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NE | 2016
SPP NE
Édition électronique
URL : http://journals.openedition.org/spp/2575
ISSN : 2182-7907
Éditeur
Mundos Sociais
Édition imprimée
Date de publication : 2 novembre 2016
ISSN : 0873-6529
Référence électronique
Sociologia, Problemas e Práticas, NE | 2016, « SPP NE » [En ligne], mis en ligne le 05 février 2017,
consulté le 14 mars 2020. URL : http://journals.openedition.org/spp/2575
SOMMAIRE
Artigos
Artigos
pioneirismo na integração da base de dados SciELO e no acesso aberto, bem como, mais
recentemente, a inserção na SCOPUS e noutras bases internacionais de indexação.
6 Com a publicação de artigos em quatro línguas, tem continuado a acolher trabalhos de
autores estrangeiros como Arlie Hochschild, Bernard Lahire, Dave Elder-Vass, Gilberto
Velho, Margaret Archer, entre muitos outros que configuram presentemente uma
maioria de autores externos ao ISCTE-IUL a submeterem artigos. Contando 82 números
publicados à data da edição deste número comemorativo especial, Sociologia, Problemas e
Práticas regista até ao presente a colaboração de um total de mais de 600 autores.
Destes, acima de centena e meia são estrangeiros e perto de três centenas são autores
nacionais pertencentes a instituições externas ao CIES e ao ISCTE-IUL, o que indicia
uma indubitável capacidade de projeção da revista no campo das ciências sociais para
além das fronteiras da instituição onde foi criada.
7 É de realçar, assim, que cerca 70% das autorias dos trabalhos publicados são
provenientes do exterior do ISCTE-IUL, tanto a nível nacional como internacional. Por
outro lado, encontra-se entre os primeiros lugares das principais revistas de língua
portuguesa e espanhola de ciências sociais indexadas na SCOPUS, onde tem vindo a
consolidar o seu posicionamento no índice SJR e no rácio de citações por artigo.
8 Acolhendo artigos de outras áreas das ciências sociais com as quais a sociologia dialoga,
destaca-se o espaço que tem vindo a ser preenchido por trabalhos no âmbito das
políticas públicas. Esta é, com efeito, uma área para a qual a investigação sociológica em
muito contribui para a identificação de problemas, na produção de conhecimento para
o desenho de políticas, bem como na avaliação e análise dessas políticas. Tem-se vindo a
consolidar institucionalmente a partir da criação da Escola de Sociologia e Políticas
Públicas do ISCTE-IUL, onde o CIES se enquadra, enquanto centro no qual a sociologia e
as políticas públicas são dois domínios centrais de investigação e publicação científicas.
9 As políticas públicas representam, efetivamente, uma área em franco crescimento nos
últimos anos, mobilizadora de muitos investigadores e docentes da Escola de Sociologia
e Políticas Públicas, num entrosamento profícuo com evidentes resultados e
contribuições, de equacionamento e estudo, plasmados em diversos artigos e outras
publicações. A revista Sociologia, Problemas e Práticas tem constituído um espaço onde
vários desses artigos têm sido publicados, granjeando o interesse de leitores e
estudiosos destas matérias.
10 Pareceu por isso apropriado, juntar à comemoração dos 30 anos da revista a
comemoração dos 40 anos da Constituição de 1976, através da publicação de um volume
especial cujos artigos se centram na análise de diversos domínios das políticas públicas
na sua relação com os princípios constitucionais. Decorrentes do Fórum das Políticas
Públicas organizado por Maria de Lurdes Rodrigues e Pedro Adão e Silva na Assembleia
da República em maio de 2016, os trabalhos aqui apresentados fazem uma análise de
algumas das principais políticas públicas que, como referem estes autores no seu
primeiro artigo, já se prefiguravam no texto constitucional consagrador da construção
de um estado social. Temos assim, para além da análise das mudanças introduzidas na
Constituição nas suas várias revisões, um conjunto de outros textos que examinam o
papel da Constituição na construção do sistema educativo, como o de Pedro Abrantes,
ou na criação de um serviço nacional de saúde universal prestador de cuidados
preventivos, curativos e de reabilitação, tal como é mencionado por Sofia Crisóstomo.
Ana Rita Ferreira, Daniel Carolo, Mariana Trigo Pereira e Pedro Adão e Silva mostram,
por outro lado, as continuidades e ruturas que atravessam as políticas de proteção
AUTOR
MARIA DAS DORES GUERREIRO
Diretora de Sociologia, Problemas e Práticas. Professora do Departamento de Sociologia da Escola
de Sociologia e Políticas Públicas do ISCTE-IUL, Investigadora do Centro de Investigação e Estudos
de Sociologia (CIES-IUL), Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal.
maria.guerreiro@iscte.pt
do poder judicial, isto é, dos tribunais, o estatuto dos juízes, do Ministério Público e do
Tribunal Constitucional (artigos 202.º a 224.º).
4 Para analisar a construção do estado de direito democrático e social e a trajetória das
políticas públicas na democracia é necessário ter em conta, para além da Constituição,
outros diplomas legais. No caso das políticas de justiça, é necessário considerar as
grandes leis ordenadoras em que se declina o direito à liberdade (como, entre outras, o
Código Penal e o Código de Processo Penal, a Lei de Menores e a Lei da Saúde Mental) e
as leis que organizam o sistema de justiça. No caso das políticas sociais, é necessário ter
em conta as leis de bases dos sistemas sociais (como a Lei de Bases do Sistema Nacional
de Saúde, a Lei de Bases da Segurança Social, a Lei de Bases do Sistema Educativo e a Lei
de Bases da Política de Solos, de Ordenamento do Território e Urbanismo), e outros
diplomas setoriais estruturantes, nos quais se materializam os princípios
constitucionais de garantia da liberdade, da universalidade, da igualdade e da igualdade
de oportunidades. Estes diplomas preveem diferentes graus de aproximação ou
afastamento dos princípios constitucionais, bem como de abertura e de flexibilidade, no
que respeita, por exemplo, à relação do estado com os promotores dos setores privado,
cooperativo e social, assim como à relação entre a administração central e o poder
local.
As revisões da Constituição
5 A Constituição da República Portuguesa aprovada em 1976 afirmou um regime de
estado de direito assente nos princípios da separação de poderes e da igualdade de
todos os cidadãos, sem exclusão, perante a lei. E simultaneamente, afirmou o caráter
social e democrático do estado, introduzindo, ao nível político, económico e social,
importantes ruturas com o regime anterior. No que respeita às políticas públicas
ficaram, em 1976, constitucionalizados, não apenas os direitos sociais, como também as
obrigações do estado na criação de sistemas públicos de educação e de saúde e na
promoção de serviços universais e gratuitos, para garantir a igualdade de oportunidades.
6 Ao longo destes 40 anos, a Constituição foi revista sete vezes. Destas revisões, três
incidiram sobre questões estruturais, implicando significativos processos de alteração
do articulado constitucional (1982, 1989 e 1997); e quatro estiveram relacionadas com a
adesão a tratados internacionais, implicando revisões cirúrgicas (1992, 2001, 2004 e
2005).
7 A revisão de 1982 teve como principal objetivo desmilitarizar o regime e reafirmar os
princípios do estado de direito democrático. No texto legislativo de 1976, a qualificação
da República Portuguesa como um estado de direito estava consagrada apenas no
Preâmbulo, sem valor legal, e foi nesta revisão constitucionalizada no artigo 2.º. No
mesmo sentido a expressão preambular “sociedade sem classes”, foi substituída por
“sociedade livre, justa e solidária”.
8 Na parte da organização política, foi extinto o Conselho da Revolução, sendo substituído
pelo Tribunal Constitucional com a função de fiscalizar a constitucionalidade das leis.
Até então, a função de fiscalização da constitucionalidade era assegurada pelo Conselho
da Revolução, habilitado por uma Comissão Constitucional. Foi também criado um novo
órgão, o Conselho de Estado, para aconselhamento do presidente da República, cujos
poderes discricionários de demissão do governo e de dissolução da Assembleia da
República foram então limitados, sendo reforçado o parlamentarismo.Ainda no que
25 Entre 2010 e 2011, na sequência da crise económica e financeira, tanto o PSD como o
CDS defenderam publicamente a necessidade de rever a Constituição com o propósito
de inscrever a designada “regra de ouro”, isto é, a fixação de um limite constitucional
ao défice orçamental num valor abaixo dos 3%. O PS recusou esta ideia e não foi
apresentada qualquer proposta nesse sentido.
26 Num outro momento, em 2011, por ocasião dos 35 anos da Constituição, a Fundação
Francisco Manuel dos Santos (FFMS) organizou um debate publicado em e-book, 2 que
envolveu cerca de 40 personalidades com diferentes formações e de diferentes
quadrantes políticos. O debate resultou muito diferente dos habituais debates
parlamentares. O estatuto das pessoas envolvidas no desafio de rever a Constituição
(não apenas juristas, nem apenas deputados) e o contexto criado permitiram um debate
sem os constrangimentos político-partidários habituais. Pode dizer-se que permitiram
um debate intelectualmente mais livre, um debate marcado mais pela ética das
convicções do que pela ética das responsabilidades.
27 Do conjunto do debate resultaram inúmeras propostas pragmáticas, mas não
necessariamente realistas, sem que, em nenhum caso, no todo ou em parte, se colocasse
em causa o regime instituído. Um dos organizadores do debate refere:
28 O país já está constituído em muitos aspetos: o poder local, a existência de regiões
autónomas insulares, o núcleo essencial dos direitos, liberdades e garantias. Noutros
pontos, está tudo em aberto: na regionalização, por exemplo. Outros pontos ainda estão
relativamente em aberto ou, pelo menos, continuam a gerar dúvidas: o pendor mais ou
menos presidencial do sistema de governo, o sistema eleitoral, a existência de uma
jurisdição constitucional autónoma. […] Contudo, não se defende que a Constituição
deva ser mudada a fundo ou que deva ocorrer uma mudança de regime (António
Araújo, “A Constituição como problema” , em FFMS (2011), A Constituição Revista).
29 As propostas apresentadas eram, em muitos casos, pontuais e marcadas por
preocupações de agendamento de questões de conjuntura, sem referência a problemas
constitucionais. Porém, em outros casos, propuseram-se soluções de aprofundamento
técnico-político para problemas constitucionais concretos, pensadas
independentemente da maior ou menor facilidade política da sua concretização.
30 No capítulo dos direitos, foram apresentadas propostas para a transferência para a
esfera pública dos encargos e responsabilidades que resultam da garantia de direitos
sociais atualmente assegurados pelas entidades empregadoras (artigos 59.º e 68.º). Na
parte da organização económica, várias propostas íam no sentido da alteração de todo o
articulado que constitucionaliza a orientação planificadora da economia para uma
orientação liberal e de mercado, bem como no sentido da constitucionalização de
limites e de mecanismos de controlo da dívida e da despesa pública e do aumento de
receita por via fiscal.
NOTAS
1. O dossiê apresentado neste número especial da revista Sociologia, Problemas e Práticas reúne
alguns dos trabalhos do Fórum das Políticas Públicas 2016, dedicado à análise dos “Fundamentos
Constitucionais das Políticas Públicas em Portugal”, realizado na Assembleia de República, nos
dias 24 e 31 de maio. O Fórum das Políticas Públicas é uma iniciativa de professores e
investigadores de políticas públicas do ISCTE-IUL, que se realiza desde 2011 e que tem como
objetivos gerais, por um lado, promover o debate de ideias, o conhecimento e a informação sobre
políticas públicas em Portugal e, por outro, contribuir para a melhoria da qualidade da sua
conceção, concretização, regulação e avaliação. As intervenções e debates das anteriores edições
do Fórum foram reunidos em livros: Políticas Públicas em Portugal (INCM, 2012), Políticas
Públicas para a Reforma do Estado (Almedina, 2013) e Governar com a Troika. Políticas Públicas
em Tempo de Austeridade (Almedina, 2015). Em 2016 assinalou-se a passagem de 40 anos da
aprovação da Constituição no dia 2 de abril de 1976 e este foi o pretexto para, em colaboração
com a Assembleia da República, analisar e debater os fundamentos constitucionais das políticas
públicas em Portugal. Foi dado particular destaque aos fundamentos constitucionais e às
trajetórias das políticas públicas em setores como o da saúde, da protecção social, da educação,
do território, bem como das políticas públicas de promoção da igualdade e da justiça, envolvendo
no debate peritos e especialistas em políticas públicas e protagonistas políticos.
2. FFMS (2011), A Constituição Revista, Lisboa, FFMS [c05527e4-9fb8-4fe1-97b1-0264e172fe15.pdf].
3. J. R. Novais, Em Defesa do Tribunal Constitucional, Coimbra, Edições Almedina, 2014; e G. A.
Ribeiro et al., O Tribunal Constitucional e a Crise, Coimbra, Edições Almedina, 2014.
4. A aplicação do Memorando de Entendimento e das medidas de austeridade teve sobretudo
efeitos devastadores pela degradação das condições materiais de vida e pelas ruturas nos quadros
normativos vigentes, pela imprevisibilidade das novas regras e consequente quebra nas
instituições e fragilização das organizações. Ver M. L. Rodrigues, e P.A. Silva, Governar com a
Troika. Políticas Públicas em Tempo de Austeridade, Coimbra, Edições Almedina, 2015 .
RESUMOS
As políticas públicas desenvolvidas ao longo dos últimos 30 anos em Portugal encontram os seus
fundamentos na Constituição aprovada em 1976 e nas suas sucessivas revisões. A inscrição
constitucional da obrigação do estado de promover políticas públicas para assegurar a construção
do estado social, garantindo a todos os cidadãos a protecção social, a saúde e a educação, resultou
de compromissos político-partidários que foram decisivos para a construção dos serviços
públicos universais e gratuitos que hoje conhecemos.
The legal foundation for the public policies developed and pursued in Portugal over the last 30
years is the 1976 Constitution and its successive revisions. The inclusion in the Constitution of an
obligation on the part of the state to promote and organise public policies designed to construct
a welfare state, guaranteeing social protection, healthcare and education for all, was the result of
party political commitments that were decisive elements in the creation and consolidation of the
free and universal public services we know today.
Les politiques publiques mises en œuvre au long des 30 dernières années au Portugal sont
fondées sur la Constitution adoptée en 1976 et ses révisions successives. L’inscription
constitutionnelle de l’obligation de l’État de promouvoir des politiques publiques pour assurer la
construction de l’État social, en garantissant à tous les citoyens la protection, la santé et
l’éducation, est le fruit d’engagements politiques qui furent décisifs pour la construction des
services publics universels et gratuits que nous connaissons aujourd’hui.
Las políticas públicas desarrolladas a lo largo de los últimos 30 años en Portugal encuentran sus
fundamentos en la Constitución aprobada en 1976 y en sus revisiones sucesivas. La inscripción
constitucional de la obligación del estado de promover políticas públicas para asegurar la
construcción del estado social, garantizando a todos los ciudadanos la protección social, la salud
y la educación, resultó de compromisos político-partidarios que fueron decisivos para la
construcción de los servicios públicos universales y gratuitos que hoy conocemos.
ÍNDICE
Palabras claves: políticas públicas, constitución, Portugal, estado social, Foro de las Políticas
Públicas
Mots-clés: politiques publiques, Constitution, Portugal, État social, Forum des Politiques
Publiques
Keywords: public policies, Constitution, Portugal, welfare state, Public Policy Forum
Palavras-chave: políticas públicas, Constituição, Portugal, estado social, Fórum das Politicas
Públicas
AUTORES
MARIA DE LURDES RODRIGUES
Docente no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) e coordenadora do Fórum das Políticas
Públicas, Centro de Investigação e Estudos de Sociologia (CIES-IUL), Av. das Forças Armadas,
1649-026 Lisboa, Portugal.
mlurdes.rodrigues@iscte.pt
Pedro Abrantes
mais do que residual (Machado e Costa, 1998), dado que a larga maioria das crianças
apenas frequentava os quatro anos da instrução primária (Justino, 2014).
5 Mas esta longevidade do texto constitucional deve também ser realçada, à luz tanto dos
discursos que têm enfatizado a instabilidade endémica das políticas educativas para
clamar por um compromisso de longo prazo entre as várias forças políticas, como
daqueles que têm denunciado uma deriva neoliberal que terá distorcido os princípios
democratizantes que emanaram da revolução. Não é, pois, despiciente assinalar a
resiliência do texto original, em particular tendo em conta que algumas das revisões
constitucionais tiveram como propósito a remoção de entraves ao desenvolvimento da
economia de mercado em Portugal.
A liberdade de aprender e ensinar
6 Sendo de formulação muito generalista, o artigo 43.º reveste-se de uma importância
especial, uma vez que se integra na primeira parte da Constituição, dedicada ao tema
dos direitos, liberdades e garantias que são reconhecidos a todos os cidadãos. Além
disso, enquanto os artigos subsequentes se centram em deveres do estado, neste caso
trata-se de salvaguardar liberdades dos cidadãos ante uma interferência — considerada
ilegítima — do estado.
7 A interpretação deste artigo está longe de ser simples e unívoca. Por um lado, o artigo
garante a liberdade dos cidadãos não apenas de aprenderem e ensinarem, mas também
de criarem escolas fora da tutela do estado (particulares ou cooperativas), o que no
contexto do processo revolucionário em curso não deixou de ser um marco importante
contra qualquer forma de autoritarismo ou totalitarismo. Por outro lado, este artigo
afirma que as políticas estatais e o sistema de ensino que tutela (ensino público) não é
confessional, nem se rege “segundo quaisquer diretrizes filosóficas, estéticas, políticas,
ideológicas ou religiosas”. Esta afirmação da autonomia do campo educativo é
fundamental, num contexto em que muitos autores têm atribuído ao ensino público
uma função central no aparelho ideológico e repressivo do Estado Novo, em estreita
aliança com a igreja católica (Mónica, 1978; Stoer, 1982; Nóvoa, 1994). É também
notável, tratando-se de uma constituição aprovada num contexto revolucionário e que
tem sido frequentemente criticada pela sua marca ideológica.
8 Ainda assim, este artigo não deixa de se basear numa naturalização — e suposta
neutralidade — do conhecimento e da cultura, quando estas são, na verdade, produções
humanas atravessadas por uma diversidade de posições e por permanentes conflitos
(Bourdieu, 1979; Popkewitz, 1991). Vários pensadores têm notado que tanto a seleção
dos conteúdos como os métodos de ensino implicam juízos de valor e representações do
mundo. Noutros textos constitucionais tem-se, por isso, privilegiado uma afirmação da
pluralidade cultural e cognitiva que caracteriza, hoje, o mundo e os vários espaços
nacionais.
