quando, no último
momento, se decide que entre em Dijon.
São horas dolorosas as dessa última tarde ou dessa última noite juntas...
Mas no dia 2 de Agosto de 1901 também chega a Elisabete a profunda paz de poder, por fim,
dizer sim a Jesus, que a quer no Carmelo. Pela manhã escreve ainda ao cônego Angles:
«Iremos comungar na Missa das 8 horas e, depois disso, quando Ele estiver no meu
coração, a mamãe levar-me-á à porta da clausura! Amo a minha mãe como nunca a amei, e no
momento de consumar o sacrifício que me vai separar destas duas criaturas queridas que Ele
escolheu para mim tão boas, se soubésseis que paz inunda a minha alma! Não é mais a terra,
sinto que sou toda d'Ele, não guardo nada para mim, lanço-me nos seus braços como uma
criancinha». (Ct 81)

CARMELITA

«Ah, se soubesses como se está bem na montanha do Carmelo. Deixei tudo para fazer a
subida, mas o meu Jesus apresentou-se diante de mim, tomou-me nos seus braços para me levar
como uma criancinha, e para substituir tudo o que tinha deixado por Ele». (Ct 116)
Com o envio de umas fotografias ao Carmelo de Lisieux, a carmelita de Dijon escreve, dias
depois da entrada de Elisabete, esta frase assombrosa: "... postulante desde há três dias, mas
desejosa do Carmelo desde os sete anos, a Irmã Elisabete da Trindade, e chegará a ser uma santa,
pois tem já umas disposições extraordinárias". Elisabete chama a atenção pelas suas virtudes e pelo
seu recolhimento.
A sua cela (sem aquecimento, nem água corrente, nem eletricidade), dá para o pátio onde se
levanta sobre a .relva a grande cruz sem Cristo. As três alas da casa deixam, pelo lado sudoeste,
penetrar o sol; por cima do claustro de ogivas góticas, Elisabete vê as árvores de um dos três
jardins que rodeiam o amplo mosteiro.
As primeiras notícias são muito consoladoras e felizes:
«A minha saúde é perfeita. Recuperei o meu apetite de antes e honro a cozinha do Carmelo.

12
Alice disse-me que desejavas que bebesse um pouco de vinho; já não te recordas que não o posso
digerir? Durmo sobre o nosso colchão de palha como uma bem-aventurada; há bastante tempo que
não o conseguia. A primeira noite não me sentia muito segura e perguntava-me se não ia cair». (Ct
85)
Ele preenche tudo. Vive-se d'Ele. Respira-se a Ele. «Se soubesses como sou feliz, o meu
horizonte cresce cada dia». (Ct 89)
«Não encontro expressão para dizer a minha alegria, cada dia gosto mais d'Ele. Aqui, não
há mais nada, mais nada senão Ele, Ele é Tudo, Ele basta e é apenas d'Ele que vivemos.
Encontramo-lo em toda a parte, na lavagem da roupa como na oração! Gosto sobretudo das horas
do grande silêncio, e é durante uma delas que vos escrevo. Imaginai a vossa Elisabete na sua
pequena cela que lhe é tão querida: é o nosso santuário, só para Ele e para mim, e adivinhai as boas
horas que passo com o meu Bem-Amado!
Todos os domingos temos o Santíssimo Sacramento no oratório. Quando abro a porta,
contemplo o divino Prisioneiro que me fez sua prisioneira neste querido Carmelo, parece-me que é
um pouco a porta do Céu que se abre! Coloco então diante do meu Jesus todos os que estão no meu
coração, e lá, encontro-os junto d'Ele... Não me arrependo desses anos de espera. A minha
felicidade é tão grande, era bem preciso comprá-la. Ah, como Deus é bom!». (Ct 91)
Depois da partida de uma dezena de Irmãs para a nova fundação do Carmelo de Paray-le-
Monial, as eleições de 9 de Outubro põem à frente da comunidade superioras muito novas, as duas
de Dijon: Germana de Jesus, de trinta anos de idade, é eleita Priora. Maria da Trindade, de vinte e
seis anos, é a nova sub-Priora. No "noviciado", onde se permanece ainda três anos depois da
profissão (nesta época é "profissão perpétua" desde a primeira emissão, depois de um postulantado
de uns meses e um ano de noviciado), Elisabete encontra outras duas jovens. A Madre Germana
acumula com o cargo de Priora o de Mestra de noviças.
No dia 8 de Dezembro de 1901, depois de uns quatro meses de vida carmelita, Elisabete é
aceite unanimemente pela sua comunidade para a tomada de hábito.
«É pois no dia 8, nesta bela festa da sua Imaculada Conceição, que Maria me vai revestir
com o meu querido hábito do Carmelo!
Vou preparar-me para o belo dia dos desposórios com um retiro de três dias. Oh! repare,
quando penso nisso, já não me sinto mais sobre a terra! Reze muito pela sua pequena carmelita
para que ela se entregue toda, se dê totalmente e alegre o Coração do seu Mestre. No domingo,
queria dar-Lhe qualquer coisa de tão belo, porque amo tanto o meu Cristo...». (Ct 99)
No silêncio e na solidão da sua vida contemplativa, o seu coração atento, transbordante,
fiel, tão disposto para amar, busca a Deus em tudo.
«Pergunta-me quais são as minhas ocupações no Carmelo. Poderei responder-lhe que para a
carmelita há apenas uma: "amar, orar". Mas como, vivendo já no Céu, tem ainda um corpo sobre a
terra, deve, entregando-se toda ao amor, ocupar-se para fazer a vontade d'Aquele que fez em
primeiro lugar todas estas coisas para nos dar o exemplo.
Começamos o nosso dia por uma hora de oração às 5 horas da manhã, a seguir passamos
ainda uma hora no Coro para salmodiar o santo Ofício... depois vem a Missa. Às duas horas temos
as Vésperas, às 5 horas oração até às 6 horas. Às 8 horas menos um quarto temos as Completas. A
seguir, até às matinas, que se dizem às 9 horas, oramos, e só deixamos o coro pelas 11 horas para ir
descansar. Durante o dia, temos duas horas de recreio; porém, depois disso, todo o tempo fazemos
silêncio.
Trabalho, quando não tenho que varrer, na nossa pequena cela. Uma enxerga, uma pequena
cadeira, uma escrivaninha sobre uma tábua, eis a mobília, mas está cheia de Deus e passo aqui
horas tão belas a sós com o Esposo. Para mim, a cela é qualquer coisa de sagrado, é o seu santuário
íntimo, apenas para Ele e a sua pequena esposa. Estamos tão bem "os dois", calo-me, escuto-O... é
tão bom ouvir tudo d'Ele; depois amo-O dando à agulha e trabalhando neste querido burel que tanto
desejei usar». (Ct 168)
«Rezai um pouco para que a pequena "casa de Deus" (é isto o que significa o nome de
Elisabete em hebraico) fique completamente cheia, seja toda invadida pelos Três! Eu já parti na
alma do meu Cristo, e é aí que hei de passar a minha Quaresma; pedi-Lhe que eu já não viva mais,
mas que Ele viva em mim, que o "Uno" se consuma cada vez mais, que eu permaneça sempre sob
esta grande visão! Parece-me que é este o segredo da santidade, e isso é tão simples! Ó minha boa
Madre, dizer que temos em nós o nosso Céu, este Céu de que por vezes tenho nostalgia... Como
será bom quando enfim o véu tiver tombado e gozarmos do face a face com Aquele que
unicamente amamos! E enquanto assim o espero, vivo no amor, afundo-me nele e nele me perco: é
o infinito, este infinito de que a minha alma está faminta.
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Mas bem a conheceis, a alma da vossa Elisabete pela qual tanto fizestes. Ela não esquece
tudo isso: sabeis que o Santo Deus lhe deu um coração reconhecido, um coração amante e cheio de
ternura». (Ct 107)
«Quando escrever à Senhora de Anthes, diga-lhe que rezo muito particularmente por ela e
que não esqueço a sua intenção. As vossas, querida Senhora, também não são esquecidas.
Conheceis bem o meu coração para saber que aqueles que nele entram nunca mais podem sair, e
onde melhor encontrá-los se não n'Aquele que é o princípio e o laço indissolúvel dos verdadeiros e
profundos afetos, daqueles que nem o tempo nem a distância podem alterar». (Ct 146)
«Vivamos com Deus como com um amigo, tornemos viva a nossa fé para em tudo
comungarmos com Ele, - é assim que se fazem os santos. Trazemos em nós o nosso Céu, pois
Aquele que sacia os glorificados na luz da visão, dá-se-nos na fé e no mistério. É o Mesmo!
Parece-me que encontrei o meu Céu na terra, porque o Céu é Deus, e Deus é a minha alma.
No dia em que compreendi isto, tudo em mim se iluminou e gostaria de dizer baixinho este segredo
àqueles que amo para que também eles em tudo adiram sempre a Deus e que se realize esta prece
de Cristo: "Pai, que eles sejam consumados no Uno!"». (Ct 122)
«Continua a comungar com os Três, através de todas as coisas, encontramo-nos neste
centro. Amo-te muito, minha Guida, a minha Comunhão de domingo será por ti, depois passarei o
dia no coro e estarás ali comigo, não é bom estar junto d'Ele? Repara, Ele é o meu Infinito, n'Ele
amo, sou amada e tenho tudo». (Ct 117)
«O meu Noivo é tão belo, amo-O apaixonadamente e amando-O transformo-me n'Ele». (Ct
130)
«Sim, minha querida, rezo por ti e guardo-te na minha alma muito perto do Santo Deus,
neste pequeno santuário muito íntimo em que O encontro a toda a hora do dia e da noite. Nunca
estou só: o meu Cristo está lá sempre, orando em mim, e eu rezo com Ele.
Causas-me pena, minha Framboesa; bem vejo que és infeliz e é culpa tua, podes estar certa.
Fica tranqüila, não te julgo ainda tão tocada, mas enervada e hipersensível. Quando assim estás
também fazes sofrer os outros. Ah, se pudesse ensinar-te o segredo da felicidade como Deus mo
ensinou...
É preciso que edifiques, como eu, uma pequena cela no interior da tua alma; pensarás que
Deus está lá e aí entrarás de tempos em tempos; logo que sentires os teus nervos, ou que estás
triste, depressa, refugia-te lá e confia tudo isso ao Mestre. Ah, se tu O conhecesses um pouco, a
oração já não te causaria tédio; a mim parece-me que é um repouso, um alívio. Chega-se muito
simplesmente aos pés d'Aquele que se ama, e está-se junto d'Ele como uma criancinha nos braços
da sua mãe e deixa-se ir o coração. Gostavas tanto de te sentar junto a mim e de me fazeres
confidências...; é exatamente assim que deves aproximar-te d'Ele; e, se soubesses como Ele
compreende tão bem... Deixarias de sofrer, se percebesses isto.
É o segredo da vida do Carmelo: a vida de uma carmelita é uma comunhão com Deus de
manhã à noite, e de noite até de manhã. Se Ele não enchesse as nossas celas e os nossos claustros,
ah! como isto seria vazio, mas, em tudo O vemos porque o trazemos em nós, e a nossa vida é um
Céu antecipado. Peço a Deus que te ensine todos estes segredos». (Ct 123)
A vida de Elisabete é agora uma vida escondida... Uma vida ao serviço da Igreja, ao mesmo
tempo comunitária e solitária, animada pelo ritmo dos tempos e das festas litúrgicas, dos domingos
e de um horário quase invariável. No meio desta monotonia contemplativa, Deus é a grande
surpresa, presente pela fé e pelo amor.
«Passei uma belíssima Quaresma. De tudo o que vi no Carmelo nada é mais belo do que a
Semana Santa e o dia de Páscoa, direi mesmo que é único, contar-te-ei isto quando te vir. Oh,
minha querida, como se é feliz quando se vive na intimidade com Deus, quando se faz da própria
vida um diálogo coração a coração, uma troca de amor, quando se sabe encontrar o Mestre no
fundo da nossa alma. Então nunca mais se está só e sente-se a necessidade de solidão a fim de
gozar da presença deste Hóspede adorado.
