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É mais fácil abrir um caminho até o coração das coisas abolidas, para decifrar os

contornos do banal como uma imagem oculta, enxotar das entranhas silvosas um
Guilherme Tell escondido, ou poder responder à pergunta “onde está a noiva?”. Há
muito, a psicanálise descobriu as imagens ambíguas como esquematismos do trabalho
onírico. Nós, porém, com a mesma convicção, estamos menos no rastro da alma do
que no rastro das coisas. Procuramos a árvore totêmica dos objetos na selva da
história primeva. A última careta, a careta ao topo desta árvore totêmica, é o kitsch.
p. 247.

As massas decididamente exigem da obra de arte (que se situa, para elas, no domínio
dos objetos de uso) algo que as aqueça. Aqui, a chama mais fácil para ser acesa é o
ódio. O ardor do ódio, porém, fere ou queima, e não oferece o “conforto ao coração”
que torna a arte própria para o consumo. O kitsch, ao contrário, nada mais é do que a
arte em seu pleno, absoluto e instantâneo caráter de consumo. Assim, o kitsch e a
arte, justamente em suas formas de expressão consagradas, se situam em uma
oposição irreconciliável. Ora, o que importa para as formas vivas e em
desenvolvimento é que tenham em si algo que aqueça, que seja utilizável, enfim, algo
que traga felicidade, para que possam abrigar em si, dialeticamente, o kitsch,
aproximando-se assim das massas e conseguindo, todavia, superá-lo. Atualmente,
talvez apenas o cinema esteja à altura desta tarefa - de qualquer modo, é ele que se
encontra mais próximo dela que qualquer outra forma de arte. E quem reconhecer isto
estará inclinado a rebater as pretensões do filme abstrato, por mais importantes que
sejam seus experimentos. Ele solicitará um período de resguardo, uma proteção
natural para aquele kitsch que encontra no cinema seu lugar providencial. Somente o
cinema pode detonar as substâncias explosivas que o século XIX acumulou nesta
matéria estranha, talvez desconhecida anteriormente, que é o kitsch. Mas, assim como
para a estrutura política do filme, a abstração pode também se tomar perigosa para os
outros meios modernos de expressão (iluminação, técnica de construção etc.). p. 440

Construímos aqui um despertador que sacode o kitsch do século passado,


convocando-o para o “colecionar”. Este genuíno desprendimento de uma época
possui a estrutura do despertar também pelo fato de ser inteiramente regido pela
astúcia. Pois o despertar opera com a astúcia. Com a astúcia, e não sem ela, libertamo-
nos do domínio do sonho. p. 962-963

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