9 Uma questão mais concreta e cuja constitucionalidade é controversa tem a ver com a
participação da igreja católica no ensino público. O artigo 43.º da Constituição da
República de 1976 entrou em contradição com a Concordata, assinada em 1940 com o
Vaticano, e na qual se afirmava que “o ensino ministrado pelo Estado será orientado
pelos princípios da doutrina e moral cristãs, tradicionais do país”. Diga-se, aliás, que
este acordo já era duvidoso, à luz da Constituição de 1933, na qual se afirmava que “o
ensino ministrado pelo Estado é independente de qualquer culto religioso, não o
devendo porém hostilizar” (artigo 43.º). A Concordata foi revista, em 1975, mas os
postulados referidos à educação não foram alterados. Apenas em 2004, foi assinada uma
nova Concordata, na qual a citada orientação foi retirada do texto, mas, por seu lado,
foi consagrada a obrigação do estado de “assegurar, nos termos do direito português, o
ensino da moral e religião católicas nos estabelecimentos de ensino público não
superior, sem qualquer forma de discriminação”. Ao abrigo deste tratado, o estado
português assume a colocação, a remuneração e a integração nos quadros dos
professores desta disciplina, em todas as escolas públicas do país, sendo a sua
frequência opcional para os estudantes (e atualmente minoritária). Por seu lado, a lei da
liberdade religiosa abre a possibilidade de outras confissões religiosas lecionarem
também nos estabelecimentos públicos de ensino, sendo, até ao momento, apenas a
igreja evangélica que marca presença curricular, num conjunto restrito de escolas e
com professores remunerados pela própria agregação.
10 Porém, em vez de um princípio de formação religiosa de acordo com a crença dos pais,
a Constituição afirma que o ensino público não será confessional, nem programado de
acordo com diretrizes religiosas.
Um compromisso com a democracia
11 O artigo que abre o capítulo relativo aos direitos e deveres culturais (artigo 73.º)
estabelece que a educação, a par da cultura e da ciência, não apenas se deve submeter
aos princípios democráticos, mas também deve promovê-los e aprofundá-los. Neste
sentido, a democratização da educação é identificada como um dever do estado, tanto
através da rede escolar como de outros serviços formativos. Esta definição é,
posteriormente, desenvolvida em dois sentidos distintos, que poderíamos designar
processos externos e internos.
12 Por um lado, determina-se que a educação não apenas deve ser acessível a todos, mas
também contribuir para a igualdade de oportunidades e a superação das desigualdades
económicas, sociais e culturais. Esta formulação é relevante, pois vai muito para além
da noção meritocrática, individualista ou formalista da igualdade de oportunidades, no
sentido da não discriminação do acesso, colocando o enfoque nos impactos mais latos
da educação nas assimetrias de poder que caracterizam as sociedades contemporâneas,
nas suas várias dimensões. Desta forma, vincula o estado português ao combate ao que
os sociólogos têm denominado “mecanismos de reprodução das desigualdades”
inscritos nos sistemas educativos (Bourdieu e Passeron, 1970) e que, em Portugal, têm
sido particularmente intensos (Sebastião, 2009).
13 Por outro lado, o mesmo artigo determina que uma educação orientada pela e para a
democracia tem de se comprometer com o desenvolvimento da personalidade dos
indivíduos, incluindo um conjunto de valores e disposições, como o espírito de
tolerância, a compreensão mútua, a solidariedade, a responsabilidade, o progresso
social e a participação democrática. Assume-se, portanto, que a educação não apenas
tem que se reger por princípios democráticos (dimensão externa), mas também tem
que formar os cidadãos nesses princípios (dimensão interna). Ou, dito de outra forma, a
democracia tem que formar democratas para se realizar.
14 Assim sendo, qualquer que seja o ciclo e a modalidade de ensino, o alinhamento das
políticas educativas com o crescimento económico, a competitividade e a
empregabilidade não podem perder de vista estes objetivos mais amplos. É certo que,
20 De notar, aliás, que este artigo inclui também o direito de todos os cidadãos, “segundo
as suas capacidades”, “aos graus mais elevados de ensino”, à investigação científica e à
criação artística, sendo as licenciaturas, mestrados e doutoramentos abrangidos
igualmente por um princípio de progressiva gratuitidade de “todos os graus de ensino”.
O facto de estes domínios se terem autonomizado, ao nível das políticas e dos debates
públicos, não legitima a inclusão de critérios de seletividade, ainda para mais se estes
remeterem para condições socioeconómicas das famílias.
Ensino público, particular e cooperativo
21 Apesar da supracitada referência ao tema no capítulo dos deveres fundamentais (artigo
43.º), a Constituição inclui nesta secção dedicada às questões educativas e culturais um
novo artigo (75.º) que procura clarificar o estatuto do ensino público, privado e
cooperativo. Trata-se de um artigo particularmente controverso, à luz dos movimentos
políticos que têm procurado ampliar o financiamento público às escolas privadas, sob o
epíteto da “liberdade de escolha”.
22 Tal como afirma Leitão (2014), é importante ressalvar que esse apoio não é negado, mas
também não é consagrado na Constituição, não inibindo o estado de cumprir o que é
disposto claramente no artigo 75.º: por um lado, criar e manter uma rede de
estabelecimentos públicos de ensino que cubra as necessidades de toda a população;
por outro lado, reconhecer e fiscalizar o ensino privado e cooperativo.
23 Podemos dizer que, desde 1976, a expansão da rede de escolas públicas foi exponencial,
permitindo albergar a generalidade das crianças e jovens em idade escolar (CNE, 2015).
Tal desígnio nunca foi integralmente cumprido, em parte porque um segmento das
famílias (relativamente estável) tem preferido o ensino privado, pelo que não se
justificaria manter recursos não utilizados, e em parte porque, num conjunto restrito
de territórios, o estado preferiu estabelecer “contratos de autonomia” com escolas
privadas que, temporariamente, suprem a escassez de oferta pública.
24 Segundo Leitão (2014), estes contratos só são legítimos caso as escolas abrangidas
cumpram escrupulosamente os princípios constitucionais, nomeadamente os relativos
à igualdade de oportunidades e à ausência de diretrizes políticas, ideológicas ou
religiosas. Convirá aqui ressalvar um princípio de equivalência das condições laborais,
aliás já consagrado na Constituição de 1933 enquanto requisito para que as escolas
particulares auferissem de apoios estatais. Contudo, podemos ir mais longe e
questionar se a constitucionalidade destes contratos de associação não se limita a
soluções provisórias, até à construção de estabelecimentos públicos nesses territórios.
Acresce que a melhoria das vias de comunicação e as próprias mudanças demográficas
têm conduzido, em vários territórios, a que as vagas no sistema público deixem de
escassear.
25 À luz deste artigo, será lícito questionar a legalidade do Decreto-Lei n.º 152/2013,
segundo o qual o financiamento das escolas privadas, através de contratos de
associação, deixou de ser uma solução apenas em contextos de escassez da oferta
pública para ser uma opção governamental, com base numa avaliação da qualidade das
propostas educativas.
26 Resta ainda considerar que, se no caso das crianças e jovens em idade escolar este
problema parece estar hoje confinado a um conjunto restrito de territórios, a
imobilismos vários e a movimentos que parecem ter pouca validade constitucional, não
devemos esquecer que o artigo 75.º compromete o estado com a criação de
estabelecimentos públicos de ensino que cubram as necessidades de toda a população e
não apenas aquela que se encontra em idade escolar. Remete-se, assim, novamente para
a questão do enorme défice qualificacional da população portuguesa e das insuficientes
políticas de educação de adultos que lhe têm procurado dar resposta.
Ensino superior
27 Além das referências a todos os níveis educativos e da supracitada referência “aos graus
mais elevados de ensino”, o 76.º artigo da Constituição é dedicado ao ensino superior.
Neste artigo estipula-se que o regime de acesso a este nível de ensino deve ser
orientado pelos princípios de igualdade de oportunidades e de democratização, tendo
igualmente em conta “as necessidades em quadros qualificados e a elevação do nível
educativo, cultural e científico do país”.
28 Tal como notou Adriano Moreira (2005), valerá a pena questionar se a expansão do
ensino superior, nomeadamente nos anos 90, muito alimentada pela iniciativa privada e
pelas lógicas da oferta e da procura, não terá distorcido este princípio.
29 No outro ponto do mesmo artigo, determina-se a autonomia estatutária, científica,
pedagógica, administrativa e financeira das universidades, sem prejuízo de adequada
avaliação da qualidade do ensino. Se estas práticas de avaliação têm vindo,
recentemente, a ser instituídas, importará discutir as condições mínimas para o
exercício da autonomia, em face dos dispositivos legais introduzidos no âmbito das
políticas de austeridade. Além disso, convirá destacar que o ajustamento da oferta
educativa, neste ciclo, não deve depender apenas das necessidades do mercado laboral,
no curto prazo, mas também do referido desígnio de desenvolvimento educativo,
cultural e científico.
Participação democrática
30 A Constituição dedica ainda um artigo (77.º) à participação democrática na gestão
educativa, em dois níveis. Por um lado, estipula-se o direito de professores e alunos
participarem na administração dos estabelecimentos de ensino dos quais fazem parte
(n.º 1). Por outro lado, consagra-se o direito de participação das associações de
professores, de alunos, de pais, das comunidades e das instituições de caráter científico
na definição da política de ensino (n.º 2).
31 Tal como referido anteriormente, esta participação é um meio fundamental de
“educação para a cidadania” (EACEA/Eurydice, 2012) e um reconhecimento de que os
professores não devem ser reduzidos a empregados, assim como os estudantes não
devem ser reduzidos a utentes, clientes ou beneficiários dos serviços educativos. Tanto
uns como os outros são membros das escolas e do sistema educativo.
32 Por um lado, a questão da gestão democrática das escolas está associada à própria
autonomia concedida aos estabelecimentos de ensino e que, em Portugal, apesar da
retórica abundante, tem enfrentado muitas limitações (Abrantes, 2013). Por outro lado,
mesmo assumindo que essa autonomia existe, o direito de participar na gestão das
escolas implica mecanismos formais e informais que permitam que essa participação
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Educação Comparada para Além dos Números”, Sociedade Portuguesa de Ciências da Educação /
Secção de Educação Comparada, Lisboa, 25-27 de janeiro de 2016.
Stoer, Stephen (1982), Educação, Estado e Desenvolvimento em Portugal, Lisboa, Livros Horizonte.
RESUMOS
A propósito da celebração dos seus 40 anos, o artigo analisa o modo como a educação é concebida
na Constituição da República Portuguesa, à luz de estudos sociológicos nacionais e internacionais
de referência. Discute-se o modo como a lei fundamental foi entendida e teve impactos no
sistema educativo português, identificando-se algumas controvérsias, tensões e áreas de
desenvolvimento futuro. Questões como as relações público-privado, o combate às desigualdades,
a aprendizagem ao longo da vida, a gestão democrática ou a educação para a cidadania são
afloradas. Em termos gerais, argumenta-se que a Constituição teve um papel central na
transformação do sistema educativo e constitui, ainda hoje, um instrumento fundamental de
estabilização, mas também de orientação de políticas transformadoras.
As the Constitution of the Portuguese Republic (CRP) reaches its fortieth birthday, the present
article looks at how leading national and international sociological studies view its stance on
education. The way the CRP has been interpreted and the impacts it has had on the Portuguese
education system are discussed, and a number of controversies, tensions and areas for future
development are identified. Questions such as relations between the public and private sectors,
the struggle against inequalities, lifelong learning, the management of democracy and education
for citizenship are broached. In broad terms, the article argues that the CRP has played a leading
role in changing the education system, and continues to be not only a fundamental instrument
for promoting stability, but also a framework for transformative policies.
À propos de la célébration de ses 40 ans, l’article analyse la façon dont l’éducation est conçue
dans la Constitution portugaise, à la lumière d’études sociologiques nationales et internationales
de référence. Il débat de la façon dont la loi fondamentale a été comprise et a eu des impacts sur
le système éducatif portugais, en identifiant quelques controverses, tensions et domaines de
développement futur. Des questions telles que les relations public-privé, la lutte contre les
inégalités, l’apprentissage tout au long de la vie, la gestion démocratique et l’éducation à la
citoyenneté sont abordées. En général, on fait valoir que la Constitution a joué un rôle central
dans la transformation du système éducatif et qu’elle est aujourd’hui encore un instrument clé de
stabilisation, mais aussi d’orientation des politiques transformatrices.
ÍNDICE
Keywords: Portuguese Constitution, educational policies, inequalities, democracy, freedom
Mots-clés: Constitution portugaise, politiques éducatives, inégalités, démocratie, liberté
Palabras claves: Constitución de la República Portuguesa, políticas educativas, desigualdades,
democracia, libertad
Palavras-chave: Constituição da República Portuguesa, políticas educativas, desigualdades,
democracia, liberdade
AUTOR
PEDRO ABRANTES
Professor da Universidade Aberta, investigador do Centro de Investigação e Estudos de Sociologia
(CIES-IUL) do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL) e atualmente técnico especialista do
Gabinete do Ministro da Educação. Universidade Aberta. Palácio Ceia, Rua da Escola Politécnica,
141, 1269-001 Lisboa, Portugal.
pedro.abrantes@uab.pt
Sofia Crisóstomo
pela participação nos conselhos regionais de saúde e nas comissões concelhias de apoio
[…], para além da participação em órgãos de serviços”. 9
13 Em 1982, é aprovado o Decreto-Lei n.º 254/82, de 29 de junho, pelo VIII Governo
Constitucional — um governo de coligação (pré-eleitoral) PSD-CDS-PPM, com maioria
absoluta na Assembleia da República, liderado por Francisco Pinto Balsemão e com Luís
Barbosa como ministro dos Assuntos Sociais (com a tutela da Saúde) (Freire, 2005;
Döring e Manow, 2016; Governo da República Portuguesa, 2016).
14 O Decreto-Lei n.º 254/82, de 29 de junho, revoga grande parte da Lei do SNS (Lei n.º
56/79, de 15 de setembro), o que o Tribunal Constitucional viria, quase dois anos depois,
no Acórdão n.º 39/84, de 11 de abril, a declarar inconstitucional, por se traduzir “na
extinção do Serviço Nacional de Saúde” e, por isso, contender “com a garantia do
direito constitucional à saúde”. O Tribunal Constitucional teve aqui uma intervenção
decisiva, quanto à necessidade constitucional de existência do SNS (Novais 2010: 242).
15 Também em 1982, a primeira revisão constitucional (Lei Constitucional n.º 1/82, de 30
de setembro),10 ainda durante o VIII Governo Constitucional, aditou ao artigo 64.º da
CRP, a referência à gestão descentralizada e participada do SNS.
16 Depois de vários diplomas que fixaram taxas moderadoras no acesso aos cuidados de
saúde prestados no âmbito do SNS,11 um Parecer da Comissão Constitucional, 12 dois
pedidos do provedor de Justiça para fiscalização da constitucionalidade de várias
normas relacionadas e os consequentes acórdãos do Tribunal Constitucional, 13 foi
aprovada pela Assembleia da República,14 em 1989, a segunda revisão constitucional (Lei
Constitucional n.º 1/89, de 8 de julho), decorria o XI Governo Constitucional, o segundo
governo liderado por Aníbal Cavaco Silva (PSD) — o primeiro maioritário de um só
partido — e com Leonor Beleza como ministra da Saúde (Freire, 2005; Döring e Manow,
2016; Governo da República Portuguesa, 2016).
17 Com a segunda revisão constitucional, foram feitas as alterações mais substanciais ao
artigo 64.º da CRP, não só em termos de conteúdo como, mais relevante, de legitimação
constitucional das implicações da não gratuitidade, no que respeita à função vital do
SNS na realização do direito à proteção da saúde e da sua contribuição para a coesão e
justiça sociais (tal como descrito, por exemplo, em Thomson, Foubister, e Mossialos,
2009). O SNS passou de “gratuito” a “tendencialmente gratuito” e ao estado passou a
incumbir “orientar a sua ação para a socialização dos custos dos cuidados médicos e
medicamentosos” (isto é para o financiamento público dos custos em saúde) que
substituiu “a socialização da medicina e dos setores médico-medicamentosos” (que
implicava a orientação do estado para a prestação pública dos cuidados de saúde e a
produção estatal de medicamentos e afins). Abriu-se assim uma janela constitucional à
maior intervenção do setor privado na prestação e no financiamento de cuidados de
saúde e também à gestão privada de unidades públicas de saúde. 15
18 No seguimento e em linha com a revisão constitucional de 1989, ainda durante o XI
Governo Constitucional, mas já com Arlindo de Carvalho como ministro da Saúde
(Freire, 2005; Döring e Manow, 2016; Governo da República Portuguesa, 2016), foi
aprovada pela Assembleia da República16 a Lei de Bases da Saúde (Lei n.º 48/90, de 24 de
agosto), que vai ainda mais além no papel outorgado ao setor privado (Campos e
Simões, 2011: 133; M. V. da Silva, 2012a: 283).
19 A Lei de Bases da Saúde veio atribuir ao Sistema de Saúde (e não especificamente ao
SNS) a efetivação do direito à proteção da saúde,17 prevendo que “o Estado atua através
toxicodependência” — um tema que, nos anos 90, marcava a agenda política (SICAD,
s.d., “Histórico”; SICAD, s.d., “Política portuguesa”). 30
26 Das sete revisões constitucionais concluídas após a aprovação da CRP de 2 de abril de
1976, não houve qualquer alteração ao artigo 64.º nas restantes quatro revisões (1992,
2001, 2004 e 2005).
O artigo 64.º na revisão constitucional de 2010 (não
concluída)
27 A oitava revisão constitucional, iniciada em 2010, na segunda sessão legislativa da XI
Legislatura, não foi concluída, devido à dissolução da Assembleia da República (AR)
decretada em 7 de abril de 2011.31 À exceção do PS, todos os restantes partidos com
assento parlamentar à altura (PSD, PCP, PEV, BE e CDS-PP), propuseram alterações ao
artigo 64.º da CRP.32
28 Relativamente à característica de tendencial gratuitidade, enquanto PCP, PEV e BE
propuseram a reposição do texto original da CRP de 1976, isto é, um SNS geral e
gratuito,33 o projeto do PSD eliminava a expressão “tendencialmente gratuito” e aditava
“não podendo, em caso algum, o acesso [ao SNS] ser recusado por insuficiência de meios
económicos”, abrindo a possibilidade de serem estabelecidos copagamentos em função
do rendimento. O projeto do CDS-PP, apesar de reformular o texto do artigo 64.º, não
apresentou qualquer alteração nesta matéria.
