Você está na página 1de 210

MULHERES,

POLÍTICA E
MOVIMENTOS SOCIAIS

www.editoraexpressaofeminista.com.br
LAURINDA FERNANDA SALDANHA SIQUEIRA
MAYNARA COSTA DE OLIVEIRA SILVA

MULHERES, POLÍTICA E MOVIMENTOS SOCIAIS

1.ª edição

SÃO LUÍS/MA
EDITORA EXPRESSÃO FEMINISTA
JUNHO - 2021
Os conteúdo dos capítulos são de responsabilidades das autoras.
Edição, projeto gráfico e capa: Maynara Costa de Oliveira Silva.
Revisão: Laurinda Fernanda Saldanha Siqueira.
Diagramação: Maria de Fátima Conceição Bastos.
Conselho Editorial da Editora Expressão Feminista:
Profa. Ma. Ademilde Alencar Dantas de Medeiros Neta (UFRN); Profa. Dra.Elaine Ferreira do
Nascimento (FIOCRUZ-PI); Profa. Ma. Emilly Mel Fernandes de Souza (UFRN); Profa Ma.Joely
Coelho Santiago (UFR); Prafa. Dra. Laurinda Fernanda Saldanha Siqueira (IFMA); Profa. Ma. Maynara
Costa de Oliveira Silva (UFMA); Profa. Ma. Muranna Silva Lopes (UFMA); Profa. Ma. Regina Alice
Rodrigues Araujo Costa (UFPE); Profa. Ma.Renata Caroline Pereira Reis (UNESA); Profa.
Dra.Thayane Cazallas do Nascimento (MMM).

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara


Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Mulheres, política e movimentos [livro eletrônico] / organização Maynara Costa de Oliveira
Silva, Laurinda Fernanda Saldanha Siqueira. -- 1. ed. -- São Luís, MA : Editora Expressão
Feminista, 2021. PDF

ISBN 978-65-994945-4-3

1. Ciências sociais 2. Movimentos sociais 3. Mulheres - Aspectos sociais 4. Política e governo I.


Silva, Maynara Costa de Oliveira. II. Siqueira, Laurinda Fernanda Saldanha.

21-67810 CDD-305.42

Índices para catálogo sistemático:


1. Mulheres: Aspectos sociais : Sociologia 305.42 Aline Graziele Benitez - Bibliotecária - CRB-
1/3129
SUMÁRIO
CAPÍTULO 1 ......................................................................................................................................... 8
TRÁFICO DE MULHERES: .................................................................................................................. 8
uma modalidade invisibilidade de violência contra a mulher nos registros epidemiológicos do estado do
Ceará ..................................................................................................................................................... 8
Samily Gomes Filgueira .......................................................................................................................... 8
Priscila Nottingham de Lima................................................................................................................... 8
CAPÍTULO 2 ....................................................................................................................................... 21
PROCURANDO MÃES EM TERRITÓRIOS DE VULNERABILIDADES: ........................................... 21
os órfãos da covid-19............................................................................................................................. 21
Jaiany Rodrigues Libório...................................................................................................................... 21
Giovana Macêdo Egídio Cavalcante ...................................................................................................... 21
Taysa Leite de Aquino .......................................................................................................................... 21
Ana Luiza Menezes Santana Bezerra..................................................................................................... 21
Dara Fernanda Brito Duarte ................................................................................................................. 21
Laryza Souza Soares............................................................................................................................. 21
Ana Luíza de Aguiar Rocha Martin ...................................................................................................... 21
Juliane dos Anjos de Paula.................................................................................................................... 21
Modesto Leite Rolim Netto.................................................................................................................... 21
capítulo 3 ............................................................................................................................................. 32
ESTADO, FAMÍLIA, IGREJA E O “TRABALHO DAS MULHERES”:................................................ 32
reflexões da quarentena ........................................................................................................................ 32
Maria Adriana Alves Dantas* ............................................................................................................... 32
CAPÍTULO 4 ....................................................................................................................................... 39
ENTRE NOTAS E MELODIAS:........................................................................................................... 39
O FEMINISMO E AS FASES DE AMÉLIA .......................................................................................... 39
Emanuelly Wouters Silva ...................................................................................................................... 39
CAPÍTULO 5 ....................................................................................................................................... 48
SISTEMA ELEITORAL NO BRASIL: ................................................................................................. 48
poder político e a influência das fakes news no processo de construção ideológica .................................... 48
Yarley Emanuel da Silva ....................................................................................................................... 48
Larissa Wendy Santana Santos ............................................................................................................. 48
Isabella Oliveira da Silva Cangussu ....................................................................................................... 48
CAPÍTULO 6 ....................................................................................................................................... 54
A ESCOLA PÚBLICA E OS ATAQUES DA MÍDIA ESCRITA: ........................................................... 54
AS LUTAS ESTUDANTIS EM DEBATE .............................................................................................. 54
VERALÚCIA PINHEIRO .................................................................................................................... 54
LARISSA LANDIM DE CARVALHO .................................................................................................. 54
CAPÍTULO 7 ....................................................................................................................................... 63
MALUCOS DE ESTRADA: ................................................................................................................. 63
processos indenitários de um movimento contracultural ........................................................................ 63
Virna lima ............................................................................................................................................ 63
KAIANE LUZ ......................................................................................................................................... 63
CAPÍTULO 8 ....................................................................................................................................... 73
A FACE FEMININA DO ATIVISMO ANIMAL SOCORRISTA NO RIO GRANDE DO NORTE.......... 73
Fátima Christiane Gomes de Oliveira .................................................................................................... 73
CAPÍTULO 9 ....................................................................................................................................... 87
A EXCLUSÃO DO SER MULHER NA SOCIEDADE DO PATRIARCADO-CAPITALISMO-RACISMO
............................................................................................................................................................ 87
Marcela da Silva Melo .......................................................................................................................... 87
CAPÍTULO 10 ..................................................................................................................................... 99
A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DAS MULHERES NAS ESTRUTURAS DE DECISÃO DOS
SINDICATOS: a voz de dirigentes do sindicato dos enfermeiros de portugal (sep) .................................. 99
Lucinéia Scremin Martins..................................................................................................................... 99
CAPÍTULO 11 ................................................................................................................................... 113
DA NECESSIDADE SOCIAL À CORRIDA VIRTUAL: ..................................................................... 113
o trabalho policial bpfron ................................................................................................................... 113
Márcia de Souza Damasceno ............................................................................................................... 113
CAPÍTULO 12 ................................................................................................................................... 122
FEMINISMO E EXTREMA- DIREITA: COMO O BOLSONARISMO REFORÇA A LÓGICA
PATRIARCAL NO BRASIL .............................................................................................................. 122
Lívia R. Fernandes ............................................................................................................................. 122
João Luís Almeida Weber ................................................................................................................... 122
CAPÍTULO 13 ................................................................................................................................... 131
ECOFEMINISMO COMO PARTE DOS MOVIMENTOS SOCIAIS FEMINISTAS ............................ 131
Camila Magri Bertolin ........................................................................................................................ 131
CAPÍTULO 14 ................................................................................................................................... 141
MULHERES NA VIVÊNCIA DO CANGAÇO BRASILEIRO: ............................................................ 141
marcas, lutas e resistências da figura feminina ..................................................................................... 141
Manoela Bezerra da Silva ................................................................................................................... 141
CAPÍTULO 15 ................................................................................................................................... 151
IDENTIDADE E política FEMINISTA EM BEAUVOIR E BUTLER .................................................. 151
Bethânia Alves Pereira de Souza ......................................................................................................... 151
Karla Cristhina Soares Sousa .............................................................................................................. 151
CAPÍTULO 16 ................................................................................................................................... 161
A IMPORTÂNCIA DA OCUPAÇÃO DE MULHERES NEGRAS NOS ESPAÇOS DE PODER ........... 161
Eliane Pinto Teixeira .......................................................................................................................... 161
Marquilia Resplandes ......................................................................................................................... 161
CAPÍTULO 17 ................................................................................................................................... 171
PARTIDOS POLÍTICOS GÊNERO E RAÇA: .................................................................................... 171
A INSERÇÃO DA MULHER NA POLÍTICA NACIONAL E A IMPORTÂNCIA DA
REPRESENTATIVIDADE NEGRA NESSES ESPAÇOS .................................................................... 171
Ivalda Kimberlly Santos Portela ......................................................................................................... 171
CAPÍTULO 18 ................................................................................................................................... 182
LUTA FEMININA PELO DIREITO À PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NO BRASIL ............................ 182
Jesuslene Pereira da Silva ................................................................................................................... 182
Lêinad Dallyne de Oliveira Alves ........................................................................................................ 182
Maria Ionete Pereira da Silva.............................................................................................................. 182
Micaelle Chaves Moreno ..................................................................................................................... 182
Alice Juliana de Sousa ........................................................................................................................ 182
CAPÍTULO 19 ................................................................................................................................... 193
A violência obstétrica no Brasil contemporâneo como a ausência de proteção jurídica .......................... 193
CALÍOPE BANDEIRA DA SILVA ..................................................................................................... 193
CAPÍTULO 20 ................................................................................................................................... 200
MULHER NA POLÍTICA E DIREITOS HUMANOS ......................................................................... 200
Michel Canuto De Sena....................................................................................................................... 200
Graciele Silva ..................................................................................................................................... 200
Paulo Roberto Haidamus De Oliveira Bastos ....................................................................................... 200
Ricardo Dutra Aydos .......................................................................................................................... 200
Ady Faria Da Silva ............................................................................................................................. 200
SOBRE AS ORGANIZADORAS ....................................................................................................... 209
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 8

CAPÍTULO 1
TRÁFICO DE MULHERES:
UMA MODALIDADE INVISIBILIDADE DE VIOLÊNCIA CONTRA A
MULHER NOS REGISTROS EPIDEMIOLÓGICOS DO ESTADO DO CEARÁ

SAMILY GOMES FILGUEIRA 1


PRISCILA NOTTINGHAM DE LIMA 2

INTRODUÇÃO – Tráfico de Pessoas: um breve histórico


O Tráfico de Pessoas é uma modalidade complexa e multifacetada de crime, facilmente confundida com
processos migratórios, de refugiados e/ou prostituição. Sabemos que a exploração e negociação de pessoas como
mercadorias remonta aos primórdios de nossa sociedade. No Brasil, temos que tais práticas são intrínsecas ao
processo de colonização e escravidão. Tal como a mulher enquanto objeto de dominação masculina nos remete a
origem do patriarcado.
O uso do termo patriarcado está diretamente ligado ao poder masculino, como nos reporta Delphy (2009,
p.171) “A palavra “patriarcado” comporta, portanto, triplamente a noção de autoridade “Patriarcado” vem da
combinação das palavras gregas pater (pai) e arkhe[1] (origem e comando)”, assim como viriarcado 3 ,
androcentrismo e falocracia, todos trazem o homem no topo da dominação. Não caberá, neste breve artigo, um
resgate histórico minucioso, mas o que devemos considerar aqui é que ambas as situações (escravidão/servidão
e patriarcalismo), ainda persistem atualmente, sob outras refrações. Uma das modalidades que se apresenta na
contemporaneidade é o Tráfico de Mulheres.
Ressaltamos que o interesse pelo tema vem desde a graduação em Serviço Social, já motivadas pela inquietação
de perceber tal problemática invisibilizada na nossa sociedade, especialmente enquanto uma violência contra a
mulher e um problema de saúde pública. Em geral, podemos dizer que a problemática do Tráfico de Pessoas
entrou para a agenda política brasileira de modo tardio, apenas a partir da publicação da Pesquisa sobre Tráfico
de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil (PESTRAF,2002), e
da ratificação do Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional

1 Especialista em Psicopedagogia Clínica, Institucional e Hospitalar pela Faculdade Vale do Jaguaribe – FVJ (2012). Pós-graduanda do
Curso de Especialização em Estratégias de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher pela Escola de Saúde Pública do Ceará.
Bacharel em Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará – UECE (2010).
2 Doutoranda em Políticas Públicas pela Universidade Estadual do Ceará (UECE); Mestre em Políticas Públicas pela UECE (2013);
Bacharel em Serviço Social pela Universidade Estadual do Ceará – UECE (2009).
3 Viriarcado trata-se de um termo utilizado como mais apropriado que “patriarcado” para designar o(s) sistema(s) que oprime(m) as
mulheres, pois o “patriarcado”, na etimologia da palavra se refere ao poder do pai e quem defende o termo “viriarcado” compreende
que há uma dominação masculina que transcende o parentesco com uma mulher. Esta discussão é também trazida por Delphy (2009,
pág 172) na obra: Dicionário Crítico do Feminismo.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 9

relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças (Protocolo de
Palermo, 2004).
Para definir o fenômeno, adotaremos aqui o conceito de Tráfico de Pessoas, ratificado em vários
países, posto pelo referido Protocolo (vírgula) em seu artigo 3º, a saber:

O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de


pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto,
à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à
entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de
uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração
incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de
exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares
à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos.4

Considerando o exposto, a pergunta norteadora desta pesquisa é: os registros epidemiológicos de Tráfico


de Mulheres no Ceará condizem com a realidade desta problemática no Estado? O objetivo central é analisar os
dados epidemiológicos presentes no Sistema de Informação de Agravos e Notificação - SINAN5, sobre o Tráfico
de Mulheres no Ceará, e compará-los aos dados expostos na Dissertação de mestrado de Lima (2013), intitulada
de “Tráfico de mulheres para fins de exploração sexual: um estudo no Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de
Pessoas do Estado do Ceará”.
O SINAN apresenta dados sobre Tráfico de Pessoas a partir de 2009 e seu último ano de publicização de
informações, até a data de finalização desta pesquisa, é 2018. Já a dissertação com a qual será feita a comparação
de dados, apresenta tabulação dos atendimentos realizados no Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas
do Ceará – NETP/CE 6de 2003 a 2012. Após 2012 não houve mais publicização dos dados do NETP/CE. Assim,
o nosso foco de comparação serão os anos que fazem intersecção entre os dois registros de dados, de 2009 a 2012.
A percepção da subnotificação epidemiológica é o pressuposto deste estudo e a partir do método de pesquisa
documental e análise de dados, debatemos a (in)visibilidade do problema.
Como objetivos específicos destacamos: estimular uma reflexão sobre a prática do Tráfico de Pessoas no
Estado do Ceará, com foco no Tráfico de Mulheres; indicar a prevalência de marcadores sociais no perfil das

4 Importante destacar que esta mesma conceituação está presente nos descritores de saúde, disponível em:
https://decs.bvsalud.org/ths/resource, acesso dia 26 de Julho de 2020 as 18h50min, bem como na Política de Enfrentamento a Violência
Contra a Mulher (2011)
5 O SINAN é a materialização da Lei Federal nº 10.778/2003, atualizada pela Lei nº 13.931/2019, que estabelece a notificação compulsória
no território nacional de casos de violência interpessoal e autoprovocada, constando dentre as situações, a violência contra mulher e o
tráfico de pessoas. É, portanto, dever dos profissionais de saúde preencher a ficha do SINAN e da Vigilância em Saúde, registrar a
notificação epidemiológica.
6 O NETP surgiu inicialmente como Escritório de Combate e Prevenção ao Tráfico de Seres Humanos e
Assistência a Vítima, no Estado do Ceará foi implantado em 2003, funcionou na sede do Ministério Público Estadual, depois foi vinculado
à Secretaria da Justiça e Cidadania do estado do Ceará (SEJUS) e atualmente faz parte da Secretaria de Proteção Social, Justiça, Cidadania,
Mulheres e Direitos humanos (SPS).
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 10

pessoas traficadas, através da tabulação de quesitos como: sexo, raça, faixa etária, escolaridade, renda, identidade
de gênero e orientação sexual; discutir os resultados a luz do Feminismo Interseccional, uma vez que
consideramos que o tráfico de mulheres se beneficia da confluência de vulnerabilidades.
Mesmo sendo uma prática bastante antiga, ainda se percebe poucos estudos existentes sobre a temática,
especialmente com interlocução com o feminismo e/ou a violência contra mulher, bem como com a política
pública de saúde, o que imprime relevância a esta pesquisa, uma vez que a maioria dos estudos existentes são
com um viés demasiadamente jurisdicional. A escassez de material acadêmico e da publicização de dados mais
recentes revela, sem dúvida, a necessidade de maior visibilidade que precisa ser dada a essa problemática.

MEDOLOGIA - TRAJETÓRIA DA PESQUISA


Considerando MINAYO (1994, p. 21-22) “A pesquisa qualitativa trabalha com o universo de
significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das
relações, dos processos e dos fenômenos” temos que esta pesquisa é qualitativa.
Realizamos pesquisa documental e bibliográfica, indispensável na construção de qualquer
investigação. Apresentamos análise de dados, compilando informações epidemiológicas extraídas do SINAN, de
2009 a 2018 e em seguida comparamos os resultados aos dados apresentados na dissertação de mestrado de Lima
(2013), que traz a tabulação dos atendimentos no NETP/CE, de 2003 a 2012. Focamos, especialmente, nos anos
que fazem intersecção entre as duas fontes de dados, ou seja, de 2009 a 2012.
Destacamos que o público pesquisado se trata de pessoas traficadas no Estado de Ceará.
Apresentamos dados relevantes que permitem traçar um perfil de prevalência entre as vítimas do TSH, tais como
sexo, raça, faixa etária, escolaridade, renda, identidade de gênero e orientação sexual, a fim de apresentar uma
discussão a luz do Feminismo Interseccional.
A partir da análise de dados, discutimos a (in)visibilidade do problema enquanto uma modalidade de
violência contra a mulher e, portanto, uma questão de saúde pública. Para enriquecer a pesquisa, apresentamos
outras estatísticas relacionados ao TSH, presentes em outras fontes de dados, descritos nos resultados desta
pesquisa.
RESULTADOS e DISCUSSÃO
– Subnotificação Epidemiológica do Tráfico de Mulheres no Ceará.
Analisamos, incialmente, as informações sobre Tráfico de Pessoas no Ceará - com olhar especial para
o Tráfico de Mulheres - contidas no SINAN. Vale ressaltar que a ficha7 de notificação do SINAN é designada a
casos suspeitos ou confirmados de violência interpessoal ou autoprovocada contra mulheres e homens em todas
as idades. Dentre as violências disponíveis para preenchimento, está contido o Tráfico de Pessoas. A referida

7 Disponível em: http://portalsinan.saude.gov.br/violencia-interpessoal-autoprovocada


Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 11

ficha contém diversas informações das vítimas, tais como: sexo, raça/cor, idade, escolaridade, estado civil,
identidade de gênero, orientação sexual dentre outras. Entendendo que tais variáveis são relevantes para
identificar prevalência no perfil das vítimas, segue a tabulação em dados brutos8:
TABELA 01 – DADOS DO SINAN
Ano Quantidade Quantidade Por Sexo
Quantidade Por Quantidade Quantidade
De casos Raça Por Faixa etária Por escolaridade
2009 01 01 – masc 01 Branco 01 - 5 a 9 anos 01 - 4 serie
2010 Zero Zero Zero Zero Zero
2011 01 01 – fem 01 Pardo 01 - 10 a 14 anos 01 – Ignorado
2012 Zero Zero Zero Zero Zero
2013 Zero Zero Zero Zero Zero
2014 03 03 – fem 01 branca 02 - 20 a 29 anos 03 – Ignorados
02 pardas 01 - acima 60 anos
2015 05 02 – masc Masc Masc 05 – Ignorados
03 – fem 02 pardos 01 - < de 1 ano
01 - 30 a 39 anos
Fem Fem
01 ignorado 01 - 10 a 14 anos
02 pardas 01 - 20 a 29 anos
01 - 30 a 39 anos
2016 07 03 – masc Masc Masc Masc
04 – fem 01 branco 01 - 5 a 9 anos 01- 5 e 9 ano
02 pardos 01 - 10 a 14 anos 02 - Ignorados
01 - 15 a 19 anos
Fem Fem Fem
04 pardas 01 - 1 a 4 anos 04 – Ignoradas
01 - 10 a 14 anos
01 - 15 a 19 anos
01 - 30 a 39 anos
2017 09 03 - masc Masc Masc Masc
06 - fem 01 preto 01 - 5 a 9 anos 01- ignorado
02 pardos 01 - 10 a 14 anos 01 -5 a 8
01 - 15 a 19 anos 01 -fund comp
Fem Fem
06 pardas 02 - 10 a 14 anos Fem
02 - ignorados 01 - 5 a 8 ano 01 - fund
01 - 15 a 19 anos
comp.
01 - 20 a 29 anos 01 - médio comp.
02 - 30 a 39 anos 01 - superior comp.
2018 03 03 fem 03 pretas 01 - 1 a 4 anos 01 – ignorado
01 - 10 a 14 anos 01 - 1 a 4 ano
01 - 30 a 39 anos 01 - 5 a 8 ano
Fonte: DataSUS, 2021.

8 Tabela construída com base na coleta de dados, através de cruzamentos de informações disponíveis em:
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sinannet/cnv/violeCE.def, último acesso: 14. 02. 2021.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 12

É importante destacar que a maioria dos itens da ficha física do SINAN não está disponível para tabulação
no DataSUS9. Desta forma, dentre os marcadores publicizados, escolhemos os que compõem a tabela acima
entendendo que são os mais relevantes para trabalhar a interseccionalidade de vulnerabilidades que podem tornar
uma mulher mais suscetível a ser traficada.
Analisando os dados isolados, sem compará-los a nenhum outro, já podemos inferir várias observações, a
primeira delas é que temos como público principal de pessoas traficadas, as mulheres e meninas. Embora na ficha
contenha os campos de Orientação Sexual e Identidade de Gênero, não constam no sistema, o que pode ser um
indicativo de que estejam computando mulheres trans e travestis, como sexo masculino.
Não será possível aqui um aprofundamento sobre tal questão, mas nos valemos da perspectiva abordada
por Lima (2013) embasada em Butler (1999) para apontar um agravo de vulnerabilidade que pode deixar esse
público ainda mais suscetível ao Tráfico de Mulheres; Butler (1999) se contrapõe à interpretações binárias entre
masculino e feminino e dispõe sobre as múltiplas formas pelas quais essas condições podem se manifestar,
incluindo as transgêneros e transexuais, admitindo que a discriminação de gênero também é direcionada à elas
pela identidade de gênero que assumem.
Devemos ainda considerar que os números são muito baixos para um Estado como o Ceará, que tem alta
procura turística (inclusive, turismo sexual), com fácil acesso para outros países/continentes, por rotas marítimas
e aéreas (aeroporto internacional), especialmente pela localização no mapa. Piscitelli (2002) traz que:

As análises sobre a dinâmica do turismo sexual internacional apontam para o fato de


os bolsos dos turistas sexuais Ocidentais conterem suficiente poder para converter
os outros em Outros, meros atores num palco pornográfico, como uma expressão do
enorme desequilíbrio econômico, social e político entre nações. (PISCITELLI, 2002,
p. 222).

Desta forma, temos que o turismo sexual, em geral, ocorre com a movimentação de aliciadores
advindos de países ricos buscando nativas nos países pobres. Todavia, é importante ressaltar, o turismo sexual
não é um sinônimo de tráfico de pessoas, mas pode ser um indicativo de porta de entrada de aliciadores. O Ceará
possui algumas rotas do Tráfico de Pessoas, se configurando Estado de origem e de trânsito de vítimas, como
inclusive revela a PESTRAF (2002). No entanto, devido ao Tráfico de Pessoas ser multifacetado, bastante
confundido com processos migratórios, de refugiados e/ou prostituição, inferimos que há subnotificações dos
casos, visto que em alguns dos anos pesquisados o dado chega a ser zerado10.
Ainda sobre a análise de dados somente do SINAN, temos que não consta a finalidade do Tráfico,
isto é, se trabalho escravo, se fins de exploração sexual, se remoção de órgãos, se casamento servil ou outros. O

9 Portal do Ministério da Saúde que reúne os registros epidemiológicos e permite cruzamento e tabulação de diversos dados, inclusive
por Estado e por município. disponíveis em:
http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sinannet/cnv/violeCE.def, último acesso: 14. 02. 2021
10 Também podemos perceber que em praticamente todos os anos os dados de escolaridade são ignorados, sendo que é um dado
relevante para caracterizar, ou não, agravo de vulnerabilidades.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 13

projeto que precedeu a escrita deste artigo tinha uma expectativa de apresentar um recorte nos casos de exploração
sexual, visto que de acordo com os dados fornecidos pela UNODC 11, no total dos casos globais relatados em
2016, 72% das mulheres eram vítimas de tráfico para fim de exploração sexual, 21% para trabalho forçado e
7% para outros fins. Quanto as meninas, 83% eram vítimas de tráfico para fim de exploração sexual, 13% para
trabalho forçado e 4% para outros propósitos. No entanto, não foi possível delimitar, tabular e comparar
informações acerca desse quesito, por não estarem disponíveis no SINAN.
Feitas as devidas considerações dos dados isolados, iremos compará-los aos revelados na dissertação
de mestrado de Lima (2013), com foco na tabulação de dados das pessoas atendidas no Núcleo de 2003 a 2012.
A saber:

Quantidade total de 249 (duzentos e quarenta e nove) processos, distribuídos da


seguinte forma: 01 (um) processo para cada um dos anos de 2003 e 2004; 10 (dez)
processos no ano de 2005; 52 (cinquenta e dois) processos no ano de 2006; 11 (onze)
processos no ano de 2007; 29 (vinte e nove) processos no ano de 2008; 65 (sessenta
e cinco) processos no ano de 2009; 48 (quarenta e oito) processos no ano de 2010;
14 (quatorze) processos no ano de 2011 e 18 (dezoito) processos no ano de 2012 (p.
116)

Contudo, a autora informa que das 249 denúncias, apenas 134 foram considerados como casos ou
possíveis casos de tráfico de pessoas e chama atenção para os “possíveis casos de tráfico” pois alguns tinham
indícios, mas não tinham elementos suficientes que comprovassem de fato. Acerca dos 134 Lima (2013) elenca:

zero entre os anos de 2003 e 2004; em 2005, contabilizamos 03 (três) processos; 40


(quarenta) processos em 2006; 09 (nove) processos em 2007; 15 (quinze) processos
em 2008; 41 (quarenta e um) processos em 2009; 11 (onze) processos em 2010; 6
(seis) processos em 2011 e 9 (nove) em 2012, totalizando 134 (cento e trinta e quatro)
processos referentes à casos ou possíveis casos de TSH (p. 118)

A desproporção existente entre a totalidade dos casos denunciados em relação àqueles que realmente
foram considerados como casos ou possíveis casos de tráfico de pessoas, pode ter ocorrido em função da confusão
conceitual que ainda existe na sociedade acerca da definição do que seria considerado como tráfico de pessoas.
Ainda sobre a quantidade de processos, a autora acrescenta que é diferente da quantidade de vítimas, isto ocorre
em virtude de por vezes um processo ser referente a várias vítimas.
Com base nas informações acima, construímos a tabela 02 – Dados do NETP:
Ano Quantidade por ano
2003 00 (zero)
2004 00 (zero)
2005 03 (três)
2006 40 (quarenta)
2007 09 (nove)
2008 15 (quinze)

11 Disponível em https://eva.igarape.org.br/womenTraffic, acesso dia 25 de janeiro de 2021 as 19h35min.


Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 14

2009 41 (quarenta e um)


2010 11 (onze)
2011 06 (seis)
2012 09 (nove)
Fonte: Elaboração da Pesquisadora, 2021

Diante dos dados apresentados sobre os atendimentos no NETP/CE, temos que os anos possíveis de
cruzamento de informações são os anos de 2009, 2010, 2011 e 2012. Desta forma, considerando a quantidade de
vítimas do Tráfico de Seres Humanos por ano, criamos a Tabela 03 – Comparação SINAN/CE x NETP/CE:

Ano Quantidade SINAN Quantidade NETP/CE


2009 01 41
2010 Zero 11
2011 01 06
2012 Zero 09
Fonte: Elaboração da Pesquisadora, 2021

Constata-se que os dados destoam bastante, o que pode apontar que as vítimas não estão sendo atendidas
pelas equipes de saúde ou que os (as) profissionais de saúde não estão notificando devidamente tais violências,
algo compulsório nos termos da lei. Quaisquer das situações denota a invisibilidade da problemática nos registros
epidemiológicos do Estado do Ceará. A negligência de tais registros obviamente tem impacto na construção e
implementação de políticas públicas voltadas para a questão, bem como na produção acadêmica e científica sobre
o tema. Santos (2009) traz que:

Se por um lado consideram-se milhões de casos, pode-se acarretar na perseguição de


imigrantes e prostitutas em nome do tráfico de pessoas, por outro lado consideram-se
casos escassos, pode-se acarretar na negligência ao atendimento, suporte e assistência
necessária às vítimas. (2009, p. 70).

Ao compararmos os marcadores escolhidos na ficha do SINAN para analisar o perfil das vítimas, isto
é: sexo, raça, faixa etária e escolaridade, temos que Lima (2013) expõe que apenas três processos do NETP/CE,
em um universo de 134 (cento e trinta quatro), descrevem situações envolvendo homens. No que se refere a raça,
aponta que é um quesito que precisa ser incluído na ficha do Núcleo. Sobre a faixa etária, observa-se
predominância existente entre às idades de 19 e 25 anos. No que diz respeito à escolaridade temos que apenas em
24 (vinte e quatro) fichas do NETP/CE consta informações, destas podemos inferir que a maioria possui baixa
escolaridade.
Embora o SINAN tenha poucos casos registrados, podemos observar que o perfil de maioria mulheres
é característico, dos 29 casos tabulados, apenas 08 são “ditos” masculinos, isto é, em mais de 70% dos casos as
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 15

vítimas foram mulheres. Sobre a raça não foi possível comparar, visto que não há esse quesito na ficha do NETP.
Acerca da faixa etária, inferimos que no SINAN é mais diversificada não ratificando a predominância identificada
pelo Núcleo, isto é, de 19 a 25 anos. No tocante a escolaridade podemos perceber que ambas as tabulações
revelam uma negligência de preenchimento com tal dado, mas que os poucos registrados evidenciam a baixa
escolaridade. Diante do exposto, elaboramos a Tabela 04 – Prevalência de Perfil das Pessoas Traficadas no Ceará:

SINAN/CE NETP/CE
Sexo Maioria Mulheres Maioria Mulheres
Raça Maioria pretas e pardas Não há registros
Faixa etária Muito diversificada 19 a 25 anos
Escolaridade - Maioria Registro Ignorado - Quando
- Maioria Registro Ignorado - Quando
registrada, maioria baixa escolaridade
registrada, maioria baixa escolaridade

Fonte: Elaboração da Pesquisadora, 2021

Vale ressaltar que nem no SINAN nem no Núcleo foi possível compilar dados acerca da renda das mulheres
traficadas, no entanto Lima (2013, pág.124) traz que: “a vivência cotidiana da pesquisadora como profissional
da instituição atesta para a predominância de mulheres vítimas/possíveis vítimas em situação socioeconômica
precária”, revelando a renda como mais um fator de vulnerabilidade das vítimas.

– A Interseccionalidade de vulnerabilidades enquanto fator de risco


I nferimos dos resultados coletados, que gênero/identidade de gênero; orientação sexual; raça; faixa etária;
escolaridade; e renda são fatores relevantes para a identificação de um perfil de vítima, ainda mais quando
consideramos a confluência desses quesitos como agravantes da situação de vulnerabilidade e risco social.
Faz-se necessário ressaltar que o Tráfico de Pessoas envolve, no mínimo três elementos centrais para
sua caracterização, a saber: o. deslocamento de pessoas (seja dentro do território nacional ou entre fronteiras), o
uso de engano ou coerção e a finalidade de exploração (sexual, trabalho forçado, escravatura, remoção de órgãos;
casamento servil, dentre outros). Conforme sintetiza a Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as
Mulheres (2011, p. 23)“Toda vez que houver movimento de pessoas por meio de engano ou coerção, com o fim
último de explorá-la, estaremos diante de uma situação de tráfico de pessoas”.
Desta forma, entendemos que o Tráfico de Pessoas só é possível em meio ao Capitalismo, pois o que
está em questão é o lucro que se obtém, afinal conjectura-se que é o terceiro crime organizado transnacional mais
lucrativo, conforme apontado por Waldimeiry Silva (2018, p.04), em mesmo parágrafo a autora cita que de acordo
com a Organização Internacional do Trabalho - OIT, “as estimativas sobre o TSH cresceram massivamente na
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 16

última década. Em 2005, o negócio foi estimado em cerca de US$ 44 bilhões anualmente, atualmente gira em
torno de US$ 150 bilhões”.
Diante disso, estabelecemos um diálogo dos resultados obtidos com a corrente do Feminismo
Interseccional - a qual elucida que coexistem múltiplas e simultâneas formas de opressões sofridas pelas
mulheres, especialmente na sociedade em que vivemos – capitalista, machista e patriarcal, com racismo estrutural
e outras formas de discriminação. Crenshaw (2002, p.177) traz que a interseccionalidade: “trata especificamente
da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam
desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras”.
Defendemos um feminismo antirracista, anticlassista, anticapitalista, antilgbtfóbico, uma vez que
consideramos que não é possível combater a discriminação de gênero, sem considerar suas refrações e
intersecções. De maneira geral, a violência contra a mulher se vale da confluência de vulnerabilidades e riscos
sociais. Nesse sentido, o Tráfico de Mulheres, enquanto um tipo de violência contra a mulher não é diferente,
visto que também se beneficia da desigualdade social e de gênero e, das mais diversas formas de discriminação
e opressão para captar suas vítimas, como, novamente, traz Crenshaw (2002, p.175):

O discurso sobre o tráfico de mulheres é um exemplo disso. Quando se presta atenção


em quais mulheres são traficadas, é óbvia a ligação com a sua marginalização racial
e social. Contudo, o problema do tráfico é frequentemente absorvido pela perspectiva
de gênero, sem que se discuta raça e outras formas de subordinação que também
estão em jogo.

Considerando que o perfil principal das vítimas, encontrados em todos os estudos, pesquisas e
tabulações de dados apresentados, é que a maioria delas trata-se de mulheres e meninas, nos valemos de Saffioti
(1994) para esclarecer que embora a violência de gênero não seja sinônimo de violência contra a mulher, elas
têm sido as principais prejudicadas nessa relação desproporcional de dominação, bem como também destaca
Pascual (2007):

No ponto mais baixo da escala social estão as mulheres pertencentes às camadas


populares pobres, de sociedades patriarcais, marcadas por um histórico de
dominação masculina intocável. É dessas sociedades que surge o drama das
mulheres levadas para o mercado clandestino da prostituição feminina e do tráfico
de seres humano com fins de exploração sexual. (p. 43)

Em 2002, com a publicação da PESTRAF, ao considerar questões como gênero, raça, classe, já havia a
clara percepção sobre o Tráfico de Pessoas se favorecer das interseccionalidade de vulnerabilidades: “questões
de gênero e raça que o permeiam, e o papel da exclusão econômica e social [...] indivíduos submetidos a
condições extremas de vulnerabilidade que os tornam presas fáceis das redes de tráfico e exploração sexual”.
(p. 29)
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 17

A PESTRAF (2002) identificou, na época, a existência de 241 rotas do Tráfico de Pessoas no Brasil e
apresentou estudos regionalizados, apontando questões peculiares do Nordeste como sendo uma das mais
suscetíveis para origem e trânsito de vítimas, em virtude da alta desigualdade social e econômica presente na
região.
A referida pesquisa ainda apresentou que as cidades mais afetadas pela prática são aquelas que estão
estrategicamente localizadas nas proximidades de rodovias, portos e aeroportos, pois são pontos de fácil
mobilidade. (PESTRAF, 2002, p. 71), destacando como um dos principais destinos internacionais a Espanha,
apresentando, inclusive, dados referentes a predominância de mulheres em situação de migrante ilegal exercendo
a prostituição naquele país como um indicativo de possível situação de exploração sexual e tráfico: - “Em 1999
foram expulsos 491 cidadãos brasileiros da Espanha, por permanência ilegal, dos quais a maioria é mulheres
ligadas à prostituição” (p. 55-56).
Embora a PESTRAF (2002) tenha apresentado um estudo de extrema relevância para a questão do Tráfico
de Pessoas no Brasil, observamos que houve uma petrificação do diagnóstico, sem financiamento de novas
pesquisas que atualizassem os dados. Em 2018 a autora Waldimeiry Silva publicou um estudo embasado na sua
própria tese de doutorado, defendida em 2011, que revelou dados relacionados a esse trânsito Brasil – Espanha,
quase 10 anos depois, uma das principais rotas permanecia sendo a mesma.
Buscamos enriquecer esta pesquisa trazendo outras fontes de dados e mais uma vez identificamos a
invisibilidade dada a problemática nos registros, pois nos atlas da violência12disponíveis no IPEA, que são de
2016 a 2020, não aparecem dados sobre o TSH. Já no site EVA, temos dados sobre Tráfico de Pessoas, todavia,
ao compararmos com os do SINAN/CE encontramos inconsistências, que evidencia a necessidade de alinhamento
das coletas e dos registros. Nos valemos também do “Relatório13 Nacional Sobre o Tráfico de Pessoas: Dados
2014 a 2016”(2017), a fim de trazer dados mais recentes acerca do TSH, contudo tal relatório só apresenta dados
gerais, não regionaliza, nem divide por Estado.
Contudo, o relatório supracitado, é de fundamental importância para atualização de dados acerca da
problemática do TSH no Brasil, traz uma compilação de informações oriundas do Poder Judiciário, Sistema
Penitenciário, Polícias, Ministério do Trabalho, dentre outras fontes. Não obstante, sinaliza a falta de
concentração e padronização de dados:

Desta forma, não existe no Brasil um sistema único, integrado e confiável de


estatísticas criminais. Para a produção de um Diagnóstico Nacional, é necessária a
padronização e um dos problemas que compromete a consistência de análises
comparativas é, ainda, a heterogeneidade das categorias e critérios adotados. (p.20)

12 Disponíveis em https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/. Acesso em 16 de fevereiro de 2021 as 20h.


13 Disponível em: https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/relatorio-de-dados.pdf. Acesso
em 12 de março de 2021.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 18

No referido relatório são apontadas diversas dificuldades na compilação dos dados relacionados ao
TSH no Brasil, tais como: coleta manual, inconsistência dos sistemas, ausência de variáveis importantes,
diferenças nos conceitos; divergência nos períodos de coleta: forma inadequada de apresentação dos dados,
ausência de periodicidade no levantamento das informações, não publicização de dados e diversos obstáculos que
fazem os autores do documento resumirem em um “verdadeiro caos que é coletar dados de tráfico de pessoas”
(p.27). Por fim, vale ressaltar que o relatório conclui sobre a subnotificação deste crime “Isto tudo intensifica a
ausência de dados sobre um fenômeno que, além de ontologicamente subnotificado, é registrado
impropriamente, fazendo com que o crime permaneça oculto, ao menos estatisticamente” (p.28). Temos que
observamos falhas e perpassamos dificuldades semelhantes as elencadas, chegando a mesma conclusão de
subnotificação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Feitas as devidas considerações acerca das diversas fontes de dados, voltamos o foco para os dados
epidemiológicos: podemos inferir que os resultados obtidos no SINAN, em geral, corroboram com o perfil das
vítimas evidenciados nas principais pesquisas sobre o tema e, principalmente, que revelam a grave subnotificação
dos dados pelas equipes de saúde do Estado do Ceará.
Considerando que existem poucas pesquisas existentes sobre o tema, especialmente com interlocução
com o feminismo e/ou a violência contra mulher, bem como com a política pública de saúde, visto que a maioria
assume um viés jurisdicional, apreciamos a elaboração desta pesquisa de importante relevância para estudos
futuros que possam contribuir para ampliação e fortalecimento de políticas públicas, capazes de identificar e
registrar corretamente os casos, prestando atendimento integral às vítimas.
Constatamos que a invisibilidade da problemática do TSH nos registros epidemiológicos do Estado
do Ceará, a negligência de tais registros, a defasagem da publicização dos dados, consequentemente têm impacto
na construção e implantação de políticas públicas voltadas para a questão, bem como dificulta a produção
acadêmica e outros estudos sobre o tema. Faz-se extremamente necessário e urgente a realização de novos estudos
e diagnósticos para atualização de dados.
Esperamos ter chamado atenção para a problemática, convidando a sociedade, em especial, as mulheres,
para que estejam sempre vigilantes com os direitos até então alcançados e permaneçam na luta por novas
conquistas, alinhando as bandeiras dos diversos movimentos sociais na cobrança intransigente de fazer com que
o Estado assuma o efetivo compromisso com as políticas públicas.
Sugerimos a implantação da ficha do SINAN dentro do NTEP, visto que a notificação permite que demais
profissionais da rede de atendimento a preencham, bem como a padronização de registros dos marcadores sociais
apontados no decorrer desta pesquisa, visto que são elementos imprescindíveis para construir o perfil das
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 19

mulheres traficadas, indicando dados relevantes que podem auxiliar no direcionamento de ações de prevenção e
enfrentamento da problemática. Destacamos que existe a necessidade de incluir outras informações importantes
nas fichas de notificações das ocorrências de TSH, bem como nos sistemas de tabulação de dados.
Propomos também maior publicização dos dados, ampliação das ações de capacitação e sensibilização da
sociedade e dos profissionais da rede de atendimento acerca do TSH, especialmente no que se refere ao tráfico
de mulheres, o ressaltando enquanto violência contra a mulher e agravo em saúde. Pretendemos disponibilizar
uma cópia do produto final desse estudo tanto para o NETP/CE quanto para a vigilância epidemiológica do
Estado.
Por fim, asseveramos que o grande desafio é proporcionar processos emancipatórios para as mulheres em
situação de tráfico de pessoas, em meio a essa sociedade que vivencia um retrocesso, uma crise do trabalho, da
democracia, da ética e um desmonte dos direitos sociais e humanos.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Decreto n. 5.017, de 12 de março 2004 (2004). Promulga o Protocolo Adicional à Convenção das Nações
Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas,
em Especial Mulheres e Crianças. Diário Oficial da União, Brasília, 15 mar. 2004.
BRASIL. Decreto nº 5.948, de 26 de outubro de 2016. Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas.
BRASIL. Secretaria Especial de Políticas para Mulheres. Política Nacional de Enfrentamento à Violência contra as
mulheres. Brasília, SPM, 2011.
CISNE, Mirla. Relações sociais de sexo, “raça/etnia e classe: uma análise feminista-materialista. In: Revista
Temporalis, nº 28, p. 133-149, jul./dez. 2014
COLARES, Marcos. I Diagnóstico sobre o tráfico de seres humanos: São Paulo, Rio de Janeiro, Goiás e Ceará.
Brasília. SNJ, 2004. 42p.
Crenshaw, K. (2002). Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação social relativos ao
género. Revista dos Estudos Feministas. 10(1), 171188.
DELPHY, Christine. Patriarcado (teorias do). In: HIRATA, H. et al (org.). Dicionário Crítico do Feminismo. Editora
UNESP : São Paulo, 2009, p. 172–178.
EVA. Disponível em: https://eva.igarape.org.br/womenTraffic. Acesso em :dia 25 de janeiro de 2021.
HOOKS, Bell O feminismo é para todo mundo. políticas arrebatadoras tradução Ana Luiza Libânio. – 1. ed. - Rio de
Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.
LEAL, Maria Lúcia; LEAL, Maria de Fátima. Pesquisa sobre o tráfico de mulheres,crianças e adolescentes para fins
de exploração comercial no Brasil – PESTRAF. 2002.
IPEA. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/. Acesso em 16 de fevereiro de 2021.
LIMA, Priscila Nottingham de Tráfico de mulheres para fins de exploração sexual: um estudo no Núcleo de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Ceará / Priscila Nottingham de Lima. — 2013.
MYNAIO, Maria Cecília de Souza. Pesquisa social: Teoria, método e criatividade. 21° edição. Rio de Janeiro: 1994.
FARIA, Nalu et al. Sexualidade e Feminismo. In: FARIA, Nalu (Org.). Sexualidade e Gênero: Uma Abordagem
Feminista . São Paulo: SOF, 1998. (Coleção Cadernos Sempreviva) 60 p.
PASCUAL, Alejandra. Mulheres Vítimas de Tráfico para fins de exploração sexual: entre o discurso da lei e a
realidade de violência contra as mulheres. In: LEAL, Maria Lúcia; LEAL, Maria de Fátima; LIBÓRIO, Renata Maria
Coimbra (orgs.). Tráfico de Pessoas e Violência Sexual. Brasília: UNB, 2007.
PISCITELLI, Adriana. Entre a Praia de Iracema e a União Europeia: turismo sexual internacional e migração
feminina. In: PISCITELLI, Adriana [et al…]. Sexualidades e Saberes, Convenções e Fronteiras, Rio de Janeiro: Garamond,
2003. p. 250-270.
____________________(2002). Exotismo e autenticidade: relatos de viajantes à procura de sexo. In: Cadernos Pagu.
n. 19, São Paulo: Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), 2002, pp. 195-231.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 20

_________________ (2008). Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de migrantes brasileiras.


Sociedade e Cultura, v. 11, n. 2.
_________________ (2016). Economias sexuais, amor e tráfico de pessoas: novas questões conceituais. Campinas,
Cadernos Pagu (47).
RELATÓRIO NACIONAL SOBRE O TRÁFICO DE PESSOAS: DADOS 2014 A 2016. Brasília, 2017. Disponível em:
https://www.justica.gov.br/sua-protecao/trafico-de-pessoas/publicacoes/relatorio-de-dados.pdf. Acesso em 12 de março
de 2021.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Tráfico sexual de mulheres: representações sobre ilegalidade e vitimação. In: Revista
Crítica de Ciências Sociais, n. 87 - 2009, p. 69-94.
SILVA, Waldimeiry Correa da. Regime internacional de enfrentamento ao tráfico de pessoas: avanços e desafios para
a proteção dos direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018.
SINAN. Disponível em: http://tabnet.datasus.gov.br/cgi/deftohtm.exe?sinannet/cnv/violeCE.def. Acesso em: 14 de
fevereiro de 2021.
TIBURI, M. Feminismo em comum: para todas, todes e todos. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018. 126 p.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 21

CAPÍTULO 2
PROCURANDO MÃES EM TERRITÓRIOS DE VULNERABILIDADES :
OS ÓRFÃOS DA COVID-19

JAIANY RODRIGUES LIBÓRIO


GIOVANA MACÊDO EGÍDIO CAVALCANTE
TAYSA LEITE DE AQUINO
ANA LUIZA MENEZES SANTANA BEZERRA
DARA FERNANDA BRITO DUARTE
LARYZA SOUZA SOARES
ANA LUÍZA DE AGUIAR ROCHA MARTIN
JULIANE DOS ANJOS DE PAULA
MODESTO LEITE ROLIM NETTO

INTRODUÇÃO
A COVID-19 é uma doença causada pelo novo coronavírus, denominado SARS-Cov-2, que apresenta um
amplo espectro clínico variando de infecções assintomáticas a quadros graves. Os primeiros casos dessa infecção
no Brasil foram confirmados em fevereiro de 2020. Desde então, a população brasileira começou a vivenciar
consequências diretas, tanto na saúde quanto na economia, as quais já eram antevistas, considerando a trajetória
que outros países já estavam enfrentando (ESTADÃO, 2020). Após cerca de um ano do início da pandemia, o
país apresentou estatísticas de intensa dramaticidade, as quais revelaram, na segunda semana de março, uma
mortalidade em 24 horas totalizando 2.798, enquanto a incidência de novos casos foi de 90.830 em um dia. Tais
dados são apenas a semelhança da ponta de um icerberg, vista a dimensão dos problemas sociais advindos com
a atual crise do novo coronavírus (FOLHA DE S. PAULO, 2021).
Além das consequências para saúde e economia, as nações estão enfrentando inúmeras repercussões
sociais, dentre elas está a problemática do crescente número de crianças e adolescentes que se tornaram os órfãos
da COVID-19, pois perderam pais, mães, avós ou outros responsáveis para essa nova doença infecto-contagiosa
(CARTA CAPITAL, 2020). Somente em 2020, o Brasil registrou 506 mortes de gestantes ou puérperas
diagnosticadas com a COVID-19, apresentando o maior número absoluto de óbitos de grávidas da América
(UOL, 2021). Nesse cenário, um contingente progressivo de órfãos precoces é uma realidade esperada, gerando
mais desafios para toda a sociedade a respeito da tentativa de suprir a falta dos pais, tanto no âmbito econômico,
quanto no afetivo, haja vista que as figuras paternais e maternais representam a totalidade do terno amparo que
um criança precisa para formação do seu psiquismo e da sua personalidade (ESTADÃO, 2020; PÚBLICA,
2021;CONJUR, 2020; CARTA CAPITAL,2020).
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 22

No Brasil, é garantido pelo Artigo 227 da Constituição Federal a proteção integral da infância e da
juventude, concedendo educação, moradia e saúde, como dever do Estado, da sociedade e da família (JORNAL
DO SUDOESTE, 2020; CARTA CAPITAL, 2020). Não obstante, medidas específicas do governo brasileiro para
os órfãos da COVID-19 ainda não foram devidamente implementadas à instância nacional, todavia, ressalta-se
que, no estado do Pernambuco (PE), a Coordenadoria da Infância e da Juventude (C.I.J.) do Tribunal de Justiça
estadual (TJ-PE), instituiu cursos, através da modalidade de Ensino à Distância (EAD), como etapa obrigatória
aos aspirantes à adoção, outrossim, o Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça de Pernambuco sugeriu
que a C.I.J./TJ-PE definisse programas de apadrinhamento direcionados aos órfãos da pandemia (CONJUR,
2020;METRÓPOLES, 2021).
Lado outro, na América Latina, em países como México e Peru, programas de assistência psicossocial e
financeira já estão em vigor (EXCELSIOR, 2021; ISTO É, 2021). No continente europeu, em países como Itália,
a Organização Nacional para Órfãos de Saúde Italiana (Onaosi) ampliou seus serviços para amparar órfãos da
COVID-19 (GIORNALE DE SILICIA, 2020). Em contrapartida, na França ainda espera-se a aprovação de um
projeto de lei para auxiliar os órfãos franceses (LE FIGARO, 2020). Além disto, nos Estados Unidos,
organizações como a Abrazo Adoption Associates e projetos sociais como Gofundme (programa de arrecadação
de fundos destinados a indivíduos, grupos ou organizações) estão fornecendo assistência a esse novo fluxo de
orfandade (CONJUR, 2020; ABC NEWS, 2021).
Ademais, os órfãos da COVID-19, inerentes ao seu processo de orfandade, podem apresentar
repercussões psicológicas em algum grau, leve à grave, no curso do seu enlutamento. Isso é corroborado pelo
argumento da psicóloga Bruna Tabak, a qual relatou que: "O luto é uma travessia contínua, sem um fim
determinado. É um processo contínuo, com altos e baixos, um esforço perene para encontrar algum aconchego e
sentido para seguir adiante” (G1, 2020). Tais repercussões emocionais podem ser agravadas no contexto das
medidas restritivas de isolamento social impostas pela pandemia, alguns exemplos atuais podem ratificar esses
fatos, por exemplo, constatou-se uma eflorescência de transtornos alimentares e dificuldade de concentração nas
aulas escolares em alguns desses órfãos, levando-os a necessitarem de psicoterapia de forma precoce, algumas
com apenas dois anos de idade (NBC NEWS, 2021), reverberando um dano à primeira infância, cuja a gravidade
das consequências ainda não podem ser devidamente estimadas (CONJUR,2020; LE FIGARO, 2021; CARTA
CAPITAL, 2021).

MÉTODO
Esta é uma revisão sistemática. Durante a busca do estudo, algumas etapas foram adotadas, como análise
dos achados para estabelecer quais artigos seriam incluídos e interpretação dos dados com base na orientação do
estudo.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 23

A questão norteadora foi baseada no acrônimo PICO. O qual apresenta os seguintes correspondentes, P:
população do estudo - sujeitos que perderam familiares para COVID-19; I: intervenção- demonstrar as
repercussões emocionais e socioeconômicas nos órfãos da COVID-19; C: controle - sujeitos com COVID-19;
O: desfecho- impacto negativo sobre os órfãos da COVID-19.
Foram incluídos evidencias jornalísticas relativas ao período de tempo 2020 a 2021, com registros
encontrados em inglês, espanhol e português. O período de estudo foi escolhido porque a produção de
conhecimento é recente, o que restringiu o registro de anos anteriores.
# 1. “COVID” e
# 2. "Orfãos"
#1e#2
Durante o processo de seleção dos estudos, dois revisores trabalharam de forma independente e analisaram
os estudos que seriam incluídos. Em caso de discordância, um terceiro revisor foi utilizado para o veredicto sobre
a inclusão ou não do estudo.

RESULTADOS
Figura 1. Jornais usados para a pesquisa.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 24

Critérios de Inclusão: Registros em inglês, espanhol e português; Com abordagem sobre as repercussões
psicológicas e economicas em crianças órfãs pela COVID-19;
Critérios de Exclusão: Reportagens repetidas; relatos sobre orfandades não relacionados ao COVID-19.

Figura 2: Repercussões negativas acerca das perdas sofridas pelos órfãos da COVID-19

.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 25

Figura 3: Estratégias de amparo aos órfãos da COVID-19 em diferentes países.

DISCUSSÃO
As principais vítimas diretas da infecção pelo SARS-Cov-2 são idosos, adultos com comorbidades e
profissionais da saúde que estão expostos diariamente à contaminação do vírus durante sua atuação laboral.
Contudo, as crianças e adolescentes que perdem seus pais, avós, tios e/ou responsáveis legais em razão da
COVID-19 são as principais vítimas indiretas da pandemia, tendo em vista a situação de abandono e orfandade a
qual são submetidos. Experiências históricas com pandemias, desastres e guerras, tal qual a crise da gripe
espanhola, no século passado, conduziram diversos países a aprovar legislações acerca da adoção infantil, como
a França e a Inglaterra. No contexto vigente da crise do novo coronavírus, tais experiências se repetem em suas
devidas proporções e evidenciam a necessidade de acolhimento socioafetivo, psicossocial e econômico, sendo os
dois primeiros aspectos cruciais para o futuro desses menores, visto que a proteção afetuosa na primeira infância
propicia a formação de seres humanos saudáveis, ou seja, aqueles com boa saúde física e mental e mais aptos a
tratar com sua própria existência enquanto ser social, em semelhança ao que foi manifestado pelo romancista
inglês William Wordsworth, ao afirmar que: “a criança é pai do homem” (CARTA CAPITAL, 2021; PÚBLICA,
2021; CONJUR, 2020).
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 26

Estima-se que a pandemia levou cerca de 1,2 bilhões de crianças para a pobreza multidimensional
(UNICEF, 2020). No Brasil, a maioria dos órfãos da COVID-19 estão sob o amparo de seus familiares
sobreviventes, os quais estão empenhando-se, com seus próprios recursos, para prover uma boa condição
econômica, social e mental aos órfãos, sendo o quesito psicológico o mais desafiador para os cuidadores
(PÚBLICA, 2021; CARTA CAPITAL, 2021). A condição de orfandade precoce, sem um amparo familiar e
estatal adequado, predispõe a população infanto-juvenil aos estigmas sociais que intensificam a situação de
pobreza, como o da maior evasão escolar e o trabalho infantil, tornando-os mais vulneráveis. (HUMAN RIGHTS
WATCH, 2020; CONJUR,2020).
O relato de um pai, que perdeu sua esposa e mãe dos seus dois filhos, revela que ele, juntamente com seus
familiares, têm oferecido suporte psicológico aos filhos, na tentativa de ajudá-los a lidar com a perda materna
(PÚBLICA, 2021). Todavia, sem uma psicoterapia, conduzida por especialistas, é difícil, tanto para a família,
quanto para a criança, enfrentar o luto de forma adequada, ainda mais, em uma situação traumática de
contaminação global por um vírus letal (METRÓPOLE, 2020). Isso demonstra a delicadeza e gravidade de ser
órfão no contexto de uma pandemia, principalmente em nações onde não há políticas públicas que identifiquem
esses jovens e garantam assistência para minimizar a possibilidade de perda da expectativa de futuro (PÚBLICA,
2021; EXCELSIOR, 2021).
A crise sanitária e social gerada pelo novo coronavírus, culminou em uma situação de múltiplas
vulnerabilidades para os órfãos da COVID-19. Em famílias com muitos irmãos, os mais velhos, diante da perda
repentina dos responsáveis por seu amparo, educação e sustento, passaram a ser os protagonistas na manutenção
familiar em alguns casos. Essa responsabilidade inesperada na vida dos jovens culmina em diversas incertezas
sobre o seu presente e futuro, as quais podem dificultar o processo de luto, além de predispor o desenvolvimento
de transtornos de ansiedade e/ou depressivos, transtornos alimentares, distúrbios de sono e da concentração, caso
não sejam devidamente assistidos. Todavia, a separação familiar, nesses casos, podem trazer danos ainda mais
graves que os primeiros (JORNAL DO SUDOESTE, 2020; EL PAÍS, 2020; CARTA CAPITAL, 2021;NBC
NEWS, 2021; ABC NEWS, 2021).
Nesse cenário, observa-se que, a despeito das dificuldades supracitadas, o ideal é que esses órfãos fiquem
sob responsabilidade provisória de seus familiares, como irmãos mais velhos ou avós, ou, ainda, pessoas com
quem já possuam um vínculo afetivo, pois acredita-se que o serviço de acolhimento, como os orfanatos, devem
ser a última opção, visto que, apesar de serem locais com cuidadores qualificados e suporte alimentar, são
ambientes desconhecidos para essas crianças e adolescentes, gerando traumas além dos já vivenciados com a
perda repentina de seus pais (OBSERVATÓRIO DO TERCEIRO SETOR, 2020).
Outro agravante no impacto emocional provocado pela perda de uma familiar para COVID-19 é a
impossibilidade do acompanhamento do processo de adoecimento e de morte, dado que, como medida restritiva,
as famílias são impossibilitadas de fazerem visitas hospitalares e de realizarem os funerais de despedidas. Estas
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 27

imposições estatais dificultam a vivência adequada do luto pelos familiares, tendo em vista que o cortejo fúnebre
é considerado essencial no enfrentamento do luto pela maioria das culturas. Todos esses aspectos destacam os
órfãos da COVID-19, como um grupo de indiscutível vulnerabilidade psicossocial (LE FIGARO, 2021; CARTA
CAPITAL, 2021; NBC NEWS, 2021).
Os psicanalistas afirmam que, para enfrentar o luto, as crianças precisam ouvir sobre a relação entre a
vida e a morte e saber a verdade dos fatos que levaram seu ente ao falecimento, visto que toda criança,
independente de sua idade, tem capacidade de enfrentamento. Contudo, muitas famílias, por falta de
conhecimento, praticam o oposto do recomendado pelos profissionais e, sem intenção, tornam o processo do luto
algo patológico, em virtude das vias neurológicas ainda estarem em desenvolvimento nessa população, tornando-
a mais suscetível à ansiedade e depressão, que podem acarretar em problemas comportamentais e psicológicos a
longo prazo. Na presente revisão, por exemplo, encontrou-se o relato de uma jovem brasileira que desenvolveu
síndrome do pânico após ter visto a vida do pai ser encerrada devido a COVID-19.(METRÓPOLE, 2020; EL
PAÍS,2020; ISTO É, 2020; THE WASHINGTON POST, 2020; PÚBLICA, 2021).
Encontrou-se o relato de dois jovens mexicanos, um deles é Froylan Salas Vanegas, de 11 anos, órfã de
mãe para COVID-19, a qual afirmou: "não sei se vou conseguir me recuperar disso e a verdade é que não me
sinto muito bem de espírito." O outro, é Jan Salas Vanegas, de 15 anos, órfão de mãe para COVID-19, o qual
disse: "vai nos afetar muito, mesmo que avancemos, aos poucos... a terapia psicológica nos foi oferecida pelo
trabalho do meu pai, um cara muito legal; ele também tem nos ajudado a sair aos poucos do que passamos,
principalmente meu irmão, que está achando um pouco mais difícil”. Nos Estados Unidos, outros relatos
evidenciaram que, após a perda repentina dos pais, jovens desenvolveram alterações psiquiátricas. Tais relatos
enfatizam que o acompanhamento psicológico e/ou psiquiátrico deve existir e ocorrer de forma mais precoce
possível, para que os efeitos negativos sobre esses jovens sejam minimizados (NBC NEWS, 2021; EXCELSIOR,
2021).
Frente ao cenário atual dos órfãos da COVID-19 é imperativo a formulação e implementação de políticas
públicas para minimizar os efeitos negativos que a orfandade traz à vida desses menores. No Brasil, o Senado
Federal recebeu uma proposta do jornalista Warlberto Maciel para criação de um fundo de amparo, porém, ela
ainda não é uma proposição legislativa e carece de vinte mil assinaturas e da aprovação da Comissão de Direitos
Humanos (CDH) para ser validada (METRÓPOLES, 2021). Ademais, em Manaus, a comunidade e os familiares
dessa população infanto-juvenil já têm se mobilizado para ampará-los, por meio de um sistema de
apadrinhamento, que tem como finalidade doação de cestas básicas, fraldas, produtos de higiene e brinquedos.
Outrossim, o C.I.J./TJ-PE pretende estender a assistência do programa de apadrinhamento social “Pernambuco
que acolhe” aos órfãos da pandemia, estimulando intervenções por parte da iniciativa privada. (AMAZONAS
ATUAL, 2021; CONJUR, 2020). A Rede de Apoio às Famílias e Amigos de Vítimas Fatais da COVID-19 no
Brasil é uma iniciativa cidadã e independente, composta por sindicatos e movimentos sociais de todo o país, que
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 28

objetiva garantir o mais amplo, sensível e humanizado apoio psicossocial e interdisciplinar às pessoas que
perderam entes queridos no contexto dessa tragédia social (G1, 2020; JORNAL DO SUDOESTE, 2020).
À face do exposto, vê-se que a vivência coletiva em uma situação traumática de uma pandemia, ainda é
capaz de sensibilizar a solidariedade social, sendo crucial, principalmente pelo fato de o Estado brasileiro, ainda,
não estar sendo proativo nesse processo, fato que tem, inclusive, violado os direitos da criança e do adolescente
garantidos por lei, através da Carta Magna nacional (PÚBLICA, 2021; JORNAL DO SUDOESTE, 2020;
CARTA CAPITAL, 2020; METRÓPOLES, 2021).
No contexto internacional, alguns países já apresentaram projetos de políticas sociais para os órfãos da
COVID-19. No México, para atender às demandas de assistência social aos órfãos, o governo criou um programa
chamado “Bolsa Leona Vicario”, o qual garante apoio financeiro, além de serviços integrais com psicólogos,
odontólogos, serviços recreativos e educativos de forma permanente até que eles completem 18 anos. Até
dezembro de 2020, já havia mais de 3000 crianças assistidas pelo programa. Ademais, em agosto de 2020, a Rede
pelos Direitos da Criança do México criou um diretório de crianças órfãs da COVID-19, com a finalidade de
garantir o direito de continuação dos seus estudos (EXCELSIOR, 2021). Assim como o México, o Peru também
adotou a criação de pensão para os órfãos da pandemia, a qual será dirigida para seus responsáveis, este auxílio
é individual, garantindo a cada filho o benefício até completar 18 anos de idade. (ISTO É, 2021; EL PERUANO,
2021).
Na Europa, o governo frânces está aprovando um projeto de lei que visa estender os benefícios do estatuto
‘Pupilos da Nação’- estatuto que concede apoio financeiro aos filhos de indivíduos que faleceram decorrente de
guerras ou terrorismo para os filhos dos profissionais de saúde que foram a óbito em razão da COVID-19.
Outrossim, o governo italiano aprovou a inclusão dessas crianças no grupo de beneficiários da Organização
Nacional para Órfão de Saúde Italiana, garantindo hospitalidade para os órfãos da COVID-19 (EXCELSIOR,
2021; GIORNALE DE SILICA, 2020; LE FIGARO, 2020).
Nos Estados Unidos, haja vista que um terço das famílias americanas são monoparentais, organizações
sociais, como a Abrazo Adoption Associates, orienta os pais ou outros responsáveis a designar o responsável
legal do seu filho em caso de sua morte para minimizar a inserção desses menores em orfanatos, nos quais estão
salvos de abuso ou negligência por suas famílias, mas são privados de crescer em um lar afetuoso (ABRAZO,
2020). Os efeitos da pandemia sobre os órfãos americanos terão que ser melhor compreendidos e medidas para
minimizar os impactos emocionais e socioeconômicos devem ser implementadas (THE WASHINGTON POST,
2020).

CONCLUSÃO
Diante do apresentado, é evidente a condição de vulnerabilidade psicossocial e econômica da população
infanto-juvenil que se torna órfã da COVID-19. A mudança repentina e inesperada da base familiar desses jovens,
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 29

predispõe o desenvolvimento de transtornos psiquiátricos e/ou psicológicos devido às incertezas geradas pela
perda traumática dos entes queridos.
À vista desse cenário, torna-se necessária a elaboração de políticas públicas e o aprimoramento dos
serviços e redes de proteção comunitárias para acolher, proteger e amparar os milhares de órfãos da pandemia,
além de todos os acometidos pelos impactos gerados por essa crise. Destarte, deve-se considerar o quanto o
impacto psicológico sobre os órfãos da COVID-19, se não forem bem trabalhados, poderão resultar em
consequências tão graves, quanto os problemas socioeconômicos diretos.

REFERÊNCIAS
ABC News. (2021). As COVID-19 turns more children into orphans, siblings step up to fill the void. Disponível
em: https://abcnews.go.com/US/covid-19-turns-children-orphans-siblings-step-fill/story?id=76054302
Abrazo. (2020). American Orphans. Disponível em: https://abrazo.org/2020/04/02/american-orphans/
Amazonas atual. (2021). Campanha em Manaus ajuda crianças que ficaram órfãos na pandemia de Covid-19 e
disponível em: https://amazonasatual.com.br/campanha-em-manaus-ajuda-criancas-que-ficaram-orfas-na-
pandemia-de-covid-19/
A Publica. (2021). Filhos sem mães: como se viram as famílias com órfãos da Covid-19. Disponível em:
https://apublica.org/2021/03/filhos-sem-maes-como-se-viram-as-familias-com-orfaos-da-covid-19/
Carta Capital. (2020). Do jeito que está, Brasil pode ter geração de órfãos da pandemia. Disponível em:
https://www.cartacapital.com.br/opiniao/do-jeito-que-esta-brasil-pode-ter-geracao-de-orfaos-da-pandemia/
Consultor Jurídico. (2020). Orfandades precoces clamam pelos seus órfãos da pandemia. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2020-jul-26/processo-familiar-orfandades-precoces-clamam-pelos-orfaos-pandemia
El País. (2020). Respuesta a la emergencia por la covid-19: lecciones aprendidas del ébola. Disponível em:
https://elpais.com/elpais/2020/04/28/planeta_futuro/1588066541_117044.html
El País Brasil. (2021). Como se viram as famílias com órfãos da covid-19. Disponível em:
https://brasil.elpais.com/brasil/2021-03-04/como-se-viram-as-familias-com-orfaos-da-covid-19.html
El Peruano. (2021). Midis: 10,900 niños que perdieron a sus padres por el covid-19 recibirán pensión de S/ 200.
Disponível em: https://elperuano.pe/noticia/116636-midis-10900-ninos-que-perdieron-a-sus-padres-por-el-
covid-19-recibiran-pension-de-s-200
Estadão. (2020). País pode ter geração de órfãos da pandemia de coronavírus. Disponível em:
https://emais.estadao.com.br/blogs/bruna-ribeiro/pais-pode-ter-geracao-de-orfaos-da-pandemia-de-coronavirus/
Excelsior. (2021). Casi 11 mil niños han quedado huérfanos por covid-19 en Perú. Disponível em:
https://www.excelsior.com.mx/global/casi-11-mil-ninos-han-quedado-huerfanos-por-covid-19-en-
peru/1436804
Excelsior. (2020). Covid amaga plan de vida a niño huérfanos; alertan sobre impacto sicológico de perder a
padres. Disponível em: https://www.excelsior.com.mx/nacional/covid-amaga-plan-de-vida-a-ninos-huerfanos-
alertan-sobre-impacto-sicologico-de-perder-a
Excelsior. (2021). Más de 3 mil niños quedan huérfanos por covid-19: DIF CDMX. Disponível em:
https://www.excelsior.com.mx/comunidad/mas-de-3-mil-ninos-quedan-huerfanos-por-covid-19-dif-
cdmx/1429823
FigaroVox. (2021). Mon père a été l’otage d’une médecine inhumaine. Disponível em:
https://www.lefigaro.fr/vox/societe/mon-pere-a-ete-l-otage-d-une-medecine-inhumaine-20210222
FigaroVox. (2020). Pupille de la Nation : les infirmiers veulent un geste pour les orphelins du Covid. Disponível
em: https://www.lefigaro.fr/flash-eco/pupille-de-la-nation-les-infirmiers-veulent-un-geste-pour-les-orphelins-
du-covid-20200514
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 30

Folha de São Paulo. (2021). Leia relatos daqueles que perderam pessoas queridas para a Covid. Disponível em:
https://www1.folha.uol.com.br/paineldoleitor/2021/03/leia-relatos-daqueles-que-perderam-pessoas-queridas-
para-a-covid.shtml
G1. (2020). Órfãos da Covid: filhos relatam como encaram o luto meses depois da morte de parentes. Disponível
em: https://g1.globo.com/sp/sorocaba-jundiai/noticia/2020/08/28/orfaos-da-covid-filhos-relatam-como-
encaram-o-luto-meses-depois-da-morte-de-parentes.ghtml
Giornale di Sicilia. (2020). Coronavirus: Onaosi, aperti agli orfani dei sanitari vittime. Disponível em:
https://gds.it/speciali/salute-e-benessere/2020/04/22/coronavirus-onaosi-aperti-agli-orfani-dei-sanitari-vittime-
a2561954-bae5-45c3-8869-daf461468ffc/
Human Rights Watch, (2020).COVID-19’s Devastating Impact on Children. Disponível, em:
https://www.hrw.org/news/2020/04/09/covid-19s-devastating-impact-children
Isto é. (2020). Estamos morrendo. Disponível em: http://istoe.com.br/estamos-morrendo/
Isto é. (2021). Quase 11.000 órfãos por covid-19 receberão uma pensão no Peru. Disponível em:
https://istoe.com.br/quase-11-000-orfaos-por-covid-19-receberao-uma-pensao-no-peru/
Jornal do Sudoeste. (2020). Crianças que perderam os pais pela Covid-19. Como ficam? Disponível em:
https://www.jornaldosudoeste.com/criancas-que-perderam-os-pais-pela-covid-19-como-ficam
Metrópoles. (2021). Senado recebe proposta para criar fundo destinado aos órfãos da Covid-19 e disponível em:
https://www.metropoles.com/colunas/janela-indiscreta/senado-recebe-proposta-para-criar-fundo-destinado-aos-
orfaos-da-covid-19
NBC News. (2021). The youngest mourners: These are the children who have lost a parent to Covid-19.
Disponível em: https://www.nbcnews.com/news/us-news/youngest-mourners-these-are-children-who-have-lost-
parent-covid-n1254683
Observatório do Terceiro Setor. (2020). Pandemia deve aumentar número de crianças e adolescentes órfãos.
Disponível em: https://observatorio3setor.org.br/noticias/pandemia-deve-aumentar-numero-de-criancas-e-
adolescentes-orfaos/
Unicef. (2020). 150 million additional children plunged into poverty due to COVID-19, UNICEF, Save the
Children say. Disponível em: https://www.unicef.org/press-releases/150-million-additional-children-plunged-
poverty-due-covid-19-unicef-save-children
Uol. (2021). Covid-19 deixa bebês órfãos e viúvos em luto. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-
noticias/agencia-estado/2021/03/15/covid-19-deixa-bebes-orfaos-e-viuvos-em-luto.htm
Washington Post. (2020). Opinion: Are we seeing the first of the covid-19 orphans? Disponível
em:https://www.washingtonpost.com/opinions/2020/04/17/how-coronavirus-is-exposing-new-kind-family-
separation/

BIOBIOGRAFIA DAS AUTORAS

Jaiany Rodrigues Libório


Acadêmica do Curso de Medicina da Faculdade de Medicina de Juazeiro do Norte – FMJ/ESTACIO
Endereço: Av. Ten. Raimundo Rocha, 515 - Cidade Universitária, Juazeiro do Norte - CE, 63040-360
Email: rodriguesjaiany@gmail.com

Giovana Macêdo Egídio Cavalcante


Acadêmica do Curso de Medicina da Faculdade de Medicina de Juazeiro do Norte – FMJ/ESTACIO
Endereço: Av. Ten. Raimundo Rocha, 515 - Cidade Universitária, Juazeiro do Norte - CE, 63040-360
Email: ggiovanamec@hotmail.com

Taysa Leite de Aquino


Acadêmica do Curso de Medicina da Faculdade de Medicina de Juazeiro do Norte – FMJ/ESTACIO
Endereço: Av. Ten. Raimundo Rocha, 515 - Cidade Universitária, Juazeiro do Norte - CE, 63040-360
Email: ttay.leite@hotmail.com
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 31

Ana Luiza Menezes Santana Bezerra


Acadêmica do Curso de Medicina da Faculdade de Medicina de Juazeiro do Norte – FMJ/ESTACIO
Endereço: Av. Ten. Raimundo Rocha, 515 - Cidade Universitária, Juazeiro do Norte - CE, 63040-360
Email: analuiza.santana19@hottmail.com

Dara Fernanda Brito Duarte


Acadêmica do Curso de Medicina da Faculdade de Medicina de Juazeiro do Norte – FMJ/ESTACIO
Endereço: Av. Ten. Raimundo Rocha, 515 - Cidade Universitária, Juazeiro do Norte - CE, 63040-360
Email: daraduartee@hotmail.com

Laryza Souza Soares


Acadêmica do Curso de Medicina da Faculdade de Medicina de Juazeiro do Norte – FMJ/ESTACIO
Endereço: Av. Ten. Raimundo Rocha, 515 - Cidade Universitária, Juazeiro do Norte - CE, 63040-360
Email: laryzasouza@gmail.com

Ana Luíza de Aguiar Rocha Martin


Mestre em Farmacologia pela Universidade Federal do Ceará – UFC e Doutoranda em Farmacologia pela pela
Universidade Federal do Ceará – UFC
Endereço: Av. Ten. Raimundo Rocha, 515 - Cidade Universitária, Juazeiro do Norte - CE, 63040-360
Email: analuizamarttin@gmail.com

Juliane dos Anjos de Paula


Mestre em Ciências da Saúde pela Faculdade de Medicina do ABC. Residência Médica em Psiquiatria no
Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Endereço: Av. Ten. Raimundo Rocha, 515 - Cidade Universitária, Juazeiro do Norte - CE, 63040-360
Email: julianepaula2@hotmail.com

Modesto Leite Rolim Netto


Professor Livre Docente pela Faculdade de Saúde Pública – USP. Douttor em Ciencias da Saúde pela
Universidade Federal do Rio grande do Norte – UFRN.
Endereço: Av. Ten. Raimundo Rocha, 515 - Cidade Universitária, Juazeiro do Norte - CE, 63040-360
Email: modesto.neto@ufca.edu.br
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 32

CAPÍTULO 3
ESTADO, FAMÍLIA, IGREJA E O “TRABALHO DAS MULHERES”:
reflexões da quarentena

MARIA ADRIANA ALVES DANTAS*

INTRODUÇÃO

Dos muitos textos que saíram neste período de quarentena, duas questões me chamaram atenção: textos
sobre o trabalho doméstico, com o olhar mais atento para os lares, e textos com críticas sobre quem pode ter o
“privilégio”, mas eu substituiria essa palavra, por direito de poder estar em casa durante a quarentena: A classe
média! E Lembrei-me das palavras da filósofa Marilena Chauí, que diz: “A classe média é uma abominação
política, porque é fascista, é uma abominação ética porque é violenta, e é uma abominação cognitiva porque é
ignorante” 14.
Bom, sabemos que não é de agora que o Brasil enfrenta problemas na nossa estrutura social, é certo que
as desigualdades brasileiras são latentes e elas vêm de longe, inclusive já vínhamos sentido os reflexos de várias
crises, de ordem mundial e obviamente, aqui também, como as de ordem política, social, ambiental, ético-
religiosas e agora enfrentamos o aprofundamento de crises civilizatória e sanitária.
Com isso, passamos a ter olhares minuciosos sobre vários aspectos da produção e principalmente da
reprodução da vida e o papel desempenhado pelas mulheres, que é uma das chaves para a manutenção,
permanência do status quo e racismo no Brasil.
Atrelado a isso, as igrejas, juntamente com o estado, assumiu um papel fundamental, o de formar
consciência equivocada de classe, desencadeando o problema do lugar da religião no espaço público.
A sensação que temos vivenciado no país, com a pandemia da covid-19, é o de sentir medo todos os dias,
com isso, muitos são os reflexos e o prejuízo na nossa saúde mental, porém as crianças e mães das favelas do Rio
de Janeiro convivem em constante pandemia, desde que nascem, assim como as mães palestinas, na faixa de
Gaza! O que elas têm em comum?!