Repara, minha Framboesa, é preciso que Lhe dês lugar na tua vida, nesse coração que Ele te
deu tão afetuoso, tão apaixonado. Oh! se soubesses como Ele é bom, como é todo Amor! Peço-Lhe
que se revele à tua alma, e seja o Amigo que possas encontrar sempre, então tudo se ilumina e é tão
bom viver!». (Ct 161)
«Uma Quaresma no Carmelo, uma Semana Santa, um dia de Páscoa, é qualquer coisa de
único! Com que alegria cantei o Aleluia, envolta na capa branca, revestida destas queridas insígnias
que tanto desejei. O dia de Quinta-Feira Santa passado junto d'Ele foi tão bom, confesso-lhe, e iria
passar também a noite, mas o Mestre quis que descansasse. Mas não importa: pois tanto O
encontramos no sono como na oração, visto que é Ele em tudo, sempre e por toda a parte!». (Ct
14
111)
«Como é bela uma Semana Santa no Carmelo, quereria que assistísseis aos nossos Ofícios, e
sobretudo à nossa bela festa de Páscoa. Nesse dia cantamos matinas às 3 horas da manhã,
entramos em procissão no Coro envoltas nas nossas capas brancas, levando cada uma vela,
cantando o Regina Coeli. Às 5 horas tivemos a Missa de Ressurreição, seguida de uma magnífica
procissão no nosso belo jardim. Tudo estava tão calmo, tão misterioso, parecia que através das
alamedas solitárias o Mestre ia aparecer-nos como outrora à Madalena, e se os nossos olhos O não
viram, pelo menos as nossas almas encontraram-no na fé. É tão boa a fé, é o Céu nas trevas, mas
um dia o véu cairá e contemplaremos na sua luz Aquele que amamos; esperando o "Veni" do
Esposo é preciso gastar-se, sofrer por Ele, e sobretudo amar muito». (Ct 162)
«Oh sim, minha Guida, esta festa dos Três é a minha por excelência. Não há outra
semelhante. É muito própria do Carmelo, por ser uma festa de silêncio e de adoração; nunca tinha
compreendido tão bem o Mistério e a vocação que encerra o meu nome. Confiei-te aos Três,
minha Guida, bem vês como disponho de ti. Sim, é neste grande Mistério que me encontro
contigo. Que Ele seja o nosso Centro, a nossa Morada». (Ct 113)
«No domingo, passo o dia contigo em honra da Santíssima Trindade; oh, minha
Germanazinha, como Deus é bom ao conceder-nos a atração para este mistério». (Ct 164)
«Se me entregas a tua alma, consagra-la-ei à Santíssima Trindade para que a introduza na
profundidade do Mistério, e que estes Três, a quem as duas amamos, sejam de verdade o Centro em
que decorra a nossa vida!
Santa Teresa diz que a alma é como um cristal no qual se reflete a Divindade. Gosto tanto
desta comparação, que quando vejo os raios do sol a inundar os nossos claustros, penso ser assim
que Deus invade a alma que nada mais procura senão a Ele! Minha querida, vivamos na intimidade
com o nosso Bem--Amado, sejamos inteiramente d'Ele, como Ele é todo nosso.
Privada de O receber tantas vezes quanto o desejaria, compreendo muito bem esse seu
sacrifício. Mas pense que o Seu Amor não tem necessidade de sacramento para chegar à pequena
Germana: comungue-O todo o dia pois Ele está vivo na sua alma». (Ct 136)
«Escrevo-lhes antes de Matinas na minha querida cela, e desejaria ser pintora para lhes
traçar um esboço do quadro que me envolve. Está um belo céu todo estrelado; a lua mergulha na
minha cela através dos vidros gelados. É encantador! A janela dá para o prado, o jardim interior
cercado de grandes claustros; no meio, sobre um rochedo, destaca-se uma grande cruz. Tudo é
calmo e silencioso. Faz-me pensar na noite em que Jesus nos foi dado. Parece-me ouvir os Anjos
cantar o seu cântico: "Alegremo-nos, um Salvador nos foi dado".
Queridas tias, passaram um bom Natal? O meu foi delicioso, porque, reparem, um Natal no
Carmelo, é único; à noite fui para o coro e foi lá que decorreu toda a minha vigília com a
Santíssima Virgem na espera do Divino Menino, que desta vez ia nascer não mais num presépio
mas na minha alma, nas nossas almas, porque é mesmo o Emanuel, o «Deus conosco». (Ct 187)
«A bela festa do Natal, que amei sempre tanto, tem uma marca muito particular no
Carmelo. Em lugar de passar a Santa Vigília com a mãezinha e a Guida, desta vez era no grande
silêncio, no coro, muito perto d'Ele, e dizia-me com alegria: "Ele é o meu Tudo, o meu único
Tudo". Que felicidade, que paz isto produz na minha alma. Ele é o único, eu dei-Lhe tudo.
Se olho do lado da terra, vejo a solidão e mesmo o vazio, porque não posso dizer que o meu
coração não tenha sofrido; mas, se o meu olhar fica sempre fixo n'Ele, meu Astro luminoso, oh,
então tudo o resto desaparece e perco-me n'Ele como a gota de água no Oceano. Tudo está calmo e
apaziguado, e isto é tão bom, a paz do Santo Deus; é dela que fala São Paulo quando diz que
«ultrapassa todo o sentimento». (Ct 190)
O Carmelo de Dijon, dirigido pela Madre Germana, é uma entusiasta e fervorosa
comunidade, na qual Elisabete participa com a sua alegria e a sua simplicidade, a sua amabilidade e
disponibilidade. Toma parte nas diversas tarefas da vida comunitária. Ajuda na rouparia e depois
da sua profissão será segunda porteira. Ser-lhe-á pedido também às vezes que inicie as novas
postulantes nos costumes monásticos.
Um bilhete à Irmã Luísa de Gonzaga, primeira responsável pela rouparia, dá-nos uma idéia
do seu tato e humor nos encontros quotidianos com as suas irmãs.
«Minha querida irmã, encontro-me um pouco embaraçada para encontrar o lugar onde é
preciso colocar a peça que acaba de me dar. Deixei os dois lados sem fazer a costura para mais
segurança, e agradecer-lhe-ei, depois da Missa, se pudesse vir ter comigo. Entrareis e marcareis o
lugar, s.f.f., e verá o que imaginei para um avental que estava muito estreito. Se achar a idéia má,
dar-me-á uma melhor. Encontrará sobre a mesa um lápis e papel no caso de ter alguma explicação
15
a dar à vossa oficial, que vos ama e reza por vós».
Um ano depois da sua entrada no Carmelo escreve a noviça:
«Sim, encontrei-O, Aquele que a minha alma ama, este único Necessário que ninguém me
pode tirar. Oh! como é bom, como é belo, quereria ser toda silenciosa, toda adoradora a fim de
penetrar sempre mais n'Ele e estar tão cheia d'Ele para o poder dar pela oração às pobres almas
ignorantes do dom de Deus...
Peça a Deus para que eu viva plenamente a minha vida de carmelita, de noiva de Cristo, que
supõe uniões tão profundas! Porque me amou tanto?... Sinto-me tão pequena, tão cheia de miséria,
mas amo-O, é a única coisa que sei fazer, amo-O com o seu amor, é uma dupla corrente entre
Aquele que é e aquela que não é! Ah, quando sinto o meu Deus invadir toda a minha alma, como
Lhe rezo por ti, parece-me que há uma oração à qual Ele não resiste e quero que Ele me torne todo-
poderosa». (Ct 131)
Elisabete medita na sua vocação de carmelita e na sua próxima profissão.
«Uma carmelita, minha querida, é uma alma que olhou o Crucificado, que O viu
oferecendo-se como vítima ao seu Pai pelas almas e, recolhendo-se sob esta grande visão da
caridade de Cristo, compreendeu a paixão de amor da sua alma e quis dar-se como Ele!...
E na montanha do Carmelo, no silêncio, na solidão, numa oração que nunca acaba, pois
continua através de tudo, a carmelita vive já como no céu: "de Deus só". O Mesmo que um dia há
de constituir a sua beatitude e a saciará na glória, dá-se-lhe já e, nunca a deixando, Ele permanece
na sua alma; mais do que isso, ambos não fazem senão Um.
Pois também ela está faminta de silêncio para escutar sempre, para penetrar cada vez mais
no seu Infinito Ser, identificada com Aquele que ela ama, encontrando-O em tudo, vendo-O
irradiar através de todas as coisas!
Não é isto o Céu na terra? Este Céu Germanazinha levá-lo dentro de ti. Já podes ser
carmelita, pois Jesus reconhece a carmelita pelo seu interior». (Ct 133)
«É necessário viver a sua vida de esposa! "Esposa", tudo o que este nome faz pressentir de
amor dado e recebido! de intimidade, de fidelidade, de dedicação absoluta!... Ser esposa, é
entregar-se como Ele se entregou; é imolar-se como Ele, por Ele, para Ele... É o Cristo fazendo-se
todo nosso, e nós tornando-nos "todas suas"!...
Ser esposa, é ter todos os direitos sobre o seu Coração... É um coração a coração por toda
uma vida... É viver com... sempre com... É descansar n'Ele, e permitir que Ele descanse em minha
alma!... É não saber outra coisa senão amar; amar adorando, amar esperando, amar orando,
pedindo, esquecendo-se. É amar sempre! Ser esposa, é ter os olhos nos seus, o pensamento atraído
por Ele, o coração todo tomado, todo invadido, como fora de si e passado n'Ele, a alma cheia da sua
alma, cheia da sua oração, todo o ser cativado e dado...
É contemplá-lo sempre, para surpreender o menor sinal e o mais pequeno desejo; é gozar
com as suas alegrias e partilhar todas as suas tristezas.
É ser fecunda, co-redentora, atrair as almas à graça e multiplicar os filhos adotivos do Pai,
os resgatados por Cristo, os co-herdeiros da sua glória». (NI 13)
Se os quatro meses de postulantado passaram cheios de alegria e de luz, o seu ano de
noviciado foi, pelo contrário, bem duro e doloroso. Mas ela não se lamenta. Este sofrimento não
transparece nas cartas à sua família e às suas amigas.
Pela segunda vez na sua vida, Elisabete sente-se angustiada pelos escrúpulos, devidos em
parte ao seu desejo de ser perfeita em tudo. A sua saúde ressente-se. A sua sensibilidade (o traço
dominante do seu caráter, no dizer dela (cf. NI 12), vibra dolorosamente). Mas ninguém a conhece
a não ser as duas Superioras.
Na véspera da sua profissão, a Madre Germana julga necessário chamar o Padre Vergne
para examinar o compromisso definitivo de Elisabete. Ela mesma diz-nos uma palavra sobre isto:
«Acabo de me encontrar com a nossa Madre que me confessou a sua preocupação que
pronuncie os meus votos neste estado de ânimo. Peça pela sua pequena que está no cume da
angústia.»
O seu segredo para superar as dificuldades é a fé e o amor de Cristo e a sua vontade de Lhe
pagar amor com amor.
«Pergunta-me como posso suportar o frio. Acredite que não sou mais generosa que a
Senhora, só que a Senhora sofre, enquanto que eu tenho boa saúde. Não duvido que faz frio. Deste
modo verifica que tenho pouco mérito, e na minha casa sofria muito mais de Inverno que no
Carmelo onde não há nenhum aquecimento. Deus concede graças; depois, é tão bom, quando
sentimos essas pequenas coisas, olhar o Mestre, que suportou também tudo isso porque nos "amou
tanto" como diz São Paulo: então desejamos pagar-Lhe amor com amor. No Carmelo encontramos
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muitos sacrifícios desse gênero, mas são tão doces quando o coração está inteiramente tomado pelo
amor.
Vou dizer-lhe como faço quando estou um pouco cansada: olho o Crucificado e ao ver
como Ele se entregou por mim, parece-me que eu, o mínimo que posso fazer por Ele é gastar-me e
usar-me, para Lhe pagar um pouco do que me deu». (Ct 156)
No dia vinte e nove de Dezembro de 1902 anuncia a sua profissão que terá lugar na festa da
Epifania, a onze de Janeiro de 1903.