29 Relativamente às políticas públicas dirigidas à promoção da saúde e aos determinantes
sociais da saúde, tanto PSD como CDS-PP propuseram a eliminação da referência ao
“desenvolvimento da educação sanitária do povo” como condição para assegurar o
direito à proteção da saúde, supõe-se que numa tentativa de retirar a carga ideológica
associada à terminologia usada em 1976. No entanto, com esta alteração, seria
eliminada também a referência à que é hoje designada “educação para a saúde”, um
instrumento fundamental para promover a literacia em saúde, que, por sua vez, é um
determinante importante do estado de saúde individual (Kickbusch et al., 2013).
30 O PSD estabelecia também como competência do estado, a promoção da “efetiva
liberdade de escolha”.
31 Por seu lado, o PCP especificava que as entidades empresariais e privadas se articulam
com o SNS, “quando dele sejam complementares”, e aditava as políticas de prevenção e
tratamento do alcoolismo às competências do estado.
32 O BE propôs o financiamento do SNS “assegurado pelo Orçamento de Estado”,
especificando que a cobertura de todo o país, em termos de recursos humanos e
cuidados de saúde deve ser também “equitativa” (para além de racional e eficiente). O
BE eliminava ainda a possibilidade de as entidades empresariais e privadas se
articularem com o SNS.
33 Tanto o BE como o CDS-PP aditavam os cuidados paliativos aos tipos de cuidados a que
todos os cidadãos devem ter acesso, e o CDS-PP aditava também os cuidados
continuados.
34 O CDS-PP propôs ainda a realização do direito à proteção da saúde “através de um
sistema nacional de saúde universal e geral”, “constituído por um serviço nacional de
saúde e demais sistemas públicos, privados, mutualistas e sociais e por todos os
Universalidade, generalidade e tendencial
gratuitidade — da Constituição à realidade
Universalidade
que ficam — à proteção da saúde. De facto, uma política de opting out do SNS teria
associado um risco de limitação no acesso aos cuidados de saúde, quer para quem sai (o
acesso fica mais dependente da capacidade para pagar dos cidadãos e das coberturas
contratualizadas com as seguradoras), quer para quem fica (por via da diminuição do
financiamento do SNS, do provável aumento do custo médio por beneficiário —
permanecem os indivíduos com maior risco — e, consequentemente, da maior
dificuldade em assegurar a sustentabilidade financeira do SNS).
38 À semelhança do que acontece em muitos países da OCDE, quer se trate de sistemas
financiados por impostos, quer de sistemas de seguro social, a percentagem da
população portuguesa abrangida pela cobertura pública básica é, atualmente de 100%
(OECD, 2015: 120-121).
Generalidade
39 No diploma que criou o SNS, o princípio de generalidade foi definido da seguinte forma:
“o SNS envolve todos os cuidados integrados de saúde, compreendendo a promoção e
vigilância da saúde, a prevenção da doença, o diagnóstico e tratamento dos doentes e a
reabilitação médica e social”.36 Na mesma linha, a Lei de Bases da Saúde refere como
uma das características do SNS: “prestar integradamente cuidados globais ou garantir a
sua prestação”.37 No entanto, o mesmo diploma estabelece também que “a lei pode
especificar as prestações garantidas aos beneficiários do SNS ou excluir do objeto
dessas prestações cuidados não justificados pelo estado de saúde”. 38 Apesar disso, nunca
o legislador concretizou as prestações garantidas, ou não, aos beneficiários do SNS.
40 Novais (2010: 242) esclarece que “geral significa abranger todos os serviços públicos de
saúde e todos os domínios e prestações médicos, traduzindo a necessidade de
integração ou de garantia de prestação de todos os serviços e cuidados de saúde”.
41 Na prática, ainda hoje e apesar das melhorias observadas ao longo do tempo, vários
tipos de cuidados de saúde não são abrangidos pelo SNS (por exemplo, as terapêuticas
não convencionais) ou, quando abrangidos pelo SNS, não cobrem uma proporção
relevante das necessidades dos cidadãos (por exemplo, cuidados de saúde oral,
consultas de psicologia, cuidados paliativos) (Barros, Machado e Simões, 2011: 59-60;
OECD, 2015: 122-123; Ministério da Saúde, 2015). Tal tem como consequência tempos de
espera superiores aos tempos máximos recomendados e/ou a necessidade de recorrer à
prestação privada de cuidados de saúde.
Tendencial gratuitidade
esteja entre os países da OCDE que apresentam uma maior percentagem de despesa das
famílias com a saúde, em função do rendimento familiar disponível. Para além disso,
Portugal tem, de acordo com os dados mais recentes disponíveis, uma despesa pública
em saúde abaixo da média da OCDE, qualquer que seja o indicador utilizado — gastos em
saúde per capita, despesa do estado em saúde em percentagem do PIB, percentagem da
despesa em saúde na despesa total (OECD, 2015: 124-125,164-167,170-171).
44 O peso da despesa privada em saúde, em Portugal, associado a um risco elevado de
pobreza ou exclusão social, tem implicações no acesso a cuidados de saúde e agrava as
desigualdades entre cidadãos de maior e menor rendimento (OPSS, 2016). Cabendo ao
estado “garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição
económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação”, 40 importa,
pois, em cada momento e, em particular numa situação de crise (social, económica e
financeira), reanalisar os limites do princípio da tendencial gratuitidade,
reinterpretando-os face ao contexto em presença, e equacionar as medidas de política
pública de financiamento da saúde, que garantam um sentido constitucionalmente
adequado de tendencial gratuitidade, tendo em consideração os resultados em saúde
obtidos versus pretendidos.
Conclusão
45 Desde a aprovação da CRP em 2 de abril de 1976, as alterações mais relevantes ao texto
original foram introduzidas imediatamente a seguir, nas duas primeiras revisões
constitucionais. Em 1982, ocorreu o aditamento da gestão descentralizada e participada
do SNS e, em 1989, o SNS passou de “gratuito” a “tendencialmente gratuito”.
46 Nas últimas quase três décadas, a CRP tem-se mantido inalterada na sua essência. Sem
prejuízo de uma eventual adaptação do texto constitucional à linguagem e às
tendências mais atuais das políticas de saúde, a realidade mostra que os limites
jurídico-constitucionais do SNS não são uma barreira a novas e melhores políticas
públicas, capazes de assegurar as atribuições constitucionais do estado em matéria de
proteção da saúde.
47 Se o princípio de universalidade foi plenamente alcançado, o princípio de generalidade
ainda se encontra por cumprir em muitas áreas de prestação de cuidados de saúde.
48 Já em relação ao princípio de tendencial gratuitidade, a questão principal é saber se o
direito à proteção da saúde é posto em causa, ou não, em face da evidência empírica
mais recente sobre o efeito de taxas moderadoras e copagamentos, e também da crise,
no acesso a cuidados de saúde e nos resultados em saúde obtidos.
BIBLIOGRAFIA
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NOTAS
1. A título de exemplo, cita-se Novais (2010: 241), que refere como “mais pacífico o tema da gestão
necessariamente descentralizada e participada do SNS”, para justificar não o considerar quando
aborda os limites jurídico-constitucionais do SNS.
2. Salienta-se o caráter bastante mais específico desta competência do estado, comparativamente
com as restantes, no que respeita a assegurar o direito à proteção da saúde.
3. “Votaram contra o articulado da Constituição quinze Deputados do CDS. Não houve
abstenções. Todos os restantes Deputados, incluindo os Deputados independentes e o Deputado
de Macau, votaram a favor do articulado da Constituição da República Portuguesa.” (Fonte:
http://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dac/01/01/01/132/1976-04-02/4433).
4. “…com votos a favor do PS, do PCP, da UDP e do Deputado independente Brás Pinto e com
votos contra do PSD, do CDS e dos Deputados independentes sociais-democratas.”
5. Artigo 4º, n.os 1 e 2.
6. Artigo 6º, n.º 2.
7. Artigo 7.º.
8. Artigos 2.º e 19.º.
9. Artigo 23.º.
10. Aprovada com “195 votos a favor (do PSD, do PS, do CDS, do PPM, da ASDI e da UEDS), 40
votos contra (do PCP e da UDP) e 1 abstenção (do MDP/CDE)".
11. Despachos Ministeriais n. os 57/80 e 58/80, de 29 de dezembro; Despacho do Ministro dos
Assuntos Sociais de 18 de janeiro de 1982 (publicados no Diário da República, II série, n.º 34, de
10/02/82); Despacho do Ministro da Saúde de 27 de fevereiro de 1984 (publicado no Diário da
República, II série, n.º 60, de 12/03/84); Decreto-Lei n.º 57/86, de 20 de março; Portaria n.º 344-A/
86, de 5 de julho.
12. Parecer n.º 35/82 da Comissão Constitucional, que justificou a admissibilidade de taxas
moderadoras, recorrendo à teoria da relevância jurídica especial das normas de direitos sociais,
segundo a qual estas são de realização progressiva, gradual, diferida no tempo, em função das
disponibilidades financeiras e materiais do estado.
13. Acórdãos n.os 92/85, de 18 de junho (que declara a inconstitucionalidade formal dos
despachos que regulavam as taxas moderadoras, não tendo por isso apreciado a
constitucionalidade material dos mesmos), e 330/89, de 11 de abril (que declara que as normas do
Decreto-Lei n.° 57/86, de 20 de março, nomeadamente, as taxas moderadoras, não são
inconstitucionais).
14. “Aprovada com os votos a favor do PSD, do PS, do PRD, do CDS e do Deputado Independente
Carlos Macedo, votos contra do PCP, de Os Verdes, dos deputados do PSD Jorge Pereira, Carlos
Lélis, Cecília Catarino e Guilherme Silva, dos deputados do PS Manuel Alegre e Sottomayor
Cardia, da deputada do PRD Natália Correia e dos Deputados Independentes Raul Castro e João
Corregedor da Fonseca e as abstenções do Deputado do PRD Marques Júnior e da Deputada
Independente Helena Roseta.” (Fonte: http://debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/
01/05/02/091/1989-06-02/4530?pgs=4530&org=PLC)
15. A segunda revisão constitucional ocorre numa fase (1985-1995) de mudança da fronteira
entre público e privado, a favor do privado (OPSS, 2002; Campos e Simões, 2011; M.V. da Silva,
2012a; 2012b).
16. ] “…com votos a favor do PSD, do CDS e do Deputado independente Carlos Macedo e votos
contra do PS, do PCP, do PRD e do Deputado independente Raul Castro.” (Fonte: http://
debates.parlamento.pt/catalogo/r3/dar/01/05/03/100/1990-07-13?pgs=&org=PLC)
17. Base IV, n.º 1.
18. Base IV, n.º 2.
19. Base II, n.º 1, alínea f; base XXXVII, n.º 1.
20. Base XXXVI, n.º 2.
21. Base XLI, n.º 1.
22. Base XLII.
23. Base XXIV.
24. Base XXXV, n.º 1.
25. Base II. n.º 1, alínea g.
26. Base VII, n.os 1 a 3.
27. Base XII, n.º 2.
28. Anexo ao Decreto-Lei n.º 11/93, de 15 de janeiro.
29. “…com votos a favor do PS e do PSD, votos contra do CDS-PP, do PCP, de Os Verdes e do
Deputado do PS Manuel Alegre e abstenções dos Deputados do PS Alberto Martins, Arnaldo
Homem Rebelo, Eduardo Pereira, Elisa Damião, Fernando Pereira Marques, Helena Roseta, Luís
Filipe Madeira e Marques Júnior" (Fonte: http://goo.gl/O1cZ41)
30. A quarta revisão constitucional ocorre numa fase distinta das políticas de saúde em Portugal
(1995-2002), caracterizada pela expansão e, simultaneamente, reforma do sistema de saúde, com
a aplicação de medidas de melhoria de eficiência, sendo visível um recuo na narrativa de
privatização do SNS (OPSS, 2002; Campos e Simões, 2011; M. V. da Silva, 2012a; 2012b).
31. Decreto do Presidente da República n.º 44-A/2011, de 7 de abril.
32. No total, deram entrada na Assembleia da República, no âmbito da oitava revisão
constitucional, dez projetos de revisão. Seis foram apresentados pelos grupos parlamentares com
assento na AR (n.º 1/XI—PSD; n.º 2/XI—PCP; n.º 3/XI—PEV; n.º 4/XI—BE; n.º 5/XI—CDS-PP; e n.º 9/
XI—PS) e quatro por deputados do PSD (n.os 6/XI, 7/XI e 8/XI) e do CDS-PP (n.º 10/XI). Só os
projetos n.os 1/XI a 5/XI continham alterações ao artigo 64.º da CRP.
33. Com o PEV a aditar também “igual” às características do SNS.
34. Base IV, n.º 1; base XII, n.º 1.
35. Lei nº 56/79, de 15 de setembro, artigo 4.º, n.º 1; Lei n.º 48/90, de 24 de agosto, baseXXV, n.º 1.
36. Lei n.º 56/79, de 15 de setembro, artigo 6º, n.º 2.
37. Lei n.º 48/90, de 24 de agosto, base XXIV.
38. Base XXXV, n.º 1.
39. Lei Constitucional n.º 1/89, de 8 de julho.
40. CRP, artigo 64.º, n.º 3, alínea a.
RESUMOS
O artigo 64.º da Constituição da República Portuguesa, sobre a saúde, foi objeto de várias
alterações nos últimos 30 anos. Os momentos, a sequência e o conteúdo dessas alterações, são
descritos e analisados na sua relação com medidas-chave da política pública de saúde, tendo em
consideração as suas implicações jurídico-constitucionais, o contexto histórico-institucional e a
sua relação com fatores externos. São ainda descritas e examinadas as alterações propostas na
última revisão constitucional, em 2010, que não foi concluída. Finalmente, é discutida a
concretização dos três princípios principais que regem o Serviço Nacional de Saúde:
universalidade, generalidade e tendencial gratuitidade.
Article 64 of the Constitution of the Portuguese Republic, on Health, has been the object of
several amendments over the last 30 years. The timing, sequence and content of these changes
are described and analysed in relation to key public health policy measures, taking into account
their legal and constitutional implications, the historical-institutional context and its
relationship with external factors. The changes proposed during the most recent constitutional
review process, in 2010, which was not concluded or implemented, are also described and
examined. Finally, the paper discusses the implementation of the three main principles
governing the National Health Service: universality, generality, and the tendency towards free
healthcare.
L’article 64 de la Constitution portugaise, sur la santé, a été plusieurs fois modifié au cours des 30
dernières années. Les dates, la chronologie et le contenu de ces modifications sont décrits et
analysés en fonction de leur relation avec les mesures-clés de la politique de santé publique, en
ÍNDICE
Palabras claves: Constitución, salud, políticas públicas
Palavras-chave: Constituição, saúde, políticas públicas
Keywords: Constitution, health, public policy
Mots-clés: Constitution, santé, politique publique
AUTOR
SOFIA CRISÓSTOMO
Assistente de investigação, CIES-IUL, Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal.
sofia_crisostomo@iscte.pt
Fundamentos constitucionais da
igualdade de género
The constitutional bases for gender equality
Fondements constitutionnels de l’égalité de genre
Fundamentos constitucionales de la igualdad de género
Sónia Fertuzinhos
Breve introdução aos fundamentos constitucionais da
igualdade
1 Uma das matérias que ilustra e fundamenta, com especial clareza, a ideia de que a
Constituição da República Portuguesa de 1976 “é certamente a mais original de todas as
constituições portuguesas e aquela que mais marcadamente rompe com a Constituição
precedente” (Canotilho e Moreira, 2014), é a que diz respeito à igualdade. No entanto, a
definição do princípio geral da igualdade (artigo 13.º), a que se somaram, em 1976 e nas
diferentes revisões constitucionais posteriores, várias “normas especiais” de igualdade,
marca não apenas a rutura com a Constituição de 1933 do Estado Novo, como uma nova
fase nos dois séculos de evolução histórica da exigência social, política, legal e
constitucional relativamente ao conceito de igualdade (Amaral, 2004).
2 O princípio da igualdade é um princípio estruturante do constitucionalismo e do estado
de direito, na sua relação com o princípio da liberdade e com a ideia de justiça, que é
comum a todos os direitos e deveres fundamentais. É um princípio que marca o
constitucionalismo moderno do final do século XVIII, como marca com igual relevância
e constância o constitucionalismo português (Miranda e Medeiros, 2010). Desde as
Bases da Constituição de 1821, que definem o princípio de que “a lei é igual para todos”,
que todas as Constituições e a Carta Constitucional que se lhe seguiram consagraram o
princípio da igualdade: as Bases da Constituição de 1821, no artigo 11.º; a Constituição
de 1822, no artigo 9.º; a Carta Constitucional de 1826, no artigo 145.º; a Constituição de
1838, no artigo 10.º; a Constituição de 1911, no artigo 3.º, n.º 2; a Constituição de 1933,
no artigo 5.º.
poderes públicos, dependendo a validade dos seus atos da conformidade com o objetivo
de promoção da igualdade entre mulheres e homens (artigo 3.º).
20 Até à revisão constitucional de 1997 a licitude das medidas de discriminação positiva
era considerada “assaz problemática” (Moreira, 1998). O preceito constitucional da
alínea h do artigo 9.º é a “credencial constitucional” (Moreira, 1998) que responde e
resolve os problemas e dúvidas de fundamentação legal das medidas de discriminação
positiva.
21 A análise do debate parlamentar deixa muito clara a intenção do legislador com a
introdução desta norma. Na oposição e único voto contra está o CDS, que pela voz da
deputada Maria José Nogueira Pinto considera que a igualdade entre homens e
mulheres já está consagrada no artigo 13.º da Constituição, que a sua inclusão no artigo
9.º é “colocar o problema na gaveta”, falhar as prioridades, “reconhecer a derrota” na
promoção dessa igualdade e “tratar as mulheres como minoria”, quando as mulheres
são “quantitativa […] e qualitativamente” uma maioria que lutará cada vez mais “pela
diferença do que pela igualdade”. Na maioria o PEV e o PSD deixam muito claras as
razões e os objetivos que justificam a necessidade desta norma na Constituição. A
deputada Isabel Castro do PEV responde às críticas do CDS quanto à não justificação
desta norma especial tendo em conta o artigo 13.º, dizendo: “Na verdade, não se trata
[…] de um direito cuja incorporação no texto constitucional não faz sentido, pois este já
consagra o direito de não discriminação em função do sexo. Trata-se de algo
radicalmente diferente: a incumbência do Estado de promover a igualdade. A promoção
da igualdade não é uma questão linear, não é uma fórmula, é no fundo a reformulação
do próprio conceito de democracia política.” A deputada Eduarda Azevedo do PSD
afirma o principal objetivo desta norma: “Queremos crer que, de hoje em diante estará
criado o enquadramento para acabar com o fosso existente e subsistente entre o direito
proclamado e a prática existente. A simples igualdade decorrente do artigo 13.º não tem
chegado.”
