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RESENHA

RIBEIRO, L.
Estranhos no mundo contemporâneo: exclusão social, preconceito e intolerância

Giuliana Franco Leal

“Não fale com estranhos” – ouvimos de aqueles ligados às diferenças, desigualdades,


nossos pais e repetimos aos nossos filhos. O exclusão e perseguição do outro.
estranho causa insegurança e tensão, porque Com a contextualização da obra dos
é o diferente, seja ele o migrante, o pobre ou autores, fica claro que suas percepções sobre
qualquer outro em quem não se reconheçam o tema variam segundo o contexto social, a
traços de familiaridade com a própria cultu- metodologia utilizada e mesmo a trajetória
ra. Causando a sensação de estranhamento, pessoal de cada um, mas na obra de todos
ele coloca em questão a alteridade. eles a categoria “estranho” aparece dotada
Este é o tema deste livro, no qual Luci de ambivalência:
Ribeiro tece um panorama das percepções
do estranho na teoria social ao longo do sé- estranhos são aqueles indivíduos ou grupo de in-
divíduos que carregam consigo um estigma social,
culo XX, a partir da obra de quatro autores: o de não ser conhecido, de não ser familiar, de ser
Georg Simmel, Alfred Schütz, Norbert Elias diferente a ponto de evidenciar uma clara distin-
e Zygmunt Bauman. No primeiro capítulo, ção entre “eles” e “nós” (p. 24).
“O estranho e a modernidade”, a questão
central do livro é apresentada e problemati- No conjunto das obras abordadas, fica
zada. Os capítulos seguintes são dedicados a evidente que a diferença causa perturbação,
esmiuçar as definições do estranho e as teses mas cada autor analisa a relação entre os es-
sobre ele nas obras de cada autor: o capítulo tranhos e os demais membros do grupo de
dois aborda “a construção da percepção do maneira distinta, o que conduz a propostas
estranho: as heranças de Georg Simmel e diferentes para lidar com a alteridade. Ao
Alfred Schütz”; o capítulo três trata de “Nor- analisar a obra desses autores, Ribeiro des-
bert Elias e a importância das análises das trincha as continuidades e as rupturas, bem
configurações sociais para os processos de como os pontos comuns, os complementares
exclusão”; o capítulo quatro tem como tema e os divergentes entre esses autores.
“as ambivalências da modernidade e as am- Simmel (1908, 1971, 1973, 1983,
bivalências do estranho: a interpretação de 1998) escreveu sobre o estranho no início do
Zygmunt Bauman”. século XX a partir de uma visão de sociedade
Ao desvendar a evolução da categoria centrada na busca de equilíbrio social, cuja
“estranho” quanto às definições, às questões base está no papel social instrumentalmente
que suscita e às perspectivas que a envolvem, desempenhado pelos indivíduos, e seu foco
Ribeiro nos permite acompanhar as transfor- recai sobre a relação entre o estranho e o
mações de problemas sociais e sociológicos grupo. O estranho é caracterizado pela tran-
fundamentais da modernidade, em especial sitoriedade e por sua situação ambígua de

