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Sociologia, Problemas e Práticas 

NE | 2016
SPP NE

Édition électronique
URL : http://journals.openedition.org/spp/2575
ISSN : 2182-7907

Éditeur
Mundos Sociais

Édition imprimée
Date de publication : 2 novembre 2016
ISSN : 0873-6529
 

Référence électronique
Sociologia, Problemas e Práticas, NE | 2016, « SPP NE » [En ligne], mis en ligne le 05 février 2017,
consulté le 14 mars 2020. URL : http://journals.openedition.org/spp/2575

Ce document a été généré automatiquement le 14 mars 2020.

© CIES - Centro de Investigação e Estudos de Sociologia


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SOMMAIRE

Artigos

A sociologia e as políticas públicas


Maria das Dores Guerreiro

A constituição e as políticas públicas em Portugal


Maria de Lurdes Rodrigues et Pedro Adão e Silva

A educação em Portugal: princípios e fundamentos constitucionais


Pedro Abrantes

O artigo 64.º da Constituição da República Portuguesa: saúde


Sofia Crisóstomo

Fundamentos constitucionais da igualdade de género


Sónia Fertuzinhos

Fundamentos constitucionais da proteção social: continuidades e ruturas


Ana Rita Ferreira, Daniel Carolo, Mariana Trigo Pereira et Pedro Adão e Silva

Princípios constitucionais do ordenamento do território


Fernanda do Carmo

O território na constituição da República Portuguesa (1976-2005): dos preceitos fundadores


às políticas de território do futuro
João Ferrão

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Artigos

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A sociologia e as políticas públicas


Maria das Dores Guerreiro

1 Com a publicação de um número especial de Sociologia, Problemas e Práticas no ano de


2016 pretendemos celebrar o trigésimo aniversário da revista e, em simultâneo, os 40
anos da Constituição da República Portuguesa que emanou da Revolução de Abril de
1974 e da instauração de um regime democrático em Portugal.
2 Fundada em 1986 no Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES) do ISCTE,
esta revista nasceu da necessidade de dar a conhecer a produção sociológica resultante
da atividade de investigação que os sociólogos investigadores do CIES vinham a
desenvolver, no âmbito de uma área científica apenas permitida na academia
portuguesa após a queda do regime ditatorial do Estado Novo e que uma década depois
manifestava já um significativo grau de maturação e de conhecimento acumulado, que
importava promover.
3 Ao mesmo tempo que constituía um veículo de disseminação dos resultados das
pesquisas realizadas, a revista abria também espaço à publicação de outros trabalhos no
domínio das ciências sociais, tanto de autores portugueses como de autores
internacionais com quem se entabulava um diálogo mais estreito e cujas obras eram
ponto de referência para o que se ia estudando na sociedade portuguesa. Anthony
Giddens, Edgar Morin, Franco Ferrarotti, Jean Kellerhals, Jürgen Habermas, Renaud
Sainsaulieu, são alguns desses nomes de cientistas internacionais cujos artigos figuram
nos primeiros volumes da revista.
4 Com uma periodicidade mais reduzida inicialmente, este projeto editorial esteve
associado, ao longo das suas três décadas de existência, a diferentes regimes de
publicação, sendo Sociologia, Problemas e Práticas presentemente publicada pelo CIES e
pela Editora Mundos Sociais.
5 É possível identificar várias fases num trajeto de 30 anos de publicação da revista. Após
a sua criação na segunda metade da década de 1980, uma fase importante da sua
consolidação ocorreu nos anos 90, com a expansão das pesquisas na área da sociologia e
a crescente abertura a autores com diferentes inserções institucionais. A publicação
numa parceria do CIES com a Celta Editora e o aumento da periodicidade anual para
três números a partir de 1998 foi um outro marco de relevo, a que se seguiu o

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pioneirismo na integração da base de dados SciELO e no acesso aberto, bem como, mais
recentemente, a inserção na SCOPUS e noutras bases internacionais de indexação.
6 Com a publicação de artigos em quatro línguas, tem continuado a acolher trabalhos de
autores estrangeiros como Arlie Hochschild, Bernard Lahire, Dave Elder-Vass, Gilberto
Velho, Margaret Archer, entre muitos outros que configuram presentemente uma
maioria de autores externos ao ISCTE-IUL a submeterem artigos. Contando 82 números
publicados à data da edição deste número comemorativo especial, Sociologia, Problemas e
Práticas regista até ao presente a colaboração de um total de mais de 600 autores.
Destes, acima de centena e meia são estrangeiros e perto de três centenas são autores
nacionais pertencentes a instituições externas ao CIES e ao ISCTE-IUL, o que indicia
uma indubitável capacidade de projeção da revista no campo das ciências sociais para
além das fronteiras da instituição onde foi criada.
7 É de realçar, assim,  que cerca 70% das autorias dos trabalhos publicados são
provenientes do exterior do ISCTE-IUL, tanto a nível nacional como internacional. Por
outro lado, encontra-se entre os primeiros lugares das principais revistas de língua
portuguesa e espanhola de ciências sociais indexadas na SCOPUS, onde tem vindo a
consolidar o seu posicionamento no índice SJR e no rácio de citações por artigo.
8 Acolhendo artigos de outras áreas das ciências sociais com as quais a sociologia dialoga,
destaca-se o espaço que tem vindo a ser preenchido por trabalhos no âmbito das
políticas públicas. Esta é, com efeito, uma área para a qual a investigação sociológica em
muito contribui para a identificação de problemas, na produção de conhecimento para
o desenho de políticas, bem como na avaliação e análise dessas políticas. Tem-se vindo a
consolidar institucionalmente a partir da criação da Escola de Sociologia e Políticas
Públicas do ISCTE-IUL, onde o CIES se enquadra, enquanto centro no qual a sociologia e
as políticas públicas são dois domínios centrais de investigação e publicação científicas.
9 As políticas públicas representam, efetivamente, uma área em franco crescimento nos
últimos anos, mobilizadora de muitos investigadores e docentes da Escola de Sociologia
e Políticas Públicas, num entrosamento profícuo com evidentes resultados e
contribuições, de equacionamento e estudo, plasmados em diversos artigos e outras
publicações. A revista Sociologia, Problemas e Práticas tem constituído um espaço onde
vários desses artigos têm sido publicados, granjeando o interesse de leitores e
estudiosos destas matérias.
10 Pareceu por isso apropriado, juntar à comemoração dos 30 anos da revista a
comemoração dos 40 anos da Constituição de 1976, através da publicação de um volume
especial cujos artigos se centram na análise de diversos domínios das políticas públicas
na sua relação com os princípios constitucionais. Decorrentes do Fórum das Políticas
Públicas organizado por Maria de Lurdes Rodrigues e Pedro Adão e Silva na Assembleia
da República em maio de 2016, os trabalhos aqui apresentados fazem uma análise de
algumas das principais políticas públicas que, como referem estes autores no seu
primeiro artigo, já se prefiguravam no texto constitucional consagrador da construção
de um estado social. Temos assim, para além da análise das mudanças introduzidas na
Constituição nas suas várias revisões, um conjunto de outros textos que examinam o
papel da Constituição na construção do sistema educativo, como o de Pedro Abrantes,
ou na criação de um serviço nacional de saúde universal prestador de cuidados
preventivos, curativos e de reabilitação, tal como é mencionado por Sofia Crisóstomo.
Ana Rita Ferreira, Daniel Carolo, Mariana Trigo Pereira e Pedro Adão e Silva mostram,
por outro lado, as continuidades e ruturas que atravessam as políticas de proteção

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social, adaptando anteriores dispositivos organizadores e desenvolvendo princípios


universais decorrentes do quadro constitucional. O percurso de construção das políticas
de igualdade de género é abordado por Sónia Fertuzinhos, enquanto Fernanda do
Carmo e João Ferrão, nos seus artigos, focam o modo como as políticas de ordenamento
do território foram determinadas pelos fundamentos da Constituição.

AUTOR
MARIA DAS DORES GUERREIRO
Diretora de Sociologia, Problemas e Práticas. Professora do Departamento de Sociologia da Escola
de Sociologia e Políticas Públicas do ISCTE-IUL, Investigadora do Centro de Investigação e Estudos
de Sociologia (CIES-IUL), Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal.
maria.guerreiro@iscte.pt

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A constituição e as políticas públicas


em Portugal
The Constitution and public policies in Portugal
La Constitution et les politiques publiques au Portugal
La Constitución y las políticas públicas en Portugal

Maria de Lurdes Rodrigues e Pedro Adão e Silva

1 As políticas públicas desenvolvidas ao longo dos últimos 30 anos encontram os seus


fundamentos na Constituição aprovada em 1976 e nas suas sucessivas revisões.
O quadro constitucional de definição e de concretização de políticas públicas, em
setores como a saúde, a proteção social, a educação, o território, bem como de
promoção da igualdade e da justiça, permitiu transformar e modernizar o país. 1
2 O texto constitucional está organizado em quatro partes. É no final da parte I, “Direitos
e deveres fundamentais”, do artigo 63.º ao 79.º, que se encontram os princípios
constitucionais que consagram a obrigação do estado de promover políticas públicas
para assegurar e garantir a construção do estado social e o acesso de todos, em
condições de igualdade, isto é, independentemente da sua condição económica ou
social, de raça ou de género, a serviços de proteção social (artigo 63.º), de saúde (artigo
64.º) e de educação (artigos 74.º a 76.º), consagrando ainda deveres do estado no campo
da habitação e do ordenamento do território (artigos 65.º e 66.º).
3 Os fundamentos constitucionais das políticas de justiça encontram-se mais dispersos.
Por um lado, derivam da consagração dos direitos, liberdades e garantias que
asseguram a inclusão de todos como cidadãos, sem exclusão (artigo 12.º, sobre a
universalidade), e a igualdade formal perante a lei (artigo 13.º, sobre a igualdade), bem
como a proteção da vida, liberdade, escolhas e propriedade dos indivíduos, impedindo a
ingerência, o abuso e o arbítrio de poder do estado, isto é, impondo limites e condições
aos atos do estado que possam restringir ou limitar os direitos cívicos, as liberdades e as
garantias pessoais (artigos 27.º a 35.º). É a ordem constitucional tuteladora da vida e da
liberdade de cada cidadão. Por outro lado, encontram-se ainda na parte III do texto
constitucional, onde se institui o modelo da organização política segundo os princípios
da separação ou divisão de poderes (artigos 108.º a 119.º), definindo-se aí a organização

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do poder judicial, isto é, dos tribunais, o estatuto dos juízes, do Ministério Público e do
Tribunal Constitucional (artigos 202.º a 224.º).
4 Para analisar a construção do estado de direito democrático e social e a trajetória das
políticas públicas na democracia é necessário ter em conta, para além da Constituição,
outros diplomas legais. No caso das políticas de justiça, é necessário considerar as
grandes leis ordenadoras em que se declina o direito à liberdade (como, entre outras, o
Código Penal e o Código de Processo Penal, a Lei de Menores e a Lei da Saúde Mental) e
as leis que organizam o sistema de justiça. No caso das políticas sociais, é necessário ter
em conta as leis de bases dos sistemas sociais (como a Lei de Bases do Sistema Nacional
de Saúde, a Lei de Bases da Segurança Social, a Lei de Bases do Sistema Educativo e a Lei
de Bases da Política de Solos, de Ordenamento do Território e Urbanismo), e outros
diplomas setoriais estruturantes, nos quais se materializam os princípios
constitucionais de garantia da liberdade, da universalidade, da igualdade e da igualdade
de oportunidades. Estes diplomas preveem diferentes graus de aproximação ou
afastamento dos princípios constitucionais, bem como de abertura e de flexibilidade, no
que respeita, por exemplo, à relação do estado com os promotores dos setores privado,
cooperativo e social, assim como à relação entre a administração central e o poder
local.
 
As revisões da Constituição
5 A Constituição da República Portuguesa aprovada em 1976 afirmou um regime de
estado de direito assente nos princípios da separação de poderes e da igualdade de
todos os cidadãos, sem exclusão, perante a lei. E simultaneamente, afirmou o caráter
social e democrático do estado, introduzindo, ao nível político, económico e social,
importantes ruturas com o regime anterior. No que respeita às políticas públicas
ficaram, em 1976, constitucionalizados, não apenas os direitos sociais, como também as
obrigações do estado na criação de sistemas públicos de educação e de saúde e na
promoção de serviços universais e gratuitos, para garantir a igualdade de oportunidades.
6 Ao longo destes 40 anos, a Constituição foi revista sete vezes. Destas revisões, três
incidiram sobre questões estruturais, implicando significativos processos de alteração
do articulado constitucional (1982, 1989 e 1997); e quatro estiveram relacionadas com a
adesão a tratados internacionais, implicando revisões cirúrgicas (1992, 2001, 2004 e
2005).
7 A revisão de 1982 teve como principal objetivo desmilitarizar o regime e reafirmar os
princípios do estado de direito democrático. No texto legislativo de 1976, a qualificação
da República Portuguesa como um estado de direito estava consagrada apenas no
Preâmbulo, sem valor legal, e foi nesta revisão constitucionalizada no artigo 2.º. No
mesmo sentido a expressão preambular “sociedade sem classes”, foi substituída por
“sociedade livre, justa e solidária”.
8 Na parte da organização política, foi extinto o Conselho da Revolução, sendo substituído
pelo Tribunal Constitucional com a função de fiscalizar a constitucionalidade das leis.
Até então, a função de fiscalização da constitucionalidade era assegurada pelo Conselho
da Revolução, habilitado por uma Comissão Constitucional. Foi também criado um novo
órgão, o Conselho de Estado, para aconselhamento do presidente da República, cujos
poderes discricionários de demissão do governo e de dissolução da Assembleia da
República foram então limitados, sendo reforçado o parlamentarismo.Ainda no que

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respeita à organização política, a competência do ministro da Justiça para nomear os


juízes passa para os conselhos superiores de governo do poder judicial,  aprofundando-
se o princípio da separação de poderes.
9 Na parte da organização económica, introduziram-se várias modificações no sentido de
liberalizar o sistema económico, diminuindo a intervenção do estado e abrindo espaço à
iniciativa privada, afirmando-se uma organização económica mista. Contudo,
continuaram no texto constitucional as referências às nacionalizações e à reforma
agrária.
10 A revisão de 1989 teve como principal objetivo prosseguir o processo de liberalização da
economia. Assim, aprofundaram-se as alterações na II parte relativa à organização
económica, visando afirmar o primado da economia de mercado. Diminuiram os
deveres do estado de planificação económica, foi revogado o princípio da
irreversibilidade das nacionalizações, consagrando-se a possibilidade de
reprivatizações reguladas por lei-quadro aprovada por maioria absoluta dos deputados.
Do articulado relativo à política agrícola foi abandonada a referência à reforma agrária,
passando a referir-se apenas o objetivo de eliminação do latifúndio e de ordenamento
do minifúndio.
11 No que respeita aos deveres do estado na concretização dos direitos sociais apenas foi
alterado o artigo 64.º, ficando estabelecido que o Serviço Nacional de Saúde seria
“universal, geral e tendencialmente gratuito”, “tendo em conta as condições
económicas e sociais dos cidadãos”. Esta formulação manteve-se até hoje.
12 Na parte da organização política foi introduzida a possibilidade de referendo e
definidas as condições de realização.
13 Em 1997, a revisão da Constituição incidiu basicamente sobre a parte da organização
política, tendo sido revisitada a distribuição dos poderes pelos diferentes órgãos. Foram
aumentados os poderes legislativos exclusivos da Assembleia da República, foram
alargadas as competências do Tribunal Constitucional, e instituída a possibilidade de
candidaturas de independentes às eleições autárquicas. No que respeita à composição e
eleição da Assembleia da República, foi aberta a possibilidade de o número de
deputados poder variar entre 180 e 230, bem como a de criação de círculos uninominais
nas eleições legislativas. Foram alargados os direitos políticos dos cidadãos: os
emigrantes adquiriram direito de voto na eleição do presidente da República e os
cidadãos estrangeiros europeus ganharam capacidade eleitoral. No mesmo sentido foi
reconhecido direito de iniciativa legislativa aos cidadãos e alargado o regime de
referendo, impondo-se constitucionalmente que a regionalização fosse submetida a
referendo.
14 As quatro revisões cirúrgicas de 1992, 2001, 2004 e 2005 foram determinadas pela
integração do país na União Europeia e pela necessidade de adaptação da Constituição a
diferentes tratados. Em 1992, a revisão constitucional consistiu na adaptação ao
Tratado de Maastricht, tendo ficado consagrada a possibilidade de voto, para as eleições
europeias, de cidadãos europeus a viver em Portugal, e a adesão à União Económica e
Monetária. Em 2001, a alteração da lei fundamental visou a adaptação às disposições do
Tribunal Penal Internacional, sendo revistas as regras de extradição, de expulsão, de
asilo e introduzidas restrições nos direitos de inviolabilidade do domicílio e da
correspondência. Em 2004, a revisão constitucional visou aprofundar a integração da
Constituição no campo jurídico-constitucional da União Europeia. Foi aperfeiçoada a
compatibilidade do texto constitucional com as regras das relações internacionais e do

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direito internacional, nomeadamente com as normas da União Europeia e dos tratados


europeus. No capítulo da organização política, foi dada mais autonomia às regiões
autónomas e alargados os poderes das assembleias regionais. Foi ainda alargado o
âmbito da limitação dos mandatos dos cargos políticos e eletivos. Em 2005, a revisão
constitucional visou apenas permitir o referendo de tratados de construção europeia.
15 Como vimos, as revisões e ajustamentos do texto constitucional incidiram quase
exclusivamente sobre dois campos. Em primeiro lugar, as matérias de organização
económica, com o objetivo de imprimir à economia uma orientação de mercado. Em
segundo lugar, sobre a organização política, com o objetivo de, por um lado, conferir
direitos políticos mais alargados aos cidadãos e, por outro, promover a redistribuição
de poderes e competências, envolvendo o presidente da República, a Assembleia da
República, o poder judicial, o poder local e as regiões autónomas, consolidando e
aprofundando os princípios de separação de poderes, da independência e da autonomia.
16 Os deveres do estado na promoção de políticas sociais e de igualdade não sofreram
alterações depois de 1989. Por que razão? Porque reuniam o apoio unânime de todas as
forças partidárias? Ou, pelo contrário, permanecem ainda hoje significativas diferenças
político-partidárias, mas não foi possível ao longo dos últimos 30 anos alterar a relação
de forças e construir um outro compromisso?
 
Os debates sobre a necessidade de rever a
Constituição
17 Um olhar sobre os debates públicos acerca da Constituição e da necessidade da sua
revisão permite encontrar algumas respostas para estas questões. De facto os debates
públicos permitem compreender o que distingue os diferentes partidos políticos, o que
os afasta e o que os aproxima. Sobretudo depois de 2010, com os impactos da crise do
sistema financeiro e da crise do euro na dívida pública, e com a adoção de políticas
orçamentais restritivas de controlo do défice e da dívida, emergiram vários debates
públicos sobre a necessidade de revisão da Constituição. Em 2010, foi desencadeado
formalmente um processo de revisão constitucional promovido pela Assembleia da
República por iniciativa do PSD. Em 2011, a propósito da passagem de 35 anos sobre a
aprovação do texto constitucional, a Fundação Francisco Manuel dos Santos promoveu
um debate que envolveu peritos de diferentes formações e sensibilidades políticas.
Também entre 2011 e 2015, foimuito alargado o debate público em torno de decisões do
Tribunal Constitucional acerca da constitucionalidade de medidas de política no
contexto de aplicação do programa de ajustamento orçamental previsto no Memorando
de Entendimento assinado pelo governo e a troika.
 
O debate na Assembleia da República em 2010

18 O processo de revisão constitucional aberto pela Assembleia da República, em 2010, por


iniciativa do PSD, contou com a apresentação de propostas de todos os partidos
políticos com assento parlamentar.
19 O projeto de revisão constitucional do PSD entregue na Assembleia continha duas
propostas que geraram forte controvérsia. Em primeiro lugar, o abandono dos
princípios da universalidade e gratuitidade dos serviços públicos de saúde e de

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educação e a constitucionalização do princípio do utilizador pagador: “nenhum


português pode deixar de ter acesso à Saúde e à Educação por insuficiência de meios
económicos”. Expressões como “gratuito” e “tendencialmente gratuito” no acesso à
educação e à saúde, seriam trocadas por “não podendo, em caso algum, o acesso ser
recusado por insuficiência de meios económicos”. O PSD foi buscar inspiração ao
articulado respeitante às condições de acesso à justiça, onde estava já consagrada,
desde 1976, a expressão “por insuficiência de meios económicos”. A segunda proposta
de alteração respeitava à substituição da “proibição de despedimentos sem justa causa”
por “sendo proibidos os despedimentos sem razão legalmente atendível”. Finalmente, o
PSD propunha ainda que o texto constitucional fosse “expurgado da ideologia e da
orientação programática e estatista”.
20 O CDS-PP, nesta mesma linha, apresentou uma proposta para a supressão do preâmbulo
da Constituição, sugerindo também alterações no vocabulário utilizado na lei
fundamental, designadamente nas referências “eliminação dos latifúndios”,
“autogestão”, “apropriação dos meios de produção”, assim como “abolição do
imperialismo”, “desarmamento geral”, “dissolução dos blocos político-militares”. No
que respeita aos fundamentos constitucionais das políticas públicas, o CDS propunha a
inclusão da possibilidade de contratualização dos privados no Serviço Nacional de
Saúde e a fixação de um limite para os impostos cobrados, no valor de 35% do PIB do
país, bem como a obrigatoriedade da “discriminação dos encargos plurianuais
suscetíveis de excederem a duração da legislatura em curso”, visando assim proteger as
gerações futuras. Na parte da organização política, o CDS propunha que a nomeação dos
membros das entidades administrativas independentes passasse a fazer parte dos
poderes do presidente da República, após audição prévia na Assembleia da República,
incluindo a nomeação do presidente do Tribunal de Contas e do procurador-geral da
República.
21 O PS respondeu à iniciativa do PSD com uma proposta de revisão constitucional
minimalista, centrada nas questões de relacionamento do governo com a Assembleia da
República e nos calendários eleitorais.
22 O Bloco de Esquerda, no seu projeto de revisão constitucional, pretendia “a afetação dos
portos e aeroportos, e da rede elétrica nacional ao domínio público”, tendo em vista a
“defesa estratégica do país” (artigo 84.º). No que respeita à organização política, o Bloco
de Esquerda apresentou a proposta de descida da idade mínima de votar para 16 anos, e
de atribuição de “capacidade eleitoral aos imigrantes legalmente residentes há mais de
quatro anos, devendo poder votar e ser eleitos para a Assembleia da República, e
Assembleias Legislativas das regiões autónomas”.
23 O PCP, no seu projeto, apresentou propostas visando reforçar os direitos dos
trabalhadores, com aumento do salário mínimo e redução do horário de trabalho, bem
como melhorar o acesso aos serviços públicos de educação e de saúde. No capítulo dos
direitos pretendia também eliminar as restrições ao direito à greve das forças de
segurança e o reconhecimento “do direito de todos os cidadãos à água e ao saneamento
básico”. No campo da organização política, o PCP propunha a “eliminação da
obrigatoriedade de referendo para a criação de regiões administrativas”, e “das normas
que permitem a sistemática transferência da soberania nacional para as instituições da
União Europeia e que admitem a prevalência das normas emanadas da União Europeia
sobre o Direito interno”. Propunha ainda que os mandatos do procurador-geral da

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República, do provedor de Justiça e do presidente do Tribunal de Contas fossem fixados


em seis anos, não renováveis.
24 O Partido Ecologista / Os Verdes apresentou uma proposta visando a consagração
constitucional da rejeição da energia nuclear, e ainda a clarificação do “objetivo de
combate às alterações climáticas e de defesa da biodiversidade”.
 
Os debates na sociedade civil entre 2010 e 2014

25 Entre 2010 e 2011, na sequência da crise económica e financeira, tanto o PSD como o
CDS defenderam publicamente a necessidade de rever a Constituição com o propósito
de inscrever a designada “regra de ouro”, isto é, a fixação de um limite constitucional
ao défice orçamental num valor abaixo dos 3%. O PS recusou esta ideia e não foi
apresentada qualquer proposta nesse sentido.
26 Num outro momento, em 2011, por ocasião dos 35 anos da Constituição, a Fundação
Francisco Manuel dos Santos (FFMS) organizou um debate publicado em e-book, 2 que
envolveu cerca de 40 personalidades com diferentes formações e de diferentes
quadrantes políticos. O debate resultou muito diferente dos habituais debates
parlamentares. O estatuto das pessoas envolvidas no desafio de rever a Constituição
(não apenas juristas, nem apenas deputados) e o contexto criado permitiram um debate
sem os constrangimentos político-partidários habituais. Pode dizer-se que permitiram
um debate intelectualmente mais livre, um debate marcado mais pela ética das
convicções do que pela ética das responsabilidades.
27 Do conjunto do debate resultaram inúmeras propostas pragmáticas, mas não
necessariamente realistas, sem que, em nenhum caso, no todo ou em parte, se colocasse
em causa o regime instituído. Um dos organizadores do debate refere:
28 O país já está constituído em muitos aspetos: o poder local, a existência de regiões
autónomas insulares, o núcleo essencial dos direitos, liberdades e garantias. Noutros
pontos, está tudo em aberto: na regionalização, por exemplo. Outros pontos ainda estão
relativamente em aberto ou, pelo menos, continuam a gerar dúvidas: o pendor mais ou
menos presidencial do sistema de governo, o sistema eleitoral, a existência de uma
jurisdição constitucional autónoma. […] Contudo, não se defende que a Constituição
deva ser mudada a fundo ou que deva ocorrer uma mudança de regime (António
Araújo, “A Constituição como problema” , em FFMS (2011), A Constituição Revista).
29 As propostas apresentadas eram, em muitos casos, pontuais e marcadas por
preocupações de agendamento de questões de conjuntura, sem referência a problemas
constitucionais. Porém, em outros casos, propuseram-se soluções de aprofundamento
técnico-político para problemas constitucionais concretos, pensadas
independentemente da maior ou menor facilidade política da sua concretização.
30 No capítulo dos direitos, foram apresentadas propostas para a transferência para a
esfera pública dos encargos e responsabilidades que resultam da garantia de direitos
sociais atualmente assegurados pelas entidades empregadoras (artigos 59.º e 68.º). Na
parte da organização económica, várias propostas íam no sentido da alteração de todo o
articulado que constitucionaliza a orientação planificadora da economia para uma
orientação liberal e de mercado, bem como no sentido da constitucionalização de
limites e de mecanismos de controlo da dívida e da despesa pública e do aumento de
receita por via fiscal.

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31 No que respeita à organização política, é referida a necessidade de reforço do


envolvimento do presidente da República e da Assembleia da República na indigitação e
nomeação de dirigentes de cargos públicos ou entidades reguladoras; de alargamento
dos poderes do presidente de dissolução do parlamento; de abandono dos círculos
uninominais; e, ainda, de eliminação dos limites estabelecidos para a produção de
efeitos dos resultados dos referendos e o alargamento dos direitos de participação
política dos cidadãos e de organizações da sociedade civil.
32 As propostas apresentadas neste debate íam mais longe, sobretudo, no capítulo da
organização dos tribunais (artigos 202.º a 220.º) e do Tribunal Constitucional (artigos
221.º a 224.º), sobretudo no articulado que se considera ter maior impacto no sistema de
justiça:
33 Em Portugal não existe uma “questão constitucional” sobre o significado do poder
judicial e o estatuto dos juízes, como se verifica na leitura dos projetos de revisão
constitucional, que não propõem alterações quanto às normas que definem e regulam a
atividade dos tribunais, determinando a independência dos juízes e a obrigatoriedade
das suas decisões para todas as autoridades públicas. Na realidade, os “graves
problemas”, que no dizer comum, a justiça enfrenta não se referem propriamente aos
juízes e à sua atividade, mas ao “serviço de justiça” […] problemas de atraso
sistemático, de onerosidade, de ineficiência e de injustiça do próprio sistema legal e
judicial. […] Por essa razão nos processos de revisão constitucional “discute-se
sobretudo a organização das jurisdições, com propostas relativas ao governo das
magistraturas, visando a extinção do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos
e Fiscais e as mudanças na composição e no funcionamento do Conselho Superior de
Magistratura (Vieira de Andrade, ”Tribunal Constitucional e tribunais", em FFMS
(2011), A Constituição Revista, pp. 115-116).
34 Neste sentido, neste  debate foram apresentadas várias propostas. Em primeiro lugar,
propostas de introdução de preceitos que concretizem a separação e a
interdependência dos poderes, através da limitação do poder de desaplicação das leis
com fundamento de inconstitucionalidade ou, em alternativa, da transposição do artigo
3.º do Código do Processo nos Tribunais Administrativos, tendo em vista regular a
contenção dos juízes, no respeito devido aos outros poderes estaduais, seja perante a
legitimidade política do parlamento e do governo, seja perante a legitimidade técnica
da administração.
35 Em segundo lugar, foram apresentadas propostas tendentes a densificar o estatuto
jurídico e deontológico dos juízes, sublinhando o perfil de titulares de órgãos de
soberania, bem como de alteração dos mecanismos de nomeação e de promoção dos
magistrados, visando uma maior abertura e responsabilização.
36 Em terceiro lugar, propostas de alteração da composição e funcionamento dos
conselhos superiores, visando garantir um equilíbrio entre a representação corporativa
e a legitimidade democrática, passando também pela integração do Conselho Superior
dos Tribunais Administrativos e Fiscais no Conselho Superior de Magistratura.
37 O período entre 2011 e 2015, no contexto de aplicação do Memorando de Entendimento
assinado pelo governo e a troika e de execução do programa de ajustamento
orçamental, foi muitas vezes, por iniciativa de deputados e do presidente da República,
solicitada a fiscalização de constitucionalidade de várias medidas de política,
designadamente as que implicavam cortes nas pensões e nos salários dos funcionários

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públicos. Os pareceres e acórdãos do Tribunal Constitucional relativos à


constitucionalidade de tais medidas foram geradores de um debate sobre os seus
poderes e competências e sobre a forma como estes eram exercidos. 3 No debate público
tornou-se evidente que os anos de aplicação do programa de ajustamento financeiro
sob tutela da troika tiveram, para muitos portugueses, o efeito de revelar a Constituição.
Funcionaram como uma espécie de raio X, mostrando uma parte do interior do corpo,
que se sabe que existe, mas que não se sente. Se, por um lado, se fez sentir
internamente a pressão externa (por parte dos mercados, das instituições da UE e da
troika), e interna (por parte do governo de coligação PSD/CDS) para a perda de
soberania, por outro, tomou-se consciência da importância das salvaguardas
constitucionais na defesa dessa mesma soberania. 4
 
Notas finais
38 Os artigos da Constituição em que se fundamentam as políticas públicas mantiveram-se
ao longo dos últimos 30 anos praticamente inalterados. Nos debates sobre a revisão da
Constituição promovidos em diferentes espaços, apenas os princípios relacionados com
as políticas de justiça e o poder judicial têm suscitado controvérsia e propostas
concretas de revisão. Mesmo no debate público suscitado pelos sucessivos pedidos de
fiscalização de constitucionalidade das medidas de austeridade, que implicavam os
cortes de salários e de pensões, nunca estiveram em causa os fundamentos
constitucionais das políticas sociais. É necessário compreender se tal resulta do apoio
unânime das forças partidárias a tais preceitos constitucionais ou se, pelo contrário,
permanecem significativas diferenças político-partidárias que apenas se não
manifestam por a relação de forças ser desfavorável a compromissos alternativos.
39 Em 1976, haviam passado apenas dois anos da Revolução de 25 de Abril e o texto
constitucional foi o compromisso possível entre os principais partidos políticos. Já
nessa altura, em muitos aspetos se registavam diferenças ideológicas e divergências de
visão sobre os problemas do país e sobre os modelos de organização política e
económica. Por exemplo, registavam-se divergências em torno do objetivo de “abertura
do caminho para uma sociedade socialista”, tendo em vista “a construção de uma
sociedade sem classes”, ou de “nacionalização dos principais meios de produção”, ou
ainda de manutenção dos militares no exercício do poder político, através do Conselho
da Revolução. Contudo, apesar das diferenças entre os partidos políticos não terem sido
anuladas, elas também não foram impeditivas da aprovação do texto constitucional,
nem um obstáculo à construção de compromissos políticos duradouros. No mesmo
sentido, os limites constitucionais — obrigações ou impedimentos —  colocados à ação
governativa não foram impeditivos da alternância política, nem do pluralismo de visões
e de orientações na ação governativa, que tornaram possível o desenvolvimento do
estado social de direito e democrático. À Constituição e às leis de base setoriais
estruturantes reconhece-se o mérito de se terem constituído como guias de ação, mas
também como guias de não ação. Isto é,  impediram que a alternância política esse
traduzisse em ruturas institucionais, permitindo ainda assim a expressão de
diversidade nas políticas públicas.
40 Apesar de estar prevista a possibilidade de fiscalização da inconstitucionalidade por
omissão (artigo 283.º), sempre que os direitos, liberdades e garantias pressupõem a
prestação pelo estado de serviços públicos, não há, na prática, mecanismos judiciais

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para exigir que o estado cumpra as obrigações constitucionais de promoção das


políticas públicas sociais, visando a igualdade de oportunidades. A efetivação daqueles
direitos não é algo que possa ser exigido individualmente pelos cidadãos através dos
tribunais. A efetiva promoção de políticas públicas só pode ser assegurada por via
política, pelas escolhas dos eleitores ou pelo não voto. Pode dizer-se que a garantia da
igualdade de oportunidades e da concretização das políticas públicas depende da
política e não do direito. Porém, sem a consagração das obrigações do estado no texto
constitucional dificilmente teriam sido desenvolvidas as políticas públicas que levaram
à construção do estado social e de direito que hoje temos.
41 Finalmente, embora o texto constitucional tenha sido decisivo para a concretização de
políticas sociais e para a promoção da igualdade de oportunidades, Portugal continua a
ser, na União Europeia, um dos países com mais elevados níveis de desigualdade. Para
enfrentar o futuro com confiança vale pois a pena aprofundar o debate sobre a
Constituição e as políticas públicas, procurando novos compromissos que permitam
continuar a construir um país mais moderno, mais justo, mais igualitário.

NOTAS
1. O dossiê apresentado neste número especial da revista Sociologia, Problemas e Práticas reúne
alguns dos trabalhos do Fórum das Políticas Públicas 2016, dedicado à análise dos “Fundamentos
Constitucionais das Políticas Públicas em Portugal”, realizado na Assembleia de República, nos
dias 24 e 31 de maio. O Fórum das Políticas Públicas é uma iniciativa de professores e
investigadores de políticas públicas do ISCTE-IUL, que se realiza desde 2011 e que tem como
objetivos gerais, por um lado, promover o debate de ideias, o conhecimento e a informação sobre
políticas públicas em Portugal e, por outro, contribuir para a melhoria da qualidade da sua
conceção, concretização, regulação e avaliação. As intervenções e debates das anteriores edições
do Fórum foram reunidos em livros: Políticas Públicas em Portugal (INCM, 2012), Políticas
Públicas para a Reforma do Estado (Almedina, 2013) e Governar com a Troika. Políticas Públicas
em Tempo de Austeridade (Almedina, 2015). Em 2016 assinalou-se a passagem de 40 anos da
aprovação da Constituição no dia 2 de abril de 1976 e este foi o pretexto para, em colaboração
com a Assembleia da República, analisar e debater os fundamentos constitucionais das políticas
públicas em Portugal. Foi dado particular destaque aos fundamentos constitucionais e às
trajetórias das políticas públicas em setores como o da saúde, da protecção social, da educação,
do território, bem como das políticas públicas de promoção da igualdade e da justiça, envolvendo
no debate peritos e especialistas em políticas públicas e protagonistas políticos.
2. FFMS (2011), A Constituição Revista, Lisboa, FFMS [c05527e4-9fb8-4fe1-97b1-0264e172fe15.pdf].
3. J. R. Novais, Em Defesa do Tribunal Constitucional, Coimbra, Edições Almedina, 2014; e G. A.
Ribeiro et al., O Tribunal Constitucional e a Crise, Coimbra, Edições Almedina, 2014.
4. A aplicação do Memorando de Entendimento e das medidas de austeridade teve sobretudo
efeitos devastadores pela degradação das condições materiais de vida e pelas ruturas nos quadros
normativos vigentes, pela imprevisibilidade das novas regras e consequente quebra nas
instituições e fragilização das organizações. Ver M. L. Rodrigues, e P.A. Silva, Governar com a
Troika. Políticas Públicas em Tempo de Austeridade, Coimbra, Edições Almedina, 2015 .

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RESUMOS
As políticas públicas desenvolvidas ao longo dos últimos 30 anos em Portugal encontram os seus
fundamentos na Constituição aprovada em 1976 e nas suas sucessivas revisões. A inscrição
constitucional da obrigação do estado de promover políticas públicas para assegurar a construção
do estado social, garantindo a todos os cidadãos a protecção social, a saúde e a educação, resultou
de compromissos político-partidários que foram decisivos para a construção dos serviços
públicos universais e gratuitos que hoje conhecemos.

The legal foundation for the public policies developed and pursued in Portugal over the last 30
years is the 1976 Constitution and its successive revisions. The inclusion in the Constitution of an
obligation on the part of the state to promote and organise public policies designed to construct
a welfare state, guaranteeing social protection, healthcare and education for all, was the result of
party political commitments that were decisive elements in the creation and consolidation of the
free and universal public services we know today.

Les politiques publiques mises en œuvre au long des 30 dernières années au Portugal sont
fondées sur la Constitution adoptée en 1976 et ses révisions successives. L’inscription
constitutionnelle de l’obligation de l’État de promouvoir des politiques publiques pour assurer la
construction de l’État social, en garantissant à tous les citoyens la protection, la santé et
l’éducation,  est le fruit d’engagements politiques qui furent décisifs pour la construction des
services publics universels et gratuits que nous connaissons aujourd’hui.

Las políticas públicas desarrolladas a lo largo de los últimos 30 años en Portugal encuentran sus
fundamentos en la Constitución aprobada en 1976 y en sus revisiones sucesivas. La inscripción
constitucional de la obligación del estado de promover políticas públicas para asegurar la
construcción del estado social, garantizando a todos los ciudadanos la protección social, la salud
y la educación, resultó de compromisos político-partidarios que fueron decisivos para la
construcción de los servicios públicos universales y gratuitos que hoy conocemos.

ÍNDICE
Palabras claves: políticas públicas, constitución, Portugal, estado social, Foro de las Políticas
Públicas
Mots-clés: politiques publiques, Constitution, Portugal, État social, Forum des Politiques
Publiques
Keywords: public policies, Constitution, Portugal, welfare state, Public Policy Forum
Palavras-chave: políticas públicas, Constituição, Portugal, estado social, Fórum das Politicas
Públicas

AUTORES
MARIA DE LURDES RODRIGUES
Docente no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) e coordenadora do Fórum das Políticas
Públicas, Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL), Av. das Forças Armadas,
1649-026 Lisboa, Portugal.
mlurdes.rodrigues@iscte.pt

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PEDRO ADÃO E SILVA


Docente no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) e coordenador do Fórum das Políticas
Públicas, Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL), Av. das Forças Armadas,
1649-026 Lisboa, Portugal. 
padaoesilva@gmail.com

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A educação em Portugal: princípios


e fundamentos constitucionais
Education in Portugal: key constitutional principles and bases
L’éducation au Portugal: principes et fondements constitutionnels
La educación en Portugal: principios y fundamentos constitucionales

Pedro Abrantes

1 A Constituição da República Portuguesa, aprovada a 2 de abril de 1976, apresenta os


princípios sob os quais se deve reger a educação em Portugal.
2 Estes princípios encontram-se plasmados, nomeadamente, no artigo 43.º (“Liberdade de
aprender e ensinar”) dos “Direitos e deveres fundamentais” e em cinco artigos
dedicados às questões educativas (do artigo 73.º ao 77.º) e que compõem a principal
parte do capítulo IV (“Direitos e deveres culturais”) do título III da I parte. Além deste
“núcleo duro”, outros direitos e deveres, em matéria educativa, estão consagrados em
artigos dedicados à liberdade religiosa (41.º), à saúde (64.º), ao ambiente (66.º), à
parentalidade (67.º), à juventude (70.º) e às próprias competências da Assembleia da
República (164.º).
3 Antes da apresentação e análise de cada um destes artigos, será importante destacar
que se trata de um texto muito mais amplo e com uma orientação totalmente diferente
da dos artigos 10.º e 11.º da Constituição de 1911 e dos artigos 42.º, 43.º e 44.º da
Constituição de 1933, que enquadraram as políticas educativas durante a I República e o
Estado Novo, respetivamente.
4 Convirá igualmente sublinhar que a “Constituição da Educação”, usando a feliz
expressão de Miranda e Medeiros (2010), aprovada pela Assembleia Constituinte há 40
anos, permaneceu intacta desde a sua aprovação, não tendo sido abrangida por
qualquer das sete revisões constitucionais que ocorreram até ao momento. Tal facto é
digno de referência, considerando as profundas transformações que têm atravessado a
sociedade portuguesa e que, na educação, são avassaladoras. Basta dizer que, em 1976, o
segmento da população com estudos secundários (7%) ou superiores (3%) era pouco

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mais do que residual (Machado e Costa, 1998), dado que a larga maioria das crianças
apenas frequentava os quatro anos da instrução primária (Justino, 2014).
5 Mas esta longevidade do texto constitucional deve também ser realçada, à luz tanto dos
discursos que têm enfatizado a instabilidade endémica das políticas educativas para
clamar por um compromisso de longo prazo entre as várias forças políticas, como
daqueles que têm denunciado uma deriva neoliberal que terá distorcido os princípios
democratizantes que emanaram da revolução. Não é, pois, despiciente assinalar a
resiliência do texto original, em particular tendo em conta que algumas das revisões
constitucionais tiveram como propósito a remoção de entraves ao desenvolvimento da
economia de mercado em Portugal.
 