22 Este debate revela uma curiosidade que merece registo. A proposta inicial do PEV
referia “a promoção da igualdade entre mulheres e homens” e a redação final e atual
fixou a “promoção da igualdade entre homens e mulheres”. Esta alteração deve-se ao
acordo entre o PS e o PSD para que prevalecesse o critério da ordem alfabética na
redação. Os argumentos das proponentes de que as mulheres constituem a maioria da
população e de que o facto da desigualdade histórica ser a das mulheres em relação aos
homens justificava que a ordem fosse mulheres e homens, foram vencidos.
O princípio da igualdade — artigo 13.º
31 Coloca-se ainda a questão de saber como avaliar e medir o igual e o desigual, como
corrigir a desigualdade, como garantir a igualdade. A jurisprudência constitucional
distingue três dimensões no controlo do respeito pelo princípio da igualdade (Amaral,
2004; Miranda e Medeiros, 2010; Garcia, 2005; Canotilho e Moreira, 2014). A primeira
dimensão é a da proibição do arbítrio, que se traduz na imposição de tratar como igual
o que é igual e tratar como diferente o que é diferente. A segunda dimensão é a da
proibição da discriminação, tal como expressa no n.º 2 do artigo 13.º. Finalmente, a
terceira dimensão é a da obrigação de diferenciação, e concretiza-se pela introdução de
discriminações ou medidas positivas, que têm como objetivo compensar as
desigualdades de oportunidades.
32 O debate parlamentar traduz, de uma forma muito clara, a preocupação dos deputados
e das deputadas com a igualdade de facto, para além da igualdade formal, e com a
introdução de novos fatores reconhecida e comprovadamente discriminatórios, para
além dos já consagrados na Constituição, como o estado civil e o estado de saúde. As
sucessivas propostas de incluir o estado civil no n.º 2 do artigo 13.º, foram justificadas
pelos proponentes (PCP e deputada Helena Roseta do PPD) com base nas denúncias
pelas associações de mulheres da discriminação real e persistente destas no mercado de
trabalho. A sua rejeição teve na base o argumento de que os “grupos suspeitos” já
adotados não esgotavam, nem poderiam esgotar, todas as situações, mas que
respondiam à exigência de serem os mais abrangentes e consensualmente
reconhecidos.
33 A especificação da não discriminação da igualdade entre mulheres e homens no texto
do artigo 13.º, para além da não discriminação em função do sexo, é outra questão que
motivou várias propostas do PCP. Propostas que tinham o apoio e que se somavam aos
contributos das associações de mulheres, designadamente da Associação Portuguesa de
Mulheres Juristas e da Intervenção Feminina. Estas iniciativas nunca conseguiram
reunir a maioria necessária para a sua aprovação, sendo a justificação fundada na
discussão sobre os limites e razoabilidade das especificações das normas
constitucionais, em que a maioria do parlamento considerou a não discriminação em
função do sexo abrangente e claramente orientada para a garantia da defesa da
igualdade entre mulheres e homens.
Família, casamento e filiação — artigo 36.º, n.º 3
34 O princípio da igualdade dos cônjuges, declarado no n.º 3 do artigo 36.º, assume uma
“expressão qualificada” do princípio da igualdade de direitos e deveres entre mulheres
e homens, decorrente do n.º 2 do artigo 13.º (Beleza, 1977; Canotilho e Moreira, 2014).
Os cônjuges são iguais, sendo proibida qualquer discriminação jurídica na sua relação. O
princípio da igualdade abrange assim, não apenas os direitos civis e políticos, mas
também a família e as relações familiares. A família tem um valor constitucional
próprio, mas não se sobrepõe ao direito à igualdade, liberdade, personalidade e
dignidade de cada um dos seus membros (Miranda e Medeiros, 2010; Canotilho e
Moreira, 2014).
35 A adoção do princípio da igualdade dos cônjuges, logo na Constituição de 1976, impõe o
princípio da direção conjunta da família e rompe com a discriminação das mulheres na
esfera familiar na Constituição de 1933 e numa extensa legislação do Estado Novo, que
tinha como uma das suas missões “reeducar as mulheres” para a sua função
cuidar dos filhos entre as mães e os pais. A literatura chama, no entanto, a atenção para
a possibilidade de estes e outros instrumentos poderem ter efeitos contraditórios com o
objetivo da promoção da igualdade das mulheres e dos homens no mercado de trabalho
e na partilha das responsabilidades domésticas, se não forem utilizados tantos pelos
homens como pelas mulheres (Pinheiro e Fernandes, 1999). Medidas que obriguem à
não transferibilidade de direitos são um dos meios para evitar potenciais efeitos
contraproducentes. A licença de parentalidade em Portugal é um exemplo de política
pública que traduz não apenas o objetivo de garantir tempos diferentes para os pais e
para as mães no cuidar dos filhos, como diferencia positivamente (com mais tempo de
licença) quem utiliza a totalidade dos tempos definidos para os dois progenitores.
Família — artigo 67.º, n.º 2, alíneas b, d e h
54 O n.º 1 do artigo 67.º da Constituição, cuja redação atual foi aprovada na revisão
constitucional de 1982, reconhece ao mesmo nível a família enquanto instituição com
direito à proteção do estado e da sociedade, e a família enquanto instituição que existe
para a realização pessoal e individual dos seus membros (Miranda e Medeiros, 2010;
Canotilho e Moreira, 2014). A rutura da Constituição de 1976 com a Constituição de 1933
é radical. A família deixa de se sobrepor aos seus membros, deixa de haver uma
definição constitucional da família legítima e ilegítima, sendo reconhecidas todas as
formas de organização familiar para além do casamento, as mulheres assumem um
estatuto de igualdade, não estando os seus direitos e estatuto condicionados “em
função da sua natureza e do seu papel na família”, e cessa a distinção entre filhos
legítimos e ilegítimos.
55 O n.º 2 do artigo 67.º exemplifica algumas das responsabilidades e incumbências do
estado na proteção da família, concretizando o que se define no n.º 1. Das oito alíneas
desta norma, as alíneas b, d e h são bases importantes para as políticas públicas com o
objetivo de promover a igualdade de género.
56 A alínea b estabelece como responsabilidade do estado “promover a criação e garantir o
acesso a uma rede nacional de creches e de outros equipamentos de apoio à família,
bem como uma política para a terceira idade”. Atribuindo o artigo 67.º a
responsabilidade da proteção da família ao estado e à sociedade, esta norma não
determina a criação de uma rede pública de creches, ao contrário do que é definido na
Constituição relativamente ao ensino (artigo 75.º) (Moreira e Medeiros, 2010).
57 A alínea d resulta na sua redação atual da revisão constitucional de 1997, e refere a
incumbência do estado de assegurar o direito ao planeamento familiar e à promoção do
exercício da maternidade e paternidade responsáveis, no respeito pela liberdade
individual.
58 A alínea h foi introduzida na revisão constitucional de 2004 e assume duas dimensões.
Por um lado, impõe a articulação de diferentes políticas setoriais com o objetivo de
promover a conciliação da vida profissional e familiar. Por outro lado, legitima a
possibilidade de discriminações positivas a favor da família.
59 O debate parlamentar desta norma, desde logo no n.º 1, é controverso e marcado pela
recusa absoluta de qualquer referência à família que pudesse recuperar a noção e o
papel da família da ideologia e da estratégia política do Estado Novo. Na Assembleia
Constituinte a proposta do PSD e do CDS, de definir a família como elemento natural e
fundamental da vida em sociedade foi rejeitada. O deputado Luís Nunes do PS refere na
justificação do voto contra do PS, “o que aqui está […] a nossa história torna-o mau.
Porque o elemento natural da família é uma formulação que, historicamente, está
situada na esteira do imperialismo lusitano e dos elementos naturais”. É por esta ordem
de razão que na versão da Constituição de 1976 o n.º 1 deste artigo referia apenas a
proteção e o reconhecimento da constituição da família pelo estado. Nem mesmo
invocando a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que diz “A família é o
elemento natural e fundamental da sociedade e tem direito à proteção desta e do
Estado”, os proponentes conseguiram ver aprovada a sua proposta.
60 Na revisão de 1982 a solução de consenso entre a direita e a esquerda neste debate
parte da conciliação de uma proposta da AD — “A família é o elemento natural e
fundamental da sociedade” — e de uma proposta do PCP — “As famílias têm direito à
efetivação de todas as condições que permitam a realização pessoal de todos os
membros do agregado familiar”. Na discussão, a preocupação de deixar bem claro que
não cabe na Constituição a definição de família, e que esta não se sobrepõe aos direitos
de cada um dos seus membros é ainda fortemente marcada pela memória da
Constituição de 1933 e do anterior regime.
61 Na revisão de 1989, não sendo aprovada nenhuma das alterações ao n.º 1 propostas, a
preocupação do legislador de clarificar o sentido da redação da norma, que reconhece a
família, mas que esta é apenas uma das dimensões da vida dos indivíduos, ocupa de novo
boa parte do debate parlamentar, afastando mais uma vez qualquer conceção de família
que pudesse aproximar-se da ideia transpersonalista da mesma. A deputada Helena
Roseta defendeu a necessidade de o debate constitucional ser um debate pedagógico e
de o texto constitucional, para além da sua “pureza jurídica”, ser também um “marco
na evolução das mentalidades”, porque facilmente se passa da defesa da “família como
base da sociedade” para a “mulher como base da família”. A revisão de 1989, não tendo
aprovado nenhuma alteração ao n.º 1 do artigo 67.º, clarificou unânime e
intencionalmente o espírito e a interpretação do legislador relativamente ao mesmo.
62 Os debates das alíneas b e d são sobretudo marcados pela questão do maior ou menor
papel do estado na sociedade e na família.
63 O debate sobre a responsabilidade do estado de “promover a criação de uma rede
nacional de creches e de outros equipamentos de apoio à família” é desde o início um
debate entre os que defendem que ao estado cabe apenas “promover” essa rede porque
é reconhecido o papel das instituições sociais (PSD, CDS e PS) e os que consideram ser
essa uma responsabilidade direta do estado (PCP, UDP). Mas também entre os que
consideram que as creches são uma opção de política inquestionável no apoio à família
e na promoção da participação das mulheres no mercado de trabalho (PS, PCP), e os que
defendem não saber, como o deputado Sousa Tavares do PSD, “até que ponto uma rede
materno-infantil (redação da Constituição de 1976) não evoluirá no futuro para
soluções que não são as de creches propriamente ditas. Porque inclusivamente, os
países onde mais de desenvolvem os sistemas de creches — Suécia e Rússia — chegaram
à conclusão de que não conseguiam cobrir mais de 30% da população infantil, por mais
esforços que fizessem. E há bastantes dúvidas sociológicas sobre se se devia tentar
outras fórmulas ou se se deve insistir no sistema de creches.”
64 A discussão sobre o papel do estado em matéria de planeamento familiar é um debate
que se traduz na evolução do tratamento desta questão pelos diferentes partidos, ao
longo do tempo e em cada uma das revisões constitucionais. Se em 1976 os que
defendiam o planeamento familiar como um direito se opunham a que o estado tivesse
algum papel na efetivação desse direito, porque a intervenção do estado numa questão
da estrita esfera individual não era desejável nem defensável (deputado Jorge Miranda
do PSD), em 1982 foi possível consensualizar a redação atual, que mesmo assim não
obteve a unanimidade dos partidos com assento parlamentar. Diferentes
entendimentos sobre os limites do que deve ser inscrito na Constituição foram, em
1982, a dificuldade na obtenção da unanimidade, desde logo relativamente à ideia da
promoção pelo estado da “paternidade consciente”. O deputado Jorge Miranda
questionava o sentido dessa afirmação e a impossibilidade de o estado garantir esse
objetivo através da sua inscrição na Constituição.
Paternidade e maternidade — artigo 68.º
76 Vital Moreira (1998) defende que a relação entre a imposição de medidas positivas para
a igualdade fática entre mulheres e homens na participação política e cívica, por um
lado, e a não discriminação em função do sexo no acesso a cargos políticos, que remete
para o artigo 13.º, por outro, aponta para a necessidade de as medidas positivas a adotar
deverem ser a favor dos dois sexos (medida de discriminação bilateral) e não apenas a
favor de um dos sexos (medida de discriminação unilateral). Ou seja, de acordo com o
autor, se a Constituição assume como objetivo corrigir a sobrerrepresentação dos
homens na vida política, procura garantir que dessa correção não resulta a
sobrerrepresentação das mulheres.
77 As discriminações ou medidas positivas espelham a evolução do princípio da igualdade
que não aceita discriminações, para a discriminação ao serviço da igualdade (Garcia,
2005). Esta evolução é atravessada por uma “tensão necessária entre igualdade e
diferença e entre direitos individuais e identidades de grupos” (Garcia,2005). Toda a
discussão em torno do papel e da admissibilidade das medidas de discriminação
positiva em geral, e das quotas para mulheres no acesso à participação política em
particular, é o espelho disso mesmo. Alexandre Pinheiro e Mário Fernandes (1999)
assumem que recusam “liminarmente a invocação de argumentos históricos […] que,
com base numa discriminação negativa passada legitimem uma discriminação positiva
presente. […] O direito não pode ser uma vingança da história.”
78 De referir ainda que a Constituição fundamenta e legitima com o artigo 109.º a
promoção da igualdade efetiva das mulheres e homens na participação cívica e política,
mas não define em concreto as medidas positivas a adotar, sendo essa uma
responsabilidade e opção do legislador (Miranda e Medeiros, 2010; Canotilho e Moreira,
2014). As opções em matéria de medidas positivas dividem-se em medidas que têm
como objetivo promover condições de partida que permitam a concretização da
igualdade entre mulheres e homens, e medidas que se centram nos resultados
alcançáveis e a alcançar nessa mesma concretização, como é o caso das quotas (Beleza,
1977; Moreira, 1998).
79 O debate parlamentar do artigo 109.º reflete bem os argumentos, muitas vezes
radicalmente opostos, que o debate das medidas positivas com o objetivo da igualdade
na participação política das mulheres e dos homens suscita.
80 A deputada Eduarda Azevedo do PSD, numa intervenção em que refere e desenvolve a
ideia da democracia como um “processo evolutivo e persistente”, afirma que “começa a
generalizar-se a ideia de que não é correto falar em democracia em termos neutros,
uma vez que os seres humanos são homens e mulheres iguais em direitos e dignidade,
que devem gozar das mesmas oportunidades de realização”, e argumenta o apoio do seu
partido ao artigo 109.º porque “se impõe democratizar a democracia”. Ilustra que “É ao
nível da esfera pública que mais se faz sentir a exclusão das mulheres […]
independentemente da proclamação da igualdade formal. Existe um fosso efetivo entre
a igualdade proclamada e a igualdade vivida.” No mesmo sentido de apoio, a deputada
Natalina Moura do PS defende que com a aprovação desta norma a Constituição passa a
“consagrar a participação direta e ativa dos homens e das mulheres como condição e
instrumento fundamental da consolidação do sistema democrático”. Refere ainda que
“nas relações entre homens e mulheres, o exercício da cidadania plena exige, para além
de um tratamento de não discriminação jurídica, política e social, que se garanta a
aplicação de medidas positivas destinadas a corrigir as limitações de base social e
cultural de que as mulheres ainda são alvo no tempo presente”. O PCP, pela voz do
deputado Luís Sá justificava o voto a favor com “o sentido de garantir cada vez mais a
democracia paritária, que é o nosso objetivo, o fim de qualquer discriminação, seja de
que natureza for, em relação à mulher, sobretudo num campo que deveria ser aquele
em que a discriminação devia ser menos possível, que é exatamente o campo da
participação política”.
81 Completamente contra o artigo 109.º, o deputado Nuno Abecassis do CDS disse
“Lamentar o retrocesso da nossa Constituição […] as minhas colegas deputadas são
iguaizinhas a mim, não precisando de quotas para se afirmar, porque têm qualidade
mais do que suficiente. […] Gostam de ter uma Constituição que é um catálogo de
supermercado! […] Não somos um país do terceiro mundo! […] Daqui a algum tempo e
pela mesma razão, talvez queiram alterar a Constituição para defender os homens.”
82 A Assembleia da República aprovou em 2006 a proposta do governo que propunha a Lei
da Paridade, que prevê o limiar de 33% de representação mínima de cada um dos sexos.
Votaram a favor o PS e o BE, votaram contra o PSD, o CDS e o PCP. O artigo 109.º
constituiu a base legal para a apresentação da proposta de lei do governo, que referia
no preâmbulo que “mais do que uma simples repetição por via legislativa do princípio
da igualdade e de acesso a cargos políticos, [o artigo 109.º] implica sobretudo a
promoção de medidas tendentes a uma igualdade efetiva. Não se trata de uma mera
faculdade, mas de um verdadeiro dever de legislar”.
Conclusões
83 A análise dos fundamentos constitucionais da igualdade de género, enquadrada no
princípio geral da igualdade, permite várias conclusões e levanta várias questões para
debate.
84 A primeira conclusão é que a Constituição da República Portuguesa teve e tem um papel
fundamental, que se desenvolveu em dois tempos, na promoção da igualdade de género
e das políticas públicas desta área.
85 O primeiro tempo corresponde à aprovação da Constituição de 1976. As discriminações
das mulheres que decorriam da Constituição de 1933 e da lei em geral, na família, no
acesso ao emprego e às profissões, no acesso à educação, na participação cívica e
política foram efetiva e permanentemente revogadas com a aprovação da Constituição
de 1976. Os direitos das mulheres tiveram “modificações importantes por efeito do
mero facto da entrada em vigor da Constituição” (Beleza, 1977).
86 Reconhecendo este facto, várias autoras (Beleza, 1977; Viegas, 1977) lamentam e
chamam a atenção para o que a Constituição saída da Revolução de Abril deveria ter
evitado e o que poderia ter feito melhor. Devia ter evitado, por exemplo, qualificar o
papel insubstituível das mães na educação dos filhos (artigo 36.º, n.º 3), quer pela
controvérsia que sugeria, que ainda hoje sugere, quer porque reforçava “o peso dos
estereótipos tradicionais” que alimentavam em efeito spillover, como ainda hoje, uma
parte significativa de outras discriminações. Poderia ter feito melhor, pela aprovação
de uma disposição de âmbito geral dos direitos das mulheres, que teria utilidade
pedagógica, por um lado, e legitimaria, já nessa altura, as medidas positivas que fossem
sendo consideradas necessárias na promoção da igualdade entre mulheres e homens
(Beleza, 1977). Como poderia ter aprovado especificações da proibição da discriminação
em função do sexo, referindo concretamente a proibição das discriminações entre
doméstica, que definem, de forma transversal a várias áreas, políticas e objetivos para a
promoção e concretização da igualdade de género, ou a aprovação de planos de outras
áreas governativas que incluem especificamente a questão da igualdade de género,
como os Planos de Emprego ou os Planos de Inclusão.
