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COORDENAÇÃO GERAL

Celso Fernandes Campilongo


Alvaro de Azevedo Gonzaga
André Luiz Freire

ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP

TOMO 10

DIREITO CIVIL

COORDENAÇÃO DO TOMO 10
Rogério Donnini
Adriano Ferriani
Erik Gramstrup

Editora PUCSP
São Paulo
2022
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP
DIREITO CIVIL

DIRETOR
Vidal Serrano Nunes Júnior
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
DIRETORA ADJUNTA
FACULDADE DE DIREITO
Julcira Maria de Mello
Vianna Lisboa

ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP | ISBN 978-85-60453-35-1


<https://enciclopediajuridica.pucsp.br>

CONSELHO EDITORIAL

Celso Antônio Bandeira de Mello Oswaldo Duek Marques


Elizabeth Nazar Carrazza Paulo de Barros Carvalho
Fábio Ulhoa Coelho Raffaele De Giorgi
Fernando Menezes de Almeida Ronaldo Porto Macedo Júnior
Guilherme Nucci Roque Antonio Carrazza
Luiz Alberto David Araújo Rosa Maria de Andrade Nery
Luiz Edson Fachin Rui da Cunha Martins
Marco Antonio Marques da Silva Tercio Sampaio Ferraz Junior
Maria Helena Diniz Teresa Celina de Arruda Alvim
Nelson Nery Júnior Wagner Balera

TOMO DE DIREITO CIVIL | ISBN 978-85-60453-66-5


A Enciclopédia Jurídica é editada pela PUCSP

Enciclopédia Jurídica da PUCSP, tomo X (recurso eletrônico)


: direito civil / coords. Rogério Donnini, Adriano Ferriani, Erik Gramstrup – 2. ed. – São
Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2022
Recurso eletrônico World Wide Web
Bibliografia.
O Projeto Enciclopédia Jurídica da PUCSP propõe a elaboração de dez tomos.

1.Direito - Enciclopédia. I. Campilongo, Celso Fernandes. II. Gonzaga, Alvaro. III. Freire,
André Luiz. IV. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

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ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP
DIREITO CIVIL

GUARDA E MEDIDAS PROTETIVAS SOB A PERSPECTIVA DE GÊNERO


Camila de Jesus Mello Gonçalves

INTRODUÇÃO

A relação entre direito e gênero é pouco explorada pela comunidade jurídica


nacional, tendente a pensar no direito como um sistema não contraditório no combate à
discriminação contra a mulher.
A partir da análise do direito de família, percebe-se a influência de normas de
gênero na produção legislativa, podendo-se afirmar que a história da guarda ilustra
conquistas feministas no âmbito do sistema jurídico.
Nesse contexto, as medidas protetivas de urgência previstas nos arts. 22, IV e
23, V da Lei Maria da Penha (LMP), relacionadas à suspensão de visitas e à transferência
de escola, podem ser submetidas a uma análise crítica. O confronto das previsões do
direito privado com tais medidas protetivas indica o caráter persistente das normas de
gênero, que estabilizam a mulher como cuidadora primária dos filhos e fixa papeis sociais
rígidos, em contradição à evolução da guarda no direito nacional.
A perspectiva de gênero demostra a ambiguidade do direito: de um lado, liberta
a mulher da guarda unilateral e de outro, prevê a exclusividade do cuidado feminino como
estratégia contra a violência doméstica e familiar, reeditando estereótipos sob nova
roupagem e chamando a atenção para a complexidade da simbiose entre direito e gênero.
Para melhor compreensão, o tema será dividido em tópicos.

SUMÁRIO

Introdução ......................................................................................................................... 2

1. A proteção da mulher no sistema internacional dos direitos humanos: a importância


do combate a estereótipos ....................................................................................... 3

2. O estereótipo da mulher-mãe-cuidadora ................................................................. 5

3. Estereótipos e discriminação contra a mulher na vida pública ............................... 9

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4. A regulação jurídica do cuidado na família: a guarda sob a perspectiva de gênero


............................................................................................................................... 13

5. Guarda e as medidas protetivas previstas nos arts. 22, IV, e 23, V, da Lei Maria da
Penha ..................................................................................................................... 17

6. A situação dos filhos ............................................................................................. 21

7. Estereótipos e violência contra a mulher na família ............................................. 22

8. Conclusões ............................................................................................................ 24

Referências ..................................................................................................................... 25