«No dia da Epifania far-me-á sua rainha e pronunciarei os votos que me unirão com Ele para
sempre... Sinto a minha impotência, mas Ele está em mim para me preparar; por isso, cheia de
alegria e de confiança, ousarei comparecer diante d'Ele para que consuma a união que sonhou no
seu amor infinito... É tão bela a minha vocação! Passar toda uma vida no silêncio, na adoração, no
coração a coração com o Esposo! Peça-Lhe que eu seja fiel, que leve até ao fim os seus desígnios
sobre a minha alma, que cumpra plenamente todas as suas vontades, que faça a sua felicidade.»
«Querida Senhora, que as nossas almas se unam para consolar o nosso Mestre! É tão
ofendido no mundo, e tão posto de lado, abramo-nos para O receber. E depois não O deixemos só
neste santuário que é a nossa alma, pensemos no meio de todas as coisas que Ele está ali e necessita
ser amado.
Amanhã, à noite, entro em retiro a fim de me preparar para a minha profissão. Adivinha com
que alegria vejo chegar estes dias de solidão ainda mais completa e de separação absoluta». (Ct
149)
«Como é belo entregar-se nestes tempos em que Ele é tão ofendido! Neste belo dia da minha
profissão queria consolá-lo, fazê-lo esquecer tudo, queria ainda que fosse o começo de um ato de
adoração que nunca mais cessasse na minha alma». (Ct 150)
«Sinto-me envolvida no mistério da caridade de Cristo, e quando olho para trás, vejo como
que uma divina perseguição sobre a minha alma; oh! quanto amor! estou como que esmagada sob
este peso, então calo-me e adoro!». (Ct 151)
Depois do seu compromisso definitivo, a paz regressa imediatamente à sua alma. As cartas de
1903 cantam ao mesmo tempo a felicidade da jovem professa e a profundidade do seu ideal
contemplativo.
«Quem poderá dizer a alegria da minha alma quando, contemplando o Cristo que recebi
depois da minha pro. fissão e que a nossa Reverenda Madre pôs "como um selo sobre o meu
coração", pude exclamar: "Enfim Ele é todo para mim, e eu sou toda para Ele, só tenho a Ele. Ele é
o meu Tudo!". E agora só tenho um desejo, amá-lo, amá-lo todo o tempo, zelar pela sua honra
como uma verdadeira esposa, fazer a sua felicidade, torná-lo feliz fazendo-Lhe uma morada e um
abrigo na minha alma, e que ali Ele esqueça, à força de amor, todas as abominações que os maus
fazem!». (Ct 156)
«Desde a minha última carta, quantas coisas se passaram! A Igreja fez-me ouvir o "Veni
sponsa Christi", consagrou-me, e agora tudo está "consumado", ou antes, tudo começa, porque a
profissão é apenas uma aurora, e cada dia a minha "vida de esposa" me aparece mais bela, mais
luminosa, mais envolta de paz e de amor.
Na noite que precedeu o grande dia, enquanto estava no coro à espera do Esposo, compreendi
que o meu Céu começava na terra, o Céu na fé, com o sofrimento e a imolação por Aquele que
amo!... Quereria tanto amá-lo, amá-lo como a minha seráfica Madre até morrer de amor: "á charitas
Victima", como cantamos no dia da sua festa, e eis toda a minha ambição: ser a presa do amor!...
Parece-me que no Carmelo é tão simples viver de amor; de manhã à noite a Regra aí está para
nos indicar, instante a instante, a vontade do Santo Deus. Se soubésseis como a amo, a esta Regra
que é a forma na qual Ele me quer santa: não sei se terei a felicidade de dar ao meu Esposo o
testemunho do sangue, mas, pelo menos, se levar por inteiro a vida de carmelita, tenho a
consolação de me gastar por Ele, e só por Ele.
Assim, que importa a ocupação na qual Ele me quer: pois que Ele está sempre comigo, a
oração, o face a face, nunca mais deve acabar! Sinto-O tão vivo na minha alma, não tenho senão
que me recolher para O encontrar dentro de mim, e é isso que constitui toda a minha felicidade. Foi

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Ele quem pôs no meu coração uma sede de infinito e uma tão grande necessidade de amar que só
Ele pode saciar: então dirijo-me a Ele, como uma criancinha à sua mãe, para que Ele me sacie, me
invada totalmente, me tome levando-me nos seus braços. Parece-me que é preciso fazermo-nos
pequenos diante de Deus!». (Ct 169)
«É toda a Trindade que repousa em nós, todo este mistério que será a nossa visão no Céu.
Que Ele seja o teu convento.
Minha irmãzinha, enches-me de gozo quando me dizes que a tua vida se realiza n'Ele. A
minha também: sou "Elisabete da Trindade", quer dizer, Elisabete desaparecendo, perdendo-se,
deixando-se invadir pelos Três... Encomendo-te a todos os nossos santos, e muito particularmente à
nossa Santa Madre Teresa e à Irmã Teresa do Menino Jesus. Sim, minha Germanazinha, vivamos
de amor, sejamos simples como ela, entregues todo o tempo, imolando-nos minuto a minuto
fazendo a vontade de Deus sem procurar coisas extraordinárias. E depois façamo-nos muito
pequenas, deixando-nos levar, como a criança nos braços de sua mãe, por Aquele que é o nosso
Tudo.
Sim, minha irmãzinha, somos muito frágeis, direi mesmo que somos apenas miséria, mas Ele
sabe-O bem, gosta tanto de nos perdoar, de nos levantar, de nos levar n'Ele, na sua pureza, na sua
santidade infinitas; é assim que Ele nos purificará pelo seu contato contínuo e toques divinos. Ele
quer-nos tão puras, mas Ele mesmo será a nossa pureza: é preciso deixar-nos transformar numa
mesma imagem com Ele, e isso, muito simplesmente, amando em todo o tempo com esse amor que
estabelece a unidade entre os que se amam!
Eu também, Germana, quero ser santa, santa para fazê-lo feliz. Pede-Lhe que eu não viva
senão de amor, "é a minha vocação". E depois unamo-nos para fazer dos nossos dias uma
comunhão contínua: de manhã despertemos no Amor, durante todo o dia entreguemo-nos ao Amor,
quer dizer, fazendo a vontade de Deus, sob o seu olhar, com Ele, n'Ele, só para Ele. Demo-nos em
todo o tempo sob a forma que Ele quer, tu dedicando-te, fazendo a alegria de teus queridos pais.
Por fim, quando vier a noite, depois de um diálogo de amor que não cessou no nosso coração,
adormeçamos ainda no Amor. Talvez vejamos faltas, infidelidades, abandonemo-las ao Amor: é um
fogo que consome. Passemos assim o nosso purgatório no Amor». (Ct 172)
«Gosto tanto de pensar que foi por Ele que deixei tudo. É tão bom dar quando se ama, e eu
amo-O tanto, este Deus que é cioso de me ter toda para Ele. Sinto tanto amor na minha alma, é
como um Oceano em que mergulho e me perco; é a minha visão sobre a terra esperando o face a
face na luz.
Ele está em mim, eu estou n'Ele, só tenho que O amar e me deixar amar, e isso em todo o
tempo, através de todas as coisas: despertar no Amor, mover-me no Amor, adormecer no Amor, a
alma na sua Alma, o coração no seu Coração, os olhos nos seus olhos, a fim de que pelo seu
contato Ele me purifique, me liberte da minha miséria. Se soubesse como estou cheia d'Ele». (Ct
177)
«Vais-me achar extraordinária, é uma confidência que te faço, começo já o meu Céu sobre a
terra, mas por vezes gostaria de encontrar-me já do outro lado para O ver a Ele... para O Amar e me
perder no seu Infinito. Oh! minha Francisca, tu que tens um coração tão ardente, não compreendes
o que é o amor quando se trata d'Aquele que tanto nos amou? Se soubesses como Ele te ama, e
como eu também te amo...». (Ct 182)
«O que me dizeis a propósito do meu nome consola-me; gosto tanto dele, é mesmo a minha
inteira vocação; e ao pensar nisso a minha alma é levada à grande visão do Mistério dos mistérios,
a essa Trindade que, desde já aqui em baixo, é nosso convento, nossa morada, o Infinito em que
nos podemos mover através de tudo.
Leio neste momento páginas muito belas do nosso bem-aventurado Padre São João da Cruz
sobre a transformação da alma nas três Pessoas divinas. Senhor Abade, a que abismo de glória
somos chamados... O nosso bem-aventurado Pai diz que, então, o Espírito Santo a eleva a uma
altura tão admirável que a torna capaz de produzir em Deus a mesma aspiração de amor que o Pai
produz com o Filho, e o Filho com o Pai, aspiração que mais não é do que o próprio Espírito Santo.
E dizer que o Santo Deus nos chama, pela nossa vocação, a viver nestas santas claridades!
Que mistério adorável de caridade! Quereria corresponder-Lhe passando na terra como a Santa
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Virgem, "guardando todas estas coisas em meu coração", sepultando-me por assim dizer no fundo
da minha alma para me perder na Trindade que aí mora, para n'Ela me transformar. Então a minha
divisa "o meu ideal luminoso", como vós mo dizeis, estarão realizados, será bem Elisabete da
Trindade!...». (Ct 185)
Embora Elisabete não fale muito disto, a situação da Igreja em França e na sua diocese não
a deixa indiferente. Mas o "seu apostolado" é a "união" com Deus, como explica na importante
carta 191 de 25 de Janeiro de 1904 a André Chevignard, jovem seminarista e cunhado de Guida. É
uma carta na qual cita abundantemente as «magníficas epístolas» de São Paulo que está a descobrir
com entusiasmo. Resume pela primeira vez o seu ideal como um esforço por ser "o louvor da
glória" de Deus (Ef 1, 12). "Louvor de glória", ("Laudem gloriae", na expressão latina favorita de
Elisabete), será de agora em diante o seu sobrenome espiritual.
Ao ser aplicada rigorosamente, em 1902 e 1903, a lei de 2 de Julho sobre as Associações,
milhares de conventos são obrigados a fechar, por vezes no meio de grandes desordens sociais.
Uma lei de 7 de Julho de 1904 proíbe o ensino a todas as congregações religiosas, suprimindo
assim novamente milhares de escolas.
Apesar de não estar autorizado, o Carmelo de Dijon, permanece no seu lugar, proibindo-se
unicamente o uso da capela aos visitantes, no dia 16 de Abril de 1903. Em Maio de 1903, a Madre
Germana viaja para a Bélgica, onde encontrará um refúgio para as carmelitas de Dijon em
Noiseaux; em breve será enviada para ali uma quantidade de móveis.
Elisabete, mergulhada profundamente em Deus, conserva o silêncio interior e confia o seu
Carmelo, a Igreja e a si mesma ao Senhor. Guarda o mesmo silêncio sobre o caso do Sr. Bispo Le
Nordez, que põe toda a diocese em sobressalto. Republicano, com falta de prudência, mas não de
ambição, o Bispo é acusado de pertencer à maçonaria (acusação provavelmente falsa). As
discussões na diocese terão o seu ponto alto em 1904. O Bispo é chamado a Roma por Pio X e
convidado a demitir-se. Será um dos pretextos para a ruptura das relações diplomáticas com a Santa
Sé pela França, onde se vota em 1905 a lei da separação entre a Igreja e o Estado.
Elisabete está certamente ao corrente da situação. No locutório e no interior do Carmelo, o
caso não se poderia evitar totalmente. E um dos seminaristas que tinham feito greve em 1904
contra o Bispo Le Nordez era precisamente o Padre André Chevignard...
«A minha alma gosta de se unir à vossa numa mesma oração pela Igreja, pela diocese. Uma
vez que Nosso Senhor permanece nas nossas almas, a oração d'Ele é para nós, e desejaria
comungar nela sem cessar, mantendo-me como um pequeno vaso junto à Nascente, à Fonte da
vida, a fim de poder em seguida comunicá-la às almas, ao deixar transbordar as suas ondas de
infinita caridade. "Santifico-me por eles, a fim de que também eles sejam santificados na verdade".
