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COORDENAÇÃO GERAL

Celso Fernandes Campilongo


Alvaro de Azevedo Gonzaga
André Luiz Freire

ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP

TOMO 12

DIREITOS HUMANOS

COORDENAÇÃO DO TOMO 12
Wagner Balera
Carolina Alves de Souza Lima

Editora PUCSP
São Paulo
2022
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP
DIREITOS HUMANOS

DIRETOR
Vidal Serrano Nunes Júnior
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
DIRETORA ADJUNTA
FACULDADE DE DIREITO
Julcira Maria de Mello Vianna
Lisboa

ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP | ISBN 978-85-60453-35-1


<https://enciclopediajuridica.pucsp.br>

CONSELHO EDITORIAL

Celso Antônio Bandeira de Mello Oswaldo Duek Marques


Elizabeth Nazar Carrazza Paulo de Barros Carvalho
Fábio Ulhoa Coelho Raffaele De Giorgi
Fernando Menezes de Almeida Ronaldo Porto Macedo Júnior
Guilherme Nucci Roque Antonio Carrazza
Luiz Alberto David Araújo Rosa Maria de Andrade Nery
Luiz Edson Fachin Rui da Cunha Martins
Marco Antonio Marques da Silva Tercio Sampaio Ferraz Junior
Maria Helena Diniz Teresa Celina de Arruda Alvim
Nelson Nery Júnior Wagner Balera

TOMO DE DIREITOS HUMANOS | ISBN 978-85-60453-61-0


A Enciclopédia Jurídica é editada pela PUCSP

Enciclopédia Jurídica da PUCSP, tomo XII (recurso eletrônico)


: direitos humanos / coords. Wagner Balera e Carolina Alves de Souza Lima - São Paulo:
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2022
Recurso eletrônico World Wide Web
Bibliografia.
O Projeto Enciclopédia Jurídica da PUCSP propõe a elaboração de doze tomos.

1.Direito - Enciclopédia. I. Campilongo, Celso Fernandes. II. Gonzaga, Alvaro. III. Freire,
André Luiz. IV. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP
DIREITOS HUMANOS

FRATERNIDADE
Océlio de Jesus Carneiro de Morais

INTRODUÇÃO

Do latim, “fraternitas”, a etimologia da palavra fraternidade, em sua significação


mais direta, designa relação de parentesco familiar, ambiente onde naturalmente deve
prevalecer relações orientadas pelo afeto recíproco entre os membros da mesma família,
mas também indica o sentimento que pode existir entre outras pessoas que nutrem e
alimentam simpatia, fidalguia e respeito mútuos nas suas relações interpessoais.
E, ainda, sob uma perspectiva liberal, o conceito de fraternidade indica uma
espécie de princípio e direito universal inerente à dignidade humana.
Diversas percepções são inerentes à palavra fraternidade, por exemplo, filosófica
e teológica, sempre exprimindo uma significação específica quando é vista sob os
aspectos da filologia, no que se refere à evolução do seu significado, ou sob o aspecto da
linguística ou ainda da sua etimologia.
Neste verbete, vou trabalhar os conceitos de fraternidade nas percepções
filosófica e teológica, tomando como paradigmas o conceito teológico-cristão em São
Francisco de Assis, o conceito filosófico em Levinas e, ainda, como valor e princípio na
declaração francesa (Igualdade, igualdade e fraternidade), Declaração Universal dos
Direitos Humanos e na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.