91 O terceiro ponto é o da impossibilidade de compreender a evolução constitucional e do
quadro legislativo em geral relativo à igualdade entre mulheres e homens sem a análise
da influência da nossa integração no projeto europeu e a influência de várias
organizações internacionais, como a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o
Conselho da Europa e as Nações Unidas. Nos debates parlamentares a justificação de
várias normas constitucionais assume a influência direta ou indireta destas
organizações e dos documentos internacionais que vinculam Portugal. A consagração
da promoção da igualdade entre mulheres e homens no Tratado de Amesterdão (artigo
26.º, n.º 3) influenciou a adoção deste objetivo como incumbência do estado na
Constituição Portuguesa (artigo 9.º, alínea h) (Canotilho e Moreira, 2014). Diferentes
convenções da OIT determinaram as exceções ao princípio da não discriminação, para
garantirem a proteção das mulheres durante a gravidez e o parto (artigo 59.º, n.º 2,
alínea c). O Conselho da Europa e as Nações Unidas, a Conferência de Pequim, a
Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres
ou a Convenção Europeia sobre os Direitos do Homem, para dar alguns exemplos, são
recorrentemente citados pelos legisladores e legisladoras, quer na Constituinte, quer
nas diferentes revisões constitucionais.
92 O quarto e último ponto refere-se aos atores que, para além das e dos legisladores
constitucionais, influenciaram em cada momento ao longo dos 40 anos o texto da
Constituição da República Portuguesa em matéria de igualdade entre mulheres e
homens. A partir dos debates parlamentares é de destacar o papel das organizações de
mulheres. As propostas destas associações em geral, e da Associação Portuguesa de
Mulheres Juristas em particular, são constantes e partem da persistência das
desigualdades entre mulheres e homens como fundamentação para a especificação da
promoção da igualdade de género em várias normas, para além da proibição da
discriminação em função do sexo, para a consagração de medidas positivas em várias
áreas e para a atualização da promoção da igualdade pela introdução, por exemplo, do
princípio da conciliação da vida profissional e da vida familiar. O artigo 67.º, n.º 2, alínea
h, que consagra como incumbência do estado na proteção da família a promoção da
conciliação, resultou exatamente de uma proposta da Associação Portuguesa de
Mulheres Juristas.
93 Para concluir, a evolução dos fundamentos constitucionais foi marcada pela vontade
política, nem sempre unânime, mas claramente maioritária, para a sua aprovação, que
exige dois terços dos deputados e deputadas, de aproximar cada vez mais a “igualdade
real” da igualdade formal. A ideia de que temos uma das melhores legislações da Europa
em matéria de igualdade entre mulheres e homens, mas que a diferença entre essa
legislação e a realidade da vida das mulheres e dos homens é flagrante é recorrente e
constante (Ferreira, 1999; Amaral, 2004; Garcia, 2005; Beleza, 2010). No entanto, é
também consensual a certeza de que essa diferença é hoje clara e significativamente
menor do que era há 40 anos, e que esse resultado se deve, desde logo, à Constituição.
Basta pensar na presença das mulheres nos diferentes cargos políticos, seja no
parlamento, nas câmaras e assembleias municipais, nos diferentes governos, ou na
adesão dos homens à licença de paternidade.
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Conselho de Ministros.
Outras fontes
Diários da Revisão Constitucional de 1982, 1989, 1992, 1994, 1997, 2001, 2004 e 2005 relativos aos
artigos referidos.
RESUMOS
A Constituição da República de 1976 consagra pela primeira vez no ordenamento constitucional
português a igualdade de direitos das mulheres. Este artigo analisa a evolução dos fundamentos
constitucionais da igualdade de género ao longo dos 40 anos da Constituição e das suas sete
revisões, a partir da literatura e dos debates parlamentares. A rutura com a experiência
constitucional anterior, especialmente com a de 1933, e a dimensão transformadora da
Constituição saída da revolução estão na base do papel fundamental que esta última teve e tem na
promoção da igualdade de género e das políticas públicas desta área. A densificação da vertente
da igualdade de género no princípio da igualdade, marcada pela cada vez maior exigência de uma
igualdade fáctica e não apenas formal, ilustra e acompanha o percurso dos direitos das mulheres.
O estudo deste percurso permite identificar vários pontos para debate e aprofundamento em
futuros trabalhos de investigação. Desde logo a influência da participação de Portugal no projeto
europeu e em diferentes organizações internacionais, bem como a relevância do papel de
distintos atores no processo de construção do texto constitucional em matéria da igualdade de
género, com particular destaque para as organizações de mulheres.
The 1976 Constitution included equal rights for women in Portuguese constitutional law for the
first time. This article uses the literature and the texts of parliamentary debates to analyse the
evolution of the constitutional bases for gender equality over the 40-year life of the Constitution
and its seven reviews to date. The break with the previous constitutional experience, especially
that of 1933, and the transformative dimension of the Constitution that arose from the 1974
revolution are at the roots of the key role the latter had and has in promoting gender equality
and public policies in this area. The densification of the gender equality dimension of the
principle of equality, marked by increasing demand for factual and not just formal equality,
illustrates and accompanies the path taken by women’s rights. The study of that path makes it
possible to identify several points for discussion and deepening in future research, including the
influence of Portugal’s participation in the European project and in different international
organisations, and the importance of the role of different actors in the process of constructing
the constitutional text in the gender equality field, with particular attention to women’s
organisations.
La Constitution de 1976 consacre pour la première fois dans l´ordre constitutionnel portugais
l’égalité des droits des femmes. Cet article analyse l’évolution des fondements constitutionnels de
l’égalité de genre au long des 40 années de la Constitution et de ses sept révisions, à partir de la
littérature et des débats parlementaires. La rupture avec l’expérience constitutionnelle
précédente, en particulier avec celle de 1933, et la dimension transformatrice de la Constitution
issue de la révolution sous-tendent le rôle-clé que cette dernière a eu et a encore dans la
promotion de l’égalité de genre et des politiques publiques dans ce domaine. La densification de
la dimension de l’égalité de genre dans le principe de l’égalité, marquée par l’exigence croissante
d’une égalité de fait et pas seulement formelle, illustre et accompagne le parcours des droits des
femmes. L’étude de ce cours permet d’identifier plusieurs points de discussion et
d’approfondissement pour la recherche future, tels que l’influence de la participation du
Portugal au projet européen et à différentes organisations internationales, ainsi que l’importance
du rôle de différents acteurs dans le processus de construction du texte constitutionnel en
matière d’égalité de genre, en mettant l’accent sur les organisations de femmes.
ÍNDICE
Mots-clés: Constitution, principe de l’égalité, égalité de genre, politiques publiques
Keywords: Constitution, principle of equality, gender equality, public policies
Palavras-chave: Constituição, princípio da igualdade, igualdade de género, políticas públicas
Palabras claves: Constitución, principio de igualdad, igualdad de género, políticas públicas
AUTOR
SÓNIA FERTUZINHOS
Doutoranda em Politicas Públicas, ISCTE-IUL, Avenida das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa.
semsf@iscte.pt
Fundamentos constitucionais da
proteção social: continuidades e
ruturas
The constitutional bases for social protection: continuities and breaks
Fondements constitutionnels de la protection sociale: continuités et ruptures
Fundamentos constitucionales de la protección social: continuidades y rupturas
Ana Rita Ferreira, Daniel Carolo, Mariana Trigo Pereira e Pedro Adão e
Silva
Introdução
1 As quatro décadas de democracia traduziram-se numa enorme expansão da cobertura e
da generosidade do sistema de proteção social português. A combinação de garantia de
novos direitos e novas prestações sociais com o processo de maturação do sistema —
fruto de transformações positivas no mercado de trabalho — aumentou a despesa
social, com notáveis ganhos de eficácia, qualquer que seja o indicador que
consideremos. Se a maturação do sistema é uma característica distintiva da transição
democrática, outra, não menos marcante, é a convergência com os parceiros europeus.
As políticas de proteção social portuguesas europeizaram-se, quer incorporando
princípios organizadores promovidos a partir da Europa social, quer mimetizando
soluções inovadoras desenvolvidas por outros estados-membros.
2 A proteção social foi, por isso, uma área de grande transformação institucional, política
e económica que teve amplo impacto social. Com a transição para a democracia, a
arquitetura do estado social português alterou-se muito, com implicações materiais de
enorme alcance. Contudo, estas alterações tiveram um conjunto de singularidades,
desde logo quando se compara com outras áreas sociais (nomeadamente a saúde e a
educação).
3 Enquanto na saúde (com a criação do Serviço Nacional de Saúde) e na educação (com o
investimento na escola pública como mecanismo de promoção da igualdade de
52.º, alínea a), CRP 1976), ou seja, ao frisar que a proteção social se destinava àqueles
que se encontrassem sem trabalho contra a sua vontade.
9 Assim, ao contrário do que afirmava relativamente ao direito à saúde e à educação, que
eram assegurados a todos os cidadãos, a Constituição de 1976 parece tornar a garantia
deste outro direito social condicional: a segurança social pública será assegurada
apenas a quem cumprir (ou a quem tiver cumprido, ou a quem for familiar direto de
quem cumpriu) a condição de trabalhar e se vir impedido de a cumprir em algum
momento. Isto significa que a segurança social era pensada, segundo o modelo
bismarkiano, como um seguro social para aqueles que contribuíam financeiramente
para o próprio sistema, por via de descontos sobre os seus salários, e não como um
direito incondicional, a ser garantido por via de prestações sociais sem base
contributiva.
10 É, aliás, possível compreender este primado do modelo corporativo de proteção social
quando nos focamos num outro aspeto do texto constitucional: aquele que diz respeito
à componente redistributiva do sistema de impostos. A Constituição de 1976 afirma que
“o sistema fiscal será estruturado por lei, com vista a repartição igualitária da riqueza e
dos rendimentos e à satisfação das necessidades financeiras do estado” (art.º 106.º, n.º 1,
CRP 1976), o que, indo ao encontro da ideia social-democrata de necessidade de
redistribuir a riqueza de modo a reduzir as desigualdades, revela, simultaneamente,
como se entendia que esta função de diminuição do fosso entre os cidadãos mais
favorecidos e os mais desfavorecidos cabia ao sistema tributário e não ao sistema de
segurança social. Ou seja, ao tornar explícito que a fiscalidade assumirá este objetivo
igualitário e ao não afirmar o mesmo para o sistema de segurança social, a Constituição
deixa implícito que esta meta igualitária não será de facto o principal fim da proteção
social.
11 Porém, há ainda um outro aspeto que nos permite perceber como o modelo de proteção
social concebido na Constituição de 1976 se afastava da ideologia social-democrata
tradicional e se aproximava mais do conservadorismo político, nomeadamente tal como
reinterpretado pela democracia-cristã de meados do século XX: e este aspeto tem que
ver com o facto de o texto constitucional valorizar a existência de organizações
privadas de prestação de cuidados sociais. Efetivamente, o mesmo artigo relativo à
“segurança social” afirma que “a organização do sistema de segurança social não
prejudicará a existência de instituições privadas de solidariedade social não lucrativas”
(art.º 63, n.º 3, CRP 1976), o que indica que o “terceiro setor” era entendido como um
ator relevante, a par do estado, no desempenho de funções de segurança social. Esta
ideia vai ao encontro da valorização do papel das estruturas sociais intermédias,
nomeadamente a igreja, próprio do corporativismo, que leva a considerar que cabe a
estas estruturas, e não ao estado, a prestação de cuidados sociais (por exemplo, com
idosos, crianças, etc.).
12 Deste modo, é possível perceber que a Constituição de 1976 estabeleceu um sistema de
segurança social mais próximo de um modelo corporativo ou conservador, afastando-se
do princípio universalista social-democrata, de matriz beveridgeana. E este quadro não
se alterou substancialmente ao longo dos anos nas sucessivas revisões constitucionais
(em 1982, 1989, 1992, 1997, 2001, 2004 e 2005).
13 Com efeito, se é verdade que, a partir de 1982, enquanto diminuía a carga ideológica
associada ao período de transição democrática, a Constituição passou a afirmar de
forma clara que uma das tarefas fundamentais do estado consistia em procurar
um todo’", daí que o próprio TC já por diversas vezes tenha reconhecido “o direito à
pensão, nomeadamente, à pensão de velhice, invalidez e viuvez, como um direito
constitucionalmente protegido” (idem).
22 O facto de ter a força de um direito fundamental inscrito na CRP faz com o TC adote
sobre as pensões uma visão diferente daquela que revelou, anos antes, relativamente ao
RSI, considerando agora que o direito às pensões teria enraizamento suficiente para
dever ser abrangido e protegido pelo princípio constitucional da confiança. Por essa
razão, o TC considerou que os cidadãos tinham expectativas “legítimas” e
“justificadas”, criadas pelo estado, relativamente à continuidade destes benefícios,
tendo feito “planos de vida” baseados nesse pressuposto, não podendo a ação do estado
pôr em causa essa “estabilidade” sem que haja “razões de interesse público” que
justificassem uma ação tão extrema (idem). Ora, mesmo perante os argumentos do
governo sobre a necessidade de sustentabilidade do sistema público de pensões, de
justiça intergeracional e de convergência do regime de pensões da CGA com o regime
geral da segurança social para justificar este diploma legislativo, o TC não considerou
possível coartar-se, nesta situação, o “direito adquirido” à pensão por parte daqueles
que já eram beneficiários — nomeadamente por estes terem programado a sua vida em
função da auferição de um determinado montante de pensão, não podendo
reorganizar-se de outra forma por já não estarem inseridos na vida ativa. Por isso,
conclui o TC, “a redução das pensões operada através do artigo 7.º do Decreto n.º 187/
XII é uma medida regressiva que mina a confiança legítima que os pensionistas têm na
manutenção do montante de pensão que foi fixado com base na legislação vigente à
data em que se aposentaram” (idem), tanto mais que “o direito à pensão em pagamento
foi sempre salvaguardado, criando o estado expectativas de que os chamados ”direitos
adquiridos" não seriam afetados” (idem). Neste acórdão é, aliás, salientada a
importância da base contributiva destas pensões na criação destas expetativas justas e
sólidas (base que não existe nas prestações não contributivas), o que remete
precisamente para a natureza de seguro social associada a este sistema de proteção,
pois é-nos dito que “a confiança que os pensionistas depositam no sentido de
inalterabilidade das regras que serviram de base ao cálculo da pensão e do valor da
pensão que foi fixado no momento da aposentação resulta também da natureza
contributiva do sistema previdencial” (idem).
23 No fundo, este caso recente mostrou como a Constituição, ao proteger determinados
direitos (nomeadamente, a segurança na velhice e na doença), impede a prossecução de
políticas que limitam ou eliminam a proteção social necessária à sua efetivação (i.e., as
prestações pecuniárias pagas nestas situações). Além disso, os dois casos referidos — o
de 2002, relativo ao RSI, e o de 2013, relativo às pensões de aposentação, reforma,
invalidez e sobrevivência — vêm mostrar como o TC tem atuado como um garante da
força constitucional dos mecanismos de segurança social. No entanto, o que a
comparação entre estes dois casos não deixa igualmente de mostrar é o facto de alguns
tipos de proteção social assentarem num edifício mais frágil por não estarem
claramente enunciados no texto da Constituição. Prestações sociais não contributivas,
apesar da sua matriz social-democrata, não estão explicitamente consagradas como
direitos fundamentais e, por esse motivo, poderão ser mais facilmente postas em causa
do que prestações contributivas, que, pelo contrário, estão claramente vertidas no
enunciado constitucional.
37 Tal como vimos a maturação do sistema de pensões, constituiu a principal, ainda que
não única, rubrica de convergência com o modelo social europeu em termos de despesa
social.
38 Sendo importante notar que o crescimento da despesa social, sobretudo das pensões, foi
um fenómeno que se iniciou logo na década de 1960 (Carolo e Pereirinha, 2010). Assim,
para além do forte crescimento da despesa social no período 1960-1975, a um ritmo
muito superior ao dos países da então CEE, conforme foi demonstrado noutros estudos
[Maia (1984); Costa (1986); Carreira (1996: 470)], e da relevância da reforma da
previdência social de 1962 na institucionalização de um regime de segurança social que
cobrisse todos os trabalhadores, permitindo assim a inclusão dos trabalhadores rurais
entre 1969 e 1973 (Carolo, 2006), a transição para a democracia, para além do já
mencionado reconhecimento do direito à segurança social como condição de cidadania
com a Constituição de 1976, consagrou, pela nova Lei Orgânica da Segurança Social em
1977, a adoção de um modelo de financiamento por repartição em substituição do
anterior regime de capitalização (Mendes, 2005: 116). Importa salientar que este é o
regime de financiamento que tem vigorado até ao presente e que, por isso, terá sido a
principal reforma no sistema. Ainda que em termos práticos não se tenha repercutido
em alterações institucionais, esta decisão foi porventura a forma de financiar,
juntamente com os excedentes da previdência existentes, a expansão da cobertura
material e pessoal do “regime não contributivo”.
39 Contudo, esta fase expansionista, com recurso a um modelo de financiamento mais
eficiente, a repartição (também designado por PAYG), cedo sofreu um revés, fruto da
necessidade de ajustamento orçamental. Logo no início dos anos 80, na sequência da
crise de 1978 e da intervenção financeira do FMI, ocorreu um período de contenção da
despesa na segurança social, com o aumento dos prazos de garantia para as pensões de
velhice e a reformulação dos regimes de proteção social dos trabalhadores agrícolas.
Por conseguinte, pode considerar-se que mesmo antes da primeira Lei de Bases da
Segurança Social de 1984, já haviam sido introduzidos vários cortes e restrições no
acesso ao sistema de pensões, com o objetivo de travar o crescimento do número de
beneficiários, devido ao processo, porventura demasiado flexível, de alargamento da
cobertura dos esquemas de proteção social (Carolo, 2015: 132-133).
40 Mais tarde, na década de 1990, iniciaram-se as medidas de contenção da despesa nos
sistemas de pensões (Chuliá e Asensio, 2007), destacando-se as seguintes reformas:
Década de 1990
acrescentado, designado “IVA social” (Mendes, 2005: 124-125), cujas receitas revertem
para a segurança social.
42 Em 1995, já com o governo do PS (centro-esquerda), com maioria relativa, foi criada a
Comissão do Livro Branco para a reforma da segurança social. Esta comissão reuniu um
conjunto de especialistas e produziu um relatório com uma análise pormenorizada
sobre a evolução e lacunas do sistema e respetivas recomendações para a sua reforma.
Outro aspeto muito relevante levantado por esta comissão foi a denúncia do
aproveitamento do estado no financiamento do sistema, referindo o não cumprimento
do previsto na Lei de Bases de 1984, que estabelecia que as despesas com os regimes não
contributivos, ação social e administrativas, fossem financiadas pelo Orçamento de
estado e não pelo fundo previdencial (Carolo 2015: 114).