1. A PROTEÇÃO DA MULHER NO SISTEMA INTERNACIONAL DOS DIREITOS HUMANOS: A

IMPORTÂNCIA DO COMBATE A ESTEREÓTIPOS

Nas convenções temáticas global e regional, Convenção sobre a Eliminação de


Todas as Formas de Violência Contra a Mulher (CEDAW) e Convenção Interamericana
para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do
Pará), a proteção à mulher contra a discriminação e a violência está associada ao combate
e à eliminação dos estereótipos de comportamento e dos costumes sociais baseados em
conceitos de inferioridade e subordinação (arts 5º, “a”, e art. 6, “b”, respectivamente). No
mesmo sentido, a política pública estabelecida no art. 8º da Lei Maria da Penha (LMP)
traz, entre suas diretrizes, a preocupação em coibir papéis estereotipados que legitimem
ou exacerbem a violência doméstica e familiar contra a mulher (inciso III), encampando
as orientações das normas internacionais que relacionam a violência e a discriminação à
rigidez do gênero.
Na tentativa de combater estereótipos, uma das metas estabelecidas no plano
global é a corresponsabilidade entre homens e mulheres quanto à educação e ao
desenvolvimento de seus filhos (CEDAW, art. 5º, “b”), na consideração da importância
do compartilhamento das funções de cuidado como forma de eliminar práticas baseadas
em preconceitos relacionados a papeis de gênero.
A necessidade de democratizar as funções típicas da esfera doméstica, aí incluída
a atenção aos filhos, foi reafirmada entre os objetivos globais de desenvolvimento

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sustentável para o milênio, estabelecidos na agenda da ONU para 2030, como necessária
para “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas” (Objetivo
5). Entre os desdobramentos do referido objetivo, incluiu-se a promoção da
responsabilidade compartilhada dentro do lar e da família (item 5.4), visando garantir a
igualdade de oportunidades de participação plena e efetiva das mulheres, em todos os
níveis de tomada de decisão (item 5.5).
As teorias feministas vêm há muito aprofundando a reflexão sobre a presença da
mulher no espaço doméstico, chamando a atenção tanto para a artificialidade da ideia de
que o cuidado dos filhos é naturalmente da mãe, corolário da função reprodutiva, quanto
para a desvalorização dessa função e para as respectivas consequências que a ocupação
com o cuidado traz do ponto de vista da disponibilidade da mulher para além da vida
privada. Defende-se que há uma relação entre a má divisão das tarefas domésticas e o
desempenho feminino nas esferas públicas, seja na política, seja no mundo corporativo,
por exemplo, na consideração de que o tempo é uno, de modo que aquele despendido com
uma atividade certamente impactará na outra. Bem por isso, o direito internacional dos
direitos humanos, encampando lições feministas, associou a proteção à mulher contra a
desigualdade e a discriminação a uma mais equânime divisão das tarefas no lar, aí
incluído o cuidado com os filhos.
A partir do quadro normativo global, que traz o combate a estereótipos de gênero
como estratégia para enfrentar a violência e a discriminação contra a mulher, relevante
refletir sobre as medidas protetivas disciplinadas nos arts. 22, IV e 23, V, da LMP,
submetendo-as à análise do ponto de vista dos estereótipos de gênero.
As regras escolhidas preveem a restrição ou suspensão de visitas aos filhos e a
matrícula ou transferência dos dependentes para a instituição de educação básica mais
próxima do domicílio da ofendida, como medidas de proteção à mulher em situação de
violência.
A ideia não é criticar tais previsões nem debater dados empíricos sobre a
realidade do protagonismo das mulheres na educação dos filhos, mas sim aprofundar a
relação entre direito e gênero sob uma perspectiva crítica, propondo reflexão sobre os
limites do direito como instrumento emancipatório em prol das mulheres.
Entendido o direito como um produto cultural tanto quanto as demais produções
humanas de uma determinada época e local, não é desarrazoado supor que sofra os

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mesmos influxos de crenças cristalizadas nos estereótipos de gênero, cuja invisibilidade


pode ocultar a função reprodutora do gênero pelo direito.