 A liberdade de aprender e ensinar
6 Sendo de formulação muito generalista, o artigo 43.º reveste-se de uma importância
especial, uma vez que se integra na primeira parte da Constituição, dedicada ao tema
dos direitos, liberdades e garantias que são reconhecidos a todos os cidadãos. Além
disso, enquanto os artigos subsequentes se centram em deveres do estado, neste caso
trata-se de salvaguardar liberdades dos cidadãos ante uma interferência — considerada
ilegítima — do estado.
7 A interpretação deste artigo está longe de ser simples e unívoca. Por um lado, o artigo
garante a liberdade dos cidadãos não apenas de aprenderem e ensinarem, mas também
de criarem escolas fora da tutela do estado (particulares ou cooperativas), o que no
contexto do processo revolucionário em curso não deixou de ser um marco importante
contra qualquer forma de autoritarismo ou totalitarismo. Por outro lado, este artigo
afirma que as políticas estatais e o sistema de ensino que tutela (ensino público) não é
confessional, nem se rege “segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas,
ideológicas ou religiosas”. Esta afirmação da autonomia do campo educativo é
fundamental, num contexto em que muitos autores têm atribuído ao ensino público
uma função central no aparelho ideológico e repressivo do Estado Novo, em estreita
aliança com a igreja católica (Mónica, 1978; Stoer, 1982; Nóvoa, 1994). É também
notável, tratando-se de uma constituição aprovada num contexto revolucionário e que
tem sido frequentemente criticada pela sua marca ideológica.
8 Ainda assim, este artigo não deixa de se basear numa naturalização — e suposta
neutralidade — do conhecimento e da cultura, quando estas são, na verdade, produções
humanas atravessadas por uma diversidade de posições e por permanentes conflitos
(Bourdieu, 1979; Popkewitz, 1991). Vários pensadores têm notado que tanto a seleção
dos conteúdos como os métodos de ensino implicam juízos de valor e representações do
mundo. Noutros textos constitucionais tem-se, por isso, privilegiado uma afirmação da
pluralidade cultural e cognitiva que caracteriza, hoje, o mundo e os vários espaços
nacionais.
9 Uma questão mais concreta e cuja constitucionalidade é controversa tem a ver com a
participação da igreja católica no ensino público. O artigo 43.º da Constituição da
República de 1976 entrou em contradição com a Concordata, assinada em 1940 com o
Vaticano, e na qual se afirmava que “o ensino ministrado pelo Estado será orientado
pelos princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais do país”. Diga-se, aliás, que
este acordo já era duvidoso, à luz da Constituição de 1933, na qual se afirmava que “o
ensino ministrado pelo Estado é independente de qualquer culto religioso, não o

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devendo porém hostilizar” (artigo 43.º). A Concordata foi revista, em 1975, mas os
postulados referidos à educação não foram alterados. Apenas em 2004, foi assinada uma
nova Concordata, na qual a citada orientação foi retirada do texto, mas, por seu lado,
foi consagrada a obrigação do estado de “assegurar, nos termos do direito português, o
ensino da moral e religião católicas nos estabelecimentos de ensino público não
superior, sem qualquer forma de discriminação”. Ao abrigo deste tratado, o estado
português assume a colocação, a remuneração e a integração nos quadros dos
professores desta disciplina, em todas as escolas públicas do país, sendo a sua
frequência opcional para os estudantes (e atualmente minoritária). Por seu lado, a lei da
liberdade religiosa abre a possibilidade de outras confissões religiosas lecionarem
também nos estabelecimentos públicos de ensino, sendo, até ao momento, apenas a
igreja evangélica que marca presença curricular, num conjunto restrito de escolas e
com professores remunerados pela própria agregação.
10 Porém, em vez de um princípio de formação religiosa de acordo com a crença dos pais,
a Constituição afirma que o ensino público não será confessional, nem programado de
acordo com diretrizes religiosas.
 
 Um compromisso com a democracia
11 O artigo que abre o capítulo relativo aos direitos e deveres culturais (artigo 73.º)
estabelece que a educação, a par da cultura e da ciência, não apenas se deve submeter
aos princípios democráticos, mas também deve promovê-los e aprofundá-los. Neste
sentido, a democratização da educação é identificada como um dever do estado, tanto
através da rede escolar como de outros serviços formativos. Esta definição é,
posteriormente, desenvolvida em dois sentidos distintos, que poderíamos designar
processos externos e internos.
12 Por um lado, determina-se que a educação não apenas deve ser acessível a todos, mas
também contribuir para a igualdade de oportunidades e a superação das desigualdades
económicas, sociais e culturais. Esta formulação é relevante, pois vai muito para além
da noção meritocrática, individualista ou formalista da igualdade de oportunidades, no
sentido da não discriminação do acesso, colocando o enfoque nos impactos mais latos
da educação nas assimetrias de poder que caracterizam as sociedades contemporâneas,
nas suas várias dimensões. Desta forma, vincula o estado português ao combate ao que
os sociólogos têm denominado “mecanismos de reprodução das desigualdades”
inscritos nos sistemas educativos (Bourdieu e Passeron, 1970) e que, em Portugal, têm
sido particularmente intensos (Sebastião, 2009).
13 Por outro lado, o mesmo artigo determina que uma educação orientada pela e para a
democracia tem de se comprometer com o desenvolvimento da personalidade dos
indivíduos, incluindo um conjunto de valores e disposições, como o espírito de
tolerância, a compreensão mútua, a solidariedade, a responsabilidade, o progresso
social e a participação democrática. Assume-se, portanto, que a educação não apenas
tem que se reger por princípios democráticos (dimensão externa), mas também tem
que formar os cidadãos nesses princípios (dimensão interna). Ou, dito de outra forma, a
democracia tem que formar democratas para se realizar.
14 Assim sendo, qualquer que seja o ciclo e a modalidade de ensino, o alinhamento das
políticas educativas com o crescimento económico, a competitividade e a
empregabilidade não podem perder de vista estes objetivos mais amplos. É certo que,

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por exemplo, as competências básicas de língua ou de matemática são fundamentais


para a inclusão e a cidadania nas sociedades atuais. E é indiscutível que o emprego é
uma via central de integração na vida social e económica. Mas não garantem, só por si,
a redução das desigualdades, nem o desenvolvimento de valores democráticos. Esta
questão remete, portanto, para a “educação para a cidadania”, não como área de
atividades escolares pontuais ou orientadas para a gestão da (in)disciplina, mas como
princípio orientador das instituições educativas, promovendo a participação dos
estudantes na gestão das escolas e na vida das suas comunidades (EACEA/Eurydice,
2012).
 
 Um referencial para as políticas educativas
15 O artigo 74.º é aquele em que se define o “núcleo duro” dos princípios orientadores das
políticas educativas. A primeira alínea é composta por uma afirmação aparentemente
generalista, mas que na verdade contém aspetos extremamente relevantes e
inovadores, ao consagrar o direito de todos, não apenas ao ensino (acesso), mas
também ao êxito escolar.
16 Este princípio foi fundamental para alavancar a expansão da rede escolar e das
habilitações literárias da população, desde os anos 1970 (Martins, 2012; CNE, 2015).
Contudo, estas políticas não conseguiram (ainda?) demover os hiatos qualificacionais
relativamente aos restantes países europeus, alguns deles também atravessados por
grandes progressos nas últimas décadas, e estiveram muito longe de concretizar o
desígnio do “êxito escolar” para todos. Portugal continua a caracterizar-se por uma
proporção significativa de jovens que não alcançam as competências básicas e que
reprovam na escola, pois mesmo os avanços realizados no primeiro indicador não têm
tido correspondência no segundo (CNE, 2015; OECD, 2016).
17 Acresce ainda que, ao garantir a todos o acesso ao ensino e ao êxito escolar, não
estamos somente a assumir um compromisso com as novas gerações de portugueses,
mas também com todos os cidadãos que vivem no território nacional, o que nos remete
para as inúmeras fragilidades e instabilidades que têm marcado o nosso sistema de
educação de adultos (Araújo, 2014).
18 No segundo ponto deste artigo, a Constituição concretiza a determinação generalista do
ponto anterior, através de dez alíneas que devem orientar as políticas estatais no
campo educativo. Estas orientações procuram combinar direitos universais com o apoio
a grupos específicos, como são os casos dos cidadãos portadores de deficiência, assim
como dos filhos de emigrantes e de imigrantes. É importante salientar estas obrigações
do estado, não apenas pelo seu caráter inovador à data, mas também pelo facto de se
reportarem a problemas que estão longe de estar resolvidos. A própria gratuitidade do
ensino deve ser entendida à luz dos custos efetivos para alcançar o êxito escolar.
19 Por exemplo, no caso dos jovens estrangeiros e/ou descendentes de imigrantes, um
levantamento recente permite-nos constatar a sua proporção maciça entre os
estudantes retidos, assim como entre aqueles que frequentam vias alternativas ao
ensino regular básico ou cursos profissionais no ensino secundário. Este contraste face
aos estudantes nacionais tem o seu corolário na sua sub-representação entre os
estudantes do ensino superior, acentuada até na última década (Roldão e Abrantes,
2016).

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20 De notar, aliás, que este artigo inclui também o direito de todos os cidadãos, “segundo
as suas capacidades”, “aos graus mais elevados de ensino”, à investigação científica e à
criação artística, sendo as licenciaturas, mestrados e doutoramentos abrangidos
igualmente por um princípio de progressiva gratuitidade de “todos os graus de ensino”.
O facto de estes domínios se terem autonomizado, ao nível das políticas e dos debates
públicos, não legitima a inclusão de critérios de seletividade, ainda para mais se estes
remeterem para condições socioeconómicas das famílias.
 
 Ensino público, particular e cooperativo
21 Apesar da supracitada referência ao tema no capítulo dos deveres fundamentais (artigo
43.º), a Constituição inclui nesta secção dedicada às questões educativas e culturais um
novo artigo (75.º) que procura clarificar o estatuto do ensino público, privado e
cooperativo. Trata-se de um artigo particularmente controverso, à luz dos movimentos
políticos que têm procurado ampliar o financiamento público às escolas privadas, sob o
epíteto da “liberdade de escolha”.
22 Tal como afirma Leitão (2014), é importante ressalvar que esse apoio não é negado, mas
também não é consagrado na Constituição, não inibindo o estado de cumprir o que é
disposto claramente no artigo 75.º: por um lado, criar e manter uma rede de
estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população;
por outro lado, reconhecer e fiscalizar o ensino privado e cooperativo.
23 Podemos dizer que, desde 1976, a expansão da rede de escolas públicas foi exponencial,
permitindo albergar a generalidade das crianças e jovens em idade escolar (CNE, 2015).
Tal desígnio nunca foi integralmente cumprido, em parte porque um segmento das
famílias (relativamente estável) tem preferido o ensino privado, pelo que não se
justificaria manter recursos não utilizados, e em parte porque, num conjunto restrito
de territórios, o estado preferiu estabelecer “contratos de autonomia” com escolas
privadas que, temporariamente, suprem a escassez de oferta pública.
24 Segundo Leitão (2014), estes contratos só são legítimos caso as escolas abrangidas
cumpram escrupulosamente os princípios constitucionais, nomeadamente os relativos
à igualdade de oportunidades e à ausência de diretrizes políticas, ideológicas ou
religiosas. Convirá aqui ressalvar um princípio de equivalência das condições laborais,
aliás já consagrado na Constituição de 1933 enquanto requisito para que as escolas
particulares auferissem de apoios estatais. Contudo, podemos ir mais longe e
questionar se a constitucionalidade destes contratos de associação não se limita a
soluções provisórias, até à construção de estabelecimentos públicos nesses territórios.
Acresce que a melhoria das vias de comunicação e as próprias mudanças demográficas
têm conduzido, em vários territórios, a que as vagas no sistema público deixem de
escassear.
25 À luz deste artigo, será lícito questionar a legalidade do Decreto-Lei n.º 152/2013,
segundo o qual o financiamento das escolas privadas, através de contratos de
associação, deixou de ser uma solução apenas em contextos de escassez da oferta
pública para ser uma opção governamental, com base numa avaliação da qualidade das
propostas educativas.
26 Resta ainda considerar que, se no caso das crianças e jovens em idade escolar este
problema parece estar hoje confinado a um conjunto restrito de territórios, a

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imobilismos vários e a movimentos que parecem ter pouca validade constitucional, não
devemos esquecer que o artigo 75.º compromete o estado com a criação de
estabelecimentos públicos de ensino que cubram as necessidades de toda a população e
não apenas aquela que se encontra em idade escolar. Remete-se, assim, novamente para
a questão do enorme défice qualificacional da população portuguesa e das insuficientes
políticas de educação de adultos que lhe têm procurado dar resposta.
 
 Ensino superior
27 Além das referências a todos os níveis educativos e da supracitada referência “aos graus
mais elevados de ensino”, o 76.º artigo da Constituição é dedicado ao ensino superior.
Neste artigo estipula-se que o regime de acesso a este nível de ensino deve ser
orientado pelos princípios de igualdade de oportunidades e de democratização, tendo
igualmente em conta “as necessidades em quadros qualificados e a elevação do nível
educativo, cultural e científico do país”.
28 Tal como notou Adriano Moreira (2005), valerá a pena questionar se a expansão do
ensino superior, nomeadamente nos anos 90, muito alimentada pela iniciativa privada e
pelas lógicas da oferta e da procura, não terá distorcido este princípio.
29 No outro ponto do mesmo artigo, determina-se a autonomia estatutária, científica,
pedagógica, administrativa e financeira das universidades, sem prejuízo de adequada
avaliação da qualidade do ensino. Se estas práticas de avaliação têm vindo,
recentemente, a ser instituídas, importará discutir as condições mínimas para o
exercício da autonomia, em face dos dispositivos legais introduzidos no âmbito das
políticas de austeridade. Além disso, convirá destacar que o ajustamento da oferta
educativa, neste ciclo, não deve depender apenas das necessidades do mercado laboral,
no curto prazo, mas também do referido desígnio de desenvolvimento educativo,
cultural e científico.
 
  Participação democrática
30 A Constituição dedica ainda um artigo (77.º) à participação democrática na gestão
educativa, em dois níveis. Por um lado, estipula-se o direito de professores e alunos
participarem na administração dos estabelecimentos de ensino dos quais fazem parte
(n.º 1). Por outro lado, consagra-se o direito de participação das associações de
professores, de alunos, de pais, das comunidades e das instituições de caráter científico
na definição da política de ensino (n.º 2).
31 Tal como referido anteriormente, esta participação é um meio fundamental de
“educação para a cidadania” (EACEA/Eurydice, 2012) e um reconhecimento de que os
professores não devem ser reduzidos a empregados, assim como os estudantes não
devem ser reduzidos a utentes, clientes ou beneficiários dos serviços educativos. Tanto
uns como os outros são membros das escolas e do sistema educativo.
32 Por um lado, a questão da gestão democrática das escolas está associada à própria
autonomia concedida aos estabelecimentos de ensino e que, em Portugal, apesar da
retórica abundante, tem enfrentado muitas limitações (Abrantes, 2013). Por outro lado,
mesmo assumindo que essa autonomia existe, o direito de participar na gestão das
escolas implica mecanismos formais e informais que permitam que essa participação

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seja efetivamente exercida. Atualmente, essa participação exerce-se, sobretudo, através


da presença de representantes dos professores e dos alunos do ensino secundário no
Conselho Geral dos agrupamentos de escolas.
33 Também no caso do direito de participação na definição das políticas se têm levantado
dúvidas acerca dos meios através dos quais esta se pode concretizar. Atualmente, as
associações de professores, de alunos, de pais, das comunidades e das instituições de
caráter científico encontram-se representadas no Conselho Nacional de Educação, mas
este é um órgão consultivo, sem funções de definição de políticas.
34 Num país com escassa tradição de participação democrática, persiste a necessidade de
se discutir e de se criarem estruturas que permitam concretizar os direitos de
participação na gestão das escolas e do sistema educativo, inscritos na Constituição da
República Portuguesa, aliás, no quadro de um debate mais geral acerca do
aprofundamento da democracia em Portugal.
 
 Outras referências à educação
35 Ao longo da Constituição da República Portuguesa, na sua versão atual, encontramos
ainda referência à educação, associada a outros deveres do estado, o que remete para a
importância da ação educativa no cumprimento de vários outros direitos dos cidadãos,
nomeadamente no plano dos direitos sociais (capítulo II do título III da I parte). Esta
transversalidade, aliás, constitui um dos desafios das políticas educativas, cuja
articulação com as políticas noutras áreas se afigura fundamental.
36 São os casos dos artigos 64.º e 66.º, nos quais se consagra, respetivamente, o dever do
estado de desenvolver a educação sanitária (ou educação para a saúde, nos termos mais
atuais) e a educação ambiental. Se é verdade que se fala aqui de educação em sentido
lato, o que não remete necessariamente para a intervenção do sistema educativo,
também é certo que o tempo crescente que as escolas ocupam na vida das crianças,
jovens e até adultos, as torna espaços privilegiados para o cumprimento destes
desígnios.
37 O artigo 67.º, dedicado à proteção das famílias, inclui igualmente uma alínea, em que o
estado é incumbido de “cooperar com os pais na educação dos filhos” (n.º 2, alínea c).
Aliás, o artigo 42.º da Constituição de 1933 já instituía o princípio de cooperação entre
família e escola, mas atribuindo à família a primazia no dever de garantir a educação e a
instrução das crianças (“base primária da educação”, também se lê no artigo 11.º),
enquanto o atual texto constitucional alude apenas à “insubstituível ação” dos pais, na
educação dos filhos (artigo 68.º).
38 No artigo 70.º, institui-se ainda um princípio de proteção especial dos jovens em vários
domínios da vida social e económica, incluindo no ensino, na formação profissional e na
cultura (n.º 1, alínea a), bem como na educação física e no desporto (n.º 1, alínea d) e no
“aproveitamento dos tempos livres” (n.º 1, alínea e). Estas disposições têm sido a base
para a aposta num sistema educativo que, além do ensino das disciplinas tradicionais,
tem criado espaços para o desenvolvimento da expressão físico-motora, assim como
para as atividades de enriquecimento curricular.
39 Finalmente, a educação apenas volta a surgir na Constituição no quadro das funções da
Assembleia da República, assumindo esta a “reserva absoluta de competência
legislativa” sobre a definição das bases do sistema educativo. Diga-se a este propósito

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que, ao contrário de uma ideia de permanente instabilidade das políticas educativas,


será importante lembrar que a Lei de Bases do Sistema Educativo foi aprovada apenas
em 1986, depois de um trabalho de vários anos, tendo permanecido até aos dias de hoje,
com alterações apenas pontuais em 1997, 2005 e 2009.
 
 Notas conclusivas
40 Com esta releitura da Constituição da República Portuguesa focada na área educativa,
mais do que retirar conclusões, pretendeu-se levantar questões para reflexão e debate.
Os princípios constitucionais têm sido efetivamente orientadores das políticas e das
práticas? Mantêm-se atuais? Permitem-nos enfrentar os desafios do século XXI?
41 Trata-se de uma discussão importante. Em todo o caso, o que pensamos que ficou claro
ao longo do texto foi que estes princípios representaram, no campo educativo e não só,
um enorme progresso face aos enquadramentos constitucionais anteriores,
fomentaram mudanças profundas nas estruturas educativas e nos padrões
qualificacionais, sendo a sua plena concretização ainda um devir mobilizador nos dias
que correm.
42 A propósito da propalada necessidade de um compromisso alargado que permita dar
estabilidade às políticas educativas, não resistimos a indagar se este não se encontrará
já plasmado, tanto no texto constitucional como na Lei de Bases que o secunda.

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RESUMOS
A propósito da celebração dos seus 40 anos, o artigo analisa o modo como a educação é concebida
na Constituição da República Portuguesa, à luz de estudos sociológicos nacionais e internacionais
de referência. Discute-se o modo como a lei fundamental foi entendida e teve impactos no
sistema educativo português, identificando-se algumas controvérsias, tensões e áreas de
desenvolvimento futuro. Questões como as relações público-privado, o combate às desigualdades,
a aprendizagem ao longo da vida, a gestão democrática ou a educação para a cidadania são
afloradas. Em termos gerais, argumenta-se que a Constituição teve um papel central na
transformação do sistema educativo e constitui, ainda hoje, um instrumento fundamental de
estabilização, mas também de orientação de políticas transformadoras.  

As the Constitution of the Portuguese Republic (CRP) reaches its fortieth birthday, the present
article looks at how leading national and international sociological studies view its stance on
education. The way the CRP has been interpreted and the impacts it has had on the Portuguese
education system are discussed, and a number of controversies, tensions and areas for future
development are identified. Questions such as relations between the public and private sectors,

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the struggle against inequalities, lifelong learning, the management of democracy and education
for citizenship are broached. In broad terms, the article argues that the CRP has played a leading
role in changing the education system, and continues to be not only a fundamental instrument
for promoting stability, but also a framework for transformative policies.

À propos de la célébration de ses 40 ans, l’article analyse la façon dont l’éducation est conçue
dans la Constitution portugaise, à la lumière d’études sociologiques nationales et internationales
de référence. Il débat de la façon dont la loi fondamentale a été comprise et a eu des impacts sur
le système éducatif portugais, en identifiant quelques controverses, tensions et domaines de
développement futur. Des questions telles que les relations public-privé, la lutte contre les
inégalités, l’apprentissage tout au long de la vie, la gestion démocratique et l’éducation à la
citoyenneté sont abordées. En général, on fait valoir que la Constitution a joué un rôle central
dans la transformation du système éducatif et qu’elle est aujourd’hui encore un instrument clé de
stabilisation, mais aussi d’orientation des politiques transformatrices.

A propósito de la celebración de sus 40 años, el artículo analiza el modo como la educación es


concebida en la Constitución de la República Portuguesa, a partir de estudios sociológicos
nacionales e internacionales de referencia. Se discute el modo como la ley fundamental fue
entendida y tuvo impactos en el sistema educativo portugués, identificándose algunas
controversias, tensiones y áreas de desarrollo a futuro. Se abordan cuestiones como las relaciones
público-privado, el combate a las desigualdades, el aprendizaje a lo largo de la vida, la gestión
democrática o la educación para la ciudadanía. En términos generales, se argumenta que la
Constitución tuvo un papel central en la transformación del sistema educativo y constituye, hoy
en día, un instrumento fundamental de estabilización, así como también de orientación de
políticas transformadoras.

ÍNDICE
Keywords: Portuguese Constitution, educational policies, inequalities, democracy, freedom
Mots-clés: Constitution portugaise, politiques éducatives, inégalités, démocratie, liberté
Palabras claves: Constitución de la República Portuguesa, políticas educativas, desigualdades,
democracia, libertad
Palavras-chave: Constituição da República Portuguesa, políticas educativas, desigualdades,
democracia, liberdade

AUTOR
PEDRO ABRANTES
Professor da Universidade Aberta, investigador do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia
(CIES-IUL) do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) e atualmente técnico especialista do
Gabinete do Ministro da Educação. Universidade Aberta. Palácio Ceia, Rua da Escola Politécnica,
141, 1269-001 Lisboa, Portugal.
pedro.abrantes@uab.pt

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O artigo 64.º da Constituição da


República Portuguesa: saúde
Article 64 of the Constitution of the Portuguese Republic: health
L’article 64 de la Constitution Portugaise: la santé
El artículo 64.º de la Constitución de la República Portuguesa: salud

Sofia Crisóstomo

1 O artigo 64.º da Constituição da República Portuguesa (CRP), relativo à saúde, consagra,


na sua versão atual, a proteção da saúde como um dever, mas, sobretudo, como um
direito de todos, realizado através de um serviço nacional de saúde (SNS) universal,
geral e, tendo em conta as condições económicas e sociais dos cidadãos,
tendencialmente gratuito. No entanto, para além destas três características largamente
abordadas na literatura sobre o tema, a CRP estabelece ainda que a gestão do SNS é
descentralizada e participada, uma característica raramente referida e quase nunca
objeto de análise.1
2 Para realização da proteção da saúde, a CRP prevê ainda aquilo que, atualmente,
designamos “saúde em todas as políticas”, que inclui, nomeadamente, políticas públicas
relacionadas com a promoção da saúde e seus determinantes sociais, como sejam o
rendimento, a educação e o exercício físico, por exemplo (Ståhl et al., 2006; Leppo et al.,
2013).
3 Finalmente, a CRP consagra também que, para assegurar o direito à proteção da saúde,
incumbe prioritariamente ao estado: garantir o acesso de todos os cidadãos,
independentemente da sua condição económica, a cuidados de saúde preventivos,
curativos e de reabilitação; garantir a equidade de acesso em termos financeiros e
geográficos; orientar a sua ação para o financiamento público dos custos em saúde;
regular, supervisionar e articular a prestação pública e privada de cuidados de saúde,
por forma a assegurar a sua eficiência e qualidade; regular e supervisionar as atividades
relacionadas com medicamentos, meios complementares de diagnóstico e terapêutica e
outros produtos de saúde; e, ainda, estabelecer políticas de prevenção e tratamento da
toxicodependência.2

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4 Ao considerar a saúde como um direito fundamental e o acesso a cuidados de saúde um


pré-requisito para assegurar esse direito, que não deve estar dependente da capacidade
para pagar, e em convergência com várias organizações (United Nations, 1948; WHO,
2001) e documentos como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (United
Nations, 1948) e a Declaração de Alma-Ata (1978) (ratificados por uma longa lista de
países, incluindo Portugal), o artigo 64.º da CRP constitui um “compromisso jurídico
fundamental” do estado para com a população, em relação à “garantia de acesso a
cuidados de saúde de elevada qualidade e acessíveis para todos” e, desta forma,
estabelece “um imperativo […] para a ação legislativa e administrativa” no sentido de
assegurar esse direito (Kinney e Clark, 2004) e também uma distribuição mais
igualitária do que o necessário noutros setores (Thomson, Foubister e Mossialos, 2009:
12). Conforme afirma Novais (2010: 239), a existência de um SNS, com um determinado
conjunto de características, “não é algo que esteja à mercê da livre decisão política do
Governo, mas antes algo que reveste a natureza de uma imposição constitucional” e
que, portanto, independentemente do governo no poder, “tem a sua subsistência
juridicamente protegida com o caráter reforçado que a Constituição lhe empresta”.
5 Hoje em dia, a saúde permanece como uma prioridade importante para os cidadãos na
maioria dos países, incluindo Portugal. Os cidadãos avaliam a saúde e a segurança social
(European Comission, 2012: 15) e também o sistema de saúde (European Comission,
2011: 14) como duas das suas principais preocupações, logo a seguir às questões
económicas. Além disso, existe também um apoio público muito elevado a uma forte
responsabilidade do estado para garantir os cuidados de saúde adequados (P. A. da Silva
e Pestana, 2013: 142), sendo o envolvimento do estado justificado por motivos de
equidade, mas também de eficiência (WHO, 2000: 7). Por outro lado, têm aumentado as
expetativas dos cidadãos em relação a serviços de saúde, o que contribui também para
que esta se mantenha uma “questão política” (WHO, 2010: ix).
6 Na prática, as políticas públicas e os instrumentos adotados abrangem três áreas chave
de intervenção — regulação, financiamento e prestação de cuidados de saúde (Folland,
Goodman e Stano, 2001: 454; P. A. da Silva e Pestana, 2013: 142) — com o objetivo de
atingir o nível mais elevado possível de resultados em saúde com os recursos
disponíveis, proporcionar um tratamento igual para necessidades iguais e reduzir as
desigualdades no acesso aos cuidados de saúde (OECD, 2011a: 184; OECD, 2011b: 130).
 
 De 1976 até à atualidade: a evolução da CRP na
relação com a política pública de saúde — SNS e Lei
de Bases da Saúde
7 A CRP de 2 de abril de 1976, foi aprovada pela Assembleia Constituinte 3 durante o
mandato do VI e último Governo Provisório, liderado por José Baptista Pinheiro de
Azevedo (um militar e independente) e tendo Rui Machete como ministro dos Assuntos
Sociais (com a tutela da Saúde) (Freire, 2005; Döring e Manow, 2016; Governo da
República Portuguesa, 2016).
8 A CRP consagrou que “todos têm direito à proteção da saúde e o dever de a defender e
promover”. Consagrou também que “o direito à proteção da saúde” seria “realizado
pela criação de um serviço nacional de saúde universal, geral e gratuito”, que à data
não existia, e ainda por diversas medidas de política relacionadas com a saúde,

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incumbindo prioritariamente ao estado diversas responsabilidades para assegurar


aquele direito (para mais detalhe ver quadro 1).
 
 Quadro 1 Evolução do artigo 64.º da CRP (“Saúde”): de 1976 até à versão atual

9  As disposições do artigo 64.º da CRP de 2 de abril de 1976 são, posteriormente,


concretizadas através da Lei n.º 56/79, de 15 de setembro, que cria o SNS, aprovada pela
Assembleia da República4 durante o mandato do V Governo Constitucional — um
governo de iniciativa presidencial, liderado por Maria de Lourdes Pintasilgo e com
Alfredo Bruto da Costa como ministro dos Assuntos Sociais (com a tutela da Saúde)
(Freire, 2005; Döring e Manow, 2016; Governo da República Portuguesa, 2016).
10 Este diploma estabelece que “o acesso ao SNS é garantido a todos os cidadãos,
independentemente da sua condição económica e social” e também “aos estrangeiros,
em regime de reciprocidade, aos apátridas e aos refugiados políticos que residam ou se
encontrem em Portugal”,5 definindo assim o princípio de universalidade.
11 O mesmo diploma estabelece também o âmbito do princípio de generalidade, isto é, que
“o SNS envolve todos os cuidados integrados de saúde, compreendendo a promoção e
vigilância da saúde, a prevenção da doença, o diagnóstico e tratamento dos doentes e a
reabilitação médica e social”.6
12 Adicionalmente, é determinado que “o acesso ao SNS é gratuito, sem prejuízo do
estabelecimento de taxas moderadoras diversificadas tendentes a racionalizar a
utilização das prestações”.7 A Lei do SNS menciona também a “gestão descentralizada e
democrática” do SNS,8 uma característica que viria, posteriormente, a ser consagrada
na primeira revisão constitucional, e determina que o direito de utentes e profissionais
de saúde a participarem “no planeamento e na gestão dos serviços” se exerce “a nível
central, pela participação no Conselho Nacional de Saúde […] e, a nível regional e local,

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30

pela participação nos conselhos regionais de saúde e nas comissões concelhias de apoio
[…], para além da participação em órgãos de serviços”. 9
13 Em 1982, é aprovado o Decreto-Lei n.º 254/82, de 29 de junho, pelo VIII Governo
Constitucional — um governo de coligação (pré-eleitoral) PSD-CDS-PPM, com maioria
absoluta na Assembleia da República, liderado por Francisco Pinto Balsemão e com Luís
Barbosa como ministro dos Assuntos Sociais (com a tutela da Saúde) (Freire, 2005;
Döring e Manow, 2016; Governo da República Portuguesa, 2016).
14 O Decreto-Lei n.º 254/82, de 29 de junho, revoga grande parte da Lei do SNS (Lei n.º
56/79, de 15 de setembro), o que o Tribunal Constitucional viria, quase dois anos depois,
no Acórdão n.º 39/84, de 11 de abril, a declarar inconstitucional, por se traduzir “na
extinção do Serviço Nacional de Saúde” e, por isso, contender “com a garantia do
direito constitucional à saúde”. O Tribunal Constitucional teve aqui uma intervenção
decisiva, quanto à necessidade constitucional de existência do SNS (Novais 2010: 242).
15 Também em 1982, a primeira revisão constitucional (Lei Constitucional n.º 1/82, de 30
de setembro),10 ainda durante o VIII Governo Constitucional, aditou ao artigo 64.º da
CRP, a referência à gestão descentralizada e participada do SNS.
16 Depois de vários diplomas que fixaram taxas moderadoras no acesso aos cuidados de
saúde prestados no âmbito do SNS,11 um Parecer da Comissão Constitucional, 12 dois
pedidos do provedor de Justiça para fiscalização da constitucionalidade de várias
normas relacionadas e os consequentes acórdãos do Tribunal Constitucional, 13 foi
aprovada pela Assembleia da República,14 em 1989, a segunda revisão constitucional (Lei
Constitucional n.º 1/89, de 8 de julho), decorria o XI Governo Constitucional, o segundo
governo liderado por Aníbal Cavaco Silva (PSD) — o primeiro maioritário de um só
partido — e com Leonor Beleza como ministra da Saúde (Freire, 2005; Döring e Manow,
2016; Governo da República Portuguesa, 2016).
17 Com a segunda revisão constitucional, foram feitas as alterações mais substanciais ao
artigo 64.º da CRP, não só em termos de conteúdo como, mais relevante, de legitimação
constitucional das implicações da não gratuitidade, no que respeita à função vital do
SNS na realização do direito à proteção da saúde e da sua contribuição para a coesão e
justiça sociais (tal como descrito, por exemplo, em Thomson, Foubister, e Mossialos,
2009). O SNS passou de “gratuito” a “tendencialmente gratuito” e ao estado passou a
incumbir “orientar a sua ação para a socialização dos custos dos cuidados médicos e
medicamentosos” (isto é para o financiamento público dos custos em saúde) que
substituiu “a socialização da medicina e dos setores médico-medicamentosos” (que
implicava a orientação do estado para a prestação pública dos cuidados de saúde e a
produção estatal de medicamentos e afins). Abriu-se assim uma janela constitucional à
maior intervenção do setor privado na prestação e no financiamento de cuidados de
saúde e também à gestão privada de unidades públicas de saúde. 15
18 No seguimento e em linha com a revisão constitucional de 1989, ainda durante o XI
Governo Constitucional, mas já com Arlindo de Carvalho como ministro da Saúde
(Freire, 2005; Döring e Manow, 2016; Governo da República Portuguesa, 2016), foi
aprovada pela Assembleia da República16 a Lei de Bases da Saúde (Lei n.º 48/90, de 24 de
agosto), que vai ainda mais além no papel outorgado ao setor privado (Campos e
Simões, 2011: 133; M. V. da Silva, 2012a: 283).
19 A Lei de Bases da Saúde veio atribuir ao Sistema de Saúde (e não especificamente ao
SNS) a efetivação do direito à proteção da saúde,17 prevendo que “o Estado atua através

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de serviços próprios, celebra acordos com entidades privadas para a prestação de


cuidados e apoia e fiscaliza a restante atividade privada na área da saúde”. 18
Determinou também, como diretriz da política de saúde nacional, o apoio ao
“desenvolvimento do setor privado da saúde […] em concorrência com o setor público”
19
(em vez da complementaridade sugerida pela articulação mencionada na alínea c do
n.º 3 do artigo 64.º da CRP), contemplando também a possibilidade de “ser autorizada a
entrega, através de contratos de gestão, de hospitais ou centros de saúde do SNS a
outras entidades”20 e “celebradas convenções […], quer a nível de cuidados de saúde
primários quer a nível de cuidados diferenciados”,21 assim como a fixação de
“incentivos ao estabelecimento de seguros de saúde”.22
20 A Lei de Bases da Saúde determinou igualmente a possibilidade de serem cobradas taxas
moderadoras, como medida reguladora do uso dos serviços de saúde e receita do SNS, e
especificou também as características do SNS previstas na CRP, 23 prevendo ainda que “a
lei pode especificar as prestações garantidas aos beneficiários do SNS ou excluir do
objeto dessas prestações cuidados não justificados pelo estado de saúde”. 24
21 Salienta-se ainda o papel atribuído à política de saúde, em termos de promoção da
“participação dos indivíduos e da comunidade organizada na definição da política de
saúde e planeamento e no controlo do funcionamento dos serviços”, 25 nomeadamente
através da inclusão de representantes dos utentes, eleitos pela Assembleia da
República,26 no Conselho Nacional de Saúde.
22 Também em relação à Lei de Bases da Saúde, o Tribunal Constitucional foi chamado a
pronunciar-se, tendo decidido, no Acórdão n.º 731/95, não declarar a
inconstitucionalidade das normas apreciadas.
23 Em 1993, decorridos mais de dois anos desde a publicação da Lei de Bases da Saúde, é
aprovado, conforme previsto naquele diploma,27 o Estatuto do SNS, 28 pelo XII Governo
Constitucional — o segundo governo maioritário liderado por Aníbal Cavaco Silva (PSD),
ainda com Arlindo de Carvalho como ministro da Saúde (Freire, 2005; Döring e Manow,
2016; Governo da República Portuguesa, 2016). O Estatuto do SNS seguiu a mesma linha
de política da Lei de Bases da Saúde.
24 Em 1997, na vigência do XIII Governo Constitucional, o primeiro governo — um governo
minoritário — liderado por António Guterres (PS) (Freire, 2005; Döring e Manow, 2016;
Governo da República Portuguesa, 2016) e com Maria de Belém Roseira como ministra
da Saúde, foi aprovada pela Assembleia da República a quarta revisão constitucional
(Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de setembro).29
25 Na quarta revisão constitucional, foi atualizada a linguagem utilizada e alterado o
conteúdo do artigo 64.º em convergência com as políticas de saúde difundidas pelas
organizações internacionais, nomeadamente a Carta de Ljubljana sobre a Reforma dos
Cuidados de Saúde na Europa (Campos e Simões, 2011: 137). Como alterações mais
significativas, destacam-se: o aditamento das condições “ambientais” e de “práticas de
vida saudável” para realização do direito à proteção da saúde; a substituição da
“cobertura médica e hospitalar” pela referência à cobertura “em recursos humanos e
unidades de saúde”, abrangendo assim, explicitamente, outros profissionais de saúde e
outros níveis de cuidados (como, por exemplo, os cuidados de saúde primários); o
aditamento do objetivo de “assegurar, nas instituições de saúde públicas e privadas,
adequados padrões de eficiência e de qualidade” e o aditamento da competência do
estado no que respeita a “estabelecer políticas de prevenção e tratamento da

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toxicodependência” — um tema que, nos anos 90, marcava a agenda política (SICAD,
s.d., “Histórico”; SICAD, s.d., “Política portuguesa”). 30
26 Das sete revisões constitucionais concluídas após a aprovação da CRP de 2 de abril de
1976, não houve qualquer alteração ao artigo 64.º nas restantes quatro revisões (1992,
2001, 2004 e 2005).
 