SUMÁRIO

Introdução ......................................................................................................................... 2

1. Desenvolvimento..................................................................................................... 3

1.1. Construção discursiva ................................................................................. 3

1.2. Afirmação conceitual .................................................................................. 3

1.2.1. Fraternidade na teologia franciscana ............................................... 3

1.2.2. Fraternidade na perspectiva filosófica de Levinas .......................... 5

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1.2.3. Fraternidade na declaração francesa, na de direitos humanos e na


ordem jurídica brasileira .................................................................. 8

2. Conclusões ............................................................................................................ 12

Referências ..................................................................................................................... 13

1. DESENVOLVIMENTO

1.1. Construção discursiva

A construção discursiva sobre a fraternidade – esta pode ser compreendida como


valor ou como princípios inerentes ao Ser ontológico ou ao Ser ético - será analisada aqui
a partir de alguns conceitos paradigmas, na visão teológica, filosófica e normativa.
Considerada a natureza científica do verbete, que é de caráter informativo, objetiva-se
explicar os conceitos de fraternidade e a sua função teleológica a partir do método
descritivo à luz dos paradigmas conceituais eleitos ao desenvolvimento da tarefa.

1.2. Afirmação conceitual

Na teologia da simplicidade, de Francisco de Assis, a fraternidade designa que


todos somos irmãos.
Seu pressuposto valorativo é a caridade e a solidariedade, especialmente aos
pobres desamparados.

1.2.1. Fraternidade na teologia franciscana

Seu nome era Giovanni di Pietro di Bernardon, nascido em Assis, Itália, em


1181, mas ficou conhecido transtemporalmente como São Francisco de Assis, canonizado
Santo da Igreja Católica em julho de 1228, pelo Papa Gregório IX, dois anos depois de
sua morte, ocorrida em 3 de outubro de 1226, em Assis.
Francisco de Assis não possui o título de doutor da Igreja Católica como é o
caso do seu compatriota, Tomás de Aquino (nascido em 1225, um ano antes morte de

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Francisco), notabilizado pelos fundamentos filosóficos e teológico, baseados na primazia


da inteligência e nas teses (ou questões) sobre a unidade de Deus, a relação do homem
com Deus, dos valores éticos pessoal e social, e sobre a ciência de Deus, todas reunidas
na Summa Teológica, editada no período de 1265 a 1273, por isso, considerada até os dias
atuais como a base da dogmática do catolicismo e a principal obra filosófica da
escolástica.
Mas Francisco de Assis também construiu uma teologia, uma teologia da
simplicidade, a teologia da fraternidade, fundamentada na máxima “Fratelli tutti”, (todos
irmãos), máxima que, a rigor, traduzia o princípio-mandamento de Jesus expresso no
mandamento “Amarás ao teu próximo como a ti mesmo” (MATEUS, 22:39).
Francisco de Assis costumava acolher as pessoas com duas frases especiais:
“pace e bene” (Paz e bem), “Fratelli tutti”, (Todos irmãos), dando um sentido
transcendente para a fraternidade cristã; portanto, lançando a ideia da irmandade ou
fraternidade universal
A fraternidade preconizada por Francisco de Assis baseava-se nos valores da
“paz e do bem”, uma espécie “mantra” ou bênçãos àqueles que o ajudavam ou àqueles
que precisavam de ajuda.
O frade capuchinho e teólogo Niklaus Kuster, no artigo “Fratres omnes irmãos
e irmãs todos, a quem Francisco de Assis se dirige”, publicado no jornal L'Osservarore
Romano, explica que na mensagem de fraternidade de Francisco de Assis, “são
convidadas todas as pessoas, sem exceção” ('Osservarore Romano).
Desse modo, a percepção conceitual sobre a fraternidade, na teologia
franciscana, designa a necessidade do amor fraternal ao próximo como base estrutural da
sociedade – amor fraternal que deve ser vivido concretamente à luz das virtudes
evangélicas: a pobreza (Mt. 5,3), caridade (Rom 1,25-27), obediência (Jo, 14, 21-23) –
bases da espécie de “edifício espiritual”, que incluía todos: “o seu irmão, tanto quando
está longe, como quando está junto de si”, dizia Francisco de Assis aos seguidores.
Virtude é a disposição ético-moral, firme e coerente, à prática do bem.
A fraternidade franciscana é, desse modo, inclusive, abrange a todos e não
discrimina ninguém.
Em síntese, a fraternidade franciscana designava as virtudes da caridade, da
solidariedade, a pobreza material e sua riqueza espiritual.