DESENVOLVIMENTO
Enfrentamos na atual conjuntura mundial e brasileira, o retrocesso de várias conquistas histórias,
garantidas pela luta dos defensores/as de Direitos Humanos, sobretudo as relacionadas ao gênero e na vida das
mulheres, que neste período de pandemia e sempre que ocorre qualquer agravamento de crises, é sobre o corpo

14 Disponível em: https://www.brasil247.com/cultura/chaui-classe-media-e-fascista-violenta-e-ignorante. Acesso em 17


de mar. 2020.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 33

da mulher, o peso. Como bem afirmava Simone de Beauvoir, já no século XX, “Basta uma crise política,
econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados” (BEAUVOIR, 1949, p. 29). É
preciso estar sempre atentas e vigilantes! A atenção deve ser constante.
Porém, essa realidade de conviver em meio a angustias e medos diariamente e de maneira intensa aqui no
Brasil, não é um fenômeno da pandemia e logo que a mesma “acabar”, não será resolvido, até porque em algumas
partes do país, conviver com a violência se transformou em algo comum e corriqueiro, como para a população
do Rio de Janeiro, sobretudo as crianças e mães que vivem sob fogo cruzado nas favelas do Rio. E igualmente,
como as pessoas não conseguem sentir solidariedade e nem se colocar no lugar de quem sofre na pele a dor da
perda devido aos números de mortes durante a pandemia, e também não se sensibilizam com as mortes ocorridas
nas favelas, ambas, os números são estarrecedores e isso tem um ponto em comum: Fake News! – A disputa de
narrativa com a população é enorme – Da mesma forma como foi construída a ideia de que a covid-19 se tratava
de gripezinha, é dito aos cariocas e difundida ao Brasil que: bandido bom é bandido morto!
Mas também, é importante elencar aqui, que não se trata do debate de que: isso é Brasil! Não! Por isso,
trago o exemplo das Mães Palestinas, para reafirmar a falência das estruturas criadas pelo sistema vigente no
mundo, o capitalista e que por esse motivo, além do direito perdido à maternidade, as mães cariocas e palestinas,
dentre tantas outras vivem em constante pandemia, porque precisam lidar com a interferência do próprio estado
e de países “desenvolvidos” em seus territórios, disputados por interesses que não são parte da sua realidade e
nem das necessidades destas crianças e mães! Os resultados destas disputas estão pessoas inocentes, que perdem
o direito a vida, em meio a bombardeios, e derramamento de sangue de seus filhos, principalmente.
A recente chacina de Jacarezinho/RJ (2021) deixou muito explicito que o interesse principal da “ação
policial”, não era o combate ao trafico em si, pois das 25 pessoas assassinadas, a maioria não era sequer suspeitas,
nos indicando que a tentativa era de interferência e extermínio de um grupo em favor de outro, que o país já
conhece de cor: milícia!
Portanto, a pandemia em si, não é o problema, em vista ao cenário histórico de discriminações de gênero
e políticas que perpetuam o sexismo e o racismo estrutural, principalmente no Brasil. Mas as confluências das
crises atuais, possuem um grande potencial para catalisar os efeitos sobre a vida das mulheres e as suas diversas
intersecções, e mais, criar novos formatos, aprofundando as desigualdades já existentes.
É importante fortalecer e massificar a força tarefa de vários pesquisadores/professores que estudam o tema
das milícias no Rio de Janeiro e trazer todas as ciências e não ciências para esse debate, como a filosofia, para
que contribua massivamente na discussão sobre as estruturas de poder e a vida das mulheres neste contexto, com
olhares atentos sobre classe, estado e religião, que vem sendo abordados por várias pensadoras, é essencial na
busca pela retomada do estado de direitos e conquistas, ao qual vínhamos alcançando, embora a passos lentos.
Evidenciar as novas dinâmicas de flexibilização e restrições de direitos e, também, pleitear políticas específicas
de gênero, com perspectiva étnico-racial, para garantir a equidade nas ações de enfrentamento a este cenário pode
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 34

e deve ser o papel da filosofia crítica e na verdade, de todo campo de conhecimento precisa estar aliado e pode
ser que ainda seja pouco!
A tarefa de reconstrução do país, pós-pandemia ou pós-guerra, precisa ser uma tarefa de todos, e acredito
que para além da economia, que é o setor que mais se preocupam os homens que coordenam a política, penso
que aprofundar o estudo sobre essas três estruturas fortes das sociedades sejam capitalistas ou socialistas e a sua
relação com o trabalho das mulheres: estado, família e igrejas; sejam cruciais. O modelo de estado que temos
hoje, ainda é dominado pelo estilo de estado absolutista, que separa política – economia e é opressor (Dominação
e coerção). E as nossas famílias, da mesma forma, seguem um modelo e uma doutrina. Quais as transformações
necessárias a esta família, para que não seja uma instituição de transferência de traumas e violências?

Se se pretende encarar o processo de emancipação econômica da mulher tornando-


se a família como estrutura chave, como determinante, tem-se de um lado, que, no
conjunto da sociedade, não se obteve da separação entre a sexualidade e reprodução
e nem se resolveu a questão da socialização dos imaturos. (SAFFIOTI, 2013, p. 127).

Também, faz-se muito necessário, possibilitar, encorajar e ressaltar a importância das mulheres
escreverem, sobre todos estes temas e cada vez mais ampliar o alcance e consciência do papel da mulher na nossa
sociedade, título do livro da Heleieth Saffioti. É um árduo caminho e precisamos percorrer!

Apontamentos e Dica de Leitura


As motivações centrais para a escrita deste texto surgiu em meio à pandemia, primeiro pela observação
feita na introdução, dos vários debates que vieram à tona sobre a importância do trabalho doméstico, medos,
violências. A outra motivação surgiu da leitura, também na pandemia, do livro da Wendy Goldman: Mulher,
Estado e Revolução, em que ela trás em sua escrita, seu olhar atento para as questões que as mulheres enfrentaram
no período da Revolução Russa e que ao verificar o caos que vivemos hoje, elas continuam latentes: Até onde o
estado contribui de maneira efetiva para a promoção e desenvolvimento da vida e o quanto este mesmo estado
transfere para as famílias estas responsabilidades e dentro do núcleo familiar, quem carrega “nas costas” o peso
para que toda essa engrenagem funcione? Novamente encontraremos a resposta em uma palavra: Mulheres!
Indico que nós mulheres, durante essa pandemia e pós, possamos nos aprofundar cada vez mais sobre o
estudo dos clássicos de autoras, filósofas, marxistas que se debruçam a entender os nós que sustentam os vícios
e manutenção do patriarcado em nossa sociedade, voltando-se também para as especificidades da América Latina.
E mais importante ainda, é que não venceremos essa batalha, sozinhas, já nos dizia Simone de Beauvoir: “O
problema da mulher sempre foi o problema dos homens”, portanto, ter nítido que os homens precisarão cada vez
mais ter essa demanda em mente, para que seja uma demanda populista e demandada por toda a sociedade, pois
para o filósofo Ernesto Laclau, se a demanda é a mesma, não há como haver divergências e dignificar a palavra
populismo, para que não deva ser apropriado por um tipo de movimento ou partido específico, mas ser entendido
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 35

como uma lógica política de formação social, a partir das massas e manifestações populares. O feminismo precisa
ser uma demanda populista e estar cada vez mais próximo de todas as mulheres, famílias de todas as classes
sociais. Essa pauta não pode se restringir somente em torno da liberdade do corpo, principalmente em um país
tão desigual como o Brasil. As mulheres que já alcançaram conquistas, não podem achar que agora está tudo
bem, porque não está e não estará até que todas estejam usufruindo do básico à manutenção da vida.
No caso do livro: mulher, estado e revolução, a autora partiu de um estudo minucioso, entre os anos que
iniciaram a revolução russa de 1917 até os anos de 1936. Durante toda a leitura é perceptível, que neste período,
se buscava avançar em vários debates, que nós nem ousamos tocar nos dias de hoje, pois ainda são vistos como
tabus, como a questão do amor livre, libertação das mulheres, porém em muitas das vezes, em meio aos relatos
do livro foi possível compreender a difícil relação entre a vida cotidiana e os ideais da revolução. Para muitas
autoras, Wendy é vista como uma anarquista, mas deixando essa caracterização de lado, penso que a leitura do
livro aponta várias chaves, para pensar os desafios em torno da libertação e emancipação das mulheres em
qualquer que seja a sociedade.
Moralmente não é mais possível fechar os olhos para o papel que a religiosidade tem avançado no Brasil
e o quanto ela tem se alinhado com o poder das milícias, além de cristalizar a imaturidade das pessoas, e a quem
interessa a ingenuidade de muitos? A igreja assumiu o papel de formar a consciência das pessoas, tirando da
filosofia, outras ciências e escola essa contribuição. Como reassumir esse local de fala?
Sabe-se da responsabilidade dos homens e estado sobre os corpos das mulheres, esse ponto é muito bem
apresentado no livro com apontamentos logo no início do livro são as discursões trazidas pelos revolucionários
homens em reconhecer que as mulheres deveriam ter mais espaço na vida pública, mas que as tarefas domésticas
as impediam, porém eles não apontavam como solução a divisão das tarefas, como já naquele tempo era pauta de
reivindicação das mulheres feministas; A solução encontrada por eles era transformar todos os serviços
domésticos em públicos: creches, lavanderias, restaurantes... Porém ao enfrentarem períodos de guerras em que
vários dos homens morreram em combate e devido a isso, passaram por enormes tempos de fome e dificuldade
financeiras. Novamente o estado e os homens deixaram a responsabilidade para a família, ou seja, para as
mulheres e crianças!

Lênin obviamente desprezava o trabalho doméstico. Argumentava que “a verdadeira


emancipação das mulheres” deve incluir não somente igualdade legal, mas também
“a transformação integral” do trabalho doméstico em trabalho socializado. Kollontai
também argumentava que sob o socialismo todas as tarefas domésticas seriam
eliminadas e o consumo deixaria de ser individual e restrito à família. A cozinha
particular seria substituída pelo refeitório público. A costura, a limpeza e a lavagem,
assim como a mineração, a metalurgia e a produção de maquinário, se transformaria
em ramos da economia do povo. (GOLDMAN, 2014, p. 23).
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 36

Investigar a família e qual o seu papel, pois, no livro, o estado não foi capaz de sustentar as ideias propostas
pelos revolucionários! Várias mulheres tiveram que carregar sozinhas a carga de manter a própria sobrevivência
e de seus filhos e devido a isso, várias destas crianças órfãs só de pai ou de ambos passaram a viver nas ruas, sem
perspectivas, originando um problema crônico ao país, ao qual eles não conseguiam dominar. Das várias
tentativas de mudanças na Rússia, observou-se:

Os princípios básicos da política de bem-estar sócia foram desenvolvidos sob severas


restrições impostas por uma economia arruinada. Embora educadores sonhassem
com cidades de crianças onde toda criança pudesse ser “um artista compositor”, já
em 1921 as crianças eram alojadas em famílias de camponeses onde enfrentavam
vidas de trabalho sem fim, pobreza e exploração. O decreto de 1926 simplesmente
codificou o resultado final de uma década de luta entre visão e a realidade [...]. A
família foi ressuscitada como solução para o besprizornost15 porque era a única
instituição que podia alimentar vestir e socializar a criança com um custo quase nulo
ao Estado16. (GOLDMAN, 2014, p. 140).

A leitura é forte e trás fotos desta época e que se assemelha a muitas situações enfrentadas pelas mulheres
negras e trabalhadoras domésticas do nosso país, que além da sobrecarga do trabalho, ainda driblam a violência
policial em que seus filhos são submetidos diariamente, inclusive, identifiquei muitas das questões parecidas ao
que o Rio de janeiro enfrenta em relação ao “trafico em estado crônico”, eu diria, mas não necessariamente o
estudo teria o foco neste estado – utilizo esse exemplo como uma possível chave de reflexão. Não é possível
entender o Brasil, senão aprofundarmos cada vez mais, as ligações realizadas entre os homens nas esferas do
estado, família e igreja sobre as vidas das mulheres. É preciso falar!
Vivemos em uma encruzilhada em que o estado, as igrejas e os homens lutam diariamente para manter o
papel da família, principalmente da família de classe média de forma intacta e imaculada, quando na verdade ela
é um caldeirão de reprodução de várias violências, formadora de preconceitos e pagadora de impostos. Por outro
lado, as famílias das mães abandonadas e que precisam criar sozinhas seus filhos, perdendo-os para as drogas,
prostituição e crimes, não são vistas como famílias e podem ser destruídas, aqui estão principalmente às
trabalhadoras domésticas, negras e nordestinas.
Sabemos a quem interessa a manutenção da família, mas assim como no livro da Wendy, no século
passado, a destruição da família propostas pelos revolucionários, não era defendida pelas mulheres pobres e
camponesas, pois elas não conseguiriam criar sozinhas, os filhos e no Brasil de hoje vivenciamos este mesmo
dilema e precisamos urgente debater com profundidade sobre ele.
O livro que trouxe o “olhar da mulher” sobre a revolução, mesmo que para muitas filósofas, essa expressão
soa estranha, mas de fato, essa visão aprofundada e detalhada nos mostra a importância de espaços em que

15 Palavra utilizada, na época, para designar crianças órfãs.


16 Grifo meu.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 37

mulheres debatem sobre mulheres e mais ainda, escrevem, pois ninguém melhor que as próprias mulheres, para
saber apontar os caminhos para a libertação delas (nossa) e a dos filhos/as. Em palestra à Sociedade Nacional de
Auxílio às Mulheres, em 21 de janeiro de 1931, Virginia Woolf fez reflexões sobre as possibilidades femininas
no século XX, em que apontou na literatura, um caminho possível para expor o pensamento das mulheres, e disse:
"Escrever era uma atividade respeitável e inofensiva. O riscar de caneta não perturbava a paz do lar" (WOOLF,
1942, p. 10). Porém, como nada é simples ou fácil na vida das mulheres, ao iniciar esta experiência, já notara as
dificuldades: "Na hora em que pus a caneta no papel, percebi que não dá para fazer nem mesmo uma resenha
sem ter opinião própria, sem dizer o que a gente pensa ser verdade nas relações humanas, na moral, no sexo"
(WOOLF, 1942, p. 13). Na obra: Um Teto Todo Seu, a autora exibe as dificuldades impostas às mulheres de sua
época e, ainda mais, às suas antecessoras para escrever e ter sucesso. Nada de novo ao que somos submetidas nos
dias atuais.
Diante isso, apontar novamente a relevância das mulheres escreverem, é notório, pois só se debate sobre
o que está escrito e só assim se consegue avanços no engajamento de processos de participação social, como
forma de colocar nosso olhar sobre as várias questões que envolvem nossa vida e as dos nossos, bem como, para
o aprimorarmos das políticas públicas.

CONSIDERAÇÕES
O patriarcado esteve na origem e formação do estado, bem como as outras estruturas de poder vigente em
nossa sociedade, ou seja, está na raiz de praticamente todas as relações que vivemos. Cada criança que nasce se
depara com essa forma de relação pré-estabelecidas, mas é preciso saber que em alguns lugares do mundo e até
mesmo no país onde vivemos, há diferenças de realidades e por isso o feminismo não é absolvido por boa parte
da população, nem mesmo pelas mulheres. Há que se lutar por liberdade do corpo, debater sobre aborto, mas
também apontar as fissuras e desafios dos muitos feminismos difundidos e pregados! As pessoas precisam ser
preparadas para receber determinadas pautas, isso é fato!
Após várias leituras nesta pandemia (e olhe que já me considero feminista desde 2011), pude perceber o
quão rasas ainda está nossa inserção entre as mulheres das classes trabalhadoras, mas também das classes da
burguesia, entre as mulheres casadas e solteiras, mães ou não. O feminismo que defendemos e lutamos, precisa
estar atentas às demandas de todas, porque há diferenças, porém todas são legítimas e as mesmas dificultam o
nosso ingresso no mundo do trabalho e na sociedade de classes, como bem afirmou Heleieth: “Pode-se afirmar
que as possibilidades de integração da mulher na sociedade de classes, variam em razão inversa do grau de
desenvolvimento das forças produtivas”, e por isso reafirmamos que todos os problemas das mulheres, são os
mesmos dos homens, com isso, essa demanda deve ser pautada igualmente por ambos.
Para finalizar, por enquanto, acredito que para conseguirmos ao menos iniciar as transformações na
sociedade, que desejamos, é preciso vencer algumas etapas em torno da estratégia de emancipação da mulher: 1.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 38

Aumentar vertiginosamente o ingresso e protagonismo das mulheres nas instancias de decisões (Todas); 2.
Independência financeira e 3. O mais desafiador de todos: Economia Doméstica. Ter sempre em mente que as
conquistas não podem ser encaradas como vantagens de uma parcela das mulheres em relação a outras. A
luta continua independente das nossas conquistas individuais!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENDT, H. (1995). A Condição Humana. [tradução de Roberto Raposo; posfácio de Celso Lafer]. 7ª ed. Rio
de janeiro: Forense Universitária, 2007.
BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo I– Fatos e Mitos. [tradução de Sérgio Milliet]. 4ª ed. São Paulo ; Difusão
Europeia do Livro.
BEAUVOIR, S. O Segundo Sexo II – A experiência vivida. [tradução de Sérgio Milliet]. 2ª ed. São Paulo ;
Difusão Europeia do Livro.
LACLAU, Ernesto. A razão populista. São Paulo: Três Estrelas, 2013.
FEDERICI, S. Calibã e a bruxa ; mulheres, corpo e acumulação primitiva ; [tradução Coletivo Sycorax]. São
Paulo ; Elefante, 2017.
GOLDMAN, W. Z. Mulher, Estado e Revolução : política familiar e vida social soviética, 1917 – 1936 ;
[tradução Natália Angyalossy Alfonso, com colaboração de Daniel Angyalossy e Marie Christine Aguirre
Castañeda]. – 1 ed. – São Paulo : Boitempo ; Iskra Edições, 2014.
SAFFIOTI, Heleieth. A mulher na sociedade de classes. – 3 ed – São Paulo : Expressão Popular, 2013.
WOOLF, V.. Profissões para mulheres e outros artigos feministas. Porto Alegre: L&M, 2013.
______. Um teto todo seu. São Paulo: Nova Fronteira, 1985.

BIOGRAFIA DA AUTORA
* Graduada em Agronomia pela Universidade Federal do Cariri – UFCa. Possui experiência junto aos
movimentos sociais, mistos e de mulheres. Atuando em temas relacionados aos Direitos Humanos, com ênfase
no Direito Humano à alimentação, Feminismo, Educação Popular e produções que busquem refletir sobre as
relações nos espaços públicos e privados. Atualmente presta serviços como mobilizadora social - AEDAS/MAB,
em Brasília.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 39

CAPÍTULO 4
ENTRE NOTAS E MELODIAS:
O FEMINISMO E AS FASES DE AMÉLIA

EMANUELLY WOUTERS SILVA

CONCEPÇÕES INICIAIS
Música não é apenas uma manifestação cultural, é artefato cultural. Nas muitas ondas sonoras em que
percorre, nos mais diversos espaços preenchidos com melodias e palavras combinadas, quando reproduzida, não
apenas reproduz-se, mas ensina algo a alguém. Músicas “são práticas de representação, inventam sentidos que
circulam e operam nas arenas culturais onde o significado é negociado e as hierarquias são estabelecidas”
(COSTA, SILVEIRA e SOMMER, 2003, p. 03). É por meio da música, como um artefato cultural, que:
“Particulares visões de mundo, de gênero, de sexualidade, de cidadania entram em nossas vidas diariamente”
(COSTA, SILVEIRA e SOMMER, 2003, p. 22). Os referidos autores apontam a música como parte de um
Currículo Cultural, o qual refere-se às representações que as diferentes maquinarias (incluindo a música) colocam
em circulação.
É diante da constatação que músicas ensinam, que decidi analisar a música “Desconstruindo Amélia”, da
cantora Pitty, a fim de discutir a mulher representada na música à luz do feminismo. Portanto, a música referida
é o objeto de estudo deste artigo, no qual tenho como objetivo analisar a mulher representada na música
“Desconstruindo Amélia” sob a ótica do movimento feminista e discutir a música enquanto instrumento
metodológico. Como metodologia, utilizo Análise de Conteúdo e Pesquisa Bibliográfica.
Assim, neste trabalho, analiso os trechos da música e discuto como instrumento que pode ser utilizado na
escola para trabalhar a importância do feminismo para libertar e desconstruir estereótipos, o que inclui o estudo
dos padrões normativos, da história do feminismo, entre tantos outros debates que são fomentados com esse
assunto. Desse modo, além da parte introdutória (Concepções iniciais), da Metodologia e das Considerações
Finais, o desenvolvimento deste trabalho, intitulado “Desenvolvimento do Estudo: Pesquisa Bibliográfica e
Análise de Conteúdo” está organizado em quatro subcapítulos:
I.No primeiro, apresento um parágrafo que justifica o uso do termo central deste estudo: mulher.
II.No segundo, apresento algumas discussões sobre o movimento feminista.
III.No terceiro, analiso a mulher representeda na música “Desconstruindo Amélia”, enquanto artefato cultural.
IV.No quarto e último, discuto a importância de discussões de gênero e sexualidade na escola e a música
enquanto instrumento educativo.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 40

METODOLOGIA DO ESTUDO
O objeto deste estudo é a música “Desconstruindo Amélia”. O objetivo é analisar a mulher representada
na música “Desconstruindo Amélia” sob a ótica do movimento feminista e discutir a música enquanto
instrumento metodológico. Como metodologia, utilizo Análise de Conteúdo (CAMPOS, 2004; TAETS e
BARCELLOS, 2010) para analisar o artefato cultural e Pesquisa Bibliográfica (LIMA e MIOTTO, 2007) para
aportar as discussões sobre feminismo e sobre a música enquanto instrumento metodológico.
Análise de Conteúdo é definida por Campos como “um conjunto de técnicas de análise das comunicações,
que utiliza procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens” (2004, p. 02) e pode
ser dividida em três fases: a primeira é a pré análise, a segunda é a exploração do material; e a terceira é a
interpretação e inferência dos dados coletados (TAETS e BARCELLOS, 2010). Na pré análise realizei uma busca
por músicas com uma ou mais mulheres que possibilitassem o desenvolvimento de uma análise de sua(s)
representação(ões). Posteriormente, selecionei a música “Desconstruindo Amélia” e desenvolvi a exploração do
material, com uma leitura prévia e separação dos trechos. Por fim, realizei a última etapa de interpretação e
inferência, exposta no desenvolvimento deste estudo.
Para discutir o feminismo e a música enquanto instrumento metodológico, desenvolvi uma Pesquisa
Bibliográfica que é realizada com livros, artigos, etc., a qual “possibilita um grande alcance de informações”
(LIMA e MIOTO, 2007, p. 04) e que devemos seguir passos e critérios para desenvolvê-la. Os critérios que defini
incluem a delimitação do tema acima referido e, posteriormente a seleção dos artigos de Costa (2002), Narvaz e
Koller (2006), Viana, Rosa e Lima (2019), para tratar sobre o feminismo, e Santana (2016) e Seffner (2018;
2020), para abordar a música enquanto instrumento metodológico educativo. Além destes critérios, realizei uma
leitura detalhada dividida em cinco fases: localização do material; exploração do material; seleção do material;
reflexão sobre o material; e interpretação do material (LIMA e MIOTO, 2007)
Diante disso, a seguir apresento o desenvolvimento, que engloba os resultados da Pesquisa Bibliográfica
sobre o Movimento Feminista e sobre a música enquanto instrumento metodológico. Bem como, a Análise de
Conteúdo, guiada por concepções sobre Amélia, segundo o meu olhar para essa música e na minha concepção,
uma figura que representa a mulher antes e depois do feminismo. O que a mulher era e o que a mulher é, o que
podia e o que pode.

DESENVOLVIMENTO DO ESTUDO: PESQUISA BIBLIOGRÁFICA E ANÁLISE DE CONTEÚDO


O presente capítulo representa o desenvolvimento deste trabalho, no qual exponho os resultados da Análise
de Conteúdo e da Pesquisa Bibliográfica. Inicialmente, justifico o uso de “mulher” para denominar Amélia e
aportar as demais discussões. A seguir, discuto o movimento feminista, que representa parte da Pesquisa
Bibliográfica, tendo como referencial Narvaz e Koller (2006), Viana, Rosa e Lima (2019). Após, apresendo o
resultado da Análise de Conteúdo, analisando Amélia. Por fim, discuto a música enquanto instrumento educativo,
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 41

representando outra parte da Pesquisa Bibliográfica, desenvolvida a partir das concepções de Santana (2016) e
Seffner (2018; 2020).

Breve parágrafo que dá sustentação à narrativa


Segundo Costa, há teóricas feministas que não autorizam a utilização do termo mulher para se referir ao
sujeito feminino, baseadas no ponto de vista de que esse termo se apoia “em uma concepção humanista do sujeito
feminino, centrada, unificada e autêntica, amarrada a sua identidade essencial como mulher” (2002, p. 10).
Contudo, a mesma autora (2002) escreve que não podemos falar sobre feminismo sem a figura da mulher, não se
pode exigir nada para as mulheres se não houverem mulheres e que “a “mulher” é uma categoria histórica e
heterogeneamente construída dentro de uma ampla gama de práticas e discursos, e sobre as quais o movimento
das mulheres se fundamenta” (2002, p. 14). Para Jéssica Ferrara: ““mulher” é apenas mais um nome simbólico.
Um nome semelhante à différance, que também nomeia um duplo movimento de adiamento, deslocamento para
o futuro, enquanto esse mesmo deslocamento presume um ininterrupto processo de diferenciação” (2019, p. 03,
grifo da autora). Por isso, neste escrito, a posição que assumo é de utilizar mulher, para discutir o feminismo e o
artefato cultural analisado – a música -, considerando que Amélia representa as mulheres.

Palavras acerca do movimento feminista


O movimento feminista faz parte das discussões de gênero que permeiam a história. Neste movimento,
discute-se o patriarcado, as desigualdades advindas “de uma cultura patriarcal [...] e coloca em pauta o salário
inferior comparado ao dos homens, a falta de divisão dos afazeres domésticos, a criação dos filhos, a participação
política” (VIANA, ROSA e LIMA, 2019, p. 02).
Diante disso, o feminismo representa evolução, representa, ainda que a passos lentos, a libertação da
mulher deste sistema patriarcal e de um padrão que foi construído no qual a mulher nascia para ser mãe, dona de
casa e servir ao marido. Padrão esse que impedia a mulher de frequentar lugares, de usar algumas roupas, de se
comportar como queria, de estudar, de trabalhar, de votar e de participar de decisões até mesmo dentro de casa.
Nesse viés, “o movimento feminista se mostra como interlocutor junto ao Estado, legitimando os direitos e
denunciando a opressão cultural construída historicamente para silenciar as mulheres” (VIANA, ROSA e LIMA,
2019, p. 03).
O feminismo passou por três gerações (ou três ondas) com diferentes características e propostas que
constituíram o feminismo (NARVAZ e KOLLER, 2006), sendo que alguns estudiosos acreditam existir uma
quarta onda (VIANA, ROSA e LIMA, 2019). Aqui, falarei das três ondas do ponto de vista das referidas autoras.
O movimento feminista surgiu na primeira geração, representando um movimento liberal em que as
mulheres lutaram pela “igualdade de direitos civis, políticos e educativos, direitos que eram reservados apenas
aos homens (NARVAZ e KOLLER, 2006, p. 04). Segundo Viana, Rosa e Lima, nesta primeira onda: “A mulher,
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 42

antes vista como ser do lar e feita para procriar, tem questionado a imposição dos papéis submissos destinados a
elas” (2019, p. 05). Foi então, que lutaram pelo direito ao voto e ficaram conhecidas como sufragistas, no Brasil,
lideradas por Bertha Lutz, defendiam “que homens e mulheres são iguais em relação à capacidade moral e
intelectual, e, portanto deveriam ter as mesmas oportunidades para trabalhar, estudar e participar da esfera
pública” (2019, p. 05).
Na segunda fase/geração/onda, as americanas enfatizavam a luta contra a opressão, enquanto as francesas
procuravam destacar as diferenças entre homens e mulheres, ou seja, a subjetividade. Esse movimento das
francesas foi o que prevaleceu nessa fase, alavancando a importância da equidade acima da igualdade-diferença
(NARVAZ e KOLLER, 2006). Nesse período “começou a se construir uma base teórica sobre a opressão contra
a mulher, justificada pela condição biológica e função reprodutiva” (VIANA, ROSA e LIMA, 2019, p. 07), uma
das principais preocupações era o fim da discriminação e desigualdade entre os gêneros.
Na terceira fase/geração/onda surgem discussões acadêmicas sobre essas diferenças, sobre a subjetividade
e, assim, essa fase caracteriza-se por uma “intersecção entre o movimento político de luta das mulheres e a
academia” (2006, p. 03, grifo meu). Para Viana, Rosa e Lima, nessa onda, o objetivo do feminismo “passa a ser
então o reconhecimento de diversas identidades femininas e olhar crítico sobre as estratégias e organização das
pautas feministas” (2019, p. 10).
Nesta última onda, foram problematizadas as “teorias essencialistas ou totalizantes das categorias fixas e
estáveis do gênero”, totalizantes porque havia a concepção de que existia uma forma única de ser mulher/homem
“como se existisse uma essência naturalmente masculina ou feminina inscrita na subjetividade” (NARVAZ e
KOLLER, 2006, p. 04). A partir disso, surgem novas concepções de gênero, sustentando o repudio a estas teorias
essencialistas ou totalizantes e dando espaço para que não se houvesse uma única forma de ser mulher.
Concebemos, então, que o feminismo começou a questionar os padrões definidos para homens e mulheres.
Quando as mulheres começaram a questionar esses padrões, abriram caminhos para nos libertarmos das diferentes
formas de opressão e adquirir direitos que antes não tinham. Para Viana, Rosa e Lima:

Justifica-se a importância de reconstruir a história sobre as mulheres, a partir de


lembranças, experiências e vivências dos movimentos feministas, e seu papel
na organização e constituição de uma história que teve como protagonistas as
mulheres. Estas deixaram suas marcas nas lutas cotidianas em suas várias
dimensões e níveis, assim como em diferentes lugares e momentos históricos (2019,
p. 03).

As lutas feministas possibilitaram que as mulheres pudessem escolher ser mães ou não, serem esposas ou
não, que pudessem estudar, trabalhar e ser donas de sua vida, deixando de se submeter ao padrão imposto pelo
patriarcado. Assim, as mulheres puderam parar de sofrer com normas impostas, com estereótipos e com todas as
formas de opressão derivadas de uma sociedade essencialmente normativa que considera(va) que existe apenas
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 43

uma forma de ser mulher. Foram feministas que conquistaram o “direito a estudar”, “políticas públicas voltadas
para a mulher”, além de “vários exemplos de conquista e institucionalização de pautas feministas, tanto no espaço
público quanto no privado, que permitem o reconhecimento da capacidade feminina” (VIANA, ROSA E LIMA,
2019, p. 04).
Diante disso, a seguir, apresento Amélia, segundo o meu olhar para essa música e na minha concepção,
uma figura que representa a mulher antes e depois do feminismo. O que a mulher era e o que a mulher é, o que
podia e o que pode.

Amélia e sua música


A música “Desconstruindo Amélia” foi composta em 2009 pela cantora Priscilla Novaes Leone (Pitty) e
por Martin Mendonça, sendo Pitty quem a interpreta. A música é a faixa 7 do álbum de Chiaroscuro (CRUZ,
BITENCOURT e CARNEIRO, 2016).
Amélia, da música exposta no quadro 1, representa uma mulher presa ao estereótipo de mulher de acordo
com os padrões supracitados e, posteriormente se liberta dessas amarras e se torna uma mulher livre. Neste
subcapítulo, analisarei as duas fases da mulher representada na música.

Quadro 1: Música Desconstruindo Amélia, Pitty

PARTE 1 REFRÃO PARTE 2

Já é tarde, tudo está certo A despeito de tanto mestrado


Cada coisa posta em seu lugar Ganha menos que o namorado
Filho dorme, ela arruma o uniforme Disfarça e segue em frente todo dia até cansar E não entende o porquê
Tudo pronto pra quando despertar E eis que de repente ela resolve então mudar Tem talento de equilibrista
Vira a mesa, assume o jogo, faz questão de se cuidar
Ela é muitas, se você quer saber
O ensejo a fez tão prendada Nem serva, nem objeto, já não quer ser o outro
Ela foi educada pra cuidar e servir Hoje ela é um também Hoje aos 30 é melhor que aos 18
De costume, esquecia-se dela Nem Balzac poderia prever
Sempre a última a sair Depois do lar, do trabalho e dos filhos
Ainda vai pra night ferver

Fonte: Elaborado pela autora, 2021.

Assim, notamos que a música apresenta duas fases no que se refere à mulher expressa: a primeira parte,
de uma mulher oprimida vivendo conforme foi educada sem pensar em si mesma; e a segunda parte, de uma
mulher que se libertou, mas que não precisou abandonar os hábitos, apenas desconstruir-se e adquirir novos
hábitos que transformaram sua maneira de viver.
Na primeira parte da música, observamos que a mulher representada é dona de casa, mãe, prendada e foi
“educada para cuidar e servir”. Essas características ficam explícitas quando diz-se que tal figura deixou tudo
pronto, aparentemente sobre a organização da casa, pôs o filho pra dormir e deixou uniforme pronto pra quando
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 44

acordar. Essa primeira parte apresenta uma Amélia vivendo um papel “que ainda se encontra embebido nos
valores patriarcais fortemente vistos nos anos 40, no qual, o estereótipo da mulher perfeita era a que se resignava
veementemente ao lar” (CRUZ, BITENCOURT e CARNEIRO, 2016, p. 03). Como dito anteriormente, esta é
uma mulher presa em estereótipos, não porque cuida da casa e dos filhos, mas porque, logo, a música sugere que
é “prendada” e “educada para servir”, além do problemático, “esquecia-se dela”.
Em seguida vem o refrão. O refrão marca uma mudança de comportamento e passa a representar uma
mulher diferente. A primeira frase diz respeito à primeira fase de Amélia, representada anteriomente, “Disfarça
e segue em frente todo dia até cansar”, como se precisasse disfarçar que estava contente em viver assim e em não
pensar em si, ou, simplesmente, disfarçar que está tudo bem. A próximas frases do refrão mostram o início de
uma nova fase para essa mulher: “E eis que de repente ela resolve então mudar; vira a mesa, assume o jogo, faz
questão de se cuidar”, insinuando que Amélia precisou de mudança e decidiu fazê-la para que pudesse então
cuidar de si mesma. Por fim, o mais tocante, “Nem serva, nem objeto, já não quer ser o outro; hoje ela é um
também”, a mudança trouxe para Amélia a esperança de não ser só mais uma mulher presa, de não ser serva, de
não ser objeto, por isso, hoje ela é um também, hoje ela é livre.
Na segunda fase da música, após o refrão, vemos também uma nova Amélia, como consequência da
mudança expressa no refrão. Podemos observar que estudou, acompanhado de uma crítica que, mesmo com muito
estudo, ganha menos que o “namorado”, representando uma figura masculina. Observamos, também, com “tem
talento de equilibrista” que essa nova mulher decidiu ser muitas, fazer muitas coisas, que não é mais serva, que
não é mais prendada, que percebeu que podia ser diferente e não precisava se limitar. Com isso, amadureceu e
“aos 30 é melhor que os 18”. A última parte merece ganhar destaque: “Depois do lar, do trabalho e dos filhos;
Ainda vai pra night ferver”, pois Amélia não abandonou os filhos, Amélia não abandonou o lar, Amélia só
percebeu que podia ser muito mais e que ser mãe e do lar não a impedia de cuidar de si, de se divertir, de estudar,
de ser crítica, “hoje ela é um também.”
Cruz, Bitencourt e Carneiro (2016) dividem os trechos da música “Desconstruindo Amélia” em dois
tópicos: os que apresentam indicativos de repressão social e os que apresentam indicativos de liberdade social;
expostos no quadro 2, abaixo:

Quadro 2 – Trechos que expressam Repressão Social e Liberdade Social

Repressão Social Liberdade Social


“Cada coisa posta em seu lugar Filho dorme ela arruma o uniforme Tudo
“E eis que de repente ela resolve então Mudar”
pronto pra quando despertar”
“O ensejo a fez tão prendada Ela foi educada pra cuidar e servir”
“Vira a mesa Assume o jogo Faz questão de se cuidar”
De costume esquecia-se dela Sempre a última a sair...”
“Nem serva, nem objeto Já não quer ser o outro Hoje ela é um
também”
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 45

“Disfarça e segue em frente Todo dia até cansar” “Tem talento de equilibrista Ela é muita se você quer saber”
“A despeito de tanto mestrado Ganha menos que o namorado
“Hoje
E não
aos 30 é melhor que aos 18 Nem Balzac poderia prever”
entende porque”
“Depois do lar, do trabalho e dos filhos” “Ainda vai pra night ferver”

Fonte: Adaptado de Cruz, Bitencourt e Carneiro, 2016.

Narvaz e Koller (2006) afirmam que as metodologias feministas objetivam empoderamento, mudança
social, resgate da experiência feminina, o abandono de linguagens sexistas. Portanto, o feminismo empodera,
liberta de estereótipos e de padrões, representando mudança(s) e libertando Amélia(s). Para as autoras:
“Empoderamento é o termo advindo da expressão ‘empowerment’ (Leon, 2000) que remete à capacidade das
mulheres de terem controle sobre suas próprias vidas, inclusive sobre seus corpos (NARVAZ e KOLLER, p. 05).
Diante disso, notamos que Amélia empoderou-se, passou a ter controle sobre sua vida e pensar mais em si.

Tecendo discussões a respeito da música enquanto instrumento educativo


O papel das instituições sociais é de fomentar a possibilidade das pessoas terem vidas livres e escolhas.
Faz parte da proposta deste estudo discutir a música enquanto instrumento a ser utilizado na sala de aula e a
importância de discussões de feminismo e de gênero na escola.
Segundo Seffner, Borrillo e Ribeiro (2018, p. 03) “está cada dia mais claro que as questões de gênero e
sexualidade são primordiais para o entendimento das relações de poder na sociedade”. Os autores afirmam
que essas questões estão presentes nas escolas “nos livros didáticos; nas obras literárias indicadas para as
diversas faixas etárias, incluindo-se aí a educação infantil” (2018, p. 02), o que alimenta a discussão que permeia
o campo educacional sobre os temas que devem ou não ser tratados na escola e a confluência desses temas com
o que a família tem ensinado aos seus filhos.
Para Seffner (2020, p. 04), a escola deve ser um ambiente que debate questões de gênero e sexualidade,
enquanto “local que faz diferença na vida dos jovens” e que debates com esse tema fomentam discussões sobre
projetos de vida e relações, além de proporcionar informações científicas sobre o tema. Segundo o autor: “A
escola tem parcela importante no esforço de construção de meninos e meninas, e isso deve ser feito tomando-se
em conta que ela é um espaço público e ao mesmo tempo um laboratório de preparação para a vida plena na
esfera pública” (2020, p. 09). Assim, a escola deve ser um lugar de aprendizagem para a vida, em que sejam
proporcionados debates que auxiliem os alunos a se compreenderem, se construírem e desconstruírem.

a experiência escolar precisa ser pensada em conexão entre a oportunidade de


alfabetização científica e a oportunidade de educação para as relações sociais. No
caso que nos propomos analisar, interessam as relações sociais onde os marcadores
de gênero e sexualidade entram em ação. A escola deve investir numa educação para
as relações de gênero e sexualidade que se paute pelos ideais republicanos e valores
do espaço público, mais do que pelas tradições familiares (SEFFNER, 2020, p. 13).
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 46

Portanto, sabendo que todos os espaços que frequentam são educativos, a escola deve, também, aportar
aprendizagens que os auxiliem a perceber o que, fora da escola, é válido ou não para a vida e ensinar além do que
se aprende em casa, pois, geralmente, as crenças da família são limitantes. Por isso, a escola assume esse papel
de ensinar além e de proporcionar aprendizagens que formem o aluno integralmente, dos saberes científicos e
para as relações e interações sociais.
Diante disso, dentre as muitas ferramentas e artefatos que podem auxiliar no processo de ensino e
aprendizagem integral do aluno, está a música. Para Santana, a música pode ser utilizada em diversas áreas do
conhecimento, “favorecendo e facilitando a aquisição dos saberes, proporcionando assim aos aprendentes
melhora na autoestima, [...] tornando-os mais preceptivos para a compreensão e elaboração dos conceitos” (2016,
p. 04). A mesma autora afirma que:

A música se constitui elemento necessário em todas as etapas do desenvolvimento


do ser humano, pois afeta a mente, o corpo e as emoções; além de ser lúdica, é
extremamente prazerosa. Quando aliada a Psicopedagogia junto à aprendizagem, a
música auxilia no desenvolvimento do educando, reduzindo níveis de estresse,
ajudando no equilíbrio, trabalhando com a sensibilidade humana (SANTANA, 2016,
p. 20).

Nesse viés, concebemos que a música pode ser um instrumento utilizado para trabalhar questões de gênero
e sexualidade, a fim de auxiliar os educandos a construírem conceitos, além de que a música é, também, uma
ferramenta que desperta o interesse de crianças e adolescentes e: “Faz parte da educação desde muito tempo,
sendo que, na Grécia antiga, era considerada fundamental para a formação dos futuros cidadãos” (2016, p. 09).
A música “Desconstruindo Amélia” pode ser utilizada para fomentar debates sobre a figura da mulher
apresentada nas duas fases da música. Com ela, pode-se discutir o conceito de mulher, trabalhar sobre o
feminismo, sobre as formas de opressão, sobre a normatividade, sobre padrões, sobre estereótipos, sobre escolhas,
sobre gênero, sobre sexualidade, entre outros; ou seja, faz parte da formação científica e social dos alunos.
Seffner, Borrillo e Ribeiro (2018, p. 01) afirmam que há um agito no cenário musical brasileiro
proporcionado por artistas que “trazem em seus corpos atravessamentos de gênero e sexualidade”, além de
diversas músicas que expressam questões relacionadas a “desempenhos de gênero e sexualidade, o que gera um
fluxo contínuo de debates”. Nessa perspectiva, não é apenas “Desconstruindo Amélia” que pode ser utilizada e
discutida, mas outras tantas músicas que não expressam só a figura da mulher, mas permitem discutir questões
atravessadas pelo grande tema gênero e sexualidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer do texto, foi possível compreender a mulher representada na música “Desconstruindo
Amélia” à luz de discussões sobre o movimento feminista, bem como, a relevância do uso da música enquanto
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 47

instrumento metodológico. Isto porque, Amélia representa uma mulher que viveu duas fases distintas, na primeira
era oprimida pelo sistema e, na segunda, livre. Assim, foi possível articular ao movimento feminista, que
possibilitou esta “libertação”. Após, pode-se perceber a música enquanto um importante instrumento
metodológico que chama atenção dos alunos por ser diferente dos instrumentos mais tradicionais, além de
alavancar a discussão de diferentes temas, dentre os quais, utilizando a música referida como exemplo, destacam-
se: o conceito de mulher, trabalhar sobre o feminismo, sobre as formas de opressão, sobre a normatividade, sobre
padrões, sobre estereótipos, sobre escolhas, sobre gênero, sobre sexualidade, entre outros.

REFERÊNCIAS
CAMPOS, Claudinei José Gomes. Método de análise de conteúdo: ferramenta para a análise de dados qualitativos
no campo da saúde. Revista brasileira de enfermagem, v. 57, n. 5, p. 611-614, 2004.
COSTA, Claudia de Lima. O sujeito no feminismo: revisitando os debates. cadernos pagu, n. 19, p. 59-90, 2002.
COSTA, Marisa Vorraber; SILVEIRA, Rosa Hessel; SOMMER, Luis Henrique. Estudos culturais, educação e
pedagogia. Revista brasileira de educação, n. 23, p. 36-61, 2003.
CRUZ, Clériston Jesus; BITENCOURT, Denise Silva; CARNEIRO, Camila Leite Oliver. Construindo uma
análise semiótica em Desconstruindo Amélia. Revista Hyperion, n. 8, 2016.
FERRARA, Jéssica Antunes. Feminismo e desconstrução: para além de Jacques Derrida. Cadernos Discursivos,
Catalão-GO, v. 1 n 1, p.137-156, 2019.
NARVAZ, Martha Giudice; KOLLER, Sílvia Helena. Metodologias feministas e estudos de gênero: articulando
pesquisa, clínica e política. Psicologia em estudo, v. 11, n. 3, p. 647-654, 2006.
LIMA, Telma Cristiane Sasso de; MIOTO, Regina Célia Tamaso. Procedimentos metodológicos na construção
do conhecimento científico: a pesquisa bibliográfica. Revista Katálysis, v. 10, n. SPE, p. 37-45, 2007.
SANTANA, Sthéfane Rezende Mendonça de. A música como instrumento no processo de ensino
aprendizagem na educação infantil. 2016. Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação, Psicopedagogia,
Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, Paraíba, Brasil.
SEFFNER, Fernando; BORRILLO, Daniel; RIBEIRO, Fernanda Bittencourt. Gênero e sexualidade: entre a
explosão do pluralismo e os embates da normalização. Civitas-Revista de Ciências Sociais, v. 18, n. 1, p. 5-9,
2018.
SEFFNER, Fernando. Cultura escolar e questões em gênero e sexualidade. Revista Retratos da Escola. 2020.
VIANA, Anna Raquel de Lemos; ROSA, Maria Nilza Barbosa; LIMA, Izabel França de. Intersecções entre
memória e feminismo. Informação em Pauta, v. 4, n. 2, p. 31-46, 2019.
TAETS, Gunnar Glauco De Cunto; BARCELLOS, Lia Rejane Mendes. Música no cotidiano de cuidar: um
recurso terapêutico para enfermagem. Revista de Pesquisa Cuidado é Fundamental Online, v. 2, n. 3, p. 1009-
1016, 2010.

Emanuelly Wouters Silva é Mestre em Educação pela Universidade Federal da Fronteira Sul, licenciada em
Química pelo Instituto Federal Farroupilha e formada em Magistério pelo Instituto Estadual de Educação Borges
do Canto. Estudante do curso de Especialização em Educação para sexualidade: dos currículos escolares aos
espaços educativos na Universidade Federal do Rio Grande, do curso de Especialização em Docência na
Educação Infantil no Centro Universitário Leonardo da Vinci e do curso de Licenciatura em Letras - Português e
Literaturas na Universidade Federal de Santa Maria. Pesquisadora na área de Formação de Professores,
pesquisando temas como: saberes docentes, prática como componente curricular, ensino de química, ensino de
ciências, identidade profissional do professor, metodologias de ensino e aprendizagem, gênero e sexualidade
atrelados ao currículo escolar, prática pedagógica e relação professor aluno.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 48

CAPÍTULO 5
SISTEMA ELEITORAL NO BRASIL:
poder político e a influência das fakes news no processo de construção ideológica

YARLEY EMANUEL DA SILVA


LARISSA WENDY SANTANA SANTOS
ISABELLA OLIVEIRA DA SILVA CANGUSSU

INTRODUÇÃO
Cenário de disputas políticas polarizadas, o Brasil tem se tornado um ambiente favorável para a viralização
de notícias falsas na internet. Dentro das redes sociais, a dinâmica combativa dos usuários estimula o
compartilhamento em rede de conteúdos sem veracidade ou credibilidade.
Fundamentado em pesquisas realizadas pelo Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas para o Acesso à
Informação, da Universidade de São Paulo (USP), dados revelam que aproximadamente 12 milhões de pessoas
compartilharam fake news no Brasil durante o mês de junho de 2017. O levantamento, que monitorou 500 páginas
digitais de conteúdo político falso ou distorcido, indica que tais notícias têm potencial para alcançar grande parte
da população brasileira se considerada a média de 200 seguidores por usuário.
Essa nova conjuntura vivenciada na atualidade ganhou nome: “pós-verdade” - ou “posttruth”, em inglês -
. O termo foi eleito pelo Dicionário da Oxford como a palavra do ano de 2016, e denota, segundo o dicionário,
“circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à
emoção e a crenças pessoais” (POSTTRUTH, 2019).
À face desta realidade, tem-se discutido a potencialidade das fake news distorcerem o resultado de um
pleito eleitoral por meio da influência na formação da ideologia individual. A discussão está fundamentada na
possibilidade de as fakes news impedirem o exercício livre e informado do voto, na medida em que poderiam
corromper o debate público, essencial à realização de eleições justas e democráticas.
Em uma esfera sociológica, tem-se que as relações sociais conduzem a um conceito complexo que trata
do conjunto de interações entre os indivíduos ao mesmo tempo em que absorve as diferentes formas de interação
e suas variações em diferentes espaços sociais, respaldados de maneira natural ou através de interesses
individuais.
Nesse sentido, as redes sociais são protagonistas no referido processo, de modo que ocupa e, também,
direciona a uma sistematização da comunicação que conduz, em segundo plano, as relações de poder e política.
Por conseguinte, é válido perscrutar quais são as problemáticas recorrentes do processo de interação do homem,
em sociedade, que se vinculam a uma perspectiva filosófica de Michel Foucault, referente ao panóptico, e suas
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 49

ramificações nas estruturas sedimentares, por exemplo, por ferramentas como o big-data e as fake news nas
influências ideológicas.
De acordo com estudo realizado por cientistas do Instituto de Tecnologia de Masachussetts (MIT) “cada
postagem verdadeira atinge, em média, mil pessoas, enquanto as postagens falsas mais populares [...] atingem de
mil a cem mil pessoas”, ou seja, as fake news têm 70% mais chance de viralizar que as notícias verdadeiras”
(CASTRO, Fábio, 2018). Ainda de acordo com o estudo, quando a notícia falsa é associada à política, a difusão
é três vezes mais veloz.
Estes dados têm gerado inúmeros questionamentos quanto à possibilidade de o big-data e as fakenews
afetarem a democracia de um país por meio da distorção do resultado de um pleito eleitoral. Nesse sentido, faz-
se necessário compreender de que forma a expressão de discursos falsos se inserem ou não dentro dos valores
democráticos.
Este artigo busca desenvolver uma análise, sob viés sociológico, no que concerne ao comprometimento
da lisura e da legalidade do processo eleitoral através da disseminação de fake-news, acarretando na possibilidade
da distorção do resultado de um pleito eleitoral.
Dessa forma, cumpre a nós, contudo, estudá-lo, compreendê-lo e acompanhá-lo, para que seja possível ao
menos minimizar a sua esfera de influência. Expondo de que forma essas notícias e discursos falsos podem
influenciar o exercício dos valores democráticos, através de relações estabelecidas entre textos expostos no
Seminário Internacional Fake-news e Eleições realizado em 2019, na sede do Tribunal Superior Eleitoral em
Brasilia - DF, e as teorias de sociólogos no que tange à disseminação desses conteúdos contribuírem diretamente
no exercício das relações de poder e política. Buscando assim, amenizar o fenômeno da desinformação no
processo eleitoral, na salvaguarda da democracia em nosso país.

RESULTADOS E DISCUSSÕES
Foucalt, em sua análise sobre o poder, constrói uma narrativa voltada para releitura do conceito
arquitetônico do panóptico de Jeremy Bentham, idealizado como uma construção prisional de vigilância contínua,
onipresente e onisciente, e do qual emanam informações no sentido periferia/centro sobre o comportamento dos
indivíduos, sem que haja qualquer tipo de comunicação entre os eles. Para o filósofo francês, este panóptico é a
materialidade da própria ideia de sociedade disciplinar.
Bauman (2014) utiliza o termo “pós-panóptico” para caracterizar a vigilância líquida, a qual é
concretizada a partir de uso dos bancos de dados pessoais, operando em uma espécie de “versão ciberespacial”
do projeto arquitetônico original. Para o autor, os bancos de dados (big-data) têm como principal propósito
garantir que ninguém escape do espaço digital estreitamente vigiado.
Hodiernamente, voluntária ou involuntariamente, em todo instante os usuários de redes sociais e outros
produtos da Internet têm quantidades substanciais de informações a seu respeito sendo coletadas
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 50

(VAIDHYANATHAN, 2011). Essas informações, aglomeradas em formato de big-data, podem ser de diferentes
matizes e são utilizadas para diferentes fins,mesmo que sem o conhecimento e, por vezes, o consentimento
daqueles sujeitos os quais os dados representam.
Em 2013, o ex-analista de sistemas Eduard Snowden denunciou, através de documentos sigilosos, a
utilização de big-data como forma de vigilância do governo dos Estados Unidos. Ainda, trouxe a público que a
eleição presidencial de 2012 foi caracterizada pelo uso dessa nova tecnologia a favor do candidato Barack Obama,
para disseminação de mensagens políticas e ideológicas aos usuários de redes sociais, com intuito de influenciar
mudanças de posição e tomadas de decisão. Um exemplo ainda mais recente de como o big-data pode ter
influência direta sobre a política e, mais especificamente, sobre pleitos democráticos, é o caso da campanha do
atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
Somado ao uso de big-data, a utilização de fake news – informações falsas divulgadas, para atingir
interesses de indivíduos ou grupos – ganhou destaque como ferramenta ideológica. Como exemplo é possível
citar a disputa eleitoral no Brasil em 2018, cujo candidato Jair Messias Bolsonaro se beneficiou dessa veiculação
de notícias falsas para ganhar visibilidade como forma de poder e influência dos usuários, se desvinculando dos
métodos tradicionais, como debates e discursos televisivos, para se eleger.
Essas ferramentas que ocasionam uma “guerra psicológica”, como o marqueteiro Christopher Wylie
apelidou (ROSENBERG et al., 2017), as quais são voltadas para o uso de informações e exercício da força nas
redes sociais para manipulação da opinião pública, são exemplos claros de como detentores do poder podem fazer
valer suas vontades. Para Bobbio (1998), uma das características do poder político refere-se a essa exclusividade
do uso da força em relação à totalidade dos grupos que atuam num determinado contexto social, sendo possível
perceber que a utilização dessas mídias demonstra como a monopolização da posse e uso de certos meios de
informação podem servir para que os políticos exerçam o poder coativo.
Schmitter (1965), em sua análise sobre o conceito de política, atribui como característica dessa a utilização
de três principais recursos: poder, influência e autoridade. A correlação dessas ferramentas atrela-se ao objetivo
da subjetividade e, com ela, a docilidade e a utilidade da potência que subjaz a ação dos indivíduos, como destaca
Foucault. A eficiência se deve à associação íntima à vigilância que se dissemina por meio de uma rede de relações
ramificadas em todas as direções.
Segundo RAIS (2018, p. 151) “[...] há uma tendência que esses grupos reúnam pessoas que compõem
uma espécie de círculo de confiança e, justamente ali, desinformação parece encontrar campo fértil para a
proliferação”. Assim, as próprias vítimas (aquelas que recebem a informação falsa) tendem a colaborar com a
disseminação e propagação dessas notícias, formando uma espécie de “corrente difusora das fake news” (RAIS,
2018, p. 150).
É imprescindível destacar que o combate à disseminação das notícias falsas é dificultoso e minucioso,
uma vez que não deve haver disrupção de garantias fundamentais, como o direito à liberdade, por exemplo. A
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 51

legislação atual não prever um modelo normativo para a criação e propagação das fake news. O que de fato
acontece, é o enquadramento em outros crimes positivados na Constituição Federal.
Neste sentido, têm-se o direito à resposta em casos de divulgação de notícias sabidamente inverídicas; a
tipificação da conduta como crime no art. 323 do Código Eleitoral Brasileiro e a possibilidade de retirada de
conteúdos da internet prevista tanto na Lei de Eleições (Lei nº 9.504/1997) quanto na resolução 23.551 do TSE.
Além disso, fora do âmbito eleitoral existe a possibilidade de pleitear indenização por danos morais por meio da
instauração de ações cíveis, ou até mesmo à condenação criminal quando a conduta se enquadrar nos crimes
contra a honra.
O ordenamento jurídico protege as liberdades fundamentais, como a manifestação de pensamento, a
liberdade de informação, e a liberdade de expressão. No entanto, os direitos fundamentais, apesar de serem pedras
angulares da própria manifestação de sociedade em si, não podem ser utilizados como barreira de proteção de
atos ilícitos, e o que ocorre é que, a feitura e disseminação de notícias falsas, ferem o próprio Estado Democrático
de Direito por conta de seu animus e potencialidade lesiva, não podendo haver a invocação de princípios
constitucionais para sua proteção (SIQUEIRA, 2018).
Abraham Lincoln define democracia como o governo exercido pelo povo, em nome do povo e para o
povo. Logo, os candidatos constituem esse povo. A escolha de um representante popular é crucial e, de forma
direta, as fakenews maculam esse processo de escolha através da falta de lisura informacional. O Ministro Luiz
Fux (2019) afirma que a interferência dessas atentam contra o princípio constitucional da soberania popular,
contra o princípio democrático, contra o princípio da moralidade das eleições [...].
Em seu discurso sobre fake news e eleições, Fux (2019) defende que não se trata de uma liberdade de
expressão, argumentando que preconizam a tutela inibitória, “ainda que se queiram entender isso como censura,
impedindo que uma fake news circule, sem prejuízo das sanções eleitorais, das sanções criminais e de outras
sanções das quais o nosso Código está repleto” (FUX, 2019).
O ministro Luiz Viana Queiroz (2019) afirmou que as eleições de 2018 representou uma mudança
transformadora no cenário contra a disseminação de desinformação, tendo a Justiça Eleitoral cumprido seu papel
de acordo com o previsto na Constituição Federal, zelando pela higidez e transparência ao conduzir as eleições.
Porém, segundo ele, assegurar a credibilidade da mesma se caracterizou como o maior dos desafios, tendo em
vista que era necessário a adoção de medidas ensejando o esclarecimento do eleitor brasileiro.
Após esse divisor de águas, Raquel Branquinho (2019) pontuou que houveram mudanças relacionadas ao
quadro jurídico, pois, constata-se que as normas presentes no ordenamento jurídico “são insuficientes e não
atendem a finalidade de evitar a manipulação de dados e informações” (BRANQUINHO, 2019).

CONCLUSÃO
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 52

Infere-se que os corpos (sociedade) são vigiados, sendo alvo do poder, não mais como outrora, agora com
novas tecnologias que podemos até afirmar ser o panóptico do século XXI. Essa vigilância permite que
determinados grupos saibam o estilo de vida e pensamento dos indivíduos para oferecê-los informações que os
sujeite a mudança de opinião ou que os coajam tomar decisões de acordo com a vontade do grupo.
Em suma, as plataformas de entretenimento - Facebook, Instagram e Whatsapp -passam a ser mais um
meio de moldar, rearranjar, treinar e submeter os sujeitos. Nesse sentido, Foucault (2014) contribui, de forma
significativa, ao caracterizar que os corpos sociais pouco a pouco são dobrados pelo poder, de maneira sutil,
através de várias técnicas de dominação: no espaço, no tempo, nas gêneses, nas composições, tornando-se dóceis
e submetidos às vontades dos detentores do Poder.
As consequências negativas da conjugação entre fake news e plataformas digitais são incalculáveis, uma
vez que o debate público é distorcido, corrompendo-se a liberdade de expressão e o direito à informação, infringe
dois dos principais trunfos da democracia ante os demais regimes políticos. Em contextos eleitorais, o impacto
da desinformação tende a ser ainda mais nocivo.
Assim, é imprescindível consolidar que as fake news constituem uma ameaça à própria democracia, na
medida em que podem deturpar os resultados eleitorais através de influências ideológicas enganadoras. Não se
pode admitir que abusos eleitorais interfiram na soberania das urnas, caracterizada pela vontade dos povos. É
imprescindível criar mecanismos efetivos para impedir a difusão das fake news, em especial, durante as eleições.

REFERÊNCIAS

CASTRO, Fábio de. 'Fake news' têm 70% mais chance de viralizar que as notícias verdadeiras, segundo
novo estudo. O Estado de São Paulo, São Paulo, 08 mar. 2018. Disponível em:
https://ciencia.estadao.com.br/noticias/geral,fake-news-se-espalham-70-maisrapido-que-as-noticias-
verdadeiras-diz-novo-estudo,70002219357. Acesso em: 13 fev.. 2020.
BAUMAN, Zygmunt. Vigilância líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
BOBBIO, Norberto et all, Dicionário de Política, Editora Universidade de Brasília, 1998, Vol. 1.
BRANQUINHO, Raquel. Seminário Internacional Fake News e Eleições: anais. – Brasília: Tribunal Superior
Eleitoral, 2019.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: Nascimento da prisão. Petrópolis: Editora Vozes,2014. 42 ed., 296 p.
FUX, Luiz. Seminário Internacional Fake News e Eleições: anais. – Brasília: Tribunal Superior Eleitoral,
2019.
POST- TRUTH. In: Oxford Dictionaries. Oxford: Oxford University Press, 2019. Disponível em:
https://en.oxforddictionaries.com/definition/post-truth. Acesso em: 13 fev. 2020.
QUEIROZ, Luiz Viana. Seminário Internacional Fake News e Eleições: anais. – Brasília: Tribunal Superior
Eleitoral, 2019.
RAIS, Diogo. Desinformação no contexto democrático.In: ABBOUD, Georges; JUNIOR, Nelson Nery;
CAMPOS, Ricardo (Coord.). Fake news e regulação. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018b. p. 147-166.
ROSENBERG, Matthew et al. How Trump Consultants Exploited the Facebook Data of Millions.
SCHMITTER, Philippe C..Reflexões sobre o conceito de política. Revista de Direito Público e Ciência Política,
Rio de Janeiro, v. 8, n. 2, p. 45-60, mai. 1965. ISSN 0556-5774. Disponível em:
http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/rdpcp/article/view/59651/57996. Acesso em: 17 Dez. 2019.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 53

SIQUEIRA, Alessandra Cristina de Mendonça. Fake News e o Modelo Jurídico Brasileiro e Internacional.
Revista Âmbito Jurídico, jun. de 2018. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/internet-e-
informatica/fake-news-e-o-modelo-juridico-brasileiro-e-internacional/. Acesso em: 13 de fevereiro de 2020.
THE NEW YORK TIMES, [S. l.], p. 1-5, 17 mar. 2017. Disponível em:
https://www.nytimes.com/2018/03/17/us/politics/cambridge-analytica-trump-campaign.html. Acesso em: 18
dez. 2019.
VAIDHYANATHAN, S. A Googlelização de Nós Mesmos: Vigilância Universal e Imperialismo Infraestrutural.
Googlelização de tudo. São Paulo: Cultrix, 2011.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 54

CAPÍTULO 6
A ESCOLA PÚBLICA E OS ATAQUES DA MÍDIA ESCRITA:
AS LUTAS ESTUDANTIS EM DEBATE

VERALÚCIA PINHEIRO
LARISSA LANDIM DE CARVALHO

INTRODUÇÃO17
Nos anos de 2015 e 2016, estudantes de escolas públicas de diferentes localidades do país ocuparam suas
escolas no intuito de lutar contrarreformas propostas pelos governantes de seus estados, os quais visavam,
essencialmente, a um desmonte do sistema público de ensino de forma gradativa. Essas medidas dizem respeito
ao fechamento de escolas, como a proposta do Estado de São Paulo, ou à transferência da gestão para
Organizações Sociais — as OSs —, como no caso de Goiás.
Durante todo o processo de ocupação, assistimos ao ataque da grande imprensa contra a resistência dos
estudantes, denominados por seus jornalistas de “vândalos”, “depredadores”, “violentos” etc. Por outro lado, tal
como acontece em relação a diversos fatos de nossa história atual, as redes sociais e as mídias alternativas
forneciam outros dados, outras informações que se contrapunham àquelas mostradas pelas mídias oficiais. Essas
e outras contradições e conflitos nos impulsionaram a refletir sobre esse fenômeno.
Para tanto, nos propomos a discutir o conceito de representação, chamado por Moscovici (2005) de
“representação social”, bem como o processo histórico de surgimento da imprensa e sua importância para as
sociedades modernas. Tais abordagens teóricas se constituem como pano de fundo para analisarmos as
representações elaboradas pelos jornalistas na mídia escrita sobre os estudantes no movimento de ocupação das
escolas.

AS REPRESENTAÇÕES COTIDIANAS NA MÍDIA ESCRITA


Na década de 1960, surge na França a abordagem das representações sociais, inspirada no conceito de
representações coletivas descrito por Durkheim (1996). Nesse contexto, destaca-se a produção intelectual de Sege
Moscovici (1978; 2005) a qual visa a sistematizar uma nova concepção sobre esse fenômeno. Tal produção difere
das concepções formuladas por Durkheim (1996), o qual considera que as representações coletivas resultam de
uma ação conjunta desenvolvida no tempo e no espaço, por meio de uma multidão de diferentes indivíduos que
se associam, se misturam, combinam as ideias e os sentimentos e, dessa forma, acumulam e expressam o saber

17 Este texto foi elaborado a partir dos dados de uma pesquisa desenvolvida na Universidade Estadual de Goiás nos anos de 2017 e
2019 e publicado na Revista Via Litterae, v. 11, n. 2. Nesse e-book o reapresentamos com algumas modificações.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 55

que se transmite de geração em geração. Para o autor, as representações coletivas expressam uma realidade sui
generis, o chamado “estado da coletividade”, como é o caso da religião.
Por sua vez, Moscovici (2005) busca distinguir o desenvolvimento de seu conceito daquele formulado por
Durkheim. Nesse sentido, exclui qualquer possibilidade de interesse por representações das sociedades antigas e
ressalta que somente se interessa pelas representações da sociedade atual. Expressa, ainda, preocupação devido
ao fato de que as questões políticas, científicas e humanas ainda não tiveram tempo suficiente para se consolidar
e se tornar tradições sólidas, definitivas. Acredita o autor que é significativo o crescimento dos sistemas
unificadores — as ciências, religiões e ideologias oficiais — e que com as mudanças que eles devem sofrer, irão
certamente penetrar a vida cotidiana e se tornar parte da realidade comum.
De modo geral, nos escritos de Moscovici (2005), as representações sociais expressam um conjunto de
explicações, proposições e conceitos provenientes da vida cotidiana e que se tornaram possíveis graças ao
fenômeno da comunicação entre as pessoas. Para o autor, se nas sociedades tradicionais prevaleciam os mitos e
crenças, na sociedade moderna as representações lhe são equivalentes. Portanto, elas se distinguem tanto do senso
comum quanto do pensamento científico.
Soma-se a isso o fato de que, para Moscovici (2005), o processo de ancoragem significa nomear as
representações buscando tornar corriqueiro o não habitual, e assim , transformar ideias estranhas em imagens
comuns e triviais por meio de sua classificação, ou melhor, consiste em retirar as coisas de um universo
desconhecido, ameaçador.
Isso porque, para o autor, nós resistimos e nos distanciamos daquilo que não somos capazes de julgar,
descrever, para nós mesmos ou para outras pessoas. Sendo que os primeiros passos para superar tal resistência e,
ao mesmo tempo, se aproximar de um objeto ou pessoa, podem ocorrer a partir do momento em que somos
capazes de colocar esse objeto ou pessoa em uma determinada categoria, somos capazes de rotulá-lo com um
nome conhecido. De modo que, ao classificar o que é inclassificável, por meio da tarefa de se atribuir um nome
ao que antes não detinha nenhum, somos capazes de imaginá-lo, de representá-lo. Por isso, a representação é,
fundamentalmente, um sistema de classificação e de nomeação literal.
Mas o estudo das representações sociais sofreu críticas de vários autores, tais como Sawia (1995), Leme
(1995) etc., os quais buscaram refletir as possibilidades e os limites de tal formulação. Destacamos, no entanto,
os escritos de Viana (2008), cujas críticas se sustentam nas teorias desenvolvidas por Marx e alguns marxistas e,
por isso, podem contribuir com nossas análises críticas a respeito das representações dos estudantes na mídia
escrita durante a ocupação das escolas públicas.
Viana (2008) cunha o termo “representações cotidianas”, porém não o apresenta como algo novo. Em vez
disso, deixa claro que suas fontes originais são as ideias desenvolvidas por Marx e Engels, e que se utilizou tanto
de suas teorias quanto das de seus continuadores para desenvolver tal conceito.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 56

Por outro lado, a consulta aos autores que constituem a principal fonte de Viana nos leva a concordar com
o autor, posto que, para Marx e Engels, a produção de ideias, de representações da consciência, está, em princípio,
em conformidade com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, com a linguagem da vida
real. Por isso, o representar, o pensar e as trocas espirituais dos indivíduos aparecem, aqui, como manifestação
direta de seu comportamento material. Também em relação à produção intelectual, o mesmo acontece — ela se
expressa tal como se

apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc.


de todo um povo. Os homens são os produtores de suas representações, de suas ideias
e assim por diante, mas os homens reais, ativos, tal como são condicionados por um
determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele
corresponde, até chegar às suas formações mais desenvolvidas. A consciência não
pode jamais ser outra coisa do que o ser consciente e o ser dos homens é o seu
processo de vida real (MARX; ENGELS, 2007, p. 93).