43 Ainda em 1999, na sequência de iniciativas pontuais em curso desde o final dos anos 80,
há que destacar a introdução de vários mecanismos de incentivo à reforma antecipada,
motivados pelo objetivo de estímulo à criação de emprego, sobretudo para as camadas
da população mais jovem, esperando ao mesmo tempo uma maior qualificação dos
recursos humanos e consequente aumento da produtividade do fator trabalho.
Reforma de 2000
plano constitucional à partida nada impediria. Assim poder-se-á concluir que não foi
pela CRP que não se fizeram reformas mais profundas no sistema.
47 Todavia, ainda nesta reforma, outro aspeto a considerar é a alteração da fórmula de
cálculo das pensões. Mais uma vez, a reforma foi além da Constituição, ao introduzir o
conceito de redistribuição do tipo de solidariedade intrageracional no sistema de
pensões previdencial (Carolo, 2015: 110), através da nova fórmula de cálculo das
pensões com taxas de formação regressivas, valorizando assim em termos relativos as
contribuições dos salários mais baixos, prevista na reforma de 2000 (PS) mas só
regulamentada em 2002 e que viria a merecer concordância do novo governo, sem
prejuízo de fazer aprovar uma nova Lei de Bases (PSD-CDS).
Reforma de 2007
52 Para além da Constituição, a europeização foi sem dúvida mais importante na expansão
do sistema (Pereirinha e Nunes, 2006) sobretudo nas inovações introduzidas, por
exemplo, com a criação do RMG/RSI (1996-2002), do que a fase inicial de
desenvolvimento democrático (1976-1985) em que se procurava “completar” a
universalização do sistema de segurança social, tanto em termos de população coberta
(cobertura pessoal) como de prestações sociais (cobertura material).
53 Mas esta mesma influência externa, que durante um longo período foi vista como um
constrangimento positivo, ao conferir incentivos à expansão do sistema, foi sendo
reconfigurada, sendo também, designadamente após a aplicação do PAEF, um
constrangimento negativo, ao promover a retração do sistema. Ainda assim, também
neste caso, a Europa funcionou como um recurso externo que tornou possível ao
governo nacional levar a cabo reformas que desejava implementar mas que de outra
forma não teria sido capaz. Desta feita, de sentido restritivo. Ou seja, após a crise
financeira, assistimos a um regresso do papel da Europa enquanto instrumento de
reforço da capacidade política e institucional do governo português, agora com novos
contornos. Se bem que o MdE não previsse alterações significativas nas áreas sociais, as
necessidades de ajustamento orçamental que se foram agudizando, levaram o governo a
intervir nos grandes agregados de despesa, nomeadamente nas pensões. Esta decisão
coexistiu com um redesenhar da rede de mínimos sociais, tornando o acesso às
prestações baseadas em direitos de cidadania mais restritivo, enquanto se reforçavam
as transferências para o 3.º setor e uma lógica assistencialista (Silva e Pereira, 2016).
54 Todavia, ao longo do período analisado, houve também outros efeitos positivos,
nomeadamente ao nível da eficácia no combate à pobreza e da promoção de maior
equidade na distribuição de rendimento. Eis alguns casos exemplares:
55 1996 — Criação do RMG como reconhecimento do direito ao rendimento (ainda que
mínimo) como condição de cidadania (e não reconhecimento de necessidade feito pelos
serviços, numa lógica assistencialista, o que não significa que não persista ainda uma
certa subjetividade no processo de decisão e até a cultura assistencialista por parte dos
técnicos e de algumas normas).
56 2000-2002-2005 — Aumento das pensões mínimas/CSI — decorrente da evidência dos
elevados índices de pobreza entre os pensionistas e trabalhadores em contraste com a
realidade europeia (Costa et al., 2008), reforçando assim o papel dos mínimos sociais no
assegurar de um rendimento digno assente na condição de cidadania.
57 2002-2007 — Enfoque na redistribuição de rendimento nas reformas operadas na
segurança social, ou pelo menos na necessidade de eliminar regressividades associadas
a algumas prestações sociais, sobretudo ao nível da fórmula de cálculo das pensões e
subsídio de desemprego.
58 2011-2014, PAEF — Apesar dos efeitos agregados negativos que as medidas tomadas
neste período tiveram no rendimento dos agregados familiares, os cortes nas pensões
incorporaram preocupações de progressividade. Contudo, e em contraste, os cortes em
prestações sociais, como o RSI, o CSI ou o abono de família, tiveram um impacto
claramente regressivo, atingindo os primeiros decis da distribuição de rendimentos,
contribuindo para o agravamento da pobreza e das desigualdades.
59 Do mesmo modo, ao olharmos para as reformas no sistema de pensões, verificamos que
estas foram motivadas, não exclusiva mas principalmente, por razões de controlo da
despesa — assentando, por vezes, em medidas contra a CRP, como foi o caso da
introdução da CES (Silva, Joaquim e Pereira, 2015).
60 Seguindo este pressuposto, a única reforma de natureza restritiva que poderia ser
entendida como seguindo um princípio constitucional de um regime de segurança
social unificado seria o encerramento da CGA para novos subscritores (2005) e a
respetiva aceleração da convergência prevista, em resultado da reforma de 2007, ainda
que salvaguardando os direitos adquiridos pela consideração de duas parcelas da
pensão (P1 e P2) na aplicação das novas regras de cálculo, com exceção do fator de
sustentabilidade, que se aplicou a todos os novos pensionistas logo em 2008, bem como
a legislação subsequente em 2009, que determinaria a aplicação das mesmas regras
entre CGA e RGSS. Note-se que esta foi talvez a primeira vez que se aplicou uma regra,
neste caso o FS, simultaneamente, aos dois subsistemas (CGA e RGSS). No plano
constitucional, com base na premissa de que a reforma de 2007 e as medidas nela
introduzidas foram, ainda que de forma implícita, a derradeira reforma da CGA com
vista à convergência total com o regime de segurança social (Carolo, 2015), é possível
argumentar que, após esta reforma, o sistema de pensões em Portugal está mais
próximo do preceito constitucional de um sistema de segurança social unificado que
deve ser providenciado pelo estado (artigo 63.º, n.º 2, CRP 1976).
61 Já no que concerne o período de intervenção externa (PAEF) apesar das inúmeras
medidas introduzidas (Silva, Joaquim e Pereira, 2015), estas seguiram o modelo de
cortes generalizados, tanto nos salários como nas pensões, diferenciados em função dos
níveis de rendimento, numa lógica de puro cost-containment, nalguns casos devidamente
sancionados pelo Tribunal Constitucional, sem todavia ter sido introduzida ou sequer
tentada qualquer reforma estrutural, porventura porque com o alcance tanto da
reforma da segurança social de 2007 como da aceleração da convergência da CGA, muito
pouca margem restava para que tal fosse possível, ao ponto de o memorando de
entendimento nem sequer prever qualquer corte ou reforma no sistema de pensões.
Maturação e convergência
62 As quatro décadas de democracia traduziram-se numa enorme expansão da cobertura e
da generosidade do sistema de proteção social português. A combinação de garantia de
novos direitos e novas prestações sociais com o processo de maturação do sistema —
fruto de transformações positivas no mercado de trabalho, nomeadamente ganhos
salariais e de produtividade — provocou um aumento da despesa social, com notáveis
benefícios de eficácia, qualquer que seja o indicador que consideremos.
63 Se a maturação do sistema é uma característica distintiva da democracia, outra, não
menos marcante, é a convergência com os parceiros europeus. As políticas de proteção
social portuguesas europeizaram-se, quer incorporando princípios organizadores
promovidos a partir da Europa social, quer mimetizando soluções inovadoras
desenvolvidas por outros estados-membros (Guillén, Álvarez e Silva, 2005; Silva, 2011).
64 A proteção social foi, por isso, uma área de profunda transformação institucional,
política e económica. Com a transição para a democracia, a arquitetura do estado social
português alterou-se muito, com implicações materiais de grande alcance. A figura 1 dá
conta disso mesmo. Independentemente do risco considerado, assistiu-se a um
crescimento significativo do número de beneficiários de prestações sociais. Em 40 anos,
o número de pensões pagas duplicou (situa-se hoje em redor dos 3 milhões); o de
Quadro 1 Número médio de anos de carreira contributiva dos novos pensionistas do regime geral
da segurança social — pensões de velhice
66 Não obstante a forte expansão da proteção social em Portugal nas últimas quatro
décadas — quer a nível dos riscos cobertos, quer ao nível dos beneficiários abrangidos
—, a evolução da despesa social pública em proporção da riqueza produzida segue uma
trajetória convergente com os patamares de despesa de grande parte dos países
europeus (figura 3). Portugal percorreu, com atraso, o caminho que muitos países
tinham iniciado 30 anos antes, logo após o pós-guerra, e com particular intensidade na
década de 60. Este caminho permitiu a criação e consolidação do estado social, tal como
o conhecemos hoje, e a aproximação dos padrões de desenvolvimento aos das restantes
democracias europeias.
Figura 3 Despesa pública em proteção social em % do PIB
ao longo das últimas duas décadas, em parte explicado pelo desenvolvimento de uma
rede de mínimos sociais destinada ao alívio da pobreza e da exclusão social.
Figura 4 Composição da despesa da segurança social com prestações sociais por principais
agregados
69 Uma das singularidades do estado social português é a forma como estado e 3.º setor se
articulam para garantir respostas sociais. Aliás, esta é uma matéria onde a margem de
manobra oferecida pela Constituição foi sendo utilizada para reforçar este pacto social.
71 Nas décadas de 1970 e 1980 a parceria entre o estado e as IPSS foi-se consolidando. A
partir dos anos 80, em particular, o número de IPSS cresce exponencialmente e
desenvolve-se uma vasta rede de equipamentos sociais — lares, creches, centros de dia,
cantinas sociais —, investimento em parte alavancado por fundos comunitários. Foi esta
parceria entre o estado e as IPSS, materializada no Pacto de Cooperação em 1996 e, mais
tarde, em 2006, com o programa PARES, que garantiu uma forte expansão da cobertura
territorial destes equipamentos e, em particular, das creches (figura 6). Esta articulação
de respostas coloca, no entanto, questões importantes quanto à capacidade de o estado
regular a atividade destas instituições, financiadas com recursos públicos, assim como
garantir que o princípio da igualdade de oportunidades é assegurado.
Figura 6 Cobertura nacional (Portugal continental) da resposta social “creche”
Considerações finais
72 Ao longo deste texto, procurámos demonstrar como a Constituição portuguesa
apresenta na área da proteção social um conjunto de singularidades, quando
comparada com outras áreas sociais. Enquanto na saúde e na educação, à transição para
a democracia correspondeu uma reorientação profunda do sistema, o mesmo já não é
verdade quando pensamos na proteção social. Neste domínio, o sistema manteve a sua
natureza bismarckiana, se bem que esta tenha passado a coexistir com um alargamento
muito significativo da proteção, quer quanto aos riscos cobertos, quer quanto à sua
intensidade. Se bem que, no sistema previdencial, a matriz ocupacional tenha
prevalecido, esta articula-se com uma rede de mínimos e de combate à pobreza de
natureza beveridgeana, fundada em direitos universais de cidadania.
73 Durante a democracia portuguesa, com a modernização da economia portuguesa e os
ganhos salariais e de emprego, assistiu-se a um processo de acelerada maturação do
estado social português, com evidentes ganhos de eficácia — visíveis, nomeadamente na
diminuição da pobreza e da sua severidade. Concomitantemente, primeiro com o
período de transição que se seguiu ao 25 de Abril, e, uma década depois, com a adesão à
União Europeia, o sistema de proteção social português beneficiou de um movimento de
modernização, visível na criação de novos direitos e, igualmente importante, em novos
princípios orientadores das políticas.
74 Em todo o caso, se bem que a Constituição tenha um conjunto de disposições relevantes
em matéria de proteção social — que, de facto, circunscrevem a margem política de que
gozaram os sucessivos governos —, não é menos verdade que, ao longo de quatro
décadas, os governos aplicaram medidas programaticamente distintas e
implementaram estratégias reformistas diferenciadas (quer no sentido dado às
reformas — mais ou menos restritivas ou expansionistas —, quer, aspeto
particularmente marcante, na divisão de responsabilidades entre estado, poder local e
3.º setor).
75 Outra dimensão importante para a governação na área da proteção social — e que
assumiu grande visibilidade no período recente, de aplicação do PAEF — remete para a
proteção constitucional dos direitos sociais. Tendo em conta a natureza ocupacional do
sistema previdencial, que está explícita no texto constitucional, naturalmente que as
prestações sociais assentes no seguro social gozam de um grau de proteção
constitucional muito significativo. Os sucessivos acórdãos do Tribunal Constitucional
durante a aplicação do MdE vão, aliás, nesse sentido. Contudo, a jurisprudência do
Tribunal Constitucional vai também no sentido de proteger o direito de todos os
cidadãos a um nível mínimo de recursos materiais, dando, assim, proteção à rede de
mínimos entretanto constituída.
76 Neste sentido, podemos afirmar que a trajetória de maturação e convergência do
sistema de proteção social português é consequência, por um lado, de um conjunto de
transformações económicas, sociais e demográficas ocorridas na nossa sociedade e, por
outro, de um processo político, no qual a afirmação programática dos governos foi
relevante, mas em que a europeização e o texto constitucional desempenharam papéis
igualmente determinantes. Europa e Constituição foram fundamentais ao darem
incentivos concretos para o desenvolvimento de soluções com configurações
específicas, mas também ao restringirem a margem de manobra política dos governos.
77 Hoje, o estado social português, à imagem do que sucede no espaço europeu, está
confrontado com um conjunto articulado de desafios. Por um lado, o da
sustentabilidade e da adequação; por outro, garantir a igualdade ao longo do ciclo de
vida e entre grupos sociais.
78 Da mesma forma que nas últimas quatro décadas a Constituição foi instrumental ao
enformar as opções políticas, dando autonomia ao poder político, mas, também,
circunscrevendo o espaço discricionário para a sua ação, o seu papel será também
fundamental no futuro.
79 Nesta perspetiva, há um conjunto de questões que se colocam:
80 Sobre a redistribuição ao longo do ciclo de vida: tendo em conta a evolução projetada
das taxas de substituição decorrentes das alterações à fórmula de cálculo das pensões
(reformas de 2002 e 2007), bem como o aumento da longevidade, como é que será
possível garantir um nível adequado de pensões de velhice para os futuros pensionistas,
equilibrando preocupações de sustentabilidade, equidade intergeracional e atendendo
às expectativas legitimas dos atuais contribuintes? Sobre a sustentabilidade financeira:
quais são as condições para alargar a base de financiamento do regime previdencial,
diversificando as fontes e preservando os princípios do seguro social, aliás não só
constitucionalmente consagrados como tendo sido reforçados pela jurisprudência do
Tribunal Constitucional? Qual a margem para expandir a rede de mínimos sociais,
assente na condição de recursos e em prestações diferenciais, e de que forma esta
expansão obriga a repensar a organização dos complementos sociais, assim como a
própria pensão social? De que forma deve evoluir a relação entre estado e 3.º setor na
promoção de respostas sociais, designadamente nos serviços prestados à família, e que
tipo de contratualização do financiamento e de regulação pública deve ser
desenvolvido?
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NOTAS
1. Foi, aliás, este decreto que deu origem à lei que transformou o rendimento mínimo garantido
em rendimento social de inserção.
2. Em 1981 absorvia apenas 1,7% da despesa social pública (Costa, 1986).
RESUMOS
Neste artigo discutimos de que forma a Constituição da República Portuguesa enformou as
escolhas políticas presentes na definição do estado social democrático e de que modo os
princípios constitucionais se fazem refletir na arquitetura do sistema e se foram alterando ao
longo do tempo. Argumentamos que, aquando da transição para a democracia, ao contrário de
outras áreas de políticas sociais, a segurança social manteve princípios organizadores anteriores.
Contudo, esta resiliência da matriz bismarckiana do sistema português não foi impeditiva da
expansão da proteção social portuguesa de acordo com princípios universais e concedeu aos
sucessivos governos margem de manobra para definirem políticas programaticamente distintas e
implementarem estratégias reformistas diferenciadas. Concluímos argumentando que, se bem
que a Constituição não tenha sido um limite intransponível para a ação política dos executivos,
esta tem operado de facto como um ponto de veto, nomeadamente pela forma como o Tribunal
Constitucional tem defendido o direito à proteção social, seja numa lógica de seguro social, seja
na sua vertente de mínimos sociais.
This article discusses the ways in which the Constitution of the Portuguese Republic has
embodied to the political choices made during the process of creating and defining a democratic
welfare state and how the various constitutional principles are reflected in the architecture of
the system and have gradually changed over the years. The authors argue that when Portugal
transitioned to democracy, unlike other areas of the country’s social policies the social security
system retained some of its earlier organising principles. Having said this, this resilience on the
part of the Portuguese system’s Bismarckian template has not prevented social protection from
expanding here in accordance with universal principles, and has given successive governments
manoeuvring room in which to define programmatically distinct policies and implement
differentiated reformist strategies. The paper concludes by arguing that while the Constitution
has not placed an insurmountable limit on governments’ political action, it has served as a point
of veto, namely by means of the way in which the Constitutional Court has defended the right to
social protection, be it in the form of social insurance, be it in the imposition of certain social
minima.
Cet article cherche à savoir comment la Constitution portugaise a influencé les choix politiques
présents dans la définition de l’État social démocratique et de quelle façon les principes
constitutionnels se reflètent dans l’architecture du système et ont changé au fil du temps.
L’auteur soutient que lors de l’instauration de la démocratie, contrairement à d’autres domaines
de politiques sociales, la sécurité sociale a gardé d’anciens principes d’organisation. Cependant,
cette résilience de la matrice bismarckienne du système portugais n’a pas empêché l’expansion
de la protection sociale portugaise selon les principes universels et elle a conféré aux
gouvernements successifs une marge de manœuvre pour définir des politiques distinctes au plan
programmatique et pour mettre en œuvre des stratégies réformistes différenciées. L’article
conclut en affirmant que même si la Constitution n’a pas formé une limite infranchissable pour
l’action politique des exécutifs, elle a fonctionné en pratique comme un point de veto,
notamment pour la manière dont la Cour constitutionnelle tend à défendre le droit à la
protection sociale, aussi bien dans une logique d’assurance sociale que de minima sociaux.