BIB, São Paulo, n. 76, 2º semestre de 2013 (publicada em julho de 2015), pp. 137–141. 137
pertencimento/não pertencimento ao gru- Ribeiro identifica duas grandes contri-
po: ele é membro do grupo, em posição de buições para a temática do estranho na obra
desigualdade de direitos, mas também está de Schütz: a consideração da dimensão pes-
fora dele, em situação de confronto. Embora soal do estranho como indivíduo dotado de
o estranho passe a fazer parte do grupo, não humanidade e desejo de ser aceito e a ênfase
está em igualdade de relação com os demais à importância do entendimento do padrão
membros, mas, nessa condição, tem a possi- cultural para a compreensão da convivência
bilidade de alterar o curso das relações sociais com o estranho. Por outro lado, um limite é
em que se insere. Assim, exerce um papel detectado na obra deste autor: ao conceder
importante para a estabilização da sociedade. mais atenção ao lado do indivíduo e minimi-
O estranho, tal como visto por Simmel, não zar a atenção ao grupo, Schütz não percebe
representa ameaça ao grupo, ao contrário, a possibilidade de o estranho não ser aceito
a diferença que ele proporciona fortalece o nem tolerado pelo grupo do qual ele deseja
grupo e produz coesão social. participar, embora essa situação seja possível.
Publicando seu artigo sobre o estranho A complementariedade das abordagens
36 anos mais tarde, Schütz (1976) incorpora de Simmel e Schütz é destacada por Ribei-
novos elementos da realidade a sua análise. ro, afirmando que ambas dizem respeito a
No período entre as publicações dos dois duas faces da mesma situação, de encontro
autores, houve duas guerras mundiais que entre indivíduos e grupos vindos de cultu-
mudaram as questões e as formas de ver o ras diferentes. As duas têm em comum a
mundo, com crescente preocupação em re- aceitação da assimilação como solução para
lação a temas como exclusão, intolerância, a eliminação das contraposições nas dife-
perseguição e extermínio de pessoas. renças entre estranhos.
Em uma análise fenomenológica dos Todavia, a assimilação aparece como
mecanismos e processos da vida cotidiana, uma solução datada, do início do século XX.
Schütz tem como foco as questões pessoais Com o acirramento da heterogeneidade e as
e culturais do estranho na adaptação a outro novas formas de ver riqueza na diversidade, a
padrão cultural, na qual ele é definido em assimilação passa a ser bastante questionada
sua situação temporária de adaptação a um como modo de convivência com a diferença
novo grupo, procurando ser aceito ou pelo em sociedades complexas. Esse questiona-
menos tolerado. Para isso, o estranho tenta mento está ligado a novas interpretações so-
interpretar e assimilar os padrões culturais bre a questão do estranho, como se pode per-
desse grupo. Contudo, ao usar o próprio ceber nas obras de Elias (1986, 1994, 1996,
padrão cultural de origem como referência, 1997, 1999, 2000) e de Bauman (1990,
ele tem dificuldades de adaptação, pois tal 1998a, 1998b, 2001ª, 2001b).
padrão não serve em seu novo ambiente. Ao Elias, assim como Simmel e Schütz, per-
mesmo tempo, por não compartilhar as con- cebe a relação de interdependência existente
cepções básicas do grupo no qual pretende entre grupos sociais estabelecidos e estranhos
se inserir, o estranho questiona o que parece e, assim como Schütz, examina os padrões
inquestionável para o grupo. Trava-se, as- culturais de ambos. Entretanto, Elias vai
sim, uma relação de estranhamento em mão além dos outros autores quando enfoca a
dupla: do grupo em relação ao indivíduo propagação dos mecanismos de estigmatiza-
questionador e deste em relação às normas e ção e exclusão de indivíduos a partir do estu-
valores do grupo. do da natureza das configurações sociais nas

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quais estes se originam. O termo “estranho” em nível macrossocial, no exame da produ-
raramente é utilizado por Elias, que prefere ção do holocausto.
falar em “outsiders”. Esse conceito pode se A partir do exame desses dois casos,
referir a dois significados: um deles consis- Ribeiro evidencia que a perspectiva de Elias
te na percepção que um grupo hegemônico traz uma contribuição fundamental para
tem sobre um indivíduo ou grupo, sendo o desvendar os mecanismos pelos quais se pro-
outsider aquele que não é familiar e que não duz e reproduz socialmente a exclusão de es-
deve ser incorporado ao grupo hegemônico; tranhos nas sociedades contemporâneas. Por
o outro significado diz respeito à percepção outro lado, o principal limite dos estudos de
que o indivíduo tem de si mesmo a partir Elias sobre o estranho, mostrado por Ribei-
de sua opção de viver de forma diferente do ro, está na ausência de propostas concretas
estilo de vida comumente aceito. Em suma, para solucionar o problema da intolerância,
os outsiders abordados sofrem estigmatização em que pese a sugestão da busca de equilí-
e, assim, são excluídos do compartilhamento brio nas relações entre indivíduo e sociedade.
da vida comunitária do grupo hegemônico. Assim como Elias, Bauman oferece
Em grande medida, esses problemas de- uma explicação para a hostilidade contra os
correm dos processos migratórios que cau- estranhos, mas sob outra perspectiva. Sua
sam encontros entre grupos com culturas interpretação da realidade está centrada na
diferentes. Os dois grupos dão origem a dois ambivalência da modernidade e da pós-mo-
processos característicos: a valoração subjeti- dernidade, em função da contraposição en-
va e mútua entre os grupos e a emergência de tre a insegurança diante da imprevisibilidade
sentimentos de rivalidade. dos processos da modernidade, da busca de
Ribeiro mostra como a abordagem elia- certezas e segurança e, ainda, pela predomi-
siana dirige o olhar para as configurações so- nância pós-moderna de uma visão de mun-
ciais, pensadas como redes de inter-relações do que reconhece a complexidade, a impre-
nas quais os conjuntos de indivíduos estão visibilidade e a ambivalência como aspectos
em constante interação, estabelecendo re- elementares do processo social.
lações mútuas de modo interdependente. A categoria “estranho” se generaliza no
Dessa forma, Elias evita uma postura polari- decorrer da evolução da modernidade pelo
zadora e começa por investigar a rede de in- aumento dos deslocamentos e pela acentu-
ter-relações em que estabelecidos e outsiders ação da heterogeneidade social e personifica
estão inseridos. Além disso, considera o de- aquela ambivalência. Indivíduos podem ser
senvolvimento histórico dos objetos envol- estranhos de diferentes maneiras – como mi-
vidos, e não apenas o momento imediato da grantes, estranhos ao consumo, pessoas com
constatação do fenômeno em questão. Para comportamentos dissonantes da maioria ou
compreender as relações nas quais se insere o simplesmente pessoas que não conhecem
estranho, o autor interpreta as configurações umas às outras e se encontram nas ruas –,
sociais, associadas ao habitus dos membros mas todos têm como característica comum
de uma comunidade que geram exclusão e causar perturbação, mesmo que sem essa in-
preconceito em situações historicamente tenção, por colocarem em questão as regras
contextualizadas. Isso é feito tanto em nível de agir e os padrões de comportamento que
microssocial – como se nota em seu estudo oferecem segurança.
sobre a rivalidade entre comunidades vizi- O problema dos estranhos diz respeito
nhas em uma vila operária inglesa – como principalmente à formação da identidade, a