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Recentemente, o Papa Francisco, na encíclica “FRATELLI TUTTI””, sobre a


fraternidade e amizade social, publicada no dia 3 de outubro de 2020, reforçou a
percepção conceitual acerca da fraternidade franciscana inclusiva, ao escrever que, em
Francisco de Assis, a “fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas
as pessoas independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada
uma nasce ou habita.”.
Na percepção do Santo Padre, a “fraternidade aberta” deve ser capaz “de reagir
com um novo sonho de fraternidade e amizade social que não se limite a palavras”,
preconiza, para revelar uma espécie de vontade confessional: “Desejo ardentemente que,
neste tempo que nos cabe viver, reconhecendo a dignidade de cada pessoa humana,
possamos fazer renascer, entre todos, um anseio mundial de fraternidade.”
Quando a encíclica adota como chave da unidade a afirmativa de que todos são
irmãos e ao reunir duas virtudes (fraternidade e amizade social) como alimentos ao novo
anseio mundial de fraternidade, o pontífice destaca que a fraternidade foi acolhida e
vivida por Francisco de Assis no íntimo como instrumento da “verdadeira paz”.
A partir da ideia de fraternidade franciscana, o Papa reforça em sua encíclica que
a fraternidade é o “verdadeiro caminho da paz”, mas a “paz real e duradoura” que somente
é possível “a partir de uma ética global de solidariedade e cooperação ao serviço de um
futuro modelado pela interdependência e a corresponsabilidade na família humana
inteira”.
A função da fraternidade como virtude, na visão teológica do Papa Francisco,
para a construção do novo sonho de fraternidade, adota por fundamento a ética solidária
e a ética da cooperação global entre os povos; portanto, uma fraternidade socialmente
inclusiva onde todos sejam reconhecidos com iguais direitos.
A ideia de fraternidade como unidade universal também está na filosofia
moderna de Emmanuel Levinas, o filósofo francês, “alma mater” das universidades de
Freiburg e Estrasburgo, quando adota a ética social como pressuposto da fraternidade
universal.

1.2.2. Fraternidade na perspectiva filosófica de Levinas

Opondo-se à concepção de Aristóteles, que analisa o “Ser” pela sua natureza

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ontológica, e influenciado pela filosofia fenomenológica de Husserl e pela hermenêutica


existencialista de Heidegger, o filósofo francês Levinas afirma que a ética individual e
social é a condição filosófica primeira do “Ser,” na perspectiva da fraternidade universal.
O filósofo francês considera que a ética reúne os fundamentos básicos e
essenciais da responsabilidade da pessoa em relação a outra, assim como consiste numa
espécie de cooperação social que se opõe contra tendências totalitárias do Estado,
enquanto a fraternidade é, na concepção deste filósofo, “um aspecto fundamental da
comunidade pluralista universal”, indispensável à “sociabilidade humana”.
Levinas foi tradutor de Husserl, de quem também foi aluno na Universidade de
Freiburg, tornando-se o principal propagador da filosofia fenomenológica na França, com
a defesa da tese de doutorado “La Théorie de l’Intuition dans la Phénoménologie de
Husserl” (Teoria da intuição na fenomenologia de Husserl) e, depois, no livro intitulado
“En Découvrant l’Existence avec Husserl et Heidegger” (Ao descobrir a existência com
Husserl e Heidegger).
Na tese, Levianas explica a teoria fenomenológica da intuição, então considerada
como teoria da verdade, essa definida como “o aparecimento das próprias coisas além das
imagens e das palavras'”.1
A compreensão do conceito de fraternidade no pensamento de Levinas também
pode informado e explicado a partir da sua tese de doutoramento, onde se dedica à
explicação da teoria da instituição da fenomenologia de Husserl.
A teoria de Husserl baseia-se, conforme o próprio Levinas, na ideia
transcendental-idealista, onde a pessoa precisa ser vista, na condição de Ser
transcendente, como uma integralidade, e como o Ser se relaciona com os objetos (não
meramente externos) mas também como agrupamento de aspectos perceptivos e
funcionais que interferem na construção do Ser.
Levinas, na tese, e depois nos livros “Humanisme de l’autre homme” (1972) e
“Ethique et infini” (1988) constrói o seu conceito sobre fraternidade como pressuposto
ou fundamento da não-indiferença universal em relação às coisas e ao Outro. Na relação
com o semelhante, a fraternidade estabelece uma relação de respeito recíproco.
É no livro “Humanisme de l’autre homme” que Levinas oferece um sentido