2. O ESTEREÓTIPO DA MULHER-MÃE-CUIDADORA

O cuidado dos filhos tem sido tradicionalmente atribuído às mulheres, sendo a


mãe, dona de casa, retratada como o modelo universal de feminilidade pela ideologia do
século XIX.1 A partir dos anos 60, feministas passaram a rejeitar o determinismo
biológico que atribuía determinados papeis às mulheres, insistindo no caráter
fundamentalmente social do caráter humano e das distinções baseadas no sexo.2
Entre muitas estudiosas, escolheu-se Simone de Beauvoir para conduzir o
questionamento a padrões de comportamento relacionados à maternidade, tendo em vista
que a autora inspirou movimentos feministas a criticarem estereótipos de gênero que
associam o corpo feminino a um determinado papel social, personalidade, profissão ou
natureza materna, como apontam Oliveira e Noronha.3
O estudo dos povos primitivos e o modo com que lidavam com a vida dos filhos
é uma primeira pista trazida por Beauvoir para controverter a ideia do cuidado materno
como característica natural da mulher. Segundo a autora, a ausência de permanência pela
não fixação no território, típica dos povos nômades, resultava numa despreocupação com
a própria vida e com a descendência. Para as mulheres, os filhos representavam um
encargo e ainda recém-nascidos eram exterminados ou morriam por falta de higiene, em
meio à indiferença geral. Nas palavras de Beauvoir: “[a] mulher que engendra não
conhece, pois, o orgulho da criação; sente-se o joguete passivo de forças obscuras, e o
parto doloroso é um acidente inútil e até inoportuno”.4 A maternidade não era valorizada,
nem socialmente nem individualmente, pondo em questão a propagada aptidão materna
para o cuidado como “essência natural” ou instintiva da mulher.
Mesmo na contemporaneidade, em momento histórico de valorização da figura
da mãe, a ideia da mulher como naturalmente boa cuidadora não se comprova. A partir

1
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe, p. 231.
2
NICHOLSON, Linda. Interpretando o gênero.
3
Oliveira. Noronha. Afinal, o que é “mulher”? E quem foi que disse?, p. 753.
4
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo, pp. 101-102.

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de relatos colhidos por médicos que atenderam mulheres e da literatura francesa, Beauvoir
conclui: “[t]odos esses exemplos bastam para mostrar que não existe ‘instinto’ materno:
a palavra não se aplica em nenhum caso à espécie humana. A atitude da mãe é definida
pelo conjunto de sua situação e pela maneira por que a assume”, 5 atestando a relevância
do aspecto sociocultural para a atitude de cuidado da mãe em relação aos filhos. A análise
da experiência concreta de mulheres permitiu à autora formular a ideia de que o gestar,
inerente à função reprodutiva feminina, essa sim biológica, não implica necessariamente
a revelação de uma boa mãe, dissociando a crença de que a mulher, por natureza, teria
pendor para o cuidado das crianças, por nascença e em razão de seu sexo. Ao contrário,
vários fatores interferem para o bom ou mau desempenho da função materna. Segundo
Beauvoir, “[a] relação da mãe com os filhos define-se no seio da forma global que é a sua
vida; depende de suas relações com o marido, com o passado, com suas ocupações e
consigo mesma”. 6
Para Beauvoir, a atribuição da tarefa de cuidar dos filhos à mulher resulta de uma
forma específica de divisão do trabalho entre os sexos, com consequências prejudiciais
às mulheres desde os tempos antigos. Enquanto ao homo faber incumbiam funções e atos
criativos, que transcendiam sua condição animal, construindo instrumentos e inventando
técnicas para pescar e caçar, o trabalho doméstico que cabia à mulher, por ser o único
conciliável com os encargos da maternidade, era mecânico e repetitivo: “reproduzem-se
dia após dia sob uma forma idêntica que se perpetua quase sem modificação através dos
séculos: não produzem nada de novo”.7 Segundo a autora, tal modo de dividir o trabalho
contribuiu para a inferioridade das mulheres, que se limitavam a repetir a vida, enquanto
os homens descobriam razões de viver. Diante da restrição de horizontes envolvida na
vida doméstica e no cuidado dos filhos, como se houvesse “uma lei inscrita no céu ou nas
entranhas da terra (que) determina que a mãe e o filho se pertençam exclusivamente um
ao outro”, Beauvoir avalia que a manutenção dessa divisão de trabalho resulta em “uma
dupla e nefasta opressão”.8 Na perspectiva da autora, a divisão de trabalho estabelecida
já entre os povos primitivos tolheu a criatividade da mulher e encerrou-a na repetição

5
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo, p. 679.
6
Idem, p. 693.
7
Idem, p. 102.
8
Idem, p. 697.