En este artículo discutimos de qué forma la Constitución de la República Portuguesa conformó las
decisiones políticas presentes en la definición del estado social democrático y de qué modo los
principios constitucionales se ven reflejados en la arquitectura del sistema y se fueron alterando
a lo largo del tiempo. Argumentamos que, en el momento de la transición para la democracia, al
contrario de otras áreas de políticas sociales, la seguridad social mantuvo principios
organizadores anteriores. Sin embargo, esta resiliencia de la matriz bismarckiana del sistema
portugués no impidió la expansión de la protección social portuguesa de acuerdo con principios
universales y concedió a los sucesivos gobiernos un margen de maniobra para definir políticas
programáticamente distintas e implementaron estrategias reformistas diferenciadas. Concluimos
argumentando que, si bien, la Constitución no ha sido un límite intransitable para la acción
política de los ejecutivos, esta ha operado de hecho como un punto de veto, a saber, por la forma
como el Tribunal Constitucional ha defendido el derecho a la protección social, sea en una lógica
de seguro social, o en su vertiente de mínimos sociales.
ÍNDICE
Mots-clés: état social, Constitution, européisation
Keywords: welfare state, Constitution, Europeanisation
Palabras claves: estado social, Constitución, europeización
Palavras-chave: estado social, Constituição, europeização
AUTORES
ANA RITA FERREIRA
Professora auxiliar convidada de Ciência Política na Universidade da Beira Interior, Covilhã,
Portugal. arita_ferreira@yahoo.com
DANIEL CAROLO
Research fellow do Institute of Public Policy Thomas Jefferson-Correia da Serra e Coordenador-
executivo do projecto Um Sistema de Pensões para o Futuro, Lisboa, Portugal.
dcarolo@ipp-jcs.org
Princípios constitucionais do
ordenamento do território
The constitutional principles applicable to spatial planning
Principes constitutionnels de l’aménagement du territoire
Principios constitucionales de la ordenación del território
Fernanda do Carmo
direito à habitação e urbanismo (artigo 65.º) e dos direitos e deveres de última geração,
como é o caso do direito ao ambiente e qualidade de vida (artigo 66.º), bem como para
atingir objetivos de desenvolvimento económico e social, como veremos no ponto
seguinte.
24 No caso do direito à habitação desde 1976 que a CRP estabelece que, para que este seja
efetivado, incumbe ao estado “programar e executar uma política de habitação inserida
em planos de reordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização
que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento
social” (artigo 65.º, alínea a). Resulta desta formulação uma incumbência de promover o
ordenamento do território com base em planos de reordenamento geral (com a
expressão “reordenamento” a frisar a necessidade de transformar uma realidade
existente, de conotação negativa), a desenvolver a montante da elaboração dos planos
urbanísticos reguladores da produção de solo urbano e da urbanização e edificação.
25 Também no caso do direito ao ambiente e qualidade de vida o texto constitucional de
1976 atribui ao estado uma incumbência de ordenamento do território: “ordenar o
espaço territorial de forma a construir paisagens biologicamente equilibradas” (artigo
66.º, n.º 2, alínea b). Neste caso a incumbência de ordenar o território assenta numa
preocupação geral de génese biofísica e paisagística que não se esgota nem confunde
com outras dimensões mais estritas ou setoriais da concretização deste direito,
designadamente a poluição, a criação de parques e reservas e a classificação e proteção
de paisagens e sítios, de forma a garantir a conservação da natureza e a preservação de
valores culturais e o aproveitamento racional dos recursos, salvaguardando a sua
renovação e estabilidade ecológica.
26 A leitura da Constituição permite-nos equacionar duas visões para o posicionamento do
ordenamento do território no quadro dos direitos sociais fundamentais: uma visão do
ordenamento do território como subsidiário do direito à habitação e do direito ao
ambiente e qualidade de vida e via instrumental para a concretização destes dois
direitos, ou uma visão do ordenamento do território menos redutora, que o posiciona
como uma política pública transversal e estruturante da organização territorial e do
desenvolvimento socioeconómico e, nesses termos, crucial para a boa concretização de
direitos e deveres sociais fundamentais e para o planeamento do desenvolvimento
económico e social num quadro de harmonia e equilíbrio territorial, sustentabilidade e
bem-estar social.
27 Defendemos esta última visão, que julgamos contextualizada à época da elaboração da
CRP e reconhecida na alteração constitucional de 1989, com a inscrição da tarefa
fundamental do estado de “assegurar o correto ordenamento do território”.
28 Esta solução constitucional que considera o ordenamento do território como uma tarefa
fundamental do estado a prosseguir em vários domínios constitucionais, com o recurso
ao planeamento, oferece-se contextualizada nas tradições e filiações do ordenamento
do território em Portugal, o planeamento urbanístico, o planeamento biofísico e o
planeamento regional, e nos ideais das comunidades profissionais e atores políticos que
ao longo do tempo participaram e influenciaram a redação da CRP, na sua origem e nas
posteriores revisões.5
29 Em reforço desta leitura salientamos que apesar da importância e premência que a
produção de habitação assumia em 1976, quando existiam gravíssimos problemas de
construção precária e insalubre, fenómenos de edificação ilegal e necessidades
acrescidas pelo retorno das ex-colónias, o texto originário da CRP não se limitou a
fomentar a produção de solo urbano por via de planos de urbanização, antes reforçou a
necessidade de enquadrar o planeamento urbanístico e a identificação de solo urbano
em visões de ordenamento geral do território.
30 E salientamos, também, que no âmbito do ambiente e qualidade de vida a inscrição no
texto originário da incumbência de “ordenar o espaço territorial de forma a construir
paisagens biologicamente equilibradas” deu, desde logo, expressão à noção de
organização territorial e de equilíbrio, racionalização e sustentabilidade do
desenvolvimento, em alinhamento com preocupações internacionais patentes na
Conferência de Estocolmo de 1972.
31 A formulação constitucional reconheceu ao ordenamento do território um papel
transversal e fundamental para a concretização do direito ao ambiente e este deu à
política de ambiente uma visão ampla e inovadora, numa perspetiva biofísica e
socioeconómica. Fadigas (2015: 133) refere que a valorização da paisagem no âmbito do
ordenamento do território representou uma inovação concetual e que a introdução das
questões ambientais no processo de ordenamento territorial foi um dos aspetos mais
marcantes das políticas públicas naquele período e no que se lhe seguiu.
32 Também Canotilho e Moreira (2007: 322 e 845) e Miranda e Medeiros (2006: 1341)
salientam o peso do direito ao ambiente no texto constitucional, frisando o caráter
pioneiro e a abordagem inovadora da associação entre ambiente e qualidade de vida
que, numa compreensão antropocêntrica do ambiente, levam a consagrá-lo como
direito fundamental. Segundo Canotilho e Moreira (2007: 855), a Constituição aponta
para uma visão de ambiente que considera sistemas ecológicos, físicos, biológicos e
fatores económicos, sociais e culturais, encerrando uma compreensão estrutural-
funcional de ambiente em que os sistemas e os fatores são interativos entre si e
produzem efeitos direta ou indiretamente sobre a qualidade de vida.
33 Não obstante, não podemos deixar de evidenciar que no texto constitucional de 1976 a
formulação do ordenamento do território e dos seus instrumentos de planeamento
apresentava uma conotação predominantemente urbanística e biofísica, uma vez que,
no domínio do desenvolvimento económico e social a Constituição consagrava um
quadro de planeamento específico, com órgãos próprios, destinado a orientar,
coordenar e disciplinar o desenvolvimento no sentido da transformação da economia e
da sociedade e, como tal, acima dos demais instrumentos de planeamento, configuração
que foi eliminada com as posteriores revisões constitucionais e com a evolução do
conceito de “Plano” para “planos de desenvolvimento económico e social”.
34 As alterações constitucionais nestes dois artigos ocorreram nas revisões de 1982, 1989 e
1997, registando-se uma evolução da consagração dos direitos à habitação e ao
ambiente e qualidade de vida que não afetou a visão inicial do ordenamento do
território, antes pelo contrário, reforçou-a.
35 No caso do direito à habitação as alterações iniciaram-se na revisão de 1989, com a
retirada das menções à socialização do solo urbano, através da sua nacionalização e
municipalização, a favor do recurso a instrumentos de expropriação dos solos urbanos
necessários à urbanização, mantendo-se nesta fase e até 1997, a atribuição de o estado e
das autarquias locais exercerem o efetivo controlo do parque imobiliário.
36 Em 1997 ocorreu uma revisão mais profunda do direito à habitação e da definição do
papel do estado. Em primeiro lugar a epígrafe do artigo 65.º foi alterada, passando de
“Habitação” para a “Habitação e urbanismo”, dando ao enunciar deste direito uma
1977-1980. Destas três iniciativas identificadas por Silva (1984: 32-33) só a aprovação da
orgânica de planeamento prosseguiu, embora a sua implementação nunca tivesse
chegado a realizar-se por completo. Silva (1984: 29) e Cravinho (1984: 44) referem uma
crónica inexistência de planeamento de médio prazo e o segundo sublinha a
contradição existente entre a consagração constitucional do planeamento e a
interrupção da experiência de planeamento regional que vinha dos anos 60, quando não
existia Constituição que o previsse.
76 Em 1980, tendo em perspetiva a futura adesão à CEE, foi reconhecida a existência de
capacidade e experiência de planeamento nas Comissões de Coordenação Regional,
através da Resolução n.º 307/80, de 30 de agosto,10 que veio determinar que enquanto
não fossem criados os departamentos regionais de planeamento, estes serviços
assumiriam a formulação de estudos de base para definição de estratégias de
desenvolvimento regional, de apoio à elaboração do plano anual e de médio prazo e de
preparação de programas de desenvolvimento regional.
77 Em 1986, a Lei Orgânica do Ministério do Plano e da Administração do Território
(MPAT) e, posteriormente, em 1991, a Lei Quadro do Planeamento (Lei n.º 43/91, de 27
de julho)11 vieram confirmar a atribuição a estas Comissões de funções de planeamento
do desenvolvimento económico e social ao nível regional, 12 até à instituição das regiões
administrativas,13 funções que estas entidades têm vindo a desempenhar, no quadro das
obrigações da política de desenvolvimento regional europeia e no quadro da política de
ordenamento do território e dos seus instrumentos de desenvolvimento territorial de
âmbito regional.
78 Esta decisão, estabilizada em 1991 e relançada em 1998, com a configuração do sistema
de gestão territorial, promoveu a integração da execução e condução técnica das
políticas de ordenamento do território, ambiente e desenvolvimento regional numa
mesma entidade regional, criando algumas condições para, na nossa ótica, cumprir
melhor os desígnios constitucionais atuais, na ausência de regiões administrativas.
79 Todavia, independentemente da questão da entidade competente ao nível regional, o
sistema de planeamento económico e social nunca chegou a ser efetivado na sua
plenitude e alcance, nem na versão original de 1976, o que facilmente se compreende,
nem na versão constitucional atual, resumindo-se às grandes opções do plano, anuais e
plurianuais, a algum planeamento setorial autónomo e, ao nível regional, por um lado,
aos planos e programas de desenvolvimento impostos pela política regional europeia
em cada ciclo de fundos comunitários e, por outro lado, aos Planos Regionais de
Ordenamento do Território (PROT), no quadro do Programa Nacional da Política de
Ordenamento do Território (PNPOT). Todavia, estes dois processos de planeamento e
gestão do desenvolvimento territorial regional, que deveriam ser integrados e articular
cabalmente o ordenamento do território com o desenvolvimento regional nem sempre
se articulam no tempo e na forma e, em determinadas situações, nem no espaço, e
escasseiam na objetivação do investimento público em articulação com as grandes
opções e o orçamento.
80 Salienta-se a propósito da articulação de instrumentos a nota de Canotilho e Moreira
(2007: 1033), que referem que o planeamento constitui o principal instrumento de
orientação pública da economia, quer por via da programação do investimento público,
quer pela articulação dos vários instrumentos de fomento e de incentivo, salientando a
função dos planos de coordenar e conferir unidade aos instrumentos públicos de
regulação económica.
86 A política de ambiente tem prosseguido a sua afirmação sob proteção das imposições e
diretivas comunitárias, mas encontra fortes obstáculos à concretização dos desígnios do
desenvolvimento sustentável, por falhas de integração do ordenamento do território e
do desenvolvimento económico e social.
O ordenamento do território como contribuinte da
concretização dos princípios de subsidiariedade,
autonomia, descentralização e participação
87 O princípio democrático do estado assenta em três componentes formais de
organização da democracia política: (i) a soberania ou vontade popular que concede o
poder político através de sufrágio universal, igual, direto e secreto; (ii) a participação
democrática dos cidadãos na resolução dos problemas nacionais, sob variadas formas e
instâncias; (iii) a descentralização, por via da autonomia local e regional (Canotilho e
Moreira, 2007: 206).
88 Da conjugação destas três componentes resultam, na nossa perspetiva, duas ideias
principais que perpassam o texto constitucional e conformam princípios fundamentais:
a participação e envolvimento dos cidadãos na definição e na aplicação das políticas
públicas (que visam a resolução dos problemas nacionais), como princípio básico; e a
territorialização das políticas públicas, através de várias formas de partilha de poderes,
de legitimação e de definição de espaços de racionalidade da decisão pública, enquanto
instrumento essencial da consagração daquele princípio.
89 Em complemento, referem os autores acima citados que o estado de direito
democrático visa a realização da democracia económica, social e cultural, traduzida nas
responsabilidades públicas de promoção do desenvolvimento económico, social e
cultural, de satisfação de níveis básicos de prestações para todos e de correção de
desigualdades sociais, entre outras dimensões, e, em simultâneo, o aprofundamento da
democracia participativa, na medida em que estas duas dimensões são fundamentais
para a democracia plena (Canotilho e Moreira, 2007: 209-211).
90 Como foi evidenciado nos pontos anteriores, a política de ordenamento do território,
em particular através do seu sistema de planeamento, tem um papel importante na
concretização dos princípios da subsidiariedade, da autonomia, da descentralização e
da participação, previstos na CRP e na ordem jurídico-administrativa
infraconstitucional desenvolvida ao abrigo dos princípios constitucionais e das reservas
de competência legislativa.
91 Sem querer repetir o que já foi explanado, passamos a sistematizar o contributo do
ordenamento do território para a concretização dos princípios de subsidiariedade,
autonomia, descentralização e participação.
92 Em primeiro lugar, o ordenamento do território contribui para estes princípios através
da concretização das funções de planeamento, gestão e prestação de serviços que
enformam as incumbências do estado, no seu sentido amplo, associadas à tarefa de
“assegurar um correto ordenamento do território”. Essas tarefas inscrevem-se:
93 quer no quadro dos princípios fundamentais — no âmbito do artigo 9.º, abarcando: a
proteção e valorização do património cultural, a defesa da natureza e do ambiente e a
preservação dos recursos naturais; a promoção do bem-estar e da qualidade de vida e a
territorial autárquica, passíveis de se constituir nas grandes áreas urbanas e nas ilhas
(artigo 236.º).
105 Embora a Constituição preveja, desde 1976, a criação de regiões administrativas, e
apesar de várias iniciativas legislativas dirigidas nesse sentido — nomeadamente, em
1982, a publicação dos princípios e opções da regionalização, em 1991, a Lei Quadro das
Regiões Administrativas e, em 1998, a lei da criação das oito regiões administrativas,
objeto de referendo — não foi até agora concretizada a criação efetiva das regiões,
tendo a questão ficado arredada do debate político principal a partir de 1998, com o
resultado negativo do referido referendo.
106 Como referem Canotilho e Moreira (2007: 1033, 1037), a Constituição prevê um sistema
de planeamento multinível, que inclui planos nacionais da responsabilidade do estado,
com declinações setoriais e regionais, mas também planos regionais das entidades
territoriais de âmbito regional, quer as regiões autónomas, com competências de
aprovar o seu plano de desenvolvimento económico e social e participar no nacional,
quer as regiões administrativas, com competências de elaboração de planos regionais e
participação na elaboração dos nacionais.
107 Na ausência das regiões administrativas, tem cabido às regiões-planeamento e às
respetivas CCDR, enquanto órgãos da administração periférica do estado competentes,
a execução e condução das políticas públicas de ordenamento do território, ambiente e
desenvolvimento regional, o apoio às autarquias e a programação e governação de
fundos estruturais e de investimento, prosseguindo os princípios constitucionais e as
diretrizes do quadro legal de desenvolvimento infraconstitucional, no âmbito regional.
Conclusões
108 O ordenamento do território foi inscrito no texto original da Constituição de 1976,
como uma obrigação do estado transversal e enquadradora da efetivação dos direitos à
habitação e ao ambiente e qualidade de vida e como um instrumento necessário ao
planeamento de base económica.
109 Em 1989 reforçou o seu estatuto constitucional, ao ser assumido explicitamente como
uma tarefa fundamental e autónoma do estado, e ganhou amplo espaço no domínio do
planeamento do desenvolvimento económico e social, a partir da eliminação do
planeamento económico dirigista.
110 O estatuto constitucional que reconhecemos ao ordenamento do território tem
tradução na ordem jurídica infraconstitucional mas não tem, todavia, correspondentes
reflexos na prática, nem na importância social que lhe é, frequentemente, atribuída,
nem no seu efetivo desempenho no quadro das demais políticas públicas.
111 Para a concretização da ambição que a Constituição impõe falta prática de planeamento
de base territorial no seu ciclo processual completo, falta cumprir melhor o
planeamento do desenvolvimento económico e social, numa lógica do desenvolvimento
territorial alicerçado no ordenamento do território e no desenvolvimento regional, e
falta também, ou sobretudo, organização político-administrativa estável e consistente,
capaz de responder aos encargos e obrigações constitucionais.
112 Na presente legislatura o XXI Governo Constitucional inscreveu no seu programa uma
medida de reforma da administração territorial ao nível regional da qual se espera um
contributo significativo para o aprofundamento dos princípios constitucionais, no
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NOTAS
1. Segundo Miranda e Medeiros (2006: 185), o texto constitucional apresenta uma sequência
programática de crescente densificação, devendo entender-se as tarefas como fins ou grandes
metas a atingir pelo estado, e as incumbências como especificações de tarefas ao serviço de
direitos e interesses a salvaguardar ou a promover. Salientam que “a referência ao Estado
significa, aqui, o Estado — poder central, manifestado, primeiro, através dos órgãos de soberania
e, depois, através de outros órgãos e até de pessoas coletivas em que, por razões funcionais, se
desdobra. Já relativamente a muitas das incumbências que ao Estado são atribuídas no domínio
dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais o termo Estado abrange também as
regiões autónomas e, por vezes, as autarquias locais.”
2. A Lei n.º 48/1998, de 11 de agosto aprovou a primeira Lei de Bases da Política de Ordenamento
do Território e de Urbanismo perspetivando a existência de regiões administrativas mas
estabelecendo mecanismos supletivos de exercício de competências até à sua criação. Esta Lei foi
revista pela Lei n.º 31/2014, de 30 de maio
3. Embora o ordenamento do território não configure uma política comum, existe um historial de
construção de referenciais europeus partilhados, no âmbito de reuniões informais dos ministros
responsáveis pelo ordenamento do território, cujo expoente foi, uma década mais tarde, o
documento European Spatial Development Perspective.