 O artigo 64.º na revisão constitucional de 2010 (não
concluída)
27 A oitava revisão constitucional, iniciada em 2010, na segunda sessão legislativa da XI
Legislatura, não foi concluída, devido à dissolução da Assembleia da República (AR)
decretada em 7 de abril de 2011.31 À exceção do PS, todos os restantes partidos com
assento parlamentar à altura (PSD, PCP, PEV, BE e CDS-PP), propuseram alterações ao
artigo 64.º da CRP.32
28 Relativamente à característica de tendencial gratuitidade, enquanto PCP, PEV e BE
propuseram a reposição do texto original da CRP de 1976, isto é, um SNS geral e
gratuito,33 o projeto do PSD eliminava a expressão “tendencialmente gratuito” e aditava
“não podendo, em caso algum, o acesso [ao SNS] ser recusado por insuficiência de meios
económicos”, abrindo a possibilidade de serem estabelecidos copagamentos em função
do rendimento. O projeto do CDS-PP, apesar de reformular o texto do artigo 64.º, não
apresentou qualquer alteração nesta matéria.
29 Relativamente às políticas públicas dirigidas à promoção da saúde e aos determinantes
sociais da saúde, tanto PSD como CDS-PP propuseram a eliminação da referência ao
“desenvolvimento da educação sanitária do povo” como condição para assegurar o
direito à proteção da saúde, supõe-se que numa tentativa de retirar a carga ideológica
associada à terminologia usada em 1976. No entanto, com esta alteração, seria
eliminada também a referência à que é hoje designada “educação para a saúde”, um
instrumento fundamental para promover a literacia em saúde, que, por sua vez, é um
determinante importante do estado de saúde individual (Kickbusch et al., 2013).
30 O PSD estabelecia também como competência do estado, a promoção da “efetiva
liberdade de escolha”.
31 Por seu lado, o PCP especificava que as entidades empresariais e privadas se articulam
com o SNS, “quando dele sejam complementares”, e aditava as políticas de prevenção e
tratamento do alcoolismo às competências do estado.
32 O BE propôs o financiamento do SNS “assegurado pelo Orçamento de Estado”,
especificando que a cobertura de todo o país, em termos de recursos humanos e
cuidados de saúde deve ser também “equitativa” (para além de racional e eficiente). O
BE eliminava ainda a possibilidade de as entidades empresariais e privadas se
articularem com o SNS.
33 Tanto o BE como o CDS-PP aditavam os cuidados paliativos aos tipos de cuidados a que
todos os cidadãos devem ter acesso, e o CDS-PP aditava também os cuidados
continuados.
34 O CDS-PP propôs ainda a realização do direito à proteção da saúde “através de um
sistema nacional de saúde universal e geral”, “constituído por um serviço nacional de
saúde e demais sistemas públicos, privados, mutualistas e sociais e por todos os

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profissionais” (em detrimento da referência apenas ao SNS), integrando assim no texto


constitucional a formulação constante da Lei de Bases de Saúde. 34
35 As alterações ao artigo 64.º, apresentadas no âmbito da oitava revisão constitucional,
são apresentadas em detalhe no quadro 2.
 
 Quadro 2 Alterações ao artigo 64.º da CRP (“Saúde”): revisão constitucional de 2010 (não
concluída)

 
 Universalidade, generalidade e tendencial
gratuitidade — da Constituição à realidade
Universalidade

36 O princípio de universalidade que rege o SNS manteve-se inalterado desde a CRP de 2 de


abril de 1976 até à atualidade.35 Um SNS universal significa que todos os cidadãos
portugueses têm o direito de recorrer a ele, sendo relativamente pacífico o sentido a
atribuir à imposição constitucional de universalidade. Por outro lado, “não é possível,
sem prévia e, ainda assim, muito discutível, revisão constitucional, condicionar ou
excluir o acesso de categorias particulares de cidadãos” (Novais, 2010: 242-243).
37 Acrescenta ainda Novais (2010: 243) que “a possibilidade de admitir a saída dos
beneficiários do SNS para outros subsistemas de saúde ou para seguros, de natureza
privada ou pública, a título voluntário ou compulsivamente imposto pelo Estado […]
coloca, no entanto, dúvidas júridico-constitucionais relacionadas, não apenas com a
atual natureza universal do SNS, mas também com a garantia constitucional do direito
à proteção da saúde de todos os cidadãos”. Novais realça ainda a necessidade de tal
saída não pôr em causa o direito fundamental de todos os cidadãos — “os que saem e os

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34

que ficam — à proteção da saúde. De facto, uma política de opting out do SNS teria
associado um risco de limitação no acesso aos cuidados de saúde, quer para quem sai (o
acesso fica mais dependente da capacidade para pagar dos cidadãos e das coberturas
contratualizadas com as seguradoras), quer para quem fica (por via da diminuição do
financiamento do SNS, do provável aumento do custo médio por beneficiário —
permanecem os indivíduos com maior risco — e, consequentemente, da maior
dificuldade em assegurar a sustentabilidade financeira do SNS).
38 À semelhança do que acontece em muitos países da OCDE, quer se trate de sistemas
financiados por impostos, quer de sistemas de seguro social, a percentagem da
população portuguesa abrangida pela cobertura pública básica é, atualmente de 100%
(OECD, 2015: 120-121).
 
Generalidade

39 No diploma que criou o SNS, o princípio de generalidade foi definido da seguinte forma:
“o SNS envolve todos os cuidados integrados de saúde, compreendendo a promoção e
vigilância da saúde, a prevenção da doença, o diagnóstico e tratamento dos doentes e a
reabilitação médica e social”.36 Na mesma linha, a Lei de Bases da Saúde refere como
uma das características do SNS: “prestar integradamente cuidados globais ou garantir a
sua prestação”.37 No entanto, o mesmo diploma estabelece também que “a lei pode
especificar as prestações garantidas aos beneficiários do SNS ou excluir do objeto
dessas prestações cuidados não justificados pelo estado de saúde”. 38 Apesar disso, nunca
o legislador concretizou as prestações garantidas, ou não, aos beneficiários do SNS.
40 Novais (2010: 242) esclarece que “geral significa abranger todos os serviços públicos de
saúde e todos os domínios e prestações médicos, traduzindo a necessidade de
integração ou de garantia de prestação de todos os serviços e cuidados de saúde”.
41 Na prática, ainda hoje e apesar das melhorias observadas ao longo do tempo, vários
tipos de cuidados de saúde não são abrangidos pelo SNS (por exemplo, as terapêuticas
não convencionais) ou, quando abrangidos pelo SNS, não cobrem uma proporção
relevante das necessidades dos cidadãos (por exemplo, cuidados de saúde oral,
consultas de psicologia, cuidados paliativos) (Barros, Machado e Simões, 2011: 59-60;
OECD, 2015: 122-123; Ministério da Saúde, 2015). Tal tem como consequência tempos de
espera superiores aos tempos máximos recomendados e/ou a necessidade de recorrer à
prestação privada de cuidados de saúde.
 
Tendencial gratuitidade

42 O princípio atual de tendencial gratuitidade do SNS, estabelecido pela segunda revisão


constitucional39 ou, inicialmente, de gratuitidade (tal como estabelecido na CRP de 2 de
abril de 1976), e os seus limites têm sido alvo de interpretações diversas, quer por parte
de juristas especialistas na matéria, quer dos próprios juízes do Tribunal Constitucional
(Novais, 2010).
43 As consequências são, no entanto, menos sujeitas a interpretações controversas, face à
evidência disponível. A política de taxas moderadoras no acesso à prestação de
cuidados de saúde no âmbito do SNS e de comparticipação de medicamentos, aliada a
restrições no acesso a cuidados de saúde prestados pelo SNS (devido, por exemplo, aos
tempos de espera ou à não cobertura/ não prestação pelo SNS), faz com que Portugal

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esteja entre os países da OCDE que apresentam uma maior percentagem de despesa das
famílias com a saúde, em função do rendimento familiar disponível. Para além disso,
Portugal tem, de acordo com os dados mais recentes disponíveis, uma despesa pública
em saúde abaixo da média da OCDE, qualquer que seja o indicador utilizado — gastos em
saúde per capita, despesa do estado em saúde em percentagem do PIB, percentagem da
despesa em saúde na despesa total (OECD, 2015: 124-125,164-167,170-171).
44 O peso da despesa privada em saúde, em Portugal, associado a um risco elevado de
pobreza ou exclusão social, tem implicações no acesso a cuidados de saúde e agrava as
desigualdades entre cidadãos de maior e menor rendimento (OPSS, 2016). Cabendo ao
estado “garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição
económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação”, 40 importa,
pois, em cada momento e, em particular numa situação de crise (social, económica e
financeira), reanalisar os limites do princípio da tendencial gratuitidade,
reinterpretando-os face ao contexto em presença, e equacionar as medidas de política
pública de financiamento da saúde, que garantam um sentido constitucionalmente
adequado de tendencial gratuitidade, tendo em consideração os resultados em saúde
obtidos versus pretendidos.
 
 Conclusão
45 Desde a aprovação da CRP em 2 de abril de 1976, as alterações mais relevantes ao texto
original foram introduzidas imediatamente a seguir, nas duas primeiras revisões
constitucionais. Em 1982, ocorreu o aditamento da gestão descentralizada e participada
do SNS e, em 1989, o SNS passou de “gratuito” a “tendencialmente gratuito”.
46 Nas últimas quase três décadas, a CRP tem-se mantido inalterada na sua essência. Sem
prejuízo de uma eventual adaptação do texto constitucional à linguagem e às
tendências mais atuais das políticas de saúde, a realidade mostra que os limites
jurídico-constitucionais do SNS não são uma barreira a novas e melhores políticas
públicas, capazes de assegurar as atribuições constitucionais do estado em matéria de
proteção da saúde.
47 Se o princípio de universalidade foi plenamente alcançado, o princípio de generalidade
ainda se encontra por cumprir em muitas áreas de prestação de cuidados de saúde.
48 Já em relação ao princípio de tendencial gratuitidade, a questão principal é saber se o
direito à proteção da saúde é posto em causa, ou não, em face da evidência empírica
mais recente sobre o efeito de taxas moderadoras e copagamentos, e também da crise,
no acesso a cuidados de saúde e nos resultados em saúde obtidos.

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NOTAS
1. A título de exemplo, cita-se Novais (2010: 241), que refere como “mais pacífico o tema da gestão
necessariamente descentralizada e participada do SNS”, para justificar não o considerar quando
aborda os limites jurídico-constitucionais do SNS.
2. Salienta-se o caráter bastante mais específico desta competência do estado, comparativamente
com as restantes, no que respeita a assegurar o direito à proteção da saúde.
3. “Votaram contra o articulado da Constituição quinze Deputados do CDS. Não houve
abstenções. Todos os restantes Deputados, incluindo os Deputados independentes e o Deputado
de Macau, votaram a favor do articulado da Constituição da República Portuguesa.” (Fonte:
http://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dac/01/01/01/132/1976-04-02/4433).

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38

4. “…com votos a favor do PS, do PCP, da UDP e do Deputado independente Brás Pinto e com
votos contra do PSD, do CDS e dos Deputados independentes sociais-democratas.”
5. Artigo 4º, n.os 1 e 2.
6. Artigo 6º, n.º 2.
7. Artigo 7.º.
8. Artigos 2.º e 19.º.
9. Artigo 23.º.
10. Aprovada com “195 votos a favor (do PSD, do PS, do CDS, do PPM, da ASDI e da UEDS), 40
votos contra (do PCP e da UDP) e 1 abstenção (do MDP/CDE)".
11. Despachos Ministeriais n. os 57/80 e 58/80, de 29 de dezembro; Despacho do Ministro dos
Assuntos Sociais de 18 de janeiro de 1982 (publicados no Diário da República, II série, n.º 34, de
10/02/82); Despacho do Ministro da Saúde de 27 de fevereiro de 1984 (publicado no Diário da
República, II série, n.º 60, de 12/03/84); Decreto-Lei n.º 57/86, de 20 de março; Portaria n.º 344-A/
86, de 5 de julho.
12. Parecer n.º 35/82 da Comissão Constitucional, que justificou a admissibilidade de taxas
moderadoras, recorrendo à teoria da relevância jurídica especial das normas de direitos sociais,
segundo a qual estas são de realização progressiva, gradual, diferida no tempo, em função das
disponibilidades financeiras e materiais do estado.
13. Acórdãos n.os 92/85, de 18 de junho (que declara a inconstitucionalidade formal dos
despachos que regulavam as taxas moderadoras, não tendo por isso apreciado a
constitucionalidade material dos mesmos), e 330/89, de 11 de abril (que declara que as normas do
Decreto-Lei n.° 57/86, de 20 de março, nomeadamente, as taxas moderadoras, não são
inconstitucionais).
14. “Aprovada com os votos a favor do PSD, do PS, do PRD, do CDS e do Deputado Independente
Carlos Macedo, votos contra do PCP, de Os Verdes, dos deputados do PSD Jorge Pereira, Carlos
Lélis, Cecília Catarino e Guilherme Silva, dos deputados do PS Manuel Alegre e Sottomayor
Cardia, da deputada do PRD Natália Correia e dos Deputados Independentes Raul Castro e João
Corregedor da Fonseca e as abstenções do Deputado do PRD Marques Júnior e da Deputada
Independente Helena Roseta.” (Fonte: http://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/
01/05/02/091/1989-06-02/4530?pgs=4530&org=PLC)
15. A segunda revisão constitucional ocorre numa fase (1985-1995) de mudança da fronteira
entre público e privado, a favor do privado (OPSS, 2002; Campos e Simões, 2011; M.V. da Silva,
2012a; 2012b).
16. ] “…com votos a favor do PSD, do CDS e do Deputado independente Carlos Macedo e votos
contra do PS, do PCP, do PRD e do Deputado independente Raul Castro.” (Fonte: http://
debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/01/05/03/100/1990-07-13?pgs=&org=PLC)
17. Base IV, n.º 1.
18. Base IV, n.º 2.
19. Base II, n.º 1, alínea f; base XXXVII, n.º 1.
20. Base XXXVI, n.º 2.
21. Base XLI, n.º 1.
22. Base XLII.
23. Base XXIV.
24. Base XXXV, n.º 1.
25. Base II. n.º 1, alínea g.
26. Base VII, n.os 1 a 3.
27. Base XII, n.º 2.
28. Anexo ao Decreto-Lei n.º 11/93, de 15 de janeiro.
29. “…com votos a favor do PS e do PSD, votos contra do CDS-PP, do PCP, de Os Verdes e do
Deputado do PS Manuel Alegre e abstenções dos Deputados do PS Alberto Martins, Arnaldo

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Homem Rebelo, Eduardo Pereira, Elisa Damião, Fernando Pereira Marques, Helena Roseta, Luís
Filipe Madeira e Marques Júnior" (Fonte: http://goo.gl/O1cZ41)
30. A quarta revisão constitucional ocorre numa fase distinta das políticas de saúde em Portugal
(1995-2002), caracterizada pela expansão e, simultaneamente, reforma do sistema de saúde, com
a aplicação de medidas de melhoria de eficiência, sendo visível um recuo na narrativa de
privatização do SNS (OPSS, 2002; Campos e Simões, 2011; M. V. da Silva, 2012a; 2012b).
31. Decreto do Presidente da República n.º 44-A/2011, de 7 de abril.
32. No total, deram entrada na Assembleia da República, no âmbito da oitava revisão
constitucional, dez projetos de revisão. Seis foram apresentados pelos grupos parlamentares com
assento na AR (n.º 1/XI—PSD; n.º 2/XI—PCP; n.º 3/XI—PEV; n.º 4/XI—BE; n.º 5/XI—CDS-PP; e n.º 9/
XI—PS) e quatro por deputados do PSD (n.os 6/XI, 7/XI e 8/XI) e do CDS-PP (n.º 10/XI). Só os
projetos n.os 1/XI a 5/XI continham alterações ao artigo 64.º da CRP.
33. Com o PEV a aditar também “igual” às características do SNS.
34. Base IV, n.º 1; base XII, n.º 1.
35. Lei nº 56/79, de 15 de setembro, artigo 4.º, n.º 1; Lei n.º 48/90, de 24 de agosto, baseXXV, n.º 1.
36. Lei n.º 56/79, de 15 de setembro, artigo 6º, n.º 2.
37. Lei n.º 48/90, de 24 de agosto, base XXIV.
38. Base XXXV, n.º 1.
39. Lei Constitucional n.º 1/89, de 8 de julho.
40. CRP, artigo 64.º, n.º 3, alínea a.

RESUMOS
O artigo 64.º da Constituição da República Portuguesa, sobre a saúde, foi objeto de várias
alterações nos últimos 30 anos. Os momentos, a sequência e o conteúdo dessas alterações, são
descritos e analisados na sua relação com medidas-chave da política pública de saúde, tendo em
consideração as suas implicações jurídico-constitucionais, o contexto histórico-institucional e a
sua relação com fatores externos. São ainda descritas e examinadas as alterações propostas na
última revisão constitucional, em 2010, que não foi concluída. Finalmente, é discutida a
concretização dos três princípios principais que regem o Serviço Nacional de Saúde:
universalidade, generalidade e tendencial gratuitidade.

Article 64 of the Constitution of the Portuguese Republic, on Health, has been the object of
several amendments over the last 30 years. The timing, sequence and content of these changes
are described and analysed in relation to key public health policy measures, taking into account
their legal and constitutional implications, the historical-institutional context and its
relationship with external factors. The changes proposed during the most recent constitutional
review process, in 2010, which was not concluded or implemented, are also described and
examined. Finally, the paper discusses the implementation of the three main principles
governing the National Health Service: universality, generality, and the tendency towards free
healthcare.

L’article 64 de la Constitution portugaise, sur la santé, a été plusieurs fois modifié au cours des 30
dernières années. Les dates, la chronologie et le contenu de ces modifications sont décrits et
analysés en fonction de leur relation avec les mesures-clés de la politique de santé publique, en

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tenant compte de leurs implications juridiques et constitutionnelles, du contexte historique et


institutionnel et de leur relation avec des facteurs externes. Les modifications proposées dans la
dernière révision constitutionnelle en 2010, qui n’a pas abouti, sont aussi décrites et examinées.
Enfin, l’article aborde la mise en œuvre des trois grands principes qui régissent le Service
National de Santé portugais : l’universalité, la généralité et la gratuité tendancielle.

El artículo 64 de la Constitución de la República Portuguesa (CRP), sobre la salud, ha sido objeto


de varios cambios en los últimos 30 años. El momento, la secuencia y el contenido de estos
cambios se describen y analizan en su relación con las medidas clave de la política de salud
pública, teniendo en cuenta sus implicaciones legales y constitucionales, el contexto histórico-
institucional y su relación con factores externos. Además, se describen y se examinan los cambios
propuestos en la última revisión de la Constitución en 2010 que no se completó. Por último, se
discute la aplicación de los tres principios fundamentales que rigen el Servicio Nacional de Salud:
la universalidad, la generalidad y la gratuidad tendencial.

ÍNDICE
Palabras claves: Constitución, salud, políticas públicas
Palavras-chave: Constituição, saúde, políticas públicas
Keywords: Constitution, health, public policy
Mots-clés: Constitution, santé, politique publique

AUTOR
SOFIA CRISÓSTOMO
Assistente de investigação, CIES-IUL, Av. das Forças Armadas, 1649-026  Lisboa, Portugal.
sofia_crisostomo@iscte.pt

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41

Fundamentos constitucionais da
igualdade de género
The constitutional bases for gender equality
Fondements constitutionnels de l’égalité de genre
Fundamentos constitucionales de la igualdad de género

Sónia Fertuzinhos

 
Breve introdução aos fundamentos constitucionais da
igualdade
1 Uma das matérias que ilustra e fundamenta, com especial clareza, a ideia de que a
Constituição da República Portuguesa de 1976 “é certamente a mais original de todas as
constituições portuguesas e aquela que mais marcadamente rompe com a Constituição
precedente” (Canotilho e Moreira, 2014), é a que diz respeito à igualdade. No entanto, a
definição do princípio geral da igualdade (artigo 13.º), a que se somaram, em 1976 e nas
diferentes revisões constitucionais posteriores, várias “normas especiais” de igualdade,
marca não apenas a rutura com a Constituição de 1933 do Estado Novo, como uma nova
fase nos dois séculos de evolução histórica da exigência social, política, legal e
constitucional relativamente ao conceito de igualdade (Amaral, 2004).
2 O princípio da igualdade é um princípio estruturante do constitucionalismo e do estado
de direito, na sua relação com o princípio da liberdade e com a ideia de justiça, que é
comum a todos os direitos e deveres fundamentais. É um princípio que marca o
constitucionalismo moderno do final do século XVIII, como marca com igual relevância
e constância o constitucionalismo português (Miranda e Medeiros, 2010). Desde as
Bases da Constituição de 1821, que definem o princípio de que “a lei é igual para todos”,
que todas as Constituições e a Carta Constitucional que se lhe seguiram consagraram o
princípio da igualdade: as Bases da Constituição de 1821, no artigo 11.º; a Constituição
de 1822, no artigo 9.º; a Carta Constitucional de 1826, no artigo 145.º; a Constituição de
1838, no artigo 10.º; a Constituição de 1911, no artigo 3.º, n.º 2; a Constituição de 1933,
no artigo 5.º.

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42

3 O reverso da medalha da “longevidade constitucional” deste princípio (Novais, 2011) é o


da sua “construção gradual por camadas” (Amaral, 2004) até aos nossos dias.
Construção que passou de um conceito de igualdade formal que convivia com a
discriminação em função de certas categorias de pessoas — como as mulheres, os
negros, os analfabetos ou com baixa instrução, os que professavam certas religiões —
para um conceito de igualdade fática, que se obriga a ter em conta as diferenças entre
as pessoas, tratando igual o que é igual, desigual o que é desigual, e que se preocupa
com os resultados da lei.
4 A evolução do princípio da igualdade e do seu entendimento pela sociedade “conjuga
dialeticamente” (Canotilho e Moreira, 2014) três dimensões. A primeira dimensão é a
que resulta das Revoluções Liberais e da ambição e exigência de garantir a igualdade e a
liberdade de todos perante a lei, contra os abusos e os privilégios do poder absoluto. As
Declarações de Direitos e as Constituições escritas são a forma encontrada para garantir
que estes dois princípios se irão concretizar materialmente (Garcia, 2005). Nesta
primeira fase a igualdade é a igualdade de todos perante a lei, independentemente de
quaisquer condições económicas, sociais ou outras. A igualdade é entendida como um
valor absoluto e neutro. Esse entendimento deixava de fora os que não cabiam na
“conceção particular” de cidadão da altura e discriminava em função de categorias de
pessoas, como mulheres, negros, entre outros (Novais, 2011).
5 A segunda dimensão é a democrática e surge com a confrontação da “evidente
hipocrisia” da igualdade universal do liberalismo, e com o reconhecimento de que a
igualdade “seria, afinal, desigualdade” (Neto, 2009). Nesta fase é “redescoberto” o valor
relativo da igualdade enquanto realidade construída, e a “máxima — todos são iguais
perante a lei — pode decompor-se em duas afirmações distintas: o igual deve ser
tratado igualmente e o desigual, desigualmente, na medida exata da diferença” (Garcia,
2005). Para resolver as questões que se colocam sobre o como definir “a medida exata
da diferença” surge o conceito de discriminação (positiva e negativa) e o imperativo da
proibição de discriminação como garantia da recusa do arbítrio legislativo (Amaral,
2004; Garcia, 2005; Canotilho e Moreira, 2014).
6 A terceira dimensão é a dimensão social que acompanha o desenvolvimento do
alargamento das funções do estado em geral, e do estado social em particular. Trata-se
da função social da igualdade (Canotilho e Moreira, 2014). A questão já não é, nesta fase,
a da “igualdade perante a lei”, mas a “igualdade da lei” e a sua capacidade para impor a
igualdade material, no plano económico, social e cultural.
7 Nesta evolução, da proibição de discriminar na primeira dimensão do conceito de
igualdade, à autorização de discriminar na segunda, impõe-se o objetivo de eliminar as
desigualdades fáticas na terceira dimensão (Amaral, 2004; Canotilho e Moreira, 2014).
8 Sendo a igualdade um conceito valorativo, relativo e construído, a nossa perceção sobre
o seu significado foi-se transformando ao longo do tempo (Amaral, 2004; Garcia,2005. A
história da evolução do princípio da igualdade é assim a história de um princípio
sempre “aberto, controverso e de compreensão não tão linear quanto uma evolução de
200 anos poderia fazer crer” (Novais, 2011).
9 De acordo com Novais (2011) a Constituição Portuguesa “acolhe expressa e
eloquentemente todas as dimensões da igualdade e procura, tanto quanto possível,
determinar normativamente a solução dos problemas de igualdade inevitavelmente
suscitados por facto da complexidade que o princípio adquiriu no Estado Social”.

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10 São em número significativo os vários artigos da Constituição atual que incluem a


palavra igualdade: o artigo 9.º é o primeiro e determina como “tarefas fundamentais do
Estado […] d) Promover […] a igualdade real entre os portugueses […] h) Promover a
igualdade entre mulheres e homens”; no artigo 10.º, “O povo exerce o poder político
através do sufrágio universal, igual […]”; no artigo 36.º, “1. Todos têm direito de
constituir família e de contrair casamento em condições de plena igualdade […] 3. Os
cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto à capacidade civil e política e à
manutenção e educação dos filhos”; no artigo 50.º, nº 1, “Todos os cidadãos têm o
direito de acesso, em condições de igualdade e liberdade, aos cargos públicos”; no
artigo 58.º, “[…] 2. Para assegurar o direito ao trabalho, incumbe ao Estado promover:
[…] b) A igualdade de oportunidades na escolha da profissão ou género de trabalho […];
no artigo 74.º, ”1. Todos têm direito ao ensino com garantia do direito à igualdade de
oportunidades de acesso e êxito escolar"; no artigo 109.º, “[…] devendo a lei promover a
igualdade no exercício dos direitos cívicos e políticos e a não discriminação em função
do sexo no acesso a cargos políticos”.
11 Como são várias e exaustivas as “dimensões densificadoras” (Canotilho e Moreira, 2014)
do princípio da igualdade, desde logo a igualdade entre mulheres e homens em geral e
no acesso aos cargos políticos em particular (artigo 9.º, alínea h, e artigo 109.º,
respetivamente), a proibição da discriminação em função da raça e da orientação sexual
(artigo 13.º, n.º 2), a proteção da maternidade e da paternidade (artigo 68.º), a
valorização da língua gestual portuguesa (artigo 74.º, n.º 2, alínea h), o reconhecimento
de direitos a cidadãos da União Europeia e da Comunidade de Países de Língua
Portuguesa (artigos 15.º, n.º 3, e n.º 5), a proteção dos direitos dos trabalhadores e das
organizações sindicais (artigos 59.º e 55.º, respetivamente), o acesso ao ensino (artigo
74.º).
12 A Constituição de República em vigor é a “expressão de um contrato social” que resulta
de um “vasto e complexo compromisso” entre as forças políticas desde 1976,
compromisso que foi confirmado e atualizado em cada uma das sete revisões
constitucionais (Canotilho e Moreira, 2014). O princípio geral e as normas especiais da
igualdade são um bom exemplo disso mesmo.
 
 Os fundamentos constitucionais da igualdade de
género
13 A dimensão transformadora da Constituição de 1976, que adota um “extenso catálogo”
de direitos fundamentais por oposição à sua supressão na Constituição de 1933 e na
vigência da ditadura (Canotilho e Moreira, 2014), consagra pela primeira vez, no
ordenamento constitucional português, a igualdade de direitos das mulheres em todos
os domínios (Neto, 2009). A Constituição saída da Revolução marca a rotura com todas
as constituições anteriores. Se as constituições liberais e da Primeira República não
mencionavam as mulheres e a sua interpretação perpetuava a desigualdade entre
mulheres e homens, desde logo na participação política, a Constituição de 1933
considerava expressamente a situação das mulheres, tendo por base “as diferenças
resultantes da sua natureza e do bem da família” (Miranda, 2006), diferenças que
justificavam a sua discriminação em todas as dimensões sociais, económicas e políticas.

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14 Nos 40 anos da Constituição da República os direitos das mulheres ganham centralidade


jurídico-constitucional no conjunto dos direitos fundamentais (Novais, 2011), referindo
a literatura a existência de um regime especial de igualdade na Constituição, que é o da
igualdade entre mulheres e homens (Amaral, 2004). À densificação da vertente da
igualdade de género do princípio da igualdade corresponde uma transformação
impressionante do papel das mulheres e dos homens na sociedade portuguesa nas
últimas quatro décadas. Do estatuto de mulheres dos chefes de família e de mães
educadoras, que as retirava do espaço público e da participação política, porque
imprescindíveis, subsumidas e submissas no espaço privado, as mulheres passaram a
ocupar progressivamente todas as dimensões da vida em sociedade, ao mesmo tempo
que o papel e o espaço de participação dos homens na vida privada, desde logo na
partilha de responsabilidades no cuidar dos filhos, também evoluíram positivamente.
15 Há ainda um caminho a percorrer, mas é inegável e deve ser valorizado o percurso
vencido, reconhecendo na Constituição “as traves mestras da política de género”
(Neto, 2009). Nesse percurso transformador mudou a vida das mulheres e dos homens
porque se alterou “intensa e profundamente o sentido do direito que a rege” (Amaral,
2004).
16 Os fundamentos constitucionais da igualdade de género estão nos artigos 9.º, alínea h
(“Tarefas fundamentais do Estado”), 13.º (“Princípio da igualdade”), 36.º, n.º 3 (“Família,
casamento e filiação”), 47.º (“Liberdade de escolha de profissão e acesso à função
pública”), 48.º (“Participação na vida pública”), 49.º (“Direito de sufrágio”), 58.º, n.º 2,
alínea b (“Direito ao trabalho”), 59.º, n.º 1, alíneas a e b (“Direitos dos trabalhadores”),
67.º, n.º 2, alíneas b, d e h (“Família”), 68.º (“Paternidade e maternidade”) e 109.º
(“Participação política dos cidadãos”).
 
A promoção da igualdade entre homens e mulheres como tarefa
fundamental do estado — artigo 9.º, n.º 1, alínea h

17 A introdução da promoção da igualdade entre homens e mulheres como tarefa


fundamental do estado, no artigo 9.º, n.º 1, alínea h, foi aprovada na VII revisão
constitucional em 1997, na sequência da proposta do Partido Ecologista Os Verdes.
A influência do Tratado de Amesterdão é assumida pelo partido proponente.
18 O sentido desta norma é o de “habilitar constitucionalmente” os poderes públicos para
a adoção de medidas de discriminação positiva, com o objetivo da concretização da
igualdade entre mulheres e homens (Pinheiro e Fernandes, 1999). O reconhecimento da
igualdade em geral, e da igualdade entre mulheres e homens em particular, como uma
realidade construída, impõe ao estado a promoção da igualdade fática, para além da
igualdade formal. Se a eliminação das discriminações legais da ordem jurídica
portuguesa foi concretizada logo nos primeiros anos a seguir à Revolução de 1974, antes
e depois da Constituição de 1976, a construção de facto da igualdade entre mulheres e
homens revela-se um objetivo mais difícil de dar por concluído (Garcia, 2005). Por
reconhecer isto mesmo, o legislador aceita a necessidade de compensar materialmente
as desigualdades fáticas entre mulheres e homens (Moreira, 1998).
19 Enquanto tarefa do estado esta norma tem, assim, duas dimensões (Canotilho e
Moreira, 2014). Por um lado, e enquanto fim principal dos poderes públicos, impõe
constitucionalmente a eliminação das desigualdades materiais e formais através da
ação explícita do estado. Por outro lado, constitui um limite negativo à atuação dos

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poderes públicos, dependendo a validade dos seus atos da conformidade com o objetivo
de promoção da igualdade entre mulheres e homens (artigo 3.º).
20 Até à revisão constitucional de 1997 a licitude das medidas de discriminação positiva
era considerada “assaz problemática” (Moreira, 1998). O preceito constitucional da
alínea h do artigo 9.º é a “credencial constitucional” (Moreira, 1998) que responde e
resolve os problemas e dúvidas de fundamentação legal das medidas de discriminação
positiva.
21 A análise do debate parlamentar deixa muito clara a intenção do legislador com a
introdução desta norma. Na oposição e único voto contra está o CDS, que pela voz da
deputada Maria José Nogueira Pinto considera que a igualdade entre homens e
mulheres já está consagrada no artigo 13.º da Constituição, que a sua inclusão no artigo
9.º é “colocar o problema na gaveta”, falhar as prioridades, “reconhecer a derrota” na
promoção dessa igualdade e “tratar as mulheres como minoria”, quando as mulheres
são “quantitativa […] e qualitativamente” uma maioria que lutará cada vez mais “pela
diferença do que pela igualdade”. Na maioria o PEV e o PSD deixam muito claras as
razões e os objetivos que justificam a necessidade desta norma na Constituição. A
deputada Isabel Castro do PEV responde às críticas do CDS quanto à não justificação
desta norma especial tendo em conta o artigo 13.º, dizendo: “Na verdade, não se trata
[…] de um direito cuja incorporação no texto constitucional não faz sentido, pois este já
consagra o direito de não discriminação em função do sexo. Trata-se de algo
radicalmente diferente: a incumbência do Estado de promover a igualdade. A promoção
da igualdade não é uma questão linear, não é uma fórmula, é no fundo a reformulação
do próprio conceito de democracia política.” A deputada Eduarda Azevedo do PSD
afirma o principal objetivo desta norma: “Queremos crer que, de hoje em diante estará
criado o enquadramento para acabar com o fosso existente e subsistente entre o direito
proclamado e a prática existente. A simples igualdade decorrente do artigo 13.º não tem
chegado.”
22 Este debate revela uma curiosidade que merece registo. A proposta inicial do PEV
referia “a promoção da igualdade entre mulheres e homens” e a redação final e atual
fixou a “promoção da igualdade entre homens e mulheres”. Esta alteração deve-se ao
acordo entre o PS e o PSD para que prevalecesse o critério da ordem alfabética na
redação. Os argumentos das proponentes de que as mulheres constituem a maioria da
população e de que o facto da desigualdade histórica ser a das mulheres em relação aos
homens justificava que a ordem fosse mulheres e homens, foram vencidos.
 
O princípio da igualdade — artigo 13.º

23 Na vigência “intranquila” da Constituição de 1976, desde logo na sua formulação literal,


o artigo 13.º apresenta-se até hoje como tendo sido alterado apenas uma vez, em 2004,
28 anos depois da aprovação do texto original da Constituição democrática (Amaral,
2004). Essa única alteração acrescentou a orientação sexual ao conjunto de “categorias
suspeitas” que motivam a discriminação entre as pessoas. Tendo em conta a
importância do princípio da igualdade no constitucionalismo, que o transforma no
“virtual guardião de todos os restantes valores constitucionais” a estabilidade deste
artigo ao longo dos 40 anos da Constituição é especialmente relevante (Amaral, 2004).

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24 A “tranquilidade” da redação do artigo 13.º é mais percetível se o compararmos com o


artigo 9.º referido no ponto anterior. Na redação atual, das oito tarefas do estado
apenas a alínea a corresponde à versão de 1976.
25 A análise da redação do artigo 13.º pode ser dividida em quatro partes: a dignidade
social como base constitucional do princípio da igualdade e a igualdade dos cidadãos
perante a lei, relativas ao n.º 1, a igualdade de todos os cidadãos em matéria de direitos
e deveres e a proibição de discriminações, relativas ao n.º 2.
26 A base constitucional do princípio da igualdade é a igual dignidade social de todos os
cidadãos (Miranda e Medeiros, 2010; Canotilho e Moreira, 2014). É porque todos os
cidadãos têm a mesma dignidade que devem ser tratados como iguais,
independentemente da sua condição económica, social e política. O princípio da
igualdade não garante assim o mesmo tratamento, mas um tratamento como igual
(Novais, 2011).
27 A garantia do tratamento como igual associada à igualdade perante a lei, também
enunciada no artigo 13.º, n.º 1, muda completamente o sentido tradicional liberal desta
expressão. Do princípio da igualdade que se subsumia no princípio da legalidade
(Amaral, 2004), evolui-se para uma leitura do mesmo princípio que passa a significar a
igualdade na lei e através da lei, só sendo legalmente possíveis as diferenciações
fundamentadas em critérios que não colidam com “a igual consideração e respeito
devidos a todas as pessoas” (Novais, 2011). Deixa assim de ser possível a convivência
entre o princípio constitucional da igualdade e as discriminações pela generalidade da
lei, como acontecia antes da Constituição de 1976.
28 O princípio da igualdade, no n.º 2 do artigo 13.º, enuncia um conjunto de fatores de
discriminação ilegítimos, reconhecidos historicamente como justificados em razões que
atentam contra a dignidade e o reconhecimento devidos a todas as pessoas, porque se
baseiam unicamente em atributos sobre os quais as pessoas não têm controlo, ou em
opções e orientações de vida individuais que as pessoas são livres de formar (Novais,
2011; Canotilho e Moreira, 2014). São os chamados grupos “suspeitos”, já referidos
anteriormente, e correspondem a alguns dos elementos fundadores de diferenças de
tratamento jurídico que, não esgotando todos os fatores de discriminação, são
socialmente reconhecidos como sendo, pela história e pela frequência, os mais
significativos (Canotilho e Moreira, 2014).
29 Ainda no n.º 2 do artigo 13.º, o princípio da igualdade traduz-se na regra da
generalidade na atribuição de direitos e imposição de deveres, ou seja, os direitos e
vantagens devem beneficiar todos, como os deveres e encargos devem obrigar todos
(Canotilho e Moreira, 2014).
30 Na sua evolução, o sentido fundamental do princípio da igualdade assume uma dupla
vertente (Miranda e Medeiros, 2010). A vertente negativa, que proíbe quaisquer
privilégios e discriminações, e a vertente positiva, que abrange cinco dimensões: o
tratamento igual de situações iguais, o tratamento desigual de situações substancial e
objetivamente desiguais, o tratamento das situações relativamente iguais ou desiguais
de acordo com o princípio da proporcionalidade, o tratamento das situações não apenas
como existem mas como devem existir e, finalmente, a consideração do princípio da
igualdade não como uma “ilha”, mas na sua relação com os valores e padrões materiais
da Constituição (Miranda e Medeiros, 2010).

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31 Coloca-se ainda a questão de saber como avaliar e medir o igual e o desigual, como
corrigir a desigualdade, como garantir a igualdade. A jurisprudência constitucional
distingue três dimensões no controlo do respeito pelo princípio da igualdade (Amaral,
2004; Miranda e Medeiros, 2010; Garcia, 2005; Canotilho e Moreira, 2014). A primeira
dimensão é a da proibição do arbítrio, que se traduz na imposição de tratar como igual
o que é igual e tratar como diferente o que é diferente. A segunda dimensão é a da
proibição da discriminação, tal como expressa no n.º 2 do artigo 13.º. Finalmente, a
terceira dimensão é a da obrigação de diferenciação, e concretiza-se pela introdução de
discriminações ou medidas positivas, que têm como objetivo compensar as
desigualdades de oportunidades.
32 O debate parlamentar traduz, de uma forma muito clara, a preocupação dos deputados
e das deputadas com a igualdade de facto, para além da igualdade formal, e com a
introdução de novos fatores reconhecida e comprovadamente discriminatórios, para
além dos já consagrados na Constituição, como o estado civil e o estado de saúde. As
sucessivas propostas de incluir o estado civil no n.º 2 do artigo 13.º, foram justificadas
pelos proponentes (PCP e deputada Helena Roseta do PPD) com base nas denúncias
pelas associações de mulheres da discriminação real e persistente destas no mercado de
trabalho. A sua rejeição teve na base o argumento de que os “grupos suspeitos” já
adotados não esgotavam, nem poderiam esgotar, todas as situações, mas que
respondiam à exigência de serem os mais abrangentes e consensualmente
reconhecidos.
33 A especificação da não discriminação da igualdade entre mulheres e homens no texto
do artigo 13.º, para além da não discriminação em função do sexo, é outra questão que
motivou várias propostas do PCP. Propostas que tinham o apoio e que se somavam aos
contributos das associações de mulheres, designadamente da Associação Portuguesa de
Mulheres Juristas e da Intervenção Feminina. Estas iniciativas nunca conseguiram
reunir a maioria necessária para a sua aprovação, sendo a justificação fundada na
discussão sobre os limites e razoabilidade das especificações das normas
constitucionais, em que a maioria do parlamento considerou a não discriminação em
função do sexo abrangente e claramente orientada para a garantia da defesa da
igualdade entre mulheres e homens.
 
Família, casamento e filiação — artigo 36.º, n.º 3

34 O princípio da igualdade dos cônjuges, declarado no n.º 3 do artigo 36.º, assume uma
“expressão qualificada” do princípio da igualdade de direitos e deveres entre mulheres
e homens, decorrente do n.º 2 do artigo 13.º (Beleza, 1977; Canotilho e Moreira, 2014).
Os cônjuges são iguais, sendo proibida qualquer discriminação jurídica na sua relação. O
princípio da igualdade abrange assim, não apenas os direitos civis e políticos, mas
também a família e as relações familiares. A família tem um valor constitucional
próprio, mas não se sobrepõe ao direito à igualdade, liberdade, personalidade e
dignidade de cada um dos seus membros (Miranda e Medeiros, 2010; Canotilho e
Moreira, 2014).
35 A adoção do princípio da igualdade dos cônjuges, logo na Constituição de 1976, impõe o
princípio da direção conjunta da família e rompe com a discriminação das mulheres na
esfera familiar na Constituição de 1933 e numa extensa legislação do Estado Novo, que
tinha como uma das suas missões “reeducar as mulheres” para a sua função

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imprescindível de educadoras e suporte da vida familiar (Pimentel, 1999), que


condicionava o papel das mulheres ao “bem da família” (artigo 5.º da Constituição de
1933). Este princípio implicou diretamente profundas alterações dos grandes códigos,
como o Código Civil de 1966, de uma extensa legislação avulsa e a caducidade do maior
número de normas do direito ordinário que consagravam, por exemplo, a figura do
chefe de família, a impossibilidade de as mulheres casadas trabalharem ou saírem do
país sem autorização do marido, o direito do marido de administrar não apenas os bens
do casal, mas os da propriedade exclusiva das mulheres e até a possibilidade de perda
da nacionalidade portuguesa, dependendo da nacionalidade do homem com quem as
mulheres casassem (Beleza, 1977; Canotilho e Moreira, 2014; Miranda e Medeiros, 2010).
36 No debate parlamentar da Assembleia Constituinte, o n.º 3 do artigo 36.º foi votado por
unanimidade e sem discussão. Nas declarações de voto é realçado o sentido de correção
de desigualdades históricas e da mais elementar justiça para as mulheres, na adoção do
princípio da igualdade dos cônjuges. A deputada Hermenegilda Pereira do PCP traduz
na sua declaração o objetivo e alcance da aprovação deste artigo, na concretização
imediata da igualdade entre mulheres e homens na família: “Esta disposição vai ter
profundas implicações no direito da família”.
37 Esta norma constitucional e as alterações que impôs na restante legislação, como já
referido, são tão mais importantes quanto a desigualdade das mulheres na família
alimentava e “justificava” a desigualdade das mulheres no acesso à educação, ao
trabalho e às profissões, no acesso e no exercício da participação política (Beleza, 1977;
Amaral, 2004).
 