Esta palavra do nosso Mestre adorado, façamo-la inteiramente nossa, sim, santifiquemo-nos pelas
almas, e visto que todos somos membros dum único corpo, na medida em que possuirmos
abundantemente a vida divina, poderemos comunicá-la no grande corpo da Igreja. Há duas palavras
que para mim resumem toda a santidade, todo o apostolado: "União, Amor"... Unamo-nos para
fazer com que Ele esqueça tudo pela força do amor e sejamos, como diz São Paulo, "o louvor da
sua glória"». (Ct 191)
A união com Deus como fonte da sua fecundidade apostólica é, além disso, uma das suas
mais queridas convicções:
«Não achais que na ação, enquanto se desempenha o ofício de Marta, a alma pode ainda
permanecer inteiramente adoradora, sepultada como Madalena na sua contemplação, mantendo-se
nesta fonte como uma sedenta, pois é assim que compreendo o apostolado, tanto para a carmelita,
como para o padre. Ambos podem então refletir Deus, dá-lo às almas que sem cessar se mantêm
junto a estas divinas fontes. Parece-me que seria preciso chegarmos até tão junto do Mestre,
comungar de tal modo com a sua alma, identificarmo-nos com todos os seus movimentos, e depois
partir, como Ele, na vontade do seu Pai». (Ct 158)
«É tão verdade, minha pequena, que Ele está nas nossas almas e em todo o tempo estamos
perto d'Ele como Marta e Maria; enquanto vais ao trabalho, guardo-te junto d'Ele, e depois, tu
sabes bem, quando se ama, as coisas exteriores não podem distrair do Mestre e a minha Guida é ao
mesmo tempo Marta e Maria!... Se soubesses como me sinto junto de ti, como te envolvo com
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orações, a ti e ao pequeno ser que está já no pensamento de Deus. Oh! deixa-te tomar toda, invadir-
te toda pela sua vida divina, a fim de a dares ao pequenino, que chegará ao mundo todo cumulado
de bênçãos! Pensa o que devia passar na alma da Virgem, quando depois da Encarnação possuía
nela o Verbo Encarnado, o Dom de Deus... Com que silêncio, recolhimento, e adoração devia
mergulhar no fundo da sua alma para ouvir este Deus de quem era Mãe. Minha Guidazinha, Ele
está em nós. Oh! Mantenhamo-nos muito perto d'Ele, nesse silêncio, com esse amor da Virgem...».
(Ct 183)
O nascimento da primeira filha de Guida, a 11 de Março de 1904, chamada Elisabete em
honra da sua tia carmelita, causou uma enorme alegria em Elisabete.
«Minha querida Guida, fizemos uma verdadeira ovação à tua Elisabetinha esta manhã no
recreio. A nossa Reverenda e tão boa Madre estava muito feliz ao mostrar-nos a sua fotografia, e
adivinha se o coração da tia Elisabete batia forte!...
Oh, minha Guida, amo este pequeno anjo, creio que tanto quanto a sua mãezinha, o que não
é dizer pouco.
Depois, repara , sinto-me toda penetrada diante deste pequeno templo da Santíssima
Trindade; a sua alma parece-me como um cristal que irradia o bom Deus, e se estivesse junto dela
ajoelhar-me-ia para adorar Aquele que mora nela ». (Ct 197)
“A querida pequena tem o meu nome; parece-me que Deus ma deu para que seja o seu anjo
e adoto-a totalmente. Rezei tanto por ela antes do seu nascimento...
Comunica-me o dia do batismo, porque poderei acompanhar a minha amada sobrinha às
fontes batismais enquanto a Santíssima Trindade desce à sua alma». (Ct 196)
O Outono de 1904 é um tempo forte para a carmelita sedenta de Deus. Faz o seu retiro
pessoal de 26 de Setembro a 8 de Outubro: dez dias de absoluta solidão e de oração. Do dia 12 de
Novembro até à manhã do dia 21, os recreios diários cessam para dar lugar a uma nova festa de
silêncio: é o retiro comunitário, dirigido pelo Padre Fages, dominicano. No final deste retiro,
Elisabete compõe a sua célebre oração "ó meu Deus, Trindade que eu adoro" (NI 15) que se
encontra na íntegra no final deste livro. Mas notemos que não se trata simplesmente de uma bela
oração, mas antes de um verdadeiro oferecimento de si mesma à Trindade: "entrego-me a Vós
como vítima".
Oito dias depois, numa carta, escutamos um eco disto:
"Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim". Eis o sonho da minha alma de
carmelita também, segundo creio, o da vossa alma sacerdotal, e é sobretudo o de Cristo, e rogo-Lhe
que o realize em plenitude nas nossas almas; sejamos-Lhe de algum modo uma humanidade de
acréscimo em que possa renovar todo o seu Mistério. Pedi-Lhe que se estabelecesse em mim como
Adorador, como Reparador e como Salvador, e não consigo dizer-vos que paz dá à minha alma
pensar que é Ele quem suplanta as minhas incapacidades, e que, se caio a todo o momento que
passa, Ele aí está para me levantar, e levar-me mais longe n'Ele, ao fundo desta essência divina que
já habitamos pela graça e em que me quereria sepultar, em tais profundezas, de maneira que nada
de lá me pudesse fazer sair. É aí que a minha alma encontra a vossa, e com ela, em uníssono, calo-
me para adorar Aquele que tão divinamente nos amou». (Ct 214)
Começa o ano de 1905. «Que seja um ano de amor totalmente para glória de Deus", escreve
Elisabete (Ct 218). São Paulo converteu-se no seu grande alimento espiritual. A carmelita quer
chegar a ser cada vez mais um "louvor" da glória de Deus, "todo Amor", e alcançar as alturas a que
somos chamados.
«Cada dia Ele me faz experimentar como é doce ser d'Ele, só d'Ele, e a minha vocação de
carmelita lança-me para a adoração, para a ação de graças. Sim, é verdade o que diz São Paulo,
"Ele amou tanto", amou tanto a sua pequena Elisabete. Mas o amor reclama o amor e não peço
outra coisa a Deus senão compreender esta ciência da caridade de que fala São Paulo e da qual o
meu coração queria sondar toda a profundidade». (Ct 219)
«Esta manhã temos o nosso último recreio e entramos em retiro do Cenáculo até ao
Pentecostes. Durante estes dez dias, parece-me que estarei ainda mais perto de vós, pois estarei
mais n'Ele. São Paulo, cujas belas epístolas cultivo, e que fazem a minha felicidade, diz que
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"ninguém conhece o que há em Deus, senão o Espírito de Deus". O programa do meu retiro será
pois manter-me pela fé e pelo amor sob "a unção do Santo" de que fala São João, pois Ele é o único
que "penetra as profundezas de Deus". Oh, rezai para que eu não entristeça este Espírito de amor,
mas permita que realize na minha alma todas as criações da sua graça». (Ct 230)
O esgotamento físico, precursor da doença que levará Elisabete à morte em 1906, começa a
aparecer. Na primavera de 1905 são-lhe concedidas exceções na observância da Regra. A meados
de Agosto, é dispensada do seu ofício de segunda porteira. O seu estado de saúde atravessa altos e
baixos. Obrigada a repousar, Elisabete escreve a sua mãe e a Guida, que teve a sua segunda filha,
Odete, no dia 19 de Abril de 1905.
«A nossa boa Madre, que se preocupa da tua Elisabetinha com um coração todo maternal,
quer que eu tome muito ar; assim, em lugar de trabalhar na nossa pequena cela, instalo-me como
uma eremita no lugar mais deserto do nosso grande jardim, e lá passo horas deliciosas. Toda a
natureza me parece tão cheia de Deus: o vento que sopra nas grandes árvores, os passarinhos que
cantam, o lindo céu azul, tudo isso me fala de Deus. Oh! mamãe, necessito dizer-te que a minha
felicidade cresce sempre, toma proporções infinitas como o próprio Deus, e é uma felicidade tão
calma, tão doce; queria dar-te o meu segredo!
São Pedro, na sua suprema epístola, diz: "Porque acreditais, sereis repletos de uma alegria
inquebrantável". Creio que a carmelita bebe de fato toda a sua felicidade nesta fonte divina: a fé.
Ela acredita, como diz São João, "no amor que Deus tem por ela". Ela acredita que este mesmo
amor a trouxe à terra... e à sua alma, pois Aquele que se proclamou como a Verdade disse no
Evangelho: "Permanece i em mim, e eu permanecerei em vós». Então, muito simplesmente, ela
obedece ao mandamento tão doce e vive na intimidade com Deus que mora nela, que lhe é mais
presente que ela a si mesma. Tudo isto, minha querida mamã, não é sentimento ou imaginação, é a
pura fé"». (Ct 236)
«Acabo de ler em São Paulo coisas admiráveis sobre o mistério da adoção divina.
Naturalmente que pensei em ti, seria muito extraordinário que fosse de outro modo: tu que és mãe e
que sabes que profundidades de amor pelos teus filhos o Santo Deus põe no teu coração, bem
podes captar a grandeza deste mistério: filhos de Deus, minha Guida, isto não te faz estremecer?
Escuta o que diz o meu querido São Paulo: "Deus elegeu-nos n'Ele, antes da criação. Predestinou-
nos como filhos adotivos para fazer brilhar a luz da sua graça", quer dizer em toda a sua
onipotência parece que Ele não podia fazer nada de superior. E escuta ainda isto: «Se somos filhos,
somos também herdeiros. E que herança é esta? "Deus tornou-nos dignos de ter parte na herança
dos santos na luz". E depois, como que para nos dizer que isto não é um futuro longínquo, o
Apóstolo acrescenta: "Não sois hóspedes ou estrangeiros, mas sois da Cidade dos Santos e da Casa
de Deus"... E ainda: "A nossa vida está nos Céus"...
Oh! minha Guida, este Céu, esta casa de nosso Pai, está no "centro da nossa alma!". Como
o verás em São João da Cruz, quando formos ao nosso mais profundo centro estamos em Deus.
Não será isto tão simples e tão consolador? Em todas as coisas, mesmo no meio das tuas solicitudes
maternais, enquanto estás toda entregue aos teus anjinhos, podes retirar-te nessa solidão, para te
entregares ao Espírito Santo de modo a que Ele te transforme em Deus, imprima na tua alma a
Imagem da Beleza divina, a fim de que o Pai, inclinando-se sobre ti já não veja mais do que o seu
Cristo, e que Ele possa dizer: "Esta é a minha filha bem-amada, em quem pus todas as minhas
complacências".
Oh, irmãzinha, no Céu hei de alegrar-me ao ver aparecer o meu Cristo tão belo na tua alma;
não me encheria de soberba, mas, com um orgulho de mãe, dir-Lhe-ia: Fui eu, pobre miserável que
dei à luz esta alma para a vossa vida. São Paulo falava assim dos seus, e bem tenho pretensões de o
querer imitar, o que é que tu dizes disto? Entretanto, «acreditemos no amor» com São João e, pois
que já O possuímos em nós, que importam as noites que podem obscurecer o nosso céu: se Jesus
parece dormir, oh, repousemos também junto d'Ele, estejamos inteiramente calmas e silenciosas;
não O acordemos, mas esperemos na fé.
Quando a Elisabetinha e a Odete estão nos braços da sua mãe tão querida, creio que
também pouco se hão de inquietar se faz solou chuva: imitemos essas ternas pequeninas, vivamos
nos braços do Santo Deus com a mesma simplicidade...
Queres fazer comigo um grande retiro de um mês até 14 de Setembro? A nossa Madre dá-
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me umas pequenas férias na roda. Assim não terei que falar nem pensar, e vou sepultar-me no
fundo da minha alma, quer dizer, em Deus. Queres seguir-me neste movimento tão simples?