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LEVINAS, Emmanuel. De l’existence and existents.

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diferente sobre humanidade, a partir das virtudes como o amor, a fraternidade, a liberdade,
a responsabilidade. Nas relações com o outro, a pessoa obriga-se a ver os direitos como
direitos dos outros.2
Na obra Humanisme de l’autre homme” (Humanismo do outro homem), Levinas
escreve, explicando como deve ser o sentido de humanidade traduzida na fraternidade, no
amor, na liberdade, na responsabilidade:
“(...) um para o outro como um guardião de um irmão, como um
responsável pelo outro. (...). Sem diferença que é a própria proximidade do
vizinho, pela qual é desenhada apenas um fundo de comunidade entre um
e outro, a unidade da raça humana, em dívida com a irmandade de
homens”.
Assim, fraternidade é uma virtude inerente à gratidão, na qual as pessoas se
sentem responsáveis pela felicidade uma da outra; portanto, a fraternidade como um traço
ou espécie de irmandade universal.
Mas o filósofo francês considera que, para alcançar a desejável fraternidade
universal, como nova sinonímia do sentido para a humanidade, a ética é o pressuposto de
toda a cultura humana (criação e conhecimento humano). “A Ética é pressuposto de toda
cultura e significado”, afirma, acrescentando que, a par do discurso filosófico, a ética se
apresenta como a possibilidade de uma “responsabilidade transbordando de liberdade”:
“A Ética faz aqui sua entrada no discurso filosófico, rigorosamente
ontológico no início, como uma reversão extremo de suas possibilidades.
É de uma passividade radical de subjetividade que se juntou à noção de
"uma responsabilidade transbordando de liberdade "(enquanto apenas a
liberdade deveria ser capaz de justificar e limitar responsabilidades),
obediência antes de receber ordens”.
Para Levinas, o conceito de fraternidade como base da não-indiferença universal
em relação ao semelhante não prescinde da ética como vetor de “uma responsabilidade
transbordando de liberdade”, ao sentido construtivo de comunidade fraterna universal.
Pode-se afirmar, dessa maneira, que o conceito de fraternidade universal na
filosofia de Levinas significa - a partir da ética que garanta o respeito aos direitos
recíprocos – que cada pessoa (responsável em si) é também responsável pela outra. Há

2
LEVINAS, Emmanuel. De l’existence and existents.

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um sentido mútuo que gera a fraternidade co-responsável.3


E o que possibilita a fraternidade universal é a aptidão humana ao amor, à
caridade, à liberdade, à responsabilidade e à civilidade.
Lévinas informa, ainda, que a fraternidade capaz de universalizar o novo sentido
da ética co-responsável é um dos conceitos fundamentais da revolução francesa e, na
Declaração Universal dos Direitos Humanos, é identificada e definida como um conceito
do Estado liberal.

