Você está na página 1de 17

COORDENAÇÃO GERAL

Celso Fernandes Campilongo


Alvaro de Azevedo Gonzaga
André Luiz Freire

ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP

TOMO 12

DIREITOS HUMANOS

COORDENAÇÃO DO TOMO 12
Wagner Balera
Carolina Alves de Souza Lima

Editora PUCSP
São Paulo
2022
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP
DIREITOS HUMANOS

DIRETOR
Vidal Serrano Nunes Júnior
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
DIRETORA ADJUNTA
FACULDADE DE DIREITO
Julcira Maria de Mello Vianna
Lisboa

ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP | ISBN 978-85-60453-35-1


<https://enciclopediajuridica.pucsp.br>

CONSELHO EDITORIAL

Celso Antônio Bandeira de Mello Oswaldo Duek Marques


Elizabeth Nazar Carrazza Paulo de Barros Carvalho
Fábio Ulhoa Coelho Raffaele De Giorgi
Fernando Menezes de Almeida Ronaldo Porto Macedo Júnior
Guilherme Nucci Roque Antonio Carrazza
Luiz Alberto David Araújo Rosa Maria de Andrade Nery
Luiz Edson Fachin Rui da Cunha Martins
Marco Antonio Marques da Silva Tercio Sampaio Ferraz Junior
Maria Helena Diniz Teresa Celina de Arruda Alvim
Nelson Nery Júnior Wagner Balera

TOMO DE DIREITOS HUMANOS | ISBN 978-85-60453-61-0


A Enciclopédia Jurídica é editada pela PUCSP

Enciclopédia Jurídica da PUCSP, tomo XII (recurso eletrônico)


: direitos humanos / coords. Wagner Balera e Carolina Alves de Souza Lima - São Paulo:
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2022
Recurso eletrônico World Wide Web
Bibliografia.
O Projeto Enciclopédia Jurídica da PUCSP propõe a elaboração de doze tomos.

1.Direito - Enciclopédia. I. Campilongo, Celso Fernandes. II. Gonzaga, Alvaro. III. Freire,
André Luiz. IV. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

1
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP
DIREITOS HUMANOS

CORTE AFRICANA DOS DIREITOS HUMANOS E DOS POVOS


Flávio Crocce Caetano

INTRODUÇÃO

Dentro do contexto da proteção regional de direitos humanos, sobretudo a


exemplo do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, no âmbito da Organização dos
Estados Americanos (OEA) e o Sistema Europeu de Direitos Humanos, no Conselho da
Europa, surge em 1998 o Sistema Africano dos Direitos Humanos e dos Povos, na seara
da antiga Organização da Unidade Africana (OUA), hoje apenas União Africana (UA),
fruto da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, cujo protocolo para o
reconhecimento da jurisdição de sua Corte entrou em vigor em 25 de janeiro de 2004.
Esse sistema, apesar de novo, tem obtido grandes avanços na proteção de direitos
humanos em África. Este verbete tratará do processo histórico da consolidação do
SADHP, da nomenclatura “direitos humanos e dos povos”, do papel da Corte Africana,
de alguns casos paradigmáticos, e das perspectivas futuras.

SUMÁRIO
Introdução ......................................................................................................................... 2

1. Sistema Africano dos Direitos Humanos e dos Povos ............................................ 3

1.1. Perspectiva histórica .................................................................................... 3

1.1.1. Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos......................... 4

2. Órgãos ..................................................................................................................... 7

2.1. Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos ............................. 7

2.2. Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos .................................... 8

2.2.1. Casos paradigmáticos ...................................................................... 9

3. Perspectivas futuras ............................................................................................... 12

Referências ..................................................................................................................... 14

2
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP
DIREITOS HUMANOS

1. SISTEMA AFRICANO DOS DIREITOS HUMANOS E DOS POVOS

Neste primeiro item, abordaremos a historicidade da criação do Sistema


Africano dos Direitos Humanos e dos Povos, com suas peculiaridades regionais, bem
como a Carta Africana que funda o sistema, cria os órgãos e estabelece a perspectiva
africana de direitos humanos.