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cotidiana das atividades do lar. Do ponto de vista das generalizações que essa organização
social implica, visualiza-se uma mulher não apenas cuidadora e moldada para o
atendimento das necessidades dos outros, mas também esvaziada de sonhos e desejos,
sem espaço mental e tempo real para dedicação a projetos pessoais, a desnudar
consequências negativas associadas ao estereótipo da mulher cuidadora.
As lições de Beauvoir permitem questionar a ideia de que toda mulher sempre
será uma boa mãe, por força da natureza. Defende a autora que circunstâncias pessoais,
sociais e familiares são essenciais para a qualidade da relação entre a mãe e a prole,
desmistificando o ideal universal de mulher, segundo o qual haveria a propensão ao
cuidado como característica comum e necessária, inerente à função reprodutiva, imutável
e estabilizada, em todas as pessoas do sexo feminino. Como aponta Nicholson, esse tipo
de questionamento, controvertendo a naturalização de papeis sociais, permitiu avançar
em direção a mudanças até então dificultadas pela assunção implícita de fincar no
conceito de sexo, estritamente ligado à biologia, a diferença entre homens e mulheres.9
A partir dessas lições, assume-se, nestas linhas, que a crença na vocação da
mulher para o cuidado dos filhos resulta mais de uma construção social do que de uma
aptidão natural, sendo oportuno refletir sobre a associação que existe entre a mulher e o
cuidado, cristalizada em estereótipo de gênero tão intenso que muitas vezes leva à
confusão entre “ser mulher” e “cuidar”.
Cook, na obra Estereotipos de Género, define o estereótipo como uma visão
generalizada ou uma preconcepção sobre os atributos ou características dos membros de
um grupo ou sobre os papeis que tais membros devam cumprir.10 De um lado, o
estereótipo facilita a inteligibilidade social ao dispensar uma investigação sobre cada
indivíduo e ao permitir o pronto estabelecimento de conexões entre pares. De outro,
diminui o leque de opções e restringe a liberdade de escolha, ao ditar comportamentos
para todos os que pertencem ao grupo, indistinta e independentemente dos projetos
pessoais de cada um. Cook reconhece que os estereótipos afetam homens e mulheres, mas
aponta que têm um efeito mais flagrante sobre elas, atribuindo-lhes papeis servis,
desvalorizando seus atributos e características, condicionando-as a assumir papel

9
NICHOLSON, Linda. Interpretando o gênero.
10
COOK, Rebecca J; CUSACK. Simone. Estereotipos de Género. perspectivas legales e transnacionales,
p. 11.

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subordinado e passivo considerado apropriado ao seu status, atuando para perpetuar e


legitimar a subordinação legal e social feminina.11
Por meio da ação do estereótipo, presume-se que o indivíduo possua
determinadas características pelo simples fato de pertencer a determinado grupo,12
podendo a divisão entre as categorias de homens e mulheres estar apoiada nas diferenças
físicas (estereótipos de sexo), na atração e no desejo sexual (estereótipos sexuais), nos
comportamentos esperados de homens e mulheres (estereótipos sobre papeis sexuais) ou
em fatores interseccionais como raça, idade, classe e capacidade, entre outros
(estereótipos compostos).
Para os fins propostos, em que se busca refletir sobre a presunção de que a
mulher é a cuidadora preferencial, os estereótipos sobre papeis sociais são especialmente
relevantes, na medida em que partem das diferenças biológicas para determinar
comportamentos sociais apropriados para homens e mulheres, a partir de uma noção
normativa.13 Reconhece-se, pois, que os estereótipos sobre papeis sociais possuem uma
dimensão prescritiva, ditando como homens e mulheres devem se comportar em
sociedade para serem incluídos nas respectivas categorias, como será retomado adiante.
Por ora, cumpre trazer alguns exemplos de mecanismos sociais que contribuem
para a conformação do papel de gênero relacionado à mulher cuidadora, a título de
ilustração. Para Cook, os estereótipos sobre papeis sociais assentam-se na divisão
tradicional do trabalho, pela qual as mulheres se dedicam às tarefas domésticas e os
homens desempenham funções remuneradas: homens como provedores primários e
mulheres como mães e donas de casa.14 O amor romântico também pode ser citado como
tecnologia social que contribui para a cristalização de normas de comportamento
relacionadas às mulheres, ao fixá-las nos papeis sociais de mães, amantes, cuidadoras e
esposas. O medo de perder o ente querido incentiva que as mulheres se mostrem dóceis,
medrosas, instáveis, vulneráveis e submetidas aos gostos e preferências do homem para
manter o príncipe encantado. Ao levar à idealização do parceiro como dominante, esposo

11
COOK, Rebecca J; CUSACK. Simone. Estereotipos de Género. perspectivas legales e transnacionales,
pp. 1-2.
12
Idem, p. 15.
13
COOK, Rebecca J. CUSACK. Simone. Estereotipos de género. perspectivas legales e transnacionales,
p. 32.
14
Idem, p. 33.