Tendo por fundamento esses autores, Viana (2008, p. 85) formula o conceito de representações cotidianas,
cujo argumento central consiste em afirmar que é na vida real, cotidiana, que se estabelecem as relações sociais
concretas e se formam as representações dos indivíduos. Portanto, “é no modo de vida dos indivíduos, que se
constituem sua consciência, suas ideias, suas representações”.
Concordamos com Viana (2008), o qual nos adverte sobre a existência das representações reais e ilusórias.
Pois a consciência, para Marx, é a expressão das relações sociais reais, mas não é a mesma coisa que a realidade.
Ela é uma expressão da realidade. A existência da realidade independe da consciência. Embora o indivíduo
contribua com a constituição da realidade (as relações sociais, o meio ambiente), ele não a constitui. A realidade
social é o conjunto de relações sociais.
De outro modo, Viana (2008) explica que as representações cotidianas são formas de consciência
espontânea, mas convivem com outras formas de consciência que ele nomeia de pensamento complexo, o qual
se expressa por meio da teologia, da filosofia, da ciência etc., pensamento sistematizado pelos intelectuais.
O modo de produção de cada sociedade é fundamental no processo de constituição do pensamento social,
da sociabilidade, da produção das representações. Com base nas teorias de Marx, Viana (2008) acrescenta que
nas sociedades de classes, prevalece a tendência de estas classes produzirem seus representantes intelectuais e
políticos. São esses representantes que se encarregam de fornecer coerência por meio da sistematização das ideias
da classe social que representam.
Porém, como nos mostraram Marx e Engels (2007), as ideias dominantes de uma época sempre foram as
ideias da classe dominante. É nesse contexto que podemos citar a questão da ideologia que, para os autores, é
uma inversão da realidade que surge com a divisão social entre trabalho manual e trabalho intelectual. É quando
aparecem os intelectuais, que se especializam nessa tarefa de sistematizar as ideias e assim considerá-las
autônomas, naturais, independentes da história e da sociedade, e até mesmo produtoras da realidade.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 57

Se as ideologias são as ideias sistematizadas sobre diferentes fenômenos sociais, as representações, muitas
vezes ilusórias, da realidade têm similitude com a ideologia, no sentido em que utilizamos esta palavra, como
inversão da realidade, falsa consciência (MARX; ENGELS, 2007). Pois tanto as ideologias quanto as
representações cotidianas (VIANA, 2008) são utilizadas pelas mídias para expor suas concepções, seus valores,
suas visões de mundo.
As questões relacionadas com a imprensa ou a informação são os temas mais discutidos de nossa época
em diferentes espaços sociais, tais como família, escola, igreja etc. Mas, raramente se discute a historicidade da
imprensa, seu processo de produção social e os motivos que lhe possibilitaram ocupar o lugar privilegiado em
relação a outros instrumentos de manutenção de controle e de poder da estrutura social vigente. Não restam
dúvidas de que a imprensa é fundamental para o chamado “fenômeno da governabilidade”, o qual se caracteriza
pela manutenção do status quo.
Terrou (1964) esclarece que no Ocidente, especialmente na Itália e na Alemanha, a história da imprensa
surge com o aparecimento das notícias distribuídas em folhas manuscritas, contendo informações muitas vezes
escritas de forma a beneficiar os indivíduos ricos e poderosos, como grandes comerciantes e banqueiros, e que
este trabalho era realizado por pessoas que faziam disso sua profissão.
A partir do século XV, de acordo com o autor, multiplicaram-se as empresas de impressão, porém a
rentabilidade não era garantida com suficiência pela produção de livros, longa e onerosa. Logo os impressores
sentiram o interesse que podia haver em alimentar a curiosidade cada vez mais aguçada pelos grandes
acontecimentos políticos (ameaças de invasão, grandes descobertas marítimas, guerras da Itália) e, algum tempo
depois, até mesmo pela crescente agitação de novas ideias e pelos conflitos que o Renascentismo e a Reforma
religiosa suscitaram.
A melhoria dos transportes e a organização do serviço postal possibilitaram o nascimento da imprensa
periódica e em 1609, em Estrasburgo, surge uma das primeiras gazetas semanais. Anos mais tarde, em 30 de maio
de 1631, na França, nasce o primeiro grande periódico, La Gazette, de Théophraste Renaudot. De modo que
foram criados órgãos periódicos por quase toda a Europa na primeira metade do século XVII, particularmente na
Alemanha, na Itália e na Espanha. (TERROU, 1964).
A não-neutralidade da imprensa fica evidente desde seu surgimento. Esse fato pode ser observado nos
escritos da própria imprensa, que sempre beneficiava os ricos e, ainda, no fato de que ela veio ao mundo em um
contexto político, social e jurídico em que não havia lugar para a liberdade de expressão. Mesmo assim, os
filósofos políticos perceberam a importância da opinião pública enquanto força poderosa que os governantes
precisavam levar em conta.
Ao longo dos séculos, a imprensa se transformou, industrializou-se. Junto com o estabelecimento do
Estado Moderno e sua consequente filosofia liberal, veio a liberdade de expressão. Como observa Terrou (1964),
a edição de grandes jornais exige grandes empresas comerciais, para operações importantes de outras empresas
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 58

comerciais maiores ainda. Cresce, desse modo, a distância entre a liberdade, legalmente concebida como um
direito individual nas leis inerentes ao Estado democrático de direito, e as condições práticas de exercício dessa
liberdade.
Para o autor, é nítida a ligação entre o desenvolvimento da imprensa, o sistema econômico e o regime
jurídico de cada época. Isso exclui a necessidade de estabelecer à imprensa um estatuto diferente do aplicável ao
conjunto das empresas industriais e comerciais. Assim, deixou de haver necessidade de se proteger a imprensa
contra as intervenções arbitrárias do poder político, que se manifesta na origem do estatuto particular da
publicação. Essa proteção está suficientemente assegurada pelo jogo da economia liberal e do direito comercial
ordinário. Quanto aos privilégios que essa economia concede aos que possuem dinheiro — às restrições que ela
provoca no exercício da liberdade —, os que conduzem o jogo aí encontram, então, sua vantagem. Essa concepção
faz parte da história da imprensa e sobreviveu ao advento da democracia política, porque se produziu uma plena
conciliação entre o capitalismo e a democracia. A imprensa pode jogar, portanto, nos dois lados.
Críticas e denúncias quanto aos riscos da subordinação da imprensa ao poder econômico permaneceram
desde seu surgimento até a contemporaneidade. De outra forma, lembramos que a dominação do dinheiro sobre
os jornais é algo inevitável no capitalismo, assim como ocorre com outros setores da vida social.

O BLOG DO JORNALISTA DA REVISTA VEJA COMO EXEMPLO


No final de 2015, os estudantes do estado de São Paulo deram início ao movimento de ocupação das
escolas públicas. De acordo com os dados da pesquisa de Campos et al. (2016), mais de 200 escolas públicas
estaduais de São Paulo foram ocupadas por jovens estudantes entre 15 e 17 anos. Eles lutavam contra o plano do
governo de fechar noventa e quatro escolas e, ao mesmo tempo, cancelar centenas de turmas, por meio da
realocação de estudantes e da superlotação das salas de aula. Em síntese, o projeto visava transformar escolas de
dois ciclos — ensino fundamental e médio — em unidades de ciclo único.
De acordo com os autores, as primeiras escolas ocupadas surpreenderam as autoridades, que reagiram
com ameaças e violência. Contudo, não conseguiram conter o movimento, e o número de ocupações cresceu em
uma velocidade imprevista, e elas se espalharam pelas Zonas Leste, Norte e Sul da capital e por Jandira, Mauá,
Osasco, Ribeirão Pires, Santo André, Campinas, Franca, Santa Cruz das Palmeiras, Bauru e Jundiaí.
Inesperadamente, as costumeiras táticas utilizadas pelo Estado18 para desmobilizar movimentos sociais não
surtiram efeito, enquanto crescia o número de escolas ocupadas por todo o estado, tanto no interior quanto no
litoral, nos centros e nas periferias.
Logo após a ocupação (novembro de 2015), diretores e outros detentores de cargos na burocracia da
Secretaria de Estado da Educação de São Paulo se uniram contra os estudantes. Como de costume, chamaram a

18 Essas táticas ou subterfúgios dizem respeito à utilização de propagandas na mídia e reportagens que desmoralizam ou
ridicularizam os integrantes dos movimentos sociais e, às vezes, incluem até mesmo a utilização da violência física explícita.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 59

Polícia Militar, que se utilizou da velha artimanha de sabotagem e violência, mas nada disso garantiu o efeito
desejado. Talvez a consciência sobre a importância da escola pública tenha despertado a solidariedade dos pais,
dos professores e de vários setores da sociedade. Depois de quase 60 dias de ocupação, os estudantes paulistas
foram vitoriosos — forçaram o governador a recuar, suspendendo o projeto de reorganização escolar e
derrubaram o secretário de educação. Em seguida, em 2016, o mesmo método de ocupação começou a ser
utilizado por estudantes de outros estados na luta pela educação pública de qualidade, contrarreformas de
desmonte do sistema público de educação.
A matéria do Jornalista Reinaldo Azevedo, publicada em seu blog19 em 04 de dezembro de 2015, reflete
fielmente a representação midiática dos estudantes e de sua luta pela escola pública. O título é emblemático: ‘Eis
algumas figuras de destaque do movimento de invasão das escolas’. Cabe, no entanto, ressaltar que os estudantes
não invadiram, mesmo porque a escola não tem um proprietário. Ela pertence à comunidade estudantil, aos
trabalhadores que dela necessitam para que seus filhos possam frequentar uma escola. Por sua vez, os estudantes,
durante todo o movimento, falaram sobre ocupação e, em geral, até mesmo a imprensa adotou o termo
“ocupação”, em vez de “invasão”.
Em seguida, concomitante ao título da matéria, Azevedo renuncia a qualquer possibilidade de evidenciar
sua imparcialidade ao declarar: “Ação obedeceu a uma evidente orientação política, que nada tinha a ver com a
necessidade dos estudantes” (grifo nosso). Já no início da matéria, categoricamente e sem apresentar dados,
afirma:

É sabido que quem comanda as ocupações, na maioria das vezes, não são estudantes,
mas militantes políticos de extrema esquerda. Na liderança do movimento estão o
MTST, comandado por Guilherme Boulos, e o Movimento Passe Livre, de triste
memória. E, como se sabe, partidos políticos estão dando o suporte à luta – o
principal é o PT (AZEVEDO, 2015, s/p).

Azevedo (2015, s/p) fornece os nomes e uma breve biografia daqueles que, segundo ele, são os culpados
pela ocupação das escolas, uma vez que comandaram o movimento. São eles: Pedro Henrique Rocha Zeferino,
João Gaspar, Ângela Meyer, Camila Lanes, Anna Lívia Solon Arida e MTST. Todos ligados a partidos políticos
ou entidades representativas de estudantes ou trabalhadores. Tais nomes são de pessoas ligadas a partidos ou
entidades, mas o MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) é uma exceção. Estranhamente, o jornalista
não declara o nome de nenhum representante da entidade junto ao movimento de ocupação das Escolas.
Existe alguma verdade nas afirmações de Azevedo? Afinal, qual é a representação que o discurso desse
jornalista faz dos estudantes que participaram do movimento de ocupação? Se as representações dos indivíduos

19 Durante 12 anos Reinaldo Azevedo teve seu blog hospedado no site da Revista Veja, mas em 23 de maio de 2017, rescindiu contrato
com a revista, migrando seu blog para o Portal da Rede TV. Contudo, quando publicou a matéria que ora discutimos, o jornalista ainda
se encontrava vinculado à Revista Veja.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 60

não são neutras, tampouco o discurso o é. Michel Foucault desenvolve reflexões sobre as questões que envolvem
o falar, assim como o desdobramento dessas falas, fato que pode ocorrer indefinidamente. Por isso, para o autor,

[...] em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada,


selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm
por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu acontecimento aleatório,
esquivar sua pesada e temível materialidade. [...] Conhecemos, é certo,
procedimentos de exclusão, o mais evidente, o mais familiar também, é a interdição.
Sabe-se bem que não se pode dizer tudo, que não se pode falar tudo em qualquer
circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa.
(FOUCAULT, 2004, p. 8-9).

Ao expor o que pensa do movimento, e consequentemente dos estudantes que ocuparam as escolas, sem
lhes garantir o direito à voz, transparece no discurso do jornalista a manifestação de poder e o objetivo de
interditar a voz dos estudantes. Para atingir seu objetivo, Azevedo acusa os estudantes de serem massa de manobra
dos militantes de partidos políticos, todavia, objetivamente não fornece nenhum dado que comprove que foram
esses militantes, e não os estudantes, que organizaram e fizeram a ocupação das escolas.
A longa duração do movimento e o número de atividades relacionadas à ocupação desfaz qualquer
hipótese acerca de um movimento guiado, dirigido por indivíduos ou grupos estranhos aos estudantes das escolas
públicas paulistas. A ocupação teve início em 23 de setembro de 2015, e a matéria de Azevedo foi publicada em
04 de dezembro de 2015, momento em que, de acordo com os dados da pesquisa de Campos, Medeiros e Ribeiro
(2016), mais de 200 escolas estavam ocupadas, e os alunos já haviam realizado cerca de 163 protestos nas ruas.
Esses protestos ou manifestações ocorreram em 63 cidades do estado, com intensa participação dos estudantes
de cidades do interior e de todas as regiões da cidade de São Paulo. Ao final da ocupação, uma média de 08
escolas eram ocupadas por dia.
Por tudo isso, questionamos a razão segundo a qual os estudantes de mais de 200 escolas localizadas tanto
na capital quanto no interior de São Paulo obedeceriam às ordens de cinco ou seis indivíduos, supostamente
representantes de entidades alheias ao universo escolar. Ora, seria necessário considerar que os jovens estudantes
não pensam e que, portanto, formam uma massa de acéfalos, destituídos de vontade própria, de capacidade e de
discernimento. Ou, ainda, que os indivíduos considerados pelo jornalista como manipuladores seriam super-
heróis capazes de qualquer bravura. A nosso ver, é essa a representação que Azevedo (2015) faz dos estudantes.
Mas, como jornalista, Azevedo acredita é no poder de manipulação das mídias, e aparentemente se vê
detentor do poder de formar opiniões, de modo que avalia os leitores de seu blog apenas como massa de manobra.
O termo “massa” foi discutido por Adorno e Horkheimer (2006) no bojo de suas análises sobre a assim chamada
“Indústria Cultural”, obra publicada pela primeira vez em 1947. Eles consideram que a dependência e a ser vidão
dos homens são o objetivo essencial desse tipo de indústria, sendo que tal dependência se realiza pelos mass
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 61

media, que são os instrumentos de comunicação de massa. Para os autores, no capitalismo, o lazer é o
prolongamento do trabalho, o qual é procurado por quem quer escapar do cansaço decorrente da atividade
alienada, para se pôr de novo em condições de enfrentá-la. Por isso, o espectador não deve ter necessidade de
nenhum pensamento próprio, o produto prescreve toda reação: não por sua estrutura temática que desmorona na
medida em que exige o pensamento, mas por meio de sinais, tendo em vista que buscam evitar qualquer
necessidade de esforço intelectual.
Não podemos negligenciar a importância histórica das análises desenvolvidas por Adorno & Horkheimer.
Por outro lado, é preciso refletir sobre a questão da recepção, pois o processo de manipulação não se desenvolve
livremente e sem resistência do sujeito. As pessoas, em sua relação com a Indústria Cultural ou qualquer outro
veículo de manipulação, não são receptáculos desprovidos de sentido. As classes exploradas não assimilam as
mensagens veiculadas exatamente da forma pretendida pelos seus emissores. Dito de outra forma, não existe uma
massa amorfa pronta para executar as ordens dos manipuladores, quer sejam dos veículos de comunicação ou dos
partidos políticos, dos sindicatos, das igrejas etc.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Do mesmo modo que em outras cidades do país, o Rio de Janeiro viveu a experiência das ocupações de
escolas públicas. Lá, onde a imprensa é nacional, as primeiras ocupações foram em maio de 2016, em apoio à
greve dos professores. Em outubro, elas voltaram com muita força e apresentando como motivo principal o
congelamento das despesas governamentais com educação, definido pela medida provisória para reforma do
ensino médio (MP 746, editada em setembro) e à proposta de emenda constitucional que estabelece teto para o
gasto público federal (PEC 55, aprovada em dezembro). Tudo isso foi a gota d’água que esgotou a tolerância dos
estudantes com a ausência de liberdade no interior das escolas imposta pela burocracia, com as péssimas
condições materiais das escolas e, ainda, com o discurso que credita à educação pública gastos excessivos.
Foi o sucesso do movimento de ocupação das escolas paulistas que inspirou outras mobilizações que se
espalharam pelo país afora durante o ano de 2016. Em Goiás, por exemplo, houve ocupações após o governo
estadual anunciar sua decisão de terceirizar a gestão das escolas públicas, transferindo-as para as Organizações
Sociais (OSs).
Embora fosse evidente que o objetivo do governo era isentar-se da responsabilidade pela educação pública
dos filhos dos trabalhadores, utilizando-se da ideologia da eficiência, os meios de comunicação buscaram durante
todo o tempo convencer a população de que essa é a melhor fórmula para se gerir a educação. Isso porque,
conforme discutem Pinheiro e Guimarães (2016), embora o conhecimento não produza valor, ele constitui
necessidade objetiva do capital para promover o desenvolvimento das forças produtivas. Além disso, nessa
sociedade, todos os gastos são apresentados na forma do dinheiro e os encargos do sistema de ensino constituem
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 62

custos mortos. Decorre daí a necessidade de devolver esses custos para as famílias, por meio do pagamento de
mensalidades.

REFERÊNCIAS
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. Tradução: Guido Antonio de
Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.
AZEVEDO, Reinaldo. Eis algumas figuras de destaque do movimento de invasão das escolas. Blog do Jornalista
Reinaldo Azevedo: Política, Governo, PT, imprensa e cultura. Disponível em:
https://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/eis-algumas-figuras-de-destaque-do- movimento-de-invasao-das-
escolas/. Acesso em: 06 fev. 2018.
DURKHEIM, Emile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
FOUCAUT. Michel. A ordem do discurso. Tradução: Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: 10. ed.
Loyola, 2004.
LEME, Maria Alice. O impacto da teoria das representações sociais. In: SPINK, Mary Jane (org.). O
conhecimento no cotidiano. As representações sociais na perspectiva da psicologia social. São Paulo: Brasiliense,
1995. p. 46-57.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia Alemã. Tradução: Rubens Enderle; Nélio Schneider; Luciano
Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007.
MOSCOVICI, Serge. Representações Sociais: Investigações em psicologia social. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
2005.
MOSCOVICI, Serge. A Representação social da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
VIANA, Nildo. Senso comum, representações sociais e representações cotidianas. Bauru: EDUSC, 2008.
SAWAIA, Bader Burihan. Representação e Ideologia – O Encontro Desfetichizador. In: SPINK Mary Jane (org.).
O conhecimento no cotidiano. As representações sociais na perspectiva da psicologia social. São Paulo:
Brasiliense, 1995. p. 73-84.
PINHEIRO, Diógenes. Escolas ocupadas no Rio de Janeiro em 2016: motivações e cotidiano. Iluminuras, Porto
Alegre, v. 18, n. 44, p. 265-283, jan/jul, 2017.
PINHEIRO, Veralúcia; GUIMARÃES, Ged. A educação na sociedade da mercadoria: militarização e
terceirização das escolas públicas no Estado de Goiás. Perspectivas em Dialogo: Revista de Educação e
Sociedade. v. 5, n. 9, p. 253-268, jan.-jun. 2018. Disponível em:
http://www.seer.ufms.br/index.php/persdia/index. Acesso em: 16 jun. 2019.
TERROU, Fernand. A informação. Tradução: Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Difusão Europeia do Livro,
1964.

BIBLIOGRAFIA

Veralucia pinheiro é doutora em educação pela universidade estadual de campinas e professora do


programa de pós-graduação stricto sensu interdisciplinar em educação, linguagem e tecnologias da universidade
estadual de goiás. E-mail: veraluciapinheiro27@gmail.com.

Larissa landim de carvalho é advogada, especialista em direito do trabalho, aluna do programa de pós-
graduação stricto sensu interdisciplinar em educação, linguagem e tecnologias da universidade estadual de goiás
e graduanda em letras pela mesma universidade. E-mail: larissalandimcarvalho@gmail.com.

O presente trabalho foi realizado com apoio da coordenação de aperfeiçoamento de pessoal de nível
superior - brasil (capes) - código de financiamento 001.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 63

CAPÍTULO 7
MALUCOS DE ESTRADA:
processos indenitários de um movimento contracultura l

VIRNA LIMA
KAIANE LUZ

INTRODUÇÃO
Em 2015, o movimento artístico cultural autodenominado Malucos de Estrada, herança da
contracultura hippie no Brasil, teve sua primeira aproximação com órgãos estatais com a finalidade de obter
reconhecimento como patrimônio cultural. A então secretária da Cidadania e da Diversidade Cultural do MinC,
Ivana Bentes e Diana Dianovsky, então coordenadora de Registro do Departamento de Patrimônio Imaterial do
Iphan, receberam cerca de 60 Malucos de Estrada para discutirem questões relacionadas ao registro. Este desejo
de reconhecimento divide o movimento e pode ser considerado como uma alternativa para as recorrentes
apreensões dos artesanatos produzidos por ordem das prefeituras de diversas cidades brasileiras. Transeuntes do
solo brasileiro há mais de quatro décadas, este movimento vem adquirindo visibilidade através de diversos
fatores, a saber: 1) Ventania, Maluco de Estrada, cantor e compositor, se destacou na mídia no ano de 2007 por
ocasião de entrevista concedida à Jô Soares; 2) O Coletivo Beleza da Margem, através de um dos seus
idealizadores, Rafael Lage, realizou os documentários: A Criminalização do Artista, de 2011, com a finalidade
de registrar os abusos de poder que estavam sendo cometidos na Praça Sete (2009-2011), na cidade de Belo
Horizonte-MG, pela Prefeitura com apoio da Polícia Militar. Posteriormente, o Coletivo produziu o documentário
“Malucos de Estrada, Cultura de BR”, de 2015, com o objetivo de difundir a cultura, raízes e modos de vida deste
movimento que seria uma reconfiguração do movimento hippie. 3) trabalhos acadêmicos - artigos, teses e
dissertações - em diversas áreas, a saber: Psicologia; Arquitetura e Urbanismo; Antropologia 4) apoio de
personalidades ligadas às áreas da cultura, política e educação, especialmente nas cidades de Belo Horizonte-MG
e Brasília-DF, onde em 2018 houve nova aproximação com Iphan por ocasião do Segundo Encontro dos Malucos
de Estrada. Nesta ocasião, os Malucos de Estrada ouviram representante do Iphan, e novas questões sobre o
registro foram levantadas. Concluiu-se, através de conselho interno, que o movimento precisaria se auto-
organizar para criar carta ao órgão. Um novo encontro está pré-agendado para elaboração/apresentação deste
documento. Para os Malucos de Estrada, um dos principais pontos para o reconhecimento é o artesanato. É a
reconfiguração do artesão e o ressignificado da arte de rua. O artesanato poderá se tornar arte, propriamente dita,
através do processo de artificação, defendido por Nathalie Heinich. Portanto, analisar os processos identitários
deste movimento através de sua produção artística é de suma importância para compreendê-lo, uma vez que é
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 64

possível conhecer a cultura de um povo através de sua produção artística. Para Luiz Gonzaga de Mello (1982,
pág. 423) “a Arte não pode dissociar-se da Antropologia Cultural porque ela pertence ao domínio da Cultura, por
se tratar de uma atividade exclusivamente humana”. Desta forma, o artesanato do Maluco de Estrada, ao passar
pelo processo de artificação, torna-se, para além de Arte, a identidade de um povo. Para falar da identidade do
movimento, é necessário entender a estrutura do mesmo, através de sua arte e raízes, neste caso, intimamente
ligada às culturas Beatnick e Hippie. Sendo originário de movimentos contraculturais, os Malucos de Estrada
carregam sem seu DNA ideologias contrárias ao Estado, e podemos facilmente observar em seus membros traços
da ideologia anarquista através das ideias de autogestão, incentivo à coletividade e educação libertária. No
entanto, mesmo fazendo parte da contracultura, o movimento se reinventa a cada década. Ou seja, depois da
primeira geração de Malucos de Estrada, ainda na década de 70, vieram para o movimento alguns punks,
especialmente nos anos 80 e 90. Mas somente após os anos 2000, com o advento das novas tecnologias, o
movimento vem se articulando de forma diferente. Seja através da sua autonomia, seja através de alianças com
próprio Estado a fim de garantir direitos básicos, como expor e transitar livremente. Esta aproximação vem
gerando dúvidas dentro e fora do movimento, especialmente porque pode haver uma invalidação da luta das
gerações anteriores, já que a ideia primária era não precisar de nenhuma aliança institucional para se manter.
Desta forma, questiona-se se ao tornar o movimento reconhecido através de um órgão estatal como o Iphan,
perder-se-ia a identidade contracultural do movimento. Independente de qual lado estejam os atores sociais deste
contexto - seja a favor ou contra o registro no Iphan - o artesanato é percebido como um elemento fundamental
para a constituição da identidade e reconhecimento do grupo enquanto tal. Seja por órgão estatal, seja através dos
grupos independentes, o artesanato dos Malucos de Estrada é visto como substrato do movimento, ora servindo
como subsistência da comunidade como também elemento constitutivo da própria identidade do grupo. Não se
trata de um mero objeto para comércio, mas a um fazer que está intimamente conectado à essência da comunidade.
A presente pesquisa busca, através das metodologias autobiográfica e pesquisa de campo explorar a
representatividade do movimento no Brasil e as questões que envolvem a aproximação dos Malucos de Estrada
com órgãos estatais.

REFERENCIAL TEÓRICO
Um dos principais pontos a ser explorado nesta pesquisa é a caracterização dos Malucos de Estrada
a partir do artesanato produzido pelos seus integrantes. A produção do artesanato, numa visão mais simplista
indicaria mera forma de subsistência, mas para o grupo, além de ser parte constitutiva de sua própria identidade
possui uma forte simbologia. Nas dinâmicas internas, o artesanato cumpre a função de moeda de troca quando
está em jogo uma permuta de saberes entre os Malucos originados de regiões e épocas distintas. Um objeto
artesanal, além de revelar os caminhos percorridos por quem o produziu, pode servir de plataforma para narrar a
história do grupo e compreender a sua identidade a partir dos micro-mundos, autônomos e interconectados em
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 65

rede. O presente trabalho buscará fazer uma linha do tempo deste artesanato marginal e único, desde o início,
onde a matéria prima eram chapas metálicas trabalhadas com ácido, couro e natureza morta, até os dias atuais e
de como esse trabalho conseguiu não apenas dar forma às produções artesanais, mas serviu para galvanizar a
identidade dos Malucos de Estrada em torno desse know-how. A princípio, a identidade do movimento era
pautada apenas na questão do nomadismo, da liberdade, da contestação frequente ao sistema. Depois, a partir de
meados da década de 70, o artesanato entra para possibilitar estas viagens. Só depois, o artesanato vira
protagonista do processo identitário da malucada. Hoje, a arte do maluco é sua própria identidade, deixando,
inclusive, o nomadismo em segundo plano, especialmente entre os malucos mais velhos, ou “dinossauros da BR”,
como são tratados internamente. Perceber o artesanato como identidade é importante, porque está dentro do
fenômeno da reprodução em massa e da possível confusão existente entre os Malucos de Estrada e subgrupos do
movimento que também expõem e comercializam suas artes na rua, como artistas peruanos e camelôs. Nota-se
que o artesanato ultrapassa a questão de identidade e meio de sustento no movimento e transborda para outros
grupos minoritários, que veem na comercialização da arte, apenas uma forma de sobrevivência. Uma vez que “o
que os homens fizeram sempre pôde ser imitado por homens. Tal imitação foi praticada igualmente por discípulos,
para exercício da arte; por mestres, para difusão das obras; e, finalmente, por terceiros, ávidos de lucros”
(BENJAMIN, 2012, p. 13).
Embora cada artista, ao criar suas obras, empregue sua identidade construída a partir da sua vivência dentro
e fora do movimento, existe uma estética que está intimamente ligada a todos os indivíduos pertencentes ao
movimento, e esta estética inclusive o representa não só visualmente, mas em vários outros aspectos, como
historicamente, dentre outros. É possível analisar a História Da Malucada de BR pelo viés das técnicas que se
difundem entre as gerações, através da oralidade.

[...] podemos entender que cada “trampo de maluco” carrega consigo uma
subjetividade de quem o criou, mas mais do que isso: podemos vislumbrar neste
objeto cultural características próprias do movimento, uma estética desta cultura de
resistência ao sistema capitalista. (LUZ, 2019)

Seria o universo dos malucos de br um mundo social resultante dos objetos culturais que estes produzem?
A partir da arte que desenvolvem, os malucos de BR põem em prática seus ideais de resistência ao sistema
capitalista, pois a finalidade desta é, não somente sua forma de expressão, ou o modo de proporcionar a condição
de vida nômade ao indivíduo que a produziu, mas também uma forma de resistir à industrialização e exploração
desordenada dos recursos naturais, supervalorizando a arte, a coleta de materiais naturais (pedras, cipós,
sementes, conchas etc.) e de materiais de origem reciclada (metais, guimbas de cigarro, componentes de
eletrônicos, placas de computadores etc.) como parte dos materiais empregados nas peças. Desta forma, podemos
entender que cada “trampo de maluco” carrega consigo uma subjetividade de quem o criou, mas mais do que
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 66

isso: podemos vislumbrar neste objeto cultural características próprias do movimento, uma estética desta cultura
de resistência ao sistema capitalista.

Uma peça artesanal transporta as especificidades da trajetória do maluco, no


encontro com o outro, com a natureza, com a estrada, e torna-se assim uma vitrine
do seu modo de vida estradeiro, ao mesmo tempo em que abarca a singularidade
daquele que a produz, sem deixar de lado o elemento de resistência, uma vez que o
artesanato, nesta perspectiva, é algo que a indústria não consegue reproduzir
(STRAPPAZZON, 2017, p.133)

Pretendemos compreender, ainda, que tipo de contracultura está presente na atualidade meio ao
movimento, uma vez que o termo “contracultural” é produto da sociedade, e que a mesma está em constante
transformação. Acompanharemos estas transformações e identificaremos os subgrupos que estão inseridos no
movimento dos Malucos de Estrada, incluindo, aqui, a aproximação do movimento com órgãos estatais. Esta
aproximação colocaria este movimento contracultural em outra esfera? Segundo Castro (2007, pág. 29), “Em
Benjamin, a ruptura é a resistência à engrenagem política e social estabelecida. Se o continuum da história
permanece aos opressores, é na descontinuidade da ruptura que uma outra tradição, mais autêntica, aquela dos
oprimidos da história, pode ser cobrada.” Mas, afinal, o que leva alguém tornar-se Maluco de Estrada? Não há
uma resposta para esta questão, mas muitas. Diversas são as razões que podemos encontrar, independente da
geração do Maluco que porventura iremos interrogar. Sejam filhos de malucos, simpatizantes que resolveram
seguir esta filosofia de vida ou pessoas em busca de maiores flexibilidades em relação ao trabalho. O desejo de
liberdade e a não identificação com os padrões impostos pelo sistema são os pontos em comum. No entanto,
regras e códigos de conduta internos são fortes no movimento, o que de certa forma pode ser um ponto de
contradição dentro de uma filosofia que defende a liberdade exacerbada e questiona o sistema justamente por
suas leis e modos de operação. Para Becker,

Regras sociais são criação de grupos sociais específicos. As sociedades modernas


não constituem organizações simples em que todos concordam quanto ao que são
regras e como elas devem ser aplicadas em situações específicas. São, ao contrário,
altamente diferenciadas ao longo de linhas de classe social, linhas étnicas, linhas
ocupacionais e linhas culturais. Esses grupos não precisam partilhar as mesmas
regras e, de fato, frequentemente não o fazem (1991, p. 27).

Regras comportamentais extremamente rígidas, oriundas de culturas diversas, inclusive trazidas de


religiões como catolicismo e protestantismo. Interessa identificar quais destas regras se sustentam até a atualidade
e quais são as reações das novas gerações diante das mesmas. O nomadismo pode ser tomado como exemplo de
regra atemporal, uma vez que esta é uma das principais características do movimento. É a apropriação de espaços
públicos, como praças, rodoviárias, estações, praias, etc, como lugar (não-lugar). Uma vez que,
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 67

Se um lugar pode se definir como identitário, relacional e histórico, um espaço que


não pode se definir nem como identitário, nem como relacional, nem como histórico
definirá um não lugar. A hipótese aqui definida é a de que a supermodernidade é
produtora de não lugares, isto é, de espaços que não são em si lugares antropológicos
e que, contrariamente a modernidade baudelariana, não integram os lugares antigos:
estes, repertoriados, classificados e promovidos a “lugares de memória”, ocupam aí
um lugar circunscrito e específico (AUGÉ, 2012, p. 73).

No entanto, a apropriação destes espaços públicos por parte dos Malucos de Estrada são
constantemente alvos de ações truculentas por parte de agente do Estado. Quer estejam de passagem, descansando
ou trabalhando. Grupos marginais sempre são proibidos de tais apropriações porque,

vivemos uma época em que os ideais dos direitos humanos passaram para o primeiro
plano tanto política quanto eticamente. Dedica-se muita energia política na
promoção, defesa e articulação de sua importância na construção de um mundo
melhor. Na maior parte, os conceitos em vigência são individualistas e baseados na
propriedade, e, como tais, em nada contestam a lógica de mercado hegemônica
liberal e neoliberal. Afinal, vivemos um mundo no qual os direitos de propriedade
privada e a taxa de lucro se sobrepõem a todas as outras noções de direitos em que
se possa pensar (HARVEY, 2014, p. 27).

Mesmo com leis que garantem ao artista o livre exercício de sua atividade, o Estado encontra meios
– ilegais, na sua maioria – de criminalizar a arte. Muitas vezes, em um processo criminoso do que chamam de
higienização, colocam as classes marginais para fora das cidades. Poderia relatar aqui inúmeros fatos - inclusive
violências com consequências graves - por conta da minha experiência com movimento, inclusive, através de um
contexto familiar, mas atentarei ao exemplo citado para explicitar o desrespeito e inutilidade dos artigos 2015 e
2016/88. Abaixo, o art.216/88:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e


imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, nos quais se incluem: I- as formas de expressão; II- os modos de criar,
fazer e viver; III- as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV- as obras,
objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações
artístico-culturais; V- os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico,
artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

Trazendo para um contexto atual, em 2018 se reiniciou uma luta na cidade de Belo Horizonte (MG)
para garantir aos Malucos de Estrada o direito de expor na Feira Hippie. Ou seja, a prefeitura de BH estava
proibindo e reagindo de forma truculenta com o grupo que originou o nome da feira mais famosa da capital
mineira. Em março deste mesmo ano, o então vereador Gilson Reis, PCdoB-BH, teve seu PL 233/2017 aprovado,
garantindo desta forma, a liberdade destes artistas de rua, possibilitando a livre comercialização e trânsito dos
mesmos na Feira Hippie. No entanto, em setembro de 2018, agentes da prefeitura agiram de forma bárbara contra
os Malucos de Estrada nesta Feira. Chegaram a quebrar o braço de um artesão e violentaram uma jovem grávida.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 68

Esta ação gerou comoção e ocasionou em amplo apoio à luta dos Malucos de Estrada. Veículos como BHAZ
publicaram matéria relatando episódio; o autor da Lei dos Artistas de Rua, Gilson Reis, publicou Nota de
Repúdio; a Gabinetona, representada pela pessoa de Cida Falabella, então vereadora pelo PSOL-BH esteve
pessoalmente na Feira, participando de um protesto e a vereadora e ativista, Áurea Carolina, PSOL-BH, realizou
publicação em suas redes sociais e criou abaixo-assinado a favor dos Malucos de Estrada. Podemos observar que
a luta em prol dos direitos da cultura do movimento está ganhando forma através do auxílio das redes sociais e
alianças políticas. No entanto, volto a indagação primária: tais alianças descaracterizariam o movimento, já que
o mesmo tem sua raiz cravada na contracultura? No entanto,

Nesse processo de naturalização, entre “cultos e não cultos”, descobre-se a produção


de um discurso identitário que repousa numa recusa de identidade do outro, q quem
se recusa qualquer possibilidade, mesmo que seja de formação. Como a identidade
se constrói e se reconstrói constantemente no seio das trocas sociais, como ela surge
na relação com o outro, não há identidade em si mesma. Existem menos diferenças
do que tentativas de diferenciação. Fenômenos de reprodução social formam-se,
oferecendo espaços de identificação negativa que favorecem a interiorização do
sentido de indignidade na origem da autocensura sentida por alguns diante dos
equipamentos culturais. (FLEURY, 2009, p. 54,55)

Entender as origens e transformações dos Malucos de Estrada, surge como necessidade primeira
quando a pauta é identidade. Perceber a cultura como algo mutável e transversal é essencial para dar
direcionamento e continuidade ao movimento. Compreender as apropriações da cultura dos Malucos de Estrada,
anteriormente tratados como Hippies, realizadas por parte do sistema capitalista, através da moda, das artes e da
política, é fundamental para traçar estratégias de salvaguarda, sejam estas criadas internamente, por meio da
autogestão do movimento, através de alianças com outros grupos e lutas de movimentos minoritários, ou com
recursos advindos do sistema, por meio de parcerias políticas ou institucionais.

Metodologia
A principal metodologia utilizada no presente trabalho é a pesquisa autobiográfica e etnografia. Como
pesquisa autobiográfica, está exposta a experiência como artesã da autora. A pesquisa etnográfica tem como
referência principal a coleta de informações entre os anos de 2015 à 2020. Nela, a pesquisadora utilizou técnicas
de observação, elaborando notas de campo e arquivando as informações coletadas. Utilizou, ainda, vários
depoimentos extraídos de conversas em grupos do whatsapp pertencentes ao movimento. É possível encontrar
estes artistas em todas as cidades do Brasil, especialmente as turísticas. Em geral, estes artistas encontram-se nas
autodenominadas “pedras-de-malucos”, que são lugares escolhidos para a venda do artesanato e reencontros
internos.
Foi a partir destes grupos que as pesquisadoras extraíram depoimentos sobre repressão ocorridos em
diversas partes do Brasil.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 69

Exposição dos fatos


Foram coletados três depoimentos de mulheres artesãs para exemplificar os abusos de poder do
Estado vivenciados por Malucxs de Estrada no país.

...vou te mandar um relato aqui, um de vários, que com certeza todo mundo que viaja,
que é alternativo, com certeza já deve ter se deparado. Mas em 2018, foi uma
curiosidade, eu tava em Ilha Bela e tava rolando um lance de repressão dos fiscais,
né?! Ou você fazia um cadatro na prefeitura, ou então se você for totalmente
alternativo, que é o meu caso, que eu não me sentia nessa vibe de ter esse cadastro,
de uniforme, que tem morador de lá que se diz maluco também e até usa, eu não
curtia.Então em 2018 eu tava passando um verão lá e aconteceu essa cena, onde tava
eu e várias malucas com família, aí os caras vieram, pegaram todos nossos trampos
na maior ignorância e sem diálogo nenhum, que é bem característico também dessa
opressão e pegaram os trampos de todo mundo. E assim, eu não quis ficar na Ilha
pra tentar resgatar, mas eu também continuei no contato com as minhas irmãs lá e
sei que todo mundo que perdeu os trampos lá, não conseguiu recuperar. Então foi
uma cena bem patética. Onde você trabalhar acaba se tornando uma agressão pro
lugar. Sei lá se é agressão ou se é a própria repressão que dá essa cara assim de
colocar a gente como errado, né?! Mas eu acho também distorcida a ideia, porque a
gente além de artista de rua, luta pela sobrevivencia. Todo mundo que vive da arte
até hoje, eu acho que merecia um respeito e um entendimento muito diferente de
toda essa parte administrativa dos lugares, onde proibe o artsão de ter este espaço
para expor seu trabalho e ter sua dignidade preservada. Apesar da gente ter o
conhecimento que existe a lei federal do artista de rua. Mas sabemos que ela não vale
de muita coisa não...”
Ilha Bela, 2018. Areia Andrade, Maluca de Estrada desde o nascimento.

Pode-se observar que os Malucos de Estrada conhecem a lei do artista de rua e reconhecem sua
legitimidade. Porém, não há aplicabilidade da mesma e nem diálogo por parte dos agentes estatais. O
recolhimento truculento das artes, muitas vezes, pode ser considerado roubo.

“Eu lembro uma vez que a gente chegou em Camburiú, lá do sul, em Balneário
Camboriú, e a gente chegou em uns oito malucos mais ou menos. Já chegamos
montando aquela feira, na orla, aí ja veio aquele monte de fiscal, segurança, tudo em
cima, dizendo: 'não, vocês não podem, não podem... E a gente né, não querendo
desmontar, e só tumultuando cada vez mais fiscal. Até que desmontamos e fomos
para outro lugar. Chegando em outro lugar, a mesma história também. A gente não
conseguia dar um passo, a gente ia para o lado, assim com o painel, tentando dar um
mangueio, e vinha fiscal atrás. Nossa, eu não conseguia respirar. Impossível ficar na
cidade, e a gente né, questinando, também. Até que eles arrumaram uma van,
colocaram a gente dentro e levaram para outra cidade. Nossa, Balneário foi muito
tenso. A gente ficou lá por algumas horas, e todo tempo que ficamos por lá, ficamos
escoltados por fiscais e polícia.”
Fabiana (Tata), Maluca de Estrada, Bauneario Camboriu-SC, 2003.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 70

Nota-se, por parte das prefeituras, execução de um crime social, denominado higienização. Em que
consiste afastar da cidade – muitas turísticas - o que os governantes locais bem entendem. Muitos crimes podem
ser observados nestas ações violentas: preconceito social; xenofobia, preconceito racial e ideológico.

Eu e uma maluca amiga chegamos em Búzios e resolvemos ir conhecer a praia. A


gente estava só caminhando, com nosso painel – nossos mostruários de trampo,
sabe?! – aí, de repente, parou uma Kombi branca ao nosso lado. A gente tentou correr
porque achou até que fosse um assalto. Mas eram quatro homens, enormes, que se
autodeclararam fiscais. Eles mandaram a gente ir embora da cidade naquela mesma
hora, caso contrário levariam a gente pra delegacia. Fui questionar, disse que não
podiam fazer aquilo. A gente era como qualquer pessoa. Só estávamos caminhando,
nem expondo a gente tava. Foi nessa hora que um deles mandou eu calar a boca, me
chamando de vagabunda. Aí, se dirigiu a minha amiga, que estava calada, morrendo
de medo, dizendo que ela era muito bonita e que ia pegar ela e levar “pra dar um
trato” na estrada e deixaria por lá mesmo. Nessa hora, os quatro homens começaram
a rir. A gente ficou muito mal, sabe?! A gente se sente um nada. Depois disso, eles
quiseram leva nosso painel e eu relutei. Conseguimos ficar com nossos trampos mas
eles foram escoltando a gente até a rodoviária. Ficaram lá olhando pra gente até a
hora que um ônibus chegou e a gente entrou pra sair da cidade. Sentimento de
impotência, sabe?! A gente nem queria ir pra cidade que o ônibus levou...na verdade,
a gente nem queria trabalhar em Búzios. A gente tava a fim mesmo era de conhecer,
dar um mergulho, tomar uma cerveja. Mas direito básico de cidadã, nem isso a gente
tem. Aliás, a gente tem, mas ninguém liga. Espero que um dia tudo isso seja tão
evidente e tão exposto, que o pessoal dos direitos humanos, por exemplo, comece a
defender a gente.”
Sabai, maluca de estrada desde o nascimento. Búzios, RJ, 2001.

De que forma o Estado garante os direitos básicos das pessoas que vivem à margem da sociedade?
Quantos crimes hediondos agentes estatais cometem a mando das prefeituras? Como os Malucos de Estrada
poderão se salvaguardar destes tipos de abuso?

Considerações Finais
Embora existam paradigmas que considerem como arte apenas os objetos produzidos dentro do circuito
acadêmico (sendo assim uma arte de poucos e para poucos), se partirmos do conceito de objeto cultural, podemos
entender as peças desenvolvidas pelos Malucos de Br como objetos impregnados de significações e expressões
das experiências individuais, e de símbolos culturais sociais, que remetem não somente ao artista que o criou,
mas também ao grupo contra cultural ao qual este pertence. Podemos, ainda, pelo viés da artificação compreender
como esses objetos deixam de ser artesanato para se configurarem como arte, como produto de um processo
social datado e situado, resultante ou até mesmo criador de um mundo social.
Destarte, os objetos desenvolvidos pelos Malucos de Br, o “Trampo de Maluco”, configuram-se em
legítimas obras de arte, e sua exposição deve ser entendida como manifestação artísticas deste grupo de
contracultura, que margeia a sociedade brasileira desde a década de 1960, mas que até os presentes dias tem tido
desrespeitados seus direitos enquanto artistas de rua, nas mais diversas partes do país. Portanto, faz-se mister que
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 71

cada município, quer através de seu Código de Posturas Municipal, quer em legislação específica, respeite os
direitos destes (bem como aos dos demais artistas), assegurando a exposição de suas peças nas ruas e nos mais
diversos logradores e eventos públicos, como garantem a Carta Magna e tratados de Direito internacional, como
a Convenção Sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais e a Declaração Universal
dos Direitos Humanos, pois as artes desenvolvidas pelos Malucos de Br são, além da expressão de sua
subjetividade e de uma estética que lhes é própria, configuram-se como sua forma de sobrevivência e de
resistência ao sistema capitalista, consistindo, portanto, em uma manifestação contracultural brasileira, que,
portanto, deve ser promovida e protegida, conforme rezam as legislações supracitadas

REFERÊNCIAS
ARENDT, H. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
AUGÉ, Marc. Não Lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas,SP: Papirus,
2012.
BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos. São Paulo: Editora Perspectiva, 2015
BECKER, S.Howard. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. BECK, Ulrich.
Sociedade de Risco: rumo a uma outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2011 BENJAMIN, Walter. A
obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre: Editora Zouk, 2012.
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: a arte de fazer. Petrópolis: Editora Vozes, 1994.
CORREA, Felipe. Rediscutindo o Anarquismo. Curitiba: Editora Prismas, 2015
DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2017
FEDERAL, Supremo Tribunal et al. Constituição da república federativa do Brasil. Supremo Tribunal
Federal, 1988. Disponível em: . Acesso em 10/10/2020.
FLEURY, Laurent. Sociologia da Cultura. São Paulo: Editora Senac, 2009.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2016.
GIORDANI, Tiago Melgarejo do Amaral. Nomadismo e Sociedade de Controle: estudo sobre os “malucos”
em uma tese partida ao meio. Tese de Doutorado. UFRGS. Porto Alegre, 2016. GOFFMAN, Erving. Estigma:
notas sobre a manipulação deteriorada. Rio de Janeiro: LTC, 2017. GOMES, Mirelle Albertha de Oliveira. Os
Malucos de Estrada e a apropriação do espaço público em João Pessoa/PB. Dissertação de Mestrado. UFPB,
João Pessoa, 2018.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro. Editora Lamparina. 2014.
HARVEY, David. Cidades rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo: Selo Martins, 2014.
HEINICH, Nathalie. A Sociologia da Arte. Bauru-SP: EDUSC, 2008.
LAGE, Rafael; SOARES, Ariane. A beleza da margem, a margem da beleza. (Blog) Acesso em: 02 out. 2018.
LEITÃO, Leonardo. Sobre Malucos e Micróbios: estilo de vida e trajetórias de artistas nômades. Dissertação
de Mestrado. UFF. Niterói, 2014.
LINDGREN-ALVES, José Augusto. É Preciso salvar os direitos humanos! São Paulo: Editora Perspectiva,
2018.
Luz, Kaiane Luanara Cirila Ferreira. A Arte dos Malucos de BR: Identidade e Resistência. Trabalho de
Conclusão de Curso. Claretiano – Centro Universitário. Minas Gerais, 2020.
MAFFESOLI, M. O Tempo das Tribos. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2014. _______. Sobre o nomadismo:
vagabundagem pós-modernas. Rio de Janeiro: Record, 2001
PIMENTEL, M. A arte de resistir ou a re-existência da arte. Acessado: 14/02/2015.
Disponível:http://deploy.extras.ufg.br/projetos/seminariodeculturavisual/images/anais/54_a_arte_de_re
sistir_ou_a_re-existencia_da_arte.pdf
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 72

SILVA NETO, Antonio Cláudio da. Malucos de Estrada: Cultura, Linguagens e Modos de Produção. Artigo
XVI Congresso Internacional FoMerco. Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, 2017.
SILVA, Sergio Luiz Pereira da. Sociedade da Diferença: formações identitárias, esfera pública e democracia
na sociedade global. Rio de Janeiro: Editora Mauad X, 2009.
STRAPPAZZON, André Luiz. Malucos de Estrada, experiência nômade e produção de modo de vida. Tese
de Doutorado. UFSC, Florianópolis, 2017.
VELHO, Gilberto. Um Antropólogo na cidade. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2013

BIOGRAFIA DA AUTORA
Virna Freitas Correia Lima Sehn, Publicitária com Especialização em Gestão e Elaboração de Projetos Sociais,
UNIFOR.
Kaiane Luanara Cirila Ferreira Luz, Graduanda em Artes Visuais, Centro Universitário Claretiano.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 73

CAPÍTULO 8
A FACE FEMININA DO ATIVISMO ANIMAL SOCORRISTA NO RIO
GRANDE DO NORTE

FÁTIMA CHRISTIANE GOMES DE OLIVEIRA

INTRODUÇÃO
Através deste artigo, busca-se mostrar a importância da mulher no movimento social de defesa animal,
concentrando-se no ativismo da protetora que resgata cães e gatos.
No contexto atual da sociedade brasileira, em que as fragilidades foram acentuadas pela crise provocada
pelo COVID-19, muitos são os grupos populacionais que estão vivenciando situação de vulnerabilidade,
excluídos do mercado de trabalho e sem renda.
Há um grupo populacional fortemente atingido que não possui visibilidade, por não ser humano, e quando
é mencionado, frequentemente, se dá por associação ao problema urbano de controle de zoonoses. Além disso,
este grupo não se insere no de indivíduos que podem buscar concessão de benefícios assistenciais do Estado.
Embora não façam parte da espécie humana, os animais em situação de rua são seres sencientes e capazes
de experienciar sentimentos de dor, frio, agonia e fome, assim como os humanos.
O estudo apresenta, inicialmente, informações advindas de pesquisa bibliográfica realizada no tocante à
legislação protetiva dos animais, aos tipos de ativismo relacionados a eles, e ao aumento da população de cães e
gatos em situação de rua.
Em prosseguimento, traz-se coleta de dados realizada junto a protetores que atuam no Rio Grande do
Norte resgatando animais que foram mapeados em contas da rede social Instagram, comumente utilizada por eles
para expor o trabalho realizado, e solicitar doações para o custeio de suas ações.
A importância deste trabalho está em revelar a prevalência da força feminina neste ato político de lutar
pela concretude do direito à vida e à existência, que é conferido legalmente a esses animais.

DESENVOLVIMENTO
É imprescindível, de início, a transcrição da Declaração Universal dos Direitos dos Animais assinada em
Bruxelas, em 27 de janeiro de 1978:

Preâmbulo:
Considerando que todo o animal possui direitos;
Considerando que o desconhecimento e o desprezo desses direitos têm levado e
continuam a levar o homem a cometer crimes contra os animais e contra a natureza;
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 74

Considerando que o reconhecimento pela espécie humana do direito à existência das


outras espécies animais constitui o fundamento da coexistência das outras espécies
no mundo;
Considerando que os genocídios são perpetrados pelo homem e há o perigo de
continuar a perpetrar outros;
Considerando que o respeito dos homens pelos animais está ligado ao respeito dos
homens pelo seu semelhante;
Considerando que a educação deve ensinar desde a infância a observar, a
compreender, a respeitar e a amar os animais,
Proclama-se o seguinte:
ARTIGO 1:
Todos os animais nascem iguais diante da vida, e têm o mesmo direito à
existência.
ARTIGO 2:
a) Cada animal tem direito ao respeito.
b) O homem, enquanto espécie animal, não pode atribuir-se o direito de exterminar
os outros animais, ou explorá-los, violando esse direito. Ele tem o dever de colocar
a sua consciência a serviço dos outros animais.
c) Cada animal tem direito à consideração, à cura e à proteção do homem.
ARTIGO 3:
a) Nenhum animal será submetido a maus-tratos e a atos cruéis.
b) Se a morte de um animal é necessária, deve ser instantânea, sem dor ou angústia.
ARTIGO 4:
a) Cada animal que pertence a uma espécie selvagem tem o direito de viver livre no
seu ambiente natural terrestre, aéreo e aquático, e tem o direito de reproduzir-se.
b) A privação da liberdade, ainda que para fins educativos, é contrária a este direito.
ARTIGO 5:
a) Cada animal pertencente a uma espécie, que vive habitualmente no ambiente do
homem, tem o direito de viver e crescer segundo o ritmo e as condições de vida e de
liberdade que são próprias de sua espécie.
b) Toda a modificação imposta pelo homem para fins mercantis é contrária a esse
direito.
ARTIGO 6:
a) Cada animal que o homem escolher para companheiro tem o direito a uma
duração de vida conforme sua longevidade natural.
b) O abandono de um animal é um ato cruel e degradante.
ARTIGO 7:
Cada animal que trabalha tem o direito a uma razoável limitação do tempo e
intensidade do trabalho, e a uma alimentação adequada e ao repouso.
ARTIGO 8:
a) A experimentação animal, que implica em sofrimento físico, é incompatível com
os direitos do animal, quer seja uma experiência médica, científica, comercial ou
qualquer outra.
b) As técnicas substitutivas devem ser utilizadas e desenvolvidas.
ARTIGO 9:
Nenhum animal deve ser criado para servir de alimentação, deve ser nutrido, alojado,
transportado e abatido, sem que para ele tenha ansiedade ou dor.
ARTIGO 10:
Nenhum animal deve ser usado para divertimento do homem. A exibição dos animais
e os espetáculos que utilizem animais são incompatíveis com a dignidade do animal.
ARTIGO 11:
O ato que leva à morte de um animal sem necessidade é um biocídio, ou seja, um
crime contra a vida.
ARTIGO 12:
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 75

a) Cada ato que leve à morte um grande número de animais selvagens é um


genocídio, ou seja, um delito contra a espécie.
b) O aniquilamento e a destruição do meio ambiente natural levam ao genocídio.
ARTIGO 13:
a) O animal morto deve ser tratado com respeito.
b) As cenas de violência de que os animais são vítimas, devem ser proibidas no
cinema e na televisão, a menos que tenham como fim mostrar um atentado aos
direitos dos animais.
ARTIGO 14:
a) As associações de proteção e de salvaguarda dos animais devem ser
representadas a nível de governo.
B) Os direitos dos animais devem ser defendidos por leis, como os direitos dos
homens. (ONU, 1978, grifo nosso)

O texto não deixa dúvida quanto ao fato de que todo animal têm direito à vida e à existência; que não pode
ser vítima de abandono e maus tratos; que o homem tem o dever de colocar a sua consciência à serviço de outros
animais; que as associações de proteção e salvaguarda dos animais devem ser representadas a nível de governo.
Esta declaração passou a servir de norte para que países criassem a sua própria legislação sobre o assunto,
como explica Paccagnela e Porto (2017):

A Declaração Universal dos Direitos dos Animais, surgida no ano de 1978, ganhou
destaque e força internacional como carta de princípios, e o Brasil não se excetuou a
esta influência.
Nos anos seguintes ao advento da Declaração, sobrevieram diversos dispositivos
legais brasileiros tratando de questões referentes à tutela da fauna. Apesar de,
seguramente, a Declaração não ser a única responsável por esta mudança de
mentalidade, sua influência é inegável, tornando possível verificar na legislação
brasileira a internalização de valores expressos na Declaração.

Há previsão na Constituição Federal vigente acerca da proteção dos animais no Art. 225 que é trazido:

Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem
de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao
poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as
presentes e futuras gerações.
§ 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao poder público:
I - Preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo
ecológico das espécies e ecossistemas;
[...]
VI - Promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a
conscientização pública para a preservação do meio ambiente;
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que
coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou
submetam os animais a crueldade.
(BRASIL, 1988, grifo nosso)
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 76

No Brasil, se encontra vigente também o Art. 32 da Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que dispõe
sobre as sanções penais e administrativas derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras
providências em sua nova redação:

Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres,
domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal
vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos
alternativos.
§ 1º-A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no
caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição
da guarda. (Incluído pela Lei nº 14.064, de 2020)
§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.
(BRASIL, 1998, grifo nosso)

Apesar do avanço que apresenta a previsão legal contida no artigo transcrito, notadamente quando dá um
tratamento diferenciado a quem adota tais condutas abusivas, aí incluído o abandono em relação a cães e gatos –
que são as grandes vítimas desse crime no meio urbano brasileiro – a realidade das ruas ignora o direito correlato.
Nesse ponto, é de se destacar que a Pandemia do COVID-19 só veio piorar um quadro que já revelava
números preocupantes, como alerta a matéria “Mesmo sem transmitir o coronavírus, cães e gatos têm sido alvo
de abandono”:

A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que só no Brasil exista mais


de 30 milhões de animais abandonados, entre 10 milhões de gatos e 20 milhões
de cães. [...]

Entretanto, é importante informar que cães e gatos não transmitem a Covid-19 para
humanos, de acordo com informações da OMS que contrariam notícias falsas (fake
news) em circulação. [...]

No Brasil, o abandono de animais é crime federal e em Minas Gerais já tem um


decreto regulamentado que pune os praticantes de maus-tratos contra os
animais no estado. São classificados maus-tratos atos ou omissões que privem o
animal de suas necessidades básicas, lesão ou agressão, abandono, exposição em
locais desprovidos de segurança, limpeza e desinfecção, dentre várias outras
situações.
Na rua, eles passam fome e sede, adquirirem doenças e ficam traumatizados.
Ao serem abandonados próximo ou em áreas de preservação ambiental, esses
animais causam impactos ao meio ambiente. (SEMAD, 2020, grifo nosso)

A pesquisa realizada pela AMPARA ANIMAL revela a gravidade vivida nesse momento por essa
população de animais em situação de rua:
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 77

Muita coisa mudou com a pandemia do novo coronavírus. Muitas pessoas perderam
os empregos, deram adeus aos amigos e parentes queridos, e tiveram reviravoltas na
rotina. A vida de muitos cães e gatos também mudou, já que o abandono de animais
cresceu 70% no Brasil durante a pandemia.
Animais que antes tinham comida, abrigo, saúde e segurança, agora passam fome,
medo e sofrem maus-tratos nas ruas de todo o país.
Os dados são da AMPARA Animal, uma Organização da Sociedade Civil de
Interesse Público (OSCIP) que presta ajuda às ONGs e aos protetores
independentes da causa animal. Segundo a AMPARA, o crescimento no
abandono de animais foi de 70% em 2020. Esse levantamento, foi feito com pelo
menos 530 instituições e protetores independentes de todo o Brasil.[...]
O fim do auxílio emergencial, o retorno ao trabalho daqueles que até então estavam
em home office e os recordes nos índices de desemprego no país são alguns fatores
comuns na vida de milhares de brasileiros, que podem ter influenciado o aumento no
abandono de animais domésticos nas ruas.[...]
Animais de raça, especialmente aqueles que são comprados em canis e gatis, ou
outros criadores, são menos abandonados. Quando o tutor desiste de cuidar do
animal, ele geralmente é doado para alguém que tenha interesse ou, então, é
revendido.
Já os animais sem raça, e sem qualquer característica física marcante que seja
atraente para os possíveis tutores, formam o maior contingente dos largados à
própria sorte nas ruas. Segundo a Ampara Animal, cachorros com pelo preto,
curto, de porte médio e sem raça definida, os famosos vira-latas, são os mais
preteridos na hora da adoção.
(COBASI, 2021, grifo nosso)

A leitura do texto permite que se faça um recorte que replica a realidade das pessoas que vivem em situação de rua:
o contingente maior dos animais nessa condição são de pelo preto e sem raça definida, comumente chamados de vira-latas,
que não tiveram a sorte de nascer com uma cor ou raça privilegiada.
Colocados os pontos iniciais relacionados aos direitos reconhecidos dos animais e do contexto atual de abandono
vivenciado por eles, é preciso se dizer que as políticas públicas relacionadas à sua proteção são raras e a destinação de verba
estatal para a causa ocorre geralmente motivada por demandas apresentadas pelas protetoras.
A prefeitura de Natal, por exemplo, tem promovido campanhas de castração de cães e gatos de forma esporádica,
tendo a primeira ação nesse sentido ocorrido no dia 28 de outubro de 2018, conforme noticia a matéria jornalística
“Prefeitura oferece castração gratuita de gatos em Natal”:

A Secretaria Municipal de Saúde, por meio do Centro de Controle de Zoonoses


(CCZ), encerra nesta quinta-feira (11) o período de cadastro online de aninais
para esterilização gratuita. A primeira ação de castração animal acontecerá no
dia 21 de outubro, no CCZ zona Norte.
“A castração é a maneira mais eficaz de combater a superpopulação de bichos, o
que consequentemente ajuda a diminuir a quantidade de animais que podem
transmitir doenças, até mesmo para o ser humano”, relembra Úrsula Torres, gerente
técnica do CCZ. A esterilização – que acontecerá no Centro de Controle de
Zoonoses, vai ser inicialmente realizada apenas em gatos machos. (grifo nosso)
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 78

Embora a iniciativa represente um avanço na política de tratamento do problema de superpopulação de


animais, ainda é um movimento incipiente que atinge uma pequena parcela da população carente que se encaixa
nos requisitos para gozar da castração gratuita.
A constatação das condições vivenciadas pelos animais de rua e da escassez de políticas públicas
suficientes para o amparo deles leva militantes, com um grau maior de conhecimento acerca de ferramentas que
podem ser utilizadas, a provocar o Estado ao cumprimento de seu dever de promover um meio ambiente
equilibrado.
Nesse ponto, exemplifica-se outra ação no Município de Natal, através da qual a jornalista e protetora
Mauriceia Cavalcante (@mauriceiacavalcante) na condição de presidente da associação ASPAN (@aspan_rn),
apresentou projeto à SEMSUR, obtendo a destinação de R$ 40.000,00 (quarenta mil reais) através de emenda
parlamentar para prestação de serviços cirúrgicos em gatos, que resultou na castração de 300 (trezentos) felinos
no ano de 2014.
Seu projeto serviu de espelho para outro, apresentado pela nova diretoria da ASPAN, que obteve a
destinação de R$ 100.000,00 (cem mil reais), também através de emenda parlamentar para castração de 400
(quatrocentos) animais, entre cães e gatos, no corrente ano.
Contudo, a grande maioria dos protetores age apenas por conta própria e “faz o que pode” para contribuir
atenuando as condições precárias dos animais de rua.
Apesar de se falar comumente em militantes ou defensores da causa animal como se fossem um grupo
homogêneo, eles desenvolvem o seu trabalho através de modos diversos.
Padilha (2020) chama a atenção para esta distinção:

A defesa animal, sob uma perspectiva sociológica, configura-se como um


movimento social na medida em que há uma ação coletiva voltada para os
interesses dos animais que entra em choque com os valores e políticas vigentes,
além de exigir do Estado mudanças na legislação voltada para os animais não
humanos. É importante salientar que ele é entendido como movimento social
pelos “outros”, ou seja, por toda a sociedade, que tratam todos os ativistas como
um grupo homogêneo, denominados por eles como defensores ou protetores dos
animais, mas veremos que internamente ele se manifesta com identidades
distintas.[...]
Ao estabelecerem essa relação de companheirismo ou de empatia, os defensores
dos animais criam formas de agir diferenciadas a partir de suas experiências
únicas com eles. […]
Os principais ativismos do movimento animal são:
- Teóricos, intelectuais que refletem sobre os direitos animais, sobretudo da
Filosofia e do Direito;
- Veganos abolicionistas (atuam nos protestos de rua, na internet e redes sociais, no
boicote ao consumo de produtos de origem animal ou testado em animais),
- Bem-estaristas (que lutam por medidas que não causem sofrimento animal sem
defender o fim de sua exploração) e
- Socorristas de animais domésticos abandonados (cachorreiras e gateiras).
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 79

E acrescenta:

As socorristas integram o movimento de defesa animal ao resgatarem cães e


gatos de maus tratos praticados por tutores, ou abandonados por estes nas ruas.
Elas praticam a libertação de animais com o resgate dos abandonados, como os
que estão em situação de exploração, por exemplo, os cães de guarda e os
animais de criadores em situações de maus tratos. Além disso, se opõem
publicamente contra as duas atividades, principalmente a venda de cães e gatos.
A maioria é composta por mulheres, donas de casa, acima dos 30 anos, muito
embora haja socorristas homens e mulheres jovens, mas em número bem
menor. Por isso, sempre serão tratadas neste trabalho pelo pronome feminino.
Elas próprias se intitulam protetoras de animais, mas são mais conhecidas
jocosamente como “cachorreiras” e “gateiras”.
A filósofa Sônia T. Felipe (2001) criou o termo “socorrista”. Segundo ela, “Não
o havia lido em qualquer outro lugar, mas senti que era o termo apropriado para
designar o trabalho de milhares de pessoas que ajudam os animais ameaçados por
outros humanos. Pensei no termo por analogia aos humanos que trabalham nas
ambulâncias e vão socorrer pessoas atropeladas, machucadas ou agonizantes. Achei
bonito o termo para designar os humanos que fazem o mesmo pelos
animais”.[...]
A prática da socorrista, mesmo que não se engaje numa ação maior, tem uma
importância que se encerra no interesse do próprio animal em não sentir dor e fome.
As socorristas, gateiras e cachorreiras, têm uma relação quase maternal com os
resgatados.[...]
Por outro lado, as socorristas têm participação constante em ações e protestos
dirigidos ao Estado, contra a falta de políticas voltadas para os animais
domésticos de companhia. [...]
O resgate das protetoras de animais de companhia não implica uma ausência
de altruísmo em relação às demais espécies, mas porque se deparam
frequentemente com os abandonados nos espaços urbanos. Não se trataria tanto
de um problema de espécies privilegiadas (de onde provém a acusação de
“especismo”), mas de uma proximidade física e existencial e do testemunho
direto do sofrimento de determinados animais em um ambiente doméstico
urbano... (grifo nosso)

Conforme dito anteriormente, esta análise se limita ao trabalho de ativistas socorristas, ou seja, pessoas
que resgatam cães e gatos de rua, acolhendo-os em abrigos, lares temporários, clínicas veterinárias e hotéis.
Santin e Souza (2019) apresentam o artigo “Caracterização do perfil dos indivíduos que resgatam animais
em situação de maus tratos”, identificando, também, a maior presença de mulheres:

Na sociedade atual, existem pessoas que por conta própria se voluntariam a


resgatar, cuidar de animais abandonados e encaminhá-los para adoção, são os
protetores independentes. [...]
os protetores lidam com uma carga psicológica pesada, resgatando ninhadas
abandonadas em caixas de papelão, ou animais atropelados agonizando e até
recebendo mensagens absurdas dizendo que o animal da família precisa ser
encaminhado para algum abrigo ou ONG porque a pessoa vai se mudar, ou tem
alergia, ou porque a mulher está grávida, a mãe não quer mais etc. Tudo com o intuito
de abandonar o animal. [...]
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 80

notou-se um número significativamente maior de indivíduos do sexo feminino,


correspondendo à 46 (96%) indivíduos, [...]
O maior número de mulheres envolvidas neste tipo de ação, demonstra
efetivamente que a presença feminina tem sido ativa e prevalente na causa
animal, fato também observado por Morais et al. (2014) e Osório (2017b). (grifo
nosso)

No intuito de aferir se há uma dominância de mulheres exercendo este trabalho no Rio Grande do Norte,
esta autora entrou em contato com os protetores que foram mapeados através da rede social Instagram e com
outros indicados por pessoas ouvidas, através de meios síncronos e assíncronos de comunicação: mensagens por
direct no Instagram, mensagens de texto e de áudio no WhatsApp, e ligações telefônicas.
O questionamento inicial visava saber se o protetor realizava resgate de animais, tendo sido descartadas
as respostas dos que não adotavam essa prática e trabalhavam com outro tipo de ativismo, tais como
conscientização acerca de assuntos ligados à causa animal e divulgação de pedidos de ajuda e adoção de outros
protetores.
Nos casos de associações formais, abrigos informais e coletivos de protetores que efetivamente laboravam
com resgate, foi perguntado quem era a pessoa responsável pelo trabalho, qual o local de atuação, a conta do
Instagram de divulgação e o número de animais acolhidos no momento da pesquisa, não sendo feita esta última
indagação aos coletivos, uma vez que não possuem local específico para acolhimento de animais.
Aos protetores independentes foi questionado apenas nome, local de atuação e conta de divulgação no
Instagram.
Entre os dias 05 e 15 de maio do corrente ano, foram analisados os resultados obtidos, descortinando uma
realidade no Estado semelhante a que foi relatada nos artigos transcritos anteriormente, de autoria de Padilha e
de Santin e Souza, quanto à prevalência de mulheres à frente de resgates.
Dentre as respostas, foi constatada a existência de 10 (dez) associações formalizadas de proteção animal,
e 10 (dez) abrigos informais que realizam resgates e custeiam suas atividades basicamente com recursos
financeiros decorrentes de doações de particulares.
A seguir, são apresentados os dados colhidos relativos às associações formais (primeira tabela), e abrigos
informais (segunda tabela), com o número médio de animais acolhidos no momento da resposta, o município em
que se encontram, a conta respectiva na rede social Instagram,20 e a pessoa responsável por cada instituição:

ASPAN 78 Natal @aspan_rn Rose Guerra

INSTITUTO SENHORES PATAS 80 Parnamirim @institutosenhorespatas Luciene Lima de Azevedo

20 A autora optou por revelar as contas de divulgação dos protetores na rede social Instagram para dar visibilidade ao trabalho
realizado pelos mesmos e facilitar eventual contribuição por quem o deseje fazer.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 81

INSTITUTO HOPE 50 Natal @institutohopern Mariana Selma Stabili da Silva

AMIGOS DE CHIQUINHO 44 Currais Novos @ongamigosdechiquinho Luana Gabriella Macedo de Araújo

GAAP PIPA Não informado Tibau do Sul @gaap.pipa Dolymar Wormsbecker

PATAMADA 200 Natal @patamadaong Henrique Knopik Angelim

AMPARAA 68 Caicó @ampa.raa Maria das Graças Maia

ACAPAM 350 Caicó Ardnáscela Soares

CEMAPA ABRIGO MOSSORÓ 40 Mossoró @abrigomossoro Gleice Carle Barbosa da Silva

SOS ANIMAL ASSU 19 ASSU @sosanimalassu Larissa Soares Veloso

AMOR DE 4 PATAS 70 Macaíba @amorde4patas Thayze Rodrigues Duarte

LAR AMORA BRAYAN 300 Natal @lar.amorabrayan Marta Maria Silva Câmara

INSTITUTO VITORIAVITÓRIO 150 Parnamirim @institutovitoriavitoriorn Régia Vitória Delgado Vitório

ABRIGO PARAÍSO DE PIUM 95 Parnamirim Sem conta Rejane Modernel Rodrigues

UNIDOS PELOS ANIMAIS 63 Natal @unidos_animais Liane Dantas de Araújo

SÃO FRANCISCO 92 Natal Sem conta Iris Varela de Oliveira

PETS COM AMOR 62 São Paulo do Potengi @petscom_amor Milena Rissia Martins

ABRIGO ACOLHER 80 Natal @abrigoacolher Eliete Paula França

LAR VITORIA CRISTAL 123 Extremoz @abrigo_larvitoriacristal7 Lígia Karina

ABRIGO VIDAS 21 Mossoró @_vidasimportam Jessica Bessa

O resultado da pesquisa revelou, ainda, a existência de 5 (cinco) coletivos de protetores, sendo 4 (quatro)
deles em Natal e 1 (um) em Caraúbas.
O primeiro deles chamado “Gatinhos do Hiper” (@gatinhosdohiper) se iniciou como um projeto de
extensão universitária em Natal sob a responsabilidade da professora Julimar da Silva Gonçalves. O projeto foi
pensado para promover a convivência harmônica entre humanos e animais em espaços públicos, mas foi
descontinuado após a venda do estabelecimento que servia de morada para os animais. A professora responsável
o transformou, então, em um projeto pessoal buscando a realocação dos gatos comunitários para um terreno
cedido temporariamente pela empresa que comprou o estabelecimento, onde seguem sendo cuidados, castrados
e à espera de adoção sob a responsabilidade da professora.
Outro projeto de extensão universitária em Natal, cuja responsável é a discente Stella Maris Tita
Mascarello, é o “Gatinhos da UFRN” (@gatinhosdaufrn), que visa unir estudantes para promover a castração e
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 82

encaminhamento para adoção dos gatos residentes nos setores diversos do campus da UFRN – Universidade
Federal do Rio Grande do Norte.
Observou-se em Natal, ainda, um grupo de voluntários chamado “Amor em atos” (@amorematosnatal),
idealizado pelo veterinário Felipe Guedes, através do qual voluntários resgatam, castram e encaminham para
adoção animais carentes, ou retirados das ruas.
Por fim, verificou-se em Natal o coletivo denominado “Uma casa para um gato” (@umacasaparaumgato),
sob responsabilidade da professora Claudia Regia Tavares, que objetiva alimentar, castrar e disponibilizar para
adoção os gatos residentes no IFRN – Instituto Federal Rio Grande do Norte.
Já no Município de Caraúbas (@projetoanjoscaraubas), foi encontrado um coletivo de protetores
idealizado por Rosângela Alves Fernandes, em que voluntárias alimentam animais em situação de rua, além de
os resgatarem e direcionarem para adoção.
Chama a atenção, dentre os grupos que atuam no Município de Natal, que três deles têm origem em
instituições de ensino, o que revela a tendência de uma reflexão acadêmica e conscientização de pessoas em
formação a respeito do assunto, medida essencial para uma mudança estrutural e futura na maneira de se abordar
o problema.
Devem ser acrescidos aos formatos mencionados, os protetores que não integram grupos e não possuem
um local específico para os animais socorridos. Eles costumam alimentar diariamente comunidades de animais
que vivem em locais públicos, além de resgatar cães e gatos na medida da capacidade de cada um, utilizando-se
de suas residências como lar temporário ou pagando clínicas e hotéis para pets para acomodá-los.
A tabela a seguir traz socorristas independentes, local de atuação e respectivas contas do Instagram em
que divulgam seus resgates e pleiteiam doações de ração, medicamentos, ajuda financeira. Chama a atenção o
fato de que, entre as 30 (trinta) pessoas que se encaixam nesse perfil, apenas uma é do sexo masculino.