Quando estiveres distraída pelos teus numerosos trabalhos, hei de tentar compensar-te e, se
quiseres, para te lembrares, em cada hora quando pensares nisso (se te esqueceres, não tem
importância), hás de entrar no íntimo da tua alma, lá onde mora o Hóspede divino; poderás, então,
pensar naquela bela palavra que te tinha dito: "Os vossos membros são o templo do Espírito Santo
que em vós habita" e na que é do Mestre: "Permanecei em mim, e Eu em vós"... Diz-se de Santa
Catarina de Sena que viveu sempre na cela, embora estando no meio do mundo: é porque ela vivia
nesta habitação interior em que a minha Guida também sabe viver». (Ct 239)
Devido ao seu grande ânimo, não se dá conta da gravidade do seu estado; minimiza-o
quando fala dele. Mais adiante confessará:
«Pela manhã, depois de recitar as horas menores, encontrava-me já no limite das minhas
forças e perguntava-me como poderia chegar à noite. Quando vós (a Priora) me mandáveis
descansar, eu não encontrava alívio: quebrantada em todo o meu ser, não encontrava nem postura
nem sono profundo, de modo que não poderia dizer-lhe se o meu esgotamento era maior durante o
dia ou durante a noite. A oração continuava a ser o melhor remédio para os meus males. Passava o
tempo de silêncio rigoroso numa verdadeira agonia, que unia à do divino Mestre, permanecendo a
seu lado, perto da grade do coro. Era uma hora de profundo sofrimento, mas dava-me forças para
rezar Matinas. Tinha então certa facilidade para pensar em Deus; depois, voltava a encontrar-me
com a minha impotência, e sem ser vista por causa da obscuridade, regressava como podia à minha
cela, apoiando-me com freqüência na parede». (R 172)
Elisabete está convencida de que vai morrer em breve. Está feliz por ver a Deus, mas sente
também a sua pequenez e o seu desejo de ser purificada pela sua misericórdia. Escutemos alguns
ecos disso:
«O grande São Paulo diz: "Onde o pecado abunda, a graça superabunda". Parece-me que a
alma mais fraca, mesmo a mais culpável, é a que mais pode esperar, e esse ato que a faz esquecer-
se e lançar-se nos braços de Deus, glorifica-O e dá-Lhe mais alegria que todos os movimentos dela
à volta de si mesma ou todos os exames, que a fazem ainda viver com as fraquezas, quando afinal
possui no centro de si própria O Salvador que a todo o instante a quer purificar.
Lembra-se daquela página tão bela em que Jesus diz ao Pai: "que Ele Lhe deu poder sobre
toda a carne para que Ele lhe comunicasse a vida eterna?" É isso o que Ele quer fazer consigo: a
todo o instante quer que saia de si, que deixe todas as preocupações, de modo que se retire naquela
solidão que Ele escolheu no fundo do seu coração. Ele, está sempre lá, mesmo que não O sinta; Ele
espera-a e quer consigo estabelecer um "admirável intercâmbio", como cantamos na bela liturgia,
uma intimidade de Esposo e esposa; das suas enfermidades, das suas faltas, de tudo o que a
perturba, é Ele quem, por este contínuo contato, a há de libertar. Não foi Ele que disse: "Não vim
para julgar, mas para salvar". Nada lhe deve parecer um obstáculo para chegar até Ele. Não ligue
demasiado a saber se está entusiasmada ou desencorajada; é a lei deste exílio passar assim de um
estado a outro. Antes creia que, Ele, Ele nunca muda, que na sua bondade está sempre virado para
si, para a tomar e estabelecer n'Ele. Se, apesar de tudo, o vazio, a tristeza a acabrunharem, una esta
agonia à do Mestre no Jardim das Oliveiras, quando Ele dizia ao Pai: "Se for possível fazei que este
cálice se afaste de mim".
Querida Senhora, talvez lhe pareça difícil esquecer-se. Não se preocupe; se soubesse como
isso é tão simples... vou dar-lhe o meu "segredo": pense neste Deus que a habita e de que é o
templo; é São Paulo quem assim fala, podemos acreditá-lo. Pouco a pouco a alma habitua-se a
viver na sua doce companhia, começa a compreender que traz em si um pequeno Céu onde o Deus
de amor fixou a sua morada. Então, é como que uma atmosfera divina na qual respira, diria mesmo
que só o corpo é que fica na terra, mas a alma habita acima das nuvens e dos véus, n'Aquele que é o
Imutável. Não diga que isto não é para si, que é demasiado infeliz, porque, pelo contrário isso é
mais uma razão para se dirigir Àquele que salva. Não é olhando essa miséria que havemos de ser
purificados, mas olhando para Aquele que é toda a pureza e santidade». (Ct 249)
«Ajudai-me Senhor Abade, pois tenho muita necessidade disso: quanto mais se faz claro,
tanto mais sinto a minha impotência». (Ct 250)
«Tanto queria consolar o meu Mestre mantendo-me incessantemente unida a Ele. Vou fazer-
vos uma confidência muito íntima: o meu sonho é ser o "louvor da sua glória"; foi em São Paulo
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que li isto, e o meu Esposo fez-me ouvir que era essa a minha vocação desde este exílio, enquanto
espero ir cantar o Sanctus eterno na Cidade dos santos. Mas isto exige uma grande fidelidade,
porque, para ser o louvor de glória, é preciso estar morta para tudo o que não seja Ele, a fim de
vibrar exclusivamente ao seu toque, e esta pobre Elisabete bem pratica algumas maldades para com
o seu Mestre; todavia, como um terno Pai, Ele perdoa-lhe, o seu divino olhar purifica-a e, como
São Paulo, tenta "esquecer o que está atrás para se lançar em direção ao que está adiante". Como se
sente a exigência de se santificar, de se esquecer para estar inteiramente no interesse da Igreja...
Pobre França!... Oh, pedi-Lhe que eu esteja à altura da minha vocação e que não abuse das
graças que Ele me concede; se soubésseis como, por vezes, isso me causa medo... Então, lanço-me
àquele que São João chama "o Fiel, o Verdadeiro", e suplico-Lhe que seja Ele próprio a minha
fidelidade». (Ct 256)
Ele quis ser o primeiro a sofrer para que nas horas crucificantes possamos dizer olhando
para Ele: "Ele sofreu ainda mais do que eu, e isso para me revelar o seu amor, e para reclamar o
meu". O salmista, falando d'Ele, diz "que a sua dor era imensa como o mar", E São Paulo depois
dele: "Não temos um pontífice incapaz de se compadecer das nossas doenças, porque foi provado
em tudo como nós".
Entregai-vos ao Amor, querida Senhora. Vós dizeis-me que tendes para expiar, mas o nosso
Deus é chamado um «Fogo consumidor» e também «Rico em misericórdia por causa do seu tão
grande amor». Que motivo de confiança para a alma que diz com São João: «Creio no seu amor!
Peço-Lhe (...) que infunda no seu coração esta paz e esta confiança dos filhos de Deus. Parece-me
que, se visse a morte, apesar de todas as minhas infidelidades abandonar-me-ia entre os braços do
meu Deus como a criança que dorme sobre o coração de sua mãe: não é outra coisa, e Aquele que
deve ser o nosso Juiz habita em nós, fez-se o companheiro da nossa peregrinação para nos ajudar a
franquear a dolorosa passagem». (Ct 263)

DOENÇA E RESSURREIÇÃO

Elisabete, abatida pela doença, entra na enfermaria do Carmelo antes de terminar o mês de
Março de 1906. Jovem moribunda de vinte e seis anos, permanecerá ali oito meses e meio. A sua
alimentação torna-se cada vez mais difícil. Na tarde do dia 8 de Abril, uma crise agrava
repentinamente o seu estado de debilidade.
«Na noite de Ramos tive uma crise muito forte e julguei que era chegada enfim a hora em
que ia elevar-me àquelas regiões infinitas para contemplar, sem véu, a Trindade que foi já a minha
morada aqui na terra. Na calma e silêncio dessa noite recebi a Extrema-Unção e a visita do meu
Mestre. Parecia-me que Ele só esperava esse instante para romper os meus liames. Oh! minha
irmãzinha, que dias inefáveis passei à espera da grande visão! A nossa Reverenda e tão querida
Madre estava constantemente à minha cabeceira, preparando-me para o encontro com o Esposo, e
no meu desejo de ir para Ele, sentia que Ele tardava muito em vir. Como é suave e doce, a morte,
para as almas que nada amaram senão a Ele, que, segundo a linguagem de São Paulo, não
procuraram as coisas visíveis, porque são passageiras, mas as invisíveis, pois que permanecem
eternamente. Estava tão feliz por morrer carmelita». (Ct 278)
Toda a Semana Santa foi muito trabalhosa, e o seu esgotamento chegou ao máximo no dia de
Sexta-Feira Santa. No Sábado Santo melhora sensivelmente. As religiosas não têm ilusões sobre
uma possível cura, a não ser por meio de um milagre; e pedem-no. No dia de Páscoa, Elisabete
pede que escrevam a sua mãe, a quem nunca "deu uma palavra de esperança de cura".
«Se tivesse partido para o Céu, como teria feito sentir a presença da tua Elisabetinha. Como
estou certa de ser compreendida por ti, confesso-te baixinho a minha grande decepção por não ter
subido Àquele que tanto amo. Pensa o que teria sido para a tua filha este dia de Páscoa no Céu!
Mas isso seria ainda pessoal, e agora estou em total obediência, que me faz pedir a minha cura, e
faço-o em união de oração contigo, com a minha Guida e os meus queridos anjinhos, que tanto
teria gostado de proteger se tivesse partido [para o Céu]. Se soubesses como é boa, a nossa Madre!
Uma verdadeira mãezinha para a tua filha; e asseguro-te que na noite da minha crise, apesar da
minha alegria de ir para Deus, tinha necessidade de ouvir a voz dela e de sentir as minhas mãos nas
suas, porque mesmo assim esse momento é muito solene, e sentimo-nos tão pequenos, e de mãos
tão vazias...
Agradeçamos ao Santo Deus por estes dias todavia penosos para o teu coração; mas, querida
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mãezinha, sinto mesmo que passam por nós como uma torrente de amor; não percamos nada e
digamos obrigada Àquele que não sabe senão amar-nos». (Ct 266)
«Se soubesses como sou feliz na solidão da minha pequena enfermaria; o meu Mestre está
comigo, e vivemos noite e dia num doce coração a coração. Aprecio ainda mais a felicidade de ser
carmelita, e peço a Deus pela minha mãezinha que me deu a Ele. Desde que estou doente
aproximei-me mais do Céu; um dia dir-te-ei tudo isto. Oh, mamãe, preparemos a nossa eternidade,
vivamos com Ele, pois só Ele nos pode acompanhar e ajudar nesta grande passagem». (Ct 267)
«Imagina, minha Guida, contemplar na sua própria luz os esplendores do Ser divino,
perscrutar todas as profundidades do seu mistério, estar fundida com Aquele que se ama, cantar
sem repouso a sua glória e o seu amor, ser semelhante a Ele, porque O veremos tal qual é..
Irmãzinha, ficaria feliz de ir lá para cima só para ser o teu Anjo. Como haveria de me orgulhar da
beleza da tua alma já tão amada na terra! Deixo-te a minha devoção pelos Três, pelo «Amor». Vive,
no interior, com Eles no céu da tua alma; o Pai há de te cobrir com a sua sombra, colocando como
que uma nuvem entre ti e as coisas terrenas para te guardar toda sua, Ele há de comunicar-te o
poder para que O ames com um amor forte como a morte; o Verbo há de imprimir na tua alma,
como num cristal, a imagem da sua própria beleza, para que sejas pura da pureza d'Ele, luminosa,
da sua luz; o Espírito Santo virá transformar-te numa lira misteriosa que, no silêncio, sob o toque
divino, há de produzir um magnífico cântico ao Amor; então serás "o louvor da sua glória", o que
eu tinha sonhado ser na terra. És tu quem me substituirás; eu, eu serei "Laudem gloriae" diante do
trono do Cordeiro, e tu "Laudem gloriae" no centro da tua alma. Isto manter-nos-á sempre unidas.
Crê sempre no Amor. Se tiveres de sofrer, pensa que és mais amada ainda, e canta sempre
agradecida. Ele é tão cioso da beleza da tua alma... Ele não procura senão isso mesmo. Ensina às
tuas meninas a viver sob o olhar do Mestre. Gostaria que a Elisabetinha tivesse a minha devoção
aos Três. Estarei presente nas primeiras Comunhões delas, e hei de ajudar-te a prepará-las.
Rezarás por mim; ofendi o meu Mestre mais do que possas acreditar; mas sobretudo dá-Lhe
graças: reza um glória todos os dias. Perdoa-me os maus exemplos que muitas vezes te dei». (Ct
269)
A vida seria extremamente monótona na enfermaria do Carmelo se Deus não estivesse
presente e se não fosse próxima a caridade das suas irmãs, ou também as atenções dos seus
familiares e amigas, que às vezes a visitam no locutório da enfermaria. No dia 13 de Maio quase
que morre por causa de uma nova crise.
