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Personagens inesquecíveis

O filho da cantadeira
por José Belmiro
O mestre do grupo coral disse: “Sou filho de cantadeira, cantador sou”.
Estava a explicar como funcionava aquele modo de cantar que os alentejanos
chamam “o cante” . Explicava que aquele que inicia o canto é chamado “o
ponto” pois dele depende o tom em que todos vão cantar. Mas que, se o
“ponto” começa muito alto ou demasiado baixo, quem entra a seguir pode
baixar ou subir a melodia. Sim, tudo vai depender de uma boa ligação entre
uns e outros. Também explicava a função daquela voz solitária que aparece
por cima das outras. Chama-se o “alto”, pois canta três notas acima dos outros,
criando aquela harmonia caraterística dos coros alentejanos.
E o “ponto” iniciou então a primeira “moda”, pois assim se chamam as
cantigas preferidas de um coro alentejano. O “ponto” começou assim, como
que em desafio, o primeiro verso: “Se passares à minha aldeia…” E logo o
coro, muito forte, quase atroador, encheu a sala: “Não vás de cabeça ao léu/
Quando o sol mais almareia/ Podes pôr o meu chapéu/ A mais valiosa herança/
Já foi de quem está no céu/ E não me sai da lembrança”.
Eu estava encantado. Mas recebi nesses momentos duas mensagens
vindas de Unhais da Serra, a dizerem-me que um nosso amigo tinha falecido.
As vozes fortes do coro deram apoio à minha dor com aquela inesperada
notícia. Sim, fizeram-me suportar a grande tristeza, pois as fortes vozes
cantavam: ”Quando me faltar a voz/ Há-de haver uma mão cheia/ A cantar por
todos nós”.
Isso mesmo, caro amigo que partiste. Vai faltar a tua voz. Bela voz. Bem
sonora. Bem segura, pois o teu ouvido era dos melhores da povoação. Ouvias
uma melodia e logo conseguias reproduzi-la a contento dos presentes. Podes
dizer como o mestre do coro alentejano que acima descrevi: “Sou filho de
cantadeira, cantador sou”. Mas cantadores e cantadeiras eram todos os filhos e
filhas de uma inesquecível cantadeira que morou na Rua do Castelo.
Anteriormente tinha residido no Bairro de São José Carpinteiro (aqui para nós,
caro leitor, admiro esse Santo José Carpinteiro por ser trabalhador e não se
limitar a passar a vida a rezar…) E o coro alentejano continuava: “Tenho cá na
minha ideia/ Que o cante se ouve no céu/ Se passares à minha aldeia/ Não vás
de cabeça ao léu”.
Cá por mim, ando cheio de dúvidas se existe céu depois de partirmos
deste mundo. Mas, se existe, vão chamar-te, caro amigo que nos deixaste,
para o melhor coro que lá existir. E, daqui por muitos anos, espero estar lá para
te ouvir. Entretanto em Unhais e em Lisboa os teus irmãos e irmãs vão
continuar a encantar quem os ouve cantar. Eras trabalhador e cantador.
Duplamente trabalhador, como alfaiate e barbeiro, duas atividades que
exerceste para mim múltiplas vezes. Alguém me disse que, enquanto
trabalhavas, deitavas um olhar “em forma de coração” para os amigos e
amigas que passavam na rua. Também, enquanto trabalhavas com a tesoura
ou o pente, íamos conversando amigavelmente. Eu perguntava-te por alguns
dos teus irmãos. Tu davas as notícias. E eu contava-te das belas sessões de
fado de uma tua irmã cá pela capital. E de outra que canta fado enquanto
conduz um táxi. E das conversas com outros irmãos teus com quem, por aqui,
me tenho encontrado com prazer.
E além de cantador, eras um filarmónico exemplar e depois maestro.
Eras, assim, duplamente ou triplamente artista. E, como vimos, duplamente
trabalhador. Bom exemplo para os nossos queridos atuais filarmónicos que não
se sustentam profissionalmente da música e têm de ganhar o pão da boca com
o seu trabalho. Também Carlos Paredes, grande guitarrista, convidado a ser
solista na orquestra de Londres, recusava ser profissional da música, grande
amor da sua vida. E Lopes Graça, que vivia com modéstia do que ia auferindo
com diversas atividades musicais, escreveu que a música é uma companheira.
Por isso, tu e todos os filarmónicos de Unhais da Serra, bons
companheiros da população unhaense, continuarão vivos eternamente nos
nossos corações.

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