Ana Karla Nunes de Oliveira Natal @alvinho_e_mimoso

Ângela Lima dos Santos Fonseca Parnamirim @patinhasdoamor

Angelica S. de Oliveira Natal @angelica.rumba

Antônia Ferreira do Carmo Coronel Ezequiel sem conta no Instagram

Beatriz Lopes Natal @bialopess_

Auda Janaína da Silva Natal @janinha6193

Camila Bruna Lima Nascimento de Andrade Natal @ajudandotheo

Débora Reis Natal @deborareiss


Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 83

Eleneide Maria Vieira (Neide) Natal sem conta no Instagram

Elisangela Oliveira da Silva Natal @elisa.dias.pet

Helena Patrícia Brito de Lima Natal @animalesperanca

Isabel Cristina Fagoti Natal @isabelcfagoti

Isabelle Garcia Natal @projetocasadebichano

Jailson França de Lucena Caicó @jailsonprotetor

Kalline Regis São Gonçalo do Amarante @_meumelhoramigo_

Leilane Conceição da Silva Natal @rngatinhos

Luciana Silva Natal @osmeninosdemarice

Leonise Patrício do Nascimento Natal @felicia.patricia

Lucia Maria Pimentel Natal @gatinhosdalupimentel

Luciene Pinheiro e Souza Natal @lucienepinheiro13

Maria das Vitorias de Oliveira Natal @balaiodegatos

Maria de Fátima Gomes de Oliveira Natal @encontre.seu.amor

Maria de Lourdes Silva dos Santos Natal sem conta no Instagram

Mariah Francisca Cavalcanti Prestes Teixeira Natal @ong_dalara

Mayara Ferreira de Farias Natal @mayarafariasf

Milena Ríssia Martins Natal @petscom_amor

Mércia Carla Andrade Natal @ninaanimaisderua

Sayuri Yamazaki Natal @sayuriyamazaki

Tainara Estefane da Silva Parnamirim @patinhasdoamor

Yasmin Lamachhia Natal @ylucifera

É essencial o registro de que as instituições formais, abrigos informais, coletivos de protetores e protetores
independentes mencionados aqui, não exaurem o contingente de pessoas que trabalham com proteção animal no
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 84

Estado, apresentando uma amostra advinda da resposta à pesquisa realizada dentre as contas mapeadas no
Instagram e protetores indicados por pessoas ouvidas.
Concentrando-se no objeto da indagação feita, revelou-se a existência de um protetor do sexo masculino
à frente de uma associação formal; um à frente de um coletivo de protetores e um como socorrista independente.
Não aferimos a presença de nenhum homem à frente de abrigos informais.
Partindo-se daí, pode-se afirmar que a prática do resgate de animais em situação de rua no Rio Grande do
Norte é feita majoritariamente por mulheres: o percentual de mulheres à frente de associações, abrigos, coletivos
ou trabalho independente é de 94,55%, enquanto o de homens foi de 5,45%. Ou seja, o contingente de socorristas
é eminentemente feminino.
Assunto que não foi alvo de questionamento, mas veio à tona em algumas entrevistas foi a menção de
socorristas acerca de problemas pessoais como ansiedade e depressão gerados pelas condições em que vêm
desenvolvendo seu trabalho no contexto da atual crise sanitária, em que houve aumento de abandono de animais
e diminuição de doações.
Disse uma delas espontaneamente ao se referir sobre a sua cidade Caicó: “existem aproximadamente 6
mil animais abandonados”, e prosseguiu “temos muitos protetores com depressão”.
Outra protetora de Natal falou a respeito de sua parceira de resgate e confessou: “ela não está bem...
também não estou... estamos perturbadas... animais doentes demais...”.
Um relato comovente foi dado pela protetora Iris Varela de Oliveira, responsável pelo abrigo São
Francisco em Natal, no dia 09 de maio:

Eu tenho o maior prazer, eu sou escancarada em dizer que amo meus animais...ei,
hoje eu vivo só por causa disso, minha filha...marido meu me largou, filho meu me
largou... tudinho, tudinho...até porque todo mundo sabe da minha história... eu joguei
tudo pro o alto... tudo, tudo, tudo pro alto pra ficar com eles... mandarem eu escolher,
eu não tinha escolha porque eu já tinha bicho demais e eles queriam que eu
abandonasse... não.... nunca na vida... aí pronto, eles disse “pois eu vou sair de
casa”... pois saia... até a casa eles tomaram de mim... aí eu vivo de aluguel aqui, eu
vivo de aluguel... eu pago um aluguel com a ajuda do povo... e nenhum vem aqui
não, viu... hoje é o dia das mães e nenhum ligou nem pra dizer parabéns pelo seu
dia... eles não falam comigo não... já faz anos... e eu não tô nem aí... sou feliz do jeito
que eu sou.

Uma protetora ouvida por telefone narrou que estava muito abalada pelo último resgate realizado, que
ocorreu após achar uma caixa de papelão com gatos recém-nascidos na chuva, estando um deles já morto. E
concluiu:
As pessoas são cruéis, não respeitam nem a maternidade, socorri os bebês que
estavam na chuva porque não sobreviveriam ali e fico pensando na mãe que vai
voltar e não vai encontrar os filhos resgatados... fico pensando na sua desorientação
pelo abandono e pela perda da ninhada.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 85

Quase todas as protetoras agradeceram a esta autora pelo interesse em ouvi-las, relatando que são
chamadas de loucas e de acumuladoras de animais, que recebem tratamento hostil quando pedem doações, que
são questionadas por que não ajudam pessoas, e sentem angústia por não conseguirem retirar mais animais da rua
ou oferecerem melhores condições aos que são resgatados.
A imersão no mundo das mesmas, durante aproximadamente 10 (dez) dias, deixou a impressão de que se
trata de um grupo que não possui visibilidade dentro da sociedade, encontrando amparo apenas entres as próprias
protetoras que se ajudam mutuamente, e que se encontra altamente vulnerável, atingindo o limite do esgotamento
financeiro e emocional.

CONCLUSÃO
A conclusão deste trabalho não deixa dúvida quanto à importância do papel da mulher no movimento
social de proteção animal no Rio Grande do Norte no que tange especificamente ao socorrismo que resgata
animais em situação de rua.
O resultado obtido revela a tendência que havia sido detectada em estudos anteriores que foram transcritos
quanto à prevalência maciça da presença feminina neste tipo de ativismo.
À exceção de três casos observados, todas as demais respostas identificaram socorristas do sexo feminino
atuando à frente de abrigos informais, associações formais, coletivos de protetores e atuações independentes,
perfazendo o percentual de 94,55% de participação de mulheres neste proceder.
As protetoras socorristas participam de um grande movimento social: algumas têm a consciência do papel
que exercem na sociedade e participam de atos e protestos dirigidos ao Estado para cobrar políticas públicas de
assistência aos animais em situação de rua; outras, apenas buscam aliviar a fome e a dor dos animais resgatados
como verdadeiras missionárias.
Elas defendem direitos que não são seus, e sim de animais que não podem falar e nem exigir o tratamento
que a lei lhes confere. Através desta postura, se tornam a voz e a força de espécies que não conseguem se expressar
em defesa própria.
O resgate, ao final, se revela como um ato político de afirmação do direito à vida e à existência, que é
assegurado a todo animal, conforme a Declaração Universal de seus direitos e a própria legislação brasileira.
Ao mesmo tempo, é uma resistência, nem sempre consciente, ao especismo.

REFERÊNCIAS

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da
República, [1988]. Disponível em:
https://www.senado.leg.br/atividade/const/con1988/con1988_07.05.2020/art_225_.asp. Acesso em: 11 mai. 2021.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 86

BRASIL. Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre as sanções penais e administrativas derivadas
de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da
República, [1998]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9605.htm. Acesso em: 06 mai.
2021.
COBASI, 2021. Abandono de animais domésticos cresce 70% durante a pandemia. Disponível em:
https://blog.cobasi.com.br/abandono-de-animais-domesticos-cresce-70-durante-a-pandemia/. Acesso em: 06
mai. 2021.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos direitos dos animais. Bélgica: 27 jan.
1978. Disponível em: http://www.urca.br/ceua/arquivos/Os%20direitos%20dos%20animais%20UNESCO.pdf.
Acesso em: 06 mai. 2021.
PACAGNELLA, Amanda F e PORTO, Adriene C. de S. A verdadeira natureza jurídica da Declaração Universal
dos Direitos dos Animais e sua força como carta de princípios. Revista Âmbito Jurídico, São Pulo, 01 out. 2017.
Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-ambiental/a-verdadeira-natureza-juridica-da-
declaracao-universal-dos-direitos-dos-animais-e-sua-forca-como-carta-de-principios/. Acesso em 06 mai. 2021.
PADILHA, Mônica S. B. Apontamentos etnográficos da defesa animal e seus ativismos nas relações
interespécies. Revista do Núcleo de Antropologia da USP, São Paulo, 28 mar. 2020. Disponível em:
https://journals.openedition.org/pontourbe/8193. Acesso em: 06 mai. 2021.
NICÁCIO, Rafael. Prefeitura oferece castração gratuita de gatos em Natal. PORTAL N10, Natal, 11 out. 2018.
Disponível em: https://oportaln10.com.br/prefeitura-oferece-castracao-gratuita-de-gatos-em-natal-
84408/#ixzz6uwKfwOqF. Acesso em: 15 mai. 2021.
SANTIN, Ana P.I e SOUZA, Viviani A. De. Caracterização do perfil de indivíduos que resgatam animais em
situação de maus-tratos. Enciclopédia Biosfera, Goiânia, v.16, n. 29, p. 491-503. Disponível em:
http://www.conhecer.org.br/enciclop/2019a/agrar/caracterizacao%20do%20perfil.pdf. Acesso em: 06 mai.
2021.
SEMAD - SECRETARIA DE ESTADO DE MEIO AMBIENTE E SUSTENTAVEL DE MINAS GERAIS.
Página Institucional. Mesmo sem transmitir o coronavírus, cães e gatos têm sido alvo de abandono. Publicado
em 26 mar. 2020. Disponível em: http://www.meioambiente.mg.gov.br/noticias/4135-mesmo-sem-transmitir-
o-coronavirus-caes-e-gatos-tem-sido-alvo-de-abandono. Acesso em: 06 mai. 2021.

BIOGRAFIA DA AUTORA
Fátima Christiane Gomes de Oliveira
Juíza do Trabalho do TRT da 21ª Região
Ativista teórica da causa animal
Especialista em Resolução de Conflitos: práticas restaurativas pela FAVENI
Mestranda em Resolução de Conflitos e mediação pela FUNIBER
E-mail: Christiane@trt21.jus.br
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 87

CAPÍTULO 9
A EXCLUSÃO DO SER MULHER NA SOCIEDADE DO PATRIARCADO-
CAPITALISMO-RACISMO

MARCELA DA SILVA MELO21

Este estudo traz a questão do SER MULHER nessa sociedade marcada pela tríade, a qual Saffioti
(1987) vai nomear “patriarcado-racismo-capitalismo”, a medula espinhal da discussão à qual daremos corpo.
Beauvoir (1970), em sua célebre obra “O Segundo Sexo”, nos traz reflexões bem ancoradas que
plantam, e virão a plantar dentro de cada uma de nós, a ideia de que não nascemos mulheres: como a sociedade
nos cobra que sejamos. Mas somos transformadas em mulheres, a partir da naturalização de comportamentos
sociais. Esta, sem dúvidas, foi a mais insidiosa armadilha já criada para as mulheres, e todas fomos guiadas por
esta atraente e sinuosa estrada.
O fato é que, todas as formas de discriminação servem ao propósito de maior exploração por parte do
capital. Logo, identificamos que as atitudes machistas são alimentadas em nossa sociedade também para se
transformar na cola que mantém unida a tríade da dominação-exploração: “patriarcado-racismo-capitalismo”, que
ao atuar conjuntamente formam um só sistema de poder e será a atuação desses mecanismos que definirão o rumo
pelo qual serão conduzidas as lutas sociais e do SER MULHER (SAFFIOTI, 1987).
Portanto, não há como dissertar sobre as mulheres sem que seja realizada uma análise conjuntural e
estrutural de como o existir do SER MULHER é guiado e definido no decorrer da história da civilização,
enfaticamente pela ação conjunta do capitalismo, Estado e mercado de trabalho, que têm se modificado e
contribuído para a formatação dessa sociedade que, essencialmente, subordina e desumaniza as mulheres, nessa
dolorosa realidade de exclusão estrutural a que estão submetidas.
Isto posto, indicamos que o texto foi dividido da seguinte forma: na primeira parte foram
demonstradas as tessituras que formam o tecido social no qual a humanidade, anteriormente ao capitalismo,
definiu o lugar da mulher na sociedade, assim como a participação posterior, essencial e impositiva do
capitalismo, Estado e mercado de trabalho para a perpetuação da subalternidade designada ao SER MULHER.
Na segunda parte, é apresentada a resistência advinda do SER MULHER, suas controvérsias, e indicações de que
há formas de lutar para que a consciência do SER MULHER seja o norte capaz de trazer verdadeiramente o
existir do SER MULHER livre das amarras que nos limitam, nos sujeitam e nos excluem socialmente.

21 Mestra em Avaliação de Políticas Públicas pela Universidade Federal do Ceará (UFC) com bacharelado em Administração –
marcelamelo@ifce.edu.br
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 88

SER MULHER: A EXCLUSÃO GERADA NO VENTRE DA HUMANIDADE


Compreender os aportes que engendram o ser mulher em nossa sociedade, ancora os argumentos
capazes de apreender e formalizar parte essencial desse estudo: a questão de gênero.
O historiador israelense, Harari (2018), aborda que, as mais diferentes sociedades sempre adotaram
diferentes padrões de hierarquias imaginadas. Por certo, a raça é um elemento importante para os norte-
americanos modernos, mas, para os muçulmanos, era relativamente irrelevante. Na Índia medieval, a casta foi
posicionada como uma questão de vida e morte, enquanto na Europa moderna é insignificante. Há, contudo, uma
hierarquia à qual sempre foi dada grande relevância, em todas as sociedades humanas conhecidas: a hierarquia
de gênero. A rigor, todos os povos se dividiram entre homens e mulheres. E, os homens foram privilegiados em
quase todos os lugares, pelo menos desde a Revolução Agrícola.
Nessas sociedades, as mulheres eram tidas como mera propriedade dos homens, particularmente do
pai, marido ou irmão. É conhecido que, em muitos sistemas jurídicos, o estupro era enquadrado como violação
de propriedade, situação em que não se considerava a mulher como vítima, mas o homem a quem ela pertencia.
Nessas situações, a pena ao estuprador era pagar o valor de uma noiva ao pai ou ao irmão, e, a partir daí ela se
tornava propriedade do seu estuprador (HARARI, 2018).
Inquestionavelmente, a liberdade civil não se caracteriza pela sua essência universal, mas como um
atributo masculino que depende do direito patriarcal (PATEMAN, p. 16). “As mulheres não participam do
contrato22 original através do qual os homens transformam sua liberdade natural na segurança da liberdade civil”
(BAUMAN, 1999, p.21).
Sabemos que o sexo de cada pessoa é coisa simples de conseguir, basta nascer com um cromossomo
X e um Y para que seja considerado do sexo masculino, analogamente, só é necessário um par de cromossomos
X para pertencer ao sexo feminino. Mas o gênero, esse é coisa séria, porque ser homem ou mulher é uma tarefa
árdua, muito complicada e exigente. Pois, nenhuma sociedade agracia automaticamente as pessoas do sexo
masculino como homens ou do sexo feminino como mulheres e, tampouco, são títulos que restem garantidos por
toda a vida depois de conquistados. Aos indivíduos do sexo masculino é exigida a prova de sua masculinidade de
forma constante e ininterrupta, por toda a vida, em uma acumulação interminável de ritos e performances. E, para
ser mulher, é preciso um trabalho sem fim, pois ela precisa convencer a si mesma e aos demais de que é feminina
o bastante (HARARI, 2018). E, “a sociedade investe muito na naturalização deste processo.” (SAFFIOTI, 1987).

22 Forma de filosofia política, e que três contratualistas (Thomas Hobbes, John Locke e Jean Jacques Rousseau) afirmavam que a
origem do Estado e da sociedade está num contrato social: anteriormente, as pessoas teriam vivido em um estado de natureza, mas
através de um pacto firmado entre a maioria dos indivíduos de uma comunidade foram estabelecidas as regras de convívio social e
instauradas as instituições do poder político. Disponível em:< https://www.infoescola.com/filosofia/contrato-social/>. Acesso
em: 20/10/2019, às 07h38.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 89

No patriarcado moderno, a diferença entre os sexos é apresentada como uma diferença essencialmente natural. O
direito patriarcal dos homens sobre as mulheres é apresentado como um reflexo da própria ordem da natureza
(BAUMAN, 1999, p.35).
Em suma, os seres humanos nascem machos ou fêmeas, mas será a partir da educação recebida que
se tornarão homens e mulheres. O gênero, ou identidade social, é, portanto, socialmente construída. E, nas
sociedades de tecnologia altamente sofisticadas, a natureza é crescentemente marcada pela intervenção humana
(SAFFIOTI, 1987). O que nos leva a compreender um pouco mais sobre as formas de agir da cultura, pois esta

Tende a argumentar que proíbe apenas o que não é natural. Mas, de uma perspectiva
biológica, não existe nada que não seja natural. Tudo o que é possível é, por
definição, também natural. Um comportamento verdadeiramente não natural, que vá
contra as leis da natureza, simplesmente não teria como existir e, portanto, não
necessitaria de proibição. Nenhuma cultura jamais se deu ao trabalho de proibir que
os homens realizassem fotossíntese, que as mulheres corressem mais rápido do que
a velocidade da luz, ou que elétrons com carga negativa atraíssem uns aos outros
(HARARI, 2018, p.202).

Saffioti (1987) acentua não ser suficiente apenas ter conhecimento da capacidade humana de
transformar a natureza, é preciso compreender que existe ainda o processo inverso, onde se naturalizam os
processos socioculturais. Dessa forma, estabelecesse que é natural que a mulher pertença ao espaço doméstico e
que o homem é destinado ao espaço público, como um resultado natural da história. Numa interação em que as
diferenciações históricas são eliminadas enquanto as características “naturais” são ressaltadas. Assim, a
naturalização dos processos socioculturais de discriminação contra a mulher e outras categorias sociais constitui
o caminho mais curto e eficaz para a legitimação da “superioridade” dos homens, bem como a dos brancos, a dos
heterossexuais e a dos ricos, por exemplo. Pois, “na verdade, nossos conceitos de ‘natural’ e ‘não natural’ não
são tirados da biologia, mas da teologia cristã.” (HARARI, 2018, p.203).
A verdade é que o discurso naturalizado de que lugar de mulher é em casa serve de argumento de
convencimento da ideologia dominante, que tem entre suas consequências, a diminuta possibilidade das mulheres
serem estimuladas a desenvolver todas as potencialidades de que são portadoras (SAFFIOTI, 1987).
Isto posto, cabe destacar que essa realidade traz outros desdobramentos à vida em sociedade. Pois, ao
tentar ensinar os homens a auxiliarem a mulher nas atividades de cuidado com os filhos e com a casa, ratifica-se
que a responsabilidade é do outro (a mulher). O que demonstra que, nada é mais cruel do que disfarçar a
dominação dos homens sobre as mulheres através da “ajuda” que possam oferecer-lhes. O mesmo raciocínio é
utilizado ao considerar que o trabalho fora de casa, exercido pelas mulheres, trata-se de “ajuda ao marido”. Essa
justificativa apenas contribui para que sejam ofertados salários menores às mulheres que, em seguida, causa a
desvalorização inclusive dos salários dos homens (SAFFIOTI, 1987). Em nossa sociedade, para as mulheres, “o
gênero é uma corrida em que os corredores competem apenas pela medalha de bronze” (HARARI, 2018, p.209).
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 90

É verificável que, em quase todas as sociedades agrícolas e industriais, o patriarcado sempre atuou
como norma. Por exemplo, o Egito foi conquistado por diversos povos e por inúmeras vezes no decorrer dos
séculos, mas a sua sociedade permaneceu patriarcal, ou seja, mesmo governado por diferentes leis, todas
discriminavam as pessoas que não fossem consideradas “homens de verdade” (HARARI, 2018). Sobre o
patriarcado cabe esclarecer que:

O direito paterno é somente uma dimensão do poder patriarcal e não a fundamental.


[...] O patriarcado deixou de ser paternal há muito tempo. A sociedade civil moderna
não está estruturada no parentesco e no poder dos pais; no mundo moderno, as
mulheres são subordinadas aos homens enquanto homens, ou enquanto fraternidade
(BAUMAN, 1999, p.18).

Nessa sociedade, os capitalistas são autorizados a explorar os trabalhadores, enquanto os maridos


podem explorar as esposas, isto porque trabalhadores e esposas são subordinados através dos contratos de trabalho
e de casamento respectivamente. Logo, o objeto desses contratos é um tipo especial de propriedade: a propriedade
em que indivíduos têm indivíduos (BAUMAN, 1999).
Apesar disso, mesmo que o contrato sexual23 seja deslocado para o contrato de casamento, isto não
significará que o direito sexual masculino esteja restrito às relações conjugais. Cabe reconhecer que, embora o
casamento se apresente como de grande importância na esfera privada, o poder natural dos homens abarca todos
os aspectos da vida civil. Pois, como a sociedade civil como um todo é patriarcal, as mulheres encontram-se
submetidas aos homens, seja na esfera privada ou na pública. Ou seja, o principal suporte estrutural unindo as
duas esferas no todo social é o direito patriarcal dos homens (BAUMAN, 1999).
Em face disso, as fronteiras entre o público e o privado sempre demarcaram a sujeição das mulheres
na História da Humanidade, e, até hoje, as mulheres estiveram privadas de participação efetiva na vida pública,
muito pelo fato de não serem consideradas indivíduos. Assim, graças à reprodução generalizada de estereótipos
sobre o papel feminino foram erigidos discursos excludentes, tais como, política não ser assunto de mulher. O
reforço desses discursos contribuiu para que as mulheres, até pouco tempo, permanecessem confinadas aos
espaços domésticos. Logo, essa dicotomia entre espaço público e privado se concentrou na História da
Humanidade, a cada formação social, de forma a se reproduzir em um emaranhado de usos e costumes
responsáveis por estabelecer cotidianos diferenciados na estruturação social como um todo (FERREIRA, 2007).

FEMINISMO A FACE DA RESISTÊNCIA DO SER MULHER

23 O contrato sexual é um conceito que mostra, em uma perspectiva política e histórica, como a constituição da sociedade se
fundamentou na negação da condição humana à mulher. Disponível em:<
http://www.cadernosdedereitoactual.es/ojs/index.php/cadernos/article/view/292>. Acesso em:20/10/2019, às 07h40.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 91

Em face dessa situação de desumanização a que as mulheres sempre foram expostas, se desenvolve
uma ideologia de luta, que objetiva modificar essa realidade secular a que as mulheres foram e são submetidas -
surge o feminismo - que, neste texto, o definiremos como um movimento social, filosófico, político e ideológico
que busca a libertação dos padrões opressores patriarcais, por meio do empoderamento feminino.
Chimamanda Ngozi Adichie (2014), uma feminista e escritora nigeriana, mundialmente conhecida,
em um artigo para o jornal The Guardian, ao ser questionada sobre o que seria o feminismo, a mesma resumiu a
questão magnificamente:

Algumas pessoas me perguntam: ‘Por que a palavra feminista? Por que não dizer
que você acredita nos direitos humanos, ou algo assim?’ Porque seria desonesto.”
Adichie continua. “Feminismo é parte dos direitos humanos em geral, claro — mas
escolher usar uma expressão vaga como ‘direitos humanos’ é negar o problema
específico e particular do gênero. Seria uma forma de fingir que não foram as
mulheres que, por séculos, foram excluídas. Seria uma forma de negar que o
problema do gênero tem a mulher como alvo. Que o problema não é o fato de você
ser um humano, mas especificamente uma fêmea humana. Por séculos, o mundo
dividiu os seres em dois grupos e prosseguiu excluindo e oprimindo um desses
grupos. É apenas justo que a solução para esse problema reconheça esse fato” (THE
GUARDIAN, 2014, P.24).

Para Ferreira (2007), o feminismo e o ser feminista conectam-se com a necessidade das rupturas de
comportamento que têm levado à interdição das mulheres no seu direito à cidadania. Para tanto, presume-se que
ser feminista é estar envolvida com a luta histórica das mulheres, a partir de atitudes de indignação e
questionamento das práticas conservadoras, que não apenas excluem as mulheres dos mecanismos de decisão,
mas também da construção da democracia.
Indubitavelmente, as feministas são formadas, não nascem feministas. Pois, assim como outros
posicionamentos políticos, uma pessoa engaja-se nas políticas feministas por escolha e ação. Assim, quando as
mulheres iniciam o processo de organização pela primeira vez, em grupos para conversar sobre questões
relacionadas ao sexismo e à dominação masculina, era nítido que as mulheres eram tão socializadas para crer nos
pensamentos sexistas quanto os homens. O diferencial essencialmente danoso aqui, para as mulheres, é que são
os homens os maiores beneficiários desse sexismo e, por isso, seriam estes a oferecer maior resistência em abrir
mão dos privilégios do patriarcado. Daí a importância de que as mulheres consigam mudar a si mesmas, a partir
do criar consciência como única forma de mudar as bases patriarcais dessa sociedade (HOOKS, 2019).

Mas não é só pela integração das mulheres à ordem patriarcal-racista-capitalista que


o feminismo luta, mas pelo fim dessa ordem. Pelo movimento da mulher na direção
de tornar-se sujeito (LIMA, 2015, p.25).

24 Artigo online sem paginação.


25 Artigo online sem paginação.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 92

Em síntese, o feminismo vem a ser um movimento político, que busca a transformação, a partir da
disputa em todas as esferas da vida e do poder, com o objetivo de levar à esfera pública as desigualdades de
gênero. Logo, como ideologia, vem a constituir e disputar um projeto de mundo capaz de cingir as esferas
filosóficas, sociológicas e econômicas (BORGES, 2017).
Destarte, Ferreira (2007) chama atenção à essencialidade da ação de perceber seu direito à vez e à
voz, de perceber a ruptura do isolamento no mundo privado a que foram confinadas, a partir de passeatas e atos
públicos, onde foram tecidas as novas formas de fazer política e de se tornar sujeito de sua própria história, desta
vez, narrada pela voz das próprias mulheres. Assim,

O feminismo foi ampliado a esfera pública, engendrando uma revolução


aparentemente invisível nos anos setenta e meados dos anos oitenta, para se tornar
visível no final dessa mesma década e na década seguinte, com as conquistas
traduzidas em leis e instrumentos. Esse processo permitiu à mulher combater mais
claramente a histórica dominação simbólica, que passou incluir novos signos de
representação e diferenciação (FERREIRA, 2007, p.52).

O feminismo reverbera-se e, nunca esteve tão capilarizado na sociedade brasileira, quanto agora. As
mulheres, principalmente as mais jovens, estão cada vez mais conscientes de que podem ocupar qualquer lugar,
e que está inserida ativamente na política é de fundamental importância para dar voz e sentido às suas
necessidades e interesses (BIROLI, 2016).
Contudo, cabe resgatar, que este importante movimento não atuou em busca da autossuficiência
econômica da mulher como principal objetivo. No entanto, foi percebido que, abordar a questão da discriminação
da mulher no mercado de trabalho, pode vir a ser a plataforma feminista capaz de oferecer uma resposta coletiva
e se tornar o campo comum capaz de conectar todas as mulheres (HOOKS, 2019).
Foi nessa lógica que, grupos privilegiados de mulheres engendraram esforços para que as
trabalhadoras fossem melhor remuneradas e diminuísse o assédio no trabalho, o que teve impacto positivo na
vida das mulheres e são considerados ganhos importantes para estas. Contudo, ao contrário das mulheres mais
privilegiadas, as mulheres da massa ainda não ganharam esta igualdade de salários, o que demonstra como os
interesses de classes suplantaram os esforços feministas para modificar o mercado de trabalho (HOOKS, 2019).
Situação decorrente em grande parte porque:

Inicialmente, nos movimentos feministas, mulheres brancas com alto nível de


educação e origem na classe trabalhadora eram mais visíveis do que mulheres negras
de todas as classes. Elas eram minoria dentro do movimento, mas a voz da
experiência era a delas. Elas conheciam melhor do que suas companheiras com
privilégio de classe, de qualquer raça, os custos da resistência à dominação de raça,
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 93

classe e gênero. [...]Dentro do movimento feminista, [...] várias mulheres brancas


privilegiadas continuaram a agir como se o feminismo pertencesse a elas, como se
elas estivessem no comando (HOOKS, 2019, p.69).

E, foi a adesão dessas mulheres aos grupos feministas, que passaram a ser compostos por classes
diversas, que lhe deram o pioneirismo em identificar a visão de sororidade: em que a luta contra o patriarcado
não poderia se sobressair ao necessário confronto de classes (HOOKS, 2019).
“Na medida em que as relações de poder são uma relação desigual e relativamente estabilizada de
forças, é evidente que isto implica um em cima e um em baixo, uma diferença de potencial” (FOUCAULT, 1979,
p.250).
Foucault (1979) afirma que, na realidade, não existe verdade fora do poder ou mesmo sem poder. Em
cada sociedade, podemos identificar o seu regime de verdade, isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz
funcionar como verdadeiros, ou seja, os mecanismos que permitem distinguir o que é verdadeiro do falso. Em
suma, têm o poder de definir o que deve funcionar como verdadeiro. Foi com base nessa dinâmica, que se deu a
subordinação das mulheres aos homens de forma naturalizada e em várias sociedades.
No entanto, embora exista esta relação de dominação dos homens sobre as mulheres, essa é tecida
além dessa realidade, pois há homens que dominam outros homens, há mulheres que dominam outras mulheres
e também mulheres que dominam homens. Isto porque o patriarcado, que é o sistema de relações sociais que vai
garantir a relação de subordinação da mulher ao homem, não compõe o único paradigma que estrutura a sociedade
brasileira, por exemplo. Mas, de forma geral, a supremacia masculina perpassa todas as classes sociais, estando
presente até mesmo na discriminação racial. Logo, na sociedade brasileira, a última posição, a base da pirâmide,
é ocupada por mulheres negras e pobres (SAFFIOTI, 1987). As mais excluídas entre os excluídos.
À vista disso, distingue-se que não foi o capitalismo, como um complexo sistema de dominação-
exploração mais jovem, que pariu o patriarcado e o racismo. Estes já existiam na Grécia e na Roma antigas,
sociedades nas quais se funde o sistema feudal. A emergência do capitalismo trouxe a simbiose entre esses três
sistemas de dominação-exploração. Assim, apenas é possível separá-los para facilitação de estudos, mas, na
realidade concreta, eles são inseparáveis, verdadeiramente imbricados, o que os transforma em um único sistema
de dominação-exploração (SAFFIOTI, 1987). Essa situação simbiótica não é percebida por muitos.
Recentemente, esta realidade tem começado a se modificar, muito por parte do movimento feminista,
que vem agregando outras formas de feminismos, como o feminismo negro, uma vez que as dificuldades
enfrentadas pelas mulheres negras são mais profundas e prejudiciais do que as enfrentadas pelas brancas. É
preciso haver esta distinção para que o movimento ganhe força real de resistência, capaz de alcançar os objetivos
de uma sociedade mais livre para as mulheres.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 94

No entanto, para lograr êxito nessa luta, dentro dessa lógica de dominação e exploração, superioridade
e inferioridade é preciso que seja pensado e discutido como o poder age ou é utilizado para permitir e dar espaço
ao patriarcado, por exemplo.
Foucault (1979) afirma que o poder não existe, pelo menos não a ideia de que ele possa existir em
um determinado lugar, ou difundindo-se de um determinado ponto. Para ele, o poder assemelha-se mais com um
feixe de relações que se encontram um tanto organizado, piramidalizado e coordenado (e certamente mal
coordenado).
Isto posto, Foucault (2012) expõe que é preciso reconhecer que essas relações de poder se utilizam
de métodos e técnicas bem distintas umas das outras, a depender da época e dos níveis. Logo, de fato, as relações
de poder se apresentam como relações de força, de enfrentamentos e, por isso, sempre reversíveis, uma vez que,
não existem relações de poder que sejam plenamente triunfantes e cuja dominação se apresente como
incontornável. Este autor já foi questionado por colocar o poder em todas as discussões sobre relações, pois
acreditava-se que, excluiria qualquer possibilidade de resistência, mas ele interpretava o contrário. Em sua visão,
ao afirmar que as relações de poder têm a capacidade de se fomentar a cada instante, essas abrem a possibilidade
de resistência. E, é em decorrência dessa possibilidade de resistência, e uma resistência real, que o poder daquele
que domina precisará se manter a partir da utilização de mais força, quanto maior for a resistência. Logo, em toda
parte se está em luta, sempre. Assim o autor prefere dar ênfase à essa luta perpétua e multiforme, e não nesse
aparelho que tende a uniformizar.
Para tanto, ressalta-se que não há resistência e luta, sem que tenhamos consciência de nossas
invisíveis amarras, pois são as ideias simbólicas e culturais, com suas características peculiares, que alicerçam
nosso comportamento prático. Em síntese, quanto menor for a consciência do público, tão maior será a eficácia
da manipulação, uma vez que somos incapazes de nos defender reflexivamente do que não percebemos ou nem
compreendemos (SOUZA, 2018). Assim, a resistência apresenta-se como outra face do poder, a fim de

Designar os focos, denunciá-los, falar deles publicamente é uma luta, não é porque
ninguém ainda tinha tido consciência disto, mas porque falar a esse respeito – forçar
a rede de informação institucional, nomear, dizer quem fez, o que fez, designar o
alvo – é uma primeira inversão de poder, é um primeiro passo para outras lutas contra
o poder (FOUCAULT, 1979, p.75).

Enquanto isso, em complementação às ideias de Foucault (2012), temos os movimentos de mulheres,


que têm posicionado o empoderamento no campo das relações de gênero, e como resistência às posições
socialmente subordinadas das mulheres em seus contextos específicos. Dessa forma, embora o termo
empoderamento seja articulado a partir da palavra “poder” e do seu significado nas relações sociais, é dada uma
outra dimensão pelo movimento. Pois, enquanto a ciência política tem o poder como fonte de opressão,
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 95

autoritarismo e dominação, a proposta feminista ressignifica esta palavra para que seja uma fonte de emancipação,
uma verdadeira forma de exercer a resistência defendida por Foucault. Logo, o empoderamento é o poder capaz
de afirmar, reconhecer e valorizar as mulheres, é o caminho em busca da igualdade entre homens e mulheres. E,
ao desafiar o patriarcado, em especial dentro das famílias, é um verdadeiro e eficiente entrave à manutenção do
poder dominante dos homens e à manutenção de seus privilégios de gênero (LISBOA, 2008).
No contexto social vigente, resta claro que o empoderamento é condição basilar para a equidade de
gênero, e, é preciso avançar neste sentido. Para isso, o primeiro passo deve ser o despertar da consciência por
parte das mulheres com relação às situações de discriminação de gênero existentes em nossa sociedade, tarefa
nada fácil se considerarmos todo o processo de naturalização das relações sociais de dominância e submissão. É
preciso reconhecer que existe desigualdade entre homens e mulheres, é preciso indignar-se com esta situação e,
fundamentalmente, é essencial querer transformá-la. O empoderamento pressupõe melhor percepção das
mulheres sobre si mesmas, aumento da autoestima e despertar para os seus direitos. Por esses motivos, o
empoderamento é apontado como primeiro degrau a subir, nessa escalada em busca da conquista de cidadania
(LISBOA, 2008).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para Diogo e Coutinho (2006, p.127) “a exclusão é perversa e frequentemente se manifesta na
culpabilização individual dos próprios excluídos”.
No fenômeno da exclusão social, o elemento mais característico é o político, e não propriamente ou
exclusivamente econômica, visto que mais importante do que não ter é o não ser. A exclusão mais
comprometedora não vem a ser o acesso precário aos bens materiais, mas a subalternidade do sujeito, que sequer
consegue conceber que é coibido de saber o porquê de sua exclusão (DEMO, 1999).
Isto porque, segundo Sader & Gentili (1995), as políticas neoliberais são essencialmente políticas
econômicas de exclusão social. E, como herança dessa ideologia, temos uma sociedade assustadoramente
desagregada e distorcida, caracterizada pelas graves resistências em se constituir a partir da integração social e
com uma idiossincrasia de agressão permanente ao conceito e à prática de cidadania.
Cabe destacar que, a exclusão e o ser mulher, em nossa sociedade patriarcal, denotam o significado
de não ter acesso à cidadania. Isto porque “a concepção genérica de patriarcado [...] é uma característica universal
da sociedade humana (BAUMAN, 1999, p.43)”. Desse modo, a sociedade restringe, com bastante precisão, os
campos e limites em que à mulher é permitido atuar. Logo, a situação de inferioridade social da mulher está
relacionada à disseminação de preconceitos milenares, que ao serem transmitidos através da educação, formal e
informal, às gerações mais jovens, permitem a perpetuação dessa naturalização do ser mulher estar relacionado a
ser inferior, ser excluída (SAFFIOTI, 1987). Visto que temos a discriminação e a estigmatização identificadas
como elementos constituintes do processo de exclusão social (ADRIANO; DIAS, 2010).
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 96

Essas relações de gêneros, ao ocorrer entre sujeitos historicamente situados, não regulam apenas as
relações entre homens e mulheres, mas também entre homens e homens e entre mulheres e mulheres (DIOGO;
COUTINHO, 2006). Com efeito, “o problema da subordinação, opressão, discriminação e exploração do
feminino não está na mulher, [...] está localizado nas formas como a sociedade se organiza” (DIOGO;
COUTINHO, 2006, p.137).
Nesta realidade, apesar das conquistas na esfera social, política, econômica e cultural, estas não foram
capazes de livrar as mulheres da posição inferiorizada a que estão submetidas na sociedade. Em que as relações
entre homens e mulheres são, de forma geral, hierárquicas, desiguais e permeadas por mecanismos excludentes,
notadamente, no mercado de trabalho, onde, mesmo com o aumento da participação feminina, não se registrou
diminuição significativa das desigualdades entre homens e mulheres (DIOGO; COUTINHO, 2006). Pois,

Para que pudesse se consolidar, o sistema capitalista imputou às classes


trabalhadoras e à mulher, condições de vida altamente controladoras. Inicialmente,
domesticou-a e controlou sua sexualidade para que produzisse física e socialmente
os filhos necessários à implantação da industrialização. Depois, quando a
valorização da quantidade de força de trabalho foi substituída pela qualidade,
chamou-a para o mercado de trabalho e reduziu a sua fecundidade, na maior parte
das vezes, espoliando seu corpo e sua saúde. (FONSECA, 1995, p.56)

Há ainda, a divisão de classes que separa as inumeráveis mulheres pobres de suas companheiras
privilegiadas. Onde, grande parte do poder que essas mulheres de elite possuem advém, de fato e essencialmente,
em detrimento da liberdade de outras mulheres. Pois, é preciso que alguém exerça, em suas vidas, as
responsabilidades atribuídas socialmente ao sexo feminino (HOOKS, 2019). Nesta triste realidade pode-se
observar que:

Mesmo quando se acredita que existe uma forma de inclusão social, a exclusão pode
estar presente de uma maneira muito sutil, podendo estar ocorrendo, de fato, uma
“forma cruel de inclusão social” (ADRIANO; DIAS, 2010, p.6).

Hirata (2005) acrescenta que essa bipolarização gera dois agrupamentos de mulheres com perfis
sociais e econômicos diferentes, em que um dos grupos se utiliza dos serviços do outro para sua ascensão na
carreira profissional. Assim surge uma relação social de inclusão obtusa, onde para que algumas mulheres
ascendam, tenham que manter outras em um patamar socialmente inferiorizado (DIOGO; COUTINHO, 2006).
Com efeito, vivenciamos uma realidade com agravantes preocupantes, em que, com a cumplicidade
do Estado, ocorrem sérias investidas contra os direitos das mulheres: como a censura ao debate sobre gênero nas
escolas e, até a exclusão da perspectiva de gênero das políticas públicas. Posicionamento que contribui
diretamente para a ratificação dos papéis convencionais e diminuição da atuação das mulheres na vida pública, o
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 97

que ignora as desigualdades e outras formas de violência que fazem parte do seu cotidiano. Em uma clara ação
de violência política e estatal contra as mulheres. Situação que vem demonstrar a problemática das democracias
contemporâneas, onde a exclusão das mulheres não é aleatória, mas sistemática (BIROLI, 2016).
Neste cenário de crise do capital, percebe-se que até mesmo o Estado é incapaz de manter seu
significado intacto, transmutando-se de responsável por assegurar o bem-estar social aos cidadãos, a um Estado
sequestrado pelo mercado, um verdadeiro Estado de desamparo social. Cumpridor eficiente da agenda neoliberal
a partir da implementação de políticas de ajustes que, na prática, limitam o acesso aos direitos sociais e às políticas
públicas.
Assim, o que se inicia num patriarcado privado, com a família no núcleo do desenvolvimento da
opressão, sofrerá transformações a cargo do capitalismo, em sua fase industrial, para que essas relações venham
a se transformar. O que gera uma espécie de patriarcado público, onde Estado e mercado de trabalho passam a
organizar e institucionalizar coerções, que apesar das novas inclusões, viriam acompanhadas de novas formas de
opressão e controle (BIROLI, 2018).
Apesar de tudo, o existir do SER MULHER, para além das barreiras impostas e sustentadas ao longo
da história e pela tríade patriarcado-capitalismo-racismo, começa a movimentar-se na resistência à realidade de
exclusão que vai além do ser social, uma exclusão que se situa na base do ser sujeito. E, para tanto, resta claro
que não haverá resistências e consequentemente mudanças estruturais se não houver um vasto e consistente
movimento de conscientização sobre as limitações impostas ao SER MULHER.

REFERÊNCIAS
ADRIANO, A. M.; DIAS, M. M. (2010). Catadores de materiais recicláveis e a dialética da inclusão/exclusão
social. Disponível em: <http://www.emapegs.ufv.br/docs/Artigo20.pdf>. Acesso em: 15/08/2019.
BAUMAN, Zygmunt. Globalização; as consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: fatos e mitos. 4 ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970.
BIROLI, Flávia. Mulheres, política e violência. 2016. In: Boitempo Editorial. Blog da Boitempo. São Paulo.
2016. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2016/06/03/mulheres-politica-e-violencia/> Acesso
em: 17/07/2019.
_______. Gênero e Desigualdades. Limites da Democracia no Brasil. ED. BOITEMPO. SÃO PAULO, 2018
BORGES, Juliana. A urgência do pensamento feminista negro para a democracia. 2017. In: Boitempo
Editorial. Blog da Boitempo. São Paulo. 2017. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2017/04/06/a-
urgencia-do-pensamento-feminista-negro-para-a-democracia/>. Acesso em: 1707/2019.
DEMO, Pedro. Charme da exclusão social. Campinas, SP: Autores Associados, 1998.
DIOGO, M. F., & COUTINHO, M. C. (2006). A dialética da inclusão/exclusão e o trabalho feminino. Revista
Interações, 9 (21), 121-142.
FERREIRA, Mary. As Caetanas vão à luta: feminismo e políticas públicas no Maranhão. 1 ed. São Luís:
EDUFMA, 2007.
FONSECA, Rosa M. G. S. da. A educação e o processo de inclusão-exclusão social da mulher: uma questão
de gênero? Rev. Bras. Enferm., Brasília, v. 48, n. 1, p.51-59, jan./mar. 1995.
FOUCAULT, M. Microfísica do poder. 1.ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
_______. Estratégia, poder-saber. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2012.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 98

HARARI, YUVAL NOAH. Sapiens – Uma breve história da humanidade. 1. ed. Porto Alegre, RS: L&PM,
2018.
HIRATA, Helena. Globalização, Trabalho e Gênero. Revista Política Pública. V.9, n.1, p.111-128. 2005.
HOOKS, Bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. 6. Ed. Rio de Janeiro: Rosa dos
Tempos, 2019.
LIMA, Daniela. A mulher é um devir histórico: rastros de Beauvoir no Brasil. 2015. In: Boitempo Editorial.
Blog da Boitempo. São Paulo. 2015. Disponível em: <https://blogdaboitempo.com.br/2015/09/08/a-mulher-e-
um-devir-historico-rastros-de-beauvoir-no-brasil/>. Acesso em: 17/07/2019.
LISBOA, T. K. O empoderamento como estratégia de inclusão das mulheres nas políticas sociais. Fazendo
gênero 8 – Corpo, Violência e Poder. Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, 2008.
PATEMAN, Carole. O contrato sexual. Tradução de Marta Avancini. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1993.
SADER, Emir; GENTILI, Pablo. Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1995.
SAFFIOTI, Heleieth I. B. O poder do macho. 1.ed. São Paulo: Moderna, 1987.
SOUZA, Jessé. A classe média no espelho: sua história, seus sonhos e ilusões, sua realidade. Rio de Janeiro:
Estação Brasil, 2018.
THE GUARDIAN. Chimamanda Ngozi Adichie: 'I decided to call myself a Happy Feminist'. The Guardian, Reino
Unido, 17 de outubro de 2014. (Disponível em: <https://www.theguardian.com/books/2014/oct/17/chimamanda-
ngozi-adichie-extract-we-should-all-be-feminists. Acesso em: 09/10/2019, às 06h53)

BIOGRAFIA DA AUTORA

Nascida e criada no seio de uma família patriarcal, cresci em meio à violência doméstica infringida a mim e
minha mãe, situação que me obrigou a aprender a me impor como mulher desde o começo da adolescência. Por
conta disso, por ir contra as violências sofridas em casa, fui e sou vista por parte de alguns familiares como
rebelde e ingrata. Casada, mãe de duas adolescentes, professora, servidora pública na área de extensão
universitária, eterna estudante e pesquisadora apaixonada, tenho utilizado meus aprendizados, minhas dores e
meu olhar crítico para empoderar todas e quantas mulheres estiverem ao meu redor. O meu SER MULHER
político é antes de tudo a minha razão de EXISTIR. E as correntes que me amarram e tantas outras é o que me
move a agir SEMPRE.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 99

CAPÍTULO 10
A PARTICIPAÇÃO POLÍTICA DAS MULHERES NAS ESTRUTURAS DE
DECISÃO DOS SINDICATOS: a voz de dirigentes do sindicato dos enfermeiros
de portugal (sep)

LUCINÉIA SCREMIN MARTINS 26

INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas a questão da participação das mulheres na vida política, como resultado de um esforço
em ampliar e efetivar seus direitos, sua voz e sua vez, tem sido tema de inúmeras pesquisas, debates e militância
política mundo afora. Tem crescido o número de movimentos sociais feministas organizados e com forte
militância política, cujo objetivo é lutar, ampliar, debater e garantir os direitos e a igualdade entre homens e
mulheres. Contudo, mesmo diante do crescimento de inúmeros estudos que abrangem temas tão diversos, quanto
relevantes, e tão necessários e complexos sobre a “questão da mulher” na contemporaneidade, ainda persiste a
necessidade de mais pesquisas e análises que aprofundem temas dessa importância, como por exemplo, o
processo de participação das mulheres nos espaços de decisão política e de defesa e ampliação dos seus direitos,
como os sindicatos.
Muitos dos estudos a respeito do caráter da participação feminina nos espaços de decisão política estão, em
grande parte, concentrados na análise dessa participação em partidos políticos, parlamentos, ou executivo, com
o objetivo de promover igualdade de participação de homens e mulheres em órgãos e processos de decisão
política; seja nos partidos políticos, no parlamento ou no executivo. Orientados pela prática democrática que visa
eliminar a disparidade em termos de representação por sexo nos órgãos de poder político, em especial nos países
denominados desenvolvidos houve, nas últimas décadas, ampliação da participação das mulheres no espaço da
política institucional. Assim, como também houve a ampliação de pesquisas objetivando compreender a dimensão
da participação feminina nesses espaços, dos seus limites e desafios, principalmente nos países em que o debate
e as ações sobre os processos democráticos avançaram. No entanto, infelizmente, a realidade da participação
política feminina está muito aquém do necessário para que haja igualdade entre homens e mulheres nesses espaços
de decisão política e na defesa e ampliação de seus direitos na sociedade contemporânea.

26 Professora de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da Universidade
Federal de Goiás (UFG)
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 100

Esse processo se evidencia também na participação das mulheres nos sindicatos, tema dessa análise. Assim,
o presente trabalho tem como objetivo apresentar uma reflexão das principais questões que obstaculizam a
participação política e o envolvimento das mulheres nas estruturas de decisão dos sindicatos, tendo como fio
condutor a voz de dirigentes do Sindicato dos Enfermeiros de Portugal (SEP), ouvida em entrevistas
semiestruturadas, obtidas em uma pesquisa realizada em Lisboa, Portugal, em 2017 e problematizadas à luz das
categorias “divisão sexual do trabalho” e “patriarcado” consideradas indispensáveis para compreender
criticamente e em uma perspectiva de totalidade a subordinação social da mulher e os seus fundamentos.

Participação desigual entre homens e mulheres nos órgão de direção dos sindicatos
O problema da participação desigual dos dois sexos no âmbito dos sindicatos tem sido amplamente
pesquisado em vários países. Diversas pesquisas e estudos de caso em Sindicatos, Federações de Sindicatos e
Centrais Sindicais confirmam a sub-representação das mulheres nesses espaços, assim como ressaltam o histórico
hegemonicamente masculino deles, como ressalta Alves: “O sindicalismo nasceu andro-centrado, facto que
permitiu enraizar no movimento sindical uma cultura e uma dominação masculinas que ainda hoje persistem”
(2009). Portanto, nossa cultura está fortemente enraizada no patriarcalismo, constituindo-se em um forte
obstáculo a ser superado. Como afirmam Ledwith e Walssh (2017, p. 311):

Mulheres e movimentos sindicais continuam a trabalhar a igualdade de gênero, mas


ela é difícil de se alcançar por desafiar o sindicalismo tradicional, que é baseado em
uma cultura de papéis tradicionalmente masculinos, e de uma masculinidade
exclusivamente heterossexual. Quando mulheres sindicalistas questionam essa
ordem de gênero, política sexual e poder de gênero vêm à tona.

Aspectos significativos e diferenciados do envolvimento das mulheres no movimento sindical, desde as


possíveis causas de sua sub-representação, quanto dos determinantes do diferencial de sindicalização entre
homens e mulheres, como também do perfil e do nível de participação feminina nos órgãos de direção e nos
processos decisórios e de negociação coletiva também têm sido foco de inúmeros pesquisadores (Guillaume, C.
& Pochic, S., 2013; Le Quentrec, E. & Rieu, A., 2002; Ferreira, V. 2002; Antos, J. R., Chandler, M. E Mellow,
W.) e de sindicatos.
Vários estudos indicam que houve avanços no processo de “integração de gênero” nos espaços sindicais, em
especial na Comunidade Econômica Europeia (CEE), considerada precursora, via o Tratado de Roma de 1957,
do princípio da igualdade de oportunidades em termos de remuneração igual entre homens e mulheres (Dean,
2005). Antes mesmo da aprovação de diferentes legislações, que hoje visam combater as desigualdades de
gênero, a UE já anunciava políticas centradas na igualdade de gênero, cujo propósito é produzir “igual
visibilidade, empoderamento e participação de ambos os sexos em todas as esferas da vida pública e privada”
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 101

(Conselho Europeu, 1998, in: Dean, 2006). Constata-se assim que tendências como a “integração de gênero”
buscam abordar a questão em um nível amplo/macro-organizacional, tão caro nos dias de hoje ao “sindicalismo
tradicional” (Ledwith e Walssh, 2017).
Mesmo reconhecendo os inúmeros avanços, seja na forma de aprovação de leis e políticas, seja na
implementação de ações progressistas de gênero por parte de vários sindicatos, em especial na Europa, ainda
restam inúmeros desafios para que os diferentes obstáculos à participação igualitária entre homens e mulheres
nos órgãos de decisão dos sindicatos, em específico, e na vida pública, em geral, sejam removidos.
Dados importantes são apresentados no relatório Enquête annuelle du 8 mars de la ETUC27 (Confederação
Europeia de Sindicatos), de 201428 sobre as “Tendências da participação feminina nas confederações sindicais
nacionais” e sobre as “Estratégias sindicais para combater a violência contra as mulheres”. Responderam essa
enquete 51 confederações nacionais (do total de 85), de 31 países europeus; 20 sindicatos sectoriais nacionais de
12 países europeus e 06 Federações da União Europeia (do total de 10) que apresentaram, entre outros dados,
aqueles sobre a relação da totalidade dos membros do sexo feminino afiliados aos sindicatos e sua participação
direta nos cargos de direção destes. O relatório indica que 47 confederações foram capazes de indicar o número
de afiliados. Sendo que estas confederações representam 44.393.073 de membros que incluem 19.624.693
mulheres, ou seja, 44,2% do total de afiliados. Dessas confederações, 12 delas relataram ter mais membros do
sexo feminino do que membros do sexo masculino – entre eles encontra-se a CGT-Portugal. Das 47
confederações, 27 delas têm uma afiliação feminina de 44,2% ou mais. É importante, portanto, destacar a síntese
apresentada pelo relatório, de que

As mulheres nos últimos anos permitiram uma desaceleração do declínio


experimentado pelos sindicatos na maioria dos países europeus. Embora o aumento
no número de afiliados não compense o declínio no número de afiliados masculinos,
evita uma diminuição ainda maior no número geral de afiliados (ETUC. 2014, p.02).

Cabe destacar que os índices de sindicalização no continente europeu vêm decrescendo nas últimas décadas.
Contraditoriamente neste período existe uma crescente filiação de mulheres que reduz o impacto geral da queda
das filiações. Em algumas confederações registaram-se aumento da participação feminina, que excedeu o declínio
da participação masculina, significando que sem as mulheres as confederações teriam uma diminuição na força
de trabalho afiliada; em outras o número de novos membros masculinos foi equivalente ao dos membros
femininos (CES29, 2014, p. 11).

27 European Trade Union Confederation.


28 Disponível em: https://www.etuc.org/sites/default/files/other/files/8th_march_survey_2014_final_fr.pdf. Acesso em: 08 de Maio
de 2017.
29 Confederação Europeia de Sindicatos
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 102

Entretanto, esses dados estão longe de conferir às mulheres posição de igualdade com os homens nos lugares
de exercício do poder sindical. Segundo ainda o relatório (ETUC, 214), as mulheres estão em uma posição
minoritária em relação aos homens nos cargos de responsabilidade ou liderança nas confederações nacionais: São
apenas 04 presidentes mulheres para 35 cadeiras e apenas 09 secretarias-gerais para 27 secretarias-gerais, 18 vice-
presidentes mulheres para 51 vice-presidentes, cargos importantes na condução da política sindical.
Em Portugal, o quadro não se diferencia, pois, segundo dados de Santana (2009), as organizações sindicais,
vinculadas a UGT, CGTP ou outras independentes destas duas centrais sindicais, mesmo sendo representantes de
trabalhadores de atividades econômicas com mais membros femininos e, portanto, considerados setores mais
feminizados, não atribuem às mulheres sindicalistas lugares no exercício do poder/liderança numericamente
significativos ou de maior poder. Geralmente há também discrepância na ocupação dos lugares de decisão e poder
– cargos de Presidentes e de Secretarias-gerais são ocupados, na maioria, por sindicalistas masculinos.
Partindo dessa realidade da ocupação feminina dos cargos decisórios nos espaços sindicais, a análise das
causas da participação desigual dos dois sexos no processo social totalizante é fundamental, ou seja, a necessidade
em se considerar os processos sociais que criam desigualdades entre mulheres e homens.
Queremos considerar e compreender quais são as determinações mais gerais que posicionam
subalternamente a mulher no âmbito da totalidade social e geram uma sub-representação delas nos espaços
institucionais de formulação e de liderança política, tal como o espaço do sindicato.

Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP): uma categoria profissional e um sindicato representativo
Escolhemos pesquisar o SEP pelo fato de que, primeiramente, o setor público português apresenta
uma elevada taxa de feminização do emprego, com a profissão de enfermagem, em específico, apresentando uma
taxa de feminização de 81,9%, em 2015. (Alves; Botelho; Martins. 2018, p. 230). Segundo, porque, o sistema
sindical existente na administração pública em Portugal engloba:

Por um lado, [...] algumas das estruturas de maior dimensão do país. Por outro lado,
é na administração pública (42,4%), na saúde (43,9%) e na educação (63,0%) que se
verificam as taxas de feminização das direções sindicais mais elevadas. Estes valores
são muito superiores aos que se registam nos restantes sectores, sendo que o que
mais se aproxima é o do comércio, serviços, hotelaria e espetáculos, com um valor
médio de apenas 36,5%. (Alves; Botelho; Martins, 2018, p. 230).

Outro importante elemento a ser considerado na escolha do SEP é a relação entre o percentual de mulheres
nas direções sindicais na área da saúde de 42% e a taxa de feminização de 63% do emprego nesse ramo (valor
médio no período 2013-2016), aqui o afastamento da feminização entre a direção e a base é maior e bastante
considerável, com um diferencial de 21 pontos percentuais (Alves, Botelho; Martins, 2018a, p. 234).
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 103

Constata-se que a alta taxa de feminização na área da saúde não corresponde a uma igual proporção de
mulheres nos lugares de decisão dos seus sindicatos. Tais dados reforçam àqueles apresentados pela ETUC, em
2014, de que, mesmo com a afiliação de mulheres crescendo em taxas maiores do que a de homens, elas estão
em menor número nos cargos de direção, demonstrando que a dominação masculina nos cargos de direção
sindical persiste, independente dos números de mulheres serem maiores no ramo profissional ou elas serem a
maioria afiliada. Infelizmente, ainda é “tão incomum que mulheres estejam na liderança de sindicatos que, quando
o fazem, isso é amplamente veiculado” (Ledwith e Walssha, 2017, p. 296)
Por último, mas não menos importante, foi o fato de que houve um diferencial decrescente de -8% na
representação das mulheres nos cargos de direção do SEP, comparando-se os anos de 2003-2006 (com 58,8%) e
os anos de 2013-2016 (com 50,8%) (Alves, 2017).
O Sindicato dos Enfermeiros Portugueses em 2018 completou 30 anos. Mas, a sua história inicia-se em 1904,
com a criação da Associação de Classe das Parteiras Portuguesas que se transformou, em 1933, no Sindicato
Nacional das Parteiras Portuguesas. Durante o período da ditadura portuguesa (1926-1974), o SEP – assim como
todos os sindicatos – foi controlado pelo regime ditatorial e impedido de desenvolver a atividade para a qual foi
criado. No ano de 1945 constituiu-se no Sindicato Nacional dos Profissionais de Enfermagem, resultado da
transformação dos Sindicatos Nacionais dos Enfermeiros do distrito do Porto, das Enfermeiras de Lisboa e das
Parteiras Portuguesas, com sede em Lisboa. Com o processo político da revolução de 25 de Abril os sindicatos
passaram a ser livres e, em 1975, o Sindicato Nacional dos Profissionais de Enfermagem do distrito de Lisboa
passou a designar-se Sindicato dos Enfermeiros do Sul. Foram criados quatro sindicatos regionais de enfermagem
– Norte, Centro, Sul e Madeira. E, em 1988, a pedido de enfermeiros da zona norte e centro, o Sindicato dos
Enfermeiros da Zona Sul alterou os seus estatutos dando origem ao Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP),
hoje assim denominado. Este sindicato

[...] surgiu da vontade colectiva de um largo grupo de associados, que ultrapassando


áreas geográficas e saltando barreiras socioculturais, imprimiu uma dinâmica
imparável na construção colectiva de um sindicato forte, unido e decidido a
contribuir significativamente na resolução dos problemas da profissão (Boletim
Sindical, SEP, 1989, p.04 e 2008, p. 23).

A Direção do SEP em 2017 se estrutura da seguinte forma: dirigentes nacionais efetivos, totalizando 50
dirigentes30, sendo 25 homens e 25 mulheres e 129 dirigentes regionais, de 14 regiões de Portugal (Açores,
Alentejo, Aveiro, Coimbra, Beira Alta, Faro, Lisboa, Leiria, Minho, Porto, Santarém, Trás-Os-Montes, Setúbal

30 Entrevistamos um dirigente nacional de cada uma das seguintes regiões: Açores, Beira Alta, Faro, Leiria, Porto, Santarém,
Setúbal e Castelo Branco.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 104

e Castelo Branco), sendo 80 mulheres e 49 homens. Cada região tem um ou mais dirigentes que compõem a
direção nacional. Ou seja, a lista totaliza 179 dirigentes, sendo o presidente do sexo masculino.
Ao longo da investigação no SEP ouvimos de seus dirigentes relatos sobre as dificuldades do envolvimento
e recrutamento de trabalhadores para a militância sindical e, em especial, para fazer parte da direção, e que
independentemente de ser homem ou mulher a dificuldade em se envolver seria a mesma. Ou seja, em tempos de
crise estrutural do capital, de precarização do trabalho, de subjetividades mais individualistas, dedicar tempo
pessoal para se engajar na politica sindical, na qual não há obrigatoriedade de participação e cujo engajamento
passa pelo altruísmo e pelo bem comum, se tornou uma atividade bastante difícil de atrair os trabalhadores. No
entanto, cabe a pergunta se para as mulheres os obstáculos à participação sindical se constituem os mesmos do
que para os homens. O universo político do sindicato é composto principalmente por uma elite intermediária de
homens brancos e mais velhos (Le Quentrec (2009). Então, o que impede ou dificulta a participação das
mulheres?
A aproximação com o SEP passa por um processo do trabalho militante, realizado pelos dirigentes nacionais
em conjunto com a direção regional nos locais de trabalho, que busca envolver os trabalhadores destes locais com
as atividades sindicais e, a partir daí, quiçá, possibilitar um convite a um trabalhador que se interesse em participar
da composição da Lista nas eleições da direção.
Segundo um dos dirigentes nacionais e coordenador regional, suas experiências políticas anteriores, como
estudante do liceu e no curso de enfermagem, o estimularam a se envolver com os interesses coletivos, isso tendo
provavelmente um peso em seu engajamento na luta sindical. Seu envolvimento com o SEP se deu a partir de
2001 e desde então seguiu atuando, primeiro como ativista, depois eleito como delegado sindical e em seguida
eleito como dirigente sindical, estando neste cargo “a tempo inteiro” (liberado do trabalho para atuação sindical)
desde outubro de 2015:

[…] eu sempre tive essa necessidade de querer ajudar as pessoas, de um modo ou


outra maneira, portanto, desde a escola que queria ajudar os colegas e, por isso, juntar
pessoas, juntar todas por um interesse comum, […] fui tomando gosto pela coisa e
começado a perceber que, efetivamente, para nós, para podermos mudar alguma
coisa, se queremos que as coisas mudem temos que fazer, as coisas não mudam
sozinhas, como um certo amigo meu que dizia que as coisas mudam com o tempo,
pois, mas é preciso o agente da mudança, se não o tempo só passa, e não muda nada.
Eu achei que deveria ser um desses agentes de mudança [...] É uma coisa natural,
minha, não é uma coisa que me sinto obrigado a fazer... (Entrevista n° 03, 2017).

Le Quentrec (2009) adverte que a participação política está vinculada a convicções e que aparece como
resultado das escolhas individuais, entretanto, a autora chama atenção para algo que também concordamos: “não
discuto quem quer, mas quem pode, quem é colocado em condições materiais para fazê-lo, o que não é o caso
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 105

das mulheres”. É esta questão que discutiremos a seguir a partir de falas de dirigentes do SEP, a análise dos
obstáculos que levam as mulheres a desbravar o mundo sindical se constituindo em lideranças, apesar de tudo.

Patriarcado, divisão sexual do trabalho e a posição desigual das mulheres nas instâncias de decisão dos
sindicatos. O que dizem as/os dirigentes do SEP.
Para refletir sobre as relações patriarcais e suas consequências no processo de participação das mulheres nos
lugares de decisão dos sindicatos utilizamo-nos dos estudos conceituais de Saffioti (2015). Ela situa o caráter
histórico do patriarcado e seu papel na produção de desigualdades entre homens e mulheres na atualidade. Para
a autora “[...] é imprescindível o reforço permanente da dimensão histórica da dominação-exploração masculina
para que se compreenda e se dimensione adequadamente o patriarcado” (2015, p.110) e, portanto, da historicidade
e das estruturas sociais de subordinação das mulheres aos homens, que pelo seu caráter histórico carrega em si o
germe de sua superação.
Saffioti define patriarcado recorrendo ao conceito de Hartmann (1979, Apud Saffioti, 2015), como um pacto
masculino para garantir a opressão de mulheres. De acordo com a autora, a base material do patriarcado não foi
destruída, não obstante os avanços feministas. Ele encontra-se “enovelado” com as estruturas sociais como a
divisão social do trabalho, as classes sociais e o racismo e, por isso, não encontra solução nas sociedades
capitalistas, “pois exige transformações radicais no sentido da preservação das diferenças e da eliminação das
desigualdades, pelas quais é responsável a sociedade” (2015, p. 113,114). Para ela o patriarcado é um caso
específico de relações de gênero, que pode ser contextualizado historicamente a partir da ontologia do ser social,
na qual o ser social assim se desenvolve em sociedade:

poder-se-á afirmar que o ser social, à medida que se diferencia e se torna mais
complexo, muda sua relação tanto com a esfera ontológica inorgânica quanto com a
esfera ontológica orgânica, elevando seu controle sobre ambas. Os seres humanos,
que tinham uma relação igual e equilibrada entre si e com os animais, transformaram-
na em controle e dominação. O patriarcado é um dos exemplos vivos deste
fenômeno. (Saffioti, 2015, p. 128)

Inserido no contexto sócio histórico do patriarcalismo e da atual dinâmica e estrutura do sistema do capital
na produção da vida em sociedade, é possível analisar como o patriarcalismo se expressa na “divisão sexual do
trabalho”, o qual se converte em produtor de desigualdades entre homens e mulheres, com consequências graves
à participação das mulheres na esfera pública, causando um impacto profundo nas democracias contemporâneas.
Alvarez e Parini (2005) sugerem que, ao se refletir sobre as condições necessárias para o envolvimento
político ativo das mulheres, por exemplo, “fica difícil negligenciar a desigualdade social entre mulheres e
homens” (2005, p. 110. Tradução minha). É nessa dimensão da desigualdade social de gênero, sustentada pelo
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 106

patriarcalismo e capitalismo, que reside a questão da divisão sexual do trabalho, pois esta se configura num
“processo social que estrutura as relações sociais do sexo, atribuindo as mulheres principalmente à esfera familiar
e aos homens à esfera pública” (2005, p.111. Tradução minha). Elas adotam uma perspectiva materialista para
abordar o aspecto político feminista e apresentam um “modelo (modelo de discriminação de função social – M2)
baseado no status social das mulheres sem considerar categorias sexuais como pré-existentes”. Analisam “a
diferença no comportamento dos sexos a partir das desigualdades de gênero para constatar o efeito produzido
sobre o engajamento político” (2005, p.111. Tradução minha). Partem de indicadores sociais para destacar a
discriminação como produto das relações sociais entre os sexos e não como um atributo de um sexo ou outro. Ou
seja,

Se engajar em politica não pode ser derivada apenas de uma convicção ideológica,
mas também é produto das condições materiais de vida dos indivíduos, elas próprias
fruto, entre outras coisas, das relações sociais do sexo. O compromisso com a vida
política é uma atividade social que exige tempo e disponibilidade psicológica e
material. (2005, p.111. Tradução minha)

Portanto, no conjunto de fatores sociais que diferenciam a participação de mulheres e homens na vida política
é importante a consideração da categoria “divisão sexual do trabalho” para a compreensão do fenômeno da sub-
representação política e sindical das mulheres que, a nosso ver, tem relação direta com as relações sociais
hegemonicamente patriarcais e apoiadas pelos interesses do capital.
O conceito da divisão sexual do trabalho é claramente apresentado por pesquisadores como Kergoat e Hirata
(2007). Para Kergoat,

As condições em que vivem homens e mulheres não são produtos de um destino


biológico, mas são antes de tudo construções sociais. Homens e mulheres não são
uma coleção – ou duas coleções – de indivíduos biologicamente distintos. Eles
formam dois grupos sociais que estão engajados em uma relação social específica:
as relações sociais de sexo. Estas, como todas as relações sociais, têm uma base
material, no caso o trabalho, e se exprimem através da divisão social do trabalho
entre os sexos, chamada, de maneira concisa: divisão sexual do trabalho (Kergoat,
2010, p. 35).

A divisão sexual do trabalho é, portanto, um elemento da estrutura social, que no modo de produção
capitalista, adquire contornos específico e se constitui num fator social a ser considerado na reflexão sobre a
representatividade das mulheres na militância política sindical, como bem considera Le Quentrec (2009) no caso
da França – mas que, possivelmente, pode ser estendido a outros países, como Portugal e também Brasil, por
exemplo. Para a autora, a divisão sexual do trabalho se explicita também nos antagonismos entre o tempo
doméstico e a militância política, os quais são fundamentais para compreender o diferencial de militância entre
mulheres e homens, pois, quanto mais as mulheres se dedicam a vida doméstica menor será o seu tempo de
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 107

dedicação à vida política. Essa realidade, em grande medida, é causada por dois aspectos distintos de uma mesma
realidade: de um lado, a baixa participação do cônjuge nas tarefas domésticas ou pela sua oposição ao
compromisso da parceira; de outro, a ausência de estruturas e serviços sociais que acolham as crianças e
colaborem no processo de libertação das mulheres do espaço doméstico. Essa realidade impõe a necessidade de
redistribuição das tarefas domésticas dentro da família, aumentando a responsabilidade e o tempo do homem com
o espaço da reprodução. Simultaneamente, disposição de estruturas sociais públicas que permitam materialmente
modificações nos papéis sociais entre os sexos, internalizados socialmente.
Dos dirigentes do SEP entrevistados, ouvimos falas que corroboram as reflexões de Le Quentrec (2009) e
reforçam a importância de se considerar o patriarcalismo e a divisão sexual do trabalho e, portanto, da
desigualdade social entre mulheres e homens, para a compreensão dos fatores que impedem ou dificultam a
participação política das mulheres no sindicato. Para estes dirigentes, um dos principais motivos impeditivos da
participação das mulheres na direção do sindicato é a responsabilidade com os filhos. Um dos entrevistados
sintetiza e expressa o seguinte sobre a representatividade das mulheres nos cargos de direção sindical. Ao ser
questionado se considera que há poucas mulheres nos cargos de direção do SEP, afirma:

Eu não tenho dados suficientes em relação ao SEP, eu tenho uma ideia, e o que eu
sei é que, pelo menos no SEP, em termos das pessoas com maior disponibilidade
para estarem nos cargos de coordenação ou de direção aparecem mais homens do
que mulheres. E quando são mulheres – e a experiência não é desse mandato, mas é
de 25 anos de mandato – são sempre mulheres muito disponíveis e sem filhos. Isso
é um dado. […] São pessoas que podem pura e simplesmente não ir para casa como
estava previsto as seis da tarde, não tem que ir a creche; a reunião pode se prolongar
até as 8 porque não tem problema… [...] Não tem a ver com companheiro ou
companheira, mas tem a ver com responsabilidades com filhos menores que chega
as seis e têm que ir embora porque efetivamente a creche fecha e os meninos ficam
à porta. O que é um dado a se constatar até essa data é que, quando aparecem
mulheres com disponibilidade para coordenar a esse nível [o sindicato], são mulheres
– entre aspas – “descomprometidas dessas funções”, ou seja, não tem
responsabilidades a esse nível [de ser mãe]. E preocupa-me de facto porque as
dinâmicas anteriores, e que vem se mantendo, não permitem (e essa questão que
requer que nos preocupamos com ela) que apareçam outras mulheres
comprometidas, porque quem não entra com essa disponibilidade e esse ritmo não
tem espaço. Oficialmente não tem espaço! Porque não consegue acompanhar ou
porque não é visto ou vista com o perfil para cá estar.
(Entrevista n° 01, 2017.).