1.2.3. Fraternidade na declaração francesa, na de direitos humanos e na ordem jurídica


brasileira

A Declaração francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão aprovada como


resposta à “ignorância”, ao “esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem” – então
apontadas como “as únicas causas dos males públicos e da corrupção dos Governos” –
não se refere de modo específico à fraternidade como direito, nem como princípio ou
valor.
Mas quando consideramos a fraternidade nos conceitos teológicos de Francisco
de Assis e do Papa Francisco, a partir do Evangelho cristão, e ainda à luz do conceito de
fraternidade universal na filosofia de Levinas, conforme já explicamos ao norte, é
possível identificar a referência indireta ou implícita à fraternidade.
Recorde-se que os conceitos sobre a fraternidade, nos itens 2.2.1 e 2.2.2, no
fundo, partem da ideia do respeito aos direitos do outro como exercício das virtudes de
amor, responsabilidade, caridade e fraternidade.
No artigo 4º da declaração francesa, a liberdade é declarada e reconhecida como
um direito natural e inalienável do homem, mas seu fundamento é o dever de respeitar o
direito do outro ou a proibição de não prejudicar o outro: “Art. 4º. A liberdade consiste
em poder fazer tudo que não prejudique o próximo.”
Por essa perspectiva, de modo indireto e implícito, a declaração francesa também
adota a liberdade como princípio de responsabilidade, exigível ao exercício da liberdade-
responsável (“não prejudique o próximo)”. Isto é – dada a condição de que todos os

3
Idem.

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cidadãos “são livres” e que “todos os membros do corpo social” – disso deflui o sentido
de fraternidade coletiva que deve prosperar no exercício da liberdade.
Aqui, há uma espécie de fraternidade social, entre todos os membros do corpo
social” – já que todos são iguais em direitos – que impede o arbítrio das leis, dos governos
e das pessoas no exercício dos iguais direitos.
Esse sentido de fraternidade coletiva está implícito também no artigo 6º, quando
afirma que “Todos os cidadãos são iguais a seus olhos e igualmente admissíveis a todas
as dignidades”.
Nesse dispositivo, o sentido da fraternidade está relacionado ao princípio da
igualdade, que se projeta como necessária “igualmente a todas as dignidades”.
Mas, entende-se que, sob o ponto de vista político, e considerando os ideários da
revolução francesa (1789 a 1799) - assentada nos princípios da princípios de Liberté,
Égalité e da Fraternité (princípios de ordem iluminista) - é ilógico que a declaração
(aprovada em 26 de agosto de 1789) não tenha se referido de modo direto e explícito à
fraternidade como um princípio ou valor da sociedade.
De outro lado, adotando a fraternidade como um dos princípios, a revolução
projeta a edificação de uma nova sociedade francesa com fundamento nos direitos
naturais e inalienáveis – estes, de ordem liberal, é verdade - mas com princípios
humanitários sem iguais, à época.
Esses princípios (Liberté, Égalité, Fraternité) influenciaram a construção dos
direitos e dos princípios na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A declaração de direitos humanos da Organização das Nações Unidas (ONU)
utiliza a palavra fraternidade apenas uma vez. Isso ocorre no primeiro artigo, quando
proclama que todos os cidadãos, indistintamente, “(..) devem agir em relação uns aos
outros com espírito de fraternidade.”
A declaração não atribui de forma explícita um significado à fraternidade, mas
pode-se interpretar e compreender que empresta à fraternidade uma significação ampla e
universal (uma fraternidade universal), essa, tida como a fonte inspiradora ao conceito de
fraternidade de Levinas no livro “Humanisme de l’autre homme”.
O “espírito de fraternidade”, como consta na declaração, quer designar o modo
insubstituível pelo qual a pessoa deve ver e respeitar os direitos e liberdades do outro; o
modo predominante e inarredável como deve se portar e se relacionar com o semelhante.