1.1. Perspectiva histórica

Parte dos juristas afirmam que as primeiras tratativas para um futuro sistema
regional de proteção de direitos humanos foi a Conferência de Lagos sobre a Primazia do
Direito, cuja ideia da instituição de uma Corte Africana foi inspirada pelas Convenções
Americana e Europeia de Direitos Humanos.1 Há menções, na doutrina, a outras
conferências e seminários, como os de 1961, sobre Estado de Direito, realizada pela ONU
e a Comissão Internacional de Juristas em Dacar (1976), Dar es Salaam (1976) e Dacar
novamente (1978), essas reuniões teriam levado a sucessivas resoluções instando a OUA
a adotar um instrumento regional de direitos humanos para a África.2
No início do ano de 1981, a antiga OUA, através de um Conselho de Ministros,
adotou um anteprojeto de Carta Africana em Banjul, na Gâmbia, que havia sido preparado
em 1979 pelo senegalês Kéba Mbaye, que liderou um comitê de especialistas para o
trabalho. A maioria das propostas teve por objetivo principal os debates de direitos
humanos, sendo que uma das mais importantes foi apresentada pela República da Guiné,
sugerindo que a futura Corte fosse também dotada de jurisdição para julgar graves
violações dos direitos humanos que constituíssem crimes internacionais, como crimes
contra a humanidade. De início, a proposta parecia ter sido motivada pelo desejo de
condenar as graves violações dos direitos humanos que ocorriam na África do Sul sob o
historicamente famoso regime de apartheid.
Entretanto, a proposta não obteve sucesso – tal assunto será novamente trazido

1
DLAMINI, C.R.M. Towards a regional protection of human rights in Africa: the African charter on
human and peoples’ rights, pp. 189-203.
2
KANNYO, Edward. Human rights in Africa: problems and prospects, pp. 24 e ss.

3
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP
DIREITOS HUMANOS

no item 3 –, e, em vez de tão-somente rejeitar essa junção de competências, os


especialistas também não se convenceram da necessidade de uma Corte de Direitos
Humanos, tendo em vista a ainda incipiente discussão a respeito nos Estados africanos.
Assim, a recomendação foi apenas para a criação de uma Comissão de Direitos Humanos,
o que aconteceu com a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos em 1981, na
Assembleia da OUA de Nairobi, no Quênia.

1.1.1. Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos

A Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos3, ou Carta de Banjul, é o


principal instrumento normativo do Sistema Africano dos Direitos Humanos e dos Povos.
Foi adotada em 1981 pela Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da antiga
Organização da Unidade Africana (OUA), atual União Africana (UA), e entrou em vigor
apenas em 1986, ao atingir o número mínimo de ratificações. Tem natureza jurídica de
tratado internacional. Hoje, há 53 Estados-membros da UA, sendo que o único que não
assinou ou ratificou o documento foi o Sudão do Sul.
Dado o conhecido histórico de exploração do continente africano e de seu povo,
a Carta Africana demonstra de diversas formas a necessidade de luta pelos direitos
humanos, inclusive no próprio nome: direitos humanos e dos povos, como clara
demonstração de que os direitos dos grupos sociais que podemos chamar de povos
africanos, em face da escravidão e do colonialismo, devem ser reconhecidos, promovidos
e protegidos a todo custo. Não somente direitos individuais, mas direitos de todos os
povos, como a autodeterminação.4
A Carta pretende trazer não só previsões gerais de direitos humanos, à
semelhança do sistema internacional e dos então existentes sistemas interamericano e
europeu, mas peculiaridades regionais do continente. Desde o preâmbulo isso é
perceptível, quando vemos:
“Considerando a Carta da Organização da Unidade Africana, nos
termos da qual "a liberdade, a igualdade, a justiça e a dignidade são

3
DHNET. Carte de Banjul. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/africa/banjul.htm>.
Acesso em: 15.03.2021.
4
EVANS, M; MURRAY, R. The African charter on human and people’s rights.