Ouve-se do dirigente nacional a tempo inteiro, com mais de 25 anos de experiência na direção sindical, que
a não disponibilidade das mulheres diante da sua responsabilidade com os filhos pequenos são o “nó górdio” da
participação mais efetiva delas nas direções sindicais, é essa condição, de acordo com ele, que dificulta ou mesmo
obstaculiza as mulheres que são mães de crianças a ocupação de cargos de direção sindical. Segundo ele, a mulher
que não tem essa disponibilidade não consegue acompanhar o ritmo de longas reuniões, com horários prolongados
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 108

e várias viagens, exigindo tempo – que comumente elas dedicam mais do que os homens no espaço da reprodução,
na esfera doméstica – e que, portanto, por causa disso, elas “Oficialmente não têm espaço! Porque não consegue
acompanhar, ou porque não é visto ou vista com o perfil para cá estar” (Entrevista n° 01, 2017).
Sobre essa questão se ouviu também das mulheres entrevistadas, em sua maioria solteira, que o sindicato
ocupa bastante tempo de suas vidas e de maneira muito intensa, demonstrando dúvidas se conseguiriam dedicar-
se da mesma forma à militância sindical caso tivessem filhos.
Le Quentrec é taxativa quando afirma que o “O tempo doméstico é particularmente contrário à atividade
militante das mulheres” e “A divisão sexual do trabalho militante, a expressão de uma relação de dominação, é
uma fonte de exclusão das mulheres das instituições políticas e sindicais”. (2009, p. 117. Tradução minha). A
voz das/de dirigentes sindicais do SEP também deixaram isso evidente. Entretanto, a autora também ressalta que
as contradições existem e alteram a correlação de forças no processo de transformação dessa realidade ao haver
confronto entre as esferas pública e “privada”, na campanha politica, por exemplo, através da participação de
mulheres, tais confrontos atuam nas relações de dominação e colocam em xeque as formas tradicionais da
militância masculina. A inserção das mulheres nesse espaço hegemonicamente e tradicionalmente masculino
atribui novos rumos a politica sindical.
Uma das dirigentes casadas destaca as dificuldades que dinamizam a vida sindical e que dificultam a atuação
militante de mulheres com filhos pequenos em cargos de direção. Como primeira diretora que compôs durante
muitos anos a Comissão Executiva do sindicato e teve filho nessa condição, ela precisou estabelecer um ritmo de
trabalho para si, no qual acompanhasse os horários do filho, além de impor ao restante da direção que seus
horários seriam bem definidos. Categórica, questiona, por exemplo, por que não há maior rigor com o
cumprimento do horário de reuniões nos sindicatos. Quando interpelada sobre se “O horário usualmente praticado
para as reuniões sindicais nas quais participa e também sua periodicidade habitual geravam alguma
incompatibilidade com as atividades familiares ou profissionais” assim respondeu:

Nós nunca temos propriamente um horário fixo, é tudo muito dependente, mas
normalmente são atividades programadas. Só excepcionalmente podem estar fora do
programa. [...] Portanto, eu giro conforme as minhas possibilidades. Eu começo a
trabalhar cedo. Um dos problemas é o funcionamento dos outros, não é o nosso. E
eu acho que a dificuldade das mulheres parte da grande dificuldade que existe do
cumprimento de horários e da organização ao nível de, por exemplo, não se justifica
que as reuniões comecem as 10:30 da manhã! Não se justifica! Houve uma altura da
vida em que consegui entender muito pouco isso. Se eu vinha cedo, porque os outros
não? Eu que tinha filhos vinha [cedo]. E durante muito tempo eu fui a única mulher
no Executivo com filhos pequenos. Agora já há outra. E meus filhos já estão grandes,
mas eu fui a primeira mulher a parir no executivo! (Entrevista nº 10, 2017).
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 109

Biroli (2017), ao apresentar a divisão sexual do trabalho como problema teórico, parte de dois pressupostos
ancorados na literatura e em dados. Um dos pressupostos apresentados pela autora, o qual interessa nessa análise
da participação politica das mulheres nas direções sindicais, é que “a divisão sexual do trabalho é uma base
fundamental sobre a qual se assentam hierarquias de gênero nas sociedades contemporâneas, ativando restrições
e desvantagens que modulam a trajetória das mulheres” (2017, p. 23). Biroli define sua hipótese ligando a divisão
sexual do trabalho aos padrões de participação política. Ela entende que “a divisão sexual do trabalho doméstico
incide nas possibilidades de participação politica das mulheres porque corresponde à alocação desigual de
recursos fundamentais para essa participação, em especial tempo livre e a renda”. (Biroli, 2017, p. 23).
A divisão sexual do trabalho afeta, portanto, as mulheres como grupo (Biroli, p. 35), assim, há de fato uma
exploração que se efetiva, porque o trabalho doméstico é realizado pelas mulheres, entretanto, este não é realizado
nas mesmas condições por todas as mulheres, ele se diferencia quando falamos de classe, raça, mulheres
imigrantes e migrantes, por exemplo. Sendo assim, a divisão sexual do trabalho produz o gênero, mas, essa
produção se dá na convergência entre gênero, classe, raça e nacionalidade. Ou seja, a produção de gênero se dá
na relação com essas outras variáveis, de acordo com seus contextos. Ou seja, conforme ressalta a autora,

[…] os constrangimentos materiais e ideológicos que se impõem às mulheres variam


e são vivenciados de maneiras diversificadas, de acordo com a classe social, com a
raça e, nesse caso, de modo muito central, também a sexualidade. (2017, pgs. 36 e
37).

Como verificado na fala de uma dirigente do SEP (Entrevista nº 10), a possibilidade de tempo livre para a
militância sindical também pode estar vinculada ao trabalho de outra mulher. Pois, o que acontece em nossa
sociedade patriarcal é que “mulheres para realizar seu trabalho profissional precisam externalizar ‘seu’ trabalho
doméstico” (Hirata e Kergoat, 2007, p. 07). Dependendo do nível de renda da mulher ela pode ou não ser
“liberada” do trabalho doméstico ao delegar este trabalho à outra mulher para, dessa forma, ascender ao espaço
público. Contraditoriamente, não é a maior participação do homem na esfera do espaço doméstico que possibilita
a mulher possuidora de maior renda galgar mais espaço na esfera pública, como bem elucida a dirigente ao dizer
como conseguiu levar adiante sua gestão no sindicato sendo mãe de duas crianças pequenas.

[…] Agora, melhorou muito nos últimos tempos, mas eu também já “cá tou” há
muito tempo, estou cá a tempo inteiro desde 2002. O que quer dizer que minha pior
fase não é essa, já foi quando meus filhos eram pequenos […] mas, eu fiz o percurso
todo no SEP, inclusive as licenças maternidades no sindicato, se calhar fiz uma
verdadeira licenciatura de maternidade, eu saia do sindicato para ir dar mamá aos
meus filhos, depois voltava outra vez. E fazia uma conjugação, como não temos
estrutura familiar, eu tinha uma empregada, porque minha situação financeira
permitia. Eu tinha uma empregada que acompanhava os meus filhos até nós
chegarmos a nossa casa. Porque só nessa possibilidade, com essa senhora realmente,
porque era ela basicamente, quando nossos filhos estavam doentes, era ela que ficava
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 110

com eles! nem eu nem meu marido basicamente faltávamos ao trabalho e assim
conseguíamos fazer nossa vida em termos profissionais. Mas, eu tive uma fase em
que meu marido teve que tirar uma licenciatura e tive uma fase mais complicada,
quando eu fiquei com minha filha com três anos e meu filho com três meses. Todos
os dias eu ia para casa, então reduzi nessa altura, minha jornada de trabalho, pois não
era tão flexível, tinha uma jornada de trabalho mais inflexível, mas eu no sindicato
começava a trabalhar as oito e vinte da manhã, portanto, eu por volta das cinco, as
cinco e pouco, eu ia buscar meus filhos, ali terminava minha jornada de trabalho e
quando havia alguma coisa programada, para ir a uma reunião ou outra coisa, eu
deixava com essa senhora e depois ia para casa. Foi sempre assim que fiz a minha
gestão. (Entrevista n° 10, 2017).

A externalização do trabalho doméstico para outras mulheres, muitas delas migrantes ou imigrantes, com
renda precária ou baixa, possibilita a liberação de outras para atuarem na esfera pública, como a sindical, como
cosntatamos. Essa externalização do trabalho doméstico para algumas em prol da liberação de outras traz à tona
a questão problematizada por Hirata e Kergoat (2007), de que tal externalização pode funcionar como um
mecanismo de apaziguamento das tensões entre os casais, ao mesmo tempo em que também permite igualmente
maior flexibilidade das mulheres em relação à demanda de envolvimento nas questões públicas. No entanto, as
autoras chamam atenção para um caráter regressivo dessa opção que mascara e nega um problema que é
necessário superar, pois, “Em um plano mais geral, isso permite às sociedades do Norte fazer vista grossa a uma
reflexão sobre o trabalho doméstico” (2007, p. 602), que não ajuda a avançar na luta pela igualdade entre mulheres
e homens. Tal questão precisa ser enfrentada também pelo movimento sindical e não “mascarada, negada”, ou
mesmo naturalizada, característica própria de uma sociedade patriarcal que compreende o trabalho doméstico e
de cuidado dos filhos como função natural determinada às mulheres. Há quase uma biologização desse papel
social, já que somente as mulheres podem parir crianças, considera-se que a elas “naturalmente” está reservado
o papel de cuidadoras da prole.

Considerações finais
As possibilidades de ampliação da atuação sindical das mulheres estão articuladas as formas de
enfrentamento das estruturas do patriarcado, em particular da divisão sexual do trabalho em que o trabalho
reprodutivo (doméstico) é “instituído” como atribuição feminina. Tal relação social tem como desdobramento a
intensificação da jornada das mulheres e, por consequência, a limitação das possibilidades de atuação política,
condicionadas pelo patriarcado.
A estratificação das classes trabalhadoras, por exemplo, sua hierarquização salarial, pode possibilitar o
deslocamento das responsabilidades domésticas à outra pessoa, porém nessas situações o que comumente ocorre
é que a externalização do trabalho doméstico ocorre com a atribuição destas funções para outra mulher,
articulando contraditoriamente a possibilidade de um maior tempo de atuação das mulheres com a intensificação
da subordinação das mulheres ao trabalho doméstico.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 111

Se desejamos transformar a situação em que as mulheres têm menos oportunidades do que os homens para
se envolverem na política, é necessário mudanças na distribuição dos papéis sociais entre homens e mulheres.
Começar um trabalho de formação das direções e da base sindical, buscando politizar a esfera doméstica,
questionando suas próprias posturas e ações na direção política do sindicato, assim como também questionar
políticas públicas que contribuem para perpetuar essa oposição, se constituem em um processo fundamental para
que as mulheres ocupem de maneira mais democrática os espaços politicos e, portanto, também de cargos de
direção e liderança sindical.

REFERÊNCIAS

ALVAREZ, Elvita, PARINI, Lorena, «Engagement politique et genre: la part du sexe», Nouvelles questions
Féministes, 2005/3 (Vol. 24), p. 106-121. DOI: 10.3917/nqf.243.0106. Disponível em: www.cairn.info/revue-
nouvelles-questions-feministes-2005-3-page-106.htm
ALVES, Paulo Marques. Cidadãos e militantes: uma contribuição para as teorias da acção militante sindical. Tese
de Doutorado em Sociologia. Especialidade de Sociologia do Trabalho, Orientador: Doutor João Carlos de
Oliveira Moreira Freire. ISCTE-IUL Julho, 2009.
ALVES, P. M.; BOTELHO, M. C; MARTINS, L. S. A participação das mulheres nas direções dos sindicatos da
administração pública: uma sub-representação generalizada. Atas do XVII ENSIOT, 2018, pp. 223-239.
Disponível em: http://www.apsiot.pt/images/publicacoessiot/23_xvii.pdf

ALVES, P. M.; BOTELHO, M. C; MARTINS, L. S. Feminização do emprego público e sub-representação das


mulheres nas estruturas de decisão dos sindicatos. “X Congresso Português de Sociologia”. Na era da “pós-
verdade”? Esfera pública, cidadania e qualidade da democracia no Portugal contemporâneo, Covilhã, 2018a.

ANTOS, JOSEPH R., CHANDLER, M. e MELLOW, W. Sex differences in union membership. Industrial and
Labor Relations Review, Vol. 33, No. 2 (January 1980). Article is in the public domain.
BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdades. Limites da democracia. São Paulo: Editora Boitempo, 2017.
COCKBURN, C. In the way of women: men’s resistance to sex equality in organizations. Ithaca: Cornell
University Press, 1991.

COCKBURN, C.. Women and the European social dialogue: strategies for gender democracy. Luxemburgo:
European Commission Equal Opportunities Unit, 1995.

COLGAN, F., & LEDWITH, S. Women’s trade union activism: a creative force for change and renewal within
the trade union movement? Communication presentation a Conferência Work, Employment and Society,
Londres, 1996.
DEAN, Homa. Les femmes dans les syndicats: méthodes et bonnes pratiques pour l’intégration de la dimension
du genre. Editeur: ETUI-REHS, Bruxelles, 2006.
DELPHY, Cristine. “Patriarcado”. In: HIRATA, Helena [et al.] (orgs.). Dicionário Crítico do Feminismo. São
Paulo: Editora UNESP, 2009.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1980.
ETUC. European Trade Union Confederation. Enquête annuelle du 8 mars de la CES, 2014. Septième édition.
Bruxelles, mai 2014. ETUC – European Trade Union Conferacion.
FERREIRA, Virgínia. O efeito Salieri: O sindicalismo perante as desigualdades entre mulheres e homens no
emprego. Revista Crítica de Ciências Sociais, 62, Junho 2002
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 112

GUILLAUME, Cécile & POCHIC, Sophie. Syndicalisme et représentation des femmes au travail. In:
MARUANI, M. (dir.), Travail et genre dans le monde. L’état des savoirs, La Découverte, 2013, p. 379-387.
2013. Disponível em: https://halshs.archives-ouvertes.fr/halshs-01115351/document

HIRATA, Helena; KERGOAT, Danièle. Novas configurações da divisão sexual do trabalho.Cad. Pesqui., São
Paulo, v. 37, n. 132, p. 595-60, Dec. 2007.
KERGOAT, Danièle. Dinâmica e consubstancialidade das relações sociais. Novos estudos CEBRAP, (86),
2010, 93-103. https://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002010000100005.

LAWRENCE, E. Gender and trade unions. Londres: Taylor and Francis, 1994.

LEDWITH, Sue e WALSSH, Tracy. Mulheres e sindicatos pelo mundo. In: LEONE, Eugenia Troncoso; KREIN,
José Dari; TEIXEIRA, Marilane O. (Orgs.). Mundo do trabalho das mulheres: ampliar direitos e promover
a igualdade. São Paulo: Secretaria de Políticas do Trabalho e Autonomia Econômica das Mulheres/Campinas,
SP: Unicamp. IE. Cesit, jun. 2017.
LE QUENTREC, Yannick & RIEU, Annie. Femmes élues et syndicalistes: une participation sous contraintes.
Érudit Revues Lien social et Politiques. Numéro 47, Printemps 2002, p. 109–1252002. Disponível em:
https://www.erudit.org/fr/revues/lsp/2002-n47-lsp377/000346ar/

LE QUENTREC, Yannick «Les militantes politiques et syndicales à l'épreuve du temps domestique»,


Informations Sociales, 2009/3 (n° 153), p. 112-119. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-informations-
sociales-2009-3-page-112.htm
SAFFIOTI, Heleieth. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Perseu Abramo, 2015
SINDICATO DOS ENFERMEIROS DE PORTUGAL (SEP). Revista Enfermeiros em foco, SEP, Ano XVI,
n.72, Maio/Junho/Julho, 2008, p. 23).
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 113

CAPÍTULO 11
DA NECESSIDADE SOCIAL À CORRIDA VIRTUAL :
o trabalho policial bpfron

MÁRCIA DE SOUZA DAMASCENO 31

INTRODUÇÃO
A responsabilidade social, é mais que um conceito, é uma postura que vem ganhando espaço no batalhão
de polícia de fronteira – BPFron, e seus parceiros. Trata-se de uma gestão ética que respeita todas as partes
envolvidas e busca o desenvolvimento sustentável da sociedade, respeitando a diversidade e promovendo a
redução de desigualdades.
Há o entendimento de que a construção de uma base para a superação das desigualdades precisa envolver
parcela significativa da população, tanto na elaboração como na implementação de políticas que vão ao encontro
dos interesses e necessidades.
Movidos, não pelo reconhecimento, mas sim pelo desejo de ajudar, homens e mulheres colocam-se a
disposição para planejamento e execução de projetos buscando o bem social, acreditando em um ideal, designam
horas de seu tempo ao outro. Alguns denominam de empatia, outros de voluntariado, há ainda aqueles que veem
como missão, o ato de solidariedade.
A solidariedade é considerada por Durkheim (2008), um “fato social”, que na definição do próprio autor
“é toda a maneira de fazer, fixada ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior: ou então,
que é geral no âmbito de uma dada sociedade tendo, ao mesmo tempo, uma existência própria, independentemente
de suas manifestações individuais”.
Uma vez que existem várias palavras utilizadas com significado semelhante ao de solidariedade – como
caridade, misericórdia, fraternidade –, é indispensável que seja feita uma análise mais pormenorizada dessas
diferentes expressões, pois são frequentes as situações e exemplos em que ações solidárias que se mostram
aparentemente de boa índole, estão assentadas na virtude unilateral da compaixão ou mesmo na exclusiva
iniciativa piedosa de substituir o Estado. Nessas situações, o resultado é que, se por um lado tais ações prestam
algum auxílio pontual e episódico para melhorar a vida de pessoas, por outro contribuem para a manutenção de
profundas diferenças sociais.

31 Mestranda em Ensino pelo Programa de Pós-graduação em Ensino (PPGEn) do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia
de Mato Grosso (IFMT). Especialista em Psicopedagogia Clínica pela Faculdade de Tecnologia Equipe Darwin (FTED). Licenciada
em Letras (Português/Literatura/Espanhol) pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Professora no Centro Municipal de
Educação Básica Helena Esteves (CMEB Helena Esteves), Barra do Garças-MT. E-mail: marcinhadama@live.com.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 114

Neste artigo, trabalhamos com um projeto pontual, que neste ano foi reformulado e ocorreu de maneira
remota, porém destacamos, que existem vários outros projetos que contribuem para a manutenção das diferenças
sociais, da seguridade e da vida dos cidadãos do estado do Paraná. Iremos apresentar o histórico da criação da
Polícia Militar do Estado, que caminhou junto com a emancipação, em seguida, um recorte da organização inicial
da companhia da força policial, bem como, a polícia militar do Paraná nas palavras do Major RR Antunes.
Relatamos a vulnerabilidade social em decorrência da Covid-19, neste contexto apresentamos o desafio virtual
guardiões da fronteira e seus resultados para assim, concluirmos o trabalho, trazendo à baila, reflexões e
contribuições do trabalho social realizado de forma remota.

Polícia Militar do Paraná – Criação


A história da Polícia Militar do Paraná (PMPR), sempre caminhou e caminha lado a lado com a história do
Estado do Paraná. Com a emancipação política, o território paranaense deixou de ser a então 5ª Comarca da
Província de São Paulo e passou a ser a Província do Paraná. Em 29 de agosto de 1853, Dom Pedro II assinou a
Lei nº. 704, a qual criou a Província Paraná. Sendo designado como presidente, Zacarias de Góes e Vasconcelos,
o qual instalou oficialmente a Província em 19 de dezembro de 1853 (WACHOWICZ, Ruy Christovam. 1995. p.
29).
O Presidente Zacarias, certificando-se da necessidade de oferecer aos provincianos todas as garantias que
precisavam, propôs à Assembleia a organização de uma força formada nos princípios básicos da ordem, da
disciplina, da lealdade e com objetivos voltados para a segurança da população.
Assim, a primeira lei que sancionou foi a de 28 de julho de 1854, que fixou a Vila de Curitiba como capital
da Província e, ainda nessa mesma legislatura, foram votados e sancionados mais dezenove projetos, entre eles a
Lei n.º 7, de 10 de agosto de 1854, que autorizou a organização da COMPANHIA DA FORÇA POLICIAL, a
qual veio a ser, de fato e de direito, a primeira organização policial do Paraná:

Art. 1º - Fica o Governo autorizado a organizar uma Companhia de Força Policial


com total de sessenta e sete homens e soldo constante do Plano junto, assim como a
depender o que for necessário para armamento, equipamento, expediente, luzes,
aluguel de casas para quartéis da Companhia e destacamentos.
Nota 1: O efetivo de 67 (sessenta e sete) homens era o fixado por lei, porém o
existente era de 39 (trinta e nove) na data da criação, e logo após na fase
organizacional com um pouco mais de dois meses de existência, a milícia
paranaense, contava com o efetivo de apenas dois oficiais e cinco praças (sete), tendo
aumento de efetivo gradativo, no entanto, as condições razoáveis estabelecidas no
primeiro regulamento, em fevereiro de 1855, a Companhia da Força Policial, não
tinha ainda um terço das praças que formava o seu estado efetivo completo.
Nota 2: O termo praças, se refere desde os idos tempos, onde os homens eram
convocados para batalhas temporárias em locais de reunião do povo chamadas praças
públicas, onde eram colocadas mesas para esse sistema de recrutamento, onde esses
locais passaram a serem chamadas de Praças de Guerra, e os que eram recrutados,
passaram a ser chamadas de as Praças por terem se alistados neste locais, tendo suas
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 115

origens na Europa, consequentemente trazido para o Brasil, observa-se que em


alguns lugares a exemplo da Espanha, ainda são encontradas as chamadas Praça das
Armas, termo semelhante a Praças de Guerra.
Art. 2º - O Presidente da Província fará o regulamento necessário à economia,
disciplina e moralidade da Companhia, marcando o modo e tempo de engajamento.
Este regulamento será submetido a aprovação da assembléia em sua próxima
reunião, ficando em vigor desde sua publicação. (negrito nosso)
Nota: O tempo de engajamento (contrato) era fixado por um período de anos (em
média 3 anos) podendo ser renovado caso houvesse interesse (de ambas as partes),
era um modo de sanear os quadros da corporação de elementos que não serviam para
tal fim.
Art. 3º - Ficam revogadas as disposições em contrário. Mando, portanto, a todas as
autoridades a quem o conhecimento e execução da referida Lei pertencer, que a
cumpram e façam cumprir tão inteiramente como nela se contém, o Secretário desta
Província a faça imprimir, publicar e correr. Palácio do Governo do Paraná, em 10
de agosto de 1854, trigésimo terceiro da Independência e do Império. (negrito nosso)
Nota: Correr significa distribuir, divulgar.

Nicolau José Lopes ingressou na Companhia da Força Policial, no dia 1º de outubro de 1854, oriundo
da extinta Guarda de Pedestres, tendo sido o primeiro cidadão provinciano a envergar a farda de Policial-Militar.

Organização inicial da companhia da Força Policial


A organização da Cia. da Força Policial foi moldada no tipo militar, com instrução de caçadores.
Subordinava-se diretamente ao Presidente da Província, única autoridade que a poderia empregar na manutenção
da ordem e no interesse da tranquilidade pública, e que, tinha por dever atender as requisições das autoridades
policiais, para o fim de fazer efetivos as suas ordens. Sob a vigilância dos policiais militares surgiram as primeiras
fazendas; diante de sua proteção ergueram-se as primeiras chaminés de nossas fábricas e se estenderam os trilhos
das primeiras ferrovias rumo ao sertão desconhecido; seus homens acompanharam os fundadores de numerosas
cidades, assistindo o seu crescimento e garantindo a segurança da população.
É frisante e sintomático o fato de a Corporação ter conservado, sempre, o caráter militar, originário de sua
criação. Não é correta a concepção de que se militarizou por influência da Revolução de 1964, como muitos
apregoam.
Tanto é verdade essa assertiva que o oficial escolhido para comandá-la foi o capitão de primeira linha do
Exército, Joaquim José Moreira de Mendonça, que a convite do Presidente Zacarias, veio diretamente da Corte
do Rio de Janeiro com esse encargo. A ele coube, portanto, a difícil tarefa de organizá-la nos moldes estabelecidos
e com base na hierarquia e disciplina, mecanismos ágeis de saneamento de seus quadros.
Além de a sua criação ter sido alicerçada nas tradições seculares de “Assegurar a paz pública e auxiliar a
justiça”, competia-lhe, de acordo com a legislação vigente, a prisão de criminosos, o patrulhamento e rondas nas
cidades, vilas e freguesias, estradas, além de outras diligências.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 116

Todos os destacamentos policiais do interior da província também ficaram a seu cargo, consoante ao
disposto no artigo 1º da Lei nº 7, de 10 de agosto de 1854, passando seus integrantes a realizar, diuturnamente, o
policiamento ostensivo e desempenhar, cumulativamente, atividades de polícia judiciária.

A polícia militar do Paraná - Major RR Antunes


"A Polícia Militar se identifica pelo uniforme que usa e exerce, com eficiência e eficácia, a função de polícia
preventiva em toda a sua plenitude, evitando, com a sua presença, a perpetração do delito e guardando o emprego
de medida repressiva para a última instância.
Como agentes da Lei, seus membros têm tombado no solo sem vida, numa demonstração inequívoca de
que a missão policial militar é árdua, complexa, dignificante e pode até mesmo custar o sacrifício da própria vida.
Não se encontra no mapa do Estado um lugar onde não haja tombado, em holocausto ao dever, o soldado
de polícia, inscrevendo, a sangue vivo, a odisseia magnífica da dor e do sacrifício nessas jornadas de todo o dia,
obscura é verdade, mas de um profundo e belo sentido de defensor da vida e dos bens da gente laboriosa, das
cidades e dos sertões, constantemente ameaçados pelo flagelo do banditismo.
O seu passado, cheio de tradições, está vinculado à própria história do Paraná. E esta ensina, e confirma,
que a Corporação sempre esteve presente e atuante nos momentos decisivos do nosso Estado, em harmonia com
as aspirações populares e as melhores recordações do povo paranaense.
Crescendo paralelamente com o desenvolvimento do Estado, a Polícia Militar vem assinalando, nas dobras
do pavilhão que defende, com denodo de bravos, os feitos de suas empreitadas vitoriosas, nos domínios da paz,
no terreno das dificuldades e nos campos de batalha."

BPFron – Breve histórico


O Batalhão de Polícia de Fronteira (BPFron) é uma unidade especializada da Polícia Militar do Estado do
Paraná. É o primeiro Batalhão de Polícia de Fronteira do país. Criado em âmbito estadual pelo decreto-lei nº
4.905 de 06 de junho de 2012, o BPFron é uma proposta para o desenvolvimento de ações relacionadas ao Plano
Estratégico de Fronteira e ENAFron, sendo subordinado ao Subcomando Geral da Polícia Militar do Paraná.
A Enafron promove ações para o aprimoramento das instituições estaduais de segurança pública e seus
objetivos são: a) Promover a articulação dos atores governamentais, das três esferas de governo, no sentido de
incentivar e fomentar políticas públicas de segurança, uniformizar entendimentos e ações e otimizar o
investimento de recursos públicos nas regiões de fronteira e b) Enfrentar os ilícitos penais típicos das regiões de
fronteira e promover um bloqueio e a desarticulação das atividades de financiamento, planejamento, distribuição
e logística do crime organizado e dos crimes transnacionais, cujos efeitos atingem os grandes centros urbanos e
a sociedade brasileira com um todo (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, SENASP).
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 117

Atuante nas fronteiras com foco na prevenção, controle, fiscalização e repressão aos delitos
transfronteiriços o BPFron conta com apoio dos municípios e órgãos governamentais integrando esse processo.
Como resultado desta integração os resultados de apreensões vêm crescendo a cada dia.
O BPFron atua em 139 municípios na faixa de fronteira, que abrange um raio de 150 km além da linha
divisória terrestre do território nacional. Estando a sede da unidade localizada em Marechal Cândido Rondon
bem como sua primeira companhia. Já a segunda e terceira companhia estão situadas em Guaíra e Santo Antônio
do Sudoeste, respectivamente.
O BPFron realiza o patrulhamento ostensivo e preventivo através de seus pelotões, atuando no combate aos
delitos transfronteiriços na região de fronteira. Por terra contam com a R.O.C.A.M. - Rondas Ostensivas com
Aplicação de Motocicletas, o Pelotão de Operações com Cães além da atuação das três companhias da unidade
atuando no recobrimento de área com seus respectivos pelotões.
Com o patrulhamento aquático apresentam o Pelotão C.O.B.R.A. – Corpo de Operações de Busca e
Repressão Aquática, realizando o policiamento embarcado em toda a região do lago de Itaipu que abrange 170
km, sendo 16 municípios brasileiros banhados por ele e que são de atuação do BPFron.
As ações conjuntas a outros órgãos de segurança e fiscalização fazem parte da rotina de trabalho do BPFron.
O policiamento ostensivo, bem como, as operações conjuntas ou apoio a outros órgãos de segurança e fiscalização
fazem do Batalhão Policial de Fronteira, um batalhão reconhecido a nível nacional, pelas suas constantes
apreensões e trabalho maciço na região de fronteira.

Vulnerabilidade social em decorrência da Covid-19


A chegada da COVID-1932, no Brasil, desencadeou em diversas medidas de controle e prevenção da
doença, por parte das autoridades sanitárias, em diferentes esferas administrativas (federal, estadual e municipal).
Essas medidas se diferenciam de uma região para outra no país; entretanto, a medida mais difundida tem sido a
prática do distanciamento social.
Junto ao distanciamento veio a crise provocada pela Covid-19, que impactou diretamente a renda dos
brasileiros. Segundo a pesquisa do UNICEF33, 55% dos entrevistados afirmam que o rendimento de seus
domicílios diminuiu desde o início da pandemia.
A redução da renda, afeta diretamente as instituições sociais, que dependem do auxílio das pessoas para
seu funcionamento, contam com o apoio da população para manter os atendimentos e a qualidade do trabalho.

32 A COVID-19 é uma doença causada pelo coronavírus SARS-CoV-2, que apresenta um quadro clínico que varia de infecções
assintomáticas a quadros respiratórios graves. (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2020).

33 Impactos primários e secundários da Covid-19 em Crianças e Adolescentes disponível em:


https://www.unicef.org/brazil/media/9966/file/impactos-covid-criancas-adolescentes-ibope-unicef-2020.pdf acesso em: 5 set
2020.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 118

Pensando nestas instituições, que hoje encontram-se mais vulneráveis, foram destinados às 2,6 toneladas
alimentos não perecíveis, revertidos com os valores arrecadados pelo “Desafio Virtual Guardiões da Fronteira”,
as entidades, Lar de Idosos Rosas Unidas de Marechal Cândido Rondon (PR) e o Hospital do Câncer (CEONC)
de Cascavel (PR).

O desafio virtual guardiões da fronteira


Com a finalidade de fazer parte das comemorações dos 166 anos da Polícia Militar do Paraná e do 8º
aniversário do BPFron, tendo como objetivo de manter o isolamento social e a integração entre a comunidade,
PMPR, comunidade de negócios, atletas participantes e outros órgãos públicos. Incentivando a prática da corrida
e do ciclismo como atividade de promoção da saúde, condicionamento físico e melhoria da qualidade de vida.
Além da captação de recursos financeiros para aquisição de alimentos que serão doados a famílias em situação
de vulnerabilidade social.

Imagem 1 – Folder do evento.


Fonte: Site Oficial do Evento. Disponível em: https://www.ticketagora.com.br/e/desafio-virtual-guardioes-da-fronteira-
30679?termo=desafio%20guardi%C3%B5es%20da%20fronteira&periodo=0&mes=&inicio=&fim= Acesso em: 08 jul. 2020.

Ao participar do evento, o atleta assumiu total responsabilidade pela as informações fornecidas no ato da
inscrição, cedeu gratuitamente os direitos de utilização de sua imagem, renunciando o recebimento de qualquer
renda que vier a ser auferida com direitos a televisão ou qualquer outro tipo de transmissão e/ou divulgação,
promoções, internets e qualquer mídia, em qualquer tempo.
O evento não disponibilizou reembolso por parte da organização, bem como seus patrocinadores,
apoiadores e realizadores, de nenhum valor correspondente a equipamentos e/ou acessórios utilizados pelos
atletas no evento, independente de qual fosse o motivo, nem por qualquer extravio de materiais ou prejuízos
sofrido pelo atleta durante a participação no evento. Ainda em seu regulamento, a organização do evento,
recomendou rigorosa avaliação médica, inclusive a realização de teste ergométrico prévio para todos os atletas
participantes.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 119

Vistas ao que foi exposto, abriu-se a possibilidade de participar do desafio com kit, ranking e medalhas,
não só, facilitando a vida dos corredores e ciclistas, como também, ampliando a sua prática esportiva.
Oportunizando a união de pessoas, ainda que em espaços físicos diferentes, em único objetivo.
No desafio, não houve um ponto de partida nem de chegada, bastou inscrever-se, correr ou pedalar a
distância prevista, no local que estivesse disponível, e que fosse de seu agrado. Evitando aglomerações, saindo
do sofá, melhorando a sua imunidade e a vida dos assistidos pela corrida.
Ao acessar o site para realizar a inscrição, o participante tinha acesso ao resumo das informações do desafio
na página inicial, e, para maiores informações, foi disponibilizado pela organização, o regulamento, publicado o
link na página do evento. A organização divulgou o evento em redes sociais do batalhão.
Esta edição do evento contou com aproximadamente 570 (quinhentos e setenta) participantes, dentre
eles, pessoas comuns e atletas que realizaram sua inscrição e participaram de forma efetiva para a garantia do
sucesso do trabalho deste batalhão de fronteira. Com o evento foram arrecadados 2.688 kg de alimentos.
Alimentos, estes, que foram entregues ao Lar de Idosos Rosas Unidas e ao CEONC de Cascavel -PR. As imagens
abaixo representam a entrega simbólica das cestas básicas, na Sede do BPFRON em Marechal Cândido Rondon-
PR que contou com a presença do Comandante do BPFRON Major André Cristiano Dorecki.

Imagem 2 – Entrega simbólica.


Fonte: Instagram BPFron. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CFHr6e8nYSB/
Acesso em: 16 set. 2020.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 120

Imagem 3 – Cestas adquiridas a partir do desafio.


Fonte: Instagram BPFron. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CFHr6e8nYSB/
Acesso em: 16 set. 2020.

Considerações finais e/ou conclusões


Concluindo as reflexões sobre a “O trabalho social policial do BPFron” reafirmamos a importância de um
trabalho sério e idôneo, cujo lema: “Sua proteção é o nosso compromisso” honram com bravura, uma vez que,
estamos passando por uma crise sanitária que afetou não só a renda da população, mas o modo de vida em geral,
observamos que estes incansáveis guerreiros, dedicando esforços, conseguiram auxiliar instituições sociais a
continuarem seus trabalhos, alimentando aqueles que encontram-se vulneráveis.
Na era da iconografia, em que as imagens devoram as pessoas, muitas vezes as informações são
manipuladas, na tentativa de criar uma imagem errônea do Policial Militar. Com este artigo, mostramos apenas
uma das ações que estes bravos guerreiros realizam em prol do social, uma vez que além da segurança
proporcionam alento e conforto. Demonstram sabedoria, em meio as crises, reformulando projetos, buscando
soluções, confirmando o senso de humanidade, ocupam as ruas e as redes sociais em prol da população.
Fazendo verdadeiros os versos da Canção 10 de agosto, com a letra de Rubens Mendes de Moraes e música
de Antônio Alberto Ramos:

“...Polícia Militar paranaense de tão brava e tão nobre tradição ao Brasil nossa vida
pertence e a ti servimos por brio e vocação...”

Inserem-se como protagonistas da construção de um mundo melhor. Não sendo movidos pelo
reconhecimento e sim pelo bem social, praticando a solidariedade que é entendida como um ato de bondade e
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 121

compreensão com o próximo que encontra-se necessitado no momento. Reformulando projetos para atender as
demandas deste ano atípico, levando as ruas pessoas com o objetivo de ajudar o próximo.

REFERÊNCIAS

BAITELLO, Junior Norval. A era da iconofagia. São Paulo: Editora Paulus, 2014.
BRASIL, Ministério da Justiça. Secretaria Nacional de Segurança Pública. (SENASP). Matriz Curricular
Nacional. Versão revista e ampliada. Brasília, 2011.
DURKHEIM, E. Da divisão do trabalho social. 3ª ed. São Paulo: Martins Fontes; 2008. Coleção Tópicos.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Sobre a doença. In: BRASIL. Ministério da Saúde. Coronavírus (COVID-19).
Brasília: Ministério da Saúde, [2020]. Disponível em: https://coronavirus.saude.gov.br/sobre-a-doenca#o-que-e-
covid. Acesso em: 23 jun. 2020.
POLÍCIA MILITAR DO PARANÁ. Curitiba: PMPR, 2020. Disponível em:
<http://www.pmpr.pr.gov.br/Pagina/Historico>. Acesso em 13 set. 2020.
POLÍCIA MILITAR DO PARANÁ. Regulamento do desafio guardiões da fronteira. Curitiba: PMPR, 2020.
Disponível em:
<https://storagefileta.blob.core.windows.net/ticketagora/arquivos/evento/30679/6891466dd978421bb0376e08df
c3856e637274815757447076.pdf>. Acesso em 13 set. 2020.
WACHOWICZ, Ruy Christovam. História do Paraná. Ponta Grossa: Editora UEPG, 2010. 2.ed.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 122

CAPÍTULO 12
FEMINISMO E EXTREMA- DIREITA: COMO O BOLSONARISMO
REFORÇA A LÓGICA PATRIARCAL NO BRASIL

LÍVIA R. FERNANDES
JOÃO LUÍS ALMEIDA WEBER

“Longa é a História das Mulheres até chegarmos aonde estamos. Já fomos tidas
como menos valiosas que a mula, que ao menos fazia transporte e carga; já fomos
queimadas como curandeiras, amaldiçoadas como feiticeiras; fomos vestidas e
despidas como cortesãs ou concubinas para alegrar a vida nas Cortes; já nos
fantasiamos de prostitutas a saciar desejos e nos arriscamos como espiãs a serviço
do poder. Há séculos temos aceitado ordens tendo nosso clitóris cortado, andando
atrás dos homens nas ruas e obedecido suas ordens dentro das casas; impedidas de
estudar, lendo e escrevendo às escondidas; proibidas de votar e de escolher;
compartilhamos a cama e o homem amado obedientemente, substituímos os homens
no trabalho com competência ao irem para a guerra e retornamos incontinente à
casa na volta dos combatentes. Lugares diversos que ocupamos ao longo dos
séculos, com espantosa plasticidade e eficiência sem muitas vezes identificarmos o
porquê ou se desejávamos” (Silvia Lobo).

INTRODUÇÃO
O feminismo é um movimento social e político idealizado, inicialmente, por mulheres questionadoras da
lógica patriarcal, que reivindicavam por condições de igualdade entre homens e mulheres, objetivando a quebra
da relação de dominação estabelecida culturalmente dos homens perante as mulheres. O movimento teve seu
início no século XX entre as décadas de sessenta e setenta. Tratava-se de um movimento de esquerda, pautado
na teoria marxista-leninista que procurava a redemocratização e a legitimação das lutas femininas tanto em
ambiente privado, como externo (FONTENELLE- MOURÃO, 2006).
Segundo Lobo (2018), o fato histórico fundamental que determinou o início das lutas feministas foi a
saída dos homens para a guerra, oferecendo às mulheres uma nova posição social e familiar. A partir da vida
longe dos homens, muitas mulheres apresentaram-se (inclusive para si próprias), como sujeitos independentes,
quebrando a crença central do patriarcalismo que delimita que o indivíduo feminino não apresenta as mesmas
capacidades do que o masculino, (sendo assim inferior) e necessitando do subsídio masculino para viver. Logo,
as mulheres fortalecidas e mais independentes, passaram a resistir e lutar para ocupar novas profissões, direitos
(de viajar, amar, decidir), bem como gozar de uma liberdade até então fortemente oprimida. Tem-se, com isso, o
feminismo como movimento social de busca por igualdade.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 123

As primeiras feministas buscavam subverter a lógica patriarcal dominante, que em muitos aspectos da
vida social, sexual e familiar, conduziam a mulher para uma posição de desigualdade radical perante o homem.
Ainda lutavam por uma inserção igualitária no mercado de trabalho -com salários e direitos mesmos aos dos
homens, por maior participação sociopolítica da mulher, pela igualdade entre os sexos e uma divisão justa de
papéis e reconhecimento feminino na sociedade (COSTA; ANDROSIO, 2010).
Logo, a luta feminista sempre objetivou na sua essência, questionar para modificar a lógica patriarcal,
(esta como responsável pelas opressões e sofrimento psíquico feminino), a qual historicamente tirava o caráter
de sujeito para as mulheres, reduzindo-as à objetos de gozo e pertença masculina. O patriarcado, enquanto modo
de funcionamento dominante na sociedade (desde seus tempos primeiros até os dias atuais), pode ser definido
como um sistema de poder sexual, do qual homens assumem domínio, privilégios (de múltiplas condições) e o
controle do corpo feminino. Entende-se que tal relação de poder é um funcionamento ainda fortemente dominante
na sociedade, mesmo com as lutas feministas (CRUZ, 2005).
Segundo Weiner (1994), o movimento feminista é classificado dentro de três grandes dimensões, são elas:
a política (buscando melhorar as condições de vida feminina); a crítica (questionando intelectualmente as
relações de dominação) e por fim, a práxis- orientada (concretizando ações que alternem as relações de poder e
dominação estabelecidas culturalmente). Deste modo, o movimento feminista pode caracterizar-se como um dos
mais importantes movimentos sociais, uma vez que busca alterar um aspecto muito arcaico e enraizado da
sociedade, que é justamente o patriarcado.
A lógica patriarcal ainda é fortemente presente na sociedade brasileira, um exemplo disso pode se dar
através do avanço do Bolsonarismo no país. O fenômeno do Bolsonarismo diz respeito a um reforço do
patriarcado e um retrocesso das lutas feministas, uma vez que tal fenômeno atua na sociedade como um reforçador
da cultura machista. Além disso, a ascensão de Bolsonaro sinaliza uma importante decadência de movimentos
sociais e Direitos Humanos no país.
Bolsonaro denuncia através de suas falas e ações, características machistas, sexistas e patriarcais. A
escolha pelo candidato e a idolatria de muitos brasileiros pela figura de Bolsonaro refletiu tais características
patriarcais como um fato da sociedade brasileira. Deste modo houve identificação com a figura machista,
demonstrando que a luta feminista dentro da sociedade brasileira se apresenta como um desafio de grande
magnitude.
O presidente, ao longo de sua pré candidatura e atualmente durante seu mandato, já proferiu inúmeras
retóricas desta envergadura sexista e patriarcal. Um exemplo claro disso se dá quando no ano de 2003 em discurso
na Câmara, Bolsonaro ataca a deputada Maria do Rosário dizendo que não a estupraria, pois ela não merecia.
Outra ocasião, em 2014 em entrevista ao jornal Zero Hora, Bolsonaro diz que o Brasil possui um excesso de
direitos trabalhistas, citando como dar seis meses de licença-maternidade para a mulher trabalhadora gera prejuízo
ao empresário.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 124

Posto isso, o presente estudo busca analisar de que modo o avanço neofascista brasileiro, representado
pelo Bolsonarismo (este enquanto estrutura política e social), denuncia o enraizamento patriarcal no Brasil,
ditando e reforçando a crença que estabelece a mulher como sujeito inferior e objeto de gozo da sociedade
machista, gerando opressões e sofrimento psíquico para as mulheres. O estudo abordará, ainda, a questão da
maternidade e feminilidade e os modos de ser mãe e mulher dentro de um contexto de neofascismo e
patriarcalismo. Por fim, abordando o fenômeno de Backlash enquanto um processo de resistência aos avanços
feministas dentro do contexto atual do Brasil.

Neofascismo no Brasil e seus reflexos na luta feminista


O Bolsonarismo, em sua essência, alinha-se com as premissas básicas de um regime fascista. As principais
características presentes no fascismo ao longo da história, dizem respeito a uma onda ultraconservadora, de
extrema-direita, autoritária e intolerante, manifestada obrigatoriamente por figuras caricatas masculinas,
machistas e patriarcais, que são elevadas por boa parte da sociedade ao caráter de “salvadores”, ou “mitos”
(MELO, 2020). Deste modo, vive-se hoje no Brasil uma montagem fascista que não é sem efeito na vida das
mulheres (uma vez que tal regime é caracterizado pela hegemonia masculina). Ressalta-se que tal enquadre
formou-se principalmente após o Golpe de 2016 culminando no impeachment da presidenta mulher Dilma
Rousseff.
Para Melo (2020), os principais alinhamentos entre fascismo e Bolsonarismo se dão através das seguintes
características, tais sejam: reunião de grupos de extrema-direita; fenômenos de massa aglutinando correntes
contrarrevolucionárias em prol do governo; onda conservadora; devastação econômica e social (crise); “mitos”
que mobilizam bases fascistas; populismo; culto à violência; grupos de extermínio com grande poder de controle
territorial; projeto de poder político: milícias e anti- intelectualismo.
Ainda tem-se doze sinais característicos do estabelecimento do fascismo segundo Eco (1998), tais são: 1)
culto as tradições e as raízes; 2) abuso do medo ao diferente; 3) constante estado de ameaça; 4) exaltação da
vontade popular; 5) oposição a análise crítica; 6) obsessão por conspirações e culpados externos; 7) proclamação
de um líder; 8) repressão da sexualidade; 9) ação antes da razão; 10) linguagem limitada e repetitiva; 11) apelo a
uma classe social frustrada e, por fim, 12) rejeição as ideias modernas. Tais elementos ocorrem no Bolsonarismo
ECO (1998).
Desse modo, o Bolsonarismo é a resultante de uma crise. Segundo Gramsci (2000), quando há essas crises,
a situação torna-se delicada e perigosa, pois abre-se o campo às soluções de força, à atividade de potências ocultas
representadas pelos homens providenciais ou carismáticos. Logo, não se trata somente de uma crise econômica
ou política, mas principalmente humanitária, ameaçando fortemente as conquistas adquiridas até então pelas
feministas e outros grupos. Além disso, ressalta-se que tal homem carismático citado por Gramsci, representa a
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 125

máxima expressão do patriarcado, reforçando a lógica predominantemente masculina, implicando nos modos de
vida femininos.
O Bolsonarismo, que pode ser analisado também como um anti- feminismo, sinaliza que o patriarcado
está muito vivo na sociedade brasileira. O avanço neofascista leva a um retrocesso em praticamente todos os
aspectos sociais. Tem-se, como uma manifestação sintomática da sociedade, uma espécie de fixação com a
preservação de uma imagem tradicional e conservadora que sustenta a ideologia dominante, e ainda reforça a
lógica dominante de opressão, não possibilitando o avanço, a partir disso, tem-se o anti- feminismo (CRUZ;
DIAS, 2015).

Maternidade e Feminilidade
A partir da lógica patriarcal, tem-se outro importante aspecto da vida feminina afetada pela hegemonia
masculina. A questão da maternidade articula-se na sociedade como uma crença social que determina que todas
as mulheres, sem exceção, deveriam desejar e parir um filho. Acredita-se que há por parte da mulher, um desejo
e um instinto inato e universal que a fizesse tornar-se mãe. Segundo Lobo (2018), o corpo feminino é configurado
a partir da condição biológica de gerar, e isso determina o comportamento moral e o destino histórico das
mulheres, podendo enquadrar-se somente como mães e não como mulheres.
Ademais, a partir de tal sentença social que determina a maternidade como questão central da vida de uma
mulher, há um reforço importante da objetificação do corpo feminino- corpo este que é visto como patrimônio
social, seja para obtenção de prazer masculino ou para a concepção de crianças. Seguindo a lógica patriarcal
dominante, a mulher que não tem filhos apresenta algo patológico ou disfuncional, uma vez que se estabelece no
laço social a mulher unicamente como genitora. A pílula anticoncepcional, lançada nos anos 60, modificou em
partes tal realidade, transformando o prazer sexual em algo desvinculado da reprodução, proporcionando para a
mulher uma vida sexual prazerosa e subvertendo a lógica do corpo feminino unicamente como potencial
reprodutor.
Entretanto, a anulação feminina ainda segue extremamente presente, principalmente em contextos de
neofascismo. Através disso, a temática do aborto e o direito de decisão feminina entram em questão, uma vez que
o desejo da mulher ao longo da história sempre apareceu como indiscutível e de propriedade masculina. No Brasil
a prática do aborto não espontâneo é tida como ilegal, conforme prevê o Código Penal nos artigos 124 e 127. As
exceções consistem somente em casos de estupro, anencefalia fetal ou quando a gestação representa uma ameaça
real à vida da mulher gestante, condizente ao artigo 128.
Ainda em relação à anulação do direito da mulher em decidir conforme seu lugar de sujeito de desejo,
aponta-se aqui para: como o fascismo, representado no Brasil atual pelo Bolsonarismo, nutre o patriarcado de tal
forma que assume um certo controle sobre o corpo feminino e dita regras para tal. Cita-se como exemplo disso,
a repulsa que o governo Bolsonaro tem em relação à temática da legalização do aborto não espontâneo (fora das
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 126

condições de exceção previstas no código penal). Em publicação na rede social Facebook, Jair Bolsonaro repudia
a decisão da Argentina em legalizar o aborto. Na publicação, o presidente fala que lamentava pela vida das
crianças argentinas e que no que depender dele, tal prática no Brasil jamais se dará.
Além disso, é direcionado ódio às mulheres que apoiam a causa do aborto, com xingamentos, discursos
de ódio e juízos de valor moral (principalmente de cunho religioso, uma vez que o governo Bolsonaro caracteriza-
se por fortes valores evangélicos), culpabilizando a mulher pela sua escolha e desse modo reduzindo-a a objeto
de pertença da cultural patriarcal que dita a mulher unicamente como mãe.

Fenômeno Backlash
O backlash é um fenômeno social e político que pode ser caracterizado como uma resistência coletiva
perante conquistas sociais adquiridas ao longo de anos. No caso da resistência ao movimento feminista no Brasil
atual, tal fenômeno aparece através de muitas esferas e assume máxima expressão através da ascensão de
Bolsonaro à presidência. Segundo Cruz e Dias (2015), as formas de oposição não necessariamente manifestam-
se no laço social de maneira direta, mas sim através de sutilezas principalmente discursivas, em que desmoralizam
os movimentos e avanços feministas, atuando no imaginário social e fazendo com que os movimentos sejam
malvistos e logo, rechaçados no laço social, enfraquecendo-os.
A partir dos movimentos antifeministas e do rechaço pelas mulheres feministas (resistência ao feminismo)
muito presentificados na sociedade brasileira, principalmente após o avanço do Bolsonarismo que destacou a
característica patriarcal como fato social do Brasil, lança-se para a presente estudo o conceito de Faludi (2001)
de Backlash. O termo significa “retrocesso” ou “reação”.
Faludi (2001) identifica o fenômeno de retorno/retrocesso (backlash) a partir de movimentações ocorridas
na década de 1980 nos Estados Unidos, de oposição à ascensão de direitos e conquistas femininas. Para a autora,
o backlash consiste principalmente de um movimento com claro compromisso ideológico de reforço a condições
de desigualdade e opressão, caracterizando assim o anti- feminismo.
As conquistas feministas ocorridas até os dias atuais são um passo fundamental de mudança social, além
disso serviram para melhorar significativamente a qualidade de vida das mulheres, oferecendo-lhes condições
mais dignas de vida, trabalho, relações sociais e sexuais. Logo, o anti- feminismo é algo sintomático que ocorre
na sociedade, uma vez que muito dele parte das próprias mulheres, tornando o fenômeno ainda mais relevante
para análise. Um exemplo do anti- feminismo feminino é o grupo da rede social Facebook intitulado “Mulheres
com Bolsonaro”. Na mídia, reúnem-se cerca de 27 mil mulheres posicionando-se a favor do presidente machista.
O mesmo ocorre ainda através da página na mesma rede social intitulada “Mulheres contra o feminismo” com
interação de em média 47 mil pessoas.
Com o avanço de direitos femininos, os homens temeram a perda de sua hegemonia masculina, logo,
determinados regimes políticos legitimados pela mídia (a “nova direita”), tenderam a direcionar definições
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 127

negativas e pejorativas aos movimentos feministas da época na sociedade estadunidense, intervindo no


imaginário social e lançando o feminismo como algo ruim, imoral e que deve ser combatido (FALUDI, 2001).
Logo, o backlash entra em cena quando o feminismo avança e garante direitos aos oprimidos pelo sistema,
ou seja, as mulheres. O retrocesso do backlash inicia quando as mulheres adquirem uma vida de maior liberdade
e dignidade. Deste modo uma determinada parcela da sociedade é representada por um governo conservador,
resistindo assim ao feminismo. A autora cita que tal resistência vem de homens a partir do medo da ameaça de
cair a hegemonia machista. Entretanto questiona-se ainda a resistência feminina pelos próprios avanços
feministas. Ressalta-se que tal fenômeno não é algo unicamente masculino, tal retorno parte também de mulheres
que diminuem as feministas e reduz o movimento a algo simplista e imoral.
Faludi (2001) cita estratégias do backlash que deslegitimam o feminismo e o movimento feminista, são
elas: visão estereotipada do feminismo e acerca das feministas; inversão de causas; criação de mitos que geram
insegurança na busca de independência feminina; conjunto de características negativas atribuídas as mulheres
feministas e por fim, uma diminuição do movimento feminista como sendo algo corriqueiro e passageiro,
anulando as conquistas adquiridas até hoje pelo movimento.
A partir do contexto em que o backlash foi conceituado pela autora, considera-se que o Bolsonarismo
pode ser caracterizado como o backlash brasileiro, uma vez que com o governo ultraconservador e autoritário,
nota-se com bastante facilidade a mesma movimentação de subversão e desmoralização da luta feminista por
parte da “nova direita”, que consistiria no Bolsonarismo. O anti- feminismo no governo Bolsonaro retoma pautas
tradicionais de pró-família e apresenta uma retórica que nega os movimentos emancipatórios do ativismo
feminista (AGUIAR; PEREIRA, 2019).
Segundo Eco (2018) tem-se um fenômeno social da qual denominou como “fascismo eterno”. Segundo o
autor, isto consiste basicamente em um estado de fragilidade econômica, política e ética da qual uma sociedade
encontra-se, fazendo com que as práticas fascistas se colocam em uma posição de espreita, para (re) surgirem a
partir do contexto de crise. Tal ressurgimento do fascismo em sociedades que antes estruturavam-se como
democráticas representa o retorno/ retrocesso do backlash, e, consequentemente, afetam os modos de subjetivação
do sujeito e do mundo, a partir de suas ideologias antidemocráticas. Assim, considera-se o fascismo como um
sintoma social resultante de um cenário de fragilidade política, psíquica e social, causando inúmeros malefícios
para o sujeito, principalmente o oprimido.
Dentro do contexto de neofascismo no Brasil cita-se como exemplo de figura feminina representando
claramente o processo de anti- feminismo e backlash no país, a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos, Damares Regina Alves. A ministra Damares pratica uma política pautada nos preceitos conservadores
e do fundamentalismo religioso. Desse modo, ela realiza o papel de reforçadora do modelo de sociedade
patriarcal. Damares ainda se posiciona contra a legalização do aborto no país. Em certa ocasião a ministra diz
que “nenhuma mulher quer abortar”. Além disso, corriqueiramente propaga afirmações de cunho conservador e
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 128

religioso, negando a laicidade do Estado. A afirmação das diferenças de gênero também é uma constante, tendo
frases como: “menino veste azul e menina veste rosa”, “a mulher nasceu para ser mãe” e “vamos tratar meninas
como princesas e meninos como príncipes” sendo proferidas pela ministra antes e no curso de seu mandato.
O backlash como fenômeno de retrocesso e retorno, alinha-se com as premissas do governo Bolsonaro,
em que a questão feminista é posta à prova a partir de um fenômeno de bastante utilidade dentro da ideologia
fascista, tal seja, a Guerra Cultural. Os dois aspectos fundamentais da Guerra Cultural no contexto fascista, são:
o anti-iluminismo e um confronto com a Revolução Francesa e suas premissas de igualdade, liberdade e
fraternidade (LEHER, 2020). Logo, para além do anti-iluminismo, que desmoraliza a ciência, razão e senso
crítico, há ainda um posicionamento do governo neofascista, de antidemocracia e antipolítica, fazendo com que
se tenha na sociedade um governo autoritário que oprima classes já marginalizadas pela sociedade (WEBER;
FERNANDES, 2021).
Sendo assim, compreende-se a Guerra Cultural como uma ferramenta do neofascismo, uma
movimentação no imaginário social da população, um processo de colonização subjetiva, que na questão do
feminismo se apresenta (através do backlash), através da desmoralização da luta feminista, da redução da mulher
e do reforço da lógica patriarcal.

Desafios para o futuro do feminismo no Brasil


Segundo BERNARDES et, al., (2016) a sociedade patriarcal estimula a competição e a inimizade entre as
mulheres, transformando-as em rivais. Tal prática de competição denuncia o machismo sistemático,
enfraquecendo a união entre as mulheres, e consequentemente os movimentos feministas. Logo, faz-se importante
para o boicote ao feminismo, promover e reforçar ainda mais a desunião entre as mulheres, fortificando o
patriarcalismo. Enquanto os homens se unem e se fortalecem, as mulheres competem entre si.
Deste modo, faz-se necessário quebrar tal rivalidade feminina, promovendo ações de união, empatia e
sororidade entre as mulheres, para deste modo fortalecer as suas lutas. Para Souza (2016), sororidade consiste em
a união entre mulheres, a partir da ideia de empatia e companheirismo a fim de buscar e alcançar objetivos em
comum. Não se trata de amar todas as mulheres, mas sim de não odiar por simplesmente ser mulher. A sororidade
ainda abrange acabar com a forte rivalidade entre as mulheres, bem como a objetificação do corpo feminino,
fazendo com que as mulheres se desprendam de padrões de beleza que acabam gerando sofrimento psíquico e
competitividade.
Alvarez (2014) ressalva a noção de “feminismo singular”, o que consistiria em um movimento único que
abrangesse as diversidades, promovendo a união entre as próprias mulheres. O feminismo singular (unindo
mulheres pretas, trans, lésbicas, duplamente oprimidas) é de extrema importância para o fortalecimento da
sororidade e do avanço do movimento feminista. Trata-se basicamente de quebrar as rivalidades que existem
entre as mulheres (fortemente reforçadas e influenciadas pelo patriarcado), e promover um feminismo único,
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 129

totalmente pautado na luta pela igualdade de gênero, alicerçando-se no campo progressista, democrático e
atuando na desconstrução de privilégios. Embora haja divergências importantes entre as múltiplas vertentes do
feminismo, esta possível unificação enquanto luta política possibilita o enfrentamento aos retrocessos recentes
que tem assolado o país.

Considerações finais
Com o avanço de um governo ultraconservador, autoritário, de extrema direita e com fortes características
patriarcais e machistas, como é o caso do Bolsonarismo, tem-se uma grande legitimação da cultura que estabelece
a mulher e o corpo feminino como objeto de gozo masculino, anulando a condição de sujeito na mulher. A
ascensão do Bolsonarismo ainda dá indícios de um processo de retrocesso no âmbito dos Direitos Humanos,
principalmente no que tange à questão do feminismo (Backlash), uma vez que o presidente apresenta- se como
uma figura masculina, que através de discursos e ações anula de forma importante a mulher. Considera- se ainda,
a identificação na figura do presidente, inclusive por parte de mulheres como exemplificado no grupo “Mulheres
com Bolsonaro”, o que denota o anti- feminismo como um dos sintomas da sociedade brasileira, manifestado
também pela própria ascensão de um homem como Jair Bolsonaro à presidência do país.
Logo, tem-se o cenário neofascista que a partir de uma colonização da subjetividade conduz os sujeitos
ao retrocesso nos diversos âmbitos dentro da democracia, reforçando o autoritarismo e a violência (aspectos
fortemente presentes durante toda a história do país), e que quando há a possibilidade de mudança, o processo de
resistência aparece, boicotando os avanços.
A partir disso, tem-se o grande desafio de restaurar o movimento feminista dentro da sociedade,
desvinculando-o de algo corriqueiro, sem importância ou ruim, e elevando- o ao caráter de movimento social que
reivindica direitos iguais entre homens e mulheres, a fim de reduzir a desigualdade e o sofrimento implicado nela.
Desvincular a ideia errônea e enraizada da sociedade de que a mulher é um ser inferior ao homem, diminui uma
série de problemáticas, como o feminicídio por exemplo.
Por fim, faz-se necessário fortalecer as mulheres, para que a partir disso, seja possível um enfrentamento
do avanço do patriarcado. Ações como a sororidade e o “feminismo singular” por exemplo, ampliam a união
entre mulheres proporcionando maior força na luta feminista e quebrando as rivalidades entre elas. Ainda, tem-
se a urgente demanda do rompimento da onda de extrema direita que se instaurou no país, realizando o movimento
de Backlash. Tem-se com isso, um desafio de grande magnitude, faz-se necessário um investimento em um olhar
crítico, na aposta que, a partir disso, seja possível modificar a posição subjetiva de servilismo e normatização da
violência que o brasileiro se encontra fazendo com que, a partir do senso crítico e da reflexão seja possível resistir
ao fascismo.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 130

REFERÊNCIAS
AGUIAR, Soares Bruna; PEREIRA Ribeiro Matheus. O antifeminismo como backlash nos discursos do governo
Bolsonaro. Revista de Discentes de Ciência Política da Universidade Federal de São Carlos- São Carlos, vol.
7, n. 3, p. 8-35, 2019.
ALVAREZ, S. Para além da sociedade civil: Reflexões sobre o campo feminista. Cadernos Pagu, n. 43, p. 13-
56, 2014.
BERNARDES, Célia. Regina. Ody. et al. O que é Sororidade e por que precisamos falar sobre? In Carta Capital,
jun. 2016. Disponível em: https://www.justificando.com/2016/06/02/o-que-e-sororidade-e-por-que-precisamos-
falar-sobre/ . Acesso em: 12 mai. 2021.
CRUZ, Santana Helena Maria. Trabalho, Gênero, Cidadania: Tradição e Modernidade. São Cristóvão Aracajú:
UFS, 2005.
CRUZ, Santana Helena Maria; DIAS Ferreira Alfrancio. Antifeminismo. Revista de Estudos de Cultura-
Sergipe, n. 1, p. 34-41, jan/abr. 2015.
COSTA, Henrique Irla; ANDROSIO, Oliveira De Valéria. As transformações do papel da mulher na
contemporaneidade. Disponível em:
http://www.pergamum.univale.br/pergamum/biblioteca/outras_pesquisas.php Acesso em: 12 mai. 2021.
ECO, Umberto. O fascismo eterno. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record Editorial, 2018.
ECO, Umberto. Cinco escritos morais. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record Editorial, 1998.
FALUDI, Susan. Backlash: o contra- ataque na guerra não declarada contra as mulheres. Rio de Janeiro: Rocco,
2001.
FONTENELLE- MOURÃO, Tânia. Mulheres no topo da carreira: Flexibilidade e persistência. Brasília:
Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, 2006.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
LEHER, Roberto. Educação e Neofascismo no Governo Bolsonaro. In: REBUÁ, Eduardo et. al. (Org).
(Neo)fascismos e educação: reflexões críticas sobre o avanço conservador no Brasil. Rio de Janeiro: Mórula
Editorial, 2020, p. 47-83.
LOBO, Silvia. Mães que fazem mal. São Paulo: Pasavento, 2018.
MELO, Demian. O Bolsonarismo como fascismo do século XXI. In: REBUÁ, Eduardo et. al. (Org.).
(Neo)fascismos e educação: reflexões críticas sobre o avanço conservador no Brasil. Rio de Janeiro: Mórula
Editorial, 2020, p. 12-46.
SOUZA, Babi. Vamos juntas? O guia da sororidade para todas. 1 ed. Rio de Janeiro: Galera Record, 2016.
WEBER, Almeida João Luís; FERNANDES Lívia. Guerra Cultural no (neo)fascismo brasileiro: uma análise dos
programas Escola Sem Partido e Future-se. Revista de Estudos em Educação e Diversidade- Bahia, vol. 2, n.
3, p. 211-229, jan./mar. 2021.
WEINER, Gaby. Feminism in education: na introduction. Philladelphia: Open Unversity Press, 1994.
Disponível em: http://www.antifeminismo.com.br . Acesso em: 12 mai. 2021.
PALIANI, Ugo; CARDONA, Andrea. Covid-19 and hydroxychloroquine: Is the wonder drug failing? European
Journal of Internal Medicine- Philadelphia, vol. 78, p. 1-3, jun./dez. 2020.

BIOGRAFIA DA AUTORA
Lívia R. Fernandes graduanda de psicologia pelo Centro Universitário da Serra Gaúcha. E-mail:
livia.fer8031@gmail.com
João Luís Almeida Weber mestre em psicologia social e professor de psicologia do Centro Universitário da Serra
Gaúcha. E-mail: joao.weber@fsg.edu.br
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 131

CAPÍTULO 13

ECOFEMINISMO COMO PARTE DOS MOVIMENTOS SOCIAIS


FEMINISTAS

CAMILA MAGRI BERTOLIN

INTRODUÇÃO
Os seres humanos moldam o mundo em que vivem, ao mesmo tempo em que o mundo dá forma aos seres
humanos, e, assim, existe a interconexão entre todas as formas de vida do planeta. As decisões tomadas pelos
humanos fazem com que sofram as consequências dos impactos ambientais de suas ações na Terra, como por
exemplo as crescentes catástrofes naturais, desmatamento, falta de produtividade na agricultura, elevação do nível
do mar, falta de água potável e acesso a ela, são consequências das modificações humanas. O movimento
ecofeministas pretende promover a conexão dos humanos com a natureza, uma reconexão, especialmente por
meio das mulheres, de modo que haja a conservação da biodiversidade, e não sua destruição (FARIA, 2013).
Diante de tantas revoltas e dominações patriarcais, surge a necessidade urgente de criar uma relação forte
entre a luta das mulheres por seus direitos e a luta pela proteção da natureza. O ecofeminismo tem como
pressuposto a conexão entre o movimento feminista e a conservação do meio ambiente, na intenção de demonstrar
propostas para o desenvolvimento de uma sociedade que respeite mais a natureza, assim como as relações
humanas se aproximem do realidade, e não do idealismo (FLORES; TREVIZAN, 2015).
Ao longo dos milênios, a história das mulheres tem ficado velada, tem sido mantida à margem da
sociedade, das práticas, das lutas, das leis. Especialmente nos últimos tempos, depois dos denominados
Movimentos Feministas, a história das mulheres está sendo recuperada, conquistando espaços sobretudo em
estudos científicos, utilizados como aporte, na intenção de reconstruir as histórias das mulheres, inseridas em
diversas áreas do conhecimento. Nesses estudos, faz-se necessário destacar a relação das mulheres com a
natureza, considerada espaço de vivência humana e continuidade da vida, assim como para justificar a opressão
das mulheres (ANGELIN, 2017). Dessa forma, este estudo apresenta como objetivo o entendimento das
definições de ecofeminismo, buscando apresentar aplicações e ramificações práticas do mesmo na realidade
brasileira.

Metodologia
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 132

O presente estudo apresenta como característica a classificação de pesquisa qualitativa, adotando-se como método
a revisão bibliográfica de literatura, como procedimento para organização dos dados, segundo os autores
pesquisados e temáticas abordadas. Essa organização foi efetivada com a intenção de obter estudos, detectando
análises pertinentes aos objetivos deste estudo, realizando a observação criteriosa das publicações do assunto,
baseando-se na metodologia proposta em Strauss e Corbin (2008). Ainda utilisou-se o método hipotético-
dedutivo, proposto por Lakatos e Marconi (2003), a fim de fazer conjecturas e estimar correlações sobre os temas,
e a análise de conteúdo (BARDIN, 2011), como auxílio na organização dos procedimentos.

Feminismo e movimentos feministas


A relação entre gêneros é uma questão que não pode ser simplificada, ou reduzida a simples paradigmas.
E tão pouco pode ser mantida a ideia de que há uma hierarquização entre homens e mulheres. De acordo com
Vigil (2011), certas questões da vida não complexas, ambíguas e não vêm acompanhadas de manuais de instrução,
as explicando de forma absoluta. Da mesma forma, tal fato acontece com as relações de gênero, nas quais não se
pode apegar a paradigmas reducionistas. Alguns utilizam a ideia de que o mental sempre foi considerado superior
ao físico, “justificando” a subordinação das mulheres, as quais, nesse contexto, representariam o corpo, numa
subordinação perpetrada por intermédio da linguagem. Porém, as ciências humanas não podem estar impregnadas
de objetividade, de racionalismo.
As perspectivas de Flores e Trevizan (2015), indicam que o patriarcado demonstra sua expressão com a
lógica que pode ser comparada ao da agroindústria, por exemplo, a qual exerce seu poder machista, totalitarista
e opressor das formas pelas quais a vida se fundamenta, pelo feminino e pela natureza, símbolos da fecundidade
e dos seres vivos. Assim a luta das feministas pelas mulheres oprimidas, devido a questões de gênero, associa-se
de forma profunda com o movimento social da libertação da mulher e da natureza, as quais estão sendo e sempre
foram exploradas.
Mesmo que existam argumentos jurídicos e discursivos que elevam a igualdade, pode-se verificar que, ao
longo da história, construiu-se um sistema patriarcal, o qual fundou a convicção ferrenha de que a figura
masculina, do homem viril, macho, teria a legitimidade de representar a raça humana, socialmente falando, e até
juridicamente, como aconteceu e acontece em casamentos, setores públicos e cargos de importância. Nessa
corrente, o homem detém a exclusividade da denominação de ser humano, possuindo direitos políticos,
subjugando e excluindo dessas questões outros grupos, como as mulheres, crianças, e etnias minoritárias,
consideradas assim inferiores, sem legitimidade para acesso aos direitos, mesmo que estejam previstos em
legislação (CARMO et al., 2016)
A autora Vigil (2011), apresenta uma crítica à visão reducionista e dualista: mulheres não podem ser
reduzidas à utilização de seus corpos para a reprodução de espécies. Esse dualismo pode ser definido como o da
mente e o corpo, ou seja, os que fazem a evolução da civilização e aqueles que fornecem a reprodução social e
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 133

melhoria das espécies. Este trabalho reprodutivo de cuidado quase sempre ocorre dentro dos lares, onde, ainda
atualmente, falta remuneração econômica para as atividades domésticas, e reconhecimento por elas. O mundo em
que as atividades são remuneradas ficou restrito aos homens, enquanto mulheres não são consideradas parte da
esfera econômica, realizando atividades meramente reprodutivas. As concepções sobre poder sempre aparecem
na perspectiva de dominação, sustentada por justificativas que apenas favorecem a superioridade masculina sobre
as mulheres.
O empoderamento feminino configura-se como temática central ao se destacar a intenção de curar mazelas
criadas pelas dissimetrias de gênero. Neste quadro, por meio de processos educacionais, criando possibilidades
para as mulheres adquirirem conhecimento sobre seus direitos, valorizando-as diante da sociedade, ocorrendo um
incremento de poder social conferido a elas, possibilitando a percepção de sua própria capacidade de conquistar
todos os espaços que fazem parte da sua vida, obtendo o progresso por intermédio de suas próprias decisões. Ao
chegar a esse estágio, a mulher terá o poder de liberta-se de da subjugação ao poder androcêntrico, diante de
situações de violência doméstica ou de impedimento do acesso a direitos fundamentais (CARMO et al., 2016).