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e pai dos filhos, o amor romântico reforça os estereótipos de mulher como procriadora,
esposa, amante fiel e mãe.15 Na síntese de MacKinnon, a versão contemporânea do
estereótipo feminino expõe a mulher como alguém “dócil, suave, passiva, que se ocupa
dos demais, vulnerável, fraca, narcisista, infantil, incompetente, masoquista e doméstica,
feita para o cuidado dos filhos, da casa e do marido”.16
Tanto teorias feministas que fundam a desigualdade social entre os sexos na
divisão do trabalho quanto aquelas que focam em outros aspectos apontam o cuidado
como uma imposição cultural à mulher. Quer por força do trabalho reprodutivo quer em
decorrência da organização familiar romântica, liberal e patriarcal, o estereótipo da
mulher-mãe-cuidadora compõe o ideal universal de mulher que se faz presente nas
interações envolvendo a categoria mulher.
Ocorre que as funções não remuneradas, típicas da maternidade e da criação dos
filhos, são desvalorizadas nas sociedades capitalistas, cumprindo aprofundar alguns dos
impactos negativos que o estereótipo da mulher cuidadora traz.

3. ESTEREÓTIPOS E DISCRIMINAÇÃO CONTRA A MULHER NA VIDA PÚBLICA

A ancoragem dos papeis sociais na cultura importa em reconhecer-lhes múltiplas


fontes e alguma variação no tempo e no espaço. Em que pese a possibilidade de flutuação,
o estereótipo da mulher como cuidadora primária mantem-se de modo persistente e
recorrente, inclusive pela centralidade da família na organização social e jurídica e em
razão da importância da mãe na estrutura familiar brasileira. Independentemente da
possibilidade de as mulheres efetivamente se realizarem na maternidade ou da verdade
da presunção estereotipada que liga a mulher ao cuidado, Cook chama atenção para o que
considera relevante: identificar como o estereótipo molda as estruturas sociais que
discriminam a mulher, propondo a desconstrução do estereótipo como alternativa para
combater a discriminação.17

15
SILVA, Artenira da Silva e; GARCÍA-MANSO, Almudena; BARBOSA, Gabriela Sousa da Silva. Una
revisión histórica de las violencias contra mujeres, pp. 187-188.
16
MACKINNON, Catharine A. Feminismo, marxismo, método e o estado: uma agenda para a teoria, p.
819.
17
COOK, Rebecca J.; CUSACK. Simone. Estereotipos de género. perspectivas legales e transnacionales,
p. 3.

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Entre inúmeras possibilidades de abordar as consequências negativas do


estereótipo da mãe cuidadora, destaca-se a limitação que o cuidado doméstico traz sobre
a possibilidade de dedicação das mulheres a outros projetos existenciais. Para além de
chamar a atenção para o aspecto artificial da ideia de que a mulher é naturalmente mais
apta para o cuidado da prole, almeja-se demonstrar como o estereótipo da mulher
cuidadora primária impacta no desenvolvimento da personalidade e nas possibilidades de
dedicação feminina à esfera pública, vislumbrando-se estreita relação entre a
responsabilidade pelo cuidado dos filhos e a desigualdade entre homens e mulheres no
campo econômico e na participação política, por exemplo.
A restrição de horizontes da mulher absorta pela repetição das tarefas rotineiras
do lar, nos moldes sugeridos por Beauvoir, é intangível e de difícil comprovação
empírica. Para tornar concreto o potencial prejuízo decorrente da responsabilização da
mãe pelo cuidado dos filhos, como se a tarefa lhe coubesse pelo fato de gerar, recorreu-
se à literatura que aprofunda os efeitos do estereótipo do cuidado sobre a realização das
mulheres no espaço público e sobre a percepção do mercado sobre o trabalho das
mulheres.
Como revelaram feministas de diferentes tendências políticas e disciplinas,
estabelecem-se múltiplas conexões entre os papeis domésticos das mulheres e a
desigualdade e segregação a que estão submetidas nos ambientes de trabalho. Em artigo
que trata da dicotomia público/privado, Okin defende que os domínios da vida doméstica
e familiar e da vida pública, econômica e política não podem ser interpretados isolados
um do outro, afirmando que as desigualdades entre homens e mulheres no trabalho e na
política estão imbricadas às desigualdades no interior da família, em uma relação causal
de mão dupla. Depois de afirmar que a prevalência da mulher à frente da criação dos
filhos não é natural, mas socialmente construída, a autora conclui que tal arranjo social
produz impactos na discriminação no trabalho e na escassez de mulheres nas altas rodas
da política, diante da “pressuposição estrutural de que trabalhadores e ocupantes de cargos
políticos não são responsáveis por cuidar das crianças”.18 Como observado pela ativista
Frances Raday, ex-membro do comitê CEDAW referida por Cook, estereotipar a mulher
exclusivamente como mãe e dona de casa é a prática cultural mais dominante e danosa,