4. Em 1986, sob a égide do ministro Valente de Oliveira, reformou-se o aparelho do estado com a
criação do Ministério do Plano e da Administração do Território, responsável pelo planeamento
regional e pela coordenação de políticas numa perspetiva global (incluindo a matéria económica),
pela administração local, pelo ordenamento do território e pelos recursos naturais e ambiente. As
Comissões de Coordenação Regional foram integradas no MPAT, na qualidade de órgãos da
administração periférica do estado, sendo-lhes atribuída a execução e promoção destas áreas de
política e a participação na programação e gestão dos fundos comunitários.
5. Salienta-se, em 1976, o papel de Gonçalo Ribeiro Teles enquanto subsecretário de estado do
Ambiente em conjunto com o secretário de estado da Habitação e Urbanismo, Nuno Portas, no I
Governo Provisório e, no início dos anos 80, como Ministro da Qualidade de Vida, na projeção das
políticas de ambiente e na ascensão do planeamento biofísico.
6. Note-se que as expropriações deixam de ser associadas ao controlo do parque imobiliário,
passando a estar associadas à utilidade pública de execução dos planos urbanísticos.
7. A elaboração da Lei de Bases de 1998, promovida pelo ministro João Cravinho, constituiu um
marco fundamental na afirmação da política de ordenamento do território como política pública
autónoma e na construção de um sistema de gestão territorial e de coordenação das políticas de
base territorial, no espírito da CRP.
8. Na recente revisão da Lei de Bases (Lei n.º 31/2014, de 30 de maio) a distinção entre
“instrumentos de planeamento territorial” e “instrumentos de desenvolvimento territorial”
passou a ser efetuada através da terminologia “planos territoriais” e “programas territoriais”.
9. Isto não obstante o conceito de região Plano, evoluído para região-planeamento, ter mantido a
sua importância no planeamento do desenvolvimento territorial, continuando a ser a base das
circunscrições territoriais de atuação das CCDR.
10. Estas Comissões foram herdeiras dos Comissões Regionais de Planeamento, criadas no final
dos anos 60 no âmbito dos Planos de Fomento, estando “incumbidas de exercer, no respetivo
âmbito regional, a coordenação e compatibilização das ações de apoio técnico, financeiro e
administrativo às autarquias locais e executar, no âmbito dos planos regionais e em colaboração
com os serviços competentes, as medidas de interesse para o desenvolvimento da respetiva
região, visando a institucionalização de formas de cooperação e diálogo entre as autarquias locais
e o poder central” (Decreto-Lei n.º 494/79, de 21 de dezembro: artigo 3.º).
11. Aprovada a par com a aprovação da Lei Quadro das Regiões Administrativas (Lei n.º 56/91, de
13 de agosto).
12. Por via da Lei Orgânica do MPAT, as CCR passam a ser os “organismos incumbidos de, no
respetivo âmbito regional, coordenar e executar as medidas de interesse para o desenvolvimento
da respetiva região, promovendo as necessárias ações de apoio técnico e administrativo às
autarquias locais nela compreendidas, em ligação com os serviços centrais envolvidos na sua
realização”, e são identificadas como os órgãos regionais de planeamento para efeitos do previsto
no âmbito do sistema de planeamento (Decreto-Lei n.º 130/86, de 7 de junho, artigos 46.º e 47.º).
Em 1991, a Lei Quadro do Planeamento, estabeleceu que, “até à instituição das regiões
administrativas, incumbe às comissões de coordenação regional preparar e acompanhar a
execução dos planos regionais incluídos no Plano” (Lei n.º 43/91, de 27 de julho, artigo 12.º).
13. Segundo Canotilho e Moreira (2007: 1037), “deve distinguir-se, quanto aos planos regionais,
entre aqueles que não passam de desenvolvimentos regionais dos planos estaduais e os planos
próprios das regiões autónomas (artigo 227.º, n.º 1, alínea p) e das regiões administrativas (artigo
n.º 258.º), que constituem expressão da respetiva autonomia regional e autárquica”.
14. A Lei de Bases foi revista em 2014, encontrando-se atualmente em vigor a nova Lei da Política
Pública de Solos, de Ordenamento do Território e Urbanismo (Lei n.º 31/2014, de 30 de maio).
RESUMOS
O presente artigo tem como objetivo analisar o posicionamento do ordenamento do território na
Constituição da República Portuguesa, considerando os princípios e fundamentos constitucionais
e os desenvolvimentos introduzidos pelos processos de revisão. Com este objetivo analisa-se a
inscrição do ordenamento do território como tarefa fundamental do estado, bem como a sua
This article aims to analyse the position of spatial planning in the Constitution of the Portuguese
Republic (CRP), while considering the various constitutional principles and bases and the
developments introduced by the periodic revisions since the original text in 1976. The authors
look at how the CRP makes spatial planning one of the state’s fundamental tasks, and at how it is
linked to the rights to housing and urbanism, the environment and quality of life, the promotion
of economic and social development, territorial cohesion and the implementation of the
principles of subsidiarity, autonomy, decentralisation and participation, presenting a contextual
reading of the changes over the years. They conclude that the constitutional status of spatial
planning is broad, demonstrating a theoretical / conceptual social importance that is not fully
reflected in its practical application.
Este artículo tiene como objetivo analizar la posición de la ordenación del territorio en la
Constitución Portuguesa, considerando los principios y los fundamentos constitucionales y
desarrollos introducidos por el proceso de revisión. Con este objetivo se analiza la ordenación del
territorio como una tarea fundamental del Estado, así como su asociación con los derechos a la
vivienda y urbanismo y el medio ambiente y calidad de vida, la promoción del desarrollo
económico y social y la cohesión territorial y la aplicación de los principios de subsidiariedad, la
autonomía, la descentralización y la participación, presentando una lectura contexto de los
cambios observados. Llegamos a la conclusión de que la situación constitucional de la ordenación
del territorio es amplia, lo que demuestra una importancia social que no se reconoce en su
aplicación práctica.
ÍNDICE
Mots-clés: Constitution portugaise, aménagement du territoire, logement et urbanisme,
environnement et qualité de vie, développement économique et social, région-planification
Palabras claves: Constitución Portuguesa, ordenación del territorio, vivienda y urbanismo,
medio ambiente y calidad de vida, desarrollo económico y social, región de planificación
Keywords: Portuguese Constitution, spatial planning, housing and urbanism, environment and
quality of life, economic and social development, planning region
AUTOR
FERNANDA DO CARMO
Doutoranda em Políticas Públicas, Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), Rua da
Figueirinha n.º 25, 2º dt.º, Oeiras, Portugal.
fmr.carmo@gmail.com
O território na constituição da
República Portuguesa (1976-2005):
dos preceitos fundadores às
políticas de território do futuro
Territory in the Constitution of the Portuguese Republic (1976-2005): from the
founding precepts to the territorial policies of the future
Le territoire dans la Constitution Portugaise (1976-2005): des principes
fondateurs aux politiques de territoire du futur
El territorio en la Constitución de la República Portuguesa (1976-2005): de los
preceptos fundadores a las futuras políticas del territorio
João Ferrão
Introdução
1 Este texto centra-se na relação território — Constituição da República Portuguesa
(CRP), analisando-a a partir de três questões: (i) de que forma é o “território”
considerado na versão originária da CRP (1976)?; (ii) qual a evolução ocorrida desde
então até à versão em vigor em 2016 (aprovada em 2005)?; (iii) em que medida
condiciona a atual CRP a formulação e execução de uma nova geração de políticas de
território? A resposta a estas três questões permite identificar as questões que os
deputados da Assembleia da República consideraram pertinente introduzir em
contextos sociopolíticos e temporais distintos no domínio em análise e esclarecer até
que ponto os novos conteúdos entretanto aprovados favorecem, obstaculizam ou são
neutros em relação ao desenho de novas políticas de território, tanto explícitas como
implícitas.
Novo, caracterizado por fortes restrições, tanto sociais (por género, por exemplo) como
políticas, à livre mobilidade dos cidadãos. Um novo significado ao objetivo e ao
conteúdo do artigo 44.º da Constituição de 1976 é conferido atualmente por fatores tão
diversos como a criação do Espaço de Schengen (que assegura a livre circulação de
pessoas dentro dos países signatários, no caso de Portugal desde 1991) e a multiplicação
de programas da União Europeia de apoio à mobilidade de pessoas (de que o Programa
Erasmus, nas suas diversas versões, constitui a principal referência), ou, com um
significado totalmente distinto, a emigração induzida pelo recente contexto de crise e
subsequentes medidas de austeridade ou a ascensão de nacionalismos acompanhada
pela construção de barreiras e muros fronteiriços por governos que invocam questões
de segurança face a possíveis ataques terroristas ou a fluxos incontrolados de
deslocados. No título III (“Direitos e deveres económicos, sociais e culturais”), o
capítulo III, relativo a direitos e deveres sociais, inclui referências ao território mas
atribui-lhe um caráter supletivo em relação a temas específicos: a habitação (artigo
65.º) e o ambiente e a qualidade de vida (artigo 66.º). No primeiro caso (habitação), o n.º
2 do referido artigo estipula que “Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao
estado”, entre outros aspetos, “Programar e executar uma política de habitação
inserida em planos de reordenamento geral do território e apoiada em planos de
urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de
equipamento social.” No segundo caso (ambiente e qualidade de vida), o n.º 2 do artigo
66.º refere que “Incumbe ao estado, por meio de organismos próprios e por apelo a
iniciativas populares”, entre outros aspetos, “Ordenar o espaço territorial de forma a
construir paisagens biologicamente equilibradas.” Ou seja, o ordenamento do território
não é apresentado de forma autónoma, como um objetivo em si próprio, mas antes
como um meio associado a duas finalidades específicas: o direito a uma habitação
condigna (artigo 65.º, n.º 1) e o direito a um “ambiente de vida humano, sadio e
ecologicamente equilibrado” (artigo 66.º, n.º 1). Recorde-se que a Lei de Bases da
Política de Ordenamento do Território e de Urbanismo (Lei n.º 48/98, de 11 de agosto)
só viria a ser aprovada 22 anos mais tarde. Apenas com a aprovação desta lei ganha o
ordenamento do território o estatuto de política pública autónoma. Em suma, e no que
diz respeito aos direitos e deveres fundamentais, o “território” merece uma menção
explícita em cinco domínios: princípio da igualdade; extradição e expulsão; direito de
deslocação e de emigração; habitação; ambiente e qualidade de vida. Importa ponderar
em que medida as alterações políticas, sociais e culturais entretanto ocorridas, ou
previsíveis a curto ou médio prazo, justificam tanto a introdução de alterações em
alguns dos referidos artigos como a reinterpretação do seu significado e uma maior
consciencialização das suas limitações e implicações. A atual versão da Constituição (VII
revisão, 2005) irá dar uma resposta parcial a algumas das questões levantadas.
5 c) O território como referencial de planificação regional da organização económica O terceiro
grande desígnio a merecer uma referência explícita à componente territorial diz
respeito à planificação regional da organização económica, uma preocupação que foi
ganhando força no âmbito dos diversos Planos de Fomento, 1 sobretudo no contexto
modernizador do período marcelista, e que agora recebe um novo estímulo a partir do
conceito de planificação central então vigente nos designados países socialistas da
Europa de Leste. Não surpreende, portanto, que a parte II (“Organização económica”)
da CRP76 inclua diversas referências explícitas ao território, sobretudo na ótica do
combate às assimetrias territoriais e da planificação regional da organização
económica. No título II (“Princípios gerais”), o artigo 81.º, sobre as incumbências
prioritárias do estado, consagra dois dos seus 14 itens a questões territoriais: alínea e —
“Orientar o desenvolvimento económico e social no sentido de um crescimento
equilibrado de todos os setores e regiões”; e alínea i — “Eliminar progressivamente as
diferenças sociais e económicas entre a cidade e o campo”. Nos artigos do título III
(“Plano”) são diversas as menções explícitas ao “território” na sua dimensão regional. O
n.º 2 do artigo 91.º (“Objetivos do Plano”) refere que “O Plano deve garantir o
desenvolvimento harmonioso dos setores e regiões” e “a justa repartição individual e
regional do produto nacional”. No n.º 3 do artigo 94.º estabelece-se que “O implemento
[sic] do Plano deve ser descentralizado, regional e setorialmente, sem prejuízo da
coordenação central, que compete, em última instância, ao Governo.” Finalmente, no
artigo 95.º (“Regiões Plano”) defende-se que: “1. O país será dividido em regiões Plano
com base nas potencialidades e nas características geográficas, naturais, sociais e
humanas do território nacional, com vista ao seu equilibrado desenvolvimento e tendo
em conta as carências e os interesses das populações; 2. A lei determina as regiões Plano
e define o esquema dos órgãos de planificação regional que as integram.” Por último, no
título IV (“Reforma agrária”), para além de outras menções implícitas a questões de
natureza territorial, o artigo 98.º (“Minifúndios”) salienta a especificidade que a
reforma agrária deverá assumir em “regiões minifundiárias” de forma a adequar-se à
dimensão das explorações (“integração cooperativa de diversas unidades”, ou
“emparcelamento ou arrendamento por mediação do organismo coordenador da
reforma agrária”). Em termos genéricos, as menções ao “território” efetuadas na parte
II (“Organização económica”) da CRP76 prendem-se, sobretudo, com objetivos de
políticas de desenvolvimento regional, então bastante valorizadas em todos os países
europeus. Mas incluem igualmente objetivos de políticas que hoje designamos de
coesão territorial ou de desenvolvimento rural.
6 d) O território como base de organização do poder político Este é o quarto desígnio em que
o “território” surge associado à CRP76. A parte III (“Organização do poder político”)
inclui as referências mais substanciais, tendo como objeto a organização do poder
político: sistema eleitoral (título IV, artigo 152.º — “Círculos eleitorais”); regiões
autónomas (título VII) e poder local (título VIII). No que se refere ao título VIII (“Poder
Local”), os artigos 238.º (“Categorias de autarquias locais e divisão administrativa”),
256.º (“Instituição das regiões”) e 263.º (“Distritos”) são particularmente relevantes, não
só pela importância atribuída ao papel e à democratização do poder local, mas também
pelas interações que estabelecem entre si. As autarquias locais incluem as freguesias, os
municípios e as regiões administrativas (artigo 238.º) e estas últimas devem
corresponder às “regiões-plano” (artigo 256.º), estipulando-se que, enquanto as regiões
não estiverem instituídas, subsistirá a divisão distrital (artigo 263.º). Na ausência da
instituição de regiões administrativas, esta situação, a que entretanto se adicionou, em
1986, a adoção da nomenclatura das unidades territoriais para fins estatísticos (NUTS I,
II e III) e, em 2008, a transformação das NUTS III em áreas metropolitanas e
comunidades intermunicipais, tornou-se complexa e disfuncional: a coexistência, no
Continente, de distritos, NUTS II / regiões-plano (CCDR) e NUTS III / áreas
metropolitanas e comunidades intermunicipais cria uma relação pouco clara, em
termos de legitimidade democrática e de eficiência da ação pública, entre
representatividade política por via eletiva, planeamento desconcentrado da
responsabilidade do governo e atribuições e competências comuns a municípios
pertencentes a uma mesma NUTS III. O capítulo V do título VIII (“Poder local”), sobre
organizações populares de base territorial, é particularmente interessante à luz de
BIBLIOGRAFIA
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Portugal,volume II: Desenvolvimento Sustentável, Economia, Território e Ambiente, Lisboa, Fundação
Calouste Gulbenkian, pp. 328-336.
NOTAS
1. I Plano de Fomento: 1953-58; II Plano de Fomento: 1959-64; III Plano de Fomento: 1967-73 e IV
Plano de Fomento: 1974-79. Este último nunca foi aplicado, dada a eclosão da Revolução de 25 de
Abril de 1974.
RESUMOS
Este texto analisa a relação território — Constituição da República Portuguesa (CRP) a partir de
três questões: (i) de que forma é o “território” considerado na versão originária da CRP (1976)?;
(ii) qual a evolução ocorrida desde então até à versão em vigor em 2016 (aprovada em 2005)?; (iii)
em que medida condiciona a atual CRP a formulação e execução de uma nova geração de políticas
de território? A comparação das versões de 1976 e 2005 da Constituição permite identificar nove
alterações mais relevantes, com destaque para a crescente “europeização” de princípios e
conceitos e para a emergência do ordenamento do território como política pública autónoma. A
Constituição em vigor, apesar de algumas limitações, não parece constituir um obstáculo à
formulação de uma nova geração de políticas de território mais eficientes, democráticas e justas,
embora a atual organização político-administrativa condicione a participação das várias
entidades públicas no desenho e implementação dessas políticas.
This paper analyses the relationship between territorial issues and the Constitution of the
Portuguese Republic (CRP) from three standpoints: (i) how is territory considered in the original
1976 version of the CRP?; (ii) what lasting changes did the 2005 revision make?; and (iii) to what
extent is the current CRP affecting the design and implementation of a new generation of
territorial policies? A comparison of the 1976 and 2005 texts identifies nine main changes,
including the growing “Europeanisation” of a number of key principles and concepts and the
emergence of spatial planning as an autonomous public policy. Despite its shortcomings, the
current version of the Constitution does not seem to be an obstacle to the formulation of a new
generation of more efficient and democratic and fairer territorial policies. However, the current
political-administrative organisation influences the participation of different public entities in
the design and implementation of those policies.
Constitution (1976 et 2005) permet d’identifier neuf changements majeurs, comme l’"
européisation “ de certains principes et concepts et l’émergence de l’aménagement du territoire
en tant que politique publique autonome. En dépit de certaines limitations, la Constitution en
vigueur ne semble pas être un obstacle à la formulation d’une nouvelle génération de politiques
plus efficaces, plus démocratiques et plus justes, bien que l’organisation politico-administrative
actuelle limite la participation des diverses entités publiques à la conception et à la mise en
œuvre de ces politiques.
ÍNDICE
Palabras claves: Constitución, territorio, organización política y administrativa del territorio,
ordenamiento territorial, políticas territoriales
Palavras-chave: Constituição, território, organização político-administrativa do território,
ordenamento do território, políticas de território
Mots-clés: Constitution, territoire, organisation politique et administrative du territoire,
aménagement du territoire, politiques territoriales
Keywords: Constitution, territory, political and administrative territorial organisation, spatial
planning, territorial policies
AUTOR
JOÃO FERRÃO
Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, Av. Prof. Aníbal de Bettencourt, 9, 1600-189
Lisboa, Portugal.
joao.ferrao@ics.ulisboa.pt