Definições de ecofeminismo e a diversidade de abordagens


A crise ecológica do sistema econômico vigente na atualidade vincula-se diretamente ao agravamento da
opressão às mulheres. Sendo a crise ecológica ocupada, em sua linha de frente, por mulheres, as quais constituem
80% das pessoas refugiadas em razão das mudanças climáticas. No sul do globo, as mulheres constituem a grande
maioria da força de trabalho rural, carregando a responsabilidade pela reprodução social, lidando com secas,
poluição e superexploração da terra. As mulheres também estão na linha de frente do combate às catástrofes
ecológicas crescentes. Em todos esses casos e em muitos outros, as mulheres desenvolvem formas integradas de
luta, desafiando a tendência do ambientalismo convencional, se recusando a separar problemas ecológicos
daqueles relativos à reprodução social. A libertação das mulheres desenvolve-se em conjunto com a preservação
da biodiversidade do nosso planeta (ARRUZZA; BHATTACHARYA; FRASER, 2019)
As primeiras manifestações sobre os movimentos feministas em defesa do meio ambiente sugiram por
volta da década de 70, pela autora Françoise d’Eaubonne, a qual teria utilizado o termo ecofeminismo pela
primeira vez. Este movimento estava voltado aos estudos das relações existentes entre a ciência, a mulher e a
natureza (BIANCHI, 2012). O ecofeminismo defende a premissa de que a natureza foi subjugada pelo homem,
assim como foram as mulheres (FARIA, 2013; CARMO et al., 2016).
E, por terem as mulheres uma maior conexão com a natureza, possuem lugar de fala diferenciado, e assim
podem desenvolver soluções que tenham como objetivo a solução para a crise ambiental, a qual decorre de muitos
anos de exploração desregulada do meio ambiente. Na atualidade, o ecofeminismo tornou-se muito complexo,
desenvolvendo autocríticas e subdivisões dentro do movimento, formando uma colcha de retalhos, unida pelos
fios teóricos das diversas correntes, como a liberal, a marxista, socialista, cultural ou social. Em meados dos anos
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 134

80, começou a existir uma crítica ao ecofeminismo, questionando se o mesmo estaria desenvolvendo um
estereótipo de mulher branca, de classe média. A partir disso, surgiram correntes que envolvem racismo, questões
de gênero, colonialismo, dentre outras (FARIA, 2013).
A definição conceitual de sustentabilidade pode ser considerada limitada, pois visualiza a reprodução ao
longo do passar do tempo. Essa visão aplica-se, por exemplo, na utilização dos recursos naturais, porém, não tem
consonância com a presença humana. Não se pode limitar a sustentabilidade apenas à reprodução dos elementos
vegetais dos ecossistemas, por exemplo, mesmo eles sendo a base da cadeia alimentar, pois ainda há de se
considerar a qualidade de vida humana, e suas expectativas em relação ao futuro (FLORES; TREVIZAN, 2015).
Na intenção de relacionar o ecofeminismo com o cultivar, com o fazer nascer vida, a autora Faria (2013), aponta
que as distinções entre cultivo e produção são úteis, a fim de explicar melhor nossas relações como mundo, e,
especialmente, as diferenças que existem entre a relação do homem e da mulher com o meio natural que os
circunda. Essa ideia relaciona-se com o ecofeminismo, destacando tais diferenças. A autora propõe que o cultivar,
mesmo sendo essencial, não é valorizado pela sociedade da maneira devida, e muitas vezes passa desapercebido,
sendo negado acesso institucional aos cultivadores e cultivadoras nos processos de tomada de decisão, mesmo
que sejam os mais afetados por impactos ambientais.
Segundo Warren (2003, p. 12, tradução nossa), a “Filosofia ecofeminista é o nome dado à diversidade de
estudos filosóficos que examinam as diferentes conexões entre o feminismo e o meio ambiente.”. Conforme Vigil
(2011), existem pontos de vista, levantados pelo ecofeminismo, os quais poderiam fornecer soluções no
enfrentamento de desigualdades geradas pelo paternalismo, que levam ao desconhecimento sobre as mulheres, e
sobre o meio ambiente. A relação entre o meio ambiente e o feminismo, por mais que possa parecer, para muitos,
uma mera conexão justificadora da luta contra a dominação e a subordinação, apresenta diversas abordagens, as
quais foram tratadas ao longo dos anos, documentadas, passando por histórica, política, pontos de vista éticos,
conceituais, somente citando algumas delas. Conclui-se, pela visão defendida pela autora, que o ecofeminismo
não se apresenta apenas como uma desculpa, um motivo inventado ou algo do tipo, é uma luta justa, conceituada
e justificada.
De acordo com Vigil (2011, p. 536, tradução nossa), “A tarefa do ecofeminismo consiste, neste caso, em
quebrar aquelas noções preconcebidas que nos são dadas desde o nascimento”. A caça, a agricultura, e outras
atividades antes consideradas de subsistência tornaram-se atividades voltadas para interesses econômicos e de
lucro, reduzindo até as a pessoas a mercadorias, ou peças chave na produção do lucro. As mulheres, dessa forma,
foram reduzidas a produtoras de lucro, ou "relegadas à figura de escravas como meras reprodutoras e doadoras
de prazer." (VIGIL, 2011, p. 536, tradução nossa). Essa visão também é representada pela autora Benavides
(2017), quando informa que “A sexualidade, destituída do jogo com o sagrado que conecta o erotismo com a
divindade, é reduzida à procriação, uma norma heterossexual, que objetifica as mulheres com fertilidade”
(BENAVIDES, 2017, p. 55, tradução nossa). Na natureza, não existe direito ou poder inato, assim como, se for
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 135

bem analisado, não existe lógica no poder de dominação governante no mundo humano. A ligação entre ética
ambiental e o feminismo tornou-se estabelecida pois a coletividade feminina é tradicionalmente responsável pelo
cuidado, assim como já foi comprovado que exercem atividades geradoras de renda de forma mais sustentável
(VIGIL, 2011).
Aqui cabe as ideias de Vandana Shiva, que defende o respeito aos ciclos da natureza, permitindo a
recuperação da terra, sem exigir demais, típica dos ideais ecofeministas. Se a terra for visualizada somente como
matéria-prima, recurso, o princípio feminino de respeito à vida morre. A feminização da natureza e a
naturalização da mulher são duas metáforas que depois da revolução científica prejudicaram tanto uma como a
outra, pois a natureza se tornou aquele ser vulnerável que pode ser abusado. As mulheres começaram a sofrer
sobre a mecanização do orgânico quando o homem se tornou dono da técnica. O ecofeminismo aparece como
tendência adequada, a fim de evidenciar os vazios que existem nos conceitos de feminismo e de ambientalismo.
O ecofeminismo representa uma luta dupla, de igualdade e proteção para o mundo natural (VIGIL, 2011).
Segundo Benavides (2017), pode-se questionar se os processos construtivos, de transformação, mutação
de subjetividades, e sujeitos, encontrarão na espiritualidade, no sagrado, os princípios de vida necessários,
permitindo um padrão civilizatório, comum, com a intenção de gerar rupturas com o padrão vigente, colonial.
Porém, não é uma resposta fácil de se obter, pois ela se encontra em processos, em realidades, práticas,
mobilizações e possibilidade de articulações entre movimentos, sendo que grupos organizados, compostos por
homens e mulheres, comprometidos com a mudança de territórios, e não em publicações reducionistas técnicas.
De acordo com Capra (2004), o patriarcado, o capitalismo, o imperialismo e o racismo, podem ser citados
como exemplos de exploração dominadora e não condizente com princípios ecológicos. A ecologia social ocupa-
se, por meio de seu arcabouço conceitual, marxista e anarquista, analisar as formas e padrões de diferentes
dominações sociais. O ecofeminismo pode ser definido como uma escola especial, dentro do contexto da ecologia
social, abordando a dominação social por meio do patriarcado. Porém, a análise cultural, realizada pelo
ecofeminismo, das muitas faces do patriarcado ultrapassa o arcabouço da ecologia social. Ainda, pode-se apontar
o comentário de Capra: as ecofeministas

vêem a dominação patriarcal de mulheres por homens como o protótipo de todas as


formas de dominação e exploração: hierárquica, militarista, capitalista e
industrialista. [...] mostram que a exploração da natureza, em particular, tem
marchado de mãos dadas com a das mulheres, que têm sido identificadas com a
natureza através dos séculos (CAPRA, 2004, p. 18).

Segundo Benavides (2017), o saber tradicional encontra-se em dualismo com saberes mecanicistas, e esse
conflito configura uma das bases do ecofeminismo, que luta contra o mecanismo patriarcal dos saberes. As bases
teóricas do ecofeminismo são muitas, complexas, militantes e diversas. Uma das definições propostas pela autora,
como um dos aspectos do ecofeminismo, tem-se a recuperação do sagrado, como princípio ético norteador de
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 136

vida, dialogando com diferenças e desigualdades, projetando no eixo ambiental a ligação entre lutas
aparentemente díspares. Dessa forma, torna-se necessário reconhecer processos históricos de negociação e de
luta por sentidos da existência, nos quais as mulheres, em conjunto com naturezas, tornam-se plurais, mas também
desiguais, à medida em que adquirem um lugar dentro da dinâmica capitalista, na configuração do sistema
moderno global.
Em estudos dedicados ao ecofeminismo, existem algumas tendências. A autora Angelin (2017), aponta
três delas, a clássica, a espiritualista e a construtivista. Pode-se definir a corrente clássica como aquela que
visualiza o homem como um ser dotado inerentemente de predisposições para competição e destruição, sendo
que tal obsessão o transporta para guerras, à destruição e contaminação do planeta, ao passo que o feminino e sua
ética se opõem a essa agressão, almejando igualdade, paz e proteção da natureza. A tendência espiritualista
apresenta como argumento que o desenvolvimento econômico gera violências de diversas formas, contra a mulher
e contra o meio ambiente, e propõe a luta contra as formas de dominação patriarcal, o racismo, o sexismo, o
elitismo e, ainda, o antropocentrismo, apontando a mulher como centro da proteção à natureza. A corrente
construtivista, aponta na direção de ideais também contra o racismo e o antropocentrismo, porém, atribuindo a
relação próxima da mulher e da natureza, como fruto da divisão social do trabalho.
De acordo com Faria (2013), pode-se realizar a distinção entre feminismo cultural e ecofeminismo da
seguinte forma: a ideia de que as mulheres teriam uma proximidade maior com a natureza se comparadas aos
homens, de alguma maneira natural, biológica, pré-designada ou pré-concebida socialmente, a qual é defendida
pelo feminismo cultural, é rejeitada pelo ecofeminismo. As ecofeministas identificam fundamentalmente o
pensamento que origina a identidade de opressão das mulheres e da natureza, como a noção dualista de hierarquia,
entre homem e natureza, homem e mulher, razão e emoção, corpo e mente, cuja divulgação se deu pela filosofia
clássica, servido de base ao conservadorismo e mecanicismo histórico. Assim, pode-se definir o ecofeminismo
como a ideia de que “as mulheres compartilham com a natureza uma experiência de opressão, e que possuem
experiências diferentes dos homens que as tornam capazes de falar de uma nova visão acerca da natureza.”
(FARIA, 2013, p. 125).
Pode-se observar que a abordagem clássica e a abordagem construtivista defendem a relação entre o
feminino, as mulheres, a feminilidade e a natureza, declarando-a como muito mais intensa do que a relação dos
homens com o meio natural. Destaca-se que as abordagens clássica, espiritualista e construtivista tem diferenças
em como expõem essa relação com a natureza. Na clássica, o masculino é apresentado como agressivo e
destrutivo, na espiritualista, explica-se a diferença pelo desenvolvimento econômico selvagem, sem considerar a
regeneração da natureza em seu ritmo e, por fim, a corrente construtivista, baseada em motivos culturais, da
estrutura social determinada por desigualdades de gênero. Mesmo que a espiritualista e a construtivista neguem
a correlação natural entre gênero e meio ambiente, como na clássica, todas as abordagens possuem um ponto de
concordância: o ecofeminismo se relaciona fortemente com a proteção ambiental (FLORES; TREVIZAN, 2015).
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 137

Em relação às correntes ou abordagens do ecofeminismo, a espiritualista pode ser representada por


Vandana Shiva, sendo que a autora também defende que o ecofeminismo rompe com essa corrente mecanicista,
racionalista, masculina, dominadora da natureza. O movimento propõe a agricultura orgânica, desenvolvida para
consumo próprio, ou distribuição às comunidades locais, utilizando conhecimentos tradicionais, atingindo assim
os fins de proteção da biodiversidade, garantindo a perpetuação do patrimônio genético, transferindo às mulheres
o poder de decisão sobre a produção de cereais (FARIA, 2013). Ainda, de acordo com Carmo et al. (2016),
existem seis vertentes do ecofeminismo, a essencialista, pós-colonial, construtiva, latino-americana e filosófica.
Como síntese, as lutas ecofeministas enfrentam as concepções socialmente formuladas pelo
androcentrismo, agregando esforços no sentido de quebrar paradigmas na construção da imagem da relação entre
mulheres e natureza. Dessa forma, promove a transformação de ideais patriarcais e tradicionalistas presentes na
sociedade, os quais impedem a sustentabilidade, prejudicando a conservação da vida a longo prazo, criando uma
sociedade desigual, exploradora e pobre. Logo, é imprescindível que as mulheres conheçam seus direitos,
trabalhistas, civis, econômicos, empresariais e sociais, os quais são fundamentais aos seres humanos, sem
nenhuma distinção (CARMO et al., 2016).

Estudos de caso: ecofeminismo na prática


O estudo desenvolvido por Flores e Trevizan (2015), propõe identificar, no contexto do movimento das
ecovilas, em que medida os pressupostos e práticas feministas fazem-se presentes nessas comunidades, assim
como medir o quanto tais princípios relacionam-se com práticas ambientais sustentáveis. As autoras utilizaram
indicadores representativos do ecofeminismo e de sustentabilidade ambiental, delineando-os de forma a descobrir
a interação entre os mesmos, em dimensões sociais, econômicas e ambientais, assim como valores do
ecofeminismo. Destes últimos, podem ser citados a inclusão social, a organização não hierarquizada, a presença
ou não de práticas de discriminação, seja por cor, classe social, gênero ou religião, igualdade de oportunidade e
de acesso a bens e serviços, assim como a divisão de trabalho com igualdade de gênero, a existência de atitudes
conservacionistas, de forma a não prejudicar os processos regenerativos naturais dos ecossistemas.
Dessa forma, o estudo das autoras verificou que na ecovila o envolvimento das mulheres nas diversas
atividades ambientais, assim como em atividades administrativas, se desenvolve com predominância do sexo
feminino em funções de gerência, administração financeira, coordenação e outros. Outros setores, como cozinha,
carpintaria, jardinagem, motoristas, serviços relacionados à educação e saúde, possuem equilíbrio na escolha
entre homens e mulheres. No setor de produção agrícola e de construção, a predominância é masculina. Nas artes,
somente mulheres estavam envolvidas em práticas como dança, teatro, pintura, artesanato e outras (FLORES;
TREVIZAN, 2015).
Outra conclusão obtida foi em relação ao sentido atribuído pelos moradores da ecovila à presença do
ecofeminismo na comunidade, principalmente em sua organização social, definindo assim um ecofeminismo na
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 138

prática. Indicou-se os papéis sociais não rígidos, igualdade de direitos, valorização das parcerias e cooperação,
diversidade e flexibilização das decisões, os adultos responsáveis por todas as crianças, a valorização da beleza,
da arte e incentivo à criatividade. Os moradores da ecovila declararam que entendem o ecofeminismo como
interconectado com a produção da vida, ao equilíbrio e ao respeito à natureza, também que está relacionado com
a valorização da mulher no contexto da comunidade, assim como a promoção dos direitos humanos. Outras
percepções dizem respeito à associação do ecofeminismo ao cuidado, à sensibilidade e à cooperação,
visualizando-o como novo modelo de civilização (FLORES; TREVIZAN, 2015).
A comunidade da ecovila apresenta características matriarcais, na qual as mulheres tem poderes de
decisão, poderes sobre a espiritualidade, controlando forças de produção, e os homens trabalham no sentido de
manter essa estrutura. Da mesma forma, os papéis sociais também são determinados pelos princípios do
ecofeminismo, assim como o cuidado na relação com o ambiente e seus componentes naturais. Mesmo com
muitas características positivas, desafios ainda persistem, como alguns desequilíbrios na distribuição do poder
entre homens e mulheres, estrutura hierarquizada da comunidade e outros. As conclusões gerais do estudo
mostram que as ações ecofeministas tomadas na vila podem ser consideradas de baixo impacto ao meio ambiente
(FLORES; TREVIZAN, 2015).
Outro estudo, realizado por Carmo et al. (2016), aborda, sob perspectivas ecofeministas, as relações que
existem entre mulheres e natureza na Reserva Extrativista Marinha (Resex) de Canavieiras, a qual situa-se na
Bahia. A pesquisa foi feita com base em projetos sociais, como o Projeto Capacitação e Fortalecimento da Rede
de Mulheres de Comunidades Extrativistas do Sul da Bahia, realizado com o financiamento do programa ONU
Mulheres, dentre outros. Apresenta-se como conclusão do estudo o fato de que os conhecimentos envolvidos nas
práticas de economia alternativa e solidária, contribuem de forma positiva para a construção de novos modelos
de desenvolvimento sustentável regional e humano. Em comunidades nas quais existem empreendimento
solidários, a pesquisa chegou à conclusão de que este seja considerado um alicerce social, promovendo sua
exteriorização econômica, com a finalidade de progresso no entorno. Representando valores de associativismo e
cooperativismo, as pessoas que formam esse coletivo demonstram força ao exercer suas atividades econômicas,
de forma unitária, alcançando os objetivos comuns.
Existe na Resex de Canavieiras a divisão social do trabalho em que os homens saem para pesca fora do
território, e as mulheres coletam mariscos “em casa”. Essa questão leva a interpretação de que os homens exercem
um trabalho mais elevado, mesmo que seja considerado o trabalho das mulheres no processo produtivo como um
todo. Essa desigualdade verificada no local é ampliada pelo fato de que, culturalmente, o serviço executado pelas
mulheres é destinado ao consumo doméstico, e não à venda e remuneração das famílias. Assim, torna-se
impossível as mulheres mudarem seu espaço, e tornarem-se pessoas com poder público de decisão (CARMO et
al., 2016).
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 139

Porém, há uma inovação nesse contexto, desenvolvida pela criação da Rede de Mulheres Pescadoras e
Marisqueiras de Comunidades Extrativistas do Sul da Bahia. Este coletivo, essa organização, conta com duas mil
mulheres, as quais contam com remuneração pela pesca e mariscagem que executam. Esse grupo tem como uma
das principais metas, no contexto de sua instauração na Resex de Canavieiras, a intenção de efetivar e reconhecer
os conhecimentos que dizem respeito especificamente ao público feminino, assim como a luta e união das
mulheres, com a intenção de transformar sua qualidade de vida, por meio de cursos, fóruns, seminários e outros
momentos de educação ambiental e empoderamento feminino, acumulando capital social entre mulheres da
Resex. (CARMO et al., 2016).
O surgimento desse espaço coloca as mulheres extrativistas e pescadoras no papel de protagonistas do
processo produtivo. Ao delinear esse tipo de pensamento na Resex de Canavieiras, as mulheres se
conscientizaram a respeito da multiplicidade de papéis que exercem nos aspectos sociais e ambientais da unidade
de conservação em estudo, ramificando-se, inclusive, para o contexto político e econômico, nos quais antes era
impossível adentrar. O projeto Rede de Mulheres permitiu o combate à violência doméstica que existia em seu
território, forneceu a percepção de que o valor da equidade deve ser cultivado, a fim de que se realize a gestão
sustentável, assim como o empoderamento feminino. Em relação a este último fato, destaca-se a importância de
oferecer às pescadoras o entendimento sobre as próprias capacidades, incentivando-as a transcender questões
vistas como problemáticas individuas e sociais. As mulheres da Resex livraram-se de estereótipos e estigmas
impostos em sua comunidade, reunindo um quantitativo significante de mulheres, com a finalidade de construção
de novas realidades e novas identidades (CARMO et al., 2016).

Considerações finais
Pode-se ter a visão equivocada de que as mulheres se tornam parte da sustentabilidade do ambiente por
serem dotadas do poder de reprodução, mas, assim, adotar-se-ia uma visão simplificada demais das relações entre
a espécie humana e a natureza. O ecofeminismo vem demonstrar que não, essa visão não é simples, nem tão fácil
de ser explicada.
Observou-se, pelos trabalhos e definições apresentadas, que as características, valores e princípios
defendidos pelo ecofeminismo podem se tornar formas de fortalecer a sustentabilidade ambiental nas relações
humanas, aplicando aspectos positivos e negativos de experiências demonstradas neste estudo a outras
comunidades brasileiras, assim como na gestão ambiental pública no geral. Ainda, utilizando-se a união das
mulheres, associadas com práticas econômicas alternativas e aliadas a educação ambiental, o ecofeminismo
empodera e cria condições para o desenvolvimento econômico, social e ambiental das mulheres.

REFERÊNCIAS
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 140

ANGELIN, R. Mulheres e ecofeminismo: Uma abordagem voltada ao desenvolvimento sustentável. Universidad


en Diálogo: Revista de Extensión, v. 7, n. 1, p. 51-68, 30 jun. 2017.
ARRUZZA, Cinzia; BHATTACHARYA, Tithi; FRASER, Nancy. Feminismo para os 99%: um manifesto.
Boitempo Editorial, 2019.
BARDIN, Lawrence. Análise de conteúdo. SP: Edições 70, 2011.
BENAVIDES, Lucy Santacruz. Ecofeminismo, espiritualidad y subjetividad. La Manzana de la discordia, v.
12, n. 2, p. 49-60, 2017.
BIANCHI, Bruna. “Introduzione – Ecofemminismo: il pensiero, I debattiti, le prospettive”. Revista Deportate,
Esuli, Profughe (DEP), n. 20, v. I-XXVI, jul. 2012.
CAPRA, Fritjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix. 2004.
CARMO, Jhader Cerqueira do et al. Voz da natureza e da mulher na Resex de Canavieiras-Bahia-Brasil:
sustentabilidade ambiental e de gênero na perspectiva do ecofeminismo. Revista Estudos Feministas, v. 24, n.
1, p. 155-180, 2016.
FARIA, Daniela Lopes. A natureza e o feminino a partir de Merleau-Ponty: uma leitura ecofeminista. Revista
Opinião Filosófica, v. 4, n. 1, 2013.
FLORES, Bárbara Nascimento; TREVIZAN, Salvador Dal Pozzo. Ecofeminismo e comunidade sustentável.
Revista Estudos Feministas, v. 23, n. 1, p. 11-34, 2015.
LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia do trabalho científico. 5ª ed. São Paulo:
Atlas, 2003.
STRAUSS, Anselm; CORBIN, Juliet. Pesquisa qualitativa: técnicas e procedimentos para o desenvolvimento
da teoria fundamentada. Porto Alegre: Artmed, 2008.
VIGIL, María Tardón. Ecofeminismo. Una reivindicación de la mujer y la naturaleza. El Futuro del Pasado, v.
2, p. 533-542, 2011.
WARREN, Karen J. (Ed.). Filosofías ecofeministas. Icaria Editorial, 2003.

Biografia da autora

Mestranda em Sustentabilidade Socioeconômica Ambiental, pela Universidade Federal de Ouro Preto. Possui
graduação em Administração (2014) Pós-Graduação Lato Sensu em Planejamento e Gestão de Áreas Naturais
Protegidas (2016) pelo Instituto Federal do Sudeste de Minas Gerais. Tem estudos desenvolvidos na área de
Administração, com ênfase em Gestão Financeira de Áreas Protegidas. Atualmente, desenvolve pesquisa de
valoração ambiental em unidades de conservação. Ainda, possui trabalhos relativos à ética ambiental,
biocentrismo e conservação da biodiversidade.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 141

CAPÍTULO 14
MULHERES NA VIVÊNCIA DO CANGAÇO BRASILEIRO :
marcas, lutas e resistências da figura feminina
MANOELA BEZERRA DA SILVA

INTRODUÇÃO
"Ela foi educada pra cuidar e servir, de costume, esquecia-se dela sempre a última a
sair, disfarça e segue em frente, todo dia, até cansar. E eis que, de repente ela resolve
então mudar, vira a mesa, assume o jogo, faz questão de se cuidar, nem serva, nem
objeto, já não quer ser o outro, hoje ela é um também." (PITTY).

O percurso histórico em torno da figura feminina vem marcado por vários impasses, a resistência pela não
aceitação delas na sociedade é bastante pontual, pois até os dias atuais a presença das mulheres em determinados
espaços é ainda algo permeado por inquietações. Dessa forma, a inserção da figura feminina no movimento do
cangaço brasileiro, foi algo bastante petulante, pelo movimento ter sido iniciado e comandado somente pelo
gênero masculino. Embora os papéis no movimento fossem demarcados de formas diferentes entre homens e
mulheres, sendo elas muitas vezes atuando por meio da subordinação, a inserção e a participação, mesmo assim
foi capaz de quebrar paradigmas, transgredir normas e provocar mudanças (FREITAS,2005).
Dessa forma, o presente estudo busca retratar a participação da figura feminina no movimento do
cangaceiro, ou seja, a presença das mulheres cangaceiras como eram nomeadas, no período do cangaço na região
Nordeste do país. Se inclina a discutir a Representação Social das mulheres atuantes do cangaço no Brasil e os
mecanismos atrelados a figura feminina nesse contexto. Se volta, portanto, a compreender qual era o imaginário
e quais eram os fatores em torno da gênero feminino nesta época. Busca-se repensar o lugar e as atribuições da
mulher na sociedade, pois o percurso histórico diante deste gênero é permeado por inúmeros impasses, por
mecanismos repressivos, por constantes resistências e constantes lutas.
Assim, o intuito é possibilitar reflexões e sentidos em torno da figura feminina, levando em consideração
o movimento do cangaço no Nordeste do país, além dos fatores e dos mecanismos que esse período histórico
formou, compreendendo também os imaginários construído diante da mulher na sociedade até os dias atuais.
Assim, este estudo poderá trazer a possibilidade de ampliação dos olhares, do conhecimento histórico acerca das
mulheres, trazendo a possibilidade de ressignificação de práticas sociais e uma nova roupagem para diálogos em
torno desta temática. Portanto, cabe destacar que, este estudo não se limita e não se restringe somente ao
movimento acadêmico, e/ou a área da Psicologia, mas se lança a áreas afins, sobretudo, a sociedade de modo
geral, pois se trata de um estudo que diretamente está lançado diante dos fatores/fatos que são de caráter
tipicamente social.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 142

Dessa forma, a Representação Social em torno do gênero feminino, é ainda atrelada a um caráter
fortemente negativo, portanto, vem sendo reconstruída e ressignificada ao longo do tempo a passos lentos, logo,
se faz necessário refletir sobre os estereótipos e os modelos criados ao decorrer do percurso histórico deste gênero
social. Portanto, o objetivo deste estudo é discutir a Representação Social das mulheres atuantes no cangaço no
Brasil e os mecanismos atrelados ao feminino nesse contexto, busca-se compreender qual era o imaginário diante
da figura feminina nesta época.
Tendo como objetivos específicos: discutir sobre a ideia da mulher no movimento do cangaço; analisar e
refletir sobre o imaginário social construído em torno do gênero feminino. Assim, o trajeto metodológico para
este estudo, se deu através de uma revisão bibliográfica, aquela na qual tem origem a partir de fontes secundárias,
são obras, estudos, que já foram publicadas por algum meio, sejam em revistas, teses, dissertações, etc.
(MARCONI; LAKATOS, 2003).
Segundo Ferreira (2010, p. 134) “cangaceiro (cangaço) é conceituado como bandido que agia no interior
nordestino, e que andava sempre fortemente armado; cabra.” Assim, tal definição aborda o movimento do
cangaço como algo já relacionado ao masculino, na medida em que conceitua apenas o cangaceiro, e destaca o
mesmo a algumas palavras que tem conotação masculina, ou seja, até a palavra “cabra” que fora mencionada,
embora não tenha significação do masculino, é fortemente associada ao masculino, ou seja, por exemplo, “cabra
macho”, expressão comumente utilizada na região Nordeste do país.
Portanto, a própria definição que remete ao movimento cangaceiro, é na maioria das vezes expresso pela
figura masculina, como pôde ser percebido na definição de Ferreira (2010, p. 164), citado anteriormente, não há
conceituação do movimento do cangaço com o termo feminino, melhor dizendo, a definição de cangaceira, não
se encontra a partir deste autor. A questão é, por qual razão? já que se trata do Dicionário da Língua Portuguesa.
Seria uma característica de invisibilidade do que foram as mulheres cangaceiras? Como aponta Lima (2016).

DESENVOLVIMENTO
A própria história das mulheres no Brasil, sobretudo no Nordeste do país está pautada por imaginários em
que já as colocavam em determinados lugares, estabeleciam espaços e atribuições desde o seu nascimento, a partir
do momento que vinham ao mundo e eram reconhecidas como uma figura do sexo feminino. Eram nomeadas e
categorizadas como “mininu fêmea”, independentemente da posição social em que estavam inseridas, ou seja,
todas as mulheres sem exceção, já tinham sua vida pré-estabelecida. Como destaca, Falei (2007, p. 139):

[...] mulheres ricas, mulheres pobres; cultas ou analfabetas; mulheres livres ou


escravas do sertão. Não importa a categoria social: o feminino ultrapassa a barreira
das classes. Ao nascerem, são chamadas “mininu fêmea”. A elas certos
comportamentos, posturas, atitudes e até pensamentos foram impostos [...]. (2007,
p. 139)
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 143

Dessa forma, numa região formada pelo patriarcalismo, por uma hierarquia rígida e cheia de paradigmas,
(FALEI, 2007). Essa condição regional acaba trazendo determinados conflitos que repercutem nos modos
existenciais e no imaginário, tanto das mulheres quanto dos homens, acarretando em posições de instabilidades
no que diz respeito a estrutura social, contribuindo significativamente para o surgimento e a perpetuação de
modelos/padrões sociais, dando abertura para a separação entre as práticas masculinas e femininas, e criação de
imaginários sociais. Dessa maneira, a entrada das mulheres no cangaço acaba rompendo de certa forma,
determinados conceitos e modelos sociais, na medida em que começam a adentrar no espaço dominado e cerceado
pela figura masculina (SANTOS, 2005).
Portanto, um dos fatores fortemente relevante se refere a uma das mulheres mais conhecidas na história
do cangaço, Maria Gomes de Oliveira, conhecida por Maria Bonita, foi esposa do cangaceiro Virgulino Ferreira,
o Lampião, líder do movimento, a chegada dela trouxe muitas mudanças, tanto nas relações, nos costumes, quanto
nos sentimentos dos cangaceiros, e deu abertura para o ingresso de outras mulheres, que também ficaram
conhecidas por sua atuação nos bandos (SANTOS, 2005). Assim, de acordo com (MACIEL, 1987, p. 63, apud
SANTOS, 2005, p. 13), menciona que:

[...] A influência de Maria Bonita sobre Lampião, e consequentemente no cangaço,


foi relevante, modificando certas relações da vida cangaceiresca, alterando costumes
de linguagem solta e humanando mais a rudeza de aspecto e dos sentimentos
daqueles guerrilheiros das caatingas. Sua presença feminina tornou-se espécie de
carta de abecê assoletrada pelo cangaceiro para as normas de sua comportação. [...]
(MACIEL, 1987, p. 63).

Dessa maneira, o ingresso da figura feminina no movimento cangaceiro, esteve intimamente relacionado
a questões sociais da época, e pode-se dizer as questões de gênero, pois as mulheres, sobretudo, a das classes
mais baixas não tinham função fora das atividades domésticas, desde cedo eram preparadas para atuar na
construção e manutenção da família, algumas delas para manterem o seu sustento, tinham atividades como
costureiras, roceiras, lavadeiras, etc., sobretudo, mantendo e sendo de algum modo, naturalizada ao âmbito e
afazeres domésticos (SANTOS, 2005). A este respeito, Falei (2007, p. 143) ressalta:

[...] as mulheres de classes mais abastada não tinham muitas atividades fora do lar.
Eram treinadas para desempenhar o papel de mãe e as chamadas “prendas domésticas”
– orientar os filhos, fazer ou mandar, fazer a cozinha, costurar e bordar. Outras, menos
afortunadas, viúvas, ou de uma elite empobrecida, faziam doces por encomenda,
arranjos de flores, bordados a crivo, davam aulas de piano e solfejo, e assim puderam
ajudar no sustento e na educação da numerosa prole. Entretanto, essas atividades, além
de não serem muito valorizada, não eram muito bem-vistas socialmente. Tornavam-
se facilmente alvo de maledicência por parte de homens e mulheres que acusavam a
incapacidade do homem da casa, ou observavam sua decadência econômica [...].
(2007, p. 143).
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 144

Portanto, o imaginário social em torno da mulher fez com que a mesma transgredisse o modelo imposto,
adentrando no cangaço como forma de buscar e criar, de certa forma, sua própria história de vida, a sua liberdade
e expressão de ser. Mesmo que, a entrada no movimento tenha ocorrido por duas maneiras, involuntária e/ou
voluntária. Involuntária, na medida em que eram obrigadas a participar dos bandos, e/ou voluntária, quando
ingressavam por escolha própria (SANTOS, 2005).
O surgimento de um novo gênero em um movimento caracterizado pela violência, em diferentes esferas,
por uma época em que as práticas sociais em torno da mulher, eram de caráter estritamente machista, as mulheres
que fugiam de tais atribuições que eram lhe dadas, eram tidas como transgressoras. Pois, a todo modo, estas
mulheres demonstravam coragem e empoderamento, seguiam lutando desde já por questões que remetiam a
igualdade de gênero, mesmo não tendo tamanha noção de tal conceito, mas a própria atuação no movimento já
era uma demonstração de militância e potência de mudanças. Eram mulheres que em sua participação quebravam
paradigmas, pois fugiam do domínio e do poder da figura masculina (muito forte da época) e rompiam a ideia de
que a mulher teria que ser unicamente do espaço interno, ou seja, do lar, donas de casa, enquanto só os homens
poderiam e deveriam ter atribuições no espaço público (FREITAS, 2005).
As diversas mulheres cangaceiras eram pertencentes ao sertão nordestino, muitas delas eram tidas como
“mulher macho”, termo vindo de uma construção puramente social (LIMA, 2016). Essa expressão é comumente
utilizada como forma de referir a mulher como uma pessoa forte, guerreira, valente, mas que está sendo sempre
comparada a figura masculina, especificamente nesta condição, conforme o exemplo dado ao decorrer diante da
expressão “cabra macho”.
Como a própria canção composta por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, exemplifica. “Paraíba
masculina, muié macho, sim sinhô”34, esta expressão é mencionada como referência ao estado da Paraíba, porém
a conotação do termo de algum modo, é atrelada ao gênero masculino, ou seja, não há a existência da mulher,
como um indivíduo valente por si só. Assim, é possível perceber o quão a mesma vem historicamente sendo
atrelada a figura masculina, para que haja a afirmação de suas características, de sua existência e capacidades
como ser humano.
Por outro lado, a mesma expressão pode ser entendida por diversas interpretações, dentre elas ao homem,
quando o mesmo é visto como “afeminado”, dando a ideia de que esta condição de ser no mundo, é característica
apenas do gênero feminino. Nesta direção, é possível perceber uma condição de estigma que, para Goffman
(1963, p. 8), nada mais é que:

[...] as atitudes que nós, normais, temos com uma pessoa com um estigma, e os atos
que empreendemos em relação a ela são bem conhecidos na medida em que são as
respostas que a ação social benevolente tenta suavizar e melhorar. Por definição, é

34 Trecho da música “Paraíba Masculina” composta em 1946.


Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 145

claro, acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano.
Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações, através das quais
efetivamente, e muitas vezes sem pensar, reduzimos suas chances de vida [...].
(GOFFMAN, 1963, p. 8).

Diante disso, a maneira das mulheres se comportarem, de se vestirem socialmente, dava (e ainda dá) forte
abertura para criação e manutenção de determinados estigmas, porém com a entrada delas no cangaço quebra-se
mais um conceito, pois o modelo social carregava (carrega) como imaginário a mulher como um ser naturalmente
passivo, com o “dom” materno, que já nascem com o “dom” de cuidar, de ser mãe, e viver no lar.
Portanto, estas são características que são capazes de exemplificar um grupo estigmatizado, na medida
em que reduz e estereotipa a partir de atributos, sejam eles físicos ou até mesmo simbólicos, que com as mulheres
não foi diferente ao decorrer da sua história, ou seja, um grupo historicamente estigmatizado, categorizado,
rotulado, reduzido e excluído por um longo período de tempo.
Em meio a tantas barreiras sociais mencionadas acima, o ingresso das mulheres no cangaço brasileiro, foi
sem dúvidas capaz de romper com alguns padrões, trazendo uma série de inquietações, de indignações,
possibilitando reflexão referente ao lugar e a imagem da mulher na sociedade, resultando em um grande avanço
diante do imaginário da época e possibilitando uma abertura maior para se falar sobre estas questões, sobretudo,
cotidianamente.
A participação das mulheres no cangaço brasileiro, possibilitou de certa forma o rompimento de vários
imaginários e paradigmas, no momento em que romperam os modelos sociais estabelecidos e adentraram em um
movimento considerado altamente masculino. Embora a participação da figura feminina no movimento, seja
compreendida por diferentes interpretações, como apenas mulheres de cangaceiros, prostitutas, etc.,
características que reforçam negativamente o imaginário social em torno do gênero feminino. As mulheres
cangaceiras foram capazes de demonstrar suas capacidades para além dos papéis pré-estabelecidos e lutar (mesmo
não sendo de forma explícita) pelo melhoramento das questões sociais, políticas e subjetivas, por meio da sua
coragem e rebeldia como foram nomeadas, fazendo com que a sua participação não só transgredisse as normas e
os modelos, mas também trouxessem a possibilidade de revolução (SANTOS, 2005).
Em uma época bastante conservadora, e se tratando até da própria região do país, onde
mantinham/mantém determinadas práticas sociais, que se aproximam e reforçam ainda o conservadorismo,
nomeadas na maioria das vezes de costumes, tradições, etc. (FERREIRA, 2012). As mulheres promoveram de
fato uma revolução, na medida em que demonstraram sua capacidade para além de sua condição de gênero,
embora muitas vezes isto tornasse um fator negativo para o movimento cangaceiro de modo geral, na medida em
que a ideia principal do cangaço, e a própria formação dos grupos fossem unicamente atrelados a figura
masculina.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 146

A respeito disso, vale pontuar tal questão por se tratar de um ponto importante na história do cangaço. A
questão do gênero era um empecilho para a participação no movimento, já que a própria imagem e a representação
criada em torno da mulher não davam abertura para a mesma participar do movimento cangaceiro, era necessário
a ousadia e a atitude da mesma, ou a participação se dava pela escolha dos homens quando raptava-a, roubava-a
de suas famílias para participarem do cangaço como esposas, ou por alguma outra atribuição, por serem mulheres,
tudo era pré-estabelecido na maioria das vezes.
Naquela época, ser mulher era, digamos, algo muito mais desafiador, pois a condição de gênero delimitava
os papéis, funcionando como um fator que as impedia de fazer escolhas, tomar decisões, etc., sobretudo, para esta
região específica do país, a mulher comandar a sua própria vida e existência, ou seja, viver da sua maneira, não
era comum e naturalmente aceitável, diferentemente dos homens que podiam ousar de sua liberdade (FERREIRA,
2012). Portanto, a questão do gênero foi algo bastante relevante na história e no próprio movimento cangaceiro.
O gênero na maioria das vezes, é pensado como uma questão natural do ser humano, porém, segundo
Louro (2000), gênero, nada mais é que uma construção/determinação social, pois o gênero feminino ou
masculino, vão sendo caracterizados conforme a cultura e os mecanismos que estão atrelados a ela. Para isso,
dois fatores contribuem tanto para a construção de gênero quanto para a construção de identidade do indivíduo,
o corpo, propriamente falando e a sexualidade. Assim, a sociedade acaba contribuindo fortemente para a
categorização do sujeito, ao classificar o feminino e o masculino, a partir de algumas características (LOURO,
2000). A exemplo disso, as cangaceiras tidas como mulheres transgressoras por justamente quebrar tal
categorização.
Desse modo, a afirmação de Simone de Beauvoir “Não se nasce mulher, torna-se mulher35” seria algo
inaceitável para estes períodos, pois a própria época (fortemente a região Nordeste, onde ocorriam o movimento),
atuavam como fortes marcadores da delimitação do feminino. Se na atual conjuntura, isto é regado de inúmeras
inquietações, naqueles períodos isto era algo muito mais forte e resistente. Contudo, o cangaço permitiu uma
desconstrução de gênero demonstrando que as capacidades do ser humano, estão para além de uma atribuição
que lhe é dada.
O imaginário em torno das mulheres, sobretudo as atuantes do cangaço, está diretamente ligado a teoria
da Representação Social, defendida por Moscovici (2007, apud GUARESCHI, 2007), para o autor esta teoria é
uma maneira de definir o indivíduo, contribuindo para a formação de identidades. Vale destacar que tal teoria,
por envolver esse processo de definição do sujeito, na maioria das vezes as representações em torno de alguns
fenômenos sociais podem se sustentar por meio de imaginários negativos, por exemplo, a representação social
em torno das mulheres até os dias atuais, onde muitas vezes a mesma é definida como uma figura frágil, associada

35 Referência a obra “O segundo Sexo” publicada em 1949 da referida autora.


Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 147

a um indivíduo incapaz diante de algumas funções sociais. A respeito das Representações Sociais (MOSCOVICI,
2007, apud GUARESCHI, 2007, p. 54) afirma:

[...] as representações sociais podem, na verdade, responder a determinada


necessidade; podem responder a um estado de desequilíbrio; e podem também
favorecer a dominação impopular, mas impossível de erradicar, de uma parte da
sociedade sobre outra [...] (p. 54).

Em outras palavras, as Representações Sociais, podem trazer condições de desigualdades, reforçar os


mecanismos e as relações de poder e de dominação diante de alguns grupos sociais, podendo ser o caso das
mulheres do cangaço. A questão da exclusão também foi pertinente no movimento, na medida em que elas
tiveram que lutar para conseguir espaço no cangaço. Sobre o processo de exclusão/inclusão social, dialética muito
presente na sociedade, onde tende primeiro a excluir determinado grupo social para depois incluir, Sawaia (1999)
traz o conceito de inclusão perversa, de modo geral, seria a inclusão como uma espécie de “obrigação”, ou seja,
ter que incluir determinados grupos por ser a única saída, a exemplo, do movimento do cangaço, de certa forma,
em determinados momentos, tiveram que incluir as mulheres.
Outro fator importante que merece ser mencionado aqui, que está intimamente ligado ao movimento
cangaceiro, é a construção da identidade das mulheres atuantes. Identidade, segundo Ciampa (1989), é
caracterizada como um processo representacional do indivíduo, podendo envolver uma série de aspectos, sejam
eles, biológicos, psicológicos, sociais ou até mesmo a própria representação do sujeito, seja simbólica ou mental,
pode ser construída através de dois aspectos, da diferença e da igualdade.
Pela diferença, quando o sujeito tenta criar sua singularidade, subjetividade e pela igualdade, quando se
iguala adentrando em determinados grupos sociais. Portanto, a identidade dessas mulheres, pode-se dizer que, foi
sendo construída ao decorrer do movimento cangaceiro, ou até mesmo antes, embora tenha se voltado para a
igualdade, elas também demonstraram um aspecto individual, na medida em que começam a manifestar suas
próprias qualidades. Ciampa (1989, p. 64), destaca:

[...] para compreendermos melhor a ideia de ser a identidade constituída pelos grupos
de que fazemos parte, faz-se necessário refletirmos como um grupo existe
objetivamente: através das relações que estabelecem seus membros entre si e com o
meio onde vivem, isto é, pela sua prática, pelo seu agir [...]

As atuantes do movimento cangaceiro, são uma demonstração de coragem, rebeldia (como foram
categorizadas), e sobretudo, de empoderamento, não somente por terem sido mulheres do cangaço, mas por
resistirem a todos os percalços que o movimento apresentava, pois não foi uma vivência considerada simples,
muito pelo contrário, era um movimento que envolvia violência, luta e muitos desafios. Parafraseando um
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 148

trocadilho social, estas mulheres “mesmo sofridas, jamais se calaram 36 ”, em suma, resistiram, lutaram e
permaneceram.
Desta forma, a representatividade da figura feminina no cangaço, até os dias atuais, não possui tamanho
reconhecimento e significação, na própria literatura há poucos estudos mencionando tal importância, sendo o
cangaço na maioria dos estudos existentes demonstrado como um episódio masculino, isto demonstra as raízes e
os paradigmas ainda existentes em torno da mulher. A maioria dos estudos pontuam as mulheres como esposas,
amantes, companheiras de cangaceiros, mas não unicamente como uma mulher que participou do movimento
cangaceiro, sem está associada a/para algo, sendo referenciada, como a mulher de cangaceiro, a exemplo de Maria
Bonita, sempre conhecida e mencionada como a mulher do cangaceiro Lampião (SANTOS, 2005).
Portanto, enfatizar essa participação e atuação no movimento cangaceiro, é sem dúvidas algo muito
significativo e relevante, não somente para a história das mulheres e do cangaço, mas também para a sociedade
como um todo. Tantos obstáculos e resistências as mulheres vem enfrentando ao decorrer do percurso histórico
que nunca será demais o reconhecimento, não somente por terem sido mulheres, mas sobretudo, por serem seres
humanos que carecem de respeito e possuem o direito de viver e existir no mundo, independentemente do seu
gênero.

CONSIDERAÇÕES
O trecho da compositora e cantora da MPB (Música Popular Brasileira), Pitty, "Ela foi educada pra cuidar
e servir, de costume, esquecia-se dela sempre a última a sair, disfarça e segue em frente, todo dia, até cansar. E
eis que, de repente ela resolve então mudar, vira a mesa, assume o jogo, faz questão de se cuidar, nem serva, nem
objeto, já não quer ser o outro, hoje ela é um também.37" Não foi inserido à toa no início deste estudo, pois diz
exatamente tudo que foi destrinchado até aqui, acerca do imaginário e da Representação Social em torno da
mulher ao decorrer do período histórico da figura feminina e do movimento cangaceiro. Mulher vista e
estabelecida como do lar, mãe, esposa, amante, etc. era algo comumente utilizado, mas a mulher que fugia dessas
condições era categorizada como transgressora e rebelde.
Mulheres que demonstram sua coragem e empoderamento, ganham outros tipos de categorizações, o “ser
mulher” até os dias atuais. Mulher, sinônimo de lutas, por inúmeras questões que é dela por direito, luta pelo
espaço e pelo reconhecimento na sociedade, não somente por ser mulher, mas por ser um ser humano que tem o
direito de existir e ser o que se deseja ser, as mulheres cangaceiras foram um exemplo claro dessas lutas e
resistências, quebraram paradigmas, mostraram suas capacidades e enfrentaram os obstáculos que só o “ser
mulher” apresenta.

36 Faz referência a máxima “Mesmo Sofrida Jamais me Kahlo” da pintora Frida Kahlo.
37 Trecho da canção ‘Desconstruindo Amélia” lançada em 2009 da cantora mencionada.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 149

Lutar por tais questões não foi e não é tarefa simples, muitas vezes a vida entra em jogo, tantas mulheres
cangaceiras puderam reivindicar e permanecer existindo, porém de alguma maneira sempre tentaram lhe apagar
algo, o seu “eu”, os seus sonhos, as suas capacidades, o seu direito de ser. Desta maneira, sejam mulheres do
cangaço, do Colombo, do lar, do bar, da favela, do bairro nobre, do Nordeste, do Sul, da cidade, do campo, enfim
de onde for, merecem ter voz e respeito sem carecer de tanta justificativa para tal.
Portanto, é necessário seguir resistindo como as “Marias” Marias Bonitas, Marias Bethânia, Marias da
Penha, Maria da Conceição Evaristo, como Dandara, Nise da Silveira, Elis Regina, Marielle Franco, Judith Butler,
Glória Maria, Anne Frank, Elza Soares, Clarice Lispector, Chica da Silva, Simone de Beauvoir, Marta Silva,
Nina Simone, Djamila Ribeiro, Frida Khalo, Marilena Chauí, Hannah Arendt, Dilma Rousseff, Rita Lee, Estamira
Gomes de Sousa, Laerte Coutinho, Michelle Obama, Erica Malunguinho, Malala Yousafzai, Fernanda
Montenegro, Linn da Quebrada, Greta Thunberg, Letrux Novaes, Manuela D’Ávila, Eremita Corina da Silva
(minha avó Nordestina, Pernambucana do interior), e tantas outras, que resistiram/resistem, marcaram (e marcam)
a história das mulheres de modo geral e o existir mulher no mundo, seja no cangaço ou não, sobretudo, as que
irão ler e sentir esse estudo.

REFERÊNCIAS

CIAMPA, Antonio da Costa. Identidade. (Org). CODO, Wanderley; LANE, Silva. In: PSICOLOGIA SOCIAL:
O HOMEM EM MOVIMENTO. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989.

FALEI, Miridan Knox. Mulheres do Sertão Nordestino. In: DEL PRIORI, Mary (Org.). HISTÓRIA DAS
MULHERES NO BRASIL. São Paulo: Contexto, 2007.
FERREIRA, Aurélio. DICIONÁRIO DA LÍNGUA PORTUGUESA. 8. ed. Curitiba: Positivo, 2010.
FERREIRA, Mary. FEMINISMOS NO NORDESTE BRASILEIRO. Polis [En línea], 28 | 2011, Publicado
el 13 abril 2012, Acesso em 13 maio 2021. Disponível em: http://journals.openedition.org/polis/1176
FREITAS, Ana Paula Saraiva de. A PRESENÇA FEMININA NO CANGAÇO: PRÁTICAS E
REPRESENTAÇÕES (1930-1940). Dissertação (Mestrado). Mestrado em História, Universidade Estadual
Paulista Julio de Mesquita Filho, Faculdade de Ciências e Letras - UNESP, Assis, 2005.
GOFFMAN, Erving. ESTIGMA - NOTAS SOBRE A MANIPULAÇÃO DA IDENTIDADE
DETERIORADA. 1963. Traduzido por Mathias Lambert, Sabotagem, 2003.
LIMA, Caroline de Araújo. Mulheres em movimento e sua invisibilidade: a memória e o esquecimento das
cangaceiras. REVISTA UNIVERSIDADE E SOCIEDADE, Brasília, n. 58, p. 92-103, 2016.
LOURO, Guacira Lopes. O CORPO EDUCADO: PEDAGOGIAS DA SEXUALIDADE. 2. ed. Belo
Horizonte: Autêntica, 2000.
MARCONI, Marina; LAKATOS, Eva. FUNDAMENTOS DA METODOLOGIA CIENTÍFICA. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2003.
MOSCOVICI, Serge. REPRESENTAÇÕES SOCIAIS: INVESTIGAÇÕES EM PSICOLOGIA SOCIAL.
Editado em inglês por Gerard Duveen; traduzido do inglês por Pedrinho A. Guareschi. 5. ed. Petrópolis, Rio de
Janeiro: Vozes, 2007.
OLIVEIRA, Maxwell Ferreira de. METODOLOGIA CIENTÍFICA: UM MANUAL PARA A
REALIZAÇÃO DE PESQUISAS EM ADMINISTRAÇÃO. Manual Pós-Graduação. Universidade Federal de
Goiás, Goiânia, 2011.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 150

SANTOS, Flávia Santana dos. CANGACEIRAS: REBELDIA, ROMANTISMO E LIBERDADE.


Monografia (Departamento de História). Centro Universitário de Brasília – Uniceub – Faculdade de Educação –
FACE, Brasília, 2005).
SAWAIA, Bader (Org). AS ARTIMANHAS DA EXCLUSÃO: ANÁLISE PSICOSSOCIAL E ÉTICA DA
DESIGUALDADE SOCIAL. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.

Tecnóloga em Gestão de Recursos Humanos pela Universidade Paulista-UNIP (2014). Graduada em Psicologia
pelo Centro Universitário do Vale do Ipojuca-UNIFAVIP/Wyden (2019). Experiência como pesquisadora no
Projeto de Iniciação Científica: “Direitos Humanos, Violência e Diversidade Humana no Período Ditatorial no
Agreste de Pernambuco (1964-1985)”. Experiência como Extensionista e Monitora no Projeto: "LoucAção" em
Saúde Mental. Experiência como Extensionista no Projeto: "Acolhimento e Acompanhamento Psicossocial às
Mulheres Vítimas de Violência Sexista e aos Autores de Violência". Experiência como Extensionista no Projeto:
"Trabalho, Juventude e Vulnerabilidade Social: A construção da Carreira num Mundo Precarizado”. Experiências
em Estágios em Saúde Mental, Psicologia Jurídica, Clínica Ampliada pela Perspectiva Fenomenológica
Existencial. Eixos de Publicação e Pesquisa: Saúde Mental, Gênero, Direitos Humanos, Vulnerabilidade Social.
http://lattes.cnpq.br/8393257846308699
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 151

CAPÍTULO 15
IDENTIDADE E POLÍTICA FEMINISTA EM BEAUVOIR E BUTLER

BETHÂNIA ALVES PEREIRA DE SOUZA


KARLA CRISTHINA SOARES SOUSA

INTRODUÇÃO

O conceito de identidade na história da filosofia pode ser lido por três perspectivas, como aponta
Abbagnano em seu Dicionário de Filosofia (ABBAGNANO, 2007, p 528) : a) como uma unidade de substância,
fundamentada por Aristóteles; b) como possibilidade de substituição, definida pela filósofo Leibniz e; c) a
identidade como convenção. Trataremos neste trabalho da ideia de identidade pela terceira perspectiva para
lançarmos as seguintes questões a partir das pensadoras Simone de Beauvoir e Judith Butler: O que significa
dizer que a identidade é uma convenção? Qual a conceitualização apresentada por Simone de Beauvoir e Judith
Butler? E quais as continuidades e rupturas na interpretação do conceito de identidade, bem como a possível
influencia no discurso/ prática feminista que ambas oferecerem?

De antemão, podemos ofertar logo uma resposta para uma das questões, pois a problemática da identidade
não foi uma agência especifica nas reflexões da francesa Simone de Beauvoir, entretanto, sabemos que a análise
empreendida em seu texto célebre O segundo sexo (1949) conduziu a estruturação e influenciou as investigações
da teoria feminista contemporânea.

Simone de Beauvoir foi a única mulher que participou da filosofia existencialista francesa nos anos 40,
junto de nomes como Jean-Paul Sartre (1905 – 1980), Maurice Merleau-Ponty (1908 – 1961) e Albert Camus (
1913 – 1960). O existencialismo francês se consolida pela premissa de negação de qualquer essência estabelecida
antes da existência. Para esses autores, o homem é liberdade, portanto, não possui uma essência que o defina
antes que ele próprio possa se fazer, o que é resumido pela seguinte sentença: a existência precede a essência.
Jean-Paul Sartre, o primeiro a defender o existencialismo francês, acreditava que realidade humana é
fundamentada pela liberdade, como afirma em O ser e o nada (1943):

A realidade humana é livre porque não é o bastante, porque está perpetuamente


desprendida de si mesmo, e porque aquilo que foi estar separado por um nada daquilo
que é e daquilo que será. E, por fim, porque seu próprio ser presente é nadificação
na forma do “reflexo-refletidor”. O homem é livre porque não é si mesmo, mas
presença a si . O ser que é o que é não poderia ser livre. A liberdade é precisamente
o nada que é tendo sido no âmago do homem e obriga a realidade-humana a fazer-
se em vez de ser. Como vimos, para a realidade-humana, ser é escolher-se: nada lhe
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 152

vem de fora, ou tampouco de dentro, que ela possa receber ou aceitar. Está
inteiramente abandonada, sem qualquer ajuda de nenhuma espécie, à insustentável
necessidade de fazer-se ser até o mínimo detalhe. Assim, a liberdade não é um ser: é
o ser do homem, ou seja, seu nada de ser.” (SARTRE, 2011, P 545)

Nos escritos beauvoiraianos essa sentença e fundamentação se apresentam de diversas maneiras, pois para
a existencialista, a vida deve ser o objeto da reflexão filosófica. Dessa forma, empreendeu uma revolução
antropológica, política e metodológica no cenário intelectual. Sua escrita mobilizada pela ideia de ambiguidade
descreveu a experiência humana sem máscaras; influenciada pelo método fenomenológico38, conduziu uma
reconstrução do próprio modo do fazer filosófico. Como destaca Kristeva:

A vida e obra de Simone de Beauvoir (1908-1986) cristalizam uma revolução


antropológica de grandes proporções, preparada coletivamente há muito tempo pelos
dois sexos e que não cessa de produzir efeitos imprevisíveis em nossos destinos
pessoais e no futuro político do planeta (KRISTEVA, 2019, p 12)

A descrição da condição feminina em O Segundo Sexo fez uma agitação gigantesca no cenário intelectual
e político. Segundo Reynolds (p. 199), “é um dos livros de não ficção mais vendidos publicados no século XX,
e tem exercido enorme influência sobre gerações de feministas”. Nesta obra, Beauvoir, realiza uma descrição
fenomenológica da condição feminina, chegando à conclusão de que “a mulher não nasce mulher, torna-se”
(BEAUVOIR, 2009b, p. 365). A questão instigante do texto é a seguinte: o que uma mulher? O que movimenta
também a investigação das possibilidades concretas que as mulheres possuíam para existir autenticamente nesta
condição, bem como as possibilidades, em termos de liberdade. Disto isto, podemos entrar na problemática que
nos envolve neste item, o que podemos extrair das leituras beauvoirianas e butlerianas sobre a discussão da
identidade.
Apesar da problemática não ocupar o centro de análise nos escritos beauvoirianos, o percurso de descrição
da condição feminina nos aproxima de uma leitura da identidade estruturada pela dialética do mesmo e do outro.
Dessa forma, compartilhamos da mesma opinião de Bjorsnos (BJORSNOS, 2013, p. 38) quando nos diz que
“Beauvoir nunca apresentou uma teoria da identidade, o que não quer dizer que a questão não lhe interessava.
Ela simplesmente a abordou com a terminologia da sua época, que estava mais de acordo com sua orientação
filosófica”. Entender o que podemos extrair sobre um discurso da identidade em Beauvoir nos exige que façamos
uma breve apresentação sobre a moral da ambiguidade, que deve ser vista como uma ética da transcendência
recíproca, pois esta irá nos orientar com relação a presença do outro, ponto importante na construção de uma
identidade.

38 O método fenomenológico foi criado por Edmund Husserl ( 1859 – 1938) se sustenta pela ideia de ir ao encontro das coisas
mesmas, suspender todo juízo a priori para apreender as coisas em sua verdade.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 153

A perspectiva ética é publicada no texto Por uma moral da ambiguidade (1947), construído a pedido do
filósofo Albert Camus para compor uma coleção da época, o objetivo era defender o existencialismo das
acusações sofridas. Assim, para Beauvoir a moral existencialista compreende que todo sujeito se coloca no mundo
através de projetos como uma transcendência, e este só alcança a liberdade pela sua constante superação em vista
de outras liberdades. Dessa forma, a existência presente só se justifica por uma expansão ao um futuro
indefinidamente aberto. Por essa perspectiva, o outro é visto como aquele que constitui o mesmo, aquele que
constrói o fundo no qual desenrola a existência.

[...] para se realizar minha liberdade exige desembocar num futuro aberto: são os
outros que abrem o futuro para mim, são eles que, ao constituírem o mundo, definem
meu futuro; mas se em vez permitirem que eu participe desse movimento construtor,
eles me obrigarem a consumir em vão minha transcendência, se me mantiverem
abaixo deste nível que conquistaram e a partir da qual se efetuarão as novas
conquistas, então eles me apartam do futuro, transformam-me em coisa.
(BEAUVOIR, 2005, p. 71)

Portanto, voltando a análise da condição feminina, a dialética do Mesmo e Outro forma a identidade
oprimida das mulheres, esta que é vista como o outro sexo, um sexo secundário no processo de construção da
civilização. A identidade subjetiva é produzida pela marcação desigual e hierárquica do gênero, ou seja, a
condição feminina situa-se numa realidade de não-reciprocidade ética. Como afirma Beauvoir,

Ela não é senão o que o homem decide que seja; daí dizer-se o “sexo” para dizer que
ela se apresenta diante do macho como um ser sexuado: para ele, a fêmea é sexo,
logo ela o é absolutamente. A mulher determina-se e diferencia-se em relação ao
homem, e não este em relação a ela; a fêmea é o inessencial perante o essencial. O
homem é o Sujeito, o Absoluto; ela é o Outro. (BEAUVOIR, 2009, p 17)

A reciprocidade é base para qualquer relação ética, e é justamente dessa premissa que teremos o estímulo
da urgência política nas demandas de lutas coletivas. Citando Marx, Beauvoir destaca que enquanto um humano
for privado de sua liberdade de ser-no-mundo, todos também estaremos envolvidos e responsabilizados pelo
cenário violento da não-reciprocidade.

Nessa supressão, todos os homens estão interessados e, como diz o próprio Marx,
tanto o opressor quanto o oprimido: pois cada um necessita que todos os homens
sejam livres. (...) Contudo, a causa da liberdade não é mais de outrem do que minha:
ela é universalmente humana. (BEAUVOIR, 2005, p 72-73)
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 154

Por conseguinte, a problemática da identidade na discussão ética e política em Beauvoir será estruturada
pela matriz da relação com o Outro. A identidade feminina, a identidade negra, a identidade judia são mobilizadas
pela relação não recíproca com o Outro que se afirma como tirano, se posicionando hierarquicamente como
Sujeito na troca e impossibilitando a transcendência recíproca.
A filósofa Judith Butler vai radicalizar a crítica de Beauvoir instaurando um novo paradigma para pensar
o gênero e, consequentemente a ação política. À vista disso, faz uma crítica ao conceito de “mulheres” a partir
da genealogia da ontologia de gênero, contrária a busca por uma essência universal que determina todos os
sujeitos que pertence à categoria de “mulheres”. Assim, a crítica ao conceito de “mulheres” é a entrada para
perceber a dinâmica do pensamento político feminista que se baseia na pressuposição dessa ontologia, ou seja,
em um sujeito mulher universal, representando todas aquelas pessoas que possuem uma vulva. Esse equívoco é
oriundo de um pensamento sobre o gênero que se funda a partir da diferença sexual. Ela não apenas vai fazer a
crítica do gênero enquanto culturalmente produzido, mas também do sexo. Pensa, portanto, a identidade de gênero
e a relação com a anatomia sexual, lida como aparentemente causal.
O sujeito da política feminista é representado pelas mulheres, o que nos leva ao questionamento de como
se deu a construção dessa categoria representativa. As questões presentes no movimento feminista nos mostram
um cenário de profícua produção e de profundos questionamentos éticos e políticos.
O pensamento feminista promove uma ruptura radical com o pensamento moderno ocidental que tem
como seu símbolo um sujeito universal de razão, aparentemente despido de qualquer determinação, no entanto
representam as demarcações do homem, do branco e do ocidental. Isso é evidente quando olhamos aqueles que
fazem parte do “cânone” filosófico. Assim, aquilo que aparentemente é universal na realidade é produto dessas
demarcações.
Em corolário, a identidade de gênero para Butler é abordada como um efeito discursivo. A formação do
gênero a partir dos atos performáticos se dá por meio de um processo de repetição dos discursos e práticas
culturais, apoiadas em sanções sociais e tabus. E aqui está a brecha para que seja possível a mudança dessa lógica,
com o surgimento de outras performances, atos e modos de ser. Dessa maneira, gênero passa a ser uma repetição
de normas que já não retornam ao gênero original39.
Essa crítica ontológica incide no sujeito da ação política do feminismo. A filósofa afirma que “se os
gêneros são instituídos por atos descontínuos, essa ilusão de essência não é nada mais além de uma ilusão, uma
identidade construída, uma performance em que as pessoas comuns, incluindo os próprios atores sociais que as
executam, passam a acreditar e performar um modelo de crenças”. (BUTLER, 1998, p.215) É na linha da
descontinuidade, da ilusão que vamos construindo e edificando as verdades do gênero, e neste caso da categoria
“mulher”.

39 É uma forma maneira que a filósofa se utiliza para referir a ideia do gênero enquanto substância, com uma unidade estável.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 155

O fato de a categoria de “mulheres” ser descritiva, específica o grupo que será representado pelo
feminismo, cuja articulação resulta em um “nós”, unificado e ilusório. Butler lança ao pensamento feminista a
questão sobre qual deve ser o conteúdo descritivo da categoria e, por conseguinte, como é possível definir a
identidade feminista. No cenário do século XXI a busca por uma categorização centrada em uma especificidade
feminina, seja pelo recurso à maternidade, ao biológico ou ao social produziu uma rejeição ao feminismo dado
seu caráter universalizante, ocultando as diferentes pautas, abordagens e experiências, como o desacordo presente
desde o início do movimento feminista, principalmente nos Estados Unidos. Isto posto, o “nós” feminista é
contestado pelas mulheres negras e não-brancas, trabalhadoras e àquelas cujas sexualidades não é expressa a
partir do regime da heterossexualidade.
Deste modo, a tentativa de conferir um conteúdo específico à categoria de mulheres culmina na exigência
de uma solidariedade prévia que afasta aqueles e aquelas fora dessa especificidade. A filósofa chega à conclusão
de que a identidade universal de mulher enquanto ponto de partida não se sustenta como base segura para o
movimento feminista, pois, além de ser descritiva, é normativa. Butler destaca que há um risco em deixar a
categoria de “mulheres” irrestrita, entretanto, considera como fundante de qualquer teoria feminista.
Assim, o pensamento butleriano estremece as estruturas da binaridade de nossa sociedade, atravessando
a divisão social do trabalho, a raça e o espaço público, a produção de conhecimento, saberes e discursos, pois tem
como imperativo que precisamos ir além da categoria, buscando em certa medida transgredi-las, já que não são
estáticas. Antes de ser um termo analítico, o conceito deve refletir a práxis.
Dessa forma, nossa travessia para compreendermos a temática envolvida será dividida da seguinte
maneira: apresentaremos no tópico 2 a relação entre teoria e prática para Beauvoir; no tópico 3 desenvolveremos
a discussão sobre qual é a perspectiva da teoria e prática feminista para Butler; e último faremos uma reflexão
sobre o impacto das leituras contemporâneas no movimento feminista.

PERSPECTIVA DO MOVIMENTO FEMINISTA EM BEAUVOIR


Como foi bem destacado acima, o texto O Segundo Sexo mobilizou as estruturas da teoria feminista, bem
como fundamentou o movimento feminista europeu na década de 60. Podemos afirmar em concordância com
algumas comentadoras de Beauvoir que toda a teoria feminista pós Beauvoir, ou é plágio, ou é extensão de suas
ideias. Fala-nos sobre o ensaio O Segundo Sexo:

Eu disse como esse livro foi concebido: quase que fortuitamente; querendo falar de
mim, percebi que precisava descrever a condição da mulher; considerei primeiro os
mitos que dela forjaram os homens através das cosmologias, das religiões, das
superstições, das ideologias, das literaturas. Tentei pôr ordem no quadro, à primeira
vista incoerente, que se ofereceu a mim: em todo o caso, o homem se colocava como
o Sujeito e considerava a mulher como um objeto, como o Outro. (BEAUVOIR,
1982, p 191)
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 156

O pessoal é político, premissa importante para desenvolvimento das demandas feministas, aparece na
escrita de O Segundo Sexo que foi iniciada com objetivo de falar de si, e levou Beauvoir a mudar de objetivo, e
então discutir a condição feminina, primeiramente, por perceber as mínimas possibilidades efetivas que um ser
humano na condição feminina tinha para se desenvolver autenticamente em sua existência e, logo depois, por
tentar compreender o motivo da continuidade dessa condição secundária. Neste texto, a autora nos oferece um
diagnóstico dessa opressão, destacando que a relação não recíproca e, portanto, antiética, impede as mulheres de
suspender o juízo de sua condição oprimida, e realizar concretamente uma libertação dessa situação.
Estruturado em dois volumes, o primeiro volume com a preocupação de descrever e desmitificar os fatos
que sustentam a figura da mulher pela mitologia do eterno feminino, conduzindo a concluir que nem “todo ser
humano do sexo feminino não é necessariamente mulher, pois cumpre-lhe participar dessa realidade misteriosa e
ameaçada que é a feminilidade” (BEAUVOIR, 2009, p 13 ). E o segundo volume, com a descrição da experiência
vivida das mulheres, a qual leva a pensadora existencialista a concluir que a identidade feminina oprimida é uma
construção cultural.
Consequentemente, a discussão da opressão toma um lugar relevante no desenvolvimento do texto.
Beauvoir destaca que opressão caracteriza quando a situação impede a transcendência de ultrapassar o dado
presente, condenando a existência a recair inutilmente sobre si mesma, pois é afastada de suas metas, esta situação
não é natural, mas produzida por outros existentes. Na perspectiva na condição feminina, a opressão é infligida e
fundamentada pela mitologia do eterno feminino. Dessa forma, “o que define a maneira singular a situação da
mulher é que, sendo, como todo ser humano, uma liberdade autônoma, descobre-se e escolhe-se num mundo em
que os homens lhe impõem a condição de Outro” (BEAUVOIR, 2009, p 30)
As conclusões propostas pela teórica francesa influenciaram várias escolas e movimentos feministas.
Beauvoir fez algumas participações ativas no movimento, destacamos o Movimento de Libertação das Mulheres,
que ocorreu na França, em que a escritora assinou o Manifesto das 343, publicado em 1971, em Le Nouvel
Observateur, em prol da campanha de legalização do aborto no país, declarando ter realizado um aborto. Fala-
nos.

Para dar prosseguimento a essa campanha, O Movimento organizou a 20 de


novembro, associando-se às manifestações feministas que se realizaram nessa data
em vários lugares do mundo, uma passeata, em Paris, de mulheres exigindo liberdade
de maternidade, de contracepção e de aborto. Participei dela. Caminhamos da
República até a Nation, ocupando toda a rua, com cartazes es logans; militantes
brandiam esfregões, arames com roupa de cama suja, bonecas de papel, bolas; uma
delas distribuía salsa – símbolo do aborto clandestino – que algumas colocavam nos
cabelos. (BEAUVOIR, 1982, p 481)
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 157

No mesmo texto autobiográfico Beauvoir destaca que suas participações como manifestante só
aconteceram porque sua atitude em relação à condição feminina evoluiu, o que ocorreu por muita
responsabilidade da feitura e escrita do texto O Segundo Sexo. O escrever a si no texto e na prática fazem também
uma revolução no olhar dos movimentos feministas que passam a utilizar essa abordagem na articulação entre
prática e teoria.

TEORIA E PRÁTICA FEMINISTA A PARTIR DE JUDITH BUTLER


O pensamento butleriano é extremamente importante para as reflexões feministas contemporâneas com
ressonância nos textos de pensadoras como Spivak, Angela Davis, Nancy Fraser, pois explicita uma preocupação
com a abordagem liberal e colonial do feminismo.
Judith Butler evidencia a necessidade que a teoria política tem de uma ideia de sujeito, por isso afirma
que “exigir o sujeito significa limitar o terreno do político, e essa limitação, instalada analiticamente como
característica essencial do político, reforça de tal modo as fronteiras do espaço da política” (BUTLER, 2018, p
62). A impossibilidade de revisitar as fundações deixa à margem assuntos importantes para a reflexão política.
O sujeito enquanto fundamento assinala a necessidade das teorias terem como alicerce as premissas que
funcionam com argumentos de autorização, constituídas por meio de exclusões que tanto evidenciam quanto
expõe a sua contingência. Desta maneira, ainda que ocorra o estabelecimento de uma base universal, esta seria
composta por uma nova dimensão de inquestionabilidade.
Surgem algumas questões: O que quer a filósofa? Acabar com as fundações ou defendê-las com uma
posição antifundacionista? Nenhum dos dois posicionamentos, pois ambos estariam ligados ao fundacionalismo
e a problemática cética as quais resultam. Aqui a atenção está voltada para a interrogação sobre o movimento que
estabelece as fundações, seja autorizando-as ou impedindo-as. O abono inicial do sujeito e da fundação reafirma
a compreensão que estes estabelecimentos acontecem de forma unilateral no domínio das funções políticas, e
pode se consumar em um artifício autoritário que silencia a contestação do status do sujeito. A revisão das
fundações não impede que uma teoria tenha um sujeito, contudo não deve ser a priori, pois é a partir da prática
que temos a verdade. O pensamento butleriano expressa a premissa de uma construção dedicada, focada, que seja
atenciosa e sempre aberta a reformulações.
A partir dessa teorização sobre o sujeito e ação qual será a visão da filósofa sobre a teoria e a prática
feminista? Em seu texto Atos performáticos e a formação dos gêneros: um ensaio sobre fenomenologia e teoria
feminista,1998 , Butler faz um diagnóstico:

Como feministas, não temos nos debruçado tanto, acredito, eu, sobre o status da
própria categoria, nem nos esforçando para entender de verdade as condições de
opressão que surgem de uma reprodução descuidada de identidade de gênero, que
sustenta formas discreta e binárias das categorias homem e mulher”. (BUTLER,
1998, p.219)
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 158

Esse descuido nos impossibilita de refletirmos radicalmente sobre o gênero e transformá-lo. É nesse
movimento binário que construímos a nossa análise, não considerando o par, mas excluindo um em detrimento
do outro, não percebendo a dança conjunta de diferenciação e exclusão que este faz. Fica evidente que precisamos
pensar a construção da feminilidade e da masculinidade, como também não devemos nos entregar a sedução de
um problema aparentemente resolvido. Embora todo ganho tenha sido expressivo, se continuarmos a pensar
dentro do regime de binaridade, cuja referencialidade é ocidental, bloqueamos a nossa capacidade criativa e de
transformação das estruturas sociais.
Butler, após trazer esse diagnóstico em seu texto de 1998, apresenta o que chama de imperativo,
destacando que não é uma prescrição utópica, demonstrando onde essa genealogia dos gêneros pode nos levar.