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Disso decorre que o conceito de fraternidade universal, na DUDH, se apresenta como


princípio inerente à paz ou como um dos fundamentos da paz no mundo e com a função
de fortalecer os laços e virtudes humanitários entre todos os povos em todo o mundo.
A fraternidade universal ali declarada formalmente como um dos fundamentos
da paz mundial também é proclamada como uma aspiração da condição humana, por isso
mesmo, pode ser definida como valor ou virtude inerente à dignidade humana.
Embora apareça nominalmente apenas um vez no texto da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, a fraternidade (seja como princípio seja como valor
universal) deve ser compreendida em conjunto com os direitos fundamentais (à
igualdade, à vida, à segurança individual, direito à proteção legal, direito à proteção da
sociedade e do Estado, direito de acesso ao serviço público do seu país, direito à
nacionalidade, direito de constituir família e contrair matrimônio, direito ao trabalho
livre, digno e remunerado, à propriedade, direito à segurança social, s direitos
econômicos, sociais e culturais, direito à saúde, por exemplo ) e com as liberdades
fundamentais (liberdade de locomoção. liberdade de resistência, liberdade de
pensamento, liberdade de opinião e expressão, liberdade de reunião e associação pacífica,
liberdade religiosa, por exemplo), na declaração reconhecidos.
Essa compreensão sistemática atende à finalidade teleológica da DUDH ao
considerar que a igualdade e a liberdade não se completam sem o “espírito de
fraternidade” que é indispensável aos recíprocos direitos nas relações humanas.
Como seria possível falar em direitos e liberdades fundamentais se tais não são
efetivados? Como seria possível atribuir solidez conceituais aos direitos e liberdades se
a fraternidade, como pressuposto da paz no mundo, não está na base da compreensão
desses direitos?
Não, não seria possível, isso porque o papel da fraternidade - expandida às
pessoas, aos povos e às nações - afirma e reafirma em caráter contínuo e permanente
que ela é, enquanto valor, indispensável à vida humana digna e à própria perpetuidade da
humanidade.
O “espírito de fraternidade” como todos devem agir em relação uns aos
outros, também se dirige ao Estado, enquanto membro da ONU e signatários da
declaração, para fazer constar em suas constituições nacionais o mesmo princípio.
Pretéritas à DUDH, as constituições brasileiras de 1824, 1891, 1934, 1937 e

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1946, e nem a posterior (de 1957) se referem ao “espírito de fraternidade” projetado como
exigência à observância dos direitos e liberdades fundamentais nas relações interpessoais
e nas relações entre os entes de direito público internacional e entre os Estados e os seus
cidadãos.
Nelas, o regime de direitos e liberdades foi editado em meio às crises
institucionais (de ordem política, como golpes de Estado e impeachment) e de ordem
judicial, o problema da absolutização ou relativização dos direitos fundamentais através
das decisões judiciais vinculantes.
No livro Direitos Humanos Fundamentais e a Justiça Constitucional Brasileira
(2017), apontei que as crises institucionais resultaram na “inconsistência constitucional
que acaba por fragilizar a teoria republicana acerca dos direitos fundamentais”.
A Constituição Federativa de 1988 também não adota de forma explícita a
fraternidade como princípio, embora consagre como valores supremos a igualdade e a
justiça para a construção da sociedade fraterna, pluralista e sem discriminação, sociedade
fundada na fundada na harmonia social e com a solução pacífica das controvérsias.
Então, a vontade normativa da Constituição Federativa de 1988, quanto ao
modelo de sociedade que deve ser implementado ao povo brasileiro é balizado pelo
espírito de fraternidade como pressuposto da harmonia social interna e da solução pacífica
dos conflitos internos e externos.
A par disso, pode-se dizer que a escolha desse modelo “sociedade fraterna”, em
si mesmo, já engloba os pressupostos da sociedade pluralista e sem discriminação.
A declaração solene de índole moral, no Preâmbulo, quanto ao modelo de
sociedade brasileira fraterna, é reforçado no inciso I, artigo 3º, à medida que é definida
como um dos objetivos da República, quando também promete “construir uma sociedade
livre, justa e solidária”.
Por certo não há como se compreender a existência de uma “sociedade fraterna”
se, em seu corpo social, houver negação à pluralidade e se essa dita sociedade for prenhe
de discriminações. Contudo, entende-se a opção legislativa (“sociedade fraterna,
pluralista e sem discriminação”) como ênfase à completude teleológica, que é inerente à
aspiração de uma sociedade fraterna.
Em síntese, a percepção do conceito ou espírito de fraternidade na ordem
constitucional de 1988 deve ser compreendido a partir dos valores supremos, dos