4
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP
DIREITOS HUMANOS

objetivos essenciais para a realização das legítimas aspirações dos


povos africanos";
Reafirmando o compromisso que eles solenemente assumiram, no
artigo 2º da dita Carta, de eliminar sob todas as suas formas o
colonialismo da África, de coordenar e de intensificar a sua
cooperação e seus esforços para oferecer melhores condições de
existência aos povos da África, de favorecer a cooperação
internacional tendo na devida atenção a Carta das Nações Unidas e a
Declaração Universal dos Direitos Humanos;
Tendo em conta as virtudes das suas tradições históricas e os valores
da civilização africana que devem inspirar e caracterizar as suas
reflexões sobre a concepção dos direitos humanos e dos povos;
Reconhecendo que, por um lado, os direitos fundamentais do ser
humano se baseiam nos atributos da pessoa humana, o que justifica a
sua proteção internacional, e que, por outro lado, a realidade e o respeito
dos direitos dos povos devem necessariamente garantir os direitos
humanos; (grifos acrescentados)”.
Nesse sentido, Flávia Piovesan menciona que a Carta Africana faz parte desse
processo de libertação da África como um todo, “[d]a luta por independência e dignidade
dos povos africanos, [d]o combate ao colonialismo e neocolonialismo, a erradicação
do apartheid, do sionismo e de todas as formas de discriminação”5.
A Carta demonstra um forte sentimento coletivista ao tratar dos direitos dos
povos em conjunto com os direitos humanos, refletindo a realidade regional africana, uma
característica que a diferencia claramente das Convenções Europeia e Americana, cujas
perspectivas são, sobretudo, liberais individualistas, voltadas primordialmente, aos
direitos civis e políticos nelas compreendidos, mencionando à época apenas em um artigo
os direitos sociais, e ainda numa perspectiva de progressividade.
Sobre os direitos civis e políticos, a Carta Africana não se distancia muito dos
demais tratados regionais e internacionais de proteção dos direitos humanos, já que prevê,
nos artigos 3º a 14, os direitos à igualdade, integridade física e moral, vida, dignidade da
pessoa humana, proibição de tortura e tratamentos desumanos, liberdade, segurança, a

5
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional, p. 191.

5
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP
DIREITOS HUMANOS

proteção judicial, liberdade de consciência, religião e profissão, informação, opinião,


associação, reunião, liberdade de locomoção, participação política, e propriedade.
Alguns autores apontam que o direito à privacidade e a proibição ao trabalho
forçado não estão satisfatoriamente explícitos no documento, assim como o direito a um
julgamento justo e os direitos à participação política. Contudo, deve-se mencionar que a
Comissão Africana tem interpretado a Carta, através de sua competência em publicar
resoluções, abrangendo alguns direitos não explícitos na Carta de Banjul.6
No tocante aos direitos econômicos, sociais e culturais, os artigos 15 a 17 da
Carta Africana garantem, respectivamente, o direito ao trabalho em condições equitativas,
o direito à saúde e o direito à educação. Sobre isso, é importante mencionar o caso Social
and Economic Rights Action Center (SERAC) e Center for Economic and Social Rights
(CESR) v. Nigéria,7 no qual a Comissão Africana defendeu a presença implícita do direito
à moradia, numa interpretação ampla dos direitos à saúde, propriedade e vida em família.
Com esse mesmo pensamento, o direito à alimentação foi compreendido como incluso no
documento, a partir da dignidade humana expressamente positivada. 8
Como já mencionado, a Carta Africana vai além do trivial e afirma os direitos
dos povos à existência enquanto tal, no art. 20; à livre disposição de sua riqueza e recursos
naturais, no art. 21; ao desenvolvimento, no art. 22; à paz e à segurança, no art. 23; e
também à preservação de um meio ambiente sadio, no art. 24.9
Já entre os artigos 27 e 29, há, de forma inédita nos sistemas regionais de
proteção dos direitos humanos, a previsão sobre os deveres dos indivíduos perante a
sociedade, a família, o Estado e a outras coletividades, além da própria comunidade
internacional. Nesse sentido, afirma Fabiana Gondinho que:
“A Carta Africana foi o primeiro instrumento de direitos humanos a
incluir em seu texto os deveres dos indivíduos perante o Estado, a
sociedade, a família e a comunidade internacional. Esses deveres são
delimitados de forma sistemática, mas também genérica, e visam ao
bom desenvolvimento social, cultural, e à manutenção da ordem nas

6
HEYNS, Christof; KILLANDER, Magnus. The African regional human rights system, p. 515.
7
ACHPR. 155/96 Social and Economic Rights Action Center (SERAC) and Center for Economic and Social
Rights (CESR) v. Nigéria.
8
BALDE, Aua. O sistema africano de direitos humanos e a experiência dos Países Africanos de Língua
Oficial Portuguesa.
9
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos, p. 391.