«Desde que vos escrevi o Céu pareceu abrir-se de novo e rezastes tão bem que continuo
cativa; mas uma feliz cativa que, no fundo da sua alma, canta noite e dia o amor de seu Mestre. Ele
é tão bom... Diria que não tem em quem pensar senão em mim, a quem amar senão a mim, tanto se
dá à minha alma, mas é para que, por minha vez, eu me entregue a Ele pela sua Igreja e por todas
as suas necessidades. Oh! peça para que a sua filha seja também "Caritatis victima". (Ct 275)
No dia 24 de Maio, festa da Ascensão, Elisabete diz:
«Durante a oração de Matinas, escutei esta palavra no fundo da minha alma: «Se alguém
me ama, meu Pai o amará; viremos a ele e faremos nele a nossa morada». Nesse mesmo momento
comprovei que era verdade. Não saberia dizer como se revelam as Três Pessoas, mas sem dúvida
vi-As, vi-As celebrar em mim o seu conselho de amor, e creio que ainda As vejo assim. Que grande
é Deus e como nos ama!»
«Minha mãezinha querida, começo a minha carta com uma declaração. Oh, repara, eu já te
amava tanto, mas desde a última vez que nos vimos redobrou ainda... Sou a mãezinha da tua alma.
Está bem, não é verdade?
Estamos em retiro para o Pentecostes, eu ainda mais, no meu pequeno e querido cenáculo.
Separada de tudo, peço ao Espírito Santo que te revele esta presença de Deus em ti, de que já te
falei. Por tua intenção estive a ver vários livros que tratam disso, mas prefiro voltar a ver-te antes
de tos dar. Podes acreditar na minha doutrina, porque ela não é minha. São João, nas suas epístolas,
convida-nos a viver em "comunhão" com a Santíssima Trindade: esta palavra é tão doce, e é tão
simples. Basta - di-lo São Paulo - basta acreditar: Deus é espírito e é pela fé que nos aproximamos
d'Ele. Pensa que a tua alma é o templo de Deus, é ainda São Paulo quem o diz; a todo o instante do
dia ou da noite as três Pessoas divinas permanecem em ti. Não possuis a Santa Humanidade como
quando comungas, mas a Divindade, essa essência que os bem-aventurados adoram no Céu, ela
mesma está na tua alma.
Assim, quando se tem consciência disso, dá-se uma intimidade toda de adoração; nunca se
está só! Se preferes pensar que o Santo Deus está perto de ti, mais do que em ti, segue a tua
inclinação desde que vivas com Ele. Não te esqueças de te servires do meu pequeno "praticável",
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que fiz de propósito para ti com tanto amor; e, além disso, espero que faças as três orações de
cinco minutos no meu pequeno santuário. Pensa que estás com Ele, e ages como com um Ser a
quem se ama; é tão simples, não há necessidade de belos pensamentos, mas uma expansão do
coração.
Agradeço-te o delicioso bolo que me enviaste, isto tocou muito no meu coração; mas,
repara, é demasiado fino para o meu ruim estômago que prefere um simples queijo branco». (Ct
273)
«Cada manhã tenho a felicidade de ser levada à grade da comunhão próxima da cela e volto
com o meu Mestre para fazer a minha ação de graças na minha pequena cama. Esta manhã assisti
mesmo à Missa numa cadeira grande». (Ct 276)
«Oh! repara, há uma palavra de São Paulo que é como que um resumo da minha vida, e que
se poderia escrever a cada um dos seus momentos: "Propter nimiam charitatem". Sim, todas estas
torrentes de graças, é "porque Ele muito me amou".
Mãezinha querida, amemo-lo, vivamos com Ele como um ser amado de que não nos
possamos separar. Hás de me dizer se tens feito progressos no caminho do recolhimento na presença
de Deus». (Ct 280)
«A nossa boa Madre tem tanto cuidado comigo. Sabe que me cansa falar, e posso dizer que
quase não vejo as minhas Irmãs que desejam estar comigo, levadas pelo carinho que me têm, já que
me amam como uma verdadeira irmã. Oh! que Carmelo! como reina nele a bela virtude tão
recomendada pelo Mestre! O meu estado de saúde está um pouco melhor, é o estômago que não
pode alimentar-se sempre». (Ct 308)
«Eis que começou esta grande Oitava da Festa do Corpo de Deus. Este ano, temos o
Santíssimo Sacramento na capela. Gostava tanto de passar lá horas e dias inteiros... Mas gosto ainda
mais da vontade do meu Mestre adorado, e não há mais sacrifícios para mim; se não posso ir a Ele,
é Ele que vem a mim para abraçar a minha alma com a ternura de uma mãe.
Não ficarás contente se não te falar da minha saúde. Podes ficar em paz a este respeito.
Alimento-me sempre com queijo branco e pão de Bruges; tomando-o a todas as horas, o meu
estômago cansa-se menos; Guida envia-me sempre gelados e saborosos chocolates; é ao meu
Mestre que ofereço estas guloseimas, e assim não tenho escrúpulos. Nestes dias, o tempo não me
tem permitido ir até ao terraço e por isso não deixei o meu pequeno santuário, a não ser para ir
cantar à nossa Madre na quinta-feira pela tarde no capítulo, que está junto da enfermaria: levaram-
me alguns momentos na cadeira grande. Era a primeira vez, depois de mais ou menos três meses,
que via a minha querida comunidade; se soubesses como as minhas Irmãs estavam contentes e me
rodeavam... É emocionante ver como nos amamos!». (Ct 285)
Sem dúvida, como resultado de uma tuberculose, Elisabete sofre a doença de Addison, então
incurável: afecção crônica das glândulas renais, que não produzem a quantidade suficiente de
substâncias necessárias para levar a cabo o metabolismo. Isto dá origem a uma debilidade
característica, moléstias gastro-intestinais, náuseas, tensão baixa, impossibilidade de se alimentar,
levando tudo ao esgotamento total e à morte. A este estado geral há que acrescentar outras
complicações, tais como úlceras interiores, violentas dores de cabeça, insônias... À medida que se
vai aproximando a morte todos estes sintomas manifestam-se mais violentamente.
Durante todo este tempo, a alimentação é o problema principal. Elisabete alimenta-se de
gelados, leite, queijo branco. Fazem tentativas com diversos tipos de bolos: tudo em pequenas
porções. Come também chocolate e bombons de licor, escolhendo aqueles que menos lhe
desagradam e não lhe queimam o estômago.
Pouco a pouco vai perdendo a voz. Beber é para ela um verdadeiro martírio. O ideal de ser
conforme a Cristo crucificado vai-se desenhando cada vez mais.
Incapaz de se manter de pé, no dia 8 ou 9 de Julho Elisabete recupera um pouco de força nas
suas pernas, o que lhe permite ir ao terraço mais próximo, procurando o calor das celas e sobretudo
a pequena tribuna que dá para a capela e daí assiste à missa e aos ofícios.
«O meu estômago continua ainda recalcitrante com a alimentação, mas imagina que já
comecei a andar; não estou a piorar, pois já não estou tão gorda quanto antes, em que não me podia
sequer sentar. No outro dia, quando a nossa Madre chegou, sentia-me muito cansada, e disse-lhe
que ia morrer, e ela retorquiu-me que, em vez de dizer isso, melhor faria em tentar andar. Gosto
tanto de lhe obedecer! Quando fiquei sozinha, fiz tentativas junto da cama; e isso custou-me tanto;
roguei à Irmã Teresa do Menino Jesus, não para me curar, mas para me dar pernas, e pude andar. Se
me visses como uma velhota curvada sobre a bengala, bem havias de rir. A nossa boa Madre
conduz-me pelo braço até ao terraço; fico toda orgulhosa das minhas idas e vindas; não há de tardar
que te possa fazer uma demonstração, tu por certo bem hás de rir, porque estou tão engraçada, e
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alegro-me por anunciar-te esta boa nova, crendo que te dará muito gosto. Não lamentes a tua
Elisabetinha; o Santo Deus há de deixá-la um pouco mais». (Ct 295)
«Oh, quanto gosto do pensamento de São Paulo que vós me enviastes! Parece-me que ele se
realiza em mim sobre este pequeno leito que é o altar onde me imolo ao Amor. Oh, pedi para que a
semelhança com a Imagem adorada seja cada dia mais perfeita: "Configuratur morti ejus". Eis
também o que me persegue, o que dá a força à minha alma no sofrimento. Se soubésseis que obra
de destruição sinto em todo o meu ser; foi o caminho do Calvário que se abriu, e sou muito feliz de
caminhar por ele como uma esposa ao lado do divino Crucificado.
No dia 18 terei vinte e seis anos; não sei se este ano se acabará no tempo ou na eternidade, e
peço-vos como uma criança ao seu pai que me consagreis, na santa Missa, como uma hóstia de
louvor à glória de Deus. Oh, consagrai-me tão bem que eu não seja mais eu, mas Ele, e que o Pai,
olhando-me, o possa reconhecer; que «eu seja conforme à sua morte», que sofra em mim o que falta
à sua paixão pelo seu corpo que é a Igreja, e depois banhai-me no Sangue de Cristo para que seja
forte com a força d'Ele; sinto-me tão pequena, tão frágil.». (Ct 294)
No dia 16 de Julho, festa de Nossa Senhora do Carmo, escreve a Guida:
«A minha vocação é o amor». Querida irmãzinha, a tua carta foi mais uma alegria no meu
céu onde te guardo sempre comigo. Hoje, bem te ofereci à Santa Virgem, assim como aos
pequeninos anjos. Oh! nunca a amei tanto! Choro de alegria ao pensar que esta Criatura
completamente serena, toda luminosa é a minha Mãe e alegro-me com a sua beleza como uma
criança que ama sua mãe; tenho uma inclinação muito forte para ela, erigi-a como Rainha e
Guardiã do meu céu, e do teu, porque faço tudo por nós as duas.
Irmãzinha querida, é preciso riscar a palavra «desânimo» do teu vocabulário de amor;
quanto mais sentes a tua fraqueza, a tua dificuldade em te recolheres, quanto mais o Mestre parece
escondido, mais te deves alegrar, porque então, ofereces-Lhe e não é melhor dar que receber,
quando se ama? Deus dizia a São Paulo: "A minha graça basta-te, porque a força aperfeiçoa-se na
fraqueza", e o grande Santo tinha-o tão bem compreendido quando exclamava: "Glorifico-me nas
minhas enfermidades, porque quando sou fraco, a força de Jesus Cristo habita em mim". Que
importa o que nós sentimos; Ele, Ele é o Imutável, Aquele que não muda nunca: Ele ama-te hoje,
como te amou ontem, como te amará amanhã. Mesmo se tu Lhe causares sofrimento, lembra-te que
um abismo clama por outro abismo, e que o abismo da tua miséria, Guidinha, atrai o abismo da sua
misericórdia, oh!, repara, Ele faz-me compreender isto de tal modo, e é para nós as duas. Chama-
me muito também para o sofrimento, o dom de si; parece-me que é o termo do amor. Irmãzinha,
não percamos um sacrifício, há tantos a recolher num só dia: com as pequenas, terás muitas
ocasiões: oh, dá tudo ao Mestre. Não achas que o sofrimento nos une a Ele com uma ligação mais
forte... Assim, se Ele te levasse a tua irmã, seria para ser ainda mais teu.
Guidinha, ajuda-me a preparar a minha eternidade; parece-me que a minha vida já não será
muito longa; amas-me o bastante para te alegrares que eu vá repousar-me onde já vivo desde há
muito. Gosto de te falar destas coisas irmãzinha, eco da minha alma; sou egoísta, porque vou talvez
causar-te sofrimento, mas gosto de te elevar mais acima do que é mortal, ao seio do Amor infinito.
É a pátria das duas irmãzinhas, é lá que sempre se reencontrarão. Oh, Guida, esta tarde ao escrever-
te a minha alma transborda, porque sinto "o tão grande amor" do meu Mestre e quereria fazer
passar a minha alma à tua para que nele pudesses acreditar sempre, sobretudo nas horas mais
dolorosas.
As minhas pobres pernas fazem progressos, e aproveito para fazer visitas à pequena tribuna,
é divino! Sou a pequenina reclusa do Santo Deus e quando volto à minha querida cela para
continuar o colóquio começado na tribuna apodera-se de mim uma alegria divina; amo tanto a
solidão com Ele só, e levo uma pobre vida de eremita verdadeiramente deliciosa. Mas tu sabes que
esta vida está longe de ser isenta de dificuldades; também eu tenho necessidade de procurar o meu
Mestre que se esconde bem; mas então desperto a minha fé, e fico mais contente de não gozar a sua
presença, para o fazer gozar, a Ele, [do] meu amor. De noite, quando acordares, une-te a mim.