Essa genealogia deve ser suplementada por uma política de atos performáticos de
gênero, que reescreva identidades de gênero existentes e ofereça uma perspectiva
sobre o tipo de realidade de gênero necessário. Tal reescritura precisa expor as
reficaçõess que tacitamente funcionam como identidades de gênero essenciais, e
iluminar os atos e as estratégias de não reconhecimento que forma e disfarçam as
maneiras como vivemos os gêneros. Essa prescrição é invariavelmente complicada
uma vez que exige que pensemos um mundo no qual atos, gestos, o corpo que está á
vista, o corpo vestido, os diferentes atributos físicos usualmente associados a gêneros
passem a expressar nada. (BUTLER, 1998, p. 228)

A política dos atos performáticos, considera o gênero como um ato que tem dimensões temporais e
coletivas, que explicita leis sociais, na qual compõem essa unidade da identidade evidenciando sua ficção social.
Assumir tal posição exige um esforço de abandonar os atributos dos gêneros enquanto expressivos, conforme
“atos e gestos enquanto expressões de gêneros sugere que o próprio gênero seja anterior aos diferentes atos,
posturas e gestos por meio dos quais ele é dramatizado e entendido” (BUTLER, 1998, p.225). A ideia de
expressão direciona o pensamento para o entendimento de que o gênero são papéis que expressam um “eu”,
independente ser atribuído a um sexo ou não. Por outro lado, “como uma performance que é performática, o
gênero é um “ato” amplamente entendido que constrói a ficção social da sua própria psicologia interior”.
(BUTLER, 1998, p.225)
Esses atos formados de gênero, que são práticas que geram efeitos fictícios, e uma aparência coerente,
podem ser confundidos enquanto performances em contextos teatrais. Todavia, o gênero enquanto teatral não é
controlado por convenções sociais punitivas e regulatórias. Butler cita um excelente exemplo para ilustrar essa
perspectiva: “A visão de uma travesti no palco pode render prazeres e aplausos, enquanto ver a mesma travesti
ao seu lado no banco do ônibus pode despertar sentimento de medo, raiva e até mesmo respostas violentas”
(BUTLER, 1998, p. 223)
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 159

Finalizando, consideramos importante esclarecer que Butler não refuta Beauvoir, mas promove uma
expansão crítica ao seu pensamento. Para estadunidense, a teoria feminista fenomenológica compreende o corpo
como um receptáculo de significações a priori , pois evidenciam a historicidade do corpo-situação. Essa crítica
se justifica pela recusa de assumir um “Eu” atribuído ao gênero anterior as suas ações.
O que cabe ressaltar, à guisa de conclusão, é que a discussão butlerianas indicam a importância e
necessidade de pensarmos um novo tipo de política feminista que conteste as próprias reificações da identidade
de gênero, e que tome a construção variável da identidade como um pré-requisito metodológico e normativo, bem
como objetivo político. Butler nos alerta sobre a armadilha que é ser um gênero e assumi-lo como uma identidade
fixa, como também a potencialidade violenta caso haja uma oscilação para além do binário, da diferença e da
lógica da heterossexualidade. Assim como, a abordagem da ontologia de gênero pensada por Beauvoir é
importante para pensarmos a condição do sujeito “mulher”, Butler permite a expansão dessa categoria,
evidenciando a questão do desejo e dos gêneros não-binários.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As discussões de ambas são fundamentais para o debate sobre os fundamentos de uma política feminista.
Simone de Beauvoir em proêmio do discurso feminista, conduz-nos para uma travessia de reconstrução de
padrões limítrofes da existência. Existir autenticamente é ter a possibilidade de expandir para um futuro aberto.
Caso esse futuro não esteja aberto, há necessidade de revoltar-se contra a situação opressora. A condição feminina
situa-se neste lugar. Portanto, para ser um ser humano oprimido, é importante a libertação da liberdade de ser.
Nos tempos hodiernos, radicalizando o discurso de Beauvoir, podemos afirmar que a libertação da identidade de
gênero é um caminho para liberdade de ser, já que esta excluí e violenta nossa existência, como aponta Butler.
Butler revela uma sensibilidade para com o seu tempo, onde o cenário é de instabilidade da categoria de
gênero, das reflexões sobre questões étnicas-raciais, sobre o imperialismo, o avanço do neoliberalismo, as guerras
neocoloniais, a globalização, a cultura. A identidade é uma ficção que gera enquadramentos, subjetivações,
selecionando quem deve viver e quem deve morrer, quem deve ter direito ao luto e ao reconhecimento. Assim,
quem vai cumprir os pré-requisitos para ganhar reconhecimento ou esquecimento social? Se nos fixamos em um
conceito de “mulher” que descreve as necessidades de mulheres específicas, nos perguntamos: e as outras
mulheres, não são mulheres? Por acaso, não é esse conceito de gênero binário próprio do pensamento ocidental,
desconsiderando outras experiências culturais? Existem outras formas de fazer gênero? De ser um gênero?
É importante pensar em uma base que fundamente a ação e a teoria, visto que a subalternidade é uma
realidade global. É um imperativo agir frente a uma estrutura social e política comandada pelo mercado, que se
espalha pelo do tecido social, no corpo, e na subjetividade. Por isso é importante que estejamos cientes que na
busca por estabelecer padrões fechados podemos produzir exclusão e violência. Por fim, é preciso olhar com
sensibilidade nosso presente. Pois há urgência de uma prática que combata os imaginários coloniais, que
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 160

bloqueiam a imaginação e a criatividade. Há um trabalho árduo para conquistarmos uma sociedade mais justa,
menos violenta e mais plural. Precisamos semear, estar disposto a criar, com a ciência de que a semente não vira
árvore da noite para o dia.

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Ivone Castilho Benedetti. 5 ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2007.
BEAUVOIR, Simone de. Literatura e metafísica. In: ______. O existencialismo e a sabedorias das nações.
Trad. Manuel de Lima; Bruno da Ponte. Lisboa: Minotauro, 1965.
__________________. A Convidada. Trad. Vitor Ramos. São Paulo: Difusão Europeia
do Livro, 1963.
___________________. A força da idade. Trad. Sérgio Milliet. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
___________________. A força das coisas. Trad. Maria Helena Martins. 2.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2009a.
___________________. Balanço Final. Trad. Rita Braga. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.
__________________. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. 2 ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2009b.
__________________. Por uma moral da ambiguidade. Trad. Marcelo Jacques de Moraes. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira , 2005.
BJORSNOS, A. (2013). Beauvoir e Ricoeur: a identidade narrativa Análise de uma crise identitária em A
Convidada de Simone de Beauvoir. Sapere Aude, 4(8), 37-55. Acessado em 15 de maio de 20201 <
http://seer.pucminas.br/index.php/SapereAude/article/view/6428 >.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar.
17ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.
______________. Fundações contingentes: feminismo e a questão do “pós-modernismo”. In: Debates
Feministas: um intercâmbio filosófico. Traduzido por Fernanda Veríssimo. São Paulo: Editora Unesp, 2018.
pg. 85.
_______________. Atos performáticos e a formação dos gêneros: um ensaio sobre fenomenologia e teoria
feminsita. In: Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Traduzido. Organização Heloísa Buarque de
Hollanda. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.
CASTILLO, Alejandra. Simone de Beauvoir: Filósofa, antifilósofa. 1ª ed. Adrogué: La Cebra, 2017.
KRISTEVA, Julia. Beauvoir presente. Trad. Edgard de Assis Carvalho e Mariza Perassi Bosco. São Paulo:
Edições Sesc São Paulo, 2019.
GRAU, Olga (coord). Simone de Beauvoir en sus desvelos: Lecturas feministas. Santiago: LOM, 2016.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Trad. Paulo Perdigão. 20 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011.
PARDINA, María Teresa López. La hermeneútica existencial en Simone de Beauvoir. Tese. Teoría del
conocimiento e Histcria del pensamiento. Universidad Complutense de Madrid, Madrid, 1992.

Bethânia Alves Pereira de Souza


Mestranda em Filosofia na Universidade Federal da Bahia. Bolsista Fabesb. E-mail:
bethaniaspereirasouza@gmail.com.

Karla Cristhina Soares Sousa


Doutoranda em Filosofia na Universidade Federal da Bahia. Bolsista Fabesb. Membro do corpo editorial da
Revista Sísifo (http://www.revistasisifo.com ). Membro do GEIMF - Grupo de estudo independente mulher e
filosofia e Grupo de Pesquisa em Teoria da Afetividade na Idade Moderna, Filosofia das Psicologias e das
Psicanálise. Produtora do podcast A coruja diurna. E-mail: karlassousa28@gmail.com.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 161

CAPÍTULO 16
A IMPORTÂNCIA DA OCUPAÇÃO DE MULHERES NEGRAS NOS
ESPAÇOS DE PODER

ELIANE PINTO TEIXEIRA


MARQUILIA RESPLANDES

INTRODUÇÃO
O presente artigo é um enfoque sobre a realidade da ocupação das mulheres negras nos espaços de poder no
Estado do Tocantins, uma vez que a mulher negra se encontra à margem, visto que em sua grande maioria não
está preparadas para ocupar os espaços de poder, ou para requerer seus espaços, mesmo que seja seu por direito
constitucional e social. Diante disso, buscamos fazer um breve levantamento de dados com algumas mulheres
negras que residem em cidades do Estado do Tocantins como: Arraias, Conceição, Natividade, Palmas, Gurupi e
Paranã. A metodologia utilizada foram questionários com perguntas abertas, os quais foram encaminhados e
respondidos pelas mesmas. O referido texto se baseia em diversos teóricos para fundamentá-lo como: Munanga
(2006), Lima, Rios e França (2013), Bruschini e Lombardi (2000), Bento (2009), Carneiro (2003), Ribeiro (2008)
e outros. O presente artigo divide-se em três tópicos a saber: A Importância da Ocupação da Mulher Negra nos
Espaços: Política, Educação e Sociedade que aborda um panorama sobre a inserção da mulher negra no espaço.
Mulheres Negras: Trajetórias Históricas com resultados exitosos e afirmativos faz uma breve retrospectiva da
vida da autora, após pontuar alguns enfoques sobre algumas mulheres do estado Tocantins, para a visibilidade da
mulher negra e finalizamos com as considerações finais e referências. Em síntese o referente texto elabora uma
reflexão crítica em relação à mulher negra nos espaços de poder e suas lutas diárias nas diversas esferas com
representatividades negras, com isso precisa-se de ocupação e necessita-se de mais mulheres negras na política,
sociedade, na educação; na tv, nos cinemas, na música e entre outros lugares, a voz negra feminina precisa ser
ouvida e estampada em todos os espaços de poder.

A Importância da Ocupação da Mulher Negra nos Espaços: Política, Educação e Sociedade


Na sociedade atual ser mulher é uma tarefa árdua, mas ser mulher negra é difícil. Diante disso existe a
marginalização da mulher negra tornando um fator excludente e com isso provoca falta de representatividades
nos espaços de poder. Na perspectiva de Munanga (2006, p.133):
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 162

Na segunda metade do século XX, embora já tivessem ocorrido transformações nas


condições de vida das mulheres em todo o mundo, em especial a partir dos anos de
1960, a mulher negra continuava vivendo uma situação marcada pela dupla
discriminação: ser mulher em uma sociedade machista, e ser negra numa sociedade
racista.

Historicamente os espaços de poder não foram reservados para as mulheres negras. É visível que vivemos
em um mundo onde se encontra um estreitamento da ocupação da mulher negra, pois a mesma vivenciou períodos
de ser apenas a escrava, a dona da casa, mãe de família, sem poder de voz e vez. E com isso os movimentos
feministas surgiram e vieram com inúmeras discussões, embates e obstáculos para chegarmos à realidade de
políticas acessíveis e afirmativas para as mulheres negras.
No contexto atual, em pleno século XXI, ainda deparamos com algumas situações de impacto emocional
e psicológico, uma vez que a desigualdade de gênero e a desvalorização da mulher negra na sociedade são
visíveis. É acarretado de uma luta simbólica que se perpetua por anos com impactos sociais, políticos e
econômicos.
Na perspectiva de Lima, Rios e França (p.55, 2013) “As desigualdades de acesso a determinados ramos de
atividade, assim como o ingresso em ocupações menos formais, estão fortemente mediados por fatores que se
relacionam com a discriminação de gênero e raça.” E com isso refletimos para com as situações que desfavorecem
a mulher negra nos espaços de poder.
É um dos fatores de suma importância e são classes sociais, pois é por meio delas que deparamos com
situações de inúmeras exclusões e acabam que desfavorecem acessibilidade, inserção e o acesso às esferas de
poder como aborda Bruschini e Lombardi, (2000, p.85):

As mulheres provenientes das classes mais pobres (majoritariamente negras)


dirigem-se para os empregos domésticos, de prestação de serviços e também para os
ligados à produção na indústria; enquanto as mulheres de classe média, devido às
maiores oportunidades educacionais, dirigem-se para prestação de serviços, para
áreas administrativas ou de educação e saúde (BRUSCHINI E LOMBARDI, 2000,
p. 85).

Ao discutirmos sobre classes sociais direcionados à mulher negra é perceptível que no ranking de
desigualdade social, a mulher negra está no topo, pois a mesma ainda se perpetua por inúmeros fatores que
dificultam o acesso à renda, moradia, educação, economia e outros. Segundo Bento (2009, p. 479,). “Há décadas
a mulher negra vem sendo apontada como aquela que experimenta a maior precariedade no mercado de trabalho
brasileiro. Entretanto, os estudos que aprofundaram a perspectiva de gênero raramente levam em consideração a
variável cor.”
E ainda lidamos com a realidade de estarmos em um país racista e discriminatório que, na verdade, o
homem ainda ocupa os mais importantes cargos e tomadas de decisões, e então ainda as mulheres negras são as
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 163

que recebem os salários inferiores, pois elas se encontram em espaços que dificultam a acessibilidade de
ocupação.
Um fator determinante é que ainda deparamos com a realidade da mulher na TV ser a pobre, bandida,
escrava; pois são papéis com características e padrões delimitados, a mulher negra de acordo a essa realidade não
se “enquadra” em outros papéis. E com isso vivemos estereótipos e falta de representatividade das mulheres
negras.

Nesse sentido, o racismo também superlativa os gêneros por meio de privilégios que
advêm da exploração e exclusão dos gêneros subalternos. Institui para os gêneros
hegemônicos padrões que seriam inalcançáveis numa competição igualitária. A
recorrência abusiva, a inflação de mulheres loiras, ou da “loirização”, na televisão
brasileira, é um exemplo dessa disparidade. (CARNEIRO, 2003:119).

É interessante que na política a representatividade das mulheres negras é escassa, pois as mesmas ainda
se encontram visibilizadas, pois existem inúmeros fatores para isso, um deles é política afirmativa, recursos para
investimentos, histórico social das mulheres negras no Brasil e entre outros contextos. De acordo com Ribeiro
(2008, p. 988):

Isso é reflexo de uma sociedade que avança em garantia de direitos, mas se mantém
descompensada pela continuidade de regimes excludentes, como o racismo e o
machismo. Obtivemos avanços na agenda política? Sim, muitos! Porém, não o
suficiente para destruir as mazelas deixadas pela escravidão e pela abolição
inacabada. Com isso, surgem novas perguntas, indagações e proposições, sobretudo
no que diz respeito à busca de visibilidade político-social e melhores condições de
vida para mais da metade da população – os negros.

A princípio, os movimentos feministas vão ganhando espaço, uma vez que é por meio deles que
usufruímos de diversas conquistas que eram inviabilizadas para mulher. Hoje se encontra como um movimento
forte e que luta por políticas afirmativas, visibilidade para a mulher negra, inserção da mulher negra nos espaços,
equidade racial, igualdade de gênero e entre outros fatores. E com isso é interessante que Carneiro (2003. p.2003)
aponta:

As denúncias sobre essa dimensão da problemática da mulher na sociedade


brasileira, que é o silêncio sobre outras formas de opressão que não somente o
sexismo vem exigindo a reelaboração do discurso e práticas políticas do feminismo.
E o elemento determinante nessa alteração de perspectiva é o emergente movimento
de mulheres negras sobre o ideário e a prática política feminista no Brasil.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 164

Em resumo, elencamos alguns pontos que evidencia a importância da representatividade das mulheres
negras nos espaços de poder, uma vez que precisamos destes. Na educação a Lélia Gonzalez (1935-1994) é um
ícone de representatividade, na política a Benedita da Silva (1942 – até os dias de hoje) e Marielle Franco (1979-
2018) duas mulheres negras de trajetórias espetaculares e com lutas e conquistas de espaços e transformações, na
TV, atriz Thaís Araújo que representa e contribui para a lutas das mulheres negras.
No mundo encontramos vários ícones que representam as mulheres negras, é importante destacarmos mais
alguns nomes: Djamila Ribeiro, Viola Davis, Adriana Barbosa; Elisa Lucinda, Diva Guimarães, Aretha Franklin
Bessie Coleman; Ellen Johnson Sirleaf, Luiza Bairros, Anita Canavarro e entre outras.
Conclui-se que necessitamos de políticas acessíveis com efetividade para que venhamos ter mulheres negras
em espaços de poder, pois precisamos de visibilidade, ocupação, respeito de igualdade e equidade em todas as
esferas.

Mulheres Negras: Trajetórias Históricas com resultados afirmativos e exitosos


Ao falarmos do Estado do Tocantins é importante salientarmos que somos uma diversidade cultural
gigantesca e com trajetórias históricas de mulheres que lutam diariamente pelos seus espaços na sociedade, mas
com enfrentamentos e lutas que toda mulher negra passar e vivência.
Somos oriundas de famílias de classes com pobreza de políticas de acessibilidade e também afirmativas,
mesmo assim não esquecemos que temos fortaleza nas lutas que enfrentamos e acreditamos na ocupação dos
nossos destes espaços são nossos por direito social e constitucional, uma vez que na LEI Nº 12.288, DE 20 DE
JULHO DE 2010 enfatiza que:

Art. 2º É dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades,


reconhecendo a todo cidadão brasileiro, independentemente da etnia ou da cor da
pele, o direito à participação na comunidade, especialmente nas atividades políticas,
econômicas, empresariais, educacionais, culturais e esportivas, defendendo sua
dignidade e seus valores religiosos e culturais.

Diante disso, precisamos ocupar nossos espaços nas instâncias políticas; na TV, nas mídias; na educação;
na economia e em vários espaços para que possamos ser ouvidas e representadas.
A vida nunca disse que as coisas seriam fáceis, principalmente para uma criança negra que morava “na
roça” e era filha de lavradores. O que chama atenção é o fato de que iniciou sua vida estudantil com sete anos de
idade em uma escola do meio rural, a qual já se encontra fechada, segundo os moradores do lugar, pelo fato de
não ter alunos para estudar. Então foram três anos de muita luta e obstáculos a serem superados, pois andava
horas todos os dias até a escola. O que dificultava esse trajeto eram dois córregos que precisavam ser atravessados
tanto na época da seca, quanto na época da chuva.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 165

No ano seguinte deslocou-se para Natividade para continuar os estudos. Estudou em duas escolas até
concluir o Ensino Médio. Durante esse período residindo em Natividade-TO trabalhou em dois serviços e ainda
se comprometeu a estudar, com apenas 18 anos.
Outro aspecto importante é que mesmo com todos os obstáculos e, sabendo das dificuldades dos seus pais,
prometeu a eles que entraria em uma Universidade Federal assim que terminasse o Ensino Médio e realmente no
ano de 2013 esse sonho concretizou.
Adentrou ao Curso de Pedagogia da Universidade Federal do Tocantins e assim se passaram quatros anos
de muito compromisso e dedicação, realizando um sonho. A pesquisadora tem orgulho de todo esse trajeto
estudantil que a universidade proporcionou, principalmente de se reconhecer mulher negra e com
comprometimento com as causas que afetam aos negros, buscando atuar sempre que houver injustiças contra a
negritude, procurando soluções cabíveis diante dessas situações críticas. Sendo uma dessas contribuições, o
compromisso de trazer um retorno para sua cidade.
Em consequência disso, realizou uma pesquisa no Distrito do Príncipe-Natividade-TO com o tema
Aplicabilidade da lei 10.639/03: Escola Municipal Dona Josina Pereira Nunes – Distrito de Príncipe -
Natividade/TO com o intuito de levar essa discussão para esse espaço e contribuir para inserir essa lei dentro da
referida escola e até instigar os educadores a aprofundarem as discussões sobre a mesma. A pesquisadora entende
que ao sair da universidade e não levar esse retorno para o lugar de onde ela é, seria uma falta de compromisso
da parte dela.
Na verdade, durante no seu período estudantil na educação básica, nas escolas públicas não se ouvia os
professores falarem sobre diversidade, identidade ou até falarem sobre negros de forma positiva, tanto que os
atos discriminatórios na escola eram muito frequentes, assim como o racismo e entre outros preconceitos.
Entretanto, a pesquisadora entende que esse trabalho de valorização étnica deveria ocorrer desde a Educação
Infantil, para formar adultos que respeitem a diversidade e consigam se perceberem como negros.
Retomando a discussão das próprias descobertas da acadêmica/pesquisadora, mulher negra e professora,
está tem consciência do fato passar a conhecer muito mais sobre os negros na universidade, as cotas, por exemplo,
e era algo que desconhecia, se reconhecer como mulher negra, descobrir sua própria identidade, aprender a
respeitar as diversidades culturais, entre outros fatores. Compreende que isso era papel das escolas, no entanto
isso lhe foi negado na educação básica. Fica visível o quanto se precisa de sujeitos que mudem esse quadro
lamentável que afeta o Brasil, um mundo composto de uma diversidade exuberante que é negado de ser estudado
nas escolas.
Conclui-se que ser mais uma mulher negra possuindo uma graduação na Universidade Federal do
Tocantins, com 23 anos, concursada com 24 anos e hoje Supervisora Educacional, filha de sujeitos de classe
baixa, sendo irmã de cinco meninos e duas meninas, única filha graduada, é um orgulho para os pais, uma afronta
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 166

muito grande para a sociedade e completamente transformada para lidar com uma sociedade que é racista e
preconceituosa em todas as esferas políticas, sociais e econômicas.
E com isso a autora criou um formulário onde pudesse ter contato com mulheres negras de algumas
cidades do Tocantins, com inquietações como: Nome, idade, lugar onde mora; formação, cargo de ocupação,
pequena bibliografia; o que achava da representatividade negra no Tocantins e permissão para publicação dos
formulários. Na verdade, foi uma pesquisa online e que coletamos informações de suma valia.
Na pesquisa encontramos mulheres com realidades diferentes, mas com lutas e realidades similares, que, com
muita disposição, autorizaram a inclusão das suas bibliografias no referido texto. Diante disso, uma delas relata
que:

Mulher negra de família humilde que sempre buscou através dos estudos meios para
conquistar seu espaço, sabemos da luta e do peso que carregamos quando levamos
conosco a pele negra, passamos a vida mostrando a sociedade que a nossa cor não
diz quem somos, não reflete o nosso caráter.... Hoje conquistei o meu espaço e essa
conquista fortalece mais ainda quem eu sou "MULHER NEGRA. (LEI DAYANE,
2020)

E ela é uma mãe de família, formada em Pedagogia, residente na cidade de Gurupi-TO e se encontra no
cargo de professora.
E seguimos com outras mulheres negras protagonistas de histórias, como a: “Menina humilde, que viveu
sua infância na roça, onde realmente descobriu o que eu sou, mulher preta. Que hoje estuda em Universidade
Federal” (CLAIS PINTO TEIXEIRA, 18 anos), outra mulher negra, residente na cidade de Gurupi-TO,
universitária, entrou na universidade por meio de cotas, cursando engenharia civil e filha de lavradores e dona de
casa.
É além mas encontramos uma mulher que faz uso do trabalho informal, residente em Arraias-TO, formada
em Pedagogia e relata:

Mulher preta, militante, pedagoga de formação, hoje dona do meu próprio negócio e com
planos para melhoria do mesmo. Não meço esforços para defender o que penso, que mesmo
quando me calo para não inflar egos, estou em busca de conhecimento e melhoria como
pessoa. (MARAYNNE PONTES, 24 anos)

Além disso, no círculo dessas mulheres que participaram dessa pesquisa, uma mulher negra, transista
pedagoga e visitadora do programa criança feliz, descreve: “Sou De Arraias-To, nasci, cresci, estudei, me formei
e trabalho nessa cidade que tanto amo. ” (JOSINEIDE FERNANDES, 24 anos).
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 167

É continuamos com outra mulher negra, residente na cidade de Brejinho de Nazaré -TO, professora, dona
de casa, possui sua própria escola, e conta:

Eu nasci em um município de Paranã do Tocantins, filha de um lavrador e uma


professora, tenho 5 irmãos sou casada, tenho um filho. Sou formada em Educação
física, formei em uma faculdade particular, meus pais trabalharam muito para pagar
meus estudos e dos meus irmãos. Mas durante esse tempo de faculdade, trabalhei em
vários locais para ajudar meus pais. Hoje, graça a Deus primeiramente, depois meus
pais, tenho meu trabalho fruto dos meus estudos. (KLEIA RAMOS, 33anos)

E ainda temos mais uma outra, encontramos uma outra mulher residente em Palmas - TO, universitária,
servidora pública, influenciadora digital e com isso relata: ” Brasiliense residindo no Toca há 8 anos, servidora
pública e estudante de arquitetura, se arriscando no mundo do empreendedorismo e tudo mais que vem em
mente” (CAROLINA ALVES, 25anos).
É interessante que as mulheres negras necessitam de brigarem pelos seus espaços e sem esquecer que a
lutas são diárias e contínuas, com isso uma mulher negra; empoderada; assistente social e residente em Palmas
descreve: “Assistente social, mestre em Comunicação e sociedade, mãe de duas crianças negras, militante do
Coletivo Feminista Ajunta Preta e do Movimento Negro Unificado. ” (JANAINA COSTA RODRIGUES, 37
anos).
Portanto, viável que buscamos várias mulheres negras com contextos parecidos como a professora, dona
de casa, reside em Gurupi – TO:

Nasci no interior de São Paulo, no bairro mais perigoso da cidade. Filha de pais
separados, eu só almejava trabalhar em mercado, faculdade era coisa fora de
cogitação na minha família. Não fui criada com o estímulo de fazer uma faculdade e
sim de pelo menos ter um emprego. Mas na fase adulta percebi a importância dos
estudos e descobri que eu poderia ir além. Fiz faculdade pública mudei a minha
história e fui a primeira pessoa da minha família com graduação. (FERNANDA
CRISTINA RODRIGUES,2020).

É com isso seguimos com outras mulheres com relatos como:

Meu nome é Lidineia Pereira de Almeida, solteira, 26 anos, natural de Posse-GO,


atualmente moro em Paranã-TO com meus pais e minha filha. Sou Quilombola da
Comunidade Baco-Pari do interior do Goiás, mudei-me para Goiânia com 17 anos
em busca de emprego, trabalhei como: balconista, babá, manicure e outros. Não era
o que almejava para minha vida, porém era o que me propiciava no momento, até
mesmo por ser de familia humilde, trabalhadora e oriunda de uma grupo de minoria
que ainda hoje sofre preconceito devido o que aconteceu no antepassado. Na
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 168

intenção de quebrar o estigma imposto pela sociedade em relação ao preconceito


racial imposto aos negros, eu como mulher negra, descendente quilombola, decidi
estudar, buscar conhecimento ao ponto de conseguir me ingressar no curso de
Licenciatura em Pedagogia na Universidade Federal do Tocantins (UFT) e
posteriormente me especializar em Gestão e Coordenação Pedagógica, por fim, com
propósito de ingressar no Mestrado no ano de 2021 dando continuidade a meu
sucesso profissional e pessoal.( LIDINEIA PEREIRA DE ALMEIDA , 2020).

Então, seguimos com uma mulher de 27 anos que estuda medicina, mora em Gurupi – TO e enfatiza que é

Mulher; preta; baiana; estudante de Medicina. Passei pela transição capilar há 4 anos,
e antes não era vista como preta por causa do cabelo. Hoje, estar em alguns lugares
como, centro cirúrgico, as brincadeiras sobre ter um cabelo afro e colocar uma touca
são sempre presentes. A minha cor só passou a ser vista quando assumi meu cabelo
natural. (Élida Ferreira Lopes Landin , 2020)

Com isso percebe-se o preconceito que ela encontrar no espaço do qual está em formação por possui o cabelo
crespo. Diante a isso, “[...]o preconceito seria apenas a crença prévia (preconcebida) nas qualidades morais,
intelectuais, físicas, psíquicas ou estéticas de alguém, baseada na ideia de raça. Como se vê o preconceito pode
manifestar-se, seja de modo verbal, reservado ou público, seja de modo comportamental, sendo que só nesse
último caso é tido como discriminação” (GUIMARÃES, 2004, p.18).
Encontramos aqui vários relatos por meio das falas das entrevistadas, cada uma com sua luta, mais com
pontos fortes de resistência, preconceito, de batalha diária e entre outros fatores. Não poderíamos esquecer que
as mesmas relataram suas inquietações com a falta de representatividade negra no estado do Tocantins, por meio
de uma entrevista, logo em seguida na tabela.
TREVISTADAS COMO VOCÊ ANALISA A REPRESENTATIVIDADE DA MULHER NEGRA NO TOCANTINS?

Daiane, 36 anos Pouquíssima... Não como deveríamos

s Pinto Teixeira , 18 anos Está sendo valorizada de pouco a pouco, porém necessitamos, mas ainda de reconhecimento, pois somos capazes de
o que queremos ex: engenheira. Mulher linda

aynne pontes , 24 anos Ainda acho fraca, mesmo conhecendo mulheres maravilhosas do meio

eneide Fernandes,24 anos Acredito que nos dias de hoje é bem forte, mas precisamos e queremos muito mais.

a Ramos , 33 anos Ainda muito muito pouco valorizada

oline Alves ,25anos Felizmente é um grupo que vem crescendo bastante, quando cheguei em Palmas não percebia tanta
representatividade. Hoje sinto bastante e inclusive internamente fui muito mudada, acredito que por ter mais exemplos
influentes a minha volta, de maravilhosas e fortes mulheres negras que lutam tanto por seu lugar de destaque na sociedade
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 169

aina Costa Rodrigues ,37 anos Ainda muita pequena ñ estamos na Câmara de vereadores e na prefeitura Municipal, por exemplo. Demos alguns
passos em relação a ocupar cargos públicos, mas ainda não chegamos em lugar de prestígio social. Estamos organizadas em
movimentos feministas de autor representação como o coletivo Ajunta Preta

nanda Cristina Rodrigues,30 anos Percebo que apesar do Tocantins ter uma população negra e parda proporcionalmente maior, comparado ao estado
de São Paulo, no qual nasci e vivi por um bom tempo, a representatividade da mulher negra ainda é tímida. Não é comum ver
no Tocantins mulheres negras em funções de destaque e muito menos a sua beleza sendo exaltada, ou mostrada nos canais de
TV local, entre outras ações que possibilitam a representatividade. Um exemplo da falta de representatividade é que meus
alunos de 2° ano do ensino fundamental me adoram e fazem semanalmente cartinhas para me presentear como um gesto de
carinho, porém ao me retratar nas cartinhas me pintam com cores claras e cabelos loiros. Vejo que ainda precisamos avançar
e muito para efetivar a representatividade da mulher negra no estado do Tocantins.

neia pereira de almeida , 26anos É o primeiro lugar onde morei que vi tanta representatividade de mulheres negras, ocupando cargos importantes e
de grande concorrência. Porém, ainda estamos longe de ocupar de fato o lugar onde merecemos estar.

a Ferreira Lopes Landin, 27 anos Vejo que as pessoas ainda tem um receio em se considerarem pretas. A cor ‘morena’ é ainda muito descrita por
aquelas que não gostam, Por não entenderem, ou pelo próprio preconceito em se assumirem pretas. No meu meio social, as
mulheres são maioria e possuem um ótimo desempenho universitário, mas as mulheres pretas, seguem sendo a menor
porcentagem nos centros cirúrgicos e salas de aula tanto quanto alunas como professoras. Ainda, somos muito pouco
representadas.

udenira Ferreira de Almeida , 33 anos Temos pouquíssima representação, embora seja um estado erguido por braços fortes e por muitas colunas servicais
negras, nas mídias televisivas locais não vejo, mas temos sim no estado personas fundamentais, como Dona Romana em
Natividade, alguns cantores como Chico Chocolate e Genésio Tocantins, temos ainda uma forte representação na área das
artes, do teatro, das manifestações artísticas populares em Taquaruçu o senhor Iwtemberg Tawera. E por último não menos
importante, considero-me uma representação de mulher negra no carnaval de Gurupi por três vezes consecutivas como rainha,
e por mérito professora em uma instituição federal, na qual estou não pela cor da pele, mas pelo currículo, e isso faz empoderar
outras mulheres pretas a seguirem o caminho do estudo. Enfim...temos representantes nos bastidores pouco vistos e
conhecidos.

Tabela 01 – coleta de dados, 2020

Em síntese é visível a inquietação de todas as entrevistadas em relação as representatividades nos


espaços de poder do Estado do Tocantins, algumas elencam a importância das lutas, outras a falta de inserção nos
espaços, outras citam alguns personagens ocultos do Estado, outras enfatizam falta dessa ocupação da mulher no
mundo todo e entre outros fatores.
Conclui- se que de fato precisamos nos unir e buscar formas de ocupação desses espaços, buscar políticas de
acessibilidade para mulheres negras, cadeiras em cargos importantes na educação, na política, na sociedade e
saímos dos lugares que somos apenas encaixadas para estar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao abordarmos sobre esse tema é manifestada algumas inquietações que passamos a todo instante, como
somos preparadas no nosso contexto familiar? Como somos vistas pela sociedade? Onde queremos chegar? Até
que ponto somos respeitadas? E com isso é interessante uma análise de equidade nos espaços.
Na verdade, vivemos em contextos familiares que somos ensinadas que devemos ser mulher negra passiva e
silenciosa diante as lutas. Então com essa realidade passamos a correr do nosso papel enquanto mulher negra na
sociedade e acabamos sendo excluídas é invisibializadas. Diante dessa realidade, fomos preparadas para ser
silenciosa a não ir à luta para conquistar nossos direitos.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 170

Não poderíamos esquecer que hoje nos encontramos em um mundo com movimentos feministas que
contribuem para romper com as barreiras impostas pela nossa sociedade; como trabalhar em prol de formação
política; conquistas de espaços; visibilidades negras; utar contra a violência contra a mulher; lutas pelos direitos
sociais; econômico e político das mulheres pretas que são excluídas.
Em síntese o referente texto elabora uma reflexão crítica em relação à mulher negra no espaço de poder e
suas lutas diárias nas diversas esferas com representatividades negras, com isso precisamos de ocupação e
necessitamos de mais mulheres negras na política; sociedade, na educação; na tv; nos cinemas; na música e entre
outros lugares. A nossa voz precisa ser ouvida e estampada em todos os espaços de poder.

REFERENCIAS
Dossiê mulheres negras: retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil / organizadoras:
Mariana Mazzini Marcondes... [et al.].- Brasília : Ipea, 2013.160 p. : gráfs., tabs.
BRUSCHINI, C.; LOMBARDI, M. R. A bipolaridade do trabalho feminino no Brasil contemporâneo.
Cadernos de pesquisa, n. 110, p. 67-104, 2000.
LEI 12.288. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Preconceito e discriminação. São Paulo: Editora 34, 2004.
BENTO, Maria Aparecida da Silva. A mulher negra no mercado de trabalho. Revista Estudos Feministas. Ano
3.
CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. Estudos Avançados, São Paulo, nº 49.2003.

BIOGRAFIA
Eliane pinto Teixeira , professora , escritora , licenciada em pedagogia , pós graduada em História e cultura
afro brasileira. Pós graduanda em gestão escolar . morando em Gurupi e natural de natividade Tocantins

Marquilia Resplandes Carneiro Borges, há dez anos professora da Rede Municipal de Educação de
Gurupi-TO, graduada em Letras Português e Inglês e suas respectivas literaturas e Pedagogia, especialista
Língua e Literatura Portuguesa e Coordenação Pedagógica. Também atuo como revisora e crítica
literária.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 171

CAPÍTULO 17
PARTIDOS POLÍTICOS GÊNERO E RAÇA :
A INSERÇÃO DA MULHER NA POLÍTICA NACIONAL E A IMPORTÂNCIA
DA REPRESENTATIVIDADE NEGRA NESSES ESPAÇOS

IVALDA KIMBERLLY SANTOS PORTELA

INTRODUÇÃO
O interesse pela construção da pesquisa envolvendo as seguintes temáticas Partido Políticos, Gênero e
Raça, surgiu do interesse em pesquisar como seu deu a participação das mulheres na política nacional e como
esse processo está na atualidade frente ao crescimento do conservadorismo. Questões como voto, primeiros
grupos femininos a exercerem esse direito por cidadania legal, como foi e como é o engajamento de mulheres à
frente da representativa de grupos políticos e principalmente destacar a importância do papel da mulher negra
nesses ambientes, sobretudo, nas discussões das pautas feministas cenários esses que por uma linhagem histórica
são em sua maioria representados pelo patriarcado de cunho machistaLGBTfóbico, racista, misógino entre outras
vertentes que oprimem os grupos excludentes da sociedade contemporânea .
O objetivo deste estudo foi destacar as mudanças e conquistas da mulher, de modo a dominar esse espaço,
tendo em vista que sofreu várias formas de agressões e violências para permanecer nesse meio.
Metodologicamente trata-se de um estudo de cunho bibliográfico e documental. Dão suporte a esse debate
as contribuições de estudiosos como, ALMEIDA (2015), PITANGUY (2011), dentre outros autores importantes
no que se refere a abordagem temática em questão. Desse modo, o resultado, ao compararmos com o contexto
histórico, podemos dizer que de uma forma gradual a mulher vem afirmando seu espaço na politicagem.
A construção das atribuições de papeis de gênero na política mundial ocorreu em de formas diferentes nos
diversos países. Iniciando com o movimento sufragista. O movimento sufragista foi um amplo movimento
ocorrido em vários países democráticos do mundo, entre o fim do século XIX e o início do século XX, para
organizar a luta das mulheres pelo direito sufrágio (direito ao voto). Esse movimento foi o ápice dessa
lutamarcando a história do feminismo como o primeiro na luta contra o sexismo e a favor da igualdade de gênero.
Em abril de 1831, Dom Pedro I abdicou do trono do Brasil, retornou a Portugal e deixou aqui seu filho,
uma criança de 5 anos com a missão de ser seu sucessor. A Constituição de 24 de março de 1824, outorgada D.
Pedro I, trouxe o conceito de cidadãos ativos, pessoas capazes de eleger os integrantes do governo local. Embora
uns defendessem a adoção da forma de governo republicano, a maior parte deles preferia manter a monarquia,
apesar do crescente número de pessoas insatisfeitas com o governo de D. Pedro I.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 172

Não foi fácil para a mulher obter o direito de cidadania ao voto aqui no Brasil, o processo árduo e de muita
luta pela extensão desse processo perpassou tempo e envolveu-a a participação de várias pessoas importantes
para que isso pudesse ser concretizado.
A década foi marcada por iniciativas que provocavam os homens públicos a posicionarem-se diante do
assunto, pressionando-os assim a uma decisão favorável à causa sufragista.
Sem aguentarem mais tantas pautas sem êxito, em agosto de 1922, as ativistas brasileiras que lutavam por
pautas na questão de igualdade de gênero e legitimação de direitos, reformulam os propósitos da entidade, que
passava a se chamar Federação Brasileira pelo Progresso Feminino (FBPF), nome desde então associado ao
feminismo no Brasil, sua principal líder, Bertha Lutz, esse grupo era formado por mulheres brancas, intelectuais
da elite brasileira e por aquelas diretamente envolvidas com as lutas sindicais.
Depois de um longo processo deluta e pressão o primeiro estado brasileiro a estender o direito ao voto às
mulheres foi o do Rio Grande do Norte, em 1927. Reforçando a campanha, as feministas da Federação Brasileira
pelo Progresso Feminino, foram até Natal para apoiar as novas eleitoras e sobrevoaram a cidade lançando
panfletos sufragistas. Assim, muitas mulheres correram para as sessões eleitorais para alistarem-se. Duas
professoras, Celina Guimarães e Júlia Barbosa (disputaram o título da primeira eleitora potiguar).
Em outubro de 1930, um grupo de políticos liderados por Getúlio Vargas chegou ao poder e destituiu o
presidente da República Washington Luís, num movimento que eles mesmos denominar. No primeiro esboço da
nova lei eleitoral, em 1931, foi proposto pela subcomissão que o voto fosse restrito a mulheres que tivessem
renda, assim, solteiras dependentes financeiramente ou casadas que fossem donas de casa estariam fora da
proposta, apenas as viúvas ou solteiras com renda própria poderiam votar. As mulheres casadas, mesmo que
também tivessem renda própria, fruto de atividade profissional, só poderiam votar se autorizadas pelo marido.
Sendo assim, as sufragistas protestaram, realizaram conferências e levaram suas deliberações à subcomissão
eleitoral, marcaram reuniões com políticos, participaram de sessões do Congresso, e enviaram telegramas a
parlamentares em busca do direito a cidadania feminina.
Ouvindo o apelo das mulheres a essas restrições, Vargas revisou pessoalmente o texto da comissão, e o
decreto do novo Código Eleitoral, publicado em 24 de fevereiro de 1932 acolheu o voto feminino sem condições
excepcionais, essa pressão deu certo, em parte. Com a aprovação da nova lei eleitoral em 1932, mulheres
brasileiras, maiores de 21 anos, alfabetizadas e assalariadas, passaram a ter o direito ao voto. O sufrágio para
todas as mulheres ocorreu em 1965, sendo assim todas as mulheres brasileiras conquistaram o direito de votar e
serem votadas.

Processo de Inserção e Permanência Feminina


Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 173

O processo de inserção do gênero feminino na sociedade civil e política foram através de várias quebras
de barreiras e rompimento de tabus que atravessavam os olhos machista e preconceituoso da época.
Pensar no papel social desempenhado pelas mulheres na sociedade brasileira (mais especificamente sob
a ótica da política) é sempre um exercício interessante, principalmente quando levamos em consideração uma
sociedade como a nossa, construída sob a égide do machismo, do patriarcalismo, na qual o homem sempre ocupou
o espaço público e a mulher, o privado.
Na perspectiva do patriarcado, a mulher que sempre foi considerado como o sexo “frágil”, criada para o
prazer do marido, cuidar das atividades domésticas do lar e procriar. “E para o fato de que “enquanto os homens
podiam esperar ter uma variedade de ambições e habilidades, as mulheres eram destinadas desde o nascimento a
serem mães e esposas em tempo integral” Hahner (1981)”.
A ausência da mulher no universo da politica é o reflexo de como as mesmas eram invisibilizadas em
várias esferas, sejam elas social, econômica, política e cultural. No final do século XIX surgiram algumas
publicações femininas e vários jornais locais traziam essa pauta, que expressavam os embates da época a respeito
do papel feminino. Nota-se, ao longo da história discussões ocorridas durante a elaboração da primeira
constituição republicana brasileira, em 1891. A assembleia constituinte debateu e vetou o sufrágio feminino. Os
que argumentavam contrariamente se referiam, por exemplo, à inferioridade feminina. É importante notar que,
mesmo num clima de transformações sociais predominou, nessa época, uma clara concepção social de diferentes
papéis para cada gênero.
A partir dos anos 60 as reinvindicações das mulheres brasileiras estavam relacionadas ao momento
político, voltadas para a luta pela abertura democrática e por demandas sociais como política salarial, melhorias
nos serviços públicos, etc. Assim, no ano de 1968 as mulheres participaram do "Movimento Nacional contra a
Carestia; em 1970, do Movimento de Luta por Creches; em 1974, do Movimento Brasileiro pela Anistia; e, em
1975, criaram os Grupos Feministas e Centros de Mulheres." (DEL PRIORE,2004).
No entanto as lutas femininas por espaços de pertencimento têm proliferado nos últimos anos, através de
diferentes tipos de organizações. As pautas por liberdade, igualdade e participação na política tem feito parte de
sua construção histórica sempre em busca do respeito da sociedade, com a quebra de paradigmas permitiu-se a
inserção da mulher nos espaços privados e principalmente públicos.

O protagonismo das mulheres na luta por sua cidadania – em busca de um tempo


perdido – marcou a última metade do século XX. Não se tratava tão somente da
inclusão de um novo sujeito de direitos ou da extensão para as mulheres dos direitos
existentes. Trava-se da construção de um novo direito capaz de abarcar novas
demandas de um sujeito coletivo específico. (LEILA, 2011)

Em 1988 a Constituição Federal que proclamou expressamente o princípio da igualdade jurídica entre
homens e mulheres, no mesmo tempo em que definiu como objetivo fundamental do Estado Democrático
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 174

Brasileiro a não discriminação por motivo de sexo, raça e etnia (ALMEIDA, 2015). A Constituição Federal de
1988 em seu artigo 5º dispõe sobre o princípio constitucional da igualdade, nesse sentido: “Todos são iguais
perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes.” (BRASIL, 1988).
Apesar de todos os avanços, a lei que garante constitucionalmente a participação da mulher na política
nacional não é suficiente, na realidade da política brasileira, a presença da mulher no empoderamento político é
uma das menores do mundo.
Celina Guimarães Viana foi à primeira eleitora do Brasil, do Estado do Rio Grande do Norte, primeiro
estado a eliminar a diferença sexual para fins de exercício do voto. O estado também ganhou destaque, pois a
primeira prefeita do município de Lages (RN), do Brasil e da América Latina foi Alzira Soriano, tendo sido eleita
em 1928 (VIEIRA, 2018).
À participação da mulher brasileira na esfera pública do Estado, âmbito do qual ela foi secularmente
excluída, se deu de forma tímida durante o processo histórico, tanto que a construção da categoria mulher
enquanto protagonista política é algo recente (PITANGUY, 2011). Sua representação ainda continua
desproporcional e a realidade fática vem revelando uma série de entraves à própria concretização dessa política
de inclusão.
Um exemplo disso é a Lei de Cota de Gênero, o estabelecimento das cotas de candidatura – estabelecidas
pelas Leis Federais nº 9.100/95 e 9.504/97, esta posteriormente alterada pela Lei Federal nº 12.034/2009, significa
que o Estado brasileiro reconhece que existem desigualdades de gênero no âmbito político e que medidas políticas
inclusivas são necessárias para promoção do acesso das mulheres aos espaços decisórios de poder (ALMEIDA,
2015). Ainda que essa Lei institucionalize a inclusão de todas essas mulheres no ambiente político, na pratica não
acontece assim, a cota por gêneronão apoia realmente suas candidaturas, apesar do expressivo número registrado,
elas não estão de fato fazendo campanha, ainda vivemos em um ambiente político extremamente masculino, e
isso impacta negativamente na ambição política da mulher.
Outro dado relevante está relacionado ao preenchimento das cotas de candidatura. Desde a reforma
eleitoral de 2009, quando foi instituída, pela Lei Federal nº 12.034/2009, a obrigatoriedade no preenchimento das
cotas, a cada eleição, denúncias sobre o preenchimento fraudulento ou mesmo fictício delas começaram a
aparecer, surgindo, daí, o fenômeno das “candidaturas-laranjas” femininas (JUVÊNCIO, 2013).
A uma ligação também com o fato de os partidos não tomarem um posicionamento muito forte no
recrutamento e apoio de candidatura de mulheres, portanto uma completa falta de incentivo.
Em 1995, com a Lei nº 9.100, introduziu-se no ordenamento jurídico brasileiro as primeiras ações
afirmativas, para as eleições municipais de 1996, voltadas a atingir um quadro mais igualitário entre homens e
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 175

mulheres na política. A mesma Lei de 1995 também sofreu alterações pela Lei nº 12.034/2009, que instituiu
outras ações afirmativas em favor da mulher no âmbito político-eleitoral.
Essas novas ações têm como destinatários, de igual maneira, os partidos políticos, os quais passaram a ter
como função político-social tendo como objetivo principal promover e fomentar a participação da mulher na
política, mas na prática não é o que ocorre. A criação da Lei nº 12.034/2009 reforçou a proteção jurídica da
participação política da mulher ao alterar o texto do art. 10, §3º da Lei nº 9.504/1997, estabelecendo que cada
partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo.

O Desafio e a Resistência: Feminismo Negro e Política


A inserção da mulher na política nacional foi através de vários acontecimentos muito importante que
fomentaram o cenário mundial, constituindo um grande leque de oportunidades que temos hoje, sendo através
dessa luta legalizado o direito das mulheres as políticas públicas e civis. Apesar dos vários avanços, essas
mulheres pertenciam a um determinado grupo, este que não englobava a mulher de pele negra. A ausência da
mulher negra no universo político é o reflexo de como elas eram e são invisibilizadas em várias esferas sejam
elas: social econômica, política e cultural.
A ascensão pelos direitos femininos na política global era defendida e representada por mulheres
brancas e intelectuais da época, essas de alguma forma conseguiam reunir-se com outras da mesma classe social,
assim rei. A filosofa estadunidense e professora universitária Angela Davis, em uma de suas obras
Mulheres, raça e classe, 1981 afirma que as organizações de mulheres que lideraram o movimento
sufragista nada faziam pela pauta da população negra. Dentro desse contexto, as mulheres negras não
eram incluídas nessas organizações e nem mesmo suas denúncias contra o racismo e a discrimi nação de
gênero eram acatadas.
As desigualdades de gênero e raça no Brasil como se pode observar aconteceram desde os mais remotos
tempos, a mulher sempre viveu num patamar inferior ao homem, em especial na superioridade de uma elite
hegemonicamente masculina branca, no qual eram desfrutados a maior parte dos direitos reconhecidos e
goza de uma extensa esfera de oportunidades.
A mulher negra além das causas e exclusão por gênero se tornava alvo de preconceito sexista e misógino
por seu tom pele. A sobrecarga de responsabilidades associadas ao racismo e às representações estereotipadas
sobre o corpo feminino negro tem causado inúmeros prejuízos às mulheres negras, que a longo tempo vêm
buscado estratégias coletivas como um modo de enfrentamento às desigualdades. A opressão feminina como
um processo discriminatório arraigado numa proporção histórico -cultural em nossa sociedade, remetendo
às lutas dos movimentos feministas, conquistas, desafios que permeiam a atualidade.
Na cidade de São Paulo, foi criada a Frente Negra Brasileira (FNB), em 16 de setembro de 1931, ela é
considerada por historiadores e intelectuais como a primeira organização negra do país. Com um uma dinâmica
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 176

de programação preestabelecido de luta, visava conquistar posições para o negro em todos os setores da sociedade
brasileira. “Preconceito de cor, uma das organizações mais destacada deste período foi a Frente Negra Brasileira
(FNB)”. Ainda segundo o autor as mulheres “eram mais assíduas na luta em favor do negro, de forma que na
Frente [Negra] a maior parte eram mulheres. Era um contingente muito grande, eram elas que faziam todo
movimento” (DOMINGUES, 2007). Santos (2007) observa que

[...] o revigoramento dos Movimentos Sociais Negros, por meio do surgimento do


MMU em 1978, bem com o processo de redemocratização do país nos anos ano
oitenta do século passado, surgem condições sociais para florescimento de uma
geração de intelectuais negros oriundos também dos Movimentos Sociais Negros.
(ibid., p. 230).

O feminismo segue linhas dicotômicas de especificidade não apenas nacional, mas sim de cunho mundial,
tendo como principais causas os direitos das mulheres, o mesmo luta para que as mesmas deixem de ser vítimas
de diversas formas de opressão social. Entretanto o movimento não tinha uma abordagem interseccional e
racial, não pautando, dessa forma mulheres negras passam por uma dupla discriminação, tanto
de gênero quanto de raça. O feminismo negro surgiu nos Estados Unidos, por volta de 1960 e 1980,
especialmente pelo marco da criação da National Black Feminist OrganizationNo Brasil teve início na década
de 1970 com o Movimento de Mulheres Negras (MMN), este se originou a partir da percepção de que
faltava uma abordagem conjunta das pautas de gênero e raça pelos movimentos sociais liderados por
homens negrossobre a importância dos recortes raciais e de gênero nas mobilizações de direitos
humanos. Com o intuito que mulheres negras ganhasse voz e visibilidade perante a sociedade, seguindo pautas
voltadas para as especificidades desses corpos na luta contra o sexismo, misoginia e as demais violências que
durante tempos escravocratas atravessaram o Atlântico.
Lélia Gonzalez é um dos nomes principais e fundamentais no debate do feminismo negro no Brasil. Lélia
Gonzalez foi antropóloga, política e militante brasileira. Fundadora do Movimento Negro Unificado, participou
da fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) e atuou no Partido Democrático Trabalhista (PDT). Filha de pais
pobres e nascida em Belo Horizonte, Lélia se dedicou aos estudos acadêmicos para entender as contradições e
a branquitude na sociedade brasileira. Nisso, ela se aprofundou na militância do feminismo negro e
no Candomblé, para explicar parte da cultura do país.
No período entre 1988-1991 ocorreu um aumento significativo de organizações femininas negras em todo
o Brasil, e em 1993 foi realizado o I Seminário Nacional das Mulheres Negras em Atibaia-SP e em 1994, o
segundo encontro, com o objetivo de refletir sobre os aspectos relacionados às desigualdades de gênero e de raça,
o direito a terra, à habitação e as políticas públicas voltadas para a saúde. Segundo pesquisas da autora
((Figueredo, 2018) entre as épocas dec1988-1991 ocorreu um aumento significativo de organizações femininas
negras em todo o Brasil, e em 1993 foi realizado o I Seminário Nacional das Mulheres Negras em Atibaia-SP e
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 177

em 1994, o segundo encontro, com o objetivo de refletir sobre os aspectos relacionados às desigualdades de
gênero e de raça, o direito à terra, à habitação e as políticas públicas voltadas para a saúde.
Com o passar do tempo outros grupos negros formados por lideranças femininas foram ganhando força e
se destacando como, por exemplo: O GELEDES – Instituto da Mulher Negra, em 1988 que se reuniram na casa
de uma das integrantes e fundaram uma organização política de mulheres negras que tem como objetivo lutar
contra o racismo e o sexismo na sociedade brasileira. CRIOLA fundada em 1992, cuja atuação está voltada para
a defesa e promoção dos direitos das mulheres negra. Em 2010 foi criado o ODARA: Instituto da Mulher Negra,
uma organização negra feminista de combate ao racismo, sexismo, a lesbofobia. O Instituto surgiu para se opor
ao racismo e ao sexismo, através do empoderamento das mulheres, tanto no sentido econômico, quanto social e
político.
No meio nacional alguns nomes de mulheres negras se destacaram como participantes fundamentais na
formação dos movimentos Negro e Feminista, estas são: Luiza Bairros, Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez,
Sueli Carneiro, Edna Roland, Jurema Werneck, Nilza Iraci, Matilde Ribeiro, que nos anos de 1980-1990
contribuíram intensamente para o debate e a visualização das desigualdades sofridas pelas mulheres negras. A
estes nomes eu acrescentaria: Valdeci Nascimento, Lindinalva Barbosa, Lindinalva de Paula e Vilma Reis
(Figueredo, 2018).
Apesar das inúmeras transformações até hoje as relações sociais são permeadas pelos reflexos do período
escravocrata, mulheres negras têm os piores indicadores com relação ao acesso à saúde, à educação, ao trabalho,
a participação política, a violência doméstica e ao feminicídio, estas por sua vez amargam a falta de oportunidades
enquanto lutam para transformar suas histórias de vida e de seu coletivo, lutando por direitos de igualdade ao
acesso básico.

Representação e Representatividade de Gênero: a nova política no cenário nacional


Na política nacional a primeira mulher negra a alcançar êxito foi a Antonieta de Barros, primeira deputada
estadual em 1934, no estado de Santa Catarina, esta por sua vez foi a percussora para que mulheres negras
entrassem e mudassem a política. Theodosina Rosário Ribeiro (MDB/SP), 1970 e Benedita da Silva (PT\RJ),
1984 também foram símbolos de representatividades políticas para época nomes como: Marina Silva
(REDE\AC), Janete Rocha Pietá (PT\SP), Olívia Santana (PCdoB\BA), Leci Brandão (PCdoB\SP) e a Claudete
Alves, que foi autora da Lei 13.707/03, que instituiu o 20 de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra.
Nas décadas de 1980 e 1993, as mulheres foram construindo sua participação no cenário político com as
vitórias eleitorais de prefeitas, governadoras, vereadoras e deputadas (estadual ou federal), ganhando cada vez
mais destaque no cenário nacional. Um momento importante que marcou a presença nos cenários atuais está
relacionado a vitória do Partido dos Trabalhadores - PT à Presidência da República, 2004. Ao tomar posse, Lula
cria a Secretaria das Mulheres com status de movimentos feministas e de mulheres participam do governo.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 178

O governo de Luiz Inácio Lula da Silva assumia o compromisso de incorporar a perspectiva de gênero
nas políticas públicas reconhecendo e enfrentando as desigualdades entre homens e mulheres nas várias instâncias
políticas de gestão governamental, configurando-se enquanto políticas de Estado.
No dia 31 de outubro de 2010, ocorreu a eleição da primeira mulher presidenta do Brasil e Dilma Rousseff
foi a primeira mulher brasileira eleita Presidenta da República, a candidatura feminina mexeu com os movimentos
feministas e de mulheres que se empolgaram com a possibilidade de avanços em termos de políticas de gênero.

“Fui eleita a primeira mulher Presidenta do Brasil 121 anos depois da Proclamação
da República e 78 anos depois da conquista do voto feminino. Somos 52% dos
eleitores, mas apenas 10% do Congresso Nacional. Tenho me esforçado para ampliar
a contribuição feminina nos espaços decisórios – dez Ministérios do meu governo
são comandados por mulheres. Em especial, quero enfatizar que o núcleo central do
meu governo é constituído por mulheres ministras.” [Colóquio Participação das
Mulheres (Nova Iorque), 19/09/2011. Grifo Nosso2014. (BIBLIOTECA
PRESIDENCIA)

Quatro anos depois no ano de 2014, pelo PT, considerado um partido de esquerda, Dilma Rousseff se
reelege como presidenta da república, no entanto seu segundo mantado foi marcado por diversas perseguições o
que acabou gerando apenas dois anos. Em 2016, Dilma foi desligada da função. A ex Presidenta foi alvo de
diversos ataques violentos contra sua integridade, esta passou a enfrentar ataques não só políticos, mas também
misóginos da mídia e dos partidos e parlamentares de oposição ao governo.
Em 12 de maio de 2016 em meio a uma das maiores crises políticas do Brasil, e que levou ao impeachment
de Dilma Roussel, foi aprovado no Senado Federal por 55 votos a 22 o afastamento da presidenta eleita Dilma
Rousseff por até 180 dias, abrindo assim o processo de impeachment sobre seu mandado. Esta mesma foi
substituída por um governo interino do seu então atual vice, Michel Temer.
O atual cenário político no que se refere a questões raciais e de gênero feminino no Brasil se configura
por meio de estudos e ações concretas em diferentes áreas de atuação, tanto em setores públicos quanto privados,
mulheres negras se organizam em movimentos sociais, ONG’s e Conselhos por todo o país, mobilizando-se
contra a prática do racismo, misoginia e do sexismo como foco para a garantia de igualdade de direitos e de
oportunidades.
Os avanços da mulher negra na política são inegáveis, mas ainda há um longo caminho a ser trilhada, essa
participação vem crescendo, porém o déficit ainda é grande, garantir a participação das mulheres negras na
política é um processo de reparação histórica, ainda que a decisão do Superior Tribunal Eleitoral (TSE) tenha
estabelecido uma cota de 30% para candidaturas de mulheres nos partidos, quando se trata especificamente de
mulheres negras não existe nada a com relação a questão racial.
Um crime contra esse corpo feminino negro hostilizado que chocou o país foi o assassinato brutalmente
sofrido pela então vereadora Marielle Franco, no dia 14 de março de 2018, na cidade do Rio de Janeiro. Eleita
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 179

pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), ela foi a quinta mais votada da cidade nas eleições de 2016, com
46.502 votos, em sua primeira disputa eleitora.
A parlamentar logo após sair de uma reunião de jovens negras foi cruelmente executada, sem ao menos
que tivesse chance alguma de defesa. O carro da vereadora foi alvejado com 13 disparos por um carro que se
emparelhou ao dela. Marielle foi atingida por quatro tiros na cabeça, seu motorista Anderson levou pelo menos
três tiros nas costas, ambos vieram a óbito, apenas a assessora de Marielle sobreviveu. Até o presente momento
várias hipóteses já foram levantadas, porém ainda não se sabe quem foi o mandante do atentado e por que, o que
temos plena certeza é de que sua execução foi um ato extremamente covarde, sem nem ao menos ter tentado ser
disfarçado de roubo ou outro motivo externo. Esse fato mostra como que o crime organizado tem sua maneira de
mostrar como está no controle e por cima de qualquer um que mexa com ele ou o incomode, deixando com isso
bem claro seu recado.
Marielle deixou seu legado na política nacional, pós sua morte sobre a sub-representação de pessoas
negras na política aumento, muitas mulheres negras próximas a ela foram eleitas, sua coragem e determinação
despertaram desejo de luta e inquietação como parte de um projeto coletivo, amplo e contínuo de emancipação e
transformação social que tem orientado as experiências de organização e de resistência das mulheres negras desde
o período da escravidão, até os atuais movimentos feministas negros.
A mulher no poder incomoda e fere o ego machista, opressor da sociedade patriarcal, a qual esses
diferentes tipos de violências estão enraizados, sendo essa mulher de pele negra isso é ainda. Havia muito ódio
contra a Marielle, e ainda há contra outras políticas que são bem parecidas com as dela, pelo fato de representarem
as categorias oprimidas em nossa sociedade o que acaba gerando um desconforto ao sistema negropolitico,
homofobico e sexista presente em nosso meio.
Assim como Marielle existem outras “mariellles” que representam a voz de quem não é ouvida nos
espaços de poder. A violência contra corpos feminismo na política ceiva a participação e pune as que participam,
restringe a representação e o acesso à política de um grupo majoritário, pois as brasileiras são maioria da
população e do eleitorado. Assim, impedimentos para que problemas como o da violência de gênero adentrem o
debate político.
A execução da vereadora Marielle foi um ato de feminicídio político, um atentado à democracia, ela foi
uma defensora dos direitos humanos. Sua morte é extremamente problemática, mulher negra e feminista, era um
corpo incômodo, que expunha o caráter sexista, racista e lesbofóbico de práticas e instituições.
O fato de que vidas das mulheres continuem sendo ceifadas e que os corpos que caem sejam sobretudo
corpos negros revela a insuficiência das garantias existentes, quando uma mulher negra, que moveu estruturas da
periferia para o espaço da política, é morta, estremece o que foi construído para que a democracia seja um regime
político e social. Nele, as mulheres devem ter assegurada sua atuação e integridade.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 180

“A quantidade de candidaturas e a quantidade de mulheres negras eleitas, mostram


uma assimetria monstruosa. A quantidade de mulheres negras nas listas é pela lei de
cotas, existe obrigatoriedade de 30% candidaturas nas listas dos partidos. Porém, o
que explica a baixa competitividade dessas candidaturas é estruturação da sociedade
brasileira, o baixo nível de autonomia política e material das mulheres negras”,
afirma Lourenço. (AFIRMATIVA)

A complexidade em torno da ampliação das mulheres negras nas instituições partidárias exige a
construção de estratégias eficazes para enfrentar esta problemática. “O partido vai sempre estar estimulando as
mulheres negras a se candidatarem para serem empregadinhas desses brancos, porque no final das contas os votos
delas vão para os candidatos mais votados, que na verdade é aquele que acessou o fundo partidário”, diz Maísa
Vale, pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM\UFBA) e do Odara – Instituto
da Mulher Negra

“As tentativas das mulheres negras de construir com a esquerda revela a origem do
antirracismo no Brasil. Nessas tentativas ocorrem muitas violências por parte dos
donos do poder, das alianças da esquerda contra essas mulheres negras. Quando você
avalia a atuação das mulheres negras na Constituinte, pelo sufrágio no Brasil, na
ditadura militar, na construção dos partidos comunistas, na redemocratização da
nação, na fundação de partidos importantes como o PT e o PSOL, percebemos que
elas sempre estiveram ali. Lélia Gonzalez foi umas das construtoras do PT junto com
Benedita da Silva. Lélia Gonzalez sai do PT por falta de apoio, falta de centralidade
dos debates raciais na agenda do PT. Isso nos anos 80”, lembrou Carol Lourenço.
(AFIRMATIVA)

Desde que o TSE passou a solicitar a declaração raça/cor dos candidatos e candidatas foi possível perceber
um aumento no número dessas candidaturas que não conseguem se eleger.
De acordo com dados do IBGE, em 2017, o Brasil ocupava a 152ª posição entre os 190 países que
informaram à Inter-Parliamentary Union o percentual de assentos em suas câmeras baixas (câmaras de deputados)
ou parlamento unicameral ocupados por mulheres parlamentares em exercício. De acordo com pesquisas eleições
de 2018 foi alcançando o percentual de 15% de mulheres na Câmara dos Deputados, um número baixo tendo em
vista que representam 52% da população. Em 2020 na Câmara são 513 deputados. Desses, 77 são mulheres e
apenas 13 delas são mulheres negras.
Portanto, por mais que essas esferas estejam sendo ocupadas ainda é preciso uma reparação nessas políticas públicas
nacionais, para esse público que não “nasceu apenas da costela de Adão” imposta pela cultura patriarcal de viver em estado
de inferioridade, tenha seus direitos igualitários concebidos, direitos estes de liderança, representação, ou apenas de cidadania
básica. Há décadas mulheres vem lutando pelos mesmos direitos de pertencimento de se adentrarem as esferas públicas e
privadas, lutas estas que em alguns casos acabam interrompendo suas existências vitais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 181

Ainda, a muito para avançar para igualar as mulheres no patamar dos homens, mas já é considerado um
avanço. A representatividade feminina é extremamente necessária quando pensamos nas lutas pelos direitos das
mulheres em um contexto no qual, como se sabe, ainda há muito preconceito, exclusão e violência contra elas. A
luta das mulheres muda a realidade e eleva o desenvolvimento da humanidade.
Seguindo a filosofia “sou, porque somos” também conclamadas por Marielle Franco durante a sua
trajetória, as parlamentares pautam projetos juntas, que englobam a inserção dessas mulheres. A luta contra a
opressão de gênero traz em sua gênese o novo que esta por vir. Quando alguém se manifesta contra o opressor
em qualquer lugar que seja, em qualquer condição que ocorra, ali estará o embrião de novos ventos que soprarão
e trarão novas possibilidades onde o oxigênio era diminuto.
Portanto, ainda que cada uma dessas mulheres eleitas apresente também suas pautas e visões de mundo
singulares. Mas o aspecto da representatividade feminina negra não sai do horizonte: a mulher negra e as pautas
do feminismo negro no poder. Ainda como fonte inspiradora recorre à Simone de Beauvoir em sua citação: “Que
nada nos defina. Que nada nos sujeite. Que a liberdade seja a nossa própria substância.”

REFERÊNCIASALMEIDA, Jéssica Teles de. Análise da participação política feminina no paradigma do Estado
Democrático de Direito brasileiro. Suffragium Revista do Tribunal Regional, p. 25-43.
BIBLIOTECA PRESIDENCIAL. Discurso da Presidenta da República, Dilma Rousseff, durante Colóquio de
Alto Nível sobre Participação Política de Mulheres. Disponível em: <http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/>.
Acesso em: 25 de mar, 2021.
BLOG REVISTA AFIRMATIVA. A trajetória de mulheres negras na política: entre as disputas nos partidos e o
caminho para eleição. Disponível em: <https://revistaafirmativa.com.br/>. Acesso em: 04 maio. 2021.
DEL PRIORE, Mary. História das mulheres no Brasil. Unesp, 2004.
DOMINGUES, Petrônio. Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos. Tempo, v. 12, n. 23, p.
100-122, 2007.
FIGUEIREDO, Ângela. Perspectivas e contribuições das organizações de mulheres negras e feministas negras
contra o racismo e o sexismo na sociedade brasileira. Revista Direito e Práxis, v. 9, n. 2, p. 1080-1099, 2018.
JUVÊNCIO, José Sérgio Martins. A relação entre candidaturas" laranjas" e a lei de cotas por gênero. Encontro
Internacional Participação, Democracia e Políticas Públicas: aproximando agendas e agentes, v. 23, 2013.
LEILA, L. Barsted. Os avanços no reconhecimento dos direitos humanos das mulheres. Autonomia econômica e
empoderamento da mulher, Brasília, Fundação Alexandre de Gusmão, Ministério das Relações Exterior
PITANGUY, JACQuEliNE. Mulheres, constituinte e constituição. Redistribuição, reconhecimento e
representação: diálogos sobre igualdade de gênero. Brasília: IPEA, p. 17-45, 2011.
SANTOS, Sales Augusto dos. Movimentos negros, educação e ações afirmativas. 2007. Tese de Doutorado.
Universidade de Brasília (UnB).
VIEIRA, Else RP. Mulheres no poder: trajetórias na política a partir da luta das sufragistas do Brasil. 2018.

BIBLIOGRAFIA
Ivalda Kimberlly Santos Portela, estudante de licenciatura em Educação Física; 6° semestre; Universidade
do Estado da Bahia ( UNEB)-Departamento de Educação Campus X; Pesquisadora bolsista sobre a
temáticaantirracista nas aulas de Educação Físicado programa AFIRMATIVA pela mesma Instituição.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 182

CAPÍTULO 18
LUTA FEMININA PELO DIREITO À PARTICIPAÇÃO POLÍTICA NO
BRASIL

JESUSLENE PEREIRA DA SILVA


LÊINAD DALLYNE DE OLIVEIRA ALVES
MARIA IONETE PEREIRA DA SILVA
MICAELLE CHAVES MORENO
ALICE JULIANA DE SOUSA

INTRODUÇÃO
A história da humanidade é demarcada por traços de lutas e conquistas, e no que diz respeito à vida das
mulheres isso se tornar ainda mais constante, pois desde muito cedo, sempre prevaleceu por muito tempo no
Brasil e no mundo um modelo de família e de uma sociedade patriarcal, onde neste contexto as mulheres se
encontravam como submissa ao patriarca que por sua vez era o chefe da família, aquele que ditava as regras e
que tomava todas as decisões, inclusive as decisões políticas do país, essas não podendo ser exercida por mulheres
por serem vistas como seres frágeis, nascidas para cuidar da casa, das crianças e do marido.
No entanto, o surgimento de diversos movimentos sociais da história brasileira que se deram através de
mulheres foi de suma importância e fundamental para o processo da quebra de paradigmas onde elas eram vistas
como aquelas que não eram capaz de exercer ou fazer as coisas tão bem ou até mesmo melhores que os homens.
Ao longo da história, diversas mulheres tiveram e estão tendo papeis importantíssimos para o processo de
conquistas de espaço e principalmente para a conquista de direitos dentro da sociedade brasileira, muitas são as
lutas através de movimentos sócias organizado por mulheres para que elas pudessem usufruir de seus direitos.
Como exemplo citamos a escritora e educadora Nísia Floresta que no século XIX publicou a sua primeira obra,
Direitos das mulheres e injustiça dos homens. Nísia foi considerada a pioneira do feminismo no Brasil, pois ela
não somente defendeu o direito das mulheres em seus inscritos, mas aderiu à causa da abolição à época e fez um
esforço na luta por direitos iguais entre homens e mulheres.
Ainda, trazemos avanços significantes das lutas por direitos políticos no Brasil, em especial podemos citar
o movimento sufragista que teve como principal objetivo a reivindicação da garantia às mulheres do direito a
votar e ser votada no Brasil, tendo atuação da bióloga Bertha Lutz que fundou a Federação Brasileira pelo
Progresso Feminino.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 183

Aqui poderíamos trazer diversas histórias de mulheres que se desbravaram com lutas, suor e muita
coragem em busca de direitos iguais para todas as pessoas, porém, somos sabedores de que as lutas por essas e
outras mulheres para constituírem-se como sujeitas históricos de direitos, permeiam por vários séculos. Muitas
pesquisas têm dado destaque ao papel das mulheres deste as sociedades mais antigas. Mas foi com o advento do
feminismo que elas conseguiram mostrar para a sociedade a luta coletiva por direitos iguais entre homens e
mulheres.
O processo de inclusão das mulheres na política é bem recente e se dá principalmente através dos debates
e movimentos sociais liderados por mulheres, pois estas se tornaram exemplo de luta árdua e incansável pelos
direitos de cidadania das mulheres e das minorias no estado brasileiro.
Embora o voto feminino não fosse permitido naquela época não se verifica vedação constitucional nem
legal à sua participação, mas apenas uma proibição tácita ante a exigência de certos requisitos que à época eram
quase que exclusivos dos homens e pelo fato de a Constituição Imperial expressar na forma masculina daí
entendia-se que as mulheres não possuíam o direito ao voto.

Lutas e conquistas pelos direitos das mulheres


A trajetória das mulheres ao longo de toda história até os dias atuais, traz-nos reflexões sobre suas lutas e
conquistas no que concerne à sua participação política em um país em que os homens desde sempre foram são
vistos como aqueles que detém o poder sobre a mulher, as filhas e os filhos, ou seja, sobre a família, em um país
onde as mulheres sempre foram vistas como aquelas incapazes de realizar as atividades que são ditas como
“atividades masculinas”. A posição de submissa sempre esteve presente na figura feminina por ser a responsável
por cuidar da casa, criar (cuidar) das filhas e/ou dos filhos e do marido.
Com o passar das últimas décadas, esse processo tem sofrido muitas modificações e com isso a presença
feminina passa a buscar novos olhares da sociedade sofre si mesma e sobre as demais pessoas ao seu redor.
Barsted (2011) causa-nos a reflexão que a partir do momento em que a mulher busca sua identidade, seus
direitos, seu lugar enquanto cidadã, fatos acontecem, algumas lutas são vencidas, embora outras perdidas, porém
o fato marca uma nova fase no meio feminino, conforme Barsted:

O protagonismo das mulheres na luta por sua cidadania – em busca de um tempo


perdido – marcou a última metade do século XX. Não se tratava tão somente da
inclusão de um novo sujeito de direitos ou da extensão para as mulheres dos direitos
existentes. Trava-se da construção de um novo direito capaz de abarcar novas
demandas de um sujeito coletivo específico. (BARSTED, 2011, p.98)

O surgimento dos movimentos feministas em busca por direitos igualitários tanto na vida pessoal,
profissional, quanto política, trazem às mulheres desejo de mudanças por um mundo justo e igualitário para
homens e mulheres perante a lei. Essa luta já permeia desde muito tempo atrás, embora tanto tempo já se luta,
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 184

ainda há muito que se conquistar, por mais significativo que seja a busca de identidade feminina, as diferenças
ainda existem. A mulher por mais que deseje se impor frente à sociedade, passa por diversas barreiras. Ela é fraca,
ela é pobre, ela é negra, ela é incapaz.
A mulher tratada como um símbolo de sensibilidade e doçura era considerada como a rainha do lar, aquela
que acatava as decisões do senhorio. A mãe zelosa a esposa dedicada. Mas, ao contrário do homem era expresso,
um ser zangado, insensível, e durão, aquele que não chora e não dá carinho para a esposa, para as filhas e filhos.
A mulher passou a desejar deixar para traz essa imagem e conquistar seu espaço na sociedade, lembra-nos
OLIVIERI (2007);

Alguns séculos se passariam até que isso acontecesse e as mulheres virassem


protagonistas da política - embora não muito melhores do que os homens, em termos
de ética. Em Roma, Lívia (58 a.C - 29 d.C), mulher do imperador Augusto e mãe de
seu sucessor, Tibério, conhecia muito bem os negócios do estado e foi praticamente
sócia de seu filho no exercício do poder. (OLIVIERI, 2007, p.1).