6
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP
DIREITOS HUMANOS

comunidades africanas, guardando muitos deles estreita relação com os


valores africanos que a Carta se propõe a refletir”.10
Parte da doutrina enxerga a Carta Africana como um avanço na proteção de
direitos humanos, sim, mas sem eficácia expressiva, uma vez que a população pobre tem
enormes dificuldades em acessar tais mecanismos, além do fato de que o histórico
colonizante está enraizado nos Estados africanos, pois, como afirma Marina Feferbaum:
“o processo de violações tem raízes longínquas, como a divisão territorial pela qual
passou o continente, não levando em consideração as particularidades dos povos que
habitavam cada região”11.
Por fim, é importante ressaltar como relevante avanço civilizatório que a Carta
Africana dos Direitos Humanos e dos Povos não contém uma cláusula derrogatória, o que
significa que as suas disposições vinculam as partes em todos os momentos, a partir de
sua ratificação.12

2. ÓRGÃOS

Importante registrar que a Comissão e a Corte Africanas não nasceram do


mesmo instrumento, e tiveram contextos histórico-políticos diversos nas suas
implementações normativas e concretas. Após analisar tais acontecimentos, veremos que
o Sistema Africano está em profunda evolução desde que foi concretamente
implementada sua Corte, que passa a trabalhar junto à já atuante Comissão.13

2.1. Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos

A Carta, endossando a ideia da urgência primeira da criação de uma Comissão,


foi adotada pela Assembleia da OUA realizada em Nairobi, Quênia, em junho de 1981 e
entrou em vigor em 1986. A Comissão Africana, criada ao abrigo da Carta para interpretar

10
GONDINHO, Fabiana de Oliveira. A proteção internacional dos direitos humanos, p.132.
11
FEFERBAUM, Marina. Proteção internacional dos direitos humanos: análise do sistema africano, pp.
114-116.
12
OUGUERGOUZ, F. The African Charter on Human and People’s Rights: A comprehensive agenda for
human rights. Alphen aan den Rijn: Kluwer Law International.
13
MUBIALA, Mutoy. Le système regional africain de protection des droits de l’homme, p. 87.

7
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP
DIREITOS HUMANOS

o tratado e ajudar a proteger e promover os direitos humanos em África, foi efetivamente


instalada em novembro de 1987 e está sediada em Banjul, Gâmbia.
Segundo o sítio da própria Comissão, sua inauguração em 1987 foi em Addis
Abeba, Etiópia, mas o Secretariado da Comissão foi subsequentemente localizado em
Banjul, Gâmbia.14 As suas funções primordiais, além de outras confiadas pela Assembleia
dos Chefes de Estado de Governo da UA, são a proteção e a promoção dos direitos
humanos e dos povos, e a interpretação da Carta Africana.15
Vale mencionar, ainda, que suas decisões são, como todas as Comissões de
Direitos Humanos, tão-somente recomendações, sem caráter vinculativo como aquelas
emitidas pela Corte. A Comissão é composta por 11 membros eleitos pela Assembleia da
UA de entre especialistas nomeados pelos Estados-Parte da Carta e seus mandatos são de
seis anos, renováveis por um período.

2.2. Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos

Em uma tentativa de reforçar a Carta e responder a críticas recorrentes, a Corte


Africana dos Direitos Humanos e dos Povos surge para complementar o mandato de
proteção da Comissão. Sua criação foi fundada no reconhecimento de que o a Carta de
Bajul apresentava algumas limitações, além do desejo de aumentar sua eficiência.
Inaugurada em 2006, também com 11 membros e mandato de 6 anos, com uma
recondução possível, a Corte tem sede em Arusha, na Tanzânia e, além do poder de emitir
pareceres consultivos, tem competência para ouvir petições individuais relacionadas com
violações dos direitos humanos apresentadas pela Comissão da UA, bem como queixas
apresentadas por indivíduos, por organizações intergovernamentais africanas e pelos
Estados membros.
Foi o Protocolo à Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos sobre o
Estabelecimento da Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, adotado em 10 de
junho de 1998, e cuja entrada em vigor se deu em 25 de janeiro de 2005, que efetivamente
criou a Corte. Uma previsão limitante da jurisdição da Corte é a que diz que uma

14
ACHPR. Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos..
15
Ibidem.

8
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP
DIREITOS HUMANOS

declaração expressa do Estado é necessária para que a Corte tenha competência para
acolher queixas individuais de direitos humanos contra ele, o que, talvez sem surpresa, só
foi assinado por sete Estados africanos.
O impulso para estabelecer essa Corte Africana é tão antigo quanto a própria
Carta Africana, tendo sido considerado, mas rejeitado por vários motivos pelo Comitê de
Especialistas que redigiu a Carta Africana em 1979, conforme dito no item 1.1. Foi
motivado, em parte, pela necessidade de fortalecer o Sistema Africano e aumentar a sua
capacidade de gerar decisões vinculativas que forçassem os Estados a cumprir, promover
e proteger direitos humanos na região.