Quereria poder convidar-te a vires ao pé de mim; é tão misteriosa, tão silenciosa, esta celazinha de
paredes brancas em que sobressai uma cruz de madeira escura sem Cristo: é a minha, aquela em
que devo imolar-me a todo instante para ser conforme a meu Esposo crucificado. São Paulo dizia:
"O que eu quero, é conhecê-lo, a Ele, o Cristo, e a comunhão com os seus sofrimentos e a
conformidade com a sua morte". (Ct 298)
«A Santíssima Virgem não fez o milagre que tu desejavas. Quando temes, como me dizes
na tua amável e querida carta, que seja uma vítima designada para sofrer, suplico-te, não te
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entristeças, isso seria tão belo; não me sinto digna d'Ele: imagina tomar parte nos sofrimentos de
meu Esposo crucificado, e ir com Ele à minha paixão para ser redentora com Ele... São Paulo diz
que aqueles que Deus conheceu na sua presciência, Ele os predestinou para serem conformes à
imagem de seu Filho. Alegra-te no teu coração maternal pensando que Deus me predestinou e me
marcou com o sinal da Cruz do seu Cristo.
As minhas pernas, por exemplo, fazem progressos; posso caminhar sem bengala. Deram-me
um vestido de doente muito ligeiro, e com ele posso fazer as minhas pequenas idas e voltas que
consistem em ir ao terraço e à pequena tribuna: adivinhas que alegria para a minha alma? Várias
vezes ao dia vou fazer visitas ao meu Mestre e dou-lhe graças por me ter voltado a dar as minhas
pernas para ir até junto d'Ele». (Ct 300)
No quinto aniversário da sua entrada no Carmelo, escreve a sua mãe:
«Ontem à noite lembrava-me deste último serão, e, como não podia dormir, instalei-me
junto à minha janela e fiquei ali quase até à meia-noite, em oração com o meu Mestre. Passei um
serão divino; o céu estava tão azul, tão calmo, sentia-se um tal silêncio no mosteiro; e eu recordava
estes cinco anos tão cheios de graças. Oh! mãezinha que tanto amo, não te arrependas da felicidade
que me deste; sim, graças ao teu "fiat" pude entrar na santa morada e, a sós com Deus só, saborear
um antecipado gosto deste Céu que tanto atrai a minha alma. Esta noite ofereci de novo o sacrifício
que tu fizeste há cinco anos». (Ct 302)
«Minha querida mamãe, volto a ti, para retomar a nossa conversa. Recebi a visita do doutor
Gautrelet, que acolhi o mais calorosamente possível para que não ficasse com má impressão do
Carmelo: amo tanto o meu Carmelo que quereria partilhar a minha simpatia com todos aqueles que
se aproximam de mim. Ficou muito tempo, mas não creio que seja ele que me ressuscitará; sabes o
que me aconselhou para recuperar o meu estômago: um bom cozido; penso que terás tanta inveja
quanto eu! Tentei tomar mais umas colherinhas e deu-me a volta ao estômago, aumentou a
expectoração e o resto; assim, retomo a minha colherinha e é tudo o que posso fazer». (Ct 305)
Na primeira metade de Agosto, Elisabete compõe, para dar uma surpresa a Guida, o seu
primeiro pequeno tratado espiritual, "O Céu na fé". É um mosaico de citações que formam uma
abside muito pessoal. Utiliza muitas vezes textos do místico flamengo Ruysbroeck e do doutor
místico espanhol São João da Cruz.
Na tarde do dia 15 de Agosto começa um retiro pessoal. A pedido da Madre Germana, toma
cada dia notas num caderno que constituirá o seu belo tratado "Último Retiro". Oferecendo-nos
apenas a sua contemplação da Palavra revelada, essas páginas alcançam uma verdadeira densidade
autobiográfica. Elisabete não fala teoricamente da teologia ou da mística; oferece um testemunho;
"a alma", é ela mesma.
Vejamos como anuncia este seu "Último Retiro":
«Parto com a Santíssima Virgem na tarde da Assunção a fim de me preparar para a vida
eterna; a nossa Madre fez-me tanto bem ao dizer-me que este retiro ia ser o meu noviciado do Céu,
e que, em 8 de Dezembro, se a Santíssima Virgem me visse pronta, me haveria de vestir com o
manto de glória. A Bem-aventurança atrai-me cada vez mais: entre mim e o meu Mestre de nada
mais se trata senão disso, e todo o seu trabalho é o de me preparar para a vida eterna». (Ct 306 )
«Eis aqui tudo o que vou aprender: a conformidade, a identidade com o meu Mestre
adorado, o Crucificado por amor». (Ct 307)
Leiamos algumas linhas sobre o tema:
«"A minha alma está sempre nas minhas mãos". Assim cantava a alma do meu Mestre. Por
isso entre todas as angústias Ele sempre permanecia o Calmo e o Forte. A minha alma está sempre
nas minhas mãos!... Que quer [isto] dizer, senão esse pleno domínio de si na presença do Pacífico?
Há ainda um outro cântico de Cristo que eu quereria repetir sem cessar: "Para vós guardarei
a minha força"...
A minha Regra diz-me: "No silêncio encontrareis a vossa força". Parece-me, pois, que
guardar a sua força para o Senhor, é realizar a unidade em todo o seu ser, pelo silêncio interior, é
reunir todas as suas potências para as ocupar no exclusivo exercício do amor; é ter aquele olho
simples que permite à luz de Deus iluminar-nos.
Uma alma que discute com o seu eu, que se ocupa com as suas sensibilidades, que persegue
um pensamento inútil, ou um qualquer desejo, esta alma dispersa as suas forças e não está
inteiramente ordenada a Deus: a sua lira não vibra em uníssono e o Mestre, quando a toca, não
pode tirar dela harmonias divinas, pois há demasiado de humano e é uma dissonância. A alma que
ainda se reserve algo no seu reino interior e em que todas as potências não estejam "encerradas" em
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Deus, não pode ser um perfeito louvor de glória; nem está em condições de cantar, sem cessar, o
"canticum magnum" de que fala São Paulo, porque a unidade não reina nela; e, em lugar de
prosseguir, na simplicidade, o seu louvor em tudo, tem que estar sem parar a reunir as cordas do
seu instrumento, que estão dispersas um pouco por todos os lados». (UR 3)
«Eis a obra de Cristo perante todas as almas de boa vontade, e é o trabalho que o seu
imenso amor, o seu "tão grande amor", o impele a fazer em mim. Quer ser a minha paz para que
nada possa distrair-me ou fazer-me sair da fortaleza inexpugnável do santo recolhimento. É aí que
me dará "acesso junto do Pai" e me guardará imóvel e pacífica na sua presença, como se a minha
alma estivesse já na eternidade. É pelo Sangue da sua Cruz que tudo pacificará no meu pequeno
céu, para que ele seja verdadeiramente o repouso dos Três. Há de encher-me d'Ele, sepultar-me
n'Ele e far-me-á revi ver com Ele a sua vida: "Mihi vivere Christus est". E embora caia a cada
momento, toda confiante na fé, far-me-ei levantar por Ele, sabendo que me perdoará, que tudo há
de apagar com um zeloso cuidado, mais ainda, que me despojará, que me libertará de todas as
minhas misérias, de tudo o que for obstáculo à ação divina, e que arrebatará todas as minhas
potências, tornando-as suas cativas e triunfando delas em si mesmo.
Então, hei de estar totalmente transformada n'Ele, e poderei dizer: "Já não sou eu que vivo.
O Meu Mestre vive em mim!". E serei "santa, pura, irrepreensível" aos olhos do Pai». (UR 31)
«[Maria] está, junto da Cruz, de pé, forte e corajosa e eis o meu Mestre que me diz: "Ecce
Mater tua", Ele dá-ma por Mãe... E, agora, que Ele voltou para o Pai, que me pôs a substituí-lo em
seu lugar na Cruz para que "sofra no meu corpo o que falta à sua paixão, por este seu corpo, que é a
Igreja", a Virgem aí está ainda para me ensinar a sofrer como Ele, para me dizer, para me fazer
ouvir os últimos cânticos de Cristo que, ninguém como ela, sua Mãe, entendeu.
Quando eu tiver dito o meu "consummatum est", é ainda ela, "Janua coeli", que me há de
introduzir nos átrios divinos, segredando-me a misteriosa palavra: "Laetatus sum in his quae dieta
sunt mihi, in domum Domini ibimus!... "». (UR 41)
Setembro. O seu sofrimento físico aumentou muito. Elisabete deixa escapar às vezes uma
confissão: sente como uma espécie de animais que a devoram por dentro; como se se lhe
arrancassem as entranhas. Tudo sem morfina nem calmantes. Sabe muito bem que só Deus e a fé a
preservam do suicídio. Freqüentemente está a abrasar por dentro, e no entanto diz; "Deus é fogo
abrasador, é a sua ação que padeço".
«É Deus que se compraz em imolar a sua pequena hóstia, mas esta missa que Ele celebra
comigo, e cujo sacerdote é o seu amor, pode durar ainda muito tempo. A pequena vítima não acha o
tempo longo na Mão d'Aquele que a sacrifica e pode dizer que, se passa pela senda do sofrimento,
permanece ainda mais no caminho da felicidade, da verdadeira, querida mamãe, daquela que
ninguém pode arrebatar...
A esposa pertence ao Esposo. O meu tomou-me, quer que eu Lhe seja uma humanidade de
acréscimo na qual possa ainda sofrer pela glória do seu Pai, para ajudar às necessidades da sua
Igreja; este pensamento faz-me tanto bem...
Obrigada à Guida pelo seu chocolate. A nossa Madre comprou-me chocolate Suchard, mas
acho-o mais açucarado e mais empastado; prefiro Klauss, faz menos mal ao coração; diz à Guida
que aquele, que ela fez o favor de trocar, é também muito bom; provoca-me mais ardor por ser
mais forte, mas vou alternando. Sabes que estudo o meu estômago e que faço o que posso para o
não deixar morrer de fome, e isto, por amor do Santo Deus. Mãezinha querida, tudo vai da
intenção: como podemos santificar as menores coisas, transformar os atos mais vulgares da vida
em atos divinos». (Ct 309)
“Completo na minha carne o que falta à paixão de Jesus Cristo pelo seu corpo, que é a
Igreja": eis o que fazia a felicidade do Apóstolo! Este pensamento persegue-me e confesso-te que
sinto uma íntima e profunda alegria, em pensar que Deus me escolheu para me associar à paixão do
seu Cristo, e este caminho do Calvário, que subo a cada dia, antes me parece mais a via da
beatitude! Nunca viste essas imagens que representam a morte a ceifar com uma foice? Pois bem, é
o meu estado, parece-me que é assim mesmo que a sinto destruir-me... Por vezes é custoso para a
natureza, mas garanto-te que se não passasse disso, apenas poderia sentir a minha cobardia no
sofrimento... Mas isto ainda é uma visão humana! E bem depressa abro o olhar da minha alma à luz
da fé, fé esta que me diz que é o Amor que me destrói, que me consome lentamente, e então na
minha imensa alegria entrego-me a Ele como uma presa...
Estou numa fraqueza extrema, e sinto-me a todo o momento desfalecer. Esta carta será,
talvez, a derradeira da tua Elisabetinha, que levou vários dias para ta escrever, o que te poderá

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explicar uma certa incoerência. E, esta tarde, não consigo decidir-me a deixar-te. Estou sozinha, são
7 e meia da tarde, a comunidade está em recreio... e eu, sinto-me um pouco no Céu, a sós com Ele
na minha pequena cela, carregando a minha cruz com o meu Mestre. Framboesa, a minha
felicidade cresce à medida do meu sofrimento! Se soubesses que sabor se encontra no fundo do
cálice preparado pelo Pai do Céu!
Adeus, querida Framboesa, já não posso continuar mais. E no silêncio dos nossos
encontros, poderás adivinhar e compreender o que eu te não digo. Beijo-te. Amo-te como uma mãe
à sua querida filhinha.