Liberdade de escolha da profissão e acesso à função pública —
artigo 47.º

38 A consagração do direito constitucional a “[…] escolher livremente a profissão ou o


género de trabalho […]”, reflete o princípio da igualdade, que neste artigo da
Constituição se traduz na proibição de discriminações no acesso às diferentes profissões
(Canotilho e Moreira, 2014). Não há nenhuma razão que fundamente a restrição no
aceso às profissões e à função pública, desde logo em função do sexo.
39 Este direito assume duas dimensões e implica várias liberdades (Miranda e Medeiros,
2010; Canotilho e Moreira, 2014). Uma dimensão negativa que, enquanto direito de
defesa, significa não ser forçado a escolher e exercer uma determinada profissão, nem
ser impedido de escolher e exercer qualquer profissão para a qual se esteja habilitado.
Uma dimensão positiva que implica, na relação deste direito com o direito ao trabalho e
ao ensino, o direito à obtenção das condições legalmente exigidas para o exercício da
profissão pretendida, e o direito de garantia de igualdade nas condições de acesso a
cada profissão.
40 A liberdade de escolha da profissão implica ainda diferentes liberdades (Canotilho e
Moreira, 2014). A liberdade de aprender para obter as habilitações literárias necessárias
ao exercício da profissão pretendida (artigo 43.º), liberdade de deslocação e residência
no território nacional (artigo 44.º, n.º 1), a liberdade de emigração (artigo 44.º, n.º 2), a
liberdade de escolha do local de trabalho e a liberdade de exercício associado da
profissão (artigo 46.º).

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41 Se a proibição de qualquer discriminação em função do sexo, ou de qualquer outra, é


claramente assumida, há concretizações desta mesma norma consideradas
controversas (Canotilho e Moreira, 2014). É o caso do recurso às ações ou
discriminações positivas para promover a igualdade de género no acesso às profissões,
favorecendo o sexo menos representado, ou o caso de quotas mínimas que garantam o
acesso de determinados grupos a certos cargos ou empregos, como as pessoas com
deficiência na função pública. Em Portugal existem quotas na administração pública
para a contratação das pessoas com deficiência, e discute-se hoje na concertação social
as quotas para mulheres nos cargos de direção das empresas de maior dimensão.
42 Os debates parlamentares sobre este artigo foram bastantes consensuais, evidenciando
três preocupações recorrentes. A preocupação com a diferença entre profissão e
trabalho e a necessidade da inscrição dos dois termos, a dimensão de igualdade de
oportunidades que deve ser garantida com a aprovação desta norma e a necessidade de
garantir a transparência no acesso à função pública.
43 Na relação específica deste artigo com a igualdade de género, a sua importância em
1976 explica-se pelo facto de durante o Estado Novo várias profissões estarem vedadas
às mulheres, como a magistratura, ou estarem condicionadas pela proibição de
casarem, como a enfermagem e o ensino, não esquecendo que a lei do contrato
individual de trabalho discriminava explicitamente o acesso das mulheres a qualquer
emprego ou profissão em nome da “salvaguarda da sua saúde e moralidade ou para
defesa da sua família (Decreto-Lei n.º 49.408, de 24 de novembro, artigo 119.º) (Beleza,
1977; Viegas, 1977). Por outro lado, como as mulheres eram menos qualificadas e
tinham ainda menos acesso ao ensino e à formação profissional, as implicações das
dimensões e liberdades contidas nesta norma, já referidas, assumiram uma relevância
especial na criação de condições para a liberdade de escolha de profissão das mulheres.
 
Direito de sufrágio — artigo 49.º

44 Em Portugal as primeiras eleições por sufrágio universal foram as eleições para a


Assembleia Constituinte em 1975. O direito do sufrágio é, de acordo com o artigo 49.º da
Constituição, universal para todos os cidadãos maiores de 18 anos, traduzindo a
concretização dos princípios da generalidade e da igualdade (artigos 12.º e 13.º). O
direito de sufrágio, sendo universal, é pessoal, presencial e definido como um dever
cívico (Miranda e Medeiros, 2010).
45 O sufrágio restrito a certos cidadãos, de acordo com critérios com base no sexo, etnia,
religião, habilitações, condição económica, entre outros, que marcou grande parte do
estado liberal representativo até à Revolução de Abril, ficou definitivamente para trás
com esta norma constitucional (Canotilho e Moreira, 2014). O direito das mulheres a
elegerem e serem eleitas em absoluta igualdade relativamente aos homens, depois dos
compromissos não assumidos na Primeira República e das restrições do Estado Novo
relativamente às eleições locais, foi estabelecido na Constituição de 1976.
 

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Direitos dos trabalhadores — artigo 59.º, n.º 1, alíneas a e b, e n.º 2,


alínea c

46 A Constituição reafirma de novo, nesta norma, o princípio fundamental da igualdade,


rejeitando discriminações entre os trabalhadores em função da “idade, sexo, raça,
cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas”.
47 O n.º 1 do artigo 59.º fixa um conjunto de direitos dos trabalhadores que são muito
importantes do ponto de vista da promoção da igualdade de género no mercado de
trabalho. A definição do princípio de que para trabalho igual salário igual e o direito à
organização do trabalho que permita a conciliação da vida profissional e familiar.
48 O n.º 2 enumera um conjunto de incumbências do estado que permitam criar as
condições para a concretização dos direitos dos trabalhadores definidos no n.º 1. As
incumbências do estado com maior impacto na concretização da igualdade de género
são a fixação do salário mínimo, mas também a definição da proteção especial, através
da diferenciação positiva e de tratamento mais favorável, das mulheres grávidas.
49 Esta norma não se limita, assim, a proclamar uma simples igualdade formal, pelo
contrário determina a criação de condições que garantam uma real igualdade de
oportunidades para todos os trabalhadores em geral, e para as mulheres em particular
(Beleza, 1977).
50 A importância desta disposição constitucional para a promoção da igualdade entre
mulheres e homens no mercado de trabalho, em 1976, é óbvia, quando a participação
das mulheres no mercado de trabalho era bem mais reduzida, as suas qualificações
eram baixas e os setores de atividade maioritariamente femininos pagavam salários
baixos, quando o casamento e a responsabilidade exclusiva das mulheres enquanto
“fadas do lar” as afastava e excluía do acesso ao mercado de trabalho (Beleza, 1977).
Hoje, como em 1976, apesar da evolução que deve sempre ser realçada, o princípio de
salário igual para trabalho igual ainda não está garantido, sendo referido na literatura
como um “princípio moribundo” (Miranda e Medeiros, 2010).
51 No debate parlamentar a introdução do princípio da conciliação da atividade
profissional com a vida familiar, como um direito dos trabalhadores, teve origem na
proposta da Associação Portuguesa de Mulheres Juristas no âmbito da revisão
constitucional de 1997.
52 O princípio da conciliação da atividade profissional com a vida familiar surge pela
constatação das várias discriminações das mulheres no mercado de trabalho, no acesso
ao emprego, na remuneração, na estabilidade contratual, como consequência da “dupla
jornada de trabalho” (Moreira, 2011). A elevada participação das mulheres no mercado
de trabalho após o 25 de Abril implicou a acumulação das responsabilidades domésticas
e do cuidar dos filhos com as responsabilidades profissionais, por ausência de respostas
que substituíssem uma parte dessas tarefas. Este princípio desenvolvido nos anos 80 e
90 ao nível do direito comunitário, parte do princípio de que a igualdade entre
mulheres e homens no mercado de trabalho não é possível sem uma maior partilha na
família e na sociedade das responsabilidades familiares, desde logo no cuidar dos filhos
(Moreira, 2011).
53 Na sua concretização o princípio da conciliação tem vários instrumentos de política,
como a flexibilização dos horários, o recurso a tempo parcial, o investimento em
estruturas de apoio às famílias, as licenças parentais que promovam a partilha do

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cuidar dos filhos entre as mães e os pais. A literatura chama, no entanto, a atenção para
a possibilidade de estes e outros instrumentos poderem ter efeitos contraditórios com o
objetivo da promoção da igualdade das mulheres e dos homens no mercado de trabalho
e na partilha das responsabilidades domésticas, se não forem utilizados tantos pelos
homens como pelas mulheres (Pinheiro e Fernandes, 1999). Medidas que obriguem à
não transferibilidade de direitos são um dos meios para evitar potenciais efeitos
contraproducentes. A licença de parentalidade em Portugal é um exemplo de política
pública que traduz não apenas o objetivo de garantir tempos diferentes para os pais e
para as mães no cuidar dos filhos, como diferencia positivamente (com mais tempo de
licença) quem utiliza a totalidade dos tempos definidos para os dois progenitores.
 
Família — artigo 67.º, n.º 2, alíneas b, d e h

54 O n.º 1 do artigo 67.º da Constituição, cuja redação atual foi aprovada na revisão
constitucional de 1982, reconhece ao mesmo nível a família enquanto instituição com
direito à proteção do estado e da sociedade, e a família enquanto instituição que existe
para a realização pessoal e individual dos seus membros (Miranda e Medeiros, 2010;
Canotilho e Moreira, 2014). A rutura da Constituição de 1976 com a Constituição de 1933
é radical. A família deixa de se sobrepor aos seus membros, deixa de haver uma
definição constitucional da família legítima e ilegítima, sendo reconhecidas todas as
formas de organização familiar para além do casamento, as mulheres assumem um
estatuto de igualdade, não estando os seus direitos e estatuto condicionados “em
função da sua natureza e do seu papel na família”, e cessa a distinção entre filhos
legítimos e ilegítimos.
55 O n.º 2 do artigo 67.º exemplifica algumas das responsabilidades e incumbências do
estado na proteção da família, concretizando o que se define no n.º 1. Das oito alíneas
desta norma, as alíneas b, d e h são bases importantes para as políticas públicas com o
objetivo de promover a igualdade de género.
56 A alínea b estabelece como responsabilidade do estado “promover a criação e garantir o
acesso a uma rede nacional de creches e de outros equipamentos de apoio à família,
bem como uma política para a terceira idade”. Atribuindo o artigo 67.º a
responsabilidade da proteção da família ao estado e à sociedade, esta norma não
determina a criação de uma rede pública de creches, ao contrário do que é definido na
Constituição relativamente ao ensino (artigo 75.º) (Moreira e Medeiros, 2010).
57 A alínea d resulta na sua redação atual da revisão constitucional de 1997, e refere a
incumbência do estado de assegurar o direito ao planeamento familiar e à promoção do
exercício da maternidade e paternidade responsáveis, no respeito pela liberdade
individual.
58 A alínea h foi introduzida na revisão constitucional de 2004 e assume duas dimensões.
Por um lado, impõe a articulação de diferentes políticas setoriais com o objetivo de
promover a conciliação da vida profissional e familiar. Por outro lado, legitima a
possibilidade de discriminações positivas a favor da família.
59 O debate parlamentar desta norma, desde logo no n.º 1, é controverso e marcado pela
recusa absoluta de qualquer referência à família que pudesse recuperar a noção e o
papel da família da ideologia e da estratégia política do Estado Novo. Na Assembleia
Constituinte a proposta do PSD e do CDS, de definir a família como elemento natural e
fundamental da vida em sociedade foi rejeitada. O deputado Luís Nunes do PS refere na

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justificação do voto contra do PS, “o que aqui está […] a nossa história torna-o mau.
Porque o elemento natural da família é uma formulação que, historicamente, está
situada na esteira do imperialismo lusitano e dos elementos naturais”. É por esta ordem
de razão que na versão da Constituição de 1976 o n.º 1 deste artigo referia apenas a
proteção e o reconhecimento da constituição da família pelo estado. Nem mesmo
invocando a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que diz “A família é o
elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção desta e do
Estado”, os proponentes conseguiram ver aprovada a sua proposta.
60 Na revisão de 1982 a solução de consenso entre a direita e a esquerda neste debate
parte da conciliação de uma proposta da AD — “A família é o elemento natural e
fundamental da sociedade” — e de uma proposta do PCP — “As famílias têm direito à
efetivação de todas as condições que permitam a realização pessoal de todos os
membros do agregado familiar”. Na discussão, a preocupação de deixar bem claro que
não cabe na Constituição a definição de família, e que esta não se sobrepõe aos direitos
de cada um dos seus membros é ainda fortemente marcada pela memória da
Constituição de 1933 e do anterior regime.
61 Na revisão de 1989, não sendo aprovada nenhuma das alterações ao n.º 1 propostas, a
preocupação do legislador de clarificar o sentido da redação da norma, que reconhece a
família, mas que esta é apenas uma das dimensões da vida dos indivíduos, ocupa de novo
boa parte do debate parlamentar, afastando mais uma vez qualquer conceção de família
que pudesse aproximar-se da ideia transpersonalista da mesma. A deputada Helena
Roseta defendeu a necessidade de o debate constitucional ser um debate pedagógico e
de o texto constitucional, para além da sua “pureza jurídica”, ser também um “marco
na evolução das mentalidades”, porque facilmente se passa da defesa da “família como
base da sociedade” para a “mulher como base da família”. A revisão de 1989, não tendo
aprovado nenhuma alteração ao n.º 1 do artigo 67.º, clarificou unânime e
intencionalmente o espírito e a interpretação do legislador relativamente ao mesmo.
62 Os debates das alíneas b e d são sobretudo marcados pela questão do maior ou menor
papel do estado na sociedade e na família.
63 O debate sobre a responsabilidade do estado de “promover a criação de uma rede
nacional de creches e de outros equipamentos de apoio à família” é desde o início um
debate entre os que defendem que ao estado cabe apenas “promover” essa rede porque
é reconhecido o papel das instituições sociais (PSD, CDS e PS) e os que consideram ser
essa uma responsabilidade direta do estado (PCP, UDP). Mas também entre os que
consideram que as creches são uma opção de política inquestionável no apoio à família
e na promoção da participação das mulheres no mercado de trabalho (PS, PCP), e os que
defendem não saber, como o deputado Sousa Tavares do PSD, “até que ponto uma rede
materno-infantil (redação da Constituição de 1976) não evoluirá no futuro para
soluções que não são as de creches propriamente ditas. Porque inclusivamente, os
países onde mais de desenvolvem os sistemas de creches — Suécia e Rússia — chegaram
à conclusão de que não conseguiam cobrir mais de 30% da população infantil, por mais
esforços que fizessem. E há bastantes dúvidas sociológicas sobre se se devia tentar
outras fórmulas ou se se deve insistir no sistema de creches.”
64 A discussão sobre o papel do estado em matéria de planeamento familiar é um debate
que se traduz na evolução do tratamento desta questão pelos diferentes partidos, ao
longo do tempo e em cada uma das revisões constitucionais. Se em 1976 os que
defendiam o planeamento familiar como um direito se opunham a que o estado tivesse

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algum papel na efetivação desse direito, porque a intervenção do estado numa questão
da estrita esfera individual não era desejável nem defensável (deputado Jorge Miranda
do PSD), em 1982 foi possível consensualizar a redação atual, que mesmo assim não
obteve a unanimidade dos partidos com assento parlamentar. Diferentes
entendimentos sobre os limites do que deve ser inscrito na Constituição foram, em
1982, a dificuldade na obtenção da unanimidade, desde logo relativamente à ideia da
promoção pelo estado da “paternidade consciente”. O deputado Jorge Miranda
questionava o sentido dessa afirmação e a impossibilidade de o estado garantir esse
objetivo através da sua inscrição na Constituição.
 
Paternidade e maternidade — artigo 68.º

65 A consagração da igualdade dos pais e das mães nesta norma constitucional é


consequência do princípio da igualdade entre mulheres e homens (artigo 13.º, n.º 2)
(Miranda e Medeiros, 2010; Canotilho e Moreira, 2014). O texto em vigor deste artigo,
que resulta da revisão constitucional de 1982 relativamente aos n os 1 e 2, e da revisão de
1997 quanto ao n.º 3, traduz uma evolução significativa na igual valorização
constitucional e social da paternidade e da maternidade, e não apenas da maternidade,
como acontecia na redação da Constituição de 1976.
66 O estado e a sociedade têm a responsabilidade e obrigação constitucional de proteger
de igual modo as mães e os pais na sua relação com os filhos, seja qual for a forma de
organização e o vínculo familiar, sem que sejam prejudicados por essa razão na sua
realização profissional e participação cívica (Beleza, 1977; Canotilho e Moreira, 2014).
67 No debate da revisão constitucional de 1982, a evolução na redação deste artigo
relativamente ao texto da Constituição de 1976 é explicitamente referida e assumida. A
deputada Teresa Ambrósio do PS justifica, na declaração de voto do seu grupo
parlamentar, a aprovação desta norma “pelo que representa de evolução cultural,
social e de mudança de imagens e papéis que os indivíduos desempenham na
sociedade”. A deputada Margarida Salema do PSD refere-se à nova redação deste artigo
como resultado “de um passo importante na transformação de uma norma
essencialmente discriminatória, embora no sentido positivo, numa norma basicamente
igualitária que prevê que, quer os pais, quer as mães, tenham direito à proteção da
sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível ação em relação aos seus
filhos”. Em 1976 o consenso sobre o papel insubstituível da mãe na relação com os
filhos foi justificado, entre outros argumentos, pela “posição de especialistas e, enfim,
pessoas qualificadas sobre o assunto” (deputado Luís Nunes do PS).
68 O n.º 3 do artigo 68.º contém dois objetivos diferenciados (Canotilho e Moreira, 2014). O
primeiro refere-se ao direito à proteção especial de todas as mulheres durante a
gravidez e após o parto. O segundo dirige-se exclusivamente às mulheres trabalhadoras
que acumulam o direito à dispensa de trabalho por período adequado, sem perda de
remuneração e regalias.
 
Participação política dos cidadãos — artigo 109.º

69 Na revisão constitucional de 1997, a aprovação do artigo 109.º, que substituiu o artigo


112.º, mudou tudo na abordagem constitucional da participação política dos cidadãos.

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Do anterior artigo 112.º só se manteve mesmo a epígrafe, o que também tem um


significado que será analisado posteriormente.
70 O artigo 112.º assumia simplesmente uma declaração de princípios sobre a
imprescindibilidade da participação dos cidadãos na vida política para a consolidação
do sistema democrático. O novo artigo 109.º não apenas explicita a cidadania como
sendo a das mulheres e dos homens, cidadãs e cidadãos, como coloca lado a lado o duplo
dever de imposição da promoção da participação das mulheres e dos homens no
exercício dos direitos políticos e cívicos, e da não discriminação em função do sexo no
acesso a cargos políticos (Moreira, 1998).
71 Se todos os artigos constitucionais dos direitos, liberdades e garantias de participação
política se referem a todos os cidadãos, como destinatários dos mesmos, com o artigo
109.º “a cidadania passou a ter sexo” (Moreira, 1998 Amaral, 2004).
72 Sobre a relevância e alcance desta alteração é possível encontrar na literatura posições
diametralmente opostas. Alexandre Pinheiro e Mário Fernandes (1999) classificam esta
alteração como uma mera “proclamação igualitária”, que “não traz nada de útil”, cuja
redação é “juridicamente pueril”, sendo a manutenção da epígrafe a prova da
“incompatibilidade entre a participação política dos cidadãos e a promoção da
igualdade e combate à discriminação em função do sexo”. Pelo contrário Vital Moreira
(1998) explicita a utilidade jurídica desta “decomposição” da cidadania em função do
sexo, que resulta da relação entre a epígrafe da norma que se refere aos cidadãos e a
redação do texto que divide os cidadãos entre mulheres e homens, a partir do caso da
inconstitucionalidade das quotas declarada pelo Tribunal Constitucional francês. O
Tribunal Constitucional francês declarou inconstitucionais as quotas, por considerar
que colocavam em causa o fundamento da representação política que se baseia no
conceito de cidadão, e não na distinção entre mulheres e homens. Com a adoção do
artigo 109.º esta argumentação não seria procedente no caso português. É a própria
Constituição que divide os cidadãos em cidadãs e cidadãos, como já referido.
73 Como mencionado a propósito da alínea h do artigo 9.º, até à revisão constitucional de
1997 a constitucionalidade de medidas de ação positiva era generalizadamente
questionável e duvidosa. Se resulta claro do n.º 2 do artigo 13.º a proibição da
discriminação em função do sexo e a garantia da igualdade jurídica entre mulheres e
homens, o mesmo artigo “parece impedir do mesmo modo qualquer medida de
favorecimento jurídico destinada a atenuar a desigualdade fática no acesso feminino
aos cargos públicos, no exercício de direitos políticos” e em todas as dimensões da vida
em sociedade (Beleza, 1977; Moreira, 1998).
74 No entanto, e comparando os artigos 9.º (alínea h) e 109.º, o alcance deste último é
considerado mais exigente (Moreira, 1998). Se as medidas positivas fundamentadas na
alínea h do artigo 9.º podem ter como objetivo apenas a promoção da igualdade entre
mulheres e homens, o artigo 109.º remete para a concretização da igualdade efetiva no
exercício dos direitos cívicos e políticos (Moreira, 1998).
75 A inclusão do conceito inovador de direitos cívicos, a par dos direitos políticos, traduz-
se no alargamento do âmbito do artigo 109.º e na possibilidade de fundamentação de
medidas de discriminação positiva. Vital Moreira (1998) propõe um entendimento dos
direitos cívicos como os que resultam da participação na vida cívica, como os direitos
de expressão, de manifestação, de reunião, de associação, bem como os direitos
coletivos laborais e a liberdade sindical.

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76 Vital Moreira (1998) defende que a relação entre a imposição de medidas positivas para
a igualdade fática entre mulheres e homens na participação política e cívica, por um
lado, e a não discriminação em função do sexo no acesso a cargos políticos, que remete
para o artigo 13.º, por outro, aponta para a necessidade de as medidas positivas a adotar
deverem ser a favor dos dois sexos (medida de discriminação bilateral) e não apenas a
favor de um dos sexos (medida de discriminação unilateral). Ou seja, de acordo com o
autor, se a Constituição assume como objetivo corrigir a sobrerrepresentação dos
homens na vida política, procura garantir que dessa correção não resulta a
sobrerrepresentação das mulheres.
77 As discriminações ou medidas positivas espelham a evolução do princípio da igualdade
que não aceita discriminações, para a discriminação ao serviço da igualdade (Garcia,
2005). Esta evolução é atravessada por uma “tensão necessária entre igualdade e
diferença e entre direitos individuais e identidades de grupos” (Garcia,2005). Toda a
discussão em torno do papel e da admissibilidade das medidas de discriminação
positiva em geral, e das quotas para mulheres no acesso à participação política em
particular, é o espelho disso mesmo. Alexandre Pinheiro e Mário Fernandes (1999)
assumem que recusam “liminarmente a invocação de argumentos históricos […] que,
com base numa discriminação negativa passada legitimem uma discriminação positiva
presente. […] O direito não pode ser uma vingança da história.”
78 De referir ainda que a Constituição fundamenta e legitima com o artigo 109.º a
promoção da igualdade efetiva das mulheres e homens na participação cívica e política,
mas não define em concreto as medidas positivas a adotar, sendo essa uma
responsabilidade e opção do legislador (Miranda e Medeiros, 2010; Canotilho e Moreira,
2014). As opções em matéria de medidas positivas dividem-se em medidas que têm
como objetivo promover condições de partida que permitam a concretização da
igualdade entre mulheres e homens, e medidas que se centram nos resultados
alcançáveis e a alcançar nessa mesma concretização, como é o caso das quotas (Beleza,
1977; Moreira, 1998).
79 O debate parlamentar do artigo 109.º reflete bem os argumentos, muitas vezes
radicalmente opostos, que o debate das medidas positivas com o objetivo da igualdade
na participação política das mulheres e dos homens suscita.
80 A deputada Eduarda Azevedo do PSD, numa intervenção em que refere e desenvolve a
ideia da democracia como um “processo evolutivo e persistente”, afirma que “começa a
generalizar-se a ideia de que não é correto falar em democracia em termos neutros,
uma vez que os seres humanos são homens e mulheres iguais em direitos e dignidade,
que devem gozar das mesmas oportunidades de realização”, e argumenta o apoio do seu
partido ao artigo 109.º porque “se impõe democratizar a democracia”. Ilustra que “É ao
nível da esfera pública que mais se faz sentir a exclusão das mulheres […]
independentemente da proclamação da igualdade formal. Existe um fosso efetivo entre
a igualdade proclamada e a igualdade vivida.” No mesmo sentido de apoio, a deputada
Natalina Moura do PS defende que com a aprovação desta norma a Constituição passa a
“consagrar a participação direta e ativa dos homens e das mulheres como condição e
instrumento fundamental da consolidação do sistema democrático”. Refere ainda que
“nas relações entre homens e mulheres, o exercício da cidadania plena exige, para além
de um tratamento de não discriminação jurídica, política e social, que se garanta a
aplicação de medidas positivas destinadas a corrigir as limitações de base social e
cultural de que as mulheres ainda são alvo no tempo presente”. O PCP, pela voz do

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deputado Luís Sá justificava o voto a favor com “o sentido de garantir cada vez mais a
democracia paritária, que é o nosso objetivo, o fim de qualquer discriminação, seja de
que natureza for, em relação à mulher, sobretudo num campo que deveria ser aquele
em que a discriminação devia ser menos possível, que é exatamente o campo da
participação política”.
81 Completamente contra o artigo 109.º, o deputado Nuno Abecassis do CDS disse
“Lamentar o retrocesso da nossa Constituição […] as minhas colegas deputadas são
iguaizinhas a mim, não precisando de quotas para se afirmar, porque têm qualidade
mais do que suficiente. […] Gostam de ter uma Constituição que é um catálogo de
supermercado! […] Não somos um país do terceiro mundo! […] Daqui a algum tempo e
pela mesma razão, talvez queiram alterar a Constituição para defender os homens.”
82 A Assembleia da República aprovou em 2006 a proposta do governo que propunha a Lei
da Paridade, que prevê o limiar de 33% de representação mínima de cada um dos sexos.
Votaram a favor o PS e o BE, votaram contra o PSD, o CDS e o PCP. O artigo 109.º
constituiu a base legal para a apresentação da proposta de lei do governo, que referia
no preâmbulo que “mais do que uma simples repetição por via legislativa do princípio
da igualdade e de acesso a cargos políticos, [o artigo 109.º] implica sobretudo a
promoção de medidas tendentes a uma igualdade efetiva. Não se trata de uma mera
faculdade, mas de um verdadeiro dever de legislar”.
 
 Conclusões
83 A análise dos fundamentos constitucionais da igualdade de género, enquadrada no
princípio geral da igualdade, permite várias conclusões e levanta várias questões para
debate.
84 A primeira conclusão é que a Constituição da República Portuguesa teve e tem um papel
fundamental, que se desenvolveu em dois tempos, na promoção da igualdade de género
e das políticas públicas desta área.
85 O primeiro tempo corresponde à aprovação da Constituição de 1976. As discriminações
das mulheres que decorriam da Constituição de 1933 e da lei em geral, na família, no
acesso ao emprego e às profissões, no acesso à educação, na participação cívica e
política foram efetiva e permanentemente revogadas com a aprovação da Constituição
de 1976. Os direitos das mulheres tiveram “modificações importantes por efeito do
mero facto da entrada em vigor da Constituição” (Beleza, 1977).
86 Reconhecendo este facto, várias autoras (Beleza, 1977; Viegas, 1977) lamentam e
chamam a atenção para o que a Constituição saída da Revolução de Abril deveria ter
evitado e o que poderia ter feito melhor. Devia ter evitado, por exemplo, qualificar o
papel insubstituível das mães na educação dos filhos (artigo 36.º, n.º 3), quer pela
controvérsia que sugeria, que ainda hoje sugere, quer porque reforçava “o peso dos
estereótipos tradicionais” que alimentavam em efeito spillover, como ainda hoje, uma
parte significativa de outras discriminações. Poderia ter feito melhor, pela aprovação
de uma disposição de âmbito geral dos direitos das mulheres, que teria utilidade
pedagógica, por um lado, e legitimaria, já nessa altura, as medidas positivas que fossem
sendo consideradas necessárias na promoção da igualdade entre mulheres e homens
(Beleza, 1977). Como poderia ter aprovado especificações da proibição da discriminação
em função do sexo, referindo concretamente a proibição das discriminações entre

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mulheres e homens, por exemplo na consagração do princípio de salário igual para


trabalho igual, ou mesmo no próprio princípio da igualdade, como propôs
sucessivamente o PCP até à aprovação da promoção da igualdade entre mulheres e
homens como uma incumbência do estado em 1997, na alínea h do artigo 9.º (Beleza,
1977; Viegas, 1977).
87 O segundo tempo é o da evolução dos fundamentos constitucionais da igualdade de
género ao longo das diferentes revisões constitucionais. Nesta evolução, quer a
literatura científica, quer os debates parlamentares permitem identificar vários pontos
e questões importantes. Neste trabalho propõem-se quatro.
88 Sem ter a intenção de elencar por qualquer tipo de ordem, o primeiro ponto é o da
preocupação e exigência crescente com o efeito e o potencial das normas
constitucionais na construção da igualdade material ou fática, na diminuição da
distância entre a igualdade formal e a “igualdade real”. Preocupação e exigência que
acompanha a evolução e os paradoxos da igualdade entre mulheres e homens na
sociedade (Ferreira, 1999). Da garantia da total liberdade no acesso ao emprego e à
profissão, a constatação dos efeitos da “dupla jornada” das mulheres na persistência da
desigualdade no mercado de trabalho “exigiu” a consagração constitucional do
princípio da conciliação da vida profissional e familiar. Do direito das mulheres a
votarem e a serem eleitas, a persistência da desigualdade da participação das mulheres
na política “exigiu” a aprovação do artigo 109.º, que abriu caminho às medidas positivas
que acelerassem a democracia paritária. Partindo da norma geral do princípio da
igualdade (artigo 13.º) e da garantia da não discriminação em função do sexo, a
persistência das desigualdades económicas e sociais das mulheres “exigiu” a aprovação
da promoção da igualdade entre mulheres e homens como uma “incumbência” do
estado (artigo 9.º, alínea h).
89 O segundo ponto é o da importância decisiva dos preceitos constitucionais relativos à
igualdade de género, na adoção e evolução das políticas públicas e na transformação da
realidade económica, social e cultural na perspetiva da igualdade entre mulheres e
homens. A obrigação constitucional de fixação do salário mínimo na Constituição de
1976 teve um impacto determinante no aumento dos rendimentos das mulheres e na
redução das desigualdades salariais e melhoria das condições de trabalho pela alteração
das contratações coletivas (Beleza, 1977; Viegas, 1977). A consagração do princípio da
conciliação da vida profissional e familiar, combinada com as normas dos direitos dos
trabalhadores (artigo 59.º) e da paternidade e maternidade exigiu um novo impulso nas
políticas de criação de estruturas de apoio às famílias, como as creches e o pré-escolar,
nas políticas educativas, como a escola a tempo inteiro, nas políticas na área do
emprego, como a definição das licenças para o pai para além das licenças da mãe, ou o
reforço dos direitos laborais para o acompanhamento dos filhos. A lei da paridade
resulta obviamente do artigo 109.º (“Participação política dos cidadãos”).
90 Na relação entre todas as normas constitucionais e o objetivo da promoção e da
concretização da igualdade entre mulheres e homens há ainda todo um conjunto de
políticas que são adotadas. A criação de organismos públicos com o objetivo de
produzirem informação e conhecimento e monitorizarem as políticas públicas, como a
Comissão para a Igualdade no Trabalho e no Emprego ou a Comissão para a Cidadania e
a Igualdade de Género, e a já quase tradição da obrigatoriedade de a questão da
igualdade assumir a forma de pasta governamental, seja numa secretaria de estado ou
num ministério. A aprovação de Planos para a Igualdade e de combate à violência

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doméstica, que definem, de forma transversal a várias áreas, políticas e objetivos para a
promoção e concretização da igualdade de género, ou a aprovação de planos de outras
áreas governativas que incluem especificamente a questão da igualdade de género,
como os Planos de Emprego ou os Planos de Inclusão.
91 O terceiro ponto é o da impossibilidade de compreender a evolução constitucional e do
quadro legislativo em geral relativo à igualdade entre mulheres e homens sem a análise
da influência da nossa integração no projeto europeu e a influência de várias
organizações internacionais, como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o
Conselho da Europa e as Nações Unidas. Nos debates parlamentares a justificação de
várias normas constitucionais assume a influência direta ou indireta destas
organizações e dos documentos internacionais que vinculam Portugal. A consagração
da promoção da igualdade entre mulheres e homens no Tratado de Amesterdão (artigo
26.º, n.º 3) influenciou a adoção deste objetivo como incumbência do estado na
Constituição Portuguesa (artigo 9.º, alínea h) (Canotilho e Moreira, 2014). Diferentes
convenções da OIT determinaram as exceções ao princípio da não discriminação, para
garantirem a proteção das mulheres durante a gravidez e o parto (artigo 59.º, n.º 2,
alínea c). O Conselho da Europa e as Nações Unidas, a Conferência de Pequim, a
Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres
ou a Convenção Europeia sobre os Direitos do Homem, para dar alguns exemplos, são
recorrentemente citados pelos legisladores e legisladoras, quer na Constituinte, quer
nas diferentes revisões constitucionais.
92 O quarto e último ponto refere-se aos atores que, para além das e dos legisladores
constitucionais, influenciaram em cada momento ao longo dos 40 anos o texto da
Constituição da República Portuguesa em matéria de igualdade entre mulheres e
homens. A partir dos debates parlamentares é de destacar o papel das organizações de
mulheres. As propostas destas associações em geral, e da Associação Portuguesa de
Mulheres Juristas em particular, são constantes e partem da persistência das
desigualdades entre mulheres e homens como fundamentação para a especificação da
promoção da igualdade de género em várias normas, para além da proibição da
discriminação em função do sexo, para a consagração de medidas positivas em várias
áreas e para a atualização da promoção da igualdade pela introdução, por exemplo, do
princípio da conciliação da vida profissional e da vida familiar. O artigo 67.º, n.º 2, alínea
h, que consagra como incumbência do estado na proteção da família a promoção da
conciliação, resultou exatamente de uma proposta da Associação Portuguesa de
Mulheres Juristas.
93 Para concluir, a evolução dos fundamentos constitucionais foi marcada pela vontade
política, nem sempre unânime, mas claramente maioritária, para a sua aprovação, que
exige dois terços dos deputados e deputadas, de aproximar cada vez mais a “igualdade
real” da igualdade formal. A ideia de que temos uma das melhores legislações da Europa
em matéria de igualdade entre mulheres e homens, mas que a diferença entre essa
legislação e a realidade da vida das mulheres e dos homens é flagrante é recorrente e
constante (Ferreira, 1999; Amaral, 2004; Garcia, 2005; Beleza, 2010). No entanto, é
também consensual a certeza de que essa diferença é hoje clara e significativamente
menor do que era há 40 anos, e que esse resultado se deve, desde logo, à Constituição.
Basta pensar na presença das mulheres nos diferentes cargos políticos, seja no
parlamento, nas câmaras e assembleias municipais, nos diferentes governos, ou na
adesão dos homens à licença de paternidade.

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94 Como referido no início, o princípio da igualdade é um princípio sempre aberto, cujos


valores e ideias subjacentes são as das sociedades em cada momento (Garcia, 2005
Amaral, 2004; Novais, 2011). Se o caminho feito deve ser valorizado, o mesmo deve
acontecer para o caminho que ainda falta fazer. O mote para os tempos que se seguem
pode ser a persistência interpelante da desigualdade salarial, agravada pelo aumento da
precariedade e pela queda dos salários nos anos após a crise de 2008, e dois dados do
Inquérito à Fecundidade de 2013, que mostram a “perpetuação” do forte desequilíbrio
de papéis familiares entre mulheres e homens e o facto de a maioria das mulheres (74%)
e dos homens (64%) considerarem que a opção ideal para o pai é trabalhar a tempo
inteiro, sendo o tempo parcial a opção ideal para a mãe.

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Outras fontes

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Diários da Revisão Constitucional de 1982, 1989, 1992, 1994, 1997, 2001, 2004 e 2005 relativos aos
artigos referidos.

RESUMOS
A Constituição da República de 1976 consagra pela primeira vez no ordenamento constitucional
português a igualdade de direitos das mulheres. Este artigo analisa a evolução dos fundamentos
constitucionais da igualdade de género ao longo dos 40 anos da Constituição e das suas sete
revisões, a partir da literatura e dos debates parlamentares. A rutura com a experiência
constitucional anterior, especialmente com a de 1933, e a dimensão transformadora da
Constituição saída da revolução estão na base do papel fundamental que esta última teve e tem na
promoção da igualdade de género e das políticas públicas desta área. A densificação da vertente
da igualdade de género no princípio da igualdade, marcada pela cada vez maior exigência de uma

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igualdade fáctica e não apenas formal, ilustra e acompanha o percurso dos direitos das mulheres.
O estudo deste percurso permite identificar vários pontos para debate e aprofundamento em
futuros trabalhos de investigação. Desde logo a influência da participação de Portugal no projeto
europeu e em diferentes organizações internacionais, bem como a relevância do papel de
distintos atores no processo de construção do texto constitucional em matéria da igualdade de
género, com particular destaque para as organizações de mulheres.   

The 1976 Constitution included equal rights for women in Portuguese constitutional law for the
first time. This article uses the literature and the texts of parliamentary debates to analyse the
evolution of the constitutional bases for gender equality over the 40-year life of the Constitution
and its seven reviews to date. The break with the previous constitutional experience, especially
that of 1933, and the transformative dimension of the Constitution that arose from the 1974
revolution are at the roots of the key role the latter had and has in promoting gender equality
and public policies in this area. The densification of the gender equality dimension of the
principle of equality, marked by increasing demand for factual and not just formal equality,
illustrates and accompanies the path taken by women’s rights. The study of that path makes it
possible to identify several points for discussion and deepening in future research, including the
influence of Portugal’s participation in the European project and in different international
organisations, and the importance of the role of different actors in the process of constructing
the constitutional text in the gender equality field, with particular attention to women’s
organisations.

La Constitution de 1976 consacre pour la première fois dans l´ordre constitutionnel portugais
l’égalité des droits des femmes. Cet article analyse l’évolution des fondements constitutionnels de
l’égalité de genre au long des 40 années de la Constitution et de ses sept révisions, à partir de la
littérature et des débats parlementaires. La rupture avec l’expérience constitutionnelle
précédente, en particulier avec celle de 1933, et la dimension transformatrice de la Constitution
issue de la révolution sous-tendent le rôle-clé que cette dernière a eu et a encore dans la
promotion de l’égalité de genre et des politiques publiques dans ce domaine. La densification de
la dimension de l’égalité de genre dans le principe de l’égalité, marquée par l’exigence croissante
d’une égalité de fait et pas seulement formelle, illustre et accompagne le parcours des droits des
femmes. L’étude de ce cours permet d’identifier plusieurs points de discussion et
d’approfondissement pour la recherche future, tels que l’influence de la participation du
Portugal au projet européen et à différentes organisations internationales, ainsi que l’importance
du rôle de différents acteurs dans le processus de construction du texte constitutionnel en
matière d’égalité de genre, en mettant l’accent sur les organisations de femmes.

La Constitución de 1976, establece por primera vez en el orden constitucional portugués la


igualdad de derechos de las mujeres. Este artículo analiza la evolución de los fundamentos
constitucionales de la igualdad de género en los 40 años de la Constitución y sus siete revisiones,
de la literatura y de los debates parlamentarios. La ruptura con la experiencia constitucional
previa, especialmente con la de 1933, y la dimensión transformadora de la Constitución están en
la base del papel clave que tuvo y tiene en la promoción de la igualdad de género y de políticas
públicas en esta área. La densificación de la dimensión de la igualdad de género en el principio de
igualdad, marcado por la creciente demanda de una igualdad de hecho y no sólo formal, ilustra y
acompaña el curso de los derechos de las mujeres. El estudio de este curso permite identificar
varios puntos de discusión y profundización para futura investigación. Inmediatamente, la
influencia de la participación de Portugal en el proyecto europeo y en diversas organizaciones
internacionales, así como la relevancia del papel de los diferentes actores en el proceso de
construcción del texto constitucional en el ámbito de la igualdad de género, con especial atención
a las organizaciones de mujeres.