2.2.1. Casos paradigmáticos

Apesar da curta existência da Corte Africana, trazemos à lume alguns julgados


paradigmáticos do Sistema Africano dos Direitos Humanos e dos Povos.
O primeiro deles é o caso Association pour le Progrès et la défense des droits de
femmes maliennes (APDF) and the Institute for Human Rights and Development in Africa
(IHRDA) v. República do Mali,16 que foi julgado em 2018 e trata dos direitos das mulheres
e das crianças. Além do temário, o caso também é paradigmático no sentido de apresentar
aspectos diferenciais sobre o funcionamento da Corte, principalmente sobre a
participação de ONGs como partes requerentes e sobre a possibilidade de se condenar um
Estado por violações a direitos humanos advindas de tratados estranhos ao Sistema
Africano.
Ficou decidido que a República do Mali violou direitos das mulheres e das
crianças em decorrência da adoção de um novo Código de Família por seu ordenamento
doméstico. Em 2009, a Assembleia Nacional do Mali acatou um projeto de lei que visava
reformular tais disposições, de modo que esse aparato legal ficasse mais condizente com
o Direito Internacional dos Direitos Humanos.
Contudo, após grandes debates no parlamento, o projeto sofreu alterações
estruturais, sobretudo sob influência política religiosa, e terminou por estabelecer efeitos

16
ACHPR. The matter of Association pour le Progrès et la défense des droits de femmes maliennes (APDF)
and the Institute for Human Rights and Development in Africa (IHRDA) v. Republico f Mali.

9
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP
DIREITOS HUMANOS

jurídicos ao casamento religioso da mesma forma que o civil, por determinar a idade de
16 anos como idade núbil apenas a mulheres, e, em questões de herança, discriminava
com base no sexo e no fato dos filhos terem nascido ou não no seio familiar do casamento
em questão. Em 2011, esse projeto reformulado, já com bases em preceitos islâmicos
mais tradicionalistas e opostos ao objetivo inicial.
Em 2016, duas ONGs de proteção de direitos humanos levaram à Corte Africana
o pedido de condenação da República do Mali pela adoção desse novo Código menos
protetivo e discriminatório do ponto de vista sexual e de origem filial. O caso foi admitido
pela observância dos requisitos de: 1) expressa aceitação pelo Mali da possibilidade de
ONGs e indivíduos proporem demandas perante à Corte, conforme os arts. 34 (6) (1) e 5
(3) (2) do Protocolo da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos relativo á
Criação de uma Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos;17 e 2) as ONGs tinham
status de observadores na Comissão, o que as permitiu postular o caso perante a Corte.
Tendo em vista a abertura do art. 31 do Protocolo Relativo aos Estatutos da Corte
Africana de Justiça e de Direitos Humanos, que diz: “No exercício das suas funções, a
Corte deverá lidar com o seguinte: (...) b) os tratados internacionais, gerais ou especiais,
aos quais os Estados em litígio são Partes”18, as ONGs fundamentaram o caso em
violações ao Protocolo à Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos Sobre os
Direitos das Mulheres na África, conhecido como Protocolo de Maputo;19 na Carta
Africana dos Direitos e Bem-Estar da Criança;20 iii) na Convenção sobre a Eliminação de
Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher,21 de âmbito internacional.
Após o reconhecimento da jurisdição da Corte e da admissibilidade do pedido,
as questões enfrentadas pela Corte tratavam da idade mínima para casamento, do
consentimento para casamento, do direito à herança para mulheres e crianças, e a
eliminação de tradições e costumes prejudiciais a mulheres e crianças. A Corte não
acolheu os argumentos de força maior, que pretendiam justificar as mudanças legislativas

17
ACHPR. Protocol to the African Charter on Human and Peoples Rights on the establishment of an
African Court on Human and People’s Rights.
18
ACHPR. Protocol on the Statute of the African Court of Justice and Human Rights.
19
ACHPR. Protocol to the African Charter on Human and Peoples’ Rights on the Rights of Women in
Africa.
20
ACHPR. African Charter on the Rights and Welfare of the Child.
21
ONU MULHERES. Convenção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a
mulher.