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qual se desenvolve sobre a base da oposição contro entre diferentes culturas e etnias. Ao
entre “nós” e “eles”. Os estranhos contestam longo do século, o movimento de globaliza-
a validade dessas oposições por não serem ção faz que a condição de estranho se genera-
parte do “nós” nem do “eles”, por estarem lize ainda mais. Todos somos estranhos para
em um espaço que não pode ser definido os outros e estamos cercados de estranhos
precisamente, por isso, eles, mesmo involun- em nosso cotidiano. O medo do estranho se
tariamente, desafiam as certezas e, assim, o faz presente, e se muitas formas de lidar com
conforto dos grupos. ele são apresentadas, desde propostas de res-
Então, como se lida com estranhos? A peito ao outro até ações violentas.
reação mais comum, segundo Bauman, é a O que se percebe no decorrer da tra-
indiferença moral, a fim de estabelecer uma jetória da percepção do estranho, tal como
convivência superficial sem conflitos. Con- desenhada por Luci Ribeiro, é que existem
tudo, em casos extremos, a exclusão dos es- duas formas básicas para lidar com estranhos
tranhos pode induzir à exclusão violenta e a na modernidade, ambas ignorando sua alte-
tentativas de eliminação física. ridade e servindo somente como formas de
Assim, Bauman ajuda a compreender defesa, e não como caminhos para a con-
que, entre as consequências da moderni- vivência. A primeira forma, destacada por
dade, estão movimentos discriminatórios Simmel e Schütz, é a assimilação, que preser-
e violentos que buscam “harmonia”, mas va os direitos civis, mas ignora as diferenças,
aprofundam os problemas, como é o caso tendo como horizonte a homogeneização
dos regimes totalitários. Por outro lado, dos padrões e costumes culturais. A segun-
Bauman também espreita uma alternati- da forma, trazida à tona pela obra de Elias
va ao enxergar, na pós-modernidade, mais e de Bauman, consiste na exclusão do estra-
preocupação com a flexibilidade e com a nho do corpo da sociedade em vários níveis
preservação de diferenças. Dessa forma, a possíveis, desde a restrição do acesso a certos
pós-modernidade acena com uma oportu- círculos sociais, passando pela expulsão total
nidade emancipadora ao oferecer condições do grupo, até a eliminação física.
para que as fronteiras que delimitam e afas- Portanto, o problema do estranho é
tam os estranhos sejam depostas, contanto muito atual e relevante, sendo colocado co-
que a formação da identidade dos indivídu- tidianamente para todos os indivíduos mo-
os contemporâneos não se baseie em uma dernos. Nesse contexto, o livro de Luci Ri-
oposição “nós vs. eles” nem exclua a possi- beiro contribui para pensar sobre a maneira
bilidade de lidar com as incertezas. de lidar positivamente com a diferença nas
Percebido em sua evolução histórica, sociedades contemporâneas. Não existe res-
o panorama traçado por Ribeiro permite posta fácil, assim, não se pode esperar um
ver que a problemática do estranhamento manual de como agir em relação ao tema.
emerge de modo peculiar na modernidade Todavia, o livro oferece ricos subsídios para
a partir da intensificação e diversificação das refletir criticamente sobre o mundo que se
situações de contato entre os indivíduos, por tem e o mundo que se deseja, contribuindo
meio do aumento dos processos de migração para a construção de possíveis caminhos en-
e das situações de interação social e de en- tre um e outro.

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Referências

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