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fundamentos, dos objetivos e dos direitos e garantias fundamentais erigidos na


Constituição vigente.
Por essa perspectiva, pode-se definir a fraternidade como um valor da sociedade
brasileira (conforme o Preâmbulo) e conforme um dos objetivos da República Federativa
do Brasil.
No primeiro caso, o “espírito de fraternidade” é de caráter axiológico; no
segundo caso, o “espírito de fraternidade” é de caráter normativo fundamental
indispensável à forma federativa do Estado brasileiro, eis que definida como cláusula
pétrea; portanto, insuscetível de supressão ou modo vão por meio de emenda
constitucional.

2. CONCLUSÕES

Em conclusão, admitidas as variantes conceituais, fraternidade pode ser


compreendida:
- Como significado de amor ao próximo, inerente à dimensão da razão do Ser
(sociável) que se revela carente e solidário.
- Como sinônimo de “fraternidade aberta” (no conceito do Papa Francisco) ou
fraternidade não discriminatória, capaz de promover o amor entre as pessoas, na
perspectiva teológica.
- Como significando de ética na perspectiva filosófica de Levinas, onde a ética
social é pressuposto de responsabilidade na comunidade pluralista universal.
- Como equivalência de princípio e de valor nas declarações francesas dos
Direitos do Homem e do Cidadão e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, capaz
de construir e promover a paz universal.
- Como valor na ordem constitucional brasileira, para construir uma sociedade
fraterna.
No entanto, é preciso pontuar ainda o seguinte: nenhum desses conceitos terá
sentido se a fraternidade não significar e nem traduzir concretamente o sentido de amor e
respeito à vida e aos direitos do próximo.
Penso que a fraternidade é um valor humano universal, cujo fundamento é a
necessidade da sobrevivência, desenvolvimento e perpetuidade pacífica da raça humana.

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Como valor humano, baseado no princípio-mandamento cristão outorgado pelo


Jesus, a fraternidade é a chave para evitar conflitos individuais e guerras de toda natureza;
por conseguinte, é um pressuposto à construção da paz individual, coletiva e universal.
Ainda nesta perspectiva, a fraternidade teológica é uma riqueza do espírito
humano sempre aberto aos valores da caridade e da solidariedade, estes, também valores
que tonificam o Ser bom.

REFERÊNCIAS

AQUINO, Santo Tomás. Summa Teológica. Disponível em:


https://sumateologica.files.wordpress.com/2017/04/suma-teolc3b3gica.pdf. Acesso em:
20.02.2021.
Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Universidade de São
Paulo. Biblioteca Virtual de Direitos Humanos. Disponível em:
http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos. Acesso em: 20.02.2021.
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em:
https://brasil.un.org/pt-br/91601-declaracao-universal-dos-direitos-humanos. Acesso
em: 20/02/2021.
ENCÍCILICA FRATELLI TUTTI. FRANCISCO, Papa. Vaticano. Disponóvel
em: <http://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-
francesco_20201003_enciclica-fratelli-tutti.html#_ftnref>. Acesso em: 20.02.2021.
LEVINAS, Emmanuel. De l’existence and existents. Dordrecht: Kluwer
Academic, 1988.
__________________. Humanisme de l’autre homme. Montpellier: Fata
Morgana, 1972.
__________________. Humanismo do outro homem. Pergentino S. Pivatto
(coord.). Petrópolis: Vozes, 1993.
MORAIS, Océlio de Jesus Carneiro de. Direitos humanos fundamentais e a
justiça constitucional brasileira. Rio de Janeiro, 2017.

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