10
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP
DIREITOS HUMANOS

com base nas manifestações sociais e religiosas no país, nem de eventual espelhamento
natural dos aspectos sociais, culturais e religiosos da população do Mali.
Mais do que isso, a Corte decidiu que a República do Mali tinha obrigação de
adotar mecanismos que eliminassem a discriminação contra as mulheres, sobretudo em
decorrência de serem partes da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra a Mulher, no âmbito da ONU. Ao fim, o Estado-parte foi condenado
por ter violado tal Convenção e também o Protocolo de Maputo e a Carta Africana dos
Direitos e Bem-Estar da Criança.
O segundo caso que merece menção envolveu a Comissão Africana dos Direitos
Humanos e dos Povos v. República do Quênia22, julgado em 2017, também conhecido
como caso da Comunidade Indígena Ogiek, que fica na Floresta de Mau, no Quênia. Essa
etnia indígena africana tem aproximadamente 20 mil membros, dentre os quais 15 mil
vivem na área mencionada.
Em outubro de 2009, a Comunidade Indígena Ogiek recebeu uma notificação do
Estado do Quênia, pelo seu Serviço Florestal, informando que a comunidade inteira teria
30 dias para sair de suas casas, pois a área que ocupavam se tornaria uma zona de captação
de água, e, portanto, de propriedade estatal, conforme previa o Código de Administração
de Terras do Quênia.
Tendo em vista a evicção arbitrária, sem possibilidade de defesa por parte da
Comunidade, nem tendo realizado prévia consulta, os Ogiek afirmaram que outra
atrocidade estava sendo cometida contra seu povo, já que, desde o período colonial, a
etnia vinha sofrendo injustiças históricas que jamais foram reparadas. Assim, buscando a
reparação do aviltamento de seus direitos, além do reconhecimento de sua ancestralidade
e seu status indígena, em 2012 eles recorreram à Corte Africana dos Direitos Humanos e
dos Povos.
Para resguardar seus direitos e impedir o procedimento de expulsão de suas
terras, a Comunidade Ogiek pediu em caráter liminar à Corte medidas preventivas para
tanto, o que foi deferido no início de 2013, haja vista a gravidade, a urgência e a iminência
de violações de direitos que poderiam afetar de forma permanente a Comunidade.
Nesse sentido, a Corte sentenciou o Quênia a restabelecer imediatamente as

22
ACHPR. African Commission on Human and Peoples’ Rights v. Republic of Kenya..

11
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP
DIREITOS HUMANOS

restrições que impôs às transações de terras no Complexo Florestal de Mau, a se abster


de colocar em prática qualquer ação que prejudicasse o pedido principal e a informar a
Corte sobre as medidas tomadas. Num primeiro momento, o Quênia cumpriu as ordens,
mas, de acordo com cartas recebidas pela Corte entre 2013 e 2014, o país teria tentado
descumprir as medidas provisionais e expulsar os Ogiek de suas terras.
Após tentativa de conciliação por dois anos, a Corte retomou o processo judicial
e, em sentença, afastou a alegação de sua incompetência para julgar ao caso, já que o
Quênia era signatário e ratificador dos Pactos Internacionais de Direitos Civis e Políticos
e de Direitos Sociais, Econômicos e Culturais, além da Carta Africana dos Direitos
Humanos e dos Povos. A Corte decidiu também que, com base nos trabalhos do Grupo
de Trabalho da Comissão sobre Populações e Comunidades Indígenas e da Relatoria
Especial das Nações Unidas para as Minorias para identificação das comunidades
indígenas, além de aplicar os arts. 60 e 61 da Carta Africana, os Ogiek são
reconhecidamente uma população indígena e, como tal, merecem especial proteção.
Esses dois casos, um que trata dos direitos das mulheres e das crianças, outro
que trata de comunidades indígenas, são exemplos de julgamentos complexos e
paradigmáticos do Sistema Africano dos Direitos Humanos e dos Povos, principalmente
porque exemplificam a proteção aos direitos humanos, no primeiro caso, ao pensar na
não-discriminação, e dos povos, no segundo, ao reconhecer a uma comunidade indígena
seu status de proteção especial.