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ÍNDICE
Mots-clés: Constitution, principe de l’égalité, égalité de genre, politiques publiques
Keywords: Constitution, principle of equality, gender equality, public policies
Palavras-chave: Constituição, princípio da igualdade, igualdade de género, políticas públicas
Palabras claves: Constitución, principio de igualdad, igualdad de género, políticas públicas

AUTOR
SÓNIA FERTUZINHOS
Doutoranda em Politicas Públicas, ISCTE-IUL, Avenida das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa.
semsf@iscte.pt

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Fundamentos constitucionais da
proteção social: continuidades e
ruturas
The constitutional bases for social protection: continuities and breaks
Fondements constitutionnels de la protection sociale: continuités et ruptures
Fundamentos constitucionales de la protección social: continuidades y rupturas

Ana Rita Ferreira, Daniel Carolo, Mariana Trigo Pereira e Pedro Adão e
Silva

 
 Introdução
1 As quatro décadas de democracia traduziram-se numa enorme expansão da cobertura e
da generosidade do sistema de proteção social português. A combinação de garantia de
novos direitos e novas prestações sociais com o processo de maturação do sistema —
fruto de transformações positivas no mercado de trabalho — aumentou a despesa
social, com notáveis ganhos de eficácia, qualquer que seja o indicador que
consideremos. Se a maturação do sistema é uma característica distintiva da transição
democrática, outra, não menos marcante, é a convergência com os parceiros europeus.
As políticas de proteção social portuguesas europeizaram-se, quer incorporando
princípios organizadores promovidos a partir da Europa social, quer mimetizando
soluções inovadoras desenvolvidas por outros estados-membros.
2 A proteção social foi, por isso, uma área de grande transformação institucional, política
e económica que teve amplo impacto social. Com a transição para a democracia, a
arquitetura do estado social português alterou-se muito, com implicações materiais de
enorme alcance. Contudo, estas alterações tiveram um conjunto de singularidades,
desde logo quando se compara com outras áreas sociais (nomeadamente a saúde e a
educação).
3 Enquanto na saúde (com a criação do Serviço Nacional de Saúde) e na educação (com o
investimento na escola pública como mecanismo de promoção da igualdade de

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oportunidades), à democracia correspondeu um movimento de reorientação política e


de redesenho institucional do sistema, o mesmo já não é válido, com a mesma extensão,
quando pensamos na proteção social — em particular se nos centrarmos na área mais
pesada financeiramente, isto é o regime previdencial da segurança social. Este manteve
a sua matriz bismarckiana, que, não obstante ter sido criada ainda durante a I.ª
República, teve um papel decisivo na definição do código genético do estado
corporativo, em particular aquando da tentativa — ainda que largamente frustrada —
de modernização do regime, a partir dos anos 60.
4 Apesar da modernização frustrada e da baixíssima eficácia do sistema na resposta à
questão social, o legado institucional do estado social corporativo — muito por força de
mecanismos de path dependence típicos dos sistemas bismarckianos — revelou grande
resiliência, tendo passado relativamente incólume pelo processo de rutura política e de
democratização. Isto não quer dizer que a democracia não se tenha traduzido num
alargamento muito significativo do repertório de direitos e prestações sociais (desde
logo com um movimento tendente à universalização da proteção na pobreza e com a
extensão muito significativa da cobertura do desemprego) ou, ainda mais relevante,
que este alargamento não se tenha traduzido em melhorias das condições de vida dos
portugueses — visíveis, por exemplo, na variação positiva dos indicadores de
desigualdades e, ainda mais, de incidência da pobreza. A questão é outra: tentar
perceber como é que princípios institucionais anteriores à democracia se revelaram
persistentes no campo da segurança social, quando noutras áreas sociais o nível de
mudança paradigmática foi superior (maxime saúde). Desde logo, a forma como o direito
à segurança social, no contexto da CRP, está explicitamente associado à participação
anterior no mercado de trabalho, tendo como princípio organizador o seguro social de
natureza ocupacional; enquanto o direito à saúde é universal e garantido a todos os
cidadãos. Do mesmo modo que importa compreender como é que se processou o
equilíbrio entre um sistema previdencial de natureza corporativa com um sistema de
solidariedade que foi adquirindo um caráter progressivamente mais social-democrata e
beveridgeano (para utilizar as categorias habitualmente mobilizadas na caracterização
tipológica dos modelos de proteção social). Aliás, na tensão entre estas duas matrizes
tem estado, também, presente uma tensão entre uma visão mais conservadora do
sistema (na medida em que é fiel à sua identidade inicial) e uma mais modernizadora
que procura introduzir novos princípios, desde logo muito influenciados pela
experiência europeia.
5 Neste texto, procuramos analisar de que forma é que a Constituição da República de
1976 enformou as políticas de proteção social e de que modo os princípios
constitucionais se fazem refletir na arquitetura do sistema e se foram alterando ao
longo do tempo. Contudo, esta análise não pode ser feita tendo em consideração apenas
os princípios enunciados no texto constitucional. Requer, em simultâneo, que se
considere a margem de manobra que a CRP deixou aos governos e de que forma estes a
utilizaram para redesenhar o sistema, quer quanto aos princípios normativos que
foram sendo institucionalizados, quer quanto à partilha de responsabilidades entre
estado central, administração local e 3.º sector.
6 O texto está organizado em três partes. Na primeira, discutimos a presença do tema
proteção social na Constituição da República e o tipo de implicações programáticas que
daí decorrem, bem como a forma como, mais recentemente, a Constituição funcionou,
de facto, como um ponto de veto decisivo para circunscrever a margem de manobra do

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governo, num contexto de austeridade e de restrição de direitos na proteção social. Na


segunda, analisamos de que modo os governos utilizaram a margem de manobra
constitucional para promover alterações no sistema. Esta análise centrar-se-á nas
revisões da Lei de Bases da Segurança Social e na introdução de novas medidas de
política que, tendo um caráter inovador, visavam também promover a inovação. Na
terceira parte, apresentamos alguns indicadores que dão conta da maturação do
sistema de proteção social, bem como da sua capacidade de responder aos problemas
sociais. Na conclusão enunciamos algumas questões que se colocam à proteção social
em Portugal, em particular em torno da sua capacidade para fazer face a desafios
futuros, em importante medida moldados por um contexto político, económico e social
distinto do dominante aquando do desenho do sistema e da aprovação da Constituição
da República.
 
 A proteção social na Constituição da República
Portuguesa
7 A Constituição Portuguesa determina, desde 1976, que todos os cidadãos “têm direito à
segurança social” (art.º 63.º, n.º 1), cabendo “ao estado organizar, coordenar e subsidiar
um sistema de segurança social unificado e descentralizado” (art.º 63.º, n.º 2, CRP 1976).
Esta formulação geral, que subsiste no texto constitucional até hoje, sobrevivendo aos
vários processos de revisão constitucional, parece apontar para o princípio da proteção
social universal, que historicamente caracteriza a ideologia social-democrata. Ou seja,
assim enunciado, o “direito à segurança social” parece configurar-se como
incondicional, um direito a ser garantido a todos os cidadãos, em quaisquer
circunstâncias, tal como se afirmava para outros direitos sociais, como o direito à saúde
ou à educação. Aponta-se, assim, para um modelo de estado social social-democrata,
tanto mais que se sublinha caber ao próprio estado organizar os serviços que asseguram
esta proteção social aparentemente universal.
8 No entanto, o mesmo artigo constitucional abre espaço a uma interpretação mais
restritiva deste princípio, logo desde a sua primeira versão na história democrática.
Com efeito, apesar da formulação universalista inicial, a Constituição estabelece
igualmente que “o sistema de segurança social protegerá os cidadãos na doença,
velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras
situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o
trabalho” (art.º 63.º, n.º 4, CRP 1976). Esta explicitação do tipo de proteção social que o
estado deveria assegurar mostra que se apontava mais para um modelo de estado social
corporativo ou conservador, ou seja, para um sistema de segurança social que visa
chegar apenas aos cidadãos trabalhadores (e às famílias dos cidadãos trabalhadores). No
fundo, ao referir que o direito à proteção social seria garantido aos cidadãos que se
vissem numa das várias situações de risco devido a uma incapacidade para trabalhar, a
Constituição parece negar, de alguma forma, a universalidade da proteção social
assegurada pelo estado, afirmando antes que o direito à segurança social se destina
àqueles que, temporária ou permanentemente, não podem cumprir o dever de
trabalhar. Neste sentido, refira-se que a Constituição reforçava esta ideia quando
afirmava, num outro artigo, ser dever do estado garantir “o direito a assistência
material dos que involuntariamente se encontrem em situação de desemprego” (art.º

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52.º, alínea a), CRP 1976), ou seja, ao frisar que a proteção social se destinava àqueles
que se encontrassem sem trabalho contra a sua vontade.
9 Assim, ao contrário do que afirmava relativamente ao direito à saúde e à educação, que
eram assegurados a todos os cidadãos, a Constituição de 1976 parece tornar a garantia
deste outro direito social condicional: a segurança social pública será assegurada
apenas a quem cumprir (ou a quem tiver cumprido, ou a quem for familiar direto de
quem cumpriu) a condição de trabalhar e se vir impedido de a cumprir em algum
momento. Isto significa que a segurança social era pensada, segundo o modelo
bismarkiano, como um seguro social para aqueles que contribuíam financeiramente
para o próprio sistema, por via de descontos sobre os seus salários, e não como um
direito incondicional, a ser garantido por via de prestações sociais sem base
contributiva.
10 É, aliás, possível compreender este primado do modelo corporativo de proteção social
quando nos focamos num outro aspeto do texto constitucional: aquele que diz respeito
à componente redistributiva do sistema de impostos. A Constituição de 1976 afirma que
“o sistema fiscal será estruturado por lei, com vista a repartição igualitária da riqueza e
dos rendimentos e à satisfação das necessidades financeiras do estado” (art.º 106.º, n.º 1,
CRP 1976), o que, indo ao encontro da ideia social-democrata de necessidade de
redistribuir a riqueza de modo a reduzir as desigualdades, revela, simultaneamente,
como se entendia que esta função de diminuição do fosso entre os cidadãos mais
favorecidos e os mais desfavorecidos cabia ao sistema tributário e não ao sistema de
segurança social. Ou seja, ao tornar explícito que a fiscalidade assumirá este objetivo
igualitário e ao não afirmar o mesmo para o sistema de segurança social, a Constituição
deixa implícito que esta meta igualitária não será de facto o principal fim da proteção
social.
11 Porém, há ainda um outro aspeto que nos permite perceber como o modelo de proteção
social concebido na Constituição de 1976 se afastava da ideologia social-democrata
tradicional e se aproximava mais do conservadorismo político, nomeadamente tal como
reinterpretado pela democracia-cristã de meados do século XX: e este aspeto tem que
ver com o facto de o texto constitucional valorizar a existência de organizações
privadas de prestação de cuidados sociais. Efetivamente, o mesmo artigo relativo à
“segurança social” afirma que “a organização do sistema de segurança social não
prejudicará a existência de instituições privadas de solidariedade social não lucrativas”
(art.º 63, n.º 3, CRP 1976), o que indica que o “terceiro setor” era entendido como um
ator relevante, a par do estado, no desempenho de funções de segurança social. Esta
ideia vai ao encontro da valorização do papel das estruturas sociais intermédias,
nomeadamente a igreja, próprio do corporativismo, que leva a considerar que cabe a
estas estruturas, e não ao estado, a prestação de cuidados sociais (por exemplo, com
idosos, crianças, etc.).
12 Deste modo, é possível perceber que a Constituição de 1976 estabeleceu um sistema de
segurança social mais próximo de um modelo corporativo ou conservador, afastando-se
do princípio universalista social-democrata, de matriz beveridgeana. E este quadro não
se alterou substancialmente ao longo dos anos nas sucessivas revisões constitucionais
(em 1982, 1989, 1992, 1997, 2001, 2004 e 2005).
13 Com efeito, se é verdade que, a partir de 1982, enquanto diminuía a carga ideológica
associada ao período de transição democrática, a Constituição passou a afirmar de
forma clara que uma das tarefas fundamentais do estado consistia em procurar

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desenvolver uma sociedade mais igualitária — “promover o bem-estar e a qualidade de


vida do povo, a igualdade real entre os portugueses e a efetivação dos direitos
económicos, sociais e culturais” (art.º 9.º, alínea d), CRP 1982) —, o que poderia ser
entendido como uma mudança ideológica no sentido de uma visão mais universalista da
proteção social, potenciadora de maior igualdade, a verdade é que o restante articulado
não sofreu alterações de monta que projetassem essa mudança. Pelo contrário, a
revisão constitucional de 1982 veio até especificar que as “instituições particulares de
solidariedade social não lucrativas” — cuja existência não seria prejudicada pelos
serviços de segurança social públicos — teriam especial incidência na “prossecução dos
objetivos” (art.º 63.º, n.º 3, CRP 1982) relacionados, por exemplo, com a criação de redes
de assistência materno-infantil, de creches, com o desenvolvimento de uma política de
terceira idade (art.º 67.º, n.º2, alínea b), CRP 1982), com estruturas de apoio à infância
(art.º 69.º, CRP 1982) à juventude (art.º 70.º, CRP 1982), ou às pessoas portadoras de
deficiência (art.º 71.º, CRP 1982). Ou seja, deste ponto de vista, acentuou-se a
importância concedida às associações da sociedade civil no desempenho de funções
sociais que, numa visão mais social-democrata, caberiam ao estado. Ficou, pois, mais
explícito que o estado não teria a obrigação constitucional de prestar, ele próprio,
serviços como creches ou lares da terceira idade, por exemplo, à semelhança do dever
que tinha de erguer serviços públicos de saúde e de educação.
14 Apesar de algumas poucas e ligeiras alterações na redação — por exemplo, aquando da
revisão de 1989, a Constituição passou a dispor que era “reconhecido o direito de
constituição de instituições particulares de solidariedade social não lucrativas com
vista à prossecução dos objetivos de segurança social” (art.º 63.º, n.º 3, CRP 1989)
referidos acima, e, a partir da revisão de 1997, passou a afirmar que o estado apoiava a
atividade destas instituições (art.º 63.º, n.º 5) —, estas não traduziram mudanças de
conteúdo. Após sete revisões constitucionais, a proteção social continua a ser garantida
nos mesmos termos em que foi concebida na sua génese: como um sistema de seguro
social, válido para trabalhadores e para as suas famílias, em momentos em que estes se
encontrem involuntariamente afastados do mercado de trabalho.
15 De forma idêntica, o artigo relativo ao sistema fiscal — apesar de, a partir de 1989, vir a
sofrer alterações que podem permitir uma interpretação bem menos igualitária do que
aquela que a versão de 1976 havia instituído — continuava a manter a ideia de que a
função redistributiva da riqueza ocorria por via do esquema tributário, pois estipulava:
“O sistema fiscal visa a satisfação das necessidades financeiras do estado e outras
entidades públicas e uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza” (art.º 106.º, n.º
1, CRP 1989; art.º 103.º, n.º 1, CRP 1997).
16 Por tudo isto, é possível perceber que prestações sociais contributivas, como o subsídio
de desemprego, ou as pensões de reforma, de invalidez, de sobrevivência, têm, no nosso
ordenamento jurídico, uma proteção constitucional clara; é possível até concluir que
mesmo a efetivação de uma pensão mínima ou de invalidez, que não se baseasse numa
carreira contributiva, estaria constitucionalmente protegida, dado que se afirma, de
forma geral, a necessidade de proteger os cidadãos na “velhice”; mas é igualmente
possível inferir que prestações sociais não contributivas — como são hoje os casos do
rendimento social de inserção ou do complemento solidário para idosos — não gozam
do mesmo nível de proteção constitucional. No limite, seria inconstitucional pôr fim à
existência de um subsídio por desemprego ou a uma pensão de reforma, mas não seria
inconstitucional pôr fim ao RSI. Na realidade, o facto de nenhum dos processos de

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revisão constitucional ter vindo alargar a proteção social ou alterar a natureza


corporativa da proteção garantida — de modo a demonstrar vontade de alargar o leque
de direitos sociais, estendê-los a todos os cidadãos e assegurar a prestação pública de
cuidados sociais — permite-nos fazer esta interpretação.
17 No entanto, é certo que, em 2002, chamado a pronunciar-se sobre o RSI, o Tribunal
Constitucional (TC) considerou que um corte desta prestação seria inconstitucional,
dado que violava o “direito a um mínimo de existência condigna inerente ao princípio
do respeito pela dignidade da pessoa humana” (Acórdão do TC n.º 509/02). Com efeito, à
época, o presidente da República (PR), Jorge Sampaio, requereu ao TC a apreciação da
constitucionalidade do artigo 4.º, n.º 1, do Decreto da Assembleia da República n..º 18/
IX,1 uma vez que este propunha que a titularidade do direito ao RSI passasse dos 18 para
os 25 anos, o que faria com que cidadãos com menos de 25 anos não pudessem ter
acesso a esta prestação social, podendo ficar, por isso, sem qualquer apoio financeiro
por parte do estado. No seu requerimento de fiscalização da constitucionalidade, o PR
afirmava precisamente que o RSI constituía uma “concretização do direito de todos à
segurança social” (idem), tal como estipulava o art.º 63.º da CRP. Assim, a sua questão
surgia do facto de considerar que esta prestação social dava “cumprimento às
imposições constitucionais” (idem) e que, por isso, o estado não podia retroceder na sua
concessão, pois isso significaria uma “restrição do conteúdo dos direitos sociais”. O PR
ia até mais longe na sua argumentação, considerando que a supressão de uma prestação
“de forma arbitrária, discriminatória” iria violar até princípios constitucionalmente
consagrados como o princípio da confiança (por se atacar um direito adquirido), o da
igualdade (dado que introduzia uma discriminação com base na idade) ou o da
universalidade na titularidade e exercício de direitos.
18 Na sua apreciação, porém, o TC não considerou que a limitação etária pusesse em causa
estes princípios, entendendo antes que poria em risco “o princípio do respeito pela
dignidade humana”, dado que esta implicaria a “garantia a um mínimo de subsistência
condigna” (idem). O TC não viu como uma obrigação constitucional do estado a
instituição de uma prestação como o RSI para todos os cidadãos, admitindo que “o
legislador goza de margem de autonomia necessária para escolher os instrumentos
adequados para garantir esse direito” (idem) à subsistência condigna, podendo, por
exemplo, considerar que, relativamente aos jovens, “não deveria ser seguida a via do
subsídio, mas antes a de outras prestações, pecuniárias ou em espécie, como bolsas de
estudo, de estágio ou de formação profissional” (idem). Assim, não existindo, como o TC
reconhecia, esses outros instrumentos capazes de garantir a subsistência, a norma
punha em causa esse direito ao mínimo da existência condigna. No entanto, se é
verdade que o acórdão, ao fazer uso deste princípio, permite ter uma interpretação
mais extensiva dos deveres de proteção social por parte do estado, pois permite-se ir
mais longe do que a enunciação constitucional dos direitos sociais, também é
igualmente verdade que o mesmo acórdão afirma que há uma “diversidade de meios
possíveis” para garantir o “mínimo indispensável” (idem) à existência. Ou seja, se o
estado tem a obrigação de garantir um mínimo, o poder político pode decidir qual o
instrumento a que recorrerá para isso, “em função das circunstâncias e dos seus
critérios políticos próprios” (idem).
19 Esta decisão parece vir negar aquilo que afirmámos acima relativamente à possibilidade
de uma prestação como o RSI dificilmente poder ser considerada passível de proteção
constitucional, mas, paradoxalmente, reforça precisamente essa ideia. Senão, vejamos:

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o TC acorda na ideia de que o estado deve assegurar a todos os cidadãos o mínimo


indispensável à sobrevivência, mas não considera que essa garantia tenha que ser
obrigatoriamente prestada por via de uma prestação social, nomeadamente desta
prestação social em concreto — sendo que o mesmo entendimento dificilmente seria
válido a respeito do subsídio de desemprego, da pensão de reforma, ou outra, cuja
discriminação constitucional é objetiva. Na verdade, esta decisão não é tão clara que
não nos permita pensar que um modelo de estado social liberal estaria conforme a
Constituição, ao ser capaz de garantir apenas uma “rede de segurança” mínima a todos
os cidadãos (não participantes do mercado de trabalho), mesmo que esta fosse prestada
por outras vias (por exemplo, mais caritativas), sem se confundir com um direito social
de cidadania. Pelo contrário, ficamos sem respaldo absoluto sobre se seria
constitucionalmente possível pôr fim ao RSI, desde que o estado assegurasse um outro
mecanismo garante da sobrevivência. E esta interpretação só é possível precisamente
porque o texto constitucional nunca afirma de forma taxativa ser obrigação de o estado
garantir aos cidadãos que não estejam inseridos no mercado de trabalho uma prestação
pecuniária.
 
 A Constituição da República Portuguesa e o programa
de ajustamento
20 A importância da consagração na Constituição de determinados direitos foi
particularmente visível durante os anos de vigência do programa de ajustamento
celebrado com a troika, nomeadamente em 2013, aquando da aprovação de um diploma
que previa um corte de 10% do valor das pensões de aposentação, reforma, invalidez e
sobrevivência superiores a 600 euros. Com efeito, confrontado na altura com o pedido
de fiscalização da constitucionalidade desta medida específica, o TC veio a pronunciar-
se pela sua inconstitucionalidade por considerar que ela, cortando objetivamente
pensões constitucionalmente garantidas, punha em causa o princípio da confiança que
subjaz ao ordenamento constitucional. À época, o PR, Aníbal Cavaco Silva, veio requerer
a apreciação das alíneas a), b), c) e d) do n.º 1 do artigo 7.º do Decreto da Assembleia da
República n..º 187/XII, alegando, entre outros argumentos, que este corte afetaria
“retrospetivamente as expectativas de continuidade de fruição de um direito social já
constituído (a aquisição concreta do direito à segurança social, constante do artigo 63.º
da CRP)”, o que violava o princípio da confiança, que funcionava como um limite
estruturante do regime de direitos fundamentais (Acórdão n.º 862/203 do Tribunal
Constitucional).
21 Na sua apreciação, o TC considerou que a matéria “indiscutivelmente se insere no
direito da segurança social: diminui-se o valor das pensões de aposentação, reforma,
invalidez e sobrevivência, eventualidades que o n.º 3 do artigo 63.º da CRP integra na
segurança social”, pelo que uma alteração do valor destas pensões afetaria, assim,
“direitos de caráter social que fazem parte do conjunto de institutos jurídicos que
formam a segurança social” (idem). Neste caso, o TC foi efetivamente mais claro na
afirmação de que o direito dos cidadãos à segurança social incluía, por imposição
constitucional, o dever de o estado pagar estas prestações financeiras específicas. Se é
verdade que o órgão fiscalizador considera que “a Constituição não autonomiza
expressamente, e nesses termos, um ‘direito à pensão’, também é certo que nos diz que,
”no entanto, o direito à pensão é um dos corolários do direito à segurança social ‘como

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um todo’", daí que o próprio TC já por diversas vezes tenha reconhecido “o direito à
pensão, nomeadamente, à pensão de velhice, invalidez e viuvez, como um direito
constitucionalmente protegido” (idem).
22 O facto de ter a força de um direito fundamental inscrito na CRP faz com o TC adote
sobre as pensões uma visão diferente daquela que revelou, anos antes, relativamente ao
RSI, considerando agora que o direito às pensões teria enraizamento suficiente para
dever ser abrangido e protegido pelo princípio constitucional da confiança. Por essa
razão, o TC considerou que os cidadãos tinham expectativas “legítimas” e
“justificadas”, criadas pelo estado, relativamente à continuidade destes benefícios,
tendo feito “planos de vida” baseados nesse pressuposto, não podendo a ação do estado
pôr em causa essa “estabilidade” sem que haja “razões de interesse público” que
justificassem uma ação tão extrema (idem). Ora, mesmo perante os argumentos do
governo sobre a necessidade de sustentabilidade do sistema público de pensões, de
justiça intergeracional e de convergência do regime de pensões da CGA com o regime
geral da segurança social para justificar este diploma legislativo, o TC não considerou
possível coartar-se, nesta situação, o “direito adquirido” à pensão por parte daqueles
que já eram beneficiários — nomeadamente por estes terem programado a sua vida em
função da auferição de um determinado montante de pensão, não podendo
reorganizar-se de outra forma por já não estarem inseridos na vida ativa. Por isso,
conclui o TC, “a redução das pensões operada através do artigo 7.º do Decreto n.º 187/
XII é uma medida regressiva que mina a confiança legítima que os pensionistas têm na
manutenção do montante de pensão que foi fixado com base na legislação vigente à
data em que se aposentaram” (idem), tanto mais que “o direito à pensão em pagamento
foi sempre salvaguardado, criando o estado expectativas de que os chamados ”direitos
adquiridos" não seriam afetados” (idem). Neste acórdão é, aliás, salientada a
importância da base contributiva destas pensões na criação destas expetativas justas e
sólidas (base que não existe nas prestações não contributivas), o que remete
precisamente para a natureza de seguro social associada a este sistema de proteção,
pois é-nos dito que “a confiança que os pensionistas depositam no sentido de
inalterabilidade das regras que serviram de base ao cálculo da pensão e do valor da
pensão que foi fixado no momento da aposentação resulta também da natureza
contributiva do sistema previdencial” (idem).
23 No fundo, este caso recente mostrou como a Constituição, ao proteger determinados
direitos (nomeadamente, a segurança na velhice e na doença), impede a prossecução de
políticas que limitam ou eliminam a proteção social necessária à sua efetivação (i.e., as
prestações pecuniárias pagas nestas situações). Além disso, os dois casos referidos — o
de 2002, relativo ao RSI, e o de 2013, relativo às pensões de aposentação, reforma,
invalidez e sobrevivência — vêm mostrar como o TC tem atuado como um garante da
força constitucional dos mecanismos de segurança social. No entanto, o que a
comparação entre estes dois casos não deixa igualmente de mostrar é o facto de alguns
tipos de proteção social assentarem num edifício mais frágil por não estarem
claramente enunciados no texto da Constituição. Prestações sociais não contributivas,
apesar da sua matriz social-democrata, não estão explicitamente consagradas como
direitos fundamentais e, por esse motivo, poderão ser mais facilmente postas em causa
do que prestações contributivas, que, pelo contrário, estão claramente vertidas no
enunciado constitucional.
 

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 40 anos de políticas sociais — reformas no sistema


de segurança social
24 Na análise do sistema de proteção social português e na sua articulação com os
preceitos constitucionais, importa ter presentes as diferentes componentes,
designadamente:
25 i)    A configuração/arquitetura do sistema em que, usando a terminologia tradicional,
importa distinguir a componente previdencial (seguro/contributivo) da componente da
assistência (solidariedade/não contributivo), dadas as diferenças em termos de
prestações, mas, sobretudo, nas condições de acesso a essas mesmas prestações, que na
prática constituem a materialização dos direitos.
26 ii)    Para além da arquitetura, há também que considerar a evolução da cobertura
pessoal (prestações) do sistema, nomeadamente ao nível dos mínimos sociais
garantidos, em que se destacou primeiro a pensão social em 1976, depois o alargamento
do subsídio de desemprego em 1985 e o RMG em 1996.
27 iii)    Ao nível da evolução da cobertura material (montantes), em que as alterações
introduzidas nos últimos anos com os cortes nas pensões e a taxa de contribuição
extraordinária de solidariedade (CES) (além dos salários e impostos extraordinários
sobre o 13.º mês), constituirão porventura o aspeto mais marcante em torno dos
pressupostos constitucionais, não obstante em todas as reformas da segurança social
(2000, 2002, 2007) o tema ter estado presente e o legislador ter tido permanentemente
preocupação com o respeito integral dos “direitos adquiridos”.
28 iv)    Por fim, o 3.º Sector — evolução das parcerias/transferências de competências e
recursos na área da educação (pré-escolar) e assistência/cuidados pessoais a grupos
vulneráveis (crianças, deficientes, idosos).
 
 Reformas no sistema de segurança social
A. Reformas até à Lei de Bases de 1984

29 Em termos de política de segurança social, os primeiros anos de transição para a


democracia foram marcados pela introdução de medidas elementares como a atribuição
do subsídio de Natal nas pensões, logo em 1974; a criação da pensão social para todos
aqueles que não estivessem incluídos num dos regimes previdenciais existentes; a
decisão política de se reconhecer um esquema mínimo de proteção social [em 1979 com
Maria de Lurdes Pintassilgo, no governo dos 100 dias], que sendo logo revogado, ainda
assim, em 1980, obrigou à criação do regime não contributivo, abrindo a porta ao
reconhecimento genérico do direito à segurança social não dependente da vinculação
previdencial (carreira e descontos).
30 A Lei de Bases de 1984 constituiu o remate do sistema (Mendes, 2005: 117), procurando
incorporar as transformações ocorridas numa nova configuração legal, mais do que
institucional — pois desse ponto de vista houve, naturalmente, uma continuidade de
todos os regimes criados pelo corporativismo (Lucena, 1976, 1982), ainda que
subordinados aos princípios democráticos dos direitos sociais. Em suma, a Lei de Bases
de 1984 veio integrar os progressos entretanto ocorridos — aos quais há ainda que
acrescentar a nova legislação do subsídio de desemprego em 1985 (que já existindo

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estava longe de ser universal)2 —, introduzindo um novo quadro conceptual, sem no


entanto criar qualquer rutura no plano institucional.
31 Em suma, nesta primeira fase que levou uma década (1974-1984), procurou-se
harmonizar o quadro legal do sistema de segurança social, em conformidade com a CRP
de 1976. Num outro ângulo de análise, note-se que a legislação corporativa vigorou por
mais oito anos após aprovação da Constituição o que permite sustentar os elementos de
continuidade já apontados em secções anteriores deste artigo.
 
B. Europeização e inovação: 1986 — 2002

32 A par do efeito de universalização/maturação do sistema de segurança social, importa


ainda referir o efeito da europeização, decorrente da adesão de Portugal à CEE/UE em
1986 (Guillén, Álvarez e Silva, 2005).
33 Note-se que a única prestação que se pode considerar nova neste período, ou seja, que
previa a resposta a uma eventualidade não coberta anteriormente, é o rendimento
social de inserção (RSI), criado em 1996, então com a designação de rendimento mínimo
garantido (RMG) — que, apesar do intenso debate ideológico, configurou o
reconhecimento do direito de todos os cidadãos a um rendimento de subsistência
(Branco, 2001), universalizando assim a cobertura material e pessoal de uma política de
garantia de mínimos sociais mas também de direito à inserção social.
34 Esta fase correspondeu a um período de modernização do sistema de proteção social em
que se verificou uma mudança fundamental. A política social passou a ser pensada não
apenas ao nível nacional, mas, também, supranacional, e foram acrescentados
pressupostos científicos na formulação das próprias políticas e dispositivos de
intervenção (Pereirinha e Nunes, 2006). É neste sentido que as especificidades do rápido
desenvolvimento do modelo social europeu em países como Portugal (Silva, 2002), com
uma combinação não usual de traços de cariz corporativo com outros de cariz
universal, permitem advogar a existência de um modelo de estado-providência da
Europa do Sul (Ferrera, 1996). Um dos aspetos mais críticos associados aos países da
Europa do Sul prende-se com a menor eficácia do seu sistema na diminuição da
pobreza. A este respeito, tanto a produção científica sobre o tema como a publicação de
indicadores de análise comparada foram decisivos para que os governos tomassem
medidas para fazer face a problemas específicos, como foi o caso do plano de
erradicação da exploração do trabalho infantil, da criação do RMG em 1996, a pensar
nos grupos excluídos do mercado de trabalho, e da preocupação com aumento das
pensões mínimas, dada a incidência da pobreza entre os pensionistas (Costa et al., 2008),
35 Por conseguinte, a este período correspondeu igualmente uma convergência excecional
da despesa social com a média dos países europeus (UE-15), ainda que em grande
medida tal tenha sido o resultado do processo de maturação do sistema de pensões
(Carolo, 2015: 73-78), não obstante a relevância das medidas tomadas no
reconhecimento formal do acesso ao rendimento como condição de cidadania, indo
assim até além do previsto na CRP 1976.
 
C. Maturação/contenção:

36 As reformas na austeridade — o caso das pensões (de 2002 em diante)

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37 Tal como vimos a maturação do sistema de pensões, constituiu a principal, ainda que
não única, rubrica de convergência com o modelo social europeu em termos de despesa
social.
38 Sendo importante notar que o crescimento da despesa social, sobretudo das pensões, foi
um fenómeno que se iniciou logo na década de 1960 (Carolo e Pereirinha, 2010). Assim,
para além do forte crescimento da despesa social no período 1960-1975, a um ritmo
muito superior ao dos países da então CEE, conforme foi demonstrado noutros estudos
[Maia (1984); Costa (1986); Carreira (1996: 470)], e da relevância da reforma da
previdência social de 1962 na institucionalização de um regime de segurança social que
cobrisse todos os trabalhadores, permitindo assim a inclusão dos trabalhadores rurais
entre 1969 e 1973 (Carolo, 2006), a transição para a democracia, para além do já
mencionado reconhecimento do direito à segurança social como condição de cidadania
com a Constituição de 1976, consagrou, pela nova Lei Orgânica da Segurança Social em
1977, a adoção de um modelo de financiamento por repartição em substituição do
anterior regime de capitalização (Mendes, 2005: 116). Importa salientar que este é o
regime de financiamento que tem vigorado até ao presente e que, por isso, terá sido a
principal reforma no sistema. Ainda que em termos práticos não se tenha repercutido
em alterações institucionais, esta decisão foi porventura a forma de financiar,
juntamente com os excedentes da previdência existentes, a expansão da cobertura
material e pessoal do “regime não contributivo”.
39  Contudo, esta fase expansionista, com recurso a um modelo de financiamento mais
eficiente, a repartição (também designado por PAYG), cedo sofreu um revés, fruto da
necessidade de ajustamento orçamental. Logo no início dos anos 80, na sequência da
crise de 1978 e da intervenção financeira do FMI, ocorreu um período de contenção da
despesa na segurança social, com o aumento dos prazos de garantia para as pensões de
velhice e a reformulação dos regimes de proteção social dos trabalhadores agrícolas.
Por conseguinte, pode considerar-se que mesmo antes da primeira Lei de Bases da
Segurança Social de 1984, já haviam sido introduzidos vários cortes e restrições no
acesso ao sistema de pensões, com o objetivo de travar o crescimento do número de
beneficiários, devido ao processo, porventura demasiado flexível, de alargamento da
cobertura dos esquemas de proteção social (Carolo, 2015: 132-133).
40 Mais tarde, na década de 1990, iniciaram-se as medidas de contenção da despesa nos
sistemas de pensões (Chuliá e Asensio, 2007), destacando-se as seguintes reformas:
 
Década de 1990

41 As primeiras medidas foram tomadas em 1993, para controlar o aumento da despesa,


estava no poder o PSD (centro-direita) que detinha maioria absoluta. Assim, no domínio
do acesso às pensões de velhice, foi aumentado o prazo de garantia de 10 para 15 anos,
no cálculo das pensões, a taxa de formação da pensão diminuiu de 2,2% para 2%, os
salários passaram a ser revalorizados pelo índice preços no consumidor (IPC) e foi
definida uma pensão mínima. Nessa pensão, à pensão estatutária foi acrescentado um
“complemento social”, definido como uma prestação não contributiva, a ser financiado
por transferências do Orçamento de estado e, por fim, no financiamento, foi reduzida a
taxa social única (TSU), de 35,5% para 34,75% (taxa atual), sendo definida como
compensação a consignação adicional de 1 ponto percentual do imposto sobre o valor

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acrescentado, designado “IVA social” (Mendes, 2005: 124-125), cujas receitas revertem
para a segurança social.
42 Em 1995, já com o governo do PS (centro-esquerda), com maioria relativa, foi criada a
Comissão do Livro Branco para a reforma da segurança social. Esta comissão reuniu um
conjunto de especialistas e produziu um relatório com uma análise pormenorizada
sobre a evolução e lacunas do sistema e respetivas recomendações para a sua reforma.
Outro aspeto muito relevante levantado por esta comissão foi a denúncia do
aproveitamento do estado no financiamento do sistema, referindo o não cumprimento
do previsto na Lei de Bases de 1984, que estabelecia que as despesas com os regimes não
contributivos, ação social e administrativas, fossem financiadas pelo Orçamento de
estado e não pelo fundo previdencial (Carolo 2015: 114).
43 Ainda em 1999, na sequência de iniciativas pontuais em curso desde o final dos anos 80,
há que destacar a introdução de vários mecanismos de incentivo à reforma antecipada,
motivados pelo objetivo de estímulo à criação de emprego, sobretudo para as camadas
da população mais jovem, esperando ao mesmo tempo uma maior qualificação dos
recursos humanos e consequente aumento da produtividade do fator trabalho.
 
Reforma de 2000

44 Em 2000, no segundo governo do Partido Socialista, também com maioria relativa, é


realizada a primeira reforma da segurança social, que resultara de um processo
alargado de análise técnica e discussão de medidas com vista ao reforço da
sustentabilidade do sistema, nomeadamente através da criação da Comissão do Livro
Branco da Reforma da Segurança Social em 1997. Contudo, por decisão política, esta
reforma acaba por deixar de lado parte substancial das recomendações da comissão.
Assim, a reforma acabou por se limitar à introdução de alterações na forma de cálculo
das pensões, alargando gradualmente o período considerado, no sentido de ter em
conta a média da carreira, que até então era a média dos melhores 10 anos de
contribuições, prevendo porém um período de transição até à plena aplicação das novas
regras, justificada com a necessidade de salvaguardar os direitos adquiridos mas
também os direitos em formação. Neste pressuposto, legalmente (e não
necessariamente constitucionalmente), qualquer governo estaria condicionado quanto
à possibilidade de reforma no sistema de segurança social, atendendo à natureza do
mecanismo do sistema de pensões, que assenta no pagamento diferido de um benefício.
Daí a importância do princípio da confiança, conforme sustentado na decisão do TC em
2014, relativa ao corte nas pensões então proposto.
 
Reforma de 2002

45 No que se refere ao ordenamento jurídico do sistema de segurança social, em 2002, o


tema de maior relevância foi a tentativa gorada de proceder ao plafonamento
horizontal das contribuições para a segurança social. No fundo tratava-se de uma nova
configuração dos princípios da segurança social assentes na partilha de
responsabilidades, que na prática implicaria a introdução de um segundo pilar
complementar de natureza privada, tal como havia sido proposto pelo novo governo de
coligação entre o PSD e o CDS/PP saído das eleições de 2002.
46 Note-se que em termos institucionais esta teria sido a maior alteração ao sistema de
pensões, pelo menos na arquitetura que advinha desde a reforma de 1962, e que no

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plano constitucional à partida nada impediria. Assim poder-se-á concluir que não foi
pela CRP que não se fizeram reformas mais profundas no sistema.
47 Todavia, ainda nesta reforma, outro aspeto a considerar é a alteração da fórmula de
cálculo das pensões. Mais uma vez, a reforma foi além da Constituição, ao introduzir o
conceito de redistribuição do tipo de solidariedade intrageracional no sistema de
pensões previdencial (Carolo, 2015: 110), através da nova fórmula de cálculo das
pensões com taxas de formação regressivas, valorizando assim em termos relativos as
contribuições dos salários mais baixos, prevista na reforma de 2000 (PS) mas só
regulamentada em 2002 e que viria a merecer concordância do novo governo, sem
prejuízo de fazer aprovar uma nova Lei de Bases (PSD-CDS).
 