A mulher vivia uma condição legal limitada e sem direitos políticos” (OLIVIERI, 2007, p.1). Conforme
Olivieri (2007), esses direitos foram a pouco tempo sendo conquistados, conforme a situação apresentada pela
vivência feminina que estava demarcada pela superioridade do sexo masculino, por outro lado já haviam
resquícios de uma busca pela independência feminina. Tudo se pautava sobre a afirmação de que a mulher deveria
obedecer seu pai e assim se casar com o homem escolhido por ele sem nehum tipo de consulta à pessoa mais
importante desse processo que no caso era a mulher ou mesmo a menina, sendo assim a mulher não estava
submissa tão somente pai, mas também ao marido.
Apesar de todo retrocesso, podemos aqui falar que houve sim vários avanços em relação às conquistas
femininas em todos os aspectos, em especial no político.
Segundo Oliviere (2007, p.1)

[...] teve restrito seu acesso aos estudos e ao exercício de diversos ofícios e
profissões. O mercantilismo confirma o homem como protagonista da história e
devolve as damas ao recesso do lar. Mas não se pode deixar de mencionar figuras
femininas incríveis, como Lucrecia Bórgia (1480-1519), filha do papa Alexandre 6º.,
uma legendária "mulher fatal" que aliou beleza e poder de sedução para tornar-se
instrumento da política de seu pai e de seu irmão. É o também caso de Catarina de
Médici (1519-1589), originária da poderosa família florentina. Ela se tornou rainha
da França, ao se casar com o duque de Orléans a(futuro rei Henrique 2º.), e exerceu
a chefia de Estado, como regente, de 1560 a 1574, com arbitrariedade e despotismo.
Ao mesmo tempo, edificou em Paris o palácio das Tulherias, ampliou o acervo da
biblioteca parisiense, ordenou a ampliação do Louvre e contribuiu para o
engrandecimento da cidade. (OLIVIERI, 2007, p.1).
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 185

Assim, pode-se perceber que os direitos da mulher passaram a ser reivindicados desde o século XVIII e
permeiam até os dias atuais, com avanços bastante significativos, porém a luta a inda não acabou, muito pelo
contrário a luta continua todos os dias.
No lar as mulheres possuem jornada dupla, pois mesmo trabalhando fora de casa, na família o papel de
cuidadora principal sempre esteve ali e por muitas vezes teve que assumir o papel dos dois sexos, ou seja, pai e
mãe, principalmente quando do surgimento da separação, os filhos geralmente ficam com a guarda da mãe ou
mesmo quando a mulher engravidava e acabava cuidando da criança sozinha. Hoje, através da conquista da
guarda compartilhada tem-se contribuído para os processos da igualdade de gênero na formação de seus
descendentes. A mulher aos poucos começa a sentir seu espaço sendo amplo e digno.
Os avanços continuam, aqui citamos a inovação dos avanços de Políticas Públicas voltadas para a
emancipação da mulher, Bartky entende que:

Além da eficácia de políticas públicas voltadas para a redução das assimetrias de


gênero, para a condição de haver uma mudança no perfil da institucionalização
vigente, há que se reconhecer a influência de outros fatores estruturais na reprodução
e ampliação dessas assimetrias: as mudanças sócio-demográficas que interferem no
perfil do emprego; as mudanças do papel do Estado no mundo globalizado; os
desafios colocados pela diversidade racial / étnica; as alterações que vem ocorrendo
na estrutura da família com os múltiplos arranjos familiares, e ainda, as mudanças
no tradicional padrão da divisão sexual do trabalho e nos padrões da sexualidade,
entre outros. (BARTKY 2005, p.5-6).

Enquanto essas Políticas Públicas ganham espaços e se expandem na sociedade a mulher também tem
seus direitos sendo revisitados e assim melhorados, sendo colocados em prática através de cada polícia dessa
criada.
Na Assembleia Geral das Nações Unidas, de 1993, proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas
na sua resolução 48/104, de 20 de dezembro de 1993 publica oficialmente a violência contra as mulheres, em seu
art. 1º:
Para os fins da presente Declaração, a expressão “violência contra as mulheres”
significa qualquer ato de violência baseado no gênero do qual resulte, ou possa
resultar, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico para as mulheres, incluindo
as ameaças de tais atos, a coação ou a privação arbitrária de liberdade, que ocorra,
quer na vida pública, quer na vida privada. (ONU, 1993, p.1)

No entanto, mesmo com esse avanço significativo de reconhecimento mundial que denomina que
violência contra a mulher é qualquer ato de violência baseado em gênero, trazendo consigo um leque mais amplo
de possibilidade de tratar essas violências como um crime, esse número não parou de crescer de forma
considerável, infelizmente, as mulheres continuam sendo mortas por seus maridos, companheiros, namorados,
ou ex-namorados, ex-companheiros.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 186

Outro avanço de muita relevância está na criação da Secretaria de Estado dos Direitos da Mulher, em
2002, que informa:

[...] denominada atualmente Secretaria de Políticas para as Mulheres – SPM


representa outro marco importante. Hoje com status de ministério, passou a conduzir,
no campo das políticas públicas, demandas oriundas de discussões em espaços de
participação popular como as Conferências Nacionais de Políticas Públicas para as
Mulheres, que passaram, a partir de 2004, a propor estratégias de enfrentamento às
desigualdades de gênero, por meio do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres.
(LANDERDAHL; ROSO, 2013, p.1)

Neste sentido, a luta das mulheres por igualdade de direitos passa a se tornar algo pelo qual aos poucos
vai se tornando real em suas vidas, a participação feminina é de total importância, através das conferências a
mulher conquista seu espaço, seus direitos como cidadã, não como coadjuvante, mas como protagonista de seu
papel na sociedade.
Ainda se falando de avanços:

Outras iniciativas, como a implantação do “ligue 180”; a promulgação da Lei nº


11.340 – Maria da Penha (BRASIL, 2006); a elaboração da Política de Atenção
Integral à Saúde das Mulheres – PNAISM - (BRASIL, 2004), que reconhece as
desigualdades de gênero como um dos determinantes sociais da sua saúde; a Política
Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres (BRASIL, 2011) fazem
parte de uma agenda que, dentre outras tantas iniciativas, vem apostando na
superação de desigualdades e na autogestão feminina como princípios fundantes de
sua emancipação e cidadania. (LANDERDAHL; ROSO, 2013, p.2)

Outra grande conquista recente da mulher foi a criação das delegacias de defesa da mulher e das casas-
abrigo e com a criação da Lei Maria da Penha, nº11340, decretada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo
Presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, em 7 de agosto de 2006 que tiveram como principal objetivo
tentar reverter e amenizar esta questão social relacionada à violência contra mulher.
Com o advento e promulgação da Constituição Federativa do Brasil de 1988 acarretou-se aqui e uma nova
identidade feminina. A letra da Lei que diz:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos
desta Constituição; (BRASL, 1988, Art, 5º)

Aqui, a Constituição Federal, veio romper de forma definitiva com qualquer tipo de desigualdade contra
as mulheres e toda discriminação até então existentes em leis esparsas, por isso, considera-se que todas as pessoas
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 187

são iguais, pois leva a entender que a mulher possui os mesmos direitos que os homens, a participação feminina
na sociedade objetiva-se alcançar tudo o que um dia lhes foi negado e que era seu por direito.
O Código Eleitoral brasileiro é do ano de 1932 e por isso entende-se que a participação feminina nas
eleições é, de certo modo, recente na história do Brasil. Instituído pelo Decreto nº 21.076, de 24 de fevereiro
daquele ano, foi o primeiro diploma legal a conferir à mulher a possibilidade de participar na escolha dos
governantes brasileiros. O art. 2º do referido diploma estatui: “É eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção
de sexo, alistado na forma deste Código. ”
Aqui percebe-se que ao trazer a expressão sem distinção de sexo, ele amplia o eleitorado brasileiro para
ambos os sexos, daí em diante, homens e mulheres maiores de 21 anos de idade passaram a exercer o direito de
votar para assim escolherem seus representantes.

Violência política de gênero


Há exatamente oitenta e nove anos a mulher passou a ser vista como cidadã, adquirindo a sua primeira
participação na vida política através do voto. Isso aconteceu graças à primeira onda do feminismo que se espalhou
pelo mundo no século XIX. Com um longo histórico de exclusão a mulher não tinha cidadania, muito menos
direito político.
As primeiras feministas foram as responsáveis por começar a virar o jogo do poder, de forma paulatina,
milhares de mulheres no mundo passaram a votar. No Brasil, o voto feminino ganha um caráter facultativo em
1932, porém com a constituição de 1946, o mesmo passa a ser obrigatório e universal.
Apesar das mudanças alcançadas em menos de um século, ainda nos deparamos com um cenário carente
de participação feminina na política. As mulheres são mais da metade da população brasileira, correspondendo a
52% desta (PELLEGRINO, 2019).
O sexo feminino atua em diferentes grupos, partidos políticos, sindicatos, movimentos e coletivos, o que
nos leva a questionar o porquê da falta de representatividade feminina nos núcleos de poder político.
Gasman e Biroli (2018) em seu artigo, Marielle Franco: democracia, legado e violência contra as mulheres
na política, nos traz uma resposta para esse questionamento:

A violência contra as mulheres na política previne a participação e pune as que


participam. Distorce representação e restringe o acesso à política de um grupo
majoritário – as brasileiras são maioria da população e do eleitorado. Há, assim,
impedimentos para que problemas como o da violência de gênero adentrem o debate
político. (GASMAN; BIROLI, 2018, p. 3)

Ao traçar um mapa das violências vividas pelas mulheres que ocupam cargos políticos ou concorrem a
eles, é visível que há uma violência política de gênero, na qual a literatura internacional lista uma série de
acontecimentos degradantes vividos pelas mulheres como agressões, ameaças, assédios, exposição da vida sexual
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 188

e afetiva, restrições à atuação e à voz das mulheres, tratamento desigual pelos partidos e outros agentes,
repercutindo sobre recursos econômicos e tempo de mídia para campanha política.
No artigo Violência política de gênero afasta mulheres da vida pública de Pellegrino (2019), a autora
apresenta a fala da socióloga Flávia Biroli que descreve existir uma diferença entre forma de silenciamento no
ambiente político e pressupor tipos de silencio como se as vozes das mulheres não fizessem parte do espaço
público.
A violência política de gênero é uma das ferramentas mais bem implementadas como meio de
silenciamento das mulheres, pois está presente em todo o país e a maioria da população não a conhece, apesar de
presenciá-la todos os dias.
O Brasil vivencia esse tipo de violência há muito tempo, no entanto a sua visibilidade surgiu com o
processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), que foi alvo de discurso de ódio e discordância
dentro do cenário político brasileiro.
O destaque e reconhecimento legal da violência política de gênero ocorreu em 2018 com a Ação Direta
de Inconstitucionalidade nº 5.617/2018, onde a Corte Constitucional decidiu a destinação de pelo menos 30% dos
recursos do Fundo Partidário às campanhas de candidatas, sem fixação de percentual máximo. Com essa decisão
a favor do fortalecimento e igualdade entre as mulheres no âmbito da política, houve uma crescente de 50% na
bancada feminista (PELLEGRINO, 2019).
Em países como Bolívia, já existe uma legislação vigente, desde 2012, que tipifica a violência política de
gênero, além de apresentar meios de prevenção e punição de situações que possam ser classificadas como
violência política de gênero.
Dentro desse campo de referência para a violência política de gênero, a ex-senadora Vanessa Grazziotin
(PCdoB-AM), em um artigo para a Folha de São Paulo (2017), cita a Declaração sobre a Violência e o Assédio
Político contra as Mulheres, de 15 de outubro de 2015. Documento elaborado na 6ª Conferência dos Estados Parte
da Convenção de Belém do Pará, realizada em Lima, no Peru.
Conforme a declaração, quanto maior quantitativamente de participação da mulher na política mais
destaque é gerado para a visibilidade da violência de gênero no segmento político. A violência política de gênero
se faz presente na vida de uma mulher em qualquer lugar ou espaço em que ela atue na luta por seus direitos.
A pesquisa mais mulheres na política, realizada pelo Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística
- IBOPE e o Instituto Patrícia Galvão em 2013 trouxe dados relevantes para uma mudança necessária a qual o
Brasil precisa passar:

8 em cada 10 entrevistados consideram que as mulheres, sendo hoje mais da metade


da população, deveriam ter acesso a metade dos cargos no Legislativo, 80%
consideram que as leis deveriam mudar para garantir que haja o mesmo número de
mulheres e homens em todos os cargos políticos eletivos. (IBOPE; INSTITUTO
PATRÍCIA GALVÃO,2013)
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 189

A apresentação desses dados reforça a importância de a sociedade brasileira estar engajada no que se
refere à demanda por mais espaço político para as mulheres, para que possam lutar por seus direitos e tornar o
cenário político de fato igualitário e democrático.
Para, além disso, a pesquisa ainda nos fornece outro dado importantíssimo no que diz respeito à punição
a partidos políticos que não apresentarem lista de candidatos igualitárias.

73% defendem punição ao partido que não apresentar lista de candidatos com 50%
de homens e 50% de mulheres A pesquisa aponta que os brasileiros se mostram
favoráveis a medidas igualitárias: 78% dos entrevistados concordam com a
obrigatoriedade de os partidos políticos apresentarem lista equânime e 73% com a
punição aos partidos que fugirem à regra. (IBOPE; INSTITUTO PATRÍCIA
GALVÃO,2013)

Em 2010, com a eleição da primeira mulher presidente do Brasil e outras várias em posições estratégicas,
era possível observar um amadurecimento por parte dos brasileiros no tocante a representatividade das mulheres
na política. Porém, a pesquisa ressalta o quanto o povo brasileiro anseia por reformas legais que proporcionem
uma maior participação feminina no legislativo.
A pesquisa mais mulheres na política (2013), aponta um aumento mínimo de participação feminina no
legislativo, o que levaria cento e cinquenta anos para alcançar uma paridade.

Breve histórico de mulheres na política


A história de mulheres que estiveram e que ainda estão inseridas na política partidária nos traz a certeza
de que todas as mulheres podem chegar lá e lutar não só por seus direitos, mas também pelos direitos de todas as
mulheres, pois essa é uma luta em prol de uma coletividade. Traremos aqui histórias de mulheres guerreiras que
lutaram e outras que ainda estão lutando por dias melhores para todas as demais.

Marielle Franco

Segundo o site Politize (2020), Marielle Francisco da Silva ou, como foi conhecida Marielle Franco,
nascida no dia 27 de julho do ano 1979, na cidade do Rio de Janeiro. Formada em sociologia, pela PUC-Rio. Ela
foi vereadora, eleita no ano de 2017 pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL). Em sua carreira política,
Marielle foi reconhecida internacionalmente, por ONGs, pelas formulações de projetos de leis e pautas em defesa
dos direitos da população LGBTI e das mulheres pretas e faveladas.
No dia 14 de março do ano 2018, Marielle Franco e seu motorista Anderson Pedro Gomes foram
assassinados dentro de seu carro com 13 tiros. O caso Marielle, como ficou conhecido, foi notícia no mundo
todo e gerou diversas manifestações que, mais de dois anos depois, continuam pedindo justiça e buscando manter
seu legado vivo.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 190

Marielle Franco, mulher, negra, mãe, favelada, ela foi a 5ª (quinta) vereadora mais votada no Rio
de Janeiro, nas eleições do ano de 2016, com 46.502 votos. Iniciando sua carreira como militante em
direitos humanos após perder uma amiga, vítima de bala perdida, num tiroteio entre policiais e traficantes
no Complexo da Maré. Marielle tornou-se mãe aos 19 anos, ela também começou a se constituir como
lutadora pelos direitos das mulheres e debater essa temática na periferia. Marielle lutava pelas questões
feministas, pelas questões relacionadas ao racismo, também pela defesa dos direitos humanos nas favelas
do país. O perfil de seu mandato e de seus projetos buscava por um modelo de cidade mais justo para
todos e todas. ”

Manuela D’ávila
Manuela Pinto Vieira D'Ávila nasceu no dia 18 de agosto no ano de 1981 na cidade de Porto Alegre.
Formada em Comunicação social/jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/RS). Segundo dados do
site da Fgv (2020), no ano de 2004, no auge dos seus 23 anos de idade, tornou-se a vereadora mais jovem de
Porto Alegre ao ser eleita com 1,19% dos votos. No ano de 2006, elegeu-se deputada federal pelo Rio Grande do
Sul na legenda do PCdoB com 7,31% dos votos, tendo sido a candidata mais votada do estado. Nas eleições do
ano de 2010, Manuela foi reeleita a deputada com 482.590 votos (8,06% dos votos), tendo sido, novamente, a
candidata mais votada do estado.

Tábata Amaral
Tábata Claudia Amaral nascida no dia 14 de novembro do ano de 1993 na cidade de São Paulo.
Atualmente Tábata é uma política brasileira eleita deputada federal por São Paulo.
Tábata Amaral foi eleita como Deputada Federal com mandato entre os anos de 2019 a 2023 por São
Paulo. Segundo Portal da Câmara dos Deputados (2021), Tábata Amaral foi eleita com 264.450 votos, tendo sido
a sexta deputada mais votada do Estado de São Paulo. A jovem Tábata Amaral é principalmente uma ativista pela
educação e militante dos direitos das mulheres.

Dilma Rousseff
Dilma Vana Rousseff nascida no ano de 1947 na cidade de Belo Horizonte- Minas Gerais, Economista e
ex-presidente da República do Brasil, eleita como a primeira mulher para presidir o país. Foi ministra da Casa
Civil do governo de Lula no período de 2005 a 2010. No ano de 2010 foi eleita como a primeira mulher presidente,
da história do Brasil. Em 2014, Dilma foi reeleita para o mandato de 2015/2018.
Segundo o site e biografia (2019), no ano de 2015, houve as investigações da “Operação Lava-Jato”, pela
Polícia Federal, onde vários integrantes do governo foram presos e o país entrou em uma grave recessão. O povo
foi às ruas pedir a saída da presidente e por isso no dia 2 de dezembro de 2015, a Câmara dos Deputados aceitou
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 191

um dos pedidos de impeachment contra a presidente, acusada de crime de responsabilidade fiscal e no dia 17 de
abril de 2016 a Câmara dos Deputados votou e aprovou o pedido com 367 votos favoráveis e 137 contrários.
Um mês depois, o processo foi aprovado pelo Senado, daí a Presidente do País foi obrigada a se afastar
do cargo durante 180 dias, período em que o processo passou pelo julgamento final. Então no dia 31 de agosto
de 2016, o Senado Federal aprovou o pedido de impeachment de Dilma Rousseff, que deixou definitivamente o
cargo.

Considerações finais
Diante do exposto, é preciso refletir e exigir uma maior participação feminina na política, em busca da
igualdade de participação, pois o cenário atual nos apresenta uma baixa representatividade feminina na política
brasileira e isso vem de contramão do protagonismo feminino, afinal, vivemos em um país democrático de direito
e as leis nos garante a igualdade de participação.

REFERÊNCIAS

BIONDI, Luigi. Greve Geral de 1917. Atlas Histórico do Brasil. FGV CPDOC. />. Acesso em 10/05/2021
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de
outubro de 1988. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. />. Acesso em 09/05/2021
BRASIL. Procuradoria Especial Da Mulher; Câmara Dos Deputados; Senado Federal. + Mulheres na Política.
2020. Disponivel em: https://www12.senado.leg.br/institucional/procuradoria/proc-publicacoes/2a-edicao-do-
livreto-mais-mulheres-na-politica. Acesso em 09/05/2021
CARARO, Aryane. SOUZA, Duda Porto de. Extraordinárias: mulheres que revolucionaram o Brasil. São Paulo:
Seguinte, 2017. />. Acesso em 09/05/2021
CARVALHO, Railídia. Vanessa Grazziotin: Legislação contra violência política de gênero. Vermelho a esquerda
bem-informada, 2017. Disponível em: <https://vermelho.org.br/2017/11/24/vanessa-grazziotin-legislacao-
contra-violencia-politica-de-genero/>. Acesso em: 06/05/2021.
FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS. Biografia Manuela Pinto Vieira D'Ávila. Centro de Pesquisa e
Documentação de História Contemporânea do Brasil. 2011. Disponível em:
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/davila-manuela/>. Acesso em 12/05/2021.
FRAZÃO, Diva. Dilma Rousseff: Economista e política brasileira. Ebiografia. 2019. Disponível em:
https://www.ebiografia.com/dilma_rousseff/ Acesso em 12/05/2021
FAHS, Ana C. Salvatti. Movimento feminista, 19 set. 2016. Politize!. Disponível
em: https://www.politize.com.br/movimento-feminista-historia-no-brasil/. Acesso em: 20 abr. 2019. />. Acesso
em 10/05/2021
GASMAN, Nadine. BIROLI, Flávia. Marielle Franco: democracia, legado e violência contra as mulheres na
política. ONUMULHERES Brasil, 2018. Disponível em: <https://www.onumulheres.org.br/noticias/marielle-
franco-democracia-legado-e-violencia-contra-as-mulheres-na-politica/>, Acesso em: 06/05/2021.
IBOPE, Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística. Instituto Patrícia Galvão. Mais mulheres na
política: maioria dos brasileiros apoia reforma política para garantir maior participação das mulheres.
2013. Disponível em: <https://agenciapatriciagalvao.org.br/mulheres-de-olho/politica/71-consideram-
importante-mudar-legislacao-para-garantir-paridade-de-genero-nas-candidaturas/>. Acesso em: 06/05/2021
MIRANDA, Mariana Araújo. Participação Das Mulheres na Política: À Busca Pela Concretização da
Igualdade de Gêneros Como Instrumento da Efetivação da Democracia. 2019. Disponível em:
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 192

https://ambitojuridico.com.br/cadernos/direito-eleitoral/participacao-das-mulheres-na-politica-a-busca-pela-
concretizacao-da-igualdade-de-generos-como-instrumento-da-efetivacao-da-democracia//>. Acesso em
12/05/2021
OLIVEIRA, Rachel. Tramas da cor: enfrentando o preconceito no dia a dia escolar. São Paulo: Selo Negro
Edições, 2005. />. Acesso em 10/05/2021
OLIVIERI, Antonio Carlos. Mulheres: Uma longa história pela conquista de direitos iguais. 2007. Disponível
em:< http://vestibular.uol.com.br/resumo-dasdisciplinas/atualidades/mulheres-uma-longa-historia-pela-
conquista-de-direitosiguais.htm>. Acessado em 10 abr. 2016. />. Acesso em 08/05/2021
PELLEGRINO, Antonia. Violencia política de genero afasta mulheres da vida pública. Folha de São Paulo,
2019. Disponivel em: < https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/09/violencia-politica-de-genero-afasta-
mulheres-da-vida-publica.shtml>. Acesso em: 05/06/2021.
Portal da Câmara dos Deputados. Disponível em <http://www2.camara.gov.br/>. Acesso em 12/05/2021
PETRONI, Camila Caldas. Mulheres em movimentos políticos e sociais no Brasil. InfoEs ola. Disponível em:
https://www.infoescola.com/historia/mulheres-em-movimentos-politicos-e-sociais-no-brasil. Acesso em
12/05/2021
TELES, Maria Amélia de Almeida. Breve história do feminismo no Brasil e outros ensaios. São Paulo: Editora
Alameda, 2017. />. Acesso em 06/05/2021
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Dia da Conquista do Voto Feminino no Brasil é comemorado nesta
segunda (24). 2020. Disponível em: https://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2020/Fevereiro/dia-da-
conquista-do-voto-feminino-no-brasil-e-comemorado-nesta-segunda-24-1/> Acesso em 12/05/2021
YUMI, Caroline. Quem foi Marielle Franco? Conheça a sua história. Politize! 2020. Disponível em:
https://www.politize.com.br/quem-foi-marielle-franco/ Acesso em 12/05/2021.

Biografia das autoras

Alice Juliana de Sousa: Graduanda em Biologia pela Universidade Federal do Maranhão, Graduanda em Serviço
social pela Universidade Cruzeiro do Sul. Educadora Social na Plan International Brasil. Link do currículo lattes:
http://lattes.cnpq.br/8108338446034592
Jesuslene Pereira da Silva: Graduada em Bacharelada em Direito pela Faculdade de Ciências e Tecnologia do
Maranhão-Facema. Pós-graduanda em Gestão em Segurança Pública (FAVENI), Presidente do Conselho
Municipal dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes da Cidade de Codó-MA. Educadora Social na Plan
International Brasil. Link do currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/7253902919675463
Lêinad Dallyne de Oliveira Alves: Graduada em Ciências Contábeis pela Faculdade do Vale do Itapecuru –
FAI. Bacharelanda em Direito pela Centro Universitário de Ciência e Tecnologia do Maranhão – UniFacema.
Educadora Social na Plan International Brasil. Link do currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/6631059322912733
Maria Ionete Carvalho dos Santos: Graduada em Serviço Social pela Faculdade de Ciência e Tecnologia do
Maranhão- Facema (2016) e Especialização em Gestão Social: Políticas Públicas, Redes e Defesa de Direitos
pela Anhanguera Campus Caxias (2020). Educadora Social na ONG Plan international Brasil. Link do currículo
lattes: http://lattes.cnpq.br/9369066685368593
Micaelle Chaves Moreno: Graduada em Serviço Social pelo Centro Universitário UNIFACEMA. Graduanda
em Pedagogia pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Pós-graduanda em Políticas Públicas e Saúde
(FAEPI). Educadora social na Plan International Brasil. Link do currículo lattes:
http://lattes.cnpq.br/9408591435144670.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 193

CAPÍTULO 19
A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA NO BRASIL CONTEMPORÂNEO COMO A
AUSÊNCIA DE PROTEÇÃO JURÍDICA

CALÍOPE BANDEIRA DA SILVA

INTRODUÇÃO
A convenção de Belém do Pará, em seu artigo 1º, delibera que “entender-se-ápor violência contra a
mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou
psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.” Na Venezuela, a Lei Orgânica do
Direito da Mulher a uma Vida Livre de Violência, em seu artigo décimo quinto, entende violência obstétrica
como “Apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres pelo pessoal de saúde, que se expressa
em um tratamento desumanizante, em um abuso da medicalização e patologização dos processos naturais,
trazendo perda de autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade,
impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres.”
É de suma importância que haja legislação específica em relação à violência obstétrica, para que seja
possível coibir a mesma e responsabilizar aqueles que a praticam.
Diante o exposto, torna-se possível compreender a falta de legislação sobre a violência obstétrica como
afronta e danosa aos Direitos Sexuais e Reprodutivos das mulheres. Gera vulnerabilidade para as mulheres,
insegurança, medo e a morte de parturientes. Mostra-se imprescindível que o Governo Federal demonstre
abertura e sensibilidade diante da problemática levantada para que se efetivem, na atual conjuntura, políticas
públicas eficientes e legislação pertinente sobre a violência obstétrica.
A presente pesquisa justifica-se em face da falta de legislação sobre a violência obstétrica no Brasil e
pelas consequências deste cenário sobre as possibilidades de efetivação dos Direitos Sexuais e dos Direitos
Reprodutivos das mulheres. Busca promover o entendimento da necessidade de legislação sobre violência
obstétrica e políticas públicas que venham de fato a assegurar e efetivar os direitos sexuais e os direitos
reprodutivos das mulheres.

Violência Obstétrica: Categoria Médica, Falta De Legislação Em Âmbito Brasileiro E A Violação Dos
Direitos Reprodutivos DasMulheres
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 194

É Necessário compreender a que há ligação direta entre os direitos sexuais e dos direitos reprodutivos
das mulheres e a violência obstétrica, pois tal agressão é violadora dos direitos humanos das mulheres, dentre
eles os sexuais e os reprodutivos.
Ainda, para a compreensão do referido tema é de suma importância fazer referência a medicalização do
corpo. A medicalização do corpo feminino é violadora dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos, pois é
opressora na medida em que não dá direito à escolha, e trata o direito à reprodução apenas como o ato de parir,
não permitindo nenhuma forma de sexualidade para além da procriação. É também violadora quando
exclusivisa a sexualidade à reprodução e não permite que haja separação entre elas.
Ademais, não há respeito ao direito à vida, não há segurança. A medicalização submete as mulheres a
processos violentos e a tratamentos cruéis, priorizando o nascimento da criança em detrimento ao bem estar e
à vida da mulher.
A medicalização do corpo feminino foi compreendida como a primeira formade violência obstétrica.
A criação e efetivação dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos das mulheres deu-se como forma de as
mesmas combaterem, resistirem e buscarem a erradicação dessa violência.
Faz-se necessário, a partir de agora, tratar da violência obstétrica. Neste artigo será apresentado seu
conceito e a busca de uma forma jurídica..
O texto base para tanto é o dossiê Violência Obstétrica: parirás com dor, elaborado pela Rede “Parto
do Princípio” para a CPMI da Violência Contra asMulheres. Tal texto traz uma tipificação própria sobre a
violência obstétrica, juntamente com a análise das leis da Venezuela e Argentina. Ainda, a perspectiva das
mulheres de minorias étnicas, os posicionamentos da classe médica e também análises das legislações vigentes
no Brasil a respeito do tema.

Violência Obstétrica: a busca de uma forma jurídica


A primeira expansão da violência obstétrica se deu através da medicalização do corpo feminino. Sendo
essa uma estratégia de dominação do corpo das mulheres, tornou-se fenômeno de ordem mundial. A
Organização Mundial da Saúde (OMS)40 relata que em todo o mundo mulheres sofrem abusos, desrespeito e
maus- tratos antes, durante e depois do parto nas instituições de saúde. Ocorrem assim violações dos direitos
das mulheres à vida, à saúde, à integridade física e à não- discriminação. A OMS estabelece que os sistemas
de saúde são responsáveis pela maneira com que as mulheres são tratadas antes, durante e depois do parto,

40 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Declaração da OMS: Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos
durante o parto em instituições de saúde. Genebra, 2014. Disponível em:
http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/134588/WHO_RHR_14.23_por.pdf?ua=1.
Acesso em: 17 out. 2020.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 195

garantindo o desenvolvimento e implementação de políticas que sejam nítidas em relação aos direitos e normas
éticas.
Com caráter de informativo, em 15 de fevereiro de 2018 a ONUBR publicou reportagem sobre as
novas diretrizes para reduzir intervenções médicas desnecessárias no parto, segundo recomendações da
OMS.41
Conforme disposto pela OMS, nos últimos 20 anos, os profissionais de saúde ampliaram o uso de
intervenções que antigamente eram usadas apenas quando havia riscos ou complicações, tais como a aplicação
de oxitocina para acelerar o trabalho de parto e a modalidade de cesarianas. Uma proporção substantiva de
grávidas saudáveis passa por ao menos uma intervenção clínica durante o trabalho de parto.42
A OMS estipulou uma definição para violência:
O uso intencional da força física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa,
ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão,
morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimentoou privação.43
Para uma melhor compreensão acerca da violência em relação à mulher, faz- se necessário mencionar
a Convenção de Belém do Pará,44 que ocorreu no ano de 1973 com o intuito de prevenir, punir e erradicar a
violência contra a mulher. Tal convenção em seu artigo 1º, delibera que “entender-se-á por violência contra a
mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou
psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.” Em seu artigo 2º, estabelece que a
violência contra a mulher se manifesta de forma física, sexual e psicológica,
Ocorrida na comunidade e comedida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro,
abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no localde
trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local.45 Em seu artigo
3º, dispõe que “toda mulher tem direito a uma vida livre de violência, tanto na esfera pública como na esfera

41 ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE BRASIL.OMS emite recomendações para estabelecer padrão de


cuidado para mulheres grávidas e reduzir intervenções médicas desnecessárias. Brasília, DF: OPAS, 2018. Disponível em:
https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5596:oms-emite- recomendacoes-para-estabelecer-
padrao-de-cuidado-para-mulheres-gravidas-e-reduzir- intervencoes-medicas-desnecessarias&Itemid=820. Acesso em: 17 out. 2020.
42ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS BRASIL. OMS publica novas diretrizes para reduzir intervenções médicas
desnecessárias no parto. Brasília, DF: ONU, 2018. Disponível em: https://nacoesunidas.org/oms-publica-novas-diretrizes-para-
reduzir-intervencoes-medicas- desnecessarias-no-parto/amp/. Acesso em: 17 out. 2020.
43 KRUG, Etiene G. et al. Relatório mundial sobre violência e saúde. Genebra: OMS, 2002.
Disponível em: http://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/wp-content/uploads/2019/04/14142032- relatorio-mundial-sobre-
violencia-e-saude.pdf. Acesso em: 17 out. 2020.
44 BRASIL. Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1973. Promulga a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a
Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/D1973.htm.
Acesso em: 17 out. 2020.
45 Ibid.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 196

privada”.46 A apresentação de todos esses conceitos é imprescindível para o entendimento da violência


obstétrica no Brasil.
A Venezuela foi o primeiro país latino-americano a conceituar normativamente o termo violência
obstétrica. Tal feito se deu através da Lei Orgânica do Direito da Mulher a uma Vida Livre de Violência,47
vigente desde 2007. Em seu artigo 15 a referida lei dispõe que violência obstétrica é:
Apropriação do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres pelo pessoal de saúde, que se
expressa em um tratamento desumanizante, em um abuso da medicalização e patologização dos processos
naturais, trazendo perda de autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade,
impactando negativamente na qualidade de vida das mulheres.48
Outro país latino-americano que estipulou um conceito normativo para o termo violência obstétrica
foi a Argentina. A menção é necessária, pois a formulação e concepção do referido conceito é muito
semelhante à da Venezuela. Está fixadona Ley Nacional nº 25.929. Parto Humanizado: De derechos de
padres y hijos durante el processo de nacimiento.49 Tal lei vige desde 2009 e define violência obstétrica
como:
[...] a apropriação do corpo e processos reprodutivos das mulheres por
profissional de saúde, que se expressa em um trato desumanizador e abuso da
medicalização e patologização dos processos naturais.50

Ambas as legislações são muito semelhantes em relação ao conceito de violência obstétrica, mas é
necessário salientar que a lei venezuelana adiciona as consequências de tal violência na vida das mulheres:
perda da autonomia e capacidade de decidir livremente sobre seus corpos e sexualidade, situações que
impactam negativamente na qualidade de vida das mulheres.51
Ao reconhecerem e legislarem em relação à violência contra as mulheres no que diz respeito ao parto,
demonstram sua obrigação enquanto Estado e maturidade de suas instâncias como poderes Executivo,
Legislativo e Judiciário.52
Tais legislações são de grande valor, pois foi a partir delas, de relatos de mulheres em situações de
violência durante o período do puerpério, que se apontou a falta de legislação no Brasil. Tal denúncia é feita

46 Ibid.
47 VENEZUELA. Gaceta Oficial de La República Bolivariana de Venezuela. Ley Orgánica sobre el derecho de las mujeres a
una vida libre de violencia nº. 38.668, lunes, 23 abr. 2007.
Disponível em: https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2008/6604.pdf. Acesso em: 17 out. 2020.
48 Ibid.
49 ARGENTINA. Ley Nacional nº 25.929, 25 de agosto de 2004. Parto Humanizado: De derechosde padres e hijos durante el
processo de nacimiento. Disponível em: http://www.ossyr.org.ar/PDFs/2004_Ley25929_Parto_humanizado.pdf. Acesso em: 17
out. 2020.
50 Ibid.
51 CIELLO, Cariny et al. Violência obstétrica: “parirás com dor”. Dossiê Elaborado pela Rede Partodo Princípio para a CPMI da
violência contra as mulheres. 2012. Disponível em:
https://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20VCM%20367.pdf. Acesso em: 17 out. 2020.
52 Ibid.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 197

em especial pelo dossiê Violênciaobstétrica: parirás com dor, elaborado pela Rede “Parto do Princípio”
para a CPMI da Violência Contra as Mulheres, e traz uma tipificação própria para a abordagem das
modalidades de violência obstétrica no Brasil:53 a violência obstétrica pode se dar de distintas maneiras (i)
física: intervenções sobre o corpo da mulher e que por vezes afetam o bebê, causadoras de dano físico e por
consequência dor. Tais intervenções são caracterizadas pela falta de evidência científica; (ii) psicológica:
intervenções comportamentais ou verbais que acabam por humilhar, desumanizar e descriminalizar a
parturiente; (iii) sexual: toda ação que viole a intimidade ou pudor da mulher, produzindo efeitos em relação
à sua sexualidade e à sua reprodução decorre independente do acesso às partes intimas de seu corpo; (iv)
institucional: pode decorrer tanto com ações ou por conta de organizações. Estas fazem com que a mulher não
consiga usufruir de seus direitos constituídos de forma correta, podendo ocorrer na rede pública ou na rede
privada; (v) material: decorrência de condutas e ações com o intuito de lograr recursos de ordem monetária de
mulheres quando do puerpério, ignorando os direitos protegidos por lei; (vi) midiático: decorre da utilização
por parte dos profissionais dos meios de comunicação, na descredibilização da mulher em relação aos seus
direitos, através de mensagens e imagens, sendo assim uma forma de dominação econômica e social, de acordo
com a definição presente pelo dossiê elaborado pela Rede “Parto do Princípio” para a CPMI da Violência
Contra as Mulheres.54
Duarte55 descreve pormenores da violência obstétrica, expondo de forma nítida como tais condutas
são violadoras dos direitos reprodutivos e dos direitos humanos das mulheres: (i) impedir que a mulher tenha
um acompanhante de sua escolha antes, durante e após o parto – tal direito está disposto na Lei Federal
11.108/05 –; (ii) tratamento não empático, com agressividade, grosseria, zombaria em relação à mulher no
período do puerpério, fazendo com que a mesma se sinta errada por estar parindo; (iii) submeter a mulher a
procedimentos dolorosos desnecessários ou humilhantes, como lavagem intestinal, raspagem de pelos
pubianos (sem solicitar a permissão da parturiente); (iv) cortar a vagina (episiotomia) da mulher sem
necessidade; (v) subir na barriga da mulher para que ocorra a expulsão do feto (manobra de Kristeller); (vi)
recriminar a mulher por suas condições físicas, por sua etnia ou por expressar sentimentos como medo
(gritar ou chorar); (vii) não assegurar um tratamento que seja condizente com os direitos fundamentais
salvaguardados pela Constituição Federal,56 entre outros.

53 Ibid.

54 CIELLO, Cariny et al. Violência obstétrica: “parirás com dor”. Dossiê Elaborado pela Rede Partodo Princípio para a CPMI
da violência contra as mulheres. 2012. Disponível em:
https://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20VCM%20367.pdf. Acesso em: 17 out. 2020.
55 DUARTE, Ana Cristina. Violência obstétrica. In: Estuda, Melania, Estuda! [s. l.],15 fev. 2013.Disponível em:
http://estudamelania.blogspot.com/2013/02/guest-post-violencia-obstetrica-by-
ana.html?q=Viol%C3%AAncia+obst%C3%A9trica. Acesso em: 18 out. 2020.
56 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 12 set. 2020.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 198

No ano de 2013, a Defensoria Pública do Estado de São Paulo lançou a cartilha Violência Obstétrica,
você sabe o que é? Tal cartilha tem por base as legislações da Venezuela e da Argentina e é uma forma do
reconhecimento do termo violência obstétrica.57
Para uma melhor compreensão da violência obstétrica enquanto transgressora dos direitos
reprodutivos e dos direitos humanos das mulheres, faz-se necessário mencionar ovamente a OMS em relação
à definição do termo violência:
A inclusão da palavra ‘poder’, além da frase ‘uso da força física’, amplia a natureza de um ato violento
e expande o entendimento convencional de violência de modo a incluir aqueles atos que resultam de uma
relação de poder, inclusive ameaças e intimidações.O ‘uso do poder’ também serve para incluir negligência
ou atos de omissão, além de atos violentos mais óbvios de perpetração. Assim, ‘o uso da força física ou do
poder’ deve ser entendido de forma a incluir a negligência e todos os tipos de abuso físico, sexual e
psicológico.58
Segundo Badim, 59 em relação à violência obstétrica é nítido que fere os direitos sexuais e
reprodutivos, pois persevera como uma violação ao corpo, à dignidade e à autonomia das mulheres durante
importantes etapas de sua vida reprodutiva. Ou seja, “é o corpo feminino que é subjugado e objeto de
interferências e práticas realizadas sem o consentimento da gestante ou parturiente”.60
Desta forma, mesmo diante de um cenário de violação dos direitos humanos, dos direitos reprodutivos
das mulheres e também dos direitos fundamentais que estão assegurados na Constituição Federal, o Brasil
ainda não tipificou legalmente o termo violência obstétrica. Foram os movimentos sociais relacionados à luta
pelos direitos das mulheres que, através do estudo de legislações de outros países da América Latina, criaram
um conceito para o referido termo. E são estes movimentos que seguem empenhados para que haja tipificação
legal e, desta forma, previsão de punição e punição para a prática de violência obstétrica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em relação à violência obstétrica no Brasil, se faz necessário que sejam observadas as legislações dos
países vizinhos para que haja a conceituação normativa do termo violência obstétrica.
Faz-se necessário que o Judiciário passe a reconhecer em suas decisões a existência e a prática de tal
violência contra as mulheres e não siga a fazendo referência à mesma como erro médico.

57 VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA você sabe o que é? Disponível em: http://www.sentidosdonascer.org/wordpress/wp-


content/themes/sentidos-do- nascer/assets/pdf/controversias/Violencia-obstetrica.pdf. Acesso em: 18 out. 2020.
58 KRUG, Etiene G. et al. Relatório mundial sobre violência e saúde. Genebra: OMS, 2002.
Disponível em: http://portaldeboaspraticas.iff.fiocruz.br/wp-content/uploads/2019/04/14142032- relatorio-mundial-sobre-violencia-
e-saude.pdf. Acesso em: 18 out. 2020.
59 MARQUES BADIM, Silvia. Violência obstétrica no Brasil: um conceito em construção para a garantia do direito integral
à saúde das mulheres. Disponível em: https://www.cadernos.prodisa.fiocruz.br/index.php/cadernos/article/view/585. Acesso em: 18
out. 2020.
60 Ibid.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 199

Que o atual governo federal esteja atento às demandas relacionadas à vida das mulheres e que diante
disso reconheça que há a perpetração de violência obstétrica.
É necessária a colaboração e engajamento de todas as instâncias do Estado brasileiro para a criação de políticas
públicas e legislação pertinente a tal violência, para coibir e erradicar a mesma. Somente na garantia da
segurança, da autonomia eda vida das mulheres haverá a real efetivação dos direitos sexuais e dos direitos
reprodutivos das mulheres em âmbito brasileiro e a extinção da medicalização do corpo feminino.
REFERÊNCIAS

ARGENTINA. Ley Nacional nº 25.929, 25 de agosto de 2004. Parto humanizado:de derechos de padres y
hijos durante el processo de nacimiento. Disponível em:
http://www.ossyr.org.ar/PDFs/2004_Ley25929_Parto_humanizado.pdf. Acesso em:17 out. 2020.
BADIM, Silvia Marques. Violência obstétrica no Brasil: um conceito em construção para a garantia do direito
integral à saúde das mulheres. Disponível em:
https://www.cadernos.prodisa.fiocruz.br/index.php/cadernos/article/view/585. Acesso em: 18 out. 2020.
BRASIL. Decreto nº 1.973, de 1º de agosto de 1973. Promulga a ConvençãoInteramericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1996/D1973.htm. Acesso em: 17 out.2020.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 12 set.2020.
CIELLO, Cariny et al. Violência obstétrica: “parirás com dor”. Dossiê Elaborado pela Rede Parto do Princípio
para a CPMI da violência contra as mulheres. 2012. Disponível em:
https://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20VCM%20367.p df. Acesso em: 17 out.
2020.
DUARTE, Ana Cristina. Violência obstétrica. In: Estuda, Melania, estuda! [s. l.],15fev. 2013. Disponível em:
http://estudamelania.blogspot.com/2013/02/guest-post- violencia-obstetrica-by-
ana.html?q=Viol%C3%AAncia+obst%C3%A9trica. Acesso em: 18 out. 2020.
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS BRASIL. OMS publica novas diretrizes para reduzir
intervenções médicas desnecessárias no parto. Brasília, DF: ONU, 2018. Disponível em:
https://nacoesunidas.org/oms-publica-novas-diretrizes-para- reduzir-intervencoes-medicas-desnecessarias-
no-parto/amp/. Acesso em: 17 out.
2020.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Declaração da OMS: Prevenção e eliminação de abusos,
desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde. Genebra, 2014. Disponível em:
http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/134588/WHO_RHR_14.23_por.pdf?u a=1. Acesso em: 17 out.
2020.
ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE BRASIL.OMS emite
recomendações para estabelecer padrão de cuidado para mulheres grávidas e reduzir intervenções médicas
desnecessárias. Brasília, DF: OPAS, 2018.
Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=5596:oms
-emite-recomendacoes-para-estabelecer-padrao-de-cuidado-para-mulheres- gravidas-e-reduzir-intervencoes-
medicas-desnecessarias&Itemid=820. Acesso em:17 out. 2020.
VENEZUELA. Gaceta Oficial de La República Bolivariana de Venezuela. Ley orgánica sobre el derecho de
las mujeres a una vida libre de violencia nº. 38.668, lunes, 23 abr. 2007. Disponível em:
https://www.acnur.org/fileadmin/Documentos/BDL/2008/6604.pdf. Acesso em: 17out. 2020.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 200

CAPÍTULO 20
MULHER NA POLÍTICA E DIREITOS HUMANOS
MICHEL CANUTO DE SENA
GRACIELE SILVA
PAULO ROBERTO HAIDAMUS DE OLIVEIRA BASTOS
RICARDO DUTRA AYDOS
ADY FARIA DA SILVA

INTRODUÇÃO

O estudo da mulher no âmbito social e na política merece destaque e perpassa desde os direitos
fundamentais, direitos humanos até o marco histórico de evolução das mulheres na política.
Dizer que a mulher foi e é um ser com igualdade de direitos em comparação ao homem é uma grande
utopia. Por essa razão, o presente artigo objetivou demonstrar que, em todos os períodos da História, a mulher
sempre passou por ataques, redução de sua capacidade e em alguns casos, definitivamente, cancelada de
qualquer ambiente, restando apenas os serviços domésticos e a tradição enraizada de procriação.
Os direitos fundamentais da pessoa destinam-se a todos os homens e, quando a palavra “homens” é
utilizada, faz-se necessário entender que a previsão legal é destinada a mulheres e a homens. Ainda, a
Constituição Federal de 1988 veda qualquer espécie de discriminação.
Frente a isso, convidam-se as leitoras e os leitores para uma reflexão sobre a jornada da mulher que,
apesar de tantos fatores que convergem para a contramão da valorização da mulher, conseguiram seu espaço
na sociedade. Além disso, outros assuntos, tais como, violência contra a mulher será debatido também, tendo
em vista ser um fenômeno impregnado na história da mulher o qual não se pode permitir.

DIREITOS FUNDAMENTAIS E HUMANOS DA MULHER


Os direitos e garantias fundamentais são direitos previstos na Constituição Federal de 1988 (BRASIL,
1988) e são inerentes à pessoa humana. Essas garantias são destinadas a todas as pessoas sem qualquer forma
de discriminação, podem-se elencar os direitos fundamentais como: Direito à vida; Direito à liberdade e à
segurança pessoal; Direito à igualdade e a estar livre; Direito à liberdade de pensamento; Direito à informação
e à educação; Direito à privacidade e Direito à saúde e à proteção desta.
Nessa ordem, o direito à vida se sobressai, por se tratar de uma questão não apenas jurídica, mas de
toda a sociedade e das demais ordens, ou seja, filosófica, moral, médica e biológica, sempre resguardando a
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 201

importância do princípio da dignidade da pessoa humana. Importante destacar também o direito à integridade
pessoal que é outra garantia da pessoa (FERREIRA, 2009). Nesse sentido:

[...] A universalidade da titularidade consiste nisto, que direitos do homem são


direitos que cabem a todos os homens. A determinação do círculo dos titulares
causa vários problemas, dos quais dois devem aqui interessar. O primeiro resulta
do emprego do conceito de homem. A delimitação mais clara se obtém quando
se define este conceito biologicamente. Ao contrário. é objetado que isso é uma
especificidade que se aproxima do racismo. Essa objeção não vê, todavia, que no
emprego do conceito biológico do homem para a delimitação do círculo de
titulares se trata somente do conceito de direito do homem, não, porém, de sua
fundamentação. Se os fundamentos melhores falassem a favor disto, de conceder
determinados direitos, por exemplo, à vida, a animais em igual proporção como
aos homens, então o direito à vida, como direito do homem, estaria caduco e
deveria ser criado novamente, por exemplo, como" direito da criatura" com
círculo de titulares alargado. (ALEXY, 199, p. 59).

O direito à integridade pessoal dispõe que toda pessoa tem direito a que se respeite a sua integridade
física, psíquica e moral. Ainda, dispõe que ninguém deve ser submetido a torturas, tampouco a penas e
tratamento cruel. Importante destacar que a Codificação Filipina constitui um exemplo das arbitrariedades
medievais, época de uso e abuso do corpo humano para fins de castigar e intimidar as pessoas (GOMES;
MAZZUOLI, 2013).
O direito à liberdade é considerado direito psíquico e envolve diversas manifestações, desde atividades
simples realizadas pela pessoa, quesitos profissionais e negociais, além dos fatores espirituais. Assim, o bem
jurídico protegido é a liberdade, que pode ser conceituada como a liberdade e a faculdade de fazer ou deixar
de fazer, aquilo que a ordem jurídica classifica como harmônica. Frente à opressão ao direito da mulher se faz
necessário debater esses pontos para que o diálogo seja fortalecido. A esse respeito, versa a Carta Magna:

[...] Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta
Constituição;
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude
de lei;
III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
IV - é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
V - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização
por dano material, moral ou à imagem;
VI - é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre
exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de
culto e a suas liturgias;
VII - é assegurada, nos termos da lei, a prestação de assistência religiosa nas
entidades civis e militares de internação coletiva;
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 202

VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de


convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação
legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.
(BRASIL, 1988, p. 1).

O discurso e a batalha pela conquista da igualdade entre homens e mulheres percorre vários ciclos da
História, ainda hoje o vigor dessa batalha continua em ritmo constante, pois, não rara, depara-se com notícias
que desfavoreçam as mulheres de forma direta ou indiretamente (RAGO, 1995).
O machismo é uma questão estrutural e social, existem manifestações machistas em todos os campos,
principalmente sobre os direitos entre homens e mulheres, seja por meio do assédio, estupro, violência,
objetivação da mulher, diferença salarial e desproporcionalidade em espaços políticos e sociais (RAGO, 1995).
Assim, o machismo trata-se de uma desigualdade, nesse cenário, ocorre a inclinação de favorecimento
do homem em detrimento da mulher. A pessoa machista sempre acredita que o homem seja superior à mulher,
tecendo, assim, a mulher como um ser inferior.
Desse modo, o machismo estrutural é cultural e possui diversos aspectos sociais, sendo que por muitas
décadas foi normalizado e aceito. A mulher jamais pode ser vista como um ser suscetível de agressões e
menosprezado nos ambientes sociais (RAGO, 1995).
Por esse motivo, deve-se levar em consideração o acesso à informação e o espaço que os movimentos
sociais representam e a forma como modificam a realidade de conceitos arcaicos e ultrapassados de uma
sociedade predominantemente machista. A evolução da sociedade precisa ser elaborada para além de textos,
leis e doutrinas, pois se necessitam de ações e mudanças na sociedade, para que a igualdade perpasse pela
batalha dos direitos da mulher (RAGO, 1995).
No Brasil, dados evidenciam que mulheres ganham cerca de 30% menos que os homens para exercer
a mesma função, com a mesma qualificação e a mesma jornada de trabalho. Ainda, a mulher ocupa menos de
¼ das posições de liderança em empresas, essa é a verdadeira estampa do machismo estrutural e da perda de
espaço da mulher.
Dessa forma, entre as 250 maiores empresas brasileiras, somente quatro por cento das mulheres estão
no comando e os homens contam com 20 vezes mais chance de ocuparem cargos de chefia e direção. Isso
demonstra que, por mais que a mulher tenha maior titulação e experiencia profissional aprofundada, ainda não
é suficiente para que ocupe um lugar de igualdade, uma posição merecida eivada pela igualdade.
Hannah Arendt, em sua concepção, defende que a convivência pacífica entre os homens é o fator que
promove a ação conjunta e esse ato comissivo é capaz de gerar poder. Falar dos direitos da mulher é justamente
ir ao encontro com os ensinamentos de Hannah Arendt, pois o espaço de poder não pode ser confundido com
o da violência. O poder está atrelado com às estruturas sociais, logo, onde existe poder, existe a sociedade por
uma questão de necessidade de organização social.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 203

O poder violento não aceita as diferenças, tampouco os gêneros. Ainda, quando a violência e o
desrespeito encontram espaço pelas atitudes machistas e desiguais, surge um ambiente plenamente
desequilibrado. De tal forma, as decisões acompanhadas pela violência são regidas pela capacidade de se
abafar as expectativas de contrariedade (BITTAR; ALMEIDA, 2019).
A violência possui uma origem brutal e um fator não pode ser deixado de lado, pois muitas mazelas
sociais foram neutralizadas ao longo da História, mas de modo infeliz o desrespeito de gênero se arrasta até o
presente momento. O discurso é regado por tristezas, quando a justificativa é que a desigualdade entre homens
e mulheres não tem outra fonte a não ser a lei do mais forte.
Ainda, o uso de força brutal e o emprego de armas jamais pacificou qualquer conflito, apenas o
agravou, será que vidas merecem ser ceifadas por gêneros e diferenças? O domínio do homem sobre as
mulheres é diferenciado das outras espécies de diferenças, pois nele existem dois lados, os das mulheres que
são vítimas de violência e repressão e, de outro, o de mulheres que não aceitam esse comportamento e lutam
(MILL, 2017).
Assim, milhares de mulheres protestam contra o cenário inaceitável de violência e violação. Essa
mesma luta é intensificada ao longo da história pela educação, com a nítida necessidade de uma educação mais
sólida e igualitária, possibilitando a formação básica e avançada a todas as pessoas (MILL, 2017).
Desta feita, quantas mulheres sofrem de forma silenciosa uma dor que não pode ser individualizada. A
dor de uma exclusão por gênero e da violência faz que a pessoa sangre não apenas em sua carne, mas em toda
a construção psicológica e sentimental construída ao longo de sua vida. De tal modo, o homem não quer
somente a obediência e a repressão da mulher, mas sim a posse de seus sentimentos, uma verdadeira escravidão
ou uma prisão, na qual a mulher perde seu espaço e força ao longo do tempo (MILL, 2017).
Nesse sentido, para que as pessoas alcancem a paz em todos os nichos sociais, não apenas em questões
de gênero, faz-se necessário elaborar um debate sobre a liberdade. Na visão de Mahatma Gandhi, a libertação
precisa ser individual e coletiva, o termo utilizado por ele é swaraj que significa liberdade. Porém, a liberdade
contida nessa palavra possui conotação diferente, pois se refere ao espiritual, ou seja, a liberdade da ilusão, do
temor e da ignorância. Em outras palavras, o autoconhecimento e domínio de si próprio e, ainda, essa libertação
se aplicam ao campo coletivo e político (BITTAR; ALMEIDA, 2019).
Outro ponto que é resultante das constantes batalhas é o empoderamento. Trata-se de um avanço das
políticas feministas na América Latina e passa por fortalecimentos constantes devido às lutas incessantes de
mulheres pelo mundo todo (FONSECA, 2009). Desta feita, apesar das desigualdades em relação aos homens,
busca-se empoderar as mulheres, mediante a redistribuição do poder dentro da sociedade e entre elas.

A MULHER E A POLÍTICA
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 204

O significado clássico e moderno de política é derivado da palavra pólis, que significa tudo aquilo
que se refere à cidade e aos cidadãos, tanto na esfera civil como na pública. Assim, o termo política ganhou
força com a obra de Aristóteles, conhecida como Política, que pode ser considerada o primeiro tratado acerca
das divisões e funções do Estado (BOBBIO, 2000).
Entre diversas formas de política, o poder do homem sobre o homem é uma delas. Assim, na tradição
clássica, que é remetida a Aristóteles, o poder era considerado de três formas: (I) o poder paterno; (II) o poder
despótico e (III) o poder político. Na visão de Aristóteles, o poder paterno é executado ao interesse dos filhos;
o despótico, ao interesse do senhor, e o político, ao interesse de quem governa e de quem é governado
(BOBBIO, 2000).
Historicamente, o patriarcado é o sistema mais antigo de exploração e dominação. A dominação pode
ser encontrada nos campos ideológicos e políticos, já a exploração refere-se ao terreno econômico. O
patriarcado é entendido como fundamental para a compreensão da dominação masculina nas áreas sociais.
Nas Idades Média e Moderna, até o século XVII, o poder do pai é predominante na família, em outras linhas,
a mulher era vista apenas como um ser reprodutor dentro de uma família (CALADO, 2016).
No período de 1500 a 1822, no Brasil Colônia, as mulheres buscavam o direito fundamental mais
precioso, que é o direito à vida, ademais, a participação na política, na educação, direito ao divórcio e o livre
acesso ao mercado de trabalho (CALADO, 2016).
Entre 1822 a 1899, no período do império, as mulheres conquistaram o direito à educação. Por outro
lado, o direito de participar da vida política continuava apenas no plano da vontade, sem a devida
materialização social (CALADO, 2016).
A primeira Deputada Federal da América Latina foi Carlota Pereira, nascida em São Paulo em 19 de
fevereiro de 1892, formada pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Ainda, foi chefe do
Laboratório de Clínica Pediátrica e, em 1928, ingressou na política. Ela foi a primeira deputada federal da
História do Brasil, uma voz feminina no Congresso Nacional, seu mandato foi marcado pela defesa das
crianças e das mulheres.
Outro nome de destaque é Eunice Michiles, ela foi a primeira senadora eleita suplente do senador
João Bosco Lima. No ano de 1978, assumiu a cadeira do senado devido à morte de João Bosco no início do
mandato. Por outro lado, ela dizia em entrevistas que sofria opressões e discriminações, pois no Senado, os
demais políticos pediam que ela ficasse em silêncio e se portasse como uma dama (DE SOUZA VALE, 2020).
A primeira eleitora no Brasil foi Celina Guimaraes Viana, nascida em Mossoró, no ano de 1890, ela
lecionou na Escola Normal de Mossoró. Ainda, com o advento da Lei n. 660 de 25 de novembro de 1927, o
Rio Grande no Norte foi o primeiro Estado a regular o serviço eleitoral e estabeleceu que não haveria distinção
entre sexo para o exercício do voto (DA SILVA, 1987).
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 205

No início do século XX, as discussões sobre a participação de mulheres na política brasileira são
colocadas em pauta. Assim, em 1922, é fundada a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, tendo como
um dos principais objetivos a batalha pelo voto, reconhecimento da mulher e o livre acesso das mulheres no
campo do trabalho e política (DA SILVA, 1987).
No ano de 1928, foi autorizado o primeiro voto feminino e, no mesmo período, foi eleita Alzira
Soriano de Souza na cidade de Lajes, no Estado de Rio Grande do Norte, ela foi a primeira prefeita no país.
Por outro lado, ambos os atos foram anulados, uma verdadeira perda histórica marcada pelo desrespeito à
mulher. Porém, mesmo com o não reconhecimento do direito, esse fato abriu campo para discussão sobre o
direito à cidadania das mulheres (DA SILVA, 1987).
A data de 24 de fevereiro de 1932, no governo de Getúlio Vargas, foi marcada por um importante
marco histórico social, momento em que se reconheceu o sufrágio feminino, sendo incluído no Código
Eleitoral Provisório (DA SILVA, 1987). Desse modo:

[...] Art. 1º Este Codigo regula em todo o país o alistamento eleitoral e as eleições
federais, estaduais e municipais.
Art. 2º E' eleitor o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo, alistado na
fórma deste Codigo.
Art. 3º As condições da cidadania e os casos em que se suspendem ou perdem os
direitos de cidadão, regulam-se pelas leis atualmente em vigor, nos termos do
decreto n. 19.398, de 11 de novembro de 1930, art. 4º, entendendo-se, porém, que:
a) o preceito firmado no art. 69, n. 5, da Constituição de 1891, rege
igualmente a nacionalidade da mulher estrangeira casada com brasileiro;
b) a mulher brasileira não perde sua cidadania pelo casamento com
estrangeiro;
c) o motivo de convicção filosofica ou política é equiparado ao de crença
religiosa, para os efeitos do art. 72, § 29, da mencionada Constituição;
d) a parte final do art. 72, § 29, desta, sómente abrange condecorações ou
títulos que envolvam fóros de nobreza, privilégios ou obrigações incompativeis
com o serviço da Republica. (BRASIL, 1932, p. 1).

Outro nome na política feminina foi o de Antonieta de Barros, primeira deputada estadual negra do
país. Ela entrou na política e foi eleita para a Assembleia Catarinense de 1934, ainda se tornou responsável
por avanços no campo da educação, cultura e o funcionalismo da nova Constituição do Estado (DA SILVA,
1987).
Desse modo, o direito ao voto e à candidatura de mulheres foi efetivamente por meio da Constituição
de 1946 (BRASIL, 1946). Após um ano do decreto de 1932, foi eleita Carlota Pereira de Queiróz, primeira
deputada federal brasileira a integrar a assembleia constituinte nos anos seguintes.
Antecedente ao período do Estado Novo, por meio de jornais e reuniões, as militantes do feminismo
utilizavam esses espaços para divulgar ideias. O conteúdo era constante e marcado pela repressão sofrida e
pelos direitos das mulheres violados. Outro momento oportuno para reivindicações era os períodos de greves,
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 206

momento em que as mulheres encontravam espaço para verbalizar a indignação pelas diferenças e ainda serem
ouvidas (CONTREIRAS, 2018). Apesar da inclusão da mulher no mercado de trabalho desde a República
Velha, somente no ano de 1962 as mulheres casadas tiveram o livre arbítrio de trabalhar sem a anuência do
marido.
Durante os dois períodos de ditadura vividos pelo Brasil, o movimento feminista perdeu espaço e
força. Por outro lado, houve conquistas, uma delas é a criação da Fundação das Mulheres do Brasil, a
aprovação da lei do divórcio e o Movimento Feminino pela Anistia de 1975 (CONTREIRAS, 2018).
O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher foi criado nos anos de 1980, passando a possuir status
ministerial, a título de exemplo, a Secretaria de Política para as Mulheres. Importante destacar que esses
movimentos incorporaram questões fundamentais, tais como: mulher na política, saúde da mulher, igualdade
de gênero, combate à violência contra a mulher, entre outros fatores (CONTREIRAS, 2018).
No ano de 2003, foi criada a Secretaria de Políticas para as mulheres. Esse órgão é considerado um
marco histórico na luta das mulheres, pois é um canal de denúncia e abusos contra a mulher; no Brasil ficou
estabelecido por meio do “ligue 180” (CONTREIRAS, 2018).
No ano de 2006, foi criada a Lei Maria da Penha (BRASIL, 2006). Maria da Penha Maia Fernando é
uma mulher brasileira, farmacêutica que passou por diversos ciclos de violência doméstica e fez que o seu
direito violado se tornasse uma legislação nacional qualificada.
Em 2010, Dilma Rousseff foi eleita a primeira presidenta do Brasil. Sua trajetória é marcada por
batalhas durante a ditadura militar e por diversas torturas por que passou nessa época. Após o período de
anistia, ela foi Secretária de Minas e Energia do Rio Grande do Sul e mais tarde, eleita presidente do Brasil,
com reeleição em 2014. Apesar de toda a conquista social e política, percebe-se que ela sofreu diversos ataques
por ser uma mulher no campo da política (BASTOS et. al., 2017).
Nesse diapasão, nos últimos anos, o Brasil vivenciou amplos debates sobre política e,
inclusive, sobre a participação da mulher nela. Assuntos como mulher na política, aborto, assédio,
violência contra a mulher, maternidade e espaço profissional igualitário fora m debatidos e precisam
continuar sendo. Assim, alguns avanços já foram conquistados na última década, a título de exemplo
o direito de votar e ser votada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A história da mulher é marcada por muitos fatores sociais e lutas. Porém, essa batalha não possui
apenas a beleza que toda mulher possui, mas sim as feridas que todas as pessoas sentem conjuntamente quando
uma mulher é agredida ou possui seus direitos violados.
Desde os tempos mais antigos, a mulher foi inferiorizada e marcada como um ser incompetente para
diversas funções. Dentre elas, a área da política, que se mostrou e ainda se mostra como um desafio histórico
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 207

e perene. A vida em sociedade precisa ser eivada pelos direitos fundamentais, destaca-se, aqui, o princípio da
dignidade da pessoa humana. Este não permite que as pessoas sejam tratadas como coisas, tampouco tenham
suas prerrogativas violadas.
A mulher, tanto em cenário nacional, quanto internacional, foi vítima de inúmeras violações acerca
dos direitos fundamentais e de direitos humanos. Presenciaram-se inúmeras manobras sociais e políticas para
que a mulher não alcançasse o poder ou perdesse o que foi conquistado.
A política evoluiu muito na História, mas se observa que a mulher sempre foi colocada em outro
nicho. Lugar que não merecia, tendo em vista que se tem grandes mulheres na sociedade histórica e atual.
Além disso, o machismo estrutural permeia diversas áreas e sempre atua com a expectativa de atingir a mulher
como um objeto de uso. Deve-se dar um basta em toda essa injustiça, principalmente no Brasil que é um país
com mentes femininas brilhantes que merecem todo o respeito possível.
A temática mulher na política possui grande relevância social, além de ser um estudo interdisciplinar,
por envolver diversos campos do conhecimento social e científico. Por derradeiro, precisa-se unir forças e não
usar a força para coibir ou cancelar um ser humano em razão de seu gênero, pois a mulher, além de ser o único
ser capaz de reproduzir, é um ser digno e com todas as capacidades civis e sociais para ser o que bem entender.

REFERÊNCIAS

ALEXY, Robert. Direitos fundamentais no estado constitucional democrático. Revista de direito


administrativo, v. 217, p. 55-66, 1999.
BARROS, José D.'Assunção. A escola dos annales e a crítica ao historicismo e ao positivismo. Territórios e
Fronteiras, v. 3, n. 1, p. 73-103, 2010.
BASTOS, Pedro Paulo Zahluth et al. Ascensão e crise do governo Dilma Rousseff e o golpe de 2016: poder
estrutural, contradição e ideologia. Revista de Economia Contemporânea, 2017.
BITTAR, E. C. B.; ALMEIDA, G. A. Curso de Filosofia do Direito. 14. ed. São Paulo: Atlas, 2019.
BOBBIO, N. Teoria geral da política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Noberto Bobbio 1909,
traduzido por Daniela Beccaccia Versiani. Rio de Janeiro: Elsevier, 2000.
BRASIL. Decreto n. 21.076, de 24 de fevereiro de 1932. Disponível em:
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1930-1939/decreto-21076-24-fevereiro-1932-507583-publicacaooriginal-
1-pe.html. Acesso em: 14 maio 2021.
BRASIL. Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 18 de setembro de 1946. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao46.htm. Acesso em: 14 maio 2021.
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 12 maio 2021.
BRASIL. Lei n. 11.340, de 7 de agosto de 2006. ria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar
contra a mulher, nos termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e
Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar
contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal, o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras
providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm. Acesso
em: 14 maio 2021.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 208

CALADO, J. N. O CARÁTER DO PATRIARCADO NA ORDEM SOCIAL DO CAPITAL: Um estudo


sobre a relação entre exploração e dominação da mulher trabalhadora na contemporaneidade. 2016.
Dissertação (Mestrado em Serviço Social) - Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016.
CONTREIRAS, J. A. Corpo de Mulher, um Campo de Batalha: Terrorismo de Estado e violência sexual
nas ditaduras Brasileira e Argentina de segurança nacional. 2018. Dissertação (Mestrado em História) -
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2018.
DA SILVA, M. B. N. A história da mulher no Brasil: tendências e perspectivas. Revista do Instituto de
Estudos Brasileiros, n. 27, p. 75-91, 1987.
DE SOUZA VALE, M. Mulheres no Poder: A Trajetória Política de Eunice Michiles, a Primeira Senadora
no Brasil. Curitiba: Editora Appris, 2020.
FERREIRA, I. S. A mulher e a proteção à vida. In: A mulher e a justiça. Josefina Maria de Santana Dias
(org.). São Paulo: Lex Editora, 2009.
FONSECA, R. M. G. S. Mulher, direito e saúde: repensando o nexo coesivo. Saúde e sociedade, v. 8, p. 3-
32, 1999.
GOMES, L. F.; MAZZUOLI, V. O. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. 4. ed.
São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.
MILL, J. S. Sobre a liberdade e a sujeição das mulheres. John Stuart Mill 1806-1873. Tradução de Paulo
Geiger. 1. ed. São Paulo: Penguin Classicd Companhia das Letras, 2017.
RAGO, M. As mulheres na historiografia brasileira. Cultura histórica em debate. São Paulo: UNESP, p. 81-
91, 1995.

SOBRE OS AUTORES

MICHEL CANUTO DE SENA


Graduado em direito (FACSUL), especialista em direito (UCDB), Mestre (UFMS), Doutorando pelo
Programa de Pós-graduação em Saúde e Desenvolvimento na Região Centro-Oeste da Universidade Federal
de Mato Grosso do Sul (UFMS). Professor de direito.

GRACIELE SILVA
Graduada em direito, especialista e mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Saúde e Desenvolvimento
na Região Centro-Oeste da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

ADY FARIA DA SILVA


Graduado em direito, especialista em direito e mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Saúde e
Desenvolvimento na Região Centro-Oeste da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

RICARDO DUTRA AYDOS


Possui graduação em Medicina pela Fundação Universidade Federal Católica de Medicina de Porto Alegre (1977),
Mestrado e Doutorado em Técnicas Operatórias e Cirurgia Experimental pela Universidade Federal de São Paulo.
Foi orientador da Universidade de Brasília. É Professor Associado aposentado da Faculdade de Medicina da
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS).

PAULO ROBERTO HAIDAMUS DE OLIVEIRA BASTOS


Doutor e mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor titular
(FULL PROFESSOR ) da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Professor visitante (VISITING
RESEARCHER ) do Programa de Pós-Graduação STRICTO SENSU em Saúde e Desenvolvimento na Região
Centro-Oeste.
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 209

SOBRE AS ORGANIZADORAS

LAURINDA FERNANDA SALDANHA SIQUEIRA


Graduada em Licenciatura em Química pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão
(IFMA), Especialista em Estatística pela Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), Doutora em Química pela
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Iniciou o estágio pós-doutoral no programa de pós-
graduação em Química da Universidade Federal do Maranhão (PPgQUIM/UFMA). Atualmente é Professora de
Química Analítica/Quimiometria do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Maranhão, Campus
São Luís (IFMA).. É consultora ad-hoc das agências SISCT, PPSUS, FAPEMA, CNPQ, FAPES, PROPES/IFPE,
PROPI/IFMS, DPEXT/PROPEI/IFF, PRPGI/IFMA e PRPGI/UFMA. Membro do comitê científico, comitê de
revisão e organização da Editora EXPRESSÃO FEMINISTA. Líder dos grupos de pesquisa do CNPQ:
QUIMMERA/IFMA para estudos de gênero, sexualidade e ciência, e QUIMMETRA/IFMA para estudos da química
analítica aplicada e quimiometria. Faz parte do Grupo de Pesquisa em Química Biológica e Quimiometria
(QBQ/IQ/UFRN). Coordena o Observatório da Mulher na Ciência (IFMA-FAPEMA), a EScola de Meninas e
Mulheres Cientistas (IFMA-FAPEMA) e o coletivo Mulheres IFMA. Tem experiência na área de Química Analítica
Aplicada, Instrumentação Analítica e Análise Multivariada de Dados, com ênfase em Quimiometria aplicada em
estudos de câncer e Química Médica e pesquisas envolvendo os seguintes temas: algoritmos quimiométricos,
epidemiologia e meio ambiente, tecnologias aplicadas a saúde, estudos de gênero e educação. Presidente da
Comissão Própria de Avaliação - CPA CENTRAL/IFMA. Avaliadora de cursos de graduação e pós-graduação do
BASis/SINAES/INEP/MEC.

MAYNARA COSTA DE OLIVEIRA SILVA


É Editora-chefe da Expressão Feminista. Doutoranda em Ciências Sociais (PPGCSOC/UFMA). Mestra em
Antropologia Social (PPGAS/UFRN). Especialista em Direitos Humanos e Questões Étnico-sociais (IBF).
Especialista em Direito Público (IBF). Bacharela em Direito pela Faculdade de Natal Estácio de Sá. Advoga na seara
do Direito Público. Professora do curso de Direito das Faculdade Pitágoras São Luís/MA e Faculdade Estácio São
Luís. Atuou como membro da Comissão de Diversidade Sexual e Combate a Intolerância da Ordem dos Advogados
do Brasil Seccional Rio Grande do Norte. Foi Vice-Presidenta do Tribunal de Justiça Desportiva do Rio Grande do
Norte, e auditora da Comissão Disciplinar Desportiva da Secretária do Estado do Esporte e do Lazer do Rio Grande
do Norte. Atua nos seguintes grupos: Núcleo Interdisciplinar de Estudos em Diversidade Sexual, Gênero e Direitos
Humanos (TIRÉSIAS/UFRN), na Base de Pesquisa: Gênero, Corpo e Sexualidades(DAN/PPGAS/UFRN), no
Laboratório de Antropologia da Política (LEAP/UFMA/UEMA), no Grupo de Pesquisa QUIMERA (CCH/IFMA)
e coordena as atividades do Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Violência de Gênero e Sexualidade
(Div@s/Faculdade Estácio São Luís) .
Mulheres, política e movimentos - ISBN 978-65-994945-4-3 210

Você também pode gostar