3. PERSPECTIVAS FUTURAS

Como brevemente exposto no item 1.1, há alguma incerteza sobre o destino da


Corte Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, principalmente por conta da fusão
problemática com o Tribunal Africano de Justiça e o consequente estabelecimento de uma
Seção de Direito Penal Internacional, tudo no mesmo sistema.
Isso se dá porque, em 27 de junho de 2014, a Assembleia dos Chefes de Estado
e de Governo da União Africana adotou o Protocolo sobre Emendas ao Estatuto do
Tribunal Africano de Justiça e Direitos Humanos, comumente chamado de Protocolo de
Malabo.
O Protocolo de Malabo visa estabelecer a primeira Corte Africana com

12
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP
DIREITOS HUMANOS

jurisdição tripartida sobre direitos humanos, questões criminais, e complementação dos


órgãos e instituições nacionais, sub-regionais e continentais na prevenção de violações
graves e massivas dos direitos humanos na África, por meio, sobretudo, de processos
judiciais contra os eventuais autores de tais crimes.
Assim, o Protocolo de Malabo foi um dos oito instrumentos jurídicos adotados
recentemente pelos líderes da União Africana (UA), e , indubitavelmente, um dos mais
significativos, já que prevê a adição de uma terceira seção à Corte Africana dos Direitos
Humanos e dos Povos, que funciona como um tribunal regional com jurisdição sobre
questões de direitos humanos, bem como disputas gerais surgindo entre os Estados do
continente.
De acordo com seu estatuto, que entrará em vigor após a obtenção das 15
ratificações exigidas, o novo Tribunal terá competência para investigar e julgar 14 crimes
internacionais, transnacionais, com uma estrutura de três câmaras e jurisdições separadas:
1) a Seção de Assuntos Gerais; 2) a Seção dos Direitos Humanos e dos Povos; e 3) a
Seção de Direito Penal Internacional. A fusão dessas três câmaras que tratam de disputa
entre os Estados africanos, direitos humanos e aspectos penais em uma única corte, ou
seja, cujas questões serão sempre julgadas pelos mesmos juízes, impõe um verdadeiro
desafio ao continente, sobretudo para a criação de instituições regionais amplas e para a
elaboração de leis que regulem todo esse aparato.
Até o momento, o Protocolo de Malabo foi assinado apenas por 11 dos 55
estados membros da União Africana (UA), nao contendo nenhuma das 15 (quinze)
ratificações necessárias para entar em vigor. Por isso, ainda não há previsão de sua
entrada em vigor.
Mesmo quando tal feito for alcançado, ainda assim levará algum tempo para que
os Estados da UA repassem os recursos necessários para que essa nova Corte seja
estabelecida e funcione de acordo com seu elevadas competências e atribuições
estabelecidas no Estatuto e no seu anexo.
Muito embora considera-se que Direito Internacional Penal, nas últimas décadas,
seja apenas aplicável nos níveis nacional e internacional, sem esquecer dos tribunais
híbridos, que misturam o nacional e o internacional em diferentes graus para oferecer um
terceiro modelo de aplicação, quando o Protocolo de Malabo entrar em vigor, dará
origem à primeira jurisdição criminal regional capaz de processar crimes internacionais

13
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP
DIREITOS HUMANOS

graves, como genocídio, crime de agressão, crimes de guerra e crimes contra a


humanidade.
Seria também a primeira Corte a julgar crimes de particular interesse para a
região africana, como mudanças inconstitucionais de governo. exploração ilícita de
recursos naturais, crimes ambientais, sejam cometidos por pessoas físicas ou jurídicas.
Esse movimento de regionalização ou africanização da aplicação do Direito Internacional
Penal tem grande potencial em contribuir para responsabilização dos perpetradores de
crimes tão graves quanto estes, e, talvez, por sua proximidade regional, passe a combater
mais eficazmente tais crimes. Esse novo modelo já despertou interesse em outras regiões,
como a América Latina, haja vista o projeto de criação de uma Corte com jurisdição sobre
delitos de tráfico de drogas sob a bandeira da COPLA (Corte Penal Latinoamericana e do
Caribe contra o Crime Transnacional Organizado).23