Reforma de 2007

48 O contexto económico subjacente à reforma de 2007 foi marcado pela necessidade de


controlo orçamental, a par de um período de fraco crescimento económico,
contrastante com toda a década de 1990, em que as consequências da adesão ao euro
não serão irrelevantes. Acresce que, à época, as projeções da Comissão Europeia
lançaram o alarme sobre os efeitos do envelhecimento no crescimento da despesa
social, enquanto o governo se debatia com o efeito maturação ao nível do crescimento
do número de pensionistas, principalmente na CGA. Perante duas reformas (2000 e
2002) que assumidamente não lograram atingir as mudanças que se propunham, o
governo do Partido Socialista, investido da sua primeira maioria absoluta, teve assim a
oportunidade para uma reforma sem restrições negociais nem necessidade de
concertação. As principais medidas introduzidas foram:
49 aceleração da convergência com fórmula de cálculo introduzida em 2002, de modo a
considerar toda a carreira contributiva, sem prejuízo dos direitos adquiridos mas com
prejuízo dos direitos em formação (componente da pensão já formada vs. contribuições
futuras), ou seja, implicações significativas na taxa de substituição da pensão futura;
introdução do fator de sustentabilidade (FS) indexado à evolução do indicador
esperança média de vida publicado pelo INE; novas regras de indexação das pensões, e
novo referencial em substituição do salário mínimo, o IAS; aplicação das novas medidas
à CGA, incluindo o fator de sustentabilidade, acelerando assim o processo de
convergência daquele regime com o RGSS.
50 Sistematizando, no sentido de se procurar uma perspetiva global das reformas, poder-
se-ia considerar que houve três fatores principais que concorrem para explicar a
evolução do sistema de proteção social em Portugal: (i) a nova Constituição, fruto do
processo revolucionário conducente à transição democrática, que levou à consagração
dos direitos sociais e respetivos ganhos de cobertura no sistema no sentido de colmatar
as principais lacunas preexistentes; (ii) a integração europeia e o efeito da análise
comparada dos indicadores sociais, com impactos positivos inequívocos tanto nas
prioridades como na difusão de boas práticas na formulação das políticas sociais; (iii) e
a maturação do sistema que coincidiu com uma conjuntura de austeridade, seguida de
uma intervenção externa (PAEF).
51 Evidentemente, estes fatores, tendo estado sempre presentes, acabaram por ter
preponderâncias diferentes na determinação dos resultados em termos de reformas no
sistema de proteção social.

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52 Para além da Constituição, a europeização foi sem dúvida mais importante na expansão
do sistema (Pereirinha e Nunes, 2006) sobretudo nas inovações introduzidas, por
exemplo, com a criação do RMG/RSI (1996-2002), do que a fase inicial de
desenvolvimento democrático (1976-1985) em que se procurava “completar” a
universalização do sistema de segurança social, tanto em termos de população coberta
(cobertura pessoal) como de prestações sociais (cobertura material).
53 Mas esta mesma influência externa, que durante um longo período foi vista como um
constrangimento positivo, ao conferir incentivos à expansão do sistema, foi sendo
reconfigurada, sendo também, designadamente após a aplicação do PAEF, um
constrangimento negativo, ao promover a retração do sistema. Ainda assim, também
neste caso, a Europa funcionou como um recurso externo que tornou possível ao
governo nacional levar a cabo reformas que desejava implementar mas que de outra
forma não teria sido capaz. Desta feita, de sentido restritivo. Ou seja, após a crise
financeira, assistimos a um regresso do papel da Europa enquanto instrumento de
reforço da capacidade política e institucional do governo português, agora com novos
contornos. Se bem que o MdE não previsse alterações significativas nas áreas sociais, as
necessidades de ajustamento orçamental que se foram agudizando, levaram o governo a
intervir nos grandes agregados de despesa, nomeadamente nas pensões. Esta decisão
coexistiu com um redesenhar da rede de mínimos sociais, tornando o acesso às
prestações baseadas em direitos de cidadania mais restritivo, enquanto se reforçavam
as transferências para o 3.º setor e uma lógica assistencialista (Silva e Pereira, 2016).
54 Todavia, ao longo do período analisado, houve também outros efeitos positivos,
nomeadamente ao nível da eficácia no combate à pobreza e da promoção de maior
equidade na distribuição de rendimento. Eis alguns casos exemplares:
55 1996 — Criação do RMG como reconhecimento do direito ao rendimento (ainda que
mínimo) como condição de cidadania (e não reconhecimento de necessidade feito pelos
serviços, numa lógica assistencialista, o que não significa que não persista ainda uma
certa subjetividade no processo de decisão e até a cultura assistencialista por parte dos
técnicos e de algumas normas).
56 2000-2002-2005 — Aumento das pensões mínimas/CSI — decorrente da evidência dos
elevados índices de pobreza entre os pensionistas e trabalhadores em contraste com a
realidade europeia (Costa et al., 2008), reforçando assim o papel dos mínimos sociais no
assegurar de um rendimento digno assente na condição de cidadania.
57 2002-2007 — Enfoque na redistribuição de rendimento nas reformas operadas na
segurança social, ou pelo menos na necessidade de eliminar regressividades associadas
a algumas prestações sociais, sobretudo ao nível da fórmula de cálculo das pensões e
subsídio de desemprego.
58 2011-2014, PAEF — Apesar dos efeitos agregados negativos que as medidas tomadas
neste período tiveram no rendimento dos agregados familiares, os cortes nas pensões
incorporaram preocupações de progressividade. Contudo, e em contraste, os cortes em
prestações sociais, como o RSI, o CSI ou o abono de família, tiveram um impacto
claramente regressivo, atingindo os primeiros decis da distribuição de rendimentos,
contribuindo para o agravamento da pobreza e das desigualdades.
59 Do mesmo modo, ao olharmos para as reformas no sistema de pensões, verificamos que
estas foram motivadas, não exclusiva mas principalmente, por razões de controlo da

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despesa — assentando, por vezes, em medidas contra a CRP, como foi o caso da
introdução da CES (Silva, Joaquim e Pereira, 2015).
60 Seguindo este pressuposto, a única reforma de natureza restritiva que poderia ser
entendida como seguindo um princípio constitucional de um regime de segurança
social unificado seria o encerramento da CGA para novos subscritores (2005) e a
respetiva aceleração da convergência prevista, em resultado da reforma de 2007, ainda
que salvaguardando os direitos adquiridos pela consideração de duas parcelas da
pensão (P1 e P2) na aplicação das novas regras de cálculo, com exceção do fator de
sustentabilidade, que se aplicou a todos os novos pensionistas logo em 2008, bem como
a legislação subsequente em 2009, que determinaria a aplicação das mesmas regras
entre CGA e RGSS. Note-se que esta foi talvez a primeira vez que se aplicou uma regra,
neste caso o FS, simultaneamente, aos dois subsistemas (CGA e RGSS). No plano
constitucional, com base na premissa de que a reforma de 2007 e as medidas nela
introduzidas foram, ainda que de forma implícita, a derradeira reforma da CGA com
vista à convergência total com o regime de segurança social (Carolo, 2015), é possível
argumentar que, após esta reforma, o sistema de pensões em Portugal está mais
próximo do preceito constitucional de um sistema de segurança social unificado que
deve ser providenciado pelo estado (artigo 63.º, n.º 2, CRP 1976).
61 Já no que concerne o período de intervenção externa (PAEF) apesar das inúmeras
medidas introduzidas (Silva, Joaquim e Pereira, 2015), estas seguiram o modelo de
cortes generalizados, tanto nos salários como nas pensões, diferenciados em função dos
níveis de rendimento, numa lógica de puro cost-containment, nalguns casos devidamente
sancionados pelo Tribunal Constitucional, sem todavia ter sido introduzida ou sequer
tentada qualquer reforma estrutural, porventura porque com o alcance tanto da
reforma da segurança social de 2007 como da aceleração da convergência da CGA, muito
pouca margem restava para que tal fosse possível, ao ponto de o memorando de
entendimento nem sequer prever qualquer corte ou reforma no sistema de pensões.
 
 Maturação e convergência
62 As quatro décadas de democracia traduziram-se numa enorme expansão da cobertura e
da generosidade do sistema de proteção social português. A combinação de garantia de
novos direitos e novas prestações sociais com o processo de maturação do sistema —
fruto de transformações positivas no mercado de trabalho, nomeadamente ganhos
salariais e de produtividade — provocou um aumento da despesa social, com notáveis
benefícios de eficácia, qualquer que seja o indicador que consideremos.
63 Se a maturação do sistema é uma característica distintiva da democracia, outra, não
menos marcante, é a convergência com os parceiros europeus. As políticas de proteção
social portuguesas europeizaram-se, quer incorporando princípios organizadores
promovidos a partir da Europa social, quer mimetizando soluções inovadoras
desenvolvidas por outros estados-membros (Guillén, Álvarez e Silva, 2005; Silva, 2011).
64 A proteção social foi, por isso, uma área de profunda transformação institucional,
política e económica. Com a transição para a democracia, a arquitetura do estado social
português alterou-se muito, com implicações materiais de grande alcance. A figura 1 dá
conta disso mesmo. Independentemente do risco considerado, assistiu-se a um
crescimento significativo do número de beneficiários de prestações sociais. Em 40 anos,
o número de pensões pagas duplicou (situa-se hoje em redor dos 3 milhões); o de

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beneficiários de proteção no desemprego — muito sensível ao ciclo económico —


 passou de números residuais para um valor em redor do meio milhão; e a rede de
mínimos sociais, que se podia caraterizar como sendo praticamente inexistente
aquando da transição para a democracia, protege hoje, considerando apenas as
prestações diferenciais, com exigentes condições de recursos (isto é, o rendimento
social de inserção e o complemento solidário para idosos), perto de 500 mil
portugueses. Da mesma forma, a rede de serviços à família, assente numa
contratualização entre o estado e o 3.º setor, tem níveis de cobertura que não podem ser
comparados com os preexistente.
 
Figura 1 Maturação do sistema de segurança social português

 
Quadro 1 Número médio de anos de carreira contributiva dos novos pensionistas do regime geral
da segurança social — pensões de velhice

65   No essencial, esta maturação do sistema dependeu de transformações positivas de


natureza económica e demográfica, mais do que de decisões políticas dos sucessivos
governos, em particular ao longo das últimas duas décadas. Com efeito, desde o início
da década de 1990, analisado o conjunto das opções governativas na área da proteção
social — e pese embora a garantia de novos direitos, designadamente na área da
solidariedade —, as escolhas políticas foram de natureza restritiva, procurando conter o
crescimento da despesa (em particular no regime previdencial, que representa, como é
sabido, o grosso da despesa com proteção social) (Silva e Pereira, 2015).
 

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 Figura 2 Evolução da pensão média anual de velhice (segurança social)

66 Não obstante a forte expansão da proteção social em Portugal nas últimas quatro
décadas — quer a nível dos riscos cobertos, quer ao nível dos beneficiários abrangidos
—, a evolução da despesa social pública em proporção da riqueza produzida segue uma
trajetória convergente com os patamares de despesa de grande parte dos países
europeus (figura 3). Portugal percorreu, com atraso, o caminho que muitos países
tinham iniciado 30 anos antes, logo após o pós-guerra, e com particular intensidade na
década de 60. Este caminho permitiu a criação e consolidação do estado social, tal como
o conhecemos hoje, e a aproximação dos padrões de desenvolvimento aos das restantes
democracias europeias.
 
 Figura 3 Despesa pública em proteção social em % do PIB

67  A maturação do estado social reflete-se não apenas na expansão da despesa como na


alteração da sua composição (figura 4). Neste domínio, destaca-se o aumento do peso
relativo da despesa com proteção no desemprego — que reflete também, mas não
apenas, a subida da taxa de desemprego ao longo do tempo —, a redução do peso das
prestações de apoio à família, doença e maternidade e um aumento moderado do peso
da despesa com pensões em virtude do crescimento do número de pensionistas e de
uma evolução no sentido de carreiras contributivas mais longas e completas. Refere-se
ainda, a este nível, a expansão da despesa com outras prestações sociais, em particular

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ao longo das últimas duas décadas, em parte explicado pelo desenvolvimento de uma
rede de mínimos sociais destinada ao alívio da pobreza e da exclusão social.   
 
 Figura 4 Composição da despesa da segurança social com prestações sociais por principais
agregados

68  O processo de maturação e consolidação do estado social teve impacto na elevação das


condições de vida da população como um todo, mas reflete-se de forma
particularmente expressiva na melhoria da situação das famílias de mais baixos
rendimentos. O grau de eficácia das transferências sociais na redução da pobreza mede-
se pelo diferencial da taxa de pobreza antes e após transferências sociais (quadro 2). Os
últimos dados disponíveis (2014) apontam para um efeito de redução da pobreza
através das transferências sociais de cerca de 28,3 p.p. Esta evolução beneficiou
particularmente a população idosa, grande parte da qual com pensões muito baixas ou
inexistentes, fruto do efeito combinado de fracas carreiras contributivas com baixos
salários. Só nas últimas duas décadas a taxa de pobreza entre os idosos diminuiu em
cerca de 23 p.p., por força dos aumentos dos complementos sociais para as pensões. A
desigualdade na distribuição de rendimentos, medida pelo índice de Gini, tem também
apresentado uma evolução decrescente, mas de mais fraca intensidade, situando
Portugal ainda muito aquém dos patamares médios europeus observados para este
indicador.
 
 Quadro 2 Evolução dos indicadores de risco de pobreza e desigualdades de rendimento
(1995-2014)

69  Uma das singularidades do estado social português é a forma como estado e 3.º setor se
articulam para garantir respostas sociais. Aliás, esta é uma matéria onde a margem de
manobra oferecida pela Constituição foi sendo utilizada para reforçar este pacto social.

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70 Não obstante, em termos globais, Portugal se caraterizar por baixos níveis de


participação em organizações da sociedade civil, no contexto europeu, o peso da
sociedade civil organizada em torno de respostas sociais tem grande expressão. Esta
singularidade emerge de um contexto de evolução histórica particular. Se antes do 25
de Abril de 1974 o estado assumia um papel supletivo na proteção social, e os apoios à
família e de alívio da pobreza recaíam, sobretudo, sobre as mutualidades, as
misericórdias e as, hoje denominadas, instituições particulares de solidariedade social
(IPSS), com a transição para a democracia, a par do forte desenvolvimento do estado
social português, assistiu-se a um crescimento significativo das IPSS (figura 5). A mesma
evolução não se verificou ao nível das mutualidades e misericórdias, que cresceram
marginalmente em virtude de cobrirem áreas de proteção que o estado passou a definir
como direitos universais assegurando o seu financiamento, gestão e provisão.
 
 Figura 5 Evolução do número de instituições particulares de solidariedade social sem fins
lucrativos

71  Nas décadas de 1970 e 1980 a parceria entre o estado e as IPSS foi-se consolidando. A
partir dos anos 80, em particular, o número de IPSS cresce exponencialmente e
desenvolve-se uma vasta rede de equipamentos sociais — lares, creches, centros de dia,
cantinas sociais —, investimento em parte alavancado por fundos comunitários. Foi esta
parceria entre o estado e as IPSS, materializada no Pacto de Cooperação em 1996 e, mais
tarde, em 2006, com o programa PARES, que garantiu uma forte expansão da cobertura
territorial destes equipamentos e, em particular, das creches (figura 6). Esta articulação
de respostas coloca, no entanto, questões importantes quanto à capacidade de o estado
regular a atividade destas instituições, financiadas com recursos públicos, assim como
garantir que o princípio da igualdade de oportunidades é assegurado.
 
 Figura 6 Cobertura nacional (Portugal continental) da resposta social “creche”

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  Considerações finais
72 Ao longo deste texto, procurámos demonstrar como a Constituição portuguesa
apresenta na área da proteção social um conjunto de singularidades, quando
comparada com outras áreas sociais. Enquanto na saúde e na educação, à transição para
a democracia correspondeu uma reorientação profunda do sistema, o mesmo já não é
verdade quando pensamos na proteção social. Neste domínio, o sistema manteve a sua
natureza bismarckiana, se bem que esta tenha passado a coexistir com um alargamento
muito significativo da proteção, quer quanto aos riscos cobertos, quer quanto à sua
intensidade. Se bem que, no sistema previdencial, a matriz ocupacional tenha
prevalecido, esta articula-se com uma rede de mínimos e de combate à pobreza de
natureza beveridgeana, fundada em direitos universais de cidadania.
73 Durante a democracia portuguesa, com a modernização da economia portuguesa e os
ganhos salariais e de emprego, assistiu-se a um processo de acelerada maturação do
estado social português, com evidentes ganhos de eficácia — visíveis, nomeadamente na
diminuição da pobreza e da sua severidade. Concomitantemente, primeiro com o
período de transição que se seguiu ao 25 de Abril, e, uma década depois, com a adesão à
União Europeia, o sistema de proteção social português beneficiou de um movimento de
modernização, visível na criação de novos direitos e, igualmente importante, em novos
princípios orientadores das políticas.
74 Em todo o caso, se bem que a Constituição tenha um conjunto de disposições relevantes
em matéria de proteção social — que, de facto, circunscrevem a margem política de que
gozaram os sucessivos governos —, não é menos verdade que, ao longo de quatro
décadas, os governos aplicaram medidas programaticamente distintas e
implementaram estratégias reformistas diferenciadas (quer no sentido dado às
reformas — mais ou menos restritivas ou expansionistas —, quer, aspeto
particularmente marcante, na divisão de responsabilidades entre estado, poder local e
3.º setor).  
75 Outra dimensão importante para a governação na área da proteção social — e que
assumiu grande visibilidade no período recente, de aplicação do PAEF — remete para a
proteção constitucional dos direitos sociais. Tendo em conta a natureza ocupacional do
sistema previdencial, que está explícita no texto constitucional, naturalmente que as
prestações sociais assentes no seguro social gozam de um grau de proteção
constitucional muito significativo. Os sucessivos acórdãos do Tribunal Constitucional
durante a aplicação do MdE vão, aliás, nesse sentido. Contudo, a jurisprudência do
Tribunal Constitucional vai também no sentido de proteger o direito de todos os
cidadãos a um nível mínimo de recursos materiais, dando, assim, proteção à rede de
mínimos entretanto constituída.
76 Neste sentido, podemos afirmar que a trajetória de maturação e convergência do
sistema de proteção social português é consequência, por um lado, de um conjunto de
transformações económicas, sociais e demográficas ocorridas na nossa sociedade e, por
outro, de um processo político, no qual a afirmação programática dos governos foi
relevante, mas em que a europeização e o texto constitucional desempenharam papéis
igualmente determinantes. Europa e Constituição foram fundamentais ao darem
incentivos concretos para o desenvolvimento de soluções com configurações
específicas, mas também ao restringirem a margem de manobra política dos governos.

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77 Hoje, o estado social português, à imagem do que sucede no espaço europeu, está
confrontado com um conjunto articulado de desafios. Por um lado, o da
sustentabilidade e da adequação; por outro, garantir a igualdade ao longo do ciclo de
vida e entre grupos sociais.
78 Da mesma forma que nas últimas quatro décadas a Constituição foi instrumental ao
enformar as opções políticas, dando autonomia ao poder político, mas, também,
circunscrevendo o espaço discricionário para a sua ação, o seu papel será também
fundamental no futuro.
79 Nesta perspetiva, há um conjunto de questões que se colocam:
80 Sobre a redistribuição ao longo do ciclo de vida: tendo em conta a evolução projetada
das taxas de substituição decorrentes das alterações à fórmula de cálculo das pensões
(reformas de 2002 e 2007), bem como o aumento da longevidade, como é que será
possível garantir um nível adequado de pensões de velhice para os futuros pensionistas,
equilibrando preocupações de sustentabilidade, equidade intergeracional e atendendo
às expectativas legitimas dos atuais contribuintes? Sobre a sustentabilidade financeira:
quais são as condições para alargar a base de financiamento do regime previdencial,
diversificando as fontes e preservando os princípios do seguro social, aliás não só
constitucionalmente consagrados como tendo sido reforçados pela jurisprudência do
Tribunal Constitucional? Qual a margem para expandir a rede de mínimos sociais,
assente na condição de recursos e em prestações diferenciais, e de que forma esta
expansão obriga a repensar a organização dos complementos sociais, assim como a
própria pensão social? De que forma deve evoluir a relação entre estado e 3.º setor na
promoção de respostas sociais, designadamente nos serviços prestados à família, e que
tipo de contratualização do financiamento e de regulação pública deve ser
desenvolvido?

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NOTAS
1. Foi, aliás, este decreto que deu origem à lei que transformou o rendimento mínimo garantido
em rendimento social de inserção.
2. Em 1981 absorvia apenas 1,7% da despesa social pública (Costa, 1986).

RESUMOS
Neste artigo discutimos de que forma a Constituição da República Portuguesa enformou as
escolhas políticas presentes na definição do estado social democrático e de que modo os
princípios constitucionais se fazem refletir na arquitetura do sistema e se foram alterando ao
longo do tempo. Argumentamos que, aquando da transição para a democracia, ao contrário de
outras áreas de políticas sociais, a segurança social manteve princípios organizadores anteriores.
Contudo, esta resiliência da matriz bismarckiana do sistema português não foi impeditiva da
expansão da proteção social portuguesa de acordo com princípios universais e concedeu aos
sucessivos governos margem de manobra para definirem políticas programaticamente distintas e
implementarem estratégias reformistas diferenciadas. Concluímos argumentando que, se bem
que a Constituição não tenha sido um limite intransponível para a ação política dos executivos,
esta tem operado de facto como um ponto de veto, nomeadamente pela forma como o Tribunal

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Constitucional tem defendido o direito à proteção social, seja numa lógica de seguro social, seja
na sua vertente de mínimos sociais.

This article discusses the ways in which the Constitution of the Portuguese Republic has
embodied to the political choices made during the process of creating and defining a democratic
welfare state and how the various constitutional principles are reflected in the architecture of
the system and have gradually changed over the years. The authors argue that when Portugal
transitioned to democracy, unlike other areas of the country’s social policies the social security
system retained some of its earlier organising principles. Having said this, this resilience on the
part of the Portuguese system’s Bismarckian template has not prevented social protection from
expanding here in accordance with universal principles, and has given successive governments
manoeuvring room in which to define programmatically distinct policies and implement
differentiated reformist strategies. The paper concludes by arguing that while the Constitution
has not placed an insurmountable limit on governments’ political action, it has served as a point
of veto, namely by means of the way in which the Constitutional Court has defended the right to
social protection, be it in the form of social insurance, be it in the imposition of certain social
minima.

Cet article cherche à savoir comment la Constitution portugaise a influencé les choix politiques
présents dans la définition de l’État social démocratique et de quelle façon les principes
constitutionnels se reflètent dans l’architecture du système et ont changé au fil du temps.
L’auteur soutient que lors de l’instauration de la démocratie, contrairement à d’autres domaines
de politiques sociales, la sécurité sociale a gardé d’anciens principes d’organisation. Cependant,
cette résilience de la matrice bismarckienne du système portugais n’a pas empêché l’expansion
de la protection sociale portugaise selon les principes universels et elle a conféré aux
gouvernements successifs une marge de manœuvre pour définir des politiques distinctes au plan
programmatique et pour mettre en œuvre des stratégies réformistes différenciées. L’article
conclut en affirmant que même si la Constitution n’a pas formé une limite infranchissable pour
l’action politique des exécutifs, elle a fonctionné en pratique comme un point de veto,
notamment pour la manière dont la Cour constitutionnelle tend à défendre le droit à la
protection sociale, aussi bien dans une logique d’assurance sociale que de minima sociaux.

En este artículo discutimos de qué forma la Constitución de la República Portuguesa conformó las
decisiones políticas presentes en la definición del estado social democrático y de qué modo los
principios constitucionales se ven reflejados en la arquitectura del sistema y se fueron alterando
a lo largo del tiempo. Argumentamos que, en el momento de la transición para la democracia, al
contrario de otras áreas de políticas sociales, la seguridad social mantuvo principios
organizadores anteriores. Sin embargo, esta resiliencia de la matriz bismarckiana del sistema
portugués no impidió la expansión de la protección social portuguesa de acuerdo con principios
universales y concedió a los sucesivos gobiernos un margen de maniobra para definir políticas
programáticamente distintas e implementaron estrategias reformistas diferenciadas. Concluimos
argumentando que, si bien, la Constitución no ha sido un límite intransitable para la acción
política de los ejecutivos, esta ha operado de hecho como un punto de veto, a saber, por la forma
como el Tribunal Constitucional ha defendido el derecho a la protección social, sea en una lógica
de seguro social, o en su vertiente de mínimos sociales.

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ÍNDICE
Mots-clés: état social, Constitution, européisation
Keywords: welfare state, Constitution, Europeanisation
Palabras claves: estado social, Constitución, europeización
Palavras-chave: estado social, Constituição, europeização

AUTORES
ANA RITA FERREIRA
Professora auxiliar convidada de Ciência Política na Universidade da Beira Interior, Covilhã,
Portugal. arita_ferreira@yahoo.com

DANIEL CAROLO
Research fellow do Institute of Public Policy Thomas Jefferson-Correia da Serra e Coordenador-
executivo do projecto Um Sistema de Pensões para o Futuro, Lisboa, Portugal.
dcarolo@ipp-jcs.org

MARIANA TRIGO PEREIRA


Técnica especialista no Ministério do Trabalho, da Solidariedade e da Segurança Social, Lisboa,
Portugal.
marianatp@gmail.com

PEDRO ADÃO E SILVA


Professor auxiliar convidado da Escola de Sociologia e Políticas Públicas do Instituto
Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Av. das Forças Armadas, 1649-025 Lisboa, Portugal.
padaoesilva@gmail.com

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Princípios constitucionais do
ordenamento do território
The constitutional principles applicable to spatial planning
Principes constitutionnels de l’aménagement du territoire
Principios constitucionales de la ordenación del território

Fernanda do Carmo

1 A Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra o ordenamento do território


como um fim a prosseguir pelo estado1 no quadro dos princípios constitucionais
fundamentais.
2 O ordenamento do território é uma política pública transversal que integra objetivos de
organização territorial e desenvolvimento socioeconómico e tem repercussão em
múltiplas áreas da vida social e económica. A importância e a transversalidade desta
política pública ficaram implícitas no texto constitucional originário, de 1976, e foram
depois evidenciadas nas revisões constitucionais de 1982, 1989 e 1997, estando hoje
consagrado “assegurar um correto ordenamento do território” como uma das tarefas
fundamentais do estado, nos termos do artigo 9.º, alínea e, da CRP.
3 A tarefa de assegurar um correto ordenamento do território assume, por sua vez,
dimensões fundamentais para a concretização de princípios e objetivos expressos em
três grandes domínios constitucionais, o dos direitos e deveres sociais, o da organização
económica e o da organização do poder político.
4 Numa primeira dimensão, o ordenamento do território encontra-se expressamente
inscrito nos direitos e deveres fundamentais como uma incumbência atribuída ao
estado, partilhada com as regiões autónomas e as autarquias locais, no sentido de
assegurar a efetivação de direitos e deveres sociais, designadamente o direito à
habitação e urbanismo (artigo 65.º) e o direito ao ambiente e qualidade de vida (artigo
66.º).
5 Todavia, enquanto objetivo e tarefa do Estado, o ordenamento do território não se
esgota no estipulado nos artigos 65.º e 66.º. Na parte da organização económica e no
quadro dos objetivos da promoção do desenvolvimento económico e social

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encontramos importantes referências constitucionais que apelam ao ordenamento do


território, enquanto base e instrumento privilegiado do desenvolvimento territorial.
Esta ligação é salientada por Miranda e Medeiros (2006: 192) e por Garcia (2010: 27) que
frisam a relação entre a tarefa de efetivação dos direitos sociais referidos (artigo 9.º,
alínea e) e a promoção do desenvolvimento económico e social.
6 Assim, numa segunda dimensão, no quadro da organização económica, a tarefa de
assegurar um correto ordenamento do território assume uma importância evidente:
quer para a aplicação do princípio do planeamento democrático do desenvolvimento
económico e social (artigo 80.º); quer para a realização de incumbências materiais,
como as que visam a promoção do bem-estar e da qualidade de vida, no quadro de uma
estratégia de desenvolvimento sustentável, e a promoção da coesão, orientando o
desenvolvimento e eliminando diferenças económicas, sociais e territoriais; quer para a
realização de incumbências operacionais, como as que visam a criação de instrumentos
de planeamento e a integração de preocupações de racionalidade e sustentabilidade na
utilização dos recursos naturais, no âmbito de políticas setoriais de interesse
económico e, também, dos objetivos da política agrícola (artigo 81.º, alíneas a, d, j, m e n,
e artigo 93.º, n.º 1, alínea d, e n.º 2). Ainda em matéria de organização económica
sublinhamos a ligação entre o ordenamento do território e os planos de
desenvolvimento económico, no campo dos objetivos e dos processos (artigos 90º e 91º).
7 Numa terceira dimensão, ao nível dos princípios fundamentais e da organização do
poder político, o ordenamento do território, por via do sistema de planeamento
territorial e dos respetivos programas e planos, assume um papel instrumental
relevante para a operacionalização dos princípios da subsidiariedade, da autonomia
regional e das autarquias locais e da descentralização democrática da administração
pública (artigo 6.º, n.º 1), bem como para a tarefa fundamental de assegurar e incentivar
a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais (artigo
9.º, alínea e).
8 À luz dos princípios constitucionais, o sistema de planeamento consagrado na ordem
jurídica portuguesa desde 1998, pela Lei de Bases da Política de Ordenamento do
Território e de Urbanismo (LBPOTU),2 estabelece mecanismos e formas de interlocução
de entidades e de conciliação dos interesses públicos nacionais e locais, prosseguidos
pela administração central, regional e local, definindo um quadro legal que aponta para
o exercício de competências partilhadas em matéria de ordenamento e
desenvolvimento do território, em concretização dos princípios da organização do
poder local e da descentralização administrativa (artigos 235.º e 237.º).
9 Considera-se, pois, que é na triangulação de três domínios constitucionais — o domínio
dos direitos à habitação e urbanismo e ao ambiente e qualidade de vida, enquanto
direitos sociais positivos e de última geração; o domínio da organização económica, em
matéria de desenvolvimento económico e social; e o domínio da organização do poder
político, no que diz respeito à concretização dos princípios da subsidiariedade,
autonomia, descentralização e participação, através do sistema de planeamento e
gestão territorial — que o ordenamento do território se posiciona na CRP.
 

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 O ordenamento do território como tarefa fundamental


do estado
10 A lista inicial das tarefas fundamentais do estado, como tal autonomamente
identificadas no texto constitucional de 1976, restringiu-se ao enunciar de opções
constitucionais básicas em matéria de independência, democracia e socialização, tendo
sido depois revista e aumentada.
11 O ordenamento do território foi expressamente identificado na CRP como um fim e
tarefa fundamental em 1989, através da introdução da incumbência de o estado
“assegurar um correto ordenamento do território” (artigo 9.º, alínea e).
12 A inscrição do ordenamento do território nas tarefas do estado constituiu um corolário
dos direitos e deveres sociais relativos à habitação e urbanismo e ao ambiente e
qualidade de vida e reforçou as suas incumbências de efetivação destes direitos e de
promoção do desenvolvimento socioeconómico, consagradas na CRP desde 1976. Com a
revisão de 1989, o estado, ficou explicitamente comprometido com a realização do fim
constitucional de assegurar “um correto ordenamento do território”, na margem de
conformação que lhe é dada pelo termo “correto”.
13 Esta inscrição veio fortalecer a posição do ordenamento do território no quadro
constitucional geral e reforçar as obrigações do estado neste domínio, impelindo-o à
prossecução ativa de ações de definição e aplicação de um correto ordenamento do
território, quer enquanto fim a atingir, quer enquanto atividade específica a
desenvolver, ao serviço da efetivação de direitos económicos, sociais, culturais e
ambientais e do cumprimento dos objetivos de coesão económica, social e territorial.
Miranda e Medeiros (2006: 191) referem, precisamente, que os direitos económicos,
sociais, culturais e ambientais “dependem, em larga medida, na sua concretização, de
condições de facto a obter e a construir”.
14 Em termos de percurso evolutivo, salienta-se que logo na primeira revisão
constitucional de 1982 foram incluídas nas tarefas fundamentais do Estado dimensões
intrinsecamente ligadas ao ordenamento do território, como a defesa da natureza e do
ambiente, a preservação dos recursos naturais e a proteção e valorização do património
cultural, sendo a este grupo que, em 1989, foi acrescida a tarefa de “assegurar um
correto ordenamento do território”.
15 Este desenvolvimento reflete a influência do contexto externo após adesão de Portugal
à Comunidade Económica Europeia, nomeadamente os desafios da política regional
europeia e a influência dos referenciais concetuais europeus em matéria ordenamento
do território,3 e traduz o contexto interno associado à reforma da organização da
administração periférica do estado, encetada após 1986, 4 que veio reforçar, no âmbito
regional, as regiões-planeamento e a ligação entre o ordenamento do território, o
ambiente e o desenvolvimento regional.
16 Posteriormente, em 1997, foi não só enfatizada a tarefa de efetivar os direitos
ambientais, com a nomeação destes a par dos direitos económicos, sociais e culturais,
no âmbito da tarefa de promoção do bem-estar e da qualidade de vida, como foi
também inscrita como nova tarefa “a promoção do desenvolvimento harmonioso de
todo o território nacional (artigo 9.º, alínea g). Esta revisão ocorreu num período de
preparação da LBPOTU, publicada em 1998, e de preparação da lei de criação das
regiões administrativas, referendada nesse mesmo ano.

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17 O estado ficou, assim, vinculado a praticar os atos e tomar as providências necessárias


para alcançar os fins constitucionais do ordenamento do território e a criar as
condições necessárias para a promoção da efetivação dos direitos sociais e dos objetivos
de desenvolvimento territorial harmonioso e equilibrado, nomeadamente através do
planeamento urbanístico e biofísico, mais ligado aos regimes de ocupação e uso do solo,
e do planeamento estratégico, mais ligado às opções de desenvolvimento económico e
social territorial.
18 Concomitantemente o estado viu reforçada a sua incumbência de promover os quadros
legais, os instrumentos e as vias organizativas para atingir estes fins, seguindo modelos
de coordenação e partilha da sua ação com as regiões autónomas e as autarquias locais
e de promoção da iniciativa, envolvimento e participação dos cidadãos e grupos sociais
na resolução dos problemas nacionais., havendo forte expetativa na criação das regiões.
19 Posteriormente ao referendo e na impossibilidade de prosseguir a instituição das
regiões administrativas, as atividades de planeamento e gestão de âmbito regional
mantiveram-se nas regiões-planeamento e na esfera de competências das Comissões de
Coordenação Regional (atuais CCDR), por via da desconcentração administrativa.
20 Na CRP o conceito de ordenamento do território consolidou-se em torno dos conceitos
de urbanismo, ambiente e desenvolvimento regional, refletindo as filiações do
planeamento territorial português: o planeamento urbanístico, o planeamento regional
e o planeamento biofísico (Ferrão, 2010: 62-70; Campos e Ferrão, 2015: 7-31), mostrando
capacidade de adaptação à influência europeia, nomeadamente no que se refere aos
princípios da subsidiariedade e da coesão económica, social e territorial.
21 É, assim, na conjugação de várias alíneas do artigo 9.º da CRP que deve ser entendida a
tarefa do estado no domínio do ordenamento do território, designadamente as alíneas:
e, que estabelece o assegurar de um correto ordenamento do território; d, que refere a
promoção do bem-estar e qualidade de vida e da efetivação dos direitos económicos,
sociais, culturais e ambientais; g, relativa à promoção do desenvolvimento territorial
harmonioso; bem como da alínea c, que estabelece a necessidade de assegurar e
incentivar a participação democrática dos cidadãos na resolução dos problemas
nacionais.
 