Adeus, minha pequenina... "Que à sombra das suas asas Ele te proteja de todo o mal" (Ct
310)
«O sofrimento atrai-me cada vez mais; este desejo domina quase aquele do Céu que era no
entanto muito forte... É preciso contemplar o Deus crucificado por amor, e esta contemplação, se é
verdadeira, leva infalivelmente ao amor do sofrimento. Querida mamãe, recebe na luz que brota da
Cruz toda a provação, toda a contrariedade, todo o procedimento pouco gracioso; é assim que
agradamos a Deus, e avançamos nos caminhos do amor. Oh, diz-lhe obrigado por mim: sou tão
feliz...». (Ct 314)
«Querida mamãe, tomo gosto ao meu Calvário e peço ao Mestre que aí construa a minha
tenda ao lado da sua; estou ocupada pela Paixão, e quando vemos tudo o que Ele sofreu por nós no
seu coração, na sua alma e no seu corpo, temos como que uma necessidade de pagar-Lhe tudo isso;
parece que queríamos sofrer tudo o que Ele sofreu. Não posso dizer que amo o sofrimento nele
mesmo, mas amo-o porque me torna conforme Àquele que é o meu Esposo e o meu Amor. Oh,
repara, isto põe na alma uma paz tão doce, uma alegria tão profunda, e acabamos por pôr a nossa
felicidade em tudo o que nos é contrário.
Mãezinha, tenta pôr a tua alegria, não sensível, mas a alegria da vontade, em toda a
contrariedade, todo o sacrifício, e diz ao Mestre: «Não sou digna de sofrer isto por Vós, não mereço
esta conformidade convosco».
Verás como a minha receita é excelente, produz uma paz deliciosa no fundo do coração,
aproxima do bom Deus». (Ct 317)
Esconde os pormenores do seu sofrimento à sua família, no entanto não oculta nada à sua
Priora: «o vosso pequeno louvor de glória não pode dormir, sofre; mas na sua alma, ainda que
habitada pela angústia, faz-se tanta calma, e foi a vossa visita que veio trazer esta paz do Céu. O
seu coraçãozinho tem necessidade de vo-lo dizer, e na sua terna gratidão reza e sofre
incessantemente por vós! Oh, ajude-me a subir o meu Calvário; sinto tão forte o poder do vosso
sacerdócio sobre a minha alma, e tenho tanta necessidade de vós. Minha Madre, sinto os meus Três
tão perto de mim; sou mais cumulada pela felicidade do que pela dor: o meu Mestre lembrou-me
que era a minha residência e que eu não devia escolher os meus sofrimentos; mergulho pois com
Ele na dor imensa, com todo o temor e angústia». (Ct 320)
As cartas de Outubro põem o seu ideal de transformação, o seu sofrimento e a sua
felicidade em Jesus Crucificado. Escreve também uma série de cartas-testamento nas quais fala da
sua missão póstuma.
«Oh! se soubésseis os dias divinos que passam pela vossa amiga do Carmelo! Enfraqueço
de dia para dia e sinto que o Mestre não tardará muito mais em vir buscar-me. Gozo, experimento
alegrias desconhecidas. A alegria da dor, oh! Germaninha, como é suave e doce!... Antes de morrer,
sonho com ser transformada em Jesus Cristo crucificado e isto dá-me tanta força no sofrimento...
Irmãzinha, não deveríamos ter outro ideal senão o de nos conformar com o Modelo divino: então,
que ardor nos levaria ao sacrifício, ao desprezo de nós mesmos, se tivéssemos sempre os olhos do
coração orientados para Ele. (...) Se soubesses que alegria tão inefável goza a minha alma ao pensar
que o Pai me predestinou para ser conforme ao seu Filho crucificado... É São Paulo que nos conta
esta eleição divina que parece ser a minha herança!...
Irmãzinha da minha alma, à luz da eternidade o bom Deus faz-me compreender muitas
coisas, e venho dizer-te como vindo da sua parte para não teres medo do sacrifício, da luta, mas
antes te alegrares com eles. Se a tua natureza é um objeto de combate, um campo de batalha, oh,
não te desencorajes, não te entristeças. Direi de boa vontade: ama a tua miséria, porque é sobre ela
que Deus exerce a sua misericórdia». (Ct 324)
«Minha querida mamã a quem amo cada vez mais. Ontem passei a tarde na pequena tribuna
e assisti ao concerto. A Nossa Madre mimou-me, abriu-me a grade e tive a alegria de te ver; estava
muito unida a ti. Oh, se soubesses, ao comparar-me com a Guida senti mais do que nunca a minha

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felicidade: sofria muito, pensava que em breve a terra já não seria para mim, porque
verdadeiramente o meu pobre corpo está muito doente, e dizia para comigo; "És tu, a feliz". Passei
uma tarde divina, esmagada pela minha felicidade.
Querida mamãe, renova o teu sacrifício, porque isso agrada tanto a Deus, e atrai-me graças
de força para o sofrimento que amo cada vez mais e do qual o meu Mestre não me quer tirar». (Ct
325)
«Há um Ser que é o Amor e que quer que vivamos em comunhão com Ele. Oh mamãe, é
delicioso, é Ele que me faz companhia, me ajuda a sofrer, me faz ultrapassar a minha dor para me
repousar n'Ele; faz como eu, verás como isto transforma tudo». (Ct 327)
«Querida Antonieta, à luz da eternidade é que a alma vê realmente o que são as coisas; oh,
como tudo aquilo que não foi feito para Deus e com Deus é vão! Oh, peço-lhe, marque tudo com o
selo do amor! Só isso permanece. Sim, que a vida é coisa séria: cada minuto é-nos dado para nos
«enraizarmos» mais em Deus, segundo a expressão de São Paulo, para que a semelhança com o
nosso divino Modelo seja mais marcante, a união mais íntima. Mas, para que se realize este plano
que é o do próprio Deus, eis o segredo: esquecer-se, deixar-se, não fazer conta de si, olhar para o
Mestre, nada mais atender do que a Ele, receber de igual modo como provindo diretamente do seu
amor, a alegria ou a dor; isto permite que se estabeleça a alma em tão serenas alturas!...
Minha estimada Antonieta, deixo-lhe a minha fé na presença de Deus, do Deus todo Amor
que habita nas nossas almas. Confio-lhe: é esta intimidade com Ele «no interior» que constitui o
belo Sol que ilumina a minha vida, tornando-a já como um Céu antecipado; é o que hoje me
sustém no sofrimento. Não tenho medo da minha fraqueza, é ela que me dá confiança, porque
Aquele que é o Forte está em mim e a virtude d'Ele é onipotente; ela opera, como diz o Apóstolo,
além do que podemos esperar». (Ct 333)
«Parece-me que, no Céu, a minha missão será de atrair as almas ajudando-as a saírem de si
mesmas para aderirem a Deus por um movimento muito simples e todo feito de amor, e de as
guardar nesse grande silêncio do interior que permite a Deus imprimir-se nelas, transformando-as
em Si-próprio O meu Mestre apressa-me.
Ele já não me fala senão da eternidade de amor. É tão grave, tão sério, que quereria viver
cada minuto em plenitude. Adeus, não tenho força, nem autorização para escrever durante muito
tempo, mas conheceis a palavra de São Paulo: "A nossa conversação está nos Céus" .
Irmãzinha amada, vivamos de amor para de amor morrer e a fim de glorificar a Deus todo
Amor». (Ct 335)
30 de Outubro de 1906. Elisabete coloca sobre o seu coração o Cristo da sua profissão e
diz: "Amamo-nos tanto". O seu corpo, extenuado, não pode mais. Deita-se definitivamente. Ao
entardecer, é sacudida por um grande tremor.
No dia seguinte, recebe pela segunda vez a Santa Unção e o Viático.
No dia de Todos os Santos comunga pela última vez. Pelas dez da manhã parece ter
chegado a hora da sua morte. A comunidade reúne-se à volta dela e reza as orações dos
moribundos. Elisabete sai por um momento do seu abatimento e pede perdão às suas irmãs em
termos comovedores. Convidada a dizer ainda uma palavra, exclama:
«Tudo passa! Na tarde da vida só fica o amor... Há que fazer tudo por amor... Há que
esquecer-se incessantemente de si: Deus ama tanto ao que se esquece de si... Ah, se eu tivesse
praticado sempre isto!»
Nos dias seguintes, conserva a sua lucidez, mas os seus olhos, injetados de sangue, estão
quase sempre fechados... Sofre muito. De vez em quando fala. Alegra as suas irmãs... últimos
testemunhos da sua união com Deus e do seu desejo de Lhe oferecer tudo. Já não pode comungar,
mas diz: "Encontro-O na cruz; é aí onde me comunica a vida".
Depois de uma violenta crise, grita:
«Oh! Amor, Amor! Sabes quanto te amo, quanto desejo contemplar-te; conheces também
quanto sofro. No entanto, estou disposta, se assim o desejas, a continuar trinta ou quarenta anos.
Esgota toda a minha substância para tua glória; que se destile gota a gota para a tua Igreja».
Nos dias 7 e 8 e Novembro, permanece quase em silêncio.
Percebem-se ainda estas palavras:
«Vou para a Luz, o Amor, a Vida!»...
A noite do 8 para 9 de Novembro é terrível. Aos seus sofrimentos junta-se a asfixia. Ao
amanhecer acalmam-se as dores tão fortes. A alteração do seu semblante indica que está prestes a

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morrer. Convoca-se a comunidade. Os olhos de Elisabete estão agora muito abertos e luminosos.
Quase sem se dar conta, deixa de respirar. É por volta das seis e um quarto.
Profeta de Deus, Elisabete da Trindade pertence agora a toda a Igreja.

ORAÇÃO À SANTÍSSIMA TRINDADE


Ó meu Deus, Trindade que eu adoro, ajudai-me a esquecer-me inteiramente, para me
estabelecer em Vós, imóvel e pacífica como se já a minha alma estivesse na eternidade. Que nada
possa perturbar a minha paz, nem fazer-me sair de Vós, ó meu Imutável, mas que cada minuto me
leve mais longe na profundeza do vosso Mistério. Pacificai a minha alma, fazei dela o vosso céu,
vossa morada amada e o lugar do vosso repouso. Que nunca aí eu vos deixe só, mas que esteja lá
inteiramente, toda acordada em minha fé, perfeita adoradora, toda entregue à vossa Ação criadora.
Ó meu Cristo amado, crucificado por amor, quereria ser uma esposa para o vosso Coração,
quereria cobrir-vos de glória, quereria amar-vos... até morrer de amor! Mas sinto a minha
incapacidade e peço-vos para me "revestirdes de Vós mesmo", para identificar a minha alma com
todos os movimentos de vossa alma, me submergir, me invadir, e vos substituir a mim, a fim que a
minha vida não seja senão uma irradiação da vossa Vida. Vinde a mim como Adorador, como
Reparador e como Salvador. Ó Verbo eterno, Palavra do meu Deus, quero passar a minha vida a
escutar-vos, quero tornar-me inteiramente dócil ao vosso ensino, a fim de tudo aprender de Vós.
Depois, por entre todas as noites, todos os vazios, todas as incapacidades, quero fixar-vos sempre e
permanecer sob a vossa grandiosa luz; ó meu Astro amado, fascinai-me para que já não possa sair
da vossa irradiação.
Ó Fogo consumidor, Espírito de amor, "sobrevinde em mim", a fim de que se faça na minha
alma como uma encarnação do Verbo: que eu Lhe seja uma humanidade de acréscimo na qual Ele
renove todo o seu Mistério. E Vós, ó Pai, inclinai-vos sobre esta vossa pobre pequena criatura,
"cobri-a com a vossa sombra",. não vede nela senão "o Bem Amado no qual pusestes todas as
vossas complacências".
Ó meus Três, meu Tudo, minha Beatitude, Solidão infinita, Imensidade em que me perco,
entrego-me a Vós como uma presa. Sepultai-vos em mim para que eu me sepulte em Vós,
esperando ir contemplar na vossa luz o abismo das vossas grandezas.

ÍNDICE
Apresentação
I - Elisabete, Jovem Leiga
II - Carmelita
III - Doença e Ressurreição
ORAÇÃO À SANTÍSSIMA TRINDADE

Fonte: Conrad de Meester. Isabel da Trindade contada por ela mesma. Edições Carmelo. Marco de
Canavese 2006.

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