REFERÊNCIAS

ACHPR. 155/96 Social and Economic Rights Action Center (SERAC) and
Center for Economic and Social Rights (CESR) v. Nigéria. Disponível em:
<https://www.achpr.org/pr_sessions/descions?id=134>. Acesso em: 17.03.2021.
__________________. African Charter on the Rights and Welfare of the Child.
Disponível em: <https://www.african-
court.org/en/images/Basic%20Documents/African%20Charter%20on%20the%20Rights
%20of%20Child.pdf >. Acesso em: 17.03.2021.
__________________. African Commission on Human and Peoples’ Rights v.
Republic of Kenya. Disponível em: <https://www.escr-
net.org/sites/default/files/caselaw/ogiek_case_full_judgment.pdf>. Acesso em:
17.03.2021.
__________________. Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos.
Disponível em: <https://www.achpr.org/pr_home>. Acesso em: 17.03.2021.
__________________. Protocol on the Statute of the African Court of Justice and
Human Rights. Disponível em: <https://www.african-

23
CURRIE, Robert. A transnational criminal court for latin america and the Caribbean.

14
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP
DIREITOS HUMANOS

court.org/en/images/Basic%20Documents/ACJHR_Protocol.pdf>. Acesso em:


17.03.2021.
__________________. Protocol to the African Charter on Human and Peoples
Rights on the establishment of an African Court on Human and People’s Rights.
Disponível em: <https://pt.african-court.org/images/Basic%20Documents/africancourt-
humanrights.pdf>. Acesso em: 17.03.2021.
__________________. Protocol to the African Charter on Human and Peoples’
Rights on the Rights of Women in Africa. Disponível em: <https://www.african-
court.org/en/images/Basic%20Documents/Protocol%20to%20the%20Chrter%20on%20
Women's%20Rights.pdf>. Acesso em: 17.03.2021.
__________________. The matter of Association pour le Progrès et la défense
des droits de femmes maliennes (APDF) and the Institute for Human Rights and
Development in Africa (IHRDA) v. Republico f Mali. Disponível em:
<https://www.african-court.org/en/images/Cases/Judgment/046%20-%202016%20-
%20Association%20Pour%20le%20Progr%C3%A8s%20et%20la%20Defense%20Des
%20Droits%20Des%20Femmes%20Maliennes%20-%20APDF%20Vs.%20Mali%20-
%20Judgement%20of%2011%20Mai%202018%20-%20Optimized.pdf>. Acesso em:
17.03.2021.
BALDE, Aua. O sistema africano de direitos humanos e a experiência dos
Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa. Lisboa: Universidade Católica Editora,
2017.
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 2.
ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
DHNET. Carte de Banjul. Disponível em:
<http://www.dhnet.org.br/direitos/sip/africa/banjul.htm>. Acesso em: 15.03.2021.
DLAMINI, C.R.M. Towards a regional Protection of human rights in Africa:
The African Charter on Human and Peoples’ Rights. The Comparative and International
Law Journal of Southern Africa, vol. 24, n. 2, jul. 1991, pp. 189-203. Disponível em:
<https://www.jstor.org/stable/23248745?seq=1>. Acesso em: 15.03.2021.
EVANS, M; MURRAY, R. (coord.). The african charter on human and people’s
rights. Cambridge: Cambridge University Press, 2002.

15
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP
DIREITOS HUMANOS

FEFERBAUM, Marina. Proteção internacional dos direitos humanos: análise


do sistema africano. São Paulo: Saraiva, 2011.
GONDINHO, Fabiana de Oliveira. A proteção internacional dos direitos
humanos. Belo Horizonte: Del Rey, 2006.
HEYNS, Christof; KILLANDER, Magnus. The african regional human rights
system. Felipe Gomez Isa, Koen de Feyer (coord.). International Protection Of Human
Rights: Achievements And Challenges. Bilbao: University of Deusto, 2006.
KANNYO, Edward. Human rights in africa: problems and prospects. New
York: International League for Human Rights, 1980.
MUBIALA, Mutoy. Le système regional africain de protection des droits de
l’homme. Bruxelles: Bruylant, 2005.
ONU MULHERES. Convenção sobre a eliminação de todas as formas de
discriminação contra a mulher. Disponível em: <https://www.onumulheres.org.br/wp-
content/uploads/2013/03/convencao_cedaw.pdf>. Acesso em: 17.03.2021.
OUGUERGOUZ, F. The african charter on human and people’s rights: a
comprehensive agenda for human rights. Alphen aan den Rijn: Kluwer Law International,
2003.
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional. 3ª ed. São Paulo,
Saraiva, 2012.

16

Você também pode gostar