 O ordenamento do território associado aos direitos à
habitação e urbanismo e ao ambiente e qualidade de
vida
22 A parte I da CRP estabelece e desenvolve os direitos e deveres fundamentais das pessoas
nas relações entre si e com o estado, detendo um forte poder conformador da ordem
jurídica infraconstitucional e dando um importante contributo, em conjunto com a
parte relativa à organização económica, para a definição do “tipo constitucional de
sociedade”, como salientam Canotilho e Moreira (2007: 294).
23 Sendo uma tarefa fundamental do estado, o ordenamento do território não é definido
como um direito em si mesmo, delimitado em artigo autónomo, antes surge, neste
capítulo, como um dever e um direito transversal, concebido como uma obrigação
programática de política pública que prossegue a racional organização do território e o
desenvolvimento socioeconómico harmonioso e sustentável e que proporciona
condições para a efetivação de direitos positivos de natureza social, como é o caso do

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direito à habitação e urbanismo (artigo 65.º) e dos direitos e deveres de última geração,
como é o caso do direito ao ambiente e qualidade de vida (artigo 66.º), bem como para
atingir objetivos de desenvolvimento económico e social, como veremos no ponto
seguinte.
24 No caso do direito à habitação desde 1976 que a CRP estabelece que, para que este seja
efetivado, incumbe ao estado “programar e executar uma política de habitação inserida
em planos de reordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização
que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento
social” (artigo 65.º, alínea a). Resulta desta formulação uma incumbência de promover o
ordenamento do território com base em planos de reordenamento geral (com a
expressão “reordenamento” a frisar a necessidade de transformar uma realidade
existente, de conotação negativa), a desenvolver a montante da elaboração dos planos
urbanísticos reguladores da produção de solo urbano e da urbanização e edificação.
25 Também no caso do direito ao ambiente e qualidade de vida o texto constitucional de
1976 atribui ao estado uma incumbência de ordenamento do território: “ordenar o
espaço territorial de forma a construir paisagens biologicamente equilibradas” (artigo
66.º, n.º 2, alínea b). Neste caso a incumbência de ordenar o território assenta numa
preocupação geral de génese biofísica e paisagística que não se esgota nem confunde
com outras dimensões mais estritas ou setoriais da concretização deste direito,
designadamente a poluição, a criação de parques e reservas e a classificação e proteção
de paisagens e sítios, de forma a garantir a conservação da natureza e a preservação de
valores culturais e o aproveitamento racional dos recursos, salvaguardando a sua
renovação e estabilidade ecológica.
26 A leitura da Constituição permite-nos equacionar duas visões para o posicionamento do
ordenamento do território no quadro dos direitos sociais fundamentais: uma visão do
ordenamento do território como subsidiário do direito à habitação e do direito ao
ambiente e qualidade de vida e via instrumental para a concretização destes dois
direitos, ou uma visão do ordenamento do território menos redutora, que o posiciona
como uma política pública transversal e estruturante da organização territorial e do
desenvolvimento socioeconómico e, nesses termos, crucial para a boa concretização de
direitos e deveres sociais fundamentais e para o planeamento do desenvolvimento
económico e social num quadro de harmonia e equilíbrio territorial, sustentabilidade e
bem-estar social.
27 Defendemos esta última visão, que julgamos contextualizada à época da elaboração da
CRP e reconhecida na alteração constitucional de 1989, com a inscrição da tarefa
fundamental do estado de “assegurar o correto ordenamento do território”.
28 Esta solução constitucional que considera o ordenamento do território como uma tarefa
fundamental do estado a prosseguir em vários domínios constitucionais, com o recurso
ao planeamento, oferece-se contextualizada nas tradições e filiações do ordenamento
do território em Portugal, o planeamento urbanístico, o planeamento biofísico e o
planeamento regional, e nos ideais das comunidades profissionais e atores políticos que
ao longo do tempo participaram e influenciaram a redação da CRP, na sua origem e nas
posteriores revisões.5
29 Em reforço desta leitura salientamos que apesar da importância e premência que a
produção de habitação assumia em 1976, quando existiam gravíssimos problemas de
construção precária e insalubre, fenómenos de edificação ilegal e necessidades
acrescidas pelo retorno das ex-colónias, o texto originário da CRP não se limitou a

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fomentar a produção de solo urbano por via de planos de urbanização, antes reforçou a
necessidade de enquadrar o planeamento urbanístico e a identificação de solo urbano
em visões de ordenamento geral do território.
30 E salientamos, também, que no âmbito do ambiente e qualidade de vida a inscrição no
texto originário da incumbência de “ordenar o espaço territorial de forma a construir
paisagens biologicamente equilibradas” deu, desde logo, expressão à noção de
organização territorial e de equilíbrio, racionalização e sustentabilidade do
desenvolvimento, em alinhamento com preocupações internacionais patentes na
Conferência de Estocolmo de 1972.
31 A formulação constitucional reconheceu ao ordenamento do território um papel
transversal e fundamental para a concretização do direito ao ambiente e este deu à
política de ambiente uma visão ampla e inovadora, numa perspetiva biofísica e
socioeconómica. Fadigas (2015: 133) refere que a valorização da paisagem no âmbito do
ordenamento do território representou uma inovação concetual e que a introdução das
questões ambientais no processo de ordenamento territorial foi um dos aspetos mais
marcantes das políticas públicas naquele período e no que se lhe seguiu.
32 Também Canotilho e Moreira (2007: 322 e 845) e Miranda e Medeiros (2006: 1341)
salientam o peso do direito ao ambiente no texto constitucional, frisando o caráter
pioneiro e a abordagem inovadora da associação entre ambiente e qualidade de vida
que, numa compreensão antropocêntrica do ambiente, levam a consagrá-lo como
direito fundamental. Segundo Canotilho e Moreira (2007: 855), a Constituição aponta
para uma visão de ambiente que considera sistemas ecológicos, físicos, biológicos e
fatores económicos, sociais e culturais, encerrando uma compreensão estrutural-
funcional de ambiente em que os sistemas e os fatores são interativos entre si e
produzem efeitos direta ou indiretamente sobre a qualidade de vida.
33 Não obstante, não podemos deixar de evidenciar que no texto constitucional de 1976 a
formulação do ordenamento do território e dos seus instrumentos de planeamento
apresentava uma conotação predominantemente urbanística e biofísica, uma vez que,
no domínio do desenvolvimento económico e social a Constituição consagrava um
quadro de planeamento específico, com órgãos próprios, destinado a orientar,
coordenar e disciplinar o desenvolvimento no sentido da transformação da economia e
da sociedade e, como tal, acima dos demais instrumentos de planeamento, configuração
que foi eliminada com as posteriores revisões constitucionais e com a evolução do
conceito de “Plano” para “planos de desenvolvimento económico e social”.
34 As alterações constitucionais nestes dois artigos ocorreram nas revisões de 1982, 1989 e
1997, registando-se uma evolução da consagração dos direitos à habitação e ao
ambiente e qualidade de vida que não afetou a visão inicial do ordenamento do
território, antes pelo contrário, reforçou-a.
35 No caso do direito à habitação as alterações iniciaram-se na revisão de 1989, com a
retirada das menções à socialização do solo urbano, através da sua nacionalização e
municipalização, a favor do recurso a instrumentos de expropriação dos solos urbanos
necessários à urbanização, mantendo-se nesta fase e até 1997, a atribuição de o estado e
das autarquias locais exercerem o efetivo controlo do parque imobiliário.
36 Em 1997 ocorreu uma revisão mais profunda do direito à habitação e da definição do
papel do estado. Em primeiro lugar a epígrafe do artigo 65.º foi alterada, passando de
“Habitação” para a “Habitação e urbanismo”, dando ao enunciar deste direito uma

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conotação mais vasta e consentânea com as preocupações de política urbana e


acolhendo melhor o reforço do planeamento urbanístico, nos termos das alterações
inscritas no corpo do artigo. Para Fadigas (2015: 153), “a autonomização do urbanismo
como aspeto particular do ordenamento do território e seu instrumento representou, a
partir daqui, um novo paradigma quanto ao modo de encarar as realidades territoriais.
Reconhecendo a especificidade das questões urbanas no quadro da organização
territorial …”
37 A revisão de 1997 introduziu um quadro explícito de obrigações partilhadas entre o
estado, as regiões autónomas e as autarquias locais, quer na construção de habitação
social e económica, assumindo-se neste campo um papel de prestador, quer na
regulamentação e disponibilização do solo urbano para os demais fins habitacionais e
outros, assente no planeamento urbanístico e na expropriação de solos para fins de
utilidade pública urbanística, assumindo-se aqui, essencialmente, um papel de
regulador.
38 Assim, a partir 1997 ao estado incumbe: “Promover, em colaboração com as autarquias
locais, a construção de habitações económicas e sociais” (artigo 65.º, n.º 2, alínea b). E
nos demais âmbitos: “O estado, as regiões autónomas e as autarquias locais definem as
regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, designadamente através de
instrumentos de planeamento, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do
território e ao urbanismo e procedem às expropriações dos solos que se revelem
necessárias à satisfação de fins de utilidade pública urbanística” (artigo 65.º, n.º 4),
sendo garantida “a participação dos interessados na elaboração dos instrumentos de
planeamento urbanístico e de quaisquer outros de planeamento físico do território”
(artigo 65.º, n.º 5).
39 Manteve-se, no entanto, o posicionamento do ordenamento do território como política
pública de fundo, tendo sido nesta revisão que se atualizou a expressão “planos de
reordenamento geral do território” para “planos de ordenamento geral do território”,
adequando o texto constitucional à ordem jurídica infraconstitucional vigente e à
prática do sistema de planeamento.
40 Em suma, em 1997 a Constituição consagrou o urbanismo como um direito e os planos
urbanísticos como os principais definidores do aproveitamento urbanístico do solo e da
dimensão social da propriedade privada, numa perspetiva mais vasta do que a da
habitação,6 e reafirmou o ordenamento do território como uma política pública
abrangente, assente sobretudo num sistema de planeamento e num quadro de
competências partilhadas entre o estado, as regiões autónomas e as autarquias locais.
41 Saliente-se que a Constituição deixou em aberto a definição em concreto das
competências de cada nível de poder, remetendo para as leis respeitantes ao
ordenamento do território e ao urbanismo essa definição, com a garantia de estas
serem matérias da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da
República. Canotilho e Moreira (2007: 838) referem precisamente que a Constituição
impõe ao estado, às regiões autónomas e às autarquias locais, de acordo com a respetiva
esfera de competências no governo do território, a definição da ocupação, uso e
transformação dos solos.
42 Decorre, pois, da CRP um certo grau de liberdade para que o quadro legal do
ordenamento do território e urbanismo delimite a esfera de competências e o âmbito
de atuação de cada nível de poder, naturalmente no quadro de reserva de
competências, de acordo com os princípios constitucionais fundamentais e  a

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organização do poder político e tendo por respeito o quadro infraconstitucional que


destes decorre.
43 Esta definição ocorreu logo em 1998 com a aprovação da LBPOTU, que desenhou as
competências de cada nível no âmbito da arquitetura do sistema de planeamento, bem
como as formas de interlocução de entidades e os mecanismos de interação coordenada
dos planos.7 Neste sistema os planos territoriais, que estabelecem os regimes de uso do
solo e vinculam diretamente os particulares, competem às autarquias locais, enquanto
ao estado, em partilha com as regiões autónomas, competem os instrumentos de
desenvolvimento territorial, na qualidade de instrumentos estratégicos, programáticos
e orientadores que definem o quadro de referência do ordenamento do território. 8 Isto
sem prejuízo de o estado poder estabelecer regimes de tutela de interesses públicos e de
salvaguarda de recursos e valores de relevância nacional.
44 Quanto à evolução do direito ao ambiente e qualidade de vida verifica-se que este é um
dos casos de ampliação significativa de conteúdos ao longo das sucessivas revisões
constitucionais, acompanhando o afirmar da política de ambiente e a necessidade de
incrementar a consideração das preocupações ambientais nas demais políticas públicas.
45 Em 1976 as incumbências do estado incluíram a de “ordenar o espaço territorial de
forma a construir paisagens biologicamente equilibradas” (artigo 66.º, n.º 2, alínea b), a
par com as de prevenir e controlar a poluição e a erosão, de criar e desenvolver
reservas e parques naturais e classificar paisagens e sítios, de modo a garantir a
conservação da natureza e a preservação de valores culturais, e de promover o
aproveitamento racional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de
renovação e estabilidade ecológica.
46 Em 1989 e 1997 esta incumbência geral de ordenamento foi aprofundada. Na primeira
data, o “ordenar o espaço territorial” deu lugar a “ordenar e promover o ordenamento
do território, tendo em vista a correta localização das atividades, um equilibrado
desenvolvimento socioeconómico” e, na segunda, o objetivo final de alcançar
“paisagens biologicamente equilibradas” deu lugar ao de “valorização da paisagem”.
47 Por via do direito ao ambiente e qualidade de vida o dever de ordenamento do
território assumiu em 1989 uma formulação moderna no quadro da formulação do
artigo 66.º, n.º 2, alínea b, que juntou ordenamento do território, ambiente e
desenvolvimento regional, como referem Miranda e Medeiros (2006: 1351), e apontou
para a necessidade de integração e coordenação de atividades setoriais, em total
alinhamento com os princípios e objetivos da Carta Europeia do Ordenamento do
Território, aprovada em 1984, onde o ordenamento do território foi definido como “…
uma política que se desenvolve numa perspetiva interdisciplinar e integrada, tendente
ao desenvolvimento equilibrado das regiões e à organização física do espaço segundo
uma estratégia de conjunto” (DGOT, 1988: 9).
48 Depois desta atualização do conceito de ordenamento do território, realizada em 1989,
em 1997 foram introduzidas no âmbito do direito ao ambiente e qualidade de vida
outras dimensões contribuintes de uma visão atual do ordenamento do território,
designadamente o aditamento introdutório, que frisa que o direito ao ambiente é
assegurado no quadro de um “desenvolvimento sustentável” (artigo 66.º, n.º 2), e a
inscrição do “respeito pelo princípio da solidariedade entre gerações” na promoção do
aproveitamento racional dos recursos (artigo 66.º, n.º 2, alínea d).

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49 Em 1997 são ainda acrescidas novas incumbências importantes, relacionadas com a


qualidade ambiental urbana, a concretizar em colaboração com as autarquias locais,
com a integração de objetivos ambientais nas políticas de âmbito setorial, com a
promoção da educação ambiental e com o assegurar de uma política fiscal que
compatibilize desenvolvimento com proteção do ambiente e qualidade de vida
acrescida, e ainda a obrigação do estado de assegurar o direito ao ambiente “com o
envolvimento e a participação dos cidadãos” (artigo 66.º, n.º 2).
50 A revisão de 1997 reforçou a amplitude da política de ambiente em associação com o
ordenamento do território, em particular através do desenvolvimento da noção de
desenvolvimento sustentável e de solidariedade entre gerações e de integração das
preocupações ambientais em todas as políticas, denotando a influência do Relatório da
Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, de 1987, e da Conferência
do Rio, de 1992, e o efeito da adoção dos tratados europeus e das diretivas de política de
ambiente europeia.
 
 O ordenamento do território na promoção do
desenvolvimento económico e social e da coesão
territorial
51 A organização económica é uma parte da Constituição que se relaciona estreitamente
com os direitos e deveres sociais e, nessa medida, também com o ordenamento do
território nas suas dimensões físicas e de desenvolvimento, no quadro do princípio
constitucional do “planeamento democrático do desenvolvimento económico e social”
(artigo 80.º, alínea e).
52 Segundo Marques (1990: 19) é no campo dos direitos fundamentais com incidências
económicas e sociais que a Constituição afirma a sua singularidade pela diversidade e
extensão de direitos reconhecidos e interesses tutelados. E como referem Miranda e
Medeiros (2006: 18) o artigo da definição das incumbências do estado no domínio da
organização económica “está intimamente ligado aos direitos e deveres económicos,
sociais e culturais, porquanto aí se encontram as concretizações da democracia
económica e social aqui assumidas…”
53 As incumbências atualmente atribuídas ao estado como prioritárias no âmbito
económico e social evidenciam bem a ligação com o ordenamento do território,
nomeadamente as de: “promover o aumento do bem-estar social e económico e da
qualidade de vida das pessoas, em especial das mais desfavorecidas, no quadro de uma
estratégia de desenvolvimento sustentável”; “promover a coesão económica e social de
todo o território nacional, orientando o desenvolvimento no sentido do crescimento
equilibrado de todos os setores e regiões e eliminando progressivamente as diferenças
económicas e sociais entre a cidade e o campo e entre o litoral e o interior”; “criar os
instrumentos jurídicos e técnicos necessários ao planeamento democrático do
desenvolvimento económico e social” e, ainda, as de: “adotar uma política nacional de
energia, com preservação dos recursos naturais e do equilíbrio ecológico…”; e “adotar
uma política nacional da água, com aproveitamento, planeamento e gestão racional dos
recursos hídricos” (artigo 81.º, alíneas a, d, j, m e n).
54 Mas o quadro constitucional atual difere significativamente do inicial, estabelecido em
1976, uma vez que, na parte da organização económica, a CRP sofreu alterações

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substanciais, no sentido da eliminação da carga ideológica associada à transição para


uma sociedade socialista, da densificação de princípios e da alteração do quadro de
planeamento económico e social.
55 A redação original de 1976 apresentava apenas um fundamento geral da organização
económico-social que remetia para o desenvolvimento das relações de produção
socialistas e estabelecia um quadro de planeamento em que o “Plano” (estruturado nas
figuras de longo e médio prazo e anual) orientava, coordenava e disciplinava a
organização económica e social do país (artigo 91.º, n.º 2, e artigo 93.º).
56 O detalhe dos princípios fundamentais que presidem hoje à organização económica foi
introduzido em 1982, tendo sido, nessa data, inscrito o princípio da “planificação
democrática da economia, atualizado em 1997 para ”planeamento democrático do
desenvolvimento económico e social" (artigo 80.º, alínea e).
57 Relativamente às incumbências em matéria de organização económico-social, o texto
constitucional de 1976 incluiu o núcleo principal das incumbências prioritárias hoje
atribuídas ao estado, tendo estas sofrido apenas ajustamentos ou acréscimos
relacionados com políticas setoriais que vieram a tornar-se fundamentais no campo da
organização e planeamento económico.
58 Assim, em 1976 já se estabelecia que ao estado incumbe “promover o aumento do bem-
estar social e económico e da qualidade de vida das pessoas…”, tendo sido, em 1997,
acrescentado que esta promoção deve realizar-se “no quadro de uma estratégia de
desenvolvimento sustentável”. Também as incumbências de “orientar o
desenvolvimento económico e social no sentido de um crescimento equilibrado de
todos os setores e regiões” e “eliminar progressivamente as diferenças sociais e
económicas entre a cidade e o campo”, já estavam presentes no texto de 1976, tendo as
mesmas sido agregadas em 1982 sem alteração de conteúdo e, depois, em 2005, aditadas
com a menção a diferenças entre “o litoral e o interior” e com a introdução do objetivo
de “promoção da coesão económica e social de todo o território nacional”.
59 Em 1997 atualizou-se igualmente a formulação da incumbência de planeamento inscrita
em 1976, substituindo-se a menção à criação de “estruturas jurídicas e técnicas” por
“instrumentos jurídicos e técnicos” e a referência à “instauração de um sistema de
planeamento democrático da economia” por “planeamento democrático do
desenvolvimento económico e social”.
60 Em matéria de políticas setoriais, as referências à adoção de uma política nacional de
energia e à adoção de uma política nacional da água surgiram, respetivamente, em 1982
e 1997.
61 De referir que em 1997 os ajustamentos introduzidos trouxeram, tal como sucedeu no
capítulo dos direitos e deveres sociais, novos desideratos ao nível das incumbências do
estado, designadamente a necessidade de enquadrar a promoção do bem-estar
económico e social e da qualidade de vida das pessoas numa “estratégia de
desenvolvimento sustentável”, remetendo-se para a ideia de harmonização do
crescimento económico em respeito pela preservação do ambiente e recursos naturais e
pelos efeitos sobre as gerações futuras E reitera-se que foi em 1997 que se inscreveu
uma nova tarefa fundamental do estado no âmbito dos princípios fundamentais, no
sentido de “promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional…”
(artigo 9.º, alínea g).

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62 Recorrendo à arrumação temática adotada por Miranda e Medeiros (2006: 18-19),


salientamos que as atualizações mencionadas reforçam as tarefas de promoção da
igualdade de oportunidades e de promoção do desenvolvimento sustentável,
intensificam a ligação entre organização económica, direitos sociais e tarefas
fundamentais do estado, em torno do desenvolvimento económico e social sustentável
de base territorial.
63 Para além das incumbências, interessa igualmente analisar a evolução dos artigos que
estipulam os planos de desenvolvimento económico e social, uma vez que o
planeamento é uma componente fundamental organização económica. Canotilho e
Moreira (2007: 960) salientam, precisamente, a importância e significado do
planeamento no contexto da constituição económica, frisando o seu significado na ideia
de orientação económica pelo poder político e na democratização do sistema
económico através de instituições democraticamente participadas e frisando que o
planeamento no domínio da economia é um dos limites materiais da revisão
constitucional (artigo 288.º, alínea g).
64 Sendo a organização económica uma parte da constituição que sofreu profundas
alterações, no sentido da eliminação da carga ideológico-programática inicial, em
especial em 1989, uma vez de depois da adesão de Portugal à CEE, foi adotado um
programa governativo de política económica e social que em vários aspetos se
incompatibilizava com o texto constitucional, como referem Canotilho e Moreira (2007:
31), facto é que os objetivos iniciais preconizados para “o Plano” se mantêm-se hoje
semelhantes aos do texto originário, e desde sempre associados ao direito ao ambiente
e à qualidade de vida, mostrando, neste campo, não só uma grande resiliência como
modernidade do texto inicial.
65 Não obstante a redução significativa da importância do planeamento económico e
social, enquanto processo de direção da transformação das estruturas económicas e
sociais, e do Plano, enquanto instrumento impositivo de elevada normatividade
material, trazida pelas sucessivas revisões constitucionais, como é salientado por
Miranda e Medeiros (2006: 131-132), e Canotilho e Moreira (2007: 1032), podemos
registar que essas grandes alterações, ligadas à alteração de conceção do modelo de
sociedade, não afetaram substancialmente a formulação dos objetivos de
desenvolvimento económico e social material a alcançar com os planos, mantendo-se
muito do essencial estabelecido em 1976.
66 Esta resiliência pode ser explicada pelo objetivo do desenvolvimento económico e social
em si mesmo e pelas múltiplas dimensões que este objetivo encerra fora da esfera das
matérias estritamente económicas. Canotilho e Moreira (2007: 1032) salientam,
referindo-se aos planos desenvolvimento económico e social, que “os planos são
pressupostos da política económica em geral e orçamental em especial, mas também
das demais políticas, em particular das que têm a ver com o ordenamento do território
e ambiente”.
67 Atualmente, “os planos de desenvolvimento económico e social têm por objetivo
promover o crescimento económico e social, o desenvolvimento harmonioso e
integrado dos setores e regiões, a eficiente utilização das forças produtivas, a justa
repartição individual e regional do produto nacional, a coordenação da política
económica com as políticas: social, educativa e cultural, a defesa do mundo rural, a
preservação do equilíbrio ecológico, a defesa do ambiente e a qualidade de vida do povo
português” (artigo 90.º). Com exceção da menção inicial do articulado do artigo 90.º à

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“promoção do crescimento económico”, introduzida em 1989, e das menções ao


desenvolvimento “integrado”, à política “educativa” e à “defesa do mundo rural”,
introduzidas em 1997, todo o restante conteúdo é originário de 1976.
68 Independentemente da alteração da natureza e alcance dos planos nacionais, também
desde 1976 se prevê que a implementação destes seja descentralizada regional e
setorialmente, sem prejuízo da sua coordenação central. Assim, atualmente continua a
estabelecer-se que “a execução dos planos nacionais é descentralizada regional e
setorialmente (artigo 91.º, n.º 1), e que ”os planos nacionais são elaborados de harmonia
com as leis das grandes opções, podendo integrar programas específicos de âmbito
territorial e de natureza setorial (artigo 91.º, n.º 1), numa redação que, depois de
alterações anteriores, foi estabilizada em 1997.
69 Todavia a inscrição constitucional inicial, segundo a qual, para o efeito, o país seria
dividido em “regiões Plano” com base nas potencialidades e nas características
geográficas naturais, sociais e humanas do território com vista ao seu equilibrado
desenvolvimento e tendo em conta as carências e interesses da população, nos termos
da lei (anterior artigo 95.º) foi eliminada em 1989. 9
70 Foi também em 1989 que se eliminou o Conselho Nacional do Plano, enquanto órgão
coordenador da elaboração do Plano, e foi criado o Conselho Económico e Social, como
órgão de consulta e concertação no domínio das políticas económica e social e
participante na elaboração dos planos de desenvolvimento económico e social.
71 Para uma melhor compreensão da revisão constitucional de 1989, fora do objetivo de
redução da carga ideológico-programática do planeamento do desenvolvimento
económico e social e centrada na questão da promoção do desenvolvimento ao nível
regional, importa ter em conta os desenvolvimentos infraconstitucionais, legais e
administrativos encetados após 1976.
72 No desenvolvimento dos comandos constitucionais, em 1977 foram encetadas três
iniciativas importantes no domínio do planeamento económico e social. Uma delas a
aprovação do Sistema e Orgânica de Planeamento e a composição do Conselho Nacional
do Plano (Lei n.º 31/77, de 23 de maio). No âmbito desta lei criou-se o Departamento
Central e Planeamento (DCP) e uma comissão técnica interministerial de planeamento,
a funcionar junto deste, e previu-se a posterior criação e estruturação de
departamentos regionais de planeamento em cada região Plano, a funcionar na
dependência do ministro do Planeamento.
73 Ao DCP foi dada a competência técnica de preparar e elaborar o Plano e compatibilizar,
nessa sede, os planos setoriais e regionais, incluindo nesta tarefa a de “preparar
esquemas de ordenamento do território que, nomeadamente, integrem a preservação
do equilíbrio ecológico e a defesa do ambiente, assim como promover a sua
concretização através de programas setoriais e regionais” (Lei n.º 31/77, artigo 9.º, n.º
4), uma vez que o Plano deveria assegurar a compatibilização dos vários domínios do
planeamento, nas suas componentes económicas, sociais e físicas.
74 Aos departamentos regionais de planeamento competiria elaborar estudos de
desenvolvimento regional, preparar e acompanhar a execução do respetivo plano
regional, e articular os serviços públicos regionais para efeitos de planeamento, porém
estes nunca chegaram a existir.
75 As outras duas iniciativas de 1977 consistiram no lançamento das bases da delimitação
das regiões Plano e na preparação de um plano de desenvolvimento para o período de

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1977-1980. Destas três iniciativas identificadas por Silva (1984: 32-33) só a aprovação da
orgânica de planeamento prosseguiu, embora a sua implementação nunca tivesse
chegado a realizar-se por completo. Silva (1984: 29) e Cravinho (1984: 44) referem uma
crónica inexistência de planeamento de médio prazo e o segundo sublinha a
contradição existente entre a consagração constitucional do planeamento e a
interrupção da experiência de planeamento regional que vinha dos anos 60, quando não
existia Constituição que o previsse.
76 Em 1980, tendo em perspetiva a futura adesão à CEE, foi reconhecida a existência de
capacidade e experiência de planeamento nas Comissões de Coordenação Regional,
através da Resolução n.º 307/80, de 30 de agosto,10 que veio determinar que enquanto
não fossem criados os departamentos regionais de planeamento, estes serviços
 assumiriam a formulação de estudos de base para definição de estratégias de
desenvolvimento regional, de apoio à elaboração do plano anual e de médio prazo e de
preparação de programas de desenvolvimento regional.
77 Em 1986, a Lei Orgânica do Ministério do Plano e da Administração do Território
(MPAT) e, posteriormente, em 1991, a Lei Quadro do Planeamento (Lei n.º 43/91, de 27
de julho)11 vieram confirmar a atribuição a estas  Comissões  de funções de planeamento
do desenvolvimento económico e social ao nível regional, 12 até à instituição das regiões
administrativas,13 funções que estas entidades têm vindo a desempenhar, no quadro das
obrigações da política de desenvolvimento regional europeia e no quadro da política de
ordenamento do território e dos seus instrumentos de desenvolvimento territorial de
âmbito regional.
78 Esta decisão, estabilizada em 1991 e relançada em 1998, com a configuração do sistema
de gestão territorial, promoveu a integração da execução e condução técnica das
políticas de ordenamento do território, ambiente e desenvolvimento regional numa
mesma entidade regional, criando algumas condições para, na nossa ótica, cumprir
melhor os desígnios constitucionais atuais, na ausência de regiões administrativas.
79 Todavia, independentemente da questão da entidade competente ao nível regional, o
sistema de planeamento económico e social nunca chegou a ser efetivado na sua
plenitude e alcance, nem na versão original de 1976, o que facilmente se compreende,
nem na versão constitucional atual, resumindo-se às grandes opções do plano, anuais e
plurianuais, a algum planeamento setorial autónomo e, ao nível regional, por um lado,
aos planos e programas de desenvolvimento impostos pela política regional europeia
em cada ciclo de fundos comunitários e, por outro lado, aos Planos Regionais de
Ordenamento do Território (PROT), no quadro do Programa Nacional da Política de
Ordenamento do Território (PNPOT). Todavia, estes dois processos de planeamento e
gestão do desenvolvimento territorial regional, que deveriam ser integrados e articular
cabalmente o ordenamento do território com o desenvolvimento regional nem sempre
se articulam no tempo e na forma e, em determinadas situações, nem no espaço, e
escasseiam na objetivação do investimento público em articulação com as grandes
opções e o orçamento.
80 Salienta-se a propósito da articulação de instrumentos a nota de Canotilho e Moreira
(2007: 1033), que referem que o planeamento constitui o principal instrumento de
orientação pública da economia, quer por via da programação do investimento público,
quer pela articulação dos vários instrumentos de fomento e de incentivo, salientando a
função dos planos de coordenar e conferir unidade aos instrumentos públicos de
regulação económica.

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81 A elaboração da LBPOTU aprovada em 199814 teve esse objetivo de integração, podendo


ler-se na definição do seu âmbito (artigo 1.º, n.º 2 da Lei n.º 48/98, de 22 de setembro)
que “a política de ordenamento do território e de urbanismo define e integra as ações
promovidas pela administração pública, visando assegurar uma adequada organização e
utilização do território nacional, na perspetiva da sua valorização, designadamente no
espaço europeu, tendo como finalidade o desenvolvimento económico, social e cultural
integrado, harmonioso e sustentável do País, das diferentes regiões e aglomerados
urbanos”.
82 Salienta-se, a este propósito, o registo efetuado pelo ex-ministro João Cravinho,
responsável pela elaboração da LBPOTU, no evento de comemoração dos dez anos da
Lei, em 2010: “A Constituição da República considera tarefa fundamental do estado
assegurar um correto ordenamento do território. À obrigação constitucional tem
correspondido um claro défice de intervenção do estado. Importava assim criar um
corpo legislativo e doutrinário que constituísse referência para a coordenação das
políticas de base territorial e superasse o caráter residual habitualmente atribuído
pelas políticas de desenvolvimento económico e social às questões territoriais e ao
desenvolvimento urbano.” (Cravinho, 2010: 17). Refere ainda neste registo que a
ambição da LBPOTU foi a de “construir um sistema nacional capaz de colocar as
políticas territoriais no campo próprio da interação com as políticas de
desenvolvimento económico e social e definir um sistema de instrumentos
diferenciados, cada um do seu modo, mas em profunda articulação” (Cravinho, 2010:
18).
83 Estes desígnios não se cumpriram cabalmente. A política de ordenamento do território
tem tido dificuldades em congregar de forma eficaz e eficiente a tríade de políticas que
constituem o seu núcleo: o ordenamento do território, o ambiente e o desenvolvimento
regional, entre outras razões, por falta de operacionalização do sistema de planeamento
(faltam planos, falta dinâmica de planos e faltam processos de planeamento) e por falta
de aplicação do princípio da interação coordenada dos planos, um dos princípios
basilares do sistema que tem servido, sobretudo, para conformar prevalências entre
planos e pouco para gerir, com efetividade, os vários processos e conteúdos dos planos
e a aplicação concertada destes no tempo e no espaço.
84 Segundo Ferrão (2011: 25), “o ordenamento do território no contexto das políticas
públicas, corresponde, em Portugal, a uma política duplamente ‘fraca’; fraca em relação
à sua missão, dada a desproporção que se verifica entre a ambição dos objetivos visados
e as condições efetivas para os atingir; e fraca em relação aos efeitos indesejados
decorrentes de outras políticas, dada a sua vulnerabilidade em relação a impactes
negativos à luz dos objetivos e princípios de ordenamento do território”. Para esta
situação contribuem “uma cultura cívica de ordenamento do território incipiente; uma
cultura político-administrativa pouco favorável à coordenação intersetorial de base
territorial” (Ferrão, 2011: 131), entre outros aspetos.
85 Por sua vez, a política de desenvolvimento regional foi restringindo o seu foco à política
regional europeia e aos sucessivos períodos de programação de fundos estruturais, pelo
que atualmente, como salienta Figueiredo (2010: 65), “não existe um corpo estabilizado
de políticas públicas com essas características que possam considerar-se autónomas
face aos diferentes instrumentos de política com cofinanciamento comunitário”,
situação, segundo o autor, explicada por razões de natureza institucional, ligadas à
orgânica de planeamento e a elementos que marcam uma dependência de percurso.

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86 A política de ambiente tem prosseguido a sua afirmação sob proteção das imposições e
diretivas comunitárias, mas encontra fortes obstáculos à concretização dos desígnios do
desenvolvimento sustentável, por falhas de integração do ordenamento do território e
do desenvolvimento económico e social.
 
 O ordenamento do território como contribuinte da
concretização dos princípios de subsidiariedade,
autonomia, descentralização e participação
87 O princípio democrático do estado assenta em três componentes formais de
organização da democracia política: (i) a soberania ou vontade popular que concede o
poder político através de sufrágio universal, igual, direto e secreto; (ii) a participação
democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais, sob variadas formas e
instâncias; (iii) a descentralização, por via da autonomia local e regional (Canotilho e
Moreira, 2007: 206).
88 Da conjugação destas três componentes resultam, na nossa perspetiva, duas ideias
principais que perpassam o texto constitucional e conformam princípios fundamentais:
a participação e envolvimento dos cidadãos na definição e na aplicação das políticas
públicas (que visam a resolução dos problemas nacionais), como princípio básico; e a
territorialização das políticas públicas, através de várias formas de partilha de poderes,
de legitimação e de definição de espaços de racionalidade da decisão pública, enquanto
instrumento essencial da consagração daquele princípio.
89 Em complemento, referem os autores acima citados que o estado de direito
democrático visa a realização da democracia económica, social e cultural, traduzida nas
responsabilidades públicas de promoção do desenvolvimento económico, social e
cultural, de satisfação de níveis básicos de prestações para todos e de correção de
desigualdades sociais, entre outras dimensões, e, em simultâneo, o aprofundamento da
democracia participativa, na medida em que estas duas dimensões são fundamentais
para a democracia plena (Canotilho e Moreira, 2007: 209-211).
90 Como foi evidenciado nos pontos anteriores, a política de ordenamento do território,
em particular através do seu sistema de planeamento, tem um papel importante na
concretização dos princípios da subsidiariedade, da autonomia, da descentralização e
da participação, previstos na CRP e na ordem jurídico-administrativa
infraconstitucional desenvolvida ao abrigo dos princípios constitucionais e das reservas
de competência legislativa.
91 Sem querer repetir o que já foi explanado, passamos a sistematizar o contributo do
ordenamento do território para a concretização dos princípios de subsidiariedade,
autonomia, descentralização e participação.
92 Em primeiro lugar, o ordenamento do território contribui para estes princípios através
da concretização das funções de planeamento, gestão e prestação de serviços que
enformam as incumbências do estado, no seu sentido amplo, associadas à tarefa de
“assegurar um correto ordenamento do território”. Essas tarefas inscrevem-se:
93 quer no quadro dos princípios fundamentais — no âmbito do artigo 9.º, abarcando: a
proteção e valorização do património cultural, a defesa da natureza e do ambiente e a
preservação dos recursos naturais; a promoção do bem-estar e da qualidade de vida e a

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efetivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais; a promoção do


desenvolvimento territorial harmonioso; quer, também, no quadro das incumbências
prioritárias do estado no âmbito económico e social — no âmbito do artigo 81.º,
nomeadamente no que se refere a: promoção do aumento do bem-estar social e
económico e da qualidade de vida das pessoas no quadro de uma estratégia de
desenvolvimento sustentável; promoção da coesão económica e social de todo o
território nacional, orientando o desenvolvimento no sentido do crescimento
equilibrado de todos os setores e regiões e eliminando progressivamente as diferenças
económicas e sociais entre a cidade e o campo e entre o litoral e o interior; quer, ainda,
no âmbito do artigo 93.º — no que se refere à promoção de ordenamento agrário e
desenvolvimento florestal de acordo com condicionalismos ecológicos e sociais.
94 Em segundo lugar, o ordenamento do território contribui para os referidos princípios
através da organização e condução do processo de planeamento. A própria Constituição
impõe algumas tarefas e incumbências de índole processual e procedimental, como é
caso da tarefa de assegurar e incentivar a participação democrática dos cidadãos na
resolução dos problemas nacionais (artigo 9.º, alínea c), traduzida especificamente na
garantia da participação dos interessados na elaboração dos instrumentos de
planeamento urbanístico (artigo 65.º, n.º 5) e na obrigação de envolver os cidadãos nas
incumbências de assegurar o direito ao ambiente (artigo 66.º, n.º 2), e como é o caso do
princípio fundamental de planeamento democrático do desenvolvimento económico e
social (artigo 80.º), traduzido na obrigação de execução descentralizada dos planos
nacionais (artigo 91.º, n.º 3) e na composição do Conselho Económico e Social (artigo
92.º, n.º 2).
95 Em terceiro lugar, o contributo do ordenamento do território expressa-se na
materialização e partilha de poderes e na formatação da descentralização e
desconcentração de competências entre o estado, as regiões autónomas e as autarquias
locais e entre os vários níveis e âmbitos da atuação da administração pública. Salienta-
se que em vários domínios, nomeadamente ao nível dos direitos sociais e do
desenvolvimento económico e social, a Constituição institui um sistema de
competências concorrentes entre o estado, as regiões autónomas e as autarquias locais,
cuja delimitação foi formatada na LBPOTU e no Regime Jurídico dos Instrumentos de
Gestão Territorial.
96 Para este efeito a LBPOTU previu um sistema de planeamento que organiza os âmbitos
territoriais de atuação ao nível nacional, regional e local e define as esferas de
competência dos órgãos de cada nível, contando com a existência de regiões
administrativas no nível intermédio de organização administrativa, entre os municípios
e o estado, estabelecendo ainda as bases da relação entre o planeamento biofísico de
índole reguladora e o planeamento do desenvolvimento territorial, de caráter
estratégico, programático e orientador.
97 Salientam Miranda e Medeiros (2006: 1336) que o ordenamento do território e o
urbanismo constituem um domínio claramente aberto à intervenção concorrente do
estado, das regiões autónomas e das autarquias locais, e que a conjugação do artigo 65.º,
n.º 2, alínea a, e n.os 4 e 5, em coerência com a elevação do correto ordenamento do
território como tarefa fundamental do estado (artigo 9.º, alínea c), bem como o direito
ao ambiente (artigo 66.º, n.º 2), conferem destaque especial aos instrumentos de
planeamento, no espaço que lhes é balizado por lei.

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98 Efetivamente os planos são instrumentos conformadores da vida social e de


programação infraestrutural; projetam a realização do interesse público no futuro; têm
um conteúdo orientador do desenvolvimento territorial sustentável (económico, social,
ambiental e cultural); têm uma aplicabilidade dilatada no tempo, ao longo do horizonte
temporal da sua vigência; apresentam uma formatação dirigida a relações duradoras e
não determinadas com cidadãos; são conformadores dos próprios interesses públicos,
no quadro legal habilitantes. Neste âmbito da conformação da vida social abre-se amplo
espaço para a efetivação dos princípios da subsidiariedade, autonomia,
descentralização e participação.
99 A inscrição do ordenamento do território como tarefa fundamental, lida no contexto
das demais tarefas e incumbências do estado, realça a ligação entre os princípios
políticos fundamentais, associados ao estado social, ao estado de direito ambiental e ao
estado de direito democrático e reforça a efetivação da democracia económica, social e
cultural através dos direitos à habitação e urbanismo e ao ambiente e qualidade de vida,
dos objetivos de desenvolvimento económico e social harmonioso, equilibrado e
sustentável e dos desideratos da subsidiariedade e do aprofundamento da democracia
participativa.
100 Apesar de já estarem presentes no texto originário de 1976 as sucessivas revisões
constitucionais de 1982, 1989 e 1997 aprofundaram as referências à democracia
participativa com consequências na definição do sistema de gestão territorial,
afirmando o direito da participação através da audiência prévia na elaboração de
planos e da consulta pública das propostas dos planos, e de outras formas de estímulo
da cidadania territorial, indispensáveis à prossecução das tarefas do estado referentes
ao correto ordenamento do território e ao desenvolvimento económico e social.
101 A propósito do n.º 5 do artigo 65.º, Canotilho e Moreira (2007: 839-840) salientam que
esta é uma concretização, em sede de ordenamento e urbanismo, do direito de
participação dos interessados nas tarefas e estruturas da administração, previsto no
artigo 267.º, n.º 1. Para os autores: “A Constituição visou alicerçar a democracia
participativa no âmbito do planeamento territorial procurando estimular uma
cidadania territorial indispensável à prossecução das tarefas do estado referentes ao
correto ordenamento do território e desenvolvimento harmonioso.”
102 A democracia participativa concretiza-se por via da institucionalização de processos e
procedimentos, formais e informais, de participação e envolvimento dos cidadãos e de
grupos de interesse na formulação, execução e avaliação das políticas e dos
instrumentos de planeamento e gestão, estando o seu aprofundamento, naturalmente,
ligado ao bom funcionamento do sistema de planeamento.
103 No que se reporta à territorialização, os princípios da subsidiariedade, da autonomia
regional e do poder local, conjugados com os princípios instrumentais da
descentralização e da desconcentração, estão na origem de vários processos de reforma
da organização territorial da administração do estado e de associativismo municipal.
Todavia não foi, até à data, completado o quadro organizativo previsto na Constituição
para o poder local, com a criação de regiões administrativas.
104 A Constituição de 1976 consagrou a autonomia do poder local, dentro da unicidade do
estado, e estabeleceu a criação de autarquias locais, desde logo os municípios e
freguesias e, a seu tempo, as regiões administrativas e outras formas de organização

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territorial autárquica, passíveis de se constituir nas grandes áreas urbanas e nas ilhas
(artigo 236.º).
105 Embora a Constituição preveja, desde 1976, a criação de regiões administrativas, e
apesar de várias iniciativas legislativas dirigidas nesse sentido — nomeadamente, em
1982, a publicação dos princípios e opções da regionalização, em 1991, a Lei Quadro das
Regiões Administrativas e, em 1998, a lei da criação das oito regiões administrativas,
objeto de referendo — não foi até agora concretizada a criação efetiva das regiões,
tendo a questão ficado arredada do debate político principal a partir de 1998, com o
resultado negativo do referido referendo.
106 Como referem Canotilho e Moreira (2007: 1033, 1037), a Constituição prevê um sistema
de planeamento multinível, que inclui planos nacionais da responsabilidade do estado,
com declinações setoriais e regionais, mas também planos regionais das entidades
territoriais de âmbito regional, quer as regiões autónomas, com competências de
aprovar o seu plano de desenvolvimento económico e social e participar no nacional,
quer as regiões administrativas, com competências de elaboração de planos regionais e
participação na elaboração dos nacionais.
107 Na ausência das regiões administrativas, tem cabido às regiões-planeamento e às
respetivas CCDR, enquanto órgãos da administração periférica do estado competentes,
a execução e condução das políticas públicas de ordenamento do território, ambiente e
desenvolvimento regional, o apoio às autarquias e a programação e governação de
fundos estruturais e de investimento, prosseguindo os princípios constitucionais e as
diretrizes do quadro legal de desenvolvimento infraconstitucional, no âmbito regional.
 
 Conclusões
108 O ordenamento do território foi inscrito no texto original da Constituição de 1976,
como uma obrigação do estado transversal e enquadradora da efetivação dos direitos à
habitação e ao ambiente e qualidade de vida e como um instrumento necessário ao
planeamento de base económica.
109 Em 1989 reforçou o seu estatuto constitucional, ao ser assumido explicitamente como
uma tarefa fundamental e autónoma do estado, e ganhou amplo espaço no domínio do
planeamento do desenvolvimento económico e social, a partir da eliminação do
planeamento económico dirigista.
110 O estatuto constitucional que reconhecemos ao ordenamento do território tem
tradução na ordem jurídica infraconstitucional mas não tem, todavia, correspondentes
reflexos na prática, nem na importância social que lhe é, frequentemente, atribuída,
nem no seu efetivo desempenho no quadro das demais políticas públicas.
111 Para a concretização da ambição que a Constituição impõe falta prática de planeamento
de base territorial no seu ciclo processual completo, falta cumprir melhor o
planeamento do desenvolvimento económico e social, numa lógica do desenvolvimento
territorial alicerçado no ordenamento do território e no desenvolvimento regional, e
falta também, ou sobretudo, organização político-administrativa estável e consistente,
capaz de responder aos encargos e obrigações constitucionais.
112 Na presente legislatura o XXI Governo Constitucional inscreveu no seu programa uma
medida de reforma da administração territorial ao nível regional da qual se espera um
contributo significativo para o aprofundamento dos princípios constitucionais, no

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sentido do reforço da integração efetiva das políticas de ordenamento do território,


ambiente e desenvolvimento regional e da criação de uma nova racionalidade de
integração das dimensões territoriais das políticas setoriais.
113 Dadas as características da organização político-administrativa regional no continente,
importa na sede desta reforma debater com profundidade e sedimentar socialmente um
modelo de organização, funcionamento e delimitação de competências das CCDR que
viabilize e facilite a realização do que realmente interessa realizar no âmbito regional,
tendo em vista a promoção da organização territorial e do desenvolvimento económico
e social harmonioso, integrado e sustentável, como decorre da CRP.

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NOTAS
1. Segundo Miranda e Medeiros (2006: 185), o texto constitucional apresenta uma sequência
programática de crescente densificação, devendo entender-se as tarefas como fins ou grandes
metas a atingir pelo estado, e as incumbências como especificações de tarefas ao serviço de
direitos e interesses a salvaguardar ou a promover. Salientam que “a referência ao Estado
significa, aqui, o Estado — poder central, manifestado, primeiro, através dos órgãos de soberania
e, depois, através de outros órgãos e até de pessoas coletivas em que, por razões funcionais, se
desdobra. Já relativamente a muitas das incumbências que ao Estado são atribuídas no domínio
dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais o termo Estado abrange também as
regiões autónomas e, por vezes, as autarquias locais.”
2. A Lei n.º 48/1998, de 11 de agosto aprovou a primeira Lei de Bases da Política de Ordenamento
do Território e de Urbanismo perspetivando a existência de regiões administrativas mas
estabelecendo mecanismos supletivos de exercício de competências até à sua criação. Esta Lei foi
revista pela Lei n.º 31/2014, de 30 de maio
3. Embora o ordenamento do território não configure uma política comum, existe um historial de
construção de referenciais europeus partilhados, no âmbito de reuniões informais dos ministros
responsáveis pelo ordenamento do território, cujo expoente foi, uma década mais tarde, o
documento European Spatial Development Perspective.
4. Em 1986, sob a égide do ministro Valente de Oliveira, reformou-se o aparelho do estado com a
criação do Ministério do Plano e da Administração do Território, responsável pelo planeamento
regional e pela coordenação de políticas numa perspetiva global (incluindo a matéria económica),
pela administração local, pelo ordenamento do território e pelos recursos naturais e ambiente. As
Comissões de Coordenação Regional foram integradas no MPAT, na qualidade de órgãos da
administração periférica do estado, sendo-lhes atribuída a execução e promoção destas áreas de
política e a participação na programação e gestão dos fundos comunitários.
5. Salienta-se, em 1976, o papel de Gonçalo Ribeiro Teles enquanto subsecretário de estado do
Ambiente em conjunto com o secretário de estado da Habitação e Urbanismo, Nuno Portas, no I

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Governo Provisório e, no início dos anos 80, como Ministro da Qualidade de Vida, na projeção das
políticas de ambiente e na ascensão do planeamento biofísico.
6. Note-se que as expropriações deixam de ser associadas ao controlo do parque imobiliário,
passando a estar associadas à utilidade pública de execução dos planos urbanísticos.
7. A elaboração da Lei de Bases de 1998, promovida pelo ministro João Cravinho, constituiu um
marco fundamental na afirmação da política de ordenamento do território como política pública
autónoma e na construção de um sistema de gestão territorial e de coordenação das políticas de
base territorial, no espírito da CRP.
8. Na recente revisão da Lei de Bases (Lei n.º 31/2014, de 30 de maio) a distinção entre
“instrumentos de planeamento territorial” e “instrumentos de desenvolvimento territorial”
passou a ser efetuada através da terminologia “planos territoriais” e “programas territoriais”.
9. Isto não obstante o conceito de região Plano, evoluído para região-planeamento, ter mantido a
sua importância no planeamento do desenvolvimento territorial, continuando a ser a base das
circunscrições territoriais de atuação das CCDR.
10. Estas Comissões foram herdeiras dos Comissões Regionais de Planeamento, criadas no final
dos anos 60 no âmbito dos Planos de Fomento, estando “incumbidas de exercer, no respetivo
âmbito regional, a coordenação e compatibilização das ações de apoio técnico, financeiro e
administrativo às autarquias locais e executar, no âmbito dos planos regionais e em colaboração
com os serviços competentes, as medidas de interesse para o desenvolvimento da respetiva
região, visando a institucionalização de formas de cooperação e diálogo entre as autarquias locais
e o poder central” (Decreto-Lei n.º 494/79, de 21 de dezembro: artigo 3.º).
11. Aprovada a par com a aprovação da Lei Quadro das Regiões Administrativas (Lei n.º 56/91, de
13 de agosto).
12. Por via da Lei Orgânica do MPAT, as CCR passam a ser os “organismos incumbidos de, no
respetivo âmbito regional, coordenar e executar as medidas de interesse para o desenvolvimento
da respetiva região, promovendo as necessárias ações de apoio técnico e administrativo às
autarquias locais nela compreendidas, em ligação com os serviços centrais envolvidos na sua
realização”, e são identificadas como os órgãos regionais de planeamento para efeitos do previsto
no âmbito do sistema de planeamento (Decreto-Lei n.º 130/86, de 7 de junho, artigos 46.º e 47.º).
Em 1991, a Lei Quadro do Planeamento, estabeleceu que, “até à instituição das regiões
administrativas, incumbe às comissões de coordenação regional preparar e acompanhar a
execução dos planos regionais incluídos no Plano” (Lei n.º 43/91, de 27 de julho, artigo 12.º).
13. Segundo Canotilho e Moreira (2007: 1037), “deve distinguir-se, quanto aos planos regionais,
entre aqueles que não passam de desenvolvimentos regionais dos planos estaduais e os planos
próprios das regiões autónomas (artigo 227.º, n.º 1, alínea p) e das regiões administrativas (artigo
n.º 258.º), que constituem expressão da respetiva autonomia regional e autárquica”.
14. A Lei de Bases foi revista em 2014, encontrando-se atualmente em vigor a nova Lei da Política
Pública de Solos, de Ordenamento do Território e Urbanismo (Lei n.º 31/2014, de 30 de maio).

RESUMOS
O presente artigo tem como objetivo analisar o posicionamento do ordenamento do território na
Constituição da República Portuguesa, considerando os princípios e fundamentos constitucionais
e os desenvolvimentos introduzidos pelos processos de revisão. Com este objetivo analisa-se a
inscrição do ordenamento do território como tarefa fundamental do estado, bem como a sua

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associação aos direitos à habitação e urbanismo e ao ambiente e qualidade de vida, à promoção


do desenvolvimento económico e social e da coesão territorial e à concretização dos princípios da
subsidiariedade, autonomia, descentralização e participação, apresentando-se uma leitura de
contexto das alterações verificadas. Conclui-se que o estatuto constitucional do ordenamento do
território é amplo, demonstrando uma importância social que não é reconhecida na sua aplicação
prática.
Constituição da República Portuguesa, ordenamento do território, habitação e urbanismo,
ambiente e qualidade de vida, desenvolvimento económico e social, região-planeamento

This article aims to analyse the position of spatial planning in the Constitution of the Portuguese
Republic (CRP), while considering the various constitutional principles and bases and the
developments introduced by the periodic revisions since the original text in 1976. The authors
look at how the CRP makes spatial planning one of the state’s fundamental tasks, and at how it is
linked to the rights to housing and urbanism, the environment and quality of life, the promotion
of economic and social development, territorial cohesion and the implementation of the
principles of subsidiarity, autonomy, decentralisation and participation, presenting a contextual
reading of the changes over the years. They conclude that the constitutional status of spatial
planning is broad, demonstrating a theoretical / conceptual social importance that is not fully
reflected in its practical application.

Cet article analyse la place de l’aménagement du territoire dans la Constitution portugaise, en


considérant les principes et fondements constitutionnels et les évolutions introduites par les
processus de révision. Il analyse l’aménagement du territoire en tant que devoir fondamental de
l’Etat et son association aux droits au logement et à l’urbanisme ainsi qu’à l’environnement et à
la qualité de vie, à la promotion du développement économique et social et de la cohésion
territoriale et à la mise en œuvre des principes de subsidiarité, d’autonomie, de décentralisation
et de participation, en présentant une lecture de contexte des changements observés. L’article
conclut que le statut constitutionnel de l’aménagement du territoire est vaste, ce qui démontre
une importance sociale qui n’est pas reconnue dans son application pratique.

Este artículo tiene como objetivo analizar la posición de la ordenación del territorio en la
Constitución Portuguesa, considerando los principios y los fundamentos constitucionales y
desarrollos introducidos por el proceso de revisión. Con este objetivo se analiza la ordenación del
territorio como una tarea fundamental del Estado, así como su asociación con los derechos a la
vivienda y urbanismo y el medio ambiente y calidad de vida, la promoción del desarrollo
económico y social y la cohesión territorial y la aplicación de los principios de subsidiariedad, la
autonomía, la descentralización y la participación, presentando una lectura contexto de los
cambios observados. Llegamos a la conclusión de que la situación constitucional de la ordenación
del territorio es amplia, lo que demuestra una importancia social que no se reconoce en su
aplicación práctica.

ÍNDICE
Mots-clés: Constitution portugaise, aménagement du territoire, logement et urbanisme,
environnement et qualité de vie, développement économique et social, région-planification
Palabras claves: Constitución Portuguesa, ordenación del territorio, vivienda y urbanismo,
medio ambiente y calidad de vida, desarrollo económico y social, región de planificación
Keywords: Portuguese Constitution, spatial planning, housing and urbanism, environment and
quality of life, economic and social development, planning region

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AUTOR
FERNANDA DO CARMO
Doutoranda em Políticas Públicas, Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Rua da
Figueirinha n.º 25, 2º dt.º, Oeiras, Portugal.
fmr.carmo@gmail.com

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O território na constituição da
República Portuguesa (1976-2005):
dos preceitos fundadores às
políticas de território do futuro
Territory in the Constitution of the Portuguese Republic (1976-2005): from the
founding precepts to the territorial policies of the future
Le territoire dans la Constitution Portugaise (1976-2005): des principes
fondateurs aux politiques de territoire du futur
El territorio en la Constitución de la República Portuguesa (1976-2005): de los
preceptos fundadores a las futuras políticas del territorio

João Ferrão

 
 Introdução
1 Este texto centra-se na relação território — Constituição da República Portuguesa
(CRP), analisando-a a partir de três questões: (i) de que forma é o “território”
considerado na versão originária da CRP (1976)?; (ii) qual a evolução ocorrida desde
então até à versão em vigor em 2016 (aprovada em 2005)?; (iii) em que medida
condiciona a atual CRP a formulação e execução de uma nova geração de políticas de
território? A resposta a estas três questões permite identificar as questões que os
deputados da Assembleia da República consideraram pertinente introduzir em
contextos sociopolíticos e temporais distintos no domínio em análise e esclarecer até
que ponto os novos conteúdos entretanto aprovados favorecem, obstaculizam ou são
neutros em relação ao desenho de novas políticas de território, tanto explícitas como
implícitas.
 

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 O “território” na Constituição da República


Portuguesa de 1976 (CRP76)
2 A versão originária da Constituição da República Portuguesa, aprovada em 2 de abril de
1976, inclui diversas menções explícitas, embora dispersas, ao “território”. Essas
referências podem ser agregadas em torno de quatro grandes desígnios:
3 a)     O território como elemento-chave da soberania nacional Nos princípios fundamentais, a
Constituição de 1976 consagra o artigo 5.º ao “território”, identificando a base
geográfica do país nas suas componentes tanto terrestre (espaço definido no continente
europeu e arquipélagos dos Açores e da Madeira) como marítima (águas territoriais e
fundos marinhos). Existia ainda uma menção ao estatuto particular do território de
Macau. Este artigo, ao sublinhar a eventualidade de retificação de fronteiras no n.º 2,
tem a curiosidade de revelar que esta não é uma questão fechada, ficando por
esclarecer se essa possibilidade se aplica à fronteira terrestre (Olivença?), à marítima
(zona económica exclusiva?) ou a ambas. Ainda no âmbito dos princípios fundamentais,
merece realce o artigo 6.º (estado unitário), que consagra a autonomia das autarquias
locais e a descentralização democrática da administração pública (n.º 1) e reconhece o
estatuto político-administrativo próprio das regiões autónomas no que diz respeito aos
arquipélagos dos Açores e da Madeira. O conceito de território como elemento-chave da
soberania nacional é confirmado na parte III (“Organização do poder político”), no
título X, relativo às forças armadas, através do artigo 273.º, n.º 1, onde se refere que “As
Forças Armadas Portuguesas garantem a independência nacional, a unidade do estado e
a integridade do território.” O território como elemento constitutivo da soberania
nacional surge, assim, bem destacado em torno da trilogia “espaço delimitado por
fronteiras — organização político-administrativa — papel das forças armadas”.
4 b)     O território no contexto dos direitos e deveres fundamentais O segundo grande desígnio
a que o território surge associado diz respeito aos direitos e deveres fundamentais. Na
parte I da Constituição, relativa aos direitos e deveres fundamentais, existem diversas
referências explícitas ao “território”. No título I (“Princípios gerais”), artigo 13.º
(“Princípio da igualdade”), n.º 2, estabelece-se que “Ninguém pode ser privilegiado,
beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever” em
razão de diversos fatores, entre eles o “território de origem”. A interpretação e a
aplicação deste princípio, que hoje poderíamos designar “princípio da justiça espacial”,
levantam questões sensíveis do ponto de vista do seu âmbito de incidência, da definição
das condições de acesso a serviços básicos de interesse comum ou, ainda, dos modos de
garantir a sua efetiva concretização. Por exemplo, as recentes opções de racionalização
das redes de serviços públicos (saúde, educação, tribunais, etc.) refletem uma aplicação
insuficiente deste princípio como critério de referência na definição das soluções
adotadas. Ainda no âmbito do título I (“Princípios gerais”), o artigo 23.º (“Extradição e
expulsão”) defende a não extradição e expulsão de cidadãos portugueses do território
nacional, um aspeto que tem vindo a ganhar nova complexidade, nomeadamente com a
multiplicação de situações de plurinacionalidade e de globalização de diferentes tipos
de insegurança. No contexto do título II (“Direitos, liberdades e garantias”), o artigo 44.º
(“Direito de deslocação e de emigração”) estabelece que a todos os cidadãos é garantida
quer a livre mobilidade no interior do país, quer o direito de emigrar ou sair do país e
de regressar. O estabelecimento do direito de deslocação e de emigração foi
particularmente relevante face ao contexto político prevalecente durante o Estado

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Novo, caracterizado por fortes restrições, tanto sociais (por género, por exemplo) como
políticas, à livre mobilidade dos cidadãos. Um novo significado ao objetivo e ao
conteúdo do artigo 44.º da Constituição de 1976 é conferido atualmente por fatores tão
diversos como a criação do Espaço de Schengen (que assegura a livre circulação de
pessoas dentro dos países signatários, no caso de Portugal desde 1991) e a multiplicação
de programas da União Europeia de apoio à mobilidade de pessoas (de que o Programa
Erasmus, nas suas diversas versões, constitui a principal referência), ou, com um
significado totalmente distinto, a emigração induzida pelo recente contexto de crise e
subsequentes medidas de austeridade ou a ascensão de nacionalismos acompanhada
pela construção de barreiras e muros fronteiriços por governos que invocam questões
de segurança face a possíveis ataques terroristas ou a fluxos incontrolados de
deslocados. No título III (“Direitos e deveres económicos, sociais e culturais”), o
capítulo III, relativo a direitos e deveres sociais, inclui referências ao território mas
atribui-lhe um caráter supletivo em relação a temas específicos: a habitação (artigo
65.º) e o ambiente e a qualidade de vida (artigo 66.º). No primeiro caso (habitação), o n.º
2 do referido artigo estipula que “Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao
estado”, entre outros aspetos, “Programar e executar uma política de habitação
inserida em planos de reordenamento geral do território e apoiada em planos de
urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de
equipamento social.” No segundo caso (ambiente e qualidade de vida), o n.º 2 do artigo
66.º refere que “Incumbe ao estado, por meio de organismos próprios e por apelo a
iniciativas populares”, entre outros aspetos, “Ordenar o espaço territorial de forma a
construir paisagens biologicamente equilibradas.” Ou seja, o ordenamento do território
não é apresentado de forma autónoma, como um objetivo em si próprio, mas antes
como um meio associado a duas finalidades específicas: o direito a uma habitação
condigna (artigo 65.º, n.º 1) e o direito a um “ambiente de vida humano, sadio e
ecologicamente equilibrado” (artigo 66.º, n.º 1). Recorde-se que a Lei de Bases da
Política de Ordenamento do Território e de Urbanismo (Lei n.º 48/98, de 11 de agosto)
só viria a ser aprovada 22 anos mais tarde. Apenas com a aprovação desta lei ganha o
ordenamento do território o estatuto de política pública autónoma. Em suma, e no que
diz respeito aos direitos e deveres fundamentais, o “território” merece uma menção
explícita em cinco domínios: princípio da igualdade; extradição e expulsão; direito de
deslocação e de emigração; habitação; ambiente e qualidade de vida. Importa ponderar
em que medida as alterações políticas, sociais e culturais entretanto ocorridas, ou
previsíveis a curto ou médio prazo, justificam tanto a introdução de alterações em
alguns dos referidos artigos como a reinterpretação do seu significado e uma maior
consciencialização das suas limitações e implicações. A atual versão da Constituição (VII
revisão, 2005) irá dar uma resposta parcial a algumas das questões levantadas.
5 c)     O território como referencial de planificação regional da organização económica O terceiro
grande desígnio a merecer uma referência explícita à componente territorial diz
respeito à planificação regional da organização económica, uma preocupação que foi
ganhando força no âmbito dos diversos Planos de Fomento, 1 sobretudo no contexto
modernizador do período marcelista, e que agora recebe um novo estímulo a partir do
conceito de planificação central então vigente nos designados países socialistas da
Europa de Leste. Não surpreende, portanto, que a parte II (“Organização económica”)
da CRP76 inclua diversas referências explícitas ao território, sobretudo na ótica do
combate às assimetrias territoriais e da planificação regional da organização
económica. No título II (“Princípios gerais”), o artigo 81.º, sobre as incumbências

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prioritárias do estado, consagra dois dos seus 14 itens a questões territoriais: alínea e —
“Orientar o desenvolvimento económico e social no sentido de um crescimento
equilibrado de todos os setores e regiões”; e alínea i — “Eliminar progressivamente as
diferenças sociais e económicas entre a cidade e o campo”. Nos artigos do título III
(“Plano”) são diversas as menções explícitas ao “território” na sua dimensão regional. O
n.º 2 do artigo 91.º (“Objetivos do Plano”) refere que “O Plano deve garantir o
desenvolvimento harmonioso dos setores e regiões” e “a justa repartição individual e
regional do produto nacional”. No n.º 3 do artigo 94.º estabelece-se que “O implemento
[sic] do Plano deve ser descentralizado, regional e setorialmente, sem prejuízo da
coordenação central, que compete, em última instância, ao Governo.” Finalmente, no
artigo 95.º (“Regiões Plano”) defende-se que: “1. O país será dividido em regiões Plano
com base nas potencialidades e nas características geográficas, naturais, sociais e
humanas do território nacional, com vista ao seu equilibrado desenvolvimento e tendo
em conta as carências e os interesses das populações; 2. A lei determina as regiões Plano
e define o esquema dos órgãos de planificação regional que as integram.” Por último, no
título IV (“Reforma agrária”), para além de outras menções implícitas a questões de
natureza territorial, o artigo 98.º (“Minifúndios”) salienta a especificidade que a
reforma agrária deverá assumir em “regiões minifundiárias” de forma a adequar-se à
dimensão das explorações (“integração cooperativa de diversas unidades”, ou
“emparcelamento ou arrendamento por mediação do organismo coordenador da
reforma agrária”). Em termos genéricos, as menções ao “território” efetuadas na parte
II (“Organização económica”) da CRP76 prendem-se, sobretudo, com objetivos de
políticas de desenvolvimento regional, então bastante valorizadas em todos os países
europeus. Mas incluem igualmente objetivos de políticas que hoje designamos de
coesão territorial ou de desenvolvimento rural.
6 d)     O território como base de organização do poder político Este é o quarto desígnio em que
o “território” surge associado à CRP76. A parte III (“Organização do poder político”)
inclui as referências mais substanciais, tendo como objeto a organização do poder
político: sistema eleitoral (título IV, artigo 152.º — “Círculos eleitorais”); regiões
autónomas (título VII) e poder local (título VIII). No que se refere ao título VIII (“Poder
Local”), os artigos 238.º (“Categorias de autarquias locais e divisão administrativa”),
256.º (“Instituição das regiões”) e 263.º (“Distritos”) são particularmente relevantes, não
só pela importância atribuída ao papel e à democratização do poder local, mas também
pelas interações que estabelecem entre si. As autarquias locais incluem as freguesias, os
municípios e as regiões administrativas (artigo 238.º) e estas últimas devem
corresponder às “regiões-plano” (artigo 256.º), estipulando-se que, enquanto as regiões
não estiverem instituídas, subsistirá a divisão distrital (artigo 263.º). Na ausência da
instituição de regiões administrativas, esta situação, a que entretanto se adicionou, em
1986, a adoção da nomenclatura das unidades territoriais para fins estatísticos (NUTS I,
II e III) e, em 2008, a transformação das NUTS III em áreas metropolitanas e
comunidades intermunicipais, tornou-se complexa e disfuncional: a coexistência, no
Continente, de distritos, NUTS II / regiões-plano (CCDR) e NUTS III / áreas
metropolitanas e comunidades intermunicipais cria uma relação pouco clara, em
termos de legitimidade democrática e de eficiência da ação pública, entre
representatividade política por via eletiva, planeamento desconcentrado da
responsabilidade do governo e atribuições e competências comuns a municípios
pertencentes a uma mesma NUTS III. O capítulo V do título VIII (“Poder local”), sobre
organizações populares de base territorial, é particularmente interessante à luz de

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tendências recentes de reforço da participação dos cidadãos ao nível local e


comunitário. No artigo 264.º (“Constituição e área”) afirma-se o seguinte: “A fim de
intensificar a participação das populações na vida administrativa local podem ser
constituídas organizações populares de base territorial correspondentes a áreas
inferiores à da freguesia.” Essas organizações incluem duas figuras: a assembleia de
moradores e a comissão de moradores. Independentemente do posterior historial de
declínio desses dois tipos de organização popular de base territorial, nos últimos anos
as práticas de mobilização, envolvimento e participação dos cidadãos nas políticas
públicas e, de forma mais genérica, na vida pública têm vindo a ser estimuladas não só
por instrumentos propostos pela Comissão Europeia e pelo Parlamento Europeu (por
exemplo, as iniciativas de desenvolvimento local de base comunitária (DLBC), criadas
para o ciclo de programação de fundos europeus 2014-2020), mas também como
resposta a uma sociedade civil mais pró-ativa, tanto ao nível dos cidadãos como das
associações de desenvolvimento local e territorial (ADLT) e outras organizações não
governamentais de proximidade. Uma leitura conjunta das várias referências à
dimensão “território” na Constituição da República Portuguesa de 1976 permite
identificar a coexistência de aspetos de natureza distinta: aspetos clássicos, como os
que dizem respeito ao território como elemento-chave da soberania nacional; aspetos
modernizadores, que consagram temas e preocupações emergentes nos anos 60
(planeamento regional, acesso à habitação em áreas urbanas, ambiente e qualidade de
vida); e aspetos inovadores ou mesmo disruptivos, como a instauração das regiões
autónomas e do poder local. Vários desses aspetos virão a beneficiar, uma década mais
tarde, da adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia (1986), que
contribuiu para “europeizar” princípios (subsidiariedade, coesão, desenvolvimento
sustentável, etc.) e políticas (desenvolvimento regional, desenvolvimento rural,
políticas urbanas, ordenamento do território, etc.), mesmo em domínios que não são da
competência formal da União Europeia (cidades e ordenamento do território, por
exemplo) (Costa et al., 2006; Alves, 2007; Ferrão 2010a, 2010b e 2014; Campos e Ferrão,
2015).
 
 Constituição da República Portuguesa de 2005: uma
visão renovada do “território”?
7 Através da comparação da atual Constituição da República Portuguesa (VII revisão
constitucional, 2005) com a versão fundadora (1976) no que se refere a aspetos
explicitamente relacionados com o “território” é possível identificar alterações ou
aperfeiçoamentos, de que salientamos os que nos parecem mais significativos, num
total de nove.
8 Em primeiro lugar, e no que se refere aos princípios fundamentais, o artigo 7.º
(“Relações internacionais”) passa a integrar o princípio da subsidiariedade e o conceito
de coesão económica, social e territorial, associando-os à construção e ao
aprofundamento da União Europeia. O alinhamento com princípios-chave do projeto
europeu não podia ser mais claro.
9 Em segundo lugar, e ainda no âmbito dos princípios fundamentais, o artigo 9.º (“Tarefas
fundamentais do estado”) introduz como elementos novos as tarefas de “assegurar um
correto ordenamento do território” e de “promover o desenvolvimento harmonioso de
todo o território nacional, tendo em conta, designadamente, o caráter ultraperiférico

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dos arquipélagos dos Açores e da Madeira”. A definição do ordenamento do território


como tarefa fundamental do estado vai criar condições para que este domínio inicie um
processo de autonomização enquanto domínio específico das políticas públicas.
10 Em terceiro lugar, em diversos artigos sobre direitos, liberdades e garantias pessoais
(parte I, título II, capítulo I) são reforçadas as referências ao território nacional,
nomeadamente através da introdução do artigo 33.º sobre expulsão, extradição e direito
de asilo, um tema que virá a ganhar um relevo então insuspeitado nos últimos anos com
a multiplicação de situações de mobilidade forçada e de fluxos diversificados de
deslocados e candidatos ao estatuto de refugiado.
11  Em quarto lugar, e no âmbito dos direitos e deveres sociais (parte I, título III, capítulo
II), o artigo 65.º alarga a denominação inicial de “Habitação” para “Habitação e
urbanismo”, sendo adicionados dois novos pontos que incidem sobre questões
relacionadas com instrumentos de planeamento e com leis de ordenamento do
território e urbanismo (regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos,
expropriação de solos, participação dos interessados na elaboração dos instrumentos de
planeamento físico e urbanístico). Esta alteração concretiza e reforça a definição
inovadora do ordenamento do território como tarefa fundamental do estado
anteriormente salientada.
12 Em quinto lugar, a ainda no âmbito dos direitos e deveres sociais (parte I, título III,
capítulo II), o n.º 2 do artigo 66.º alarga substancialmente a incumbência de o estado de
“Ordenar o espaço territorial de forma a construir paisagens biologicamente
equilibradas”, consagrada na versão da Constituição de 1976, para “Ordenar e promover
o ordenamento do território, tendo em vista uma correta localização das atividades, um
equilibrado desenvolvimento socioeconómico e a valorização da paisagem.” O conceito
de ordenamento do território como política pública é, de novo, reforçado.
13 Em sexto lugar, e no que se refere aos princípios gerais de organização económica
(parte II, título I), o artigo 81.º (“Incumbências prioritárias do estado”) contempla como
elemento inovador a promoção da “coesão económica e social de todo o território
nacional” e adiciona às diferenças “entre a cidade e o campo” as que ocorrem “entre o
litoral e o interior”. É, por outro lado, introduzido um novo artigo sobre o domínio
público do estado, das regiões autónomas e das autarquias locais (artigo 84.º), onde se
identificam os tipos de espaços a salvaguardar em nome do interesse público.
14 Em sétimo lugar, e também no contexto dos princípios gerais de organização
económica, mas agora na parte II, título II, é possível identificar alterações
significativas, aliás indiciadas pela modificação da epígrafe inicial de “Plano” para
“Planos”. O conceito de plano nacional é substituído pelo de “planos de
desenvolvimento económico e social” (artigo 90.º), os quais podem integrar programas
específicos de âmbito territorial e devem ser executados de forma regional e
setorialmente descentralizada (artigo 91.º). Existe, claramente, um distanciamento em
relação aos modelos de planeamento central prevalecentes durante décadas nos países
socialistas da então designada Europa de Leste.
15  Em oitavo lugar, e de entre as diversas alterações incluídas no título III (“Assembleia da
República”) da parte III (“Organização do poder político”), duas merecem ser
salientadas na ótica do “território”: por um lado, o desaparecimento da referência aos
distritos no artigo relativo aos círculos eleitorais (artigo 149.º); por outro, a inclusão do
regime geral de arrendamento rural e urbano e das bases do ordenamento do território
e do urbanismo como matérias da exclusiva competência da Assembleia da República

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(salvo autorização ao governo) (artigo 165.º). Refira-se, em relação ao primeiro aspeto,


que a única menção aos distritos que persiste na atual Constituição foi remetida para o
artigo 291.º, incluído nas “Disposições finais e transitórias”, e que estipula no seu n.º 1
que “Enquanto as regiões administrativas não estiverem concretamente instituídas,
subsistirá a divisão distrital no espaço por elas não abrangido.”
16 Por último, no que se refere às regiões administrativas (parte III, título VIII — “Poder
local”), as alterações introduzidas, para além de deixarem transparecer o impasse em
que a sua criação se encontra através do desdobramento do artigo 256.º (“Instituição
das regiões”) da versão originária da Constituição em dois novos artigos (255.º —
“Criação legal”; e 256.º — “Instituição em concreto”), contempla um artigo adicional
(258.º — “Planeamento”), que dispõe que “As regiões administrativas elaboram planos
regionais e participam na elaboração dos planos nacionais.”
17 Outras alterações foram, naturalmente, efetuadas nos domínios comentados na secção
anterior relativa à CRP76. Mas as nove modificações assinaladas permitem destacar as
seguintes mudanças:
18 um crescente alinhamento com princípios, prioridades e conceitos em vigor ou
comummente utlizados no seio da União Europeia ou, em alguns casos,
internacionalmente; o reforço da relação entre os temas “território” e “segurança”;
uma visão mais rica das assimetrias territoriais existentes no país; o reconhecimento
das políticas e dos instrumentos de ordenamento do território e urbanismo como
domínio autónomo; o reforço da intervenção do nível regional na elaboração de planos
nacionais; a persistência de uma situação anómala em torno da não instituição de
regiões administrativas e da persistência dos distritos enquanto elementos
organizadores da territorialidade do poder político.
19 As alterações introduzidas não só atualizaram princípios e conceitos, como
representam uma verdadeira mudança paradigmática: a substituição das tradições de
planeamento regional e urbanístico, que mobilizavam instituições e comunidades
técnico-científicas distintas e com escassa ou mesmo nula relação entre si, por uma
visão mais ampla e integradora de ordenamento do território e urbanismo, que por esta
via deixam de ser basicamente considerados como um meio visando outras finalidades
(habitação; ambiente e qualidade de vida), conforme sucedia na versão originária da
Constituição, para se constituir como um domínio autónomo.
20 Permanecem, no entanto, diversos equívocos e omissões no texto constitucional de
2005. Por exemplo, “território de origem” equivale a “território de residência”? Se
assim for, o artigo 13.º (“Princípio da igualdade”), n.º 2, que estabelece que “Ninguém
pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento
de qualquer dever” em razão do “território de origem”, deverá ser levado em conta em
decisões públicas com impacte direto no quotidiano das populações locais, como sucede
com a reconfiguração territorial das redes de equipamentos públicos? E por que motivo
são as três componentes da coesão — económica, social e territorial — consagradas no
artigo que se refere às relações internacionais / União Europeia (artigo 7.º), mas não no
artigo que identifica as incumbências prioritárias do estado (artigo 81.º), que omite a
componente territorial?
 

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 Constituição: um entrave a uma nova geração de


políticas públicas de território?
21 Serão as alterações introduzidas entre as versões de 1976 e 2005 da CRP suficientes para
formular uma nova geração de políticas de território adequadas às prioridades e
necessidades atuais e previsíveis? Ou, pelo contrário, essa nova geração exige a
introdução de novas modificações, ainda que pontuais?
22 Comecemos por esclarecer o que entendemos por políticas públicas de território. Na
verdade, esta expressão inclui dois grandes subconjuntos (Ferrão, 2015): as políticas
explícitas, como, por exemplo, o ordenamento do território e as políticas de
desenvolvimento territorial (regional, rural, urbano, local); e as políticas implícitas, isto
é, as políticas que, sendo setoriais, estruturam fortemente o território pelos impactos
que desencadeiam no que diz respeito ao seu uso, ocupação e organização: política
agrícola, política florestal, política de transportes, política de conservação da natureza
e biodiversidade, etc.
23 Quanto às restantes políticas, elas podem ser territorialmente cegas, ou seja, aplicadas
de forma uniforme em todo o espaço nacional, ou parcialmente territorializadas, isto é,
manterem a sua natureza setorial mas ajustarem algumas das suas componentes às
particularidades de diferentes áreas do país (por exemplo, políticas de emprego,
educação, saúde, etc.). A territorialização de políticas setoriais, quando existe, pode
resultar de opções tomadas centralmente, ao nível do governo da República, ou
decorrer de processos de desconcentração (órgãos periféricos da administração) e de
descentralização (governos regionais e poder local).
24 Qual é, então, a relação existente entre a atual Constituição e as políticas de território,
aqui entendidas de forma ampla: políticas de território explícitas, políticas de território
implícitas e políticas setoriais parcialmente territorializadas?
25 Estando em jogo políticas muito distintas, não é possível apresentar uma resposta única
e universal. Contudo, e em termos genéricos, parece legítimo afirmar-se que, dada a sua
natureza e na sua versão atual, a Constituição condiciona mais o modo como as políticas
de território são elaboradas e executadas do que, de forma direta, os seus conteúdos.
Claro que a influência do modo como as políticas são elaboradas e aplicadas (“quem
decide o quê”) tem consequências significativas nos respetivos conteúdos. Mas a
afirmação efetuada visa salientar que, em termos práticos, o principal ponto de
articulação entre a Constituição e as políticas de território reside na organização do
poder político, e (já) não tanto nos princípios, direitos, liberdades, garantias e deveres
hoje constitucionalmente consagrados.
26 Este aspeto é sobretudo significativo no atual contexto de crescente “europeização” das
políticas explícitas de território, mesmo em domínios, como o ordenamento do
território ou as políticas urbanas, que não são da competência formal da União
Europeia. Repartição vertical e horizontal de atribuições e competências, participação
pública nas várias fases do ciclo de políticas (formulação, execução, monitorização,
avaliação), governança multiescala e multinível, inovação institucional e modos
colaborativos de decisão tornam-se, assim, os elementos-chave entre o conteúdo da
Constituição da República Portuguesa e a existência de políticas de território com
legitimidade democrática e aceitação social e que, ao mesmo tempo, sejam eficientes e
justas. Alguns destes aspetos necessitam do respaldo do texto constitucional,

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eventualmente clarificado em aspetos pontuais. Mas, para a maior parte deles, a


Constituição, na sua atual versão, é relativamente neutra.
 
 Pensar o futuro: questões a colocar, aspetos a
debater
27 Face ao conjunto de observações anteriormente apresentadas, e dada a diferente
natureza das diversas políticas de território e das entidades por elas responsáveis,
importa debater e aprofundar algumas questões:
28 Em que medida são as atuais políticas explícitas e implícitas de território, bem como os
processos de territorialização de políticas setoriais, condicionados, positiva ou
negativamente, pelos diversos aspetos consagrados na Constituição (princípios,
direitos, deveres, instrumentos, organização do poder político, etc.)? Garante a
Constituição, na sua atual formulação, as condições para conceber uma nova geração de
políticas de território e de processos de territorialização de políticas setoriais sensíveis
à diversidade territorial do país? Podem essas políticas e esses processos concretizar-se
de forma democrática, eficiente e justa tendo por base as garantias conferidas
atualmente pela Constituição? São a crescente “europeização” das políticas de
território e o aumento da sua exposição a agendas globais (alterações climáticas,
segurança internacional, globalização económica, etc.) compatíveis com a atual
Constituição?
29 Estes são exemplos de questões que importa debater e aprofundar, para garantir uma
relação virtuosa entre o potencial presente na versão em vigor da Constituição da
República Portuguesa e a formulação e concretização de políticas de território
democráticas, eficientes e justas.

BIBLIOGRAFIA
 Alves, Rui (2007), Políticas de Planeamento e de Ordenamento do Território no Estado Português, Lisboa,
Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia.

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genealógica”, ICS Working Papers, 1.

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Simões (coord.), Geografia de Portugal, volume 4: Planeamento e Ordenamento do Território, Lisboa,
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em Juventude Socialista (org.), Socialismo no Séc. XXI, Lisboa, Esfera do Caos, pp. 62-79.

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Fronteiras, 26-27, pp. 77-84.

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Ferrão, João (2011), O Ordenamento do Território como Política Pública, Lisboa, Fundação Calouste
Gulbenkian.

Ferrão, João (2015), “Ambiente e território: para uma nova geração de políticas com futuro”, em
Viriato Soromenho-Marques e Paulo Trigo Pereira (orgs.), Afirmar o Futuro. Políticas Públicas para
Portugal,volume II: Desenvolvimento Sustentável, Economia, Território e Ambiente, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, pp. 328-336.

NOTAS
1. I Plano de Fomento: 1953-58; II Plano de Fomento: 1959-64; III Plano de Fomento: 1967-73 e IV
Plano de Fomento: 1974-79. Este último nunca foi aplicado, dada a eclosão da Revolução de 25 de
Abril de 1974.

RESUMOS
Este texto analisa a relação território — Constituição da República Portuguesa (CRP) a partir de
três questões: (i) de que forma é o “território” considerado na versão originária da CRP (1976)?;
(ii) qual a evolução ocorrida desde então até à versão em vigor em 2016 (aprovada em 2005)?; (iii)
em que medida condiciona a atual CRP a formulação e execução de uma nova geração de políticas
de território? A comparação das versões de 1976 e 2005 da Constituição permite identificar nove
alterações mais relevantes, com destaque para a crescente “europeização” de princípios e
conceitos e para a emergência do ordenamento do território como política pública autónoma. A
Constituição em vigor, apesar de algumas limitações, não parece constituir um obstáculo à
formulação de uma nova geração de políticas de território mais eficientes, democráticas e justas,
embora a atual organização político-administrativa condicione a participação das várias
entidades públicas no desenho e implementação dessas políticas.

This paper analyses the relationship between territorial issues and the Constitution of the
Portuguese Republic (CRP) from three standpoints: (i) how is territory considered in the original
1976 version of the CRP?; (ii) what lasting changes did the 2005 revision make?; and (iii) to what
extent is the current CRP affecting the design and implementation of a new generation of
territorial policies? A comparison of the 1976 and 2005 texts identifies nine main changes,
including the growing “Europeanisation” of a number of key principles and concepts and the
emergence of spatial planning as an autonomous public policy. Despite its shortcomings, the
current version of the Constitution does not seem to be an obstacle to the formulation of a new
generation of more efficient and democratic and fairer territorial policies. However, the current
political-administrative organisation influences the participation of different public entities in
the design and implementation of those policies.  

Ce texte analyse la relation territoire-Constitution de la République Portugaise (CRP) à partir de


trois questions: (i) comment le “ territoire ” est-il considéré dans la version originale de la CRP
(1976) ? ; (ii) quelle a été son évolution jusqu’à la version en vigueur en 2016 (adoptée en 2005)? ;
(ii) dans quelle mesure la CRP actuelle conditionne la formulation et la mise en œuvre d’une
nouvelle génération de politiques territoriales ? La comparaison des deux versions de la

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Constitution (1976 et 2005)  permet d’identifier neuf changements majeurs, comme l’"
européisation “ de certains principes et concepts et l’émergence de l’aménagement du territoire
en tant que politique publique autonome. En dépit de certaines limitations, la Constitution en
vigueur ne semble pas être un obstacle à la formulation d’une nouvelle génération de politiques
plus efficaces, plus démocratiques et plus justes, bien que l’organisation politico-administrative
actuelle limite la participation des diverses entités publiques à la conception et à la mise en
œuvre de ces politiques.

En este texto se analiza la relación territorio — Constitución de la República Portuguesa (CRP) a


partir de tres cuestiones: (i) ¿cómo es el “territorio” tomado en consideración en la versión
original de la CRP (1976) ?; (ii) ¿que evolución ocurrió desde entonces hasta la versión en vigor en
2016 (aprobada en 2005) ?; (iii) ¿hasta qué punto la versión actual de la CRP condiciona la
formulación y la implementación de una nueva generación de políticas territoriales? La
comparación de las versiones de 1976 y 2005 de la Constitución identifica nueve cambios más
significativos, de que destacamos la creciente “europeización” de diversos principios y conceptos
y la emergencia del ordenamiento territorial como una política pública autónoma. La
Constitución vigente, a pesar de algunas limitaciones, no parece ser un obstáculo a la
formulación de una nueva generación de políticas más eficaces, democráticas y justas, aunque la
actual organización político-administrativa condicione la participación de diversas entidades
públicas en el diseño e implementación de las políticas.

ÍNDICE
Palabras claves: Constitución, territorio, organización política y administrativa del territorio,
ordenamiento territorial, políticas territoriales
Palavras-chave: Constituição, território, organização político-administrativa do território,
ordenamento do território, políticas de território
Mots-clés: Constitution, territoire, organisation politique et administrative du territoire,
aménagement du territoire, politiques territoriales
Keywords: Constitution, territory, political and administrative territorial organisation, spatial
planning, territorial policies

AUTOR
JOÃO FERRÃO
Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, Av. Prof. Aníbal de Bettencourt, 9, 1600-189
Lisboa, Portugal.
joao.ferrao@ics.ulisboa.pt

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