18
OKIN, Susan Moller. Gênero, o público e o privado, pp. 314-315.

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pois limita as oportunidades da mulher participar da vida política e econômica e tem sido
usada para justificar a exclusão das mulheres da vida pública em todas as culturas.19
No Brasil não é diferente. Com base em estudo do Banco Mundial e em relatório
da Organização Internacional do Trabalho, Soares, Bastos e Fachin asseveram que grande
parte da desigualdade de gênero no mercado de trabalho está relacionada a uma divisão
desigual do trabalho em casa, com as mulheres respondendo por 76,2% de todas as horas
de trabalho não remunerado.20 De outro lado, os homens representam a maioria da
população na faixa etária entre 16 e 59 anos que está no mercado de trabalho: 86,3% dos
homens nessa faixa etária possui trabalho remunerado, contra 63,7% das mulheres na
mesma situação, havendo um forte contingente feminino dedicado exclusivamente ao
trabalho reprodutivo.21 Ao mesmo tempo em que a responsabilidade no lar dificulta o
acesso ao trabalho remunerado, o papel tradicional da mulher, associado ao estereótipo
do cuidado, importa na concentração da mão de obra feminina nos setores de educação,
saúde, serviços sociais, serviços domésticos, alojamento e alimentação, enquanto os
homens ocupam postos nos setores agropecuário, industrial e na construção civil.22 Os
preconceitos e estereótipos que delineiam o papel social feminino também impactam nas
carreiras e nos salários das mulheres, pouco representadas nos cargos de diretoria e com
salários menores que os dos homens em aproximadamente 30%, segundo estatística social
do IBGE relativa ao ano de 2019.23
Tais indicadores revelam como estereótipo do cuidado produz consequências
sobre as realizações econômica, profissional e pessoal das mulheres. Absorvidas pela
rotina doméstica e sobrecarregadas com as tarefas do lar, imaginável que possam ter
cerceadas suas liberdades de fazer escolhas e acabem descartando alternativas que
demandem concentração, dedicação e tempo, não necessariamente por desejo genuíno,
mas por autêntica limitação de projetos existenciais que o estereótipo do cuidado
potencialmente acarreta. Em acréscimo e não menos importante, cumpre destacar que a

19
COOK, Rebecca J.; CUSACK. Simone. estereotipos de género. perspectivas legales e transnacionales,
p. 26.
20
SOARES, Inês Virginia Prado; BASTOS, Lucia Elena A. Ferreira; FACHIN, Melina Girardi. Economia
dos cuidados: quem perde com o pandemônio feminino na pandemia?
21
MELO, Hildete Pereira de; THOMÉ, Débora. Mulheres e poder: histórias, ideias e indicadores, p. 112
22
Idem, p. 113.
23
Disponível em <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-
noticias/noticias/27598-homens-ganharam-quase-30-a-mais-que-as-mulheres-em-2019>. Acesso em
20.11.2020.

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divisão de papeis que atribui às mulheres o trabalho não remunerado impacta diretamente
na estrutura de poder na família, resultando muitas vezes na dependência econômica,24
dificultando às mulheres a tomada de decisão e a direção da própria vida tanto no espaço
público quanto no âmbito doméstico.
Pelo exposto, é possível afirmar que a emancipação feminina em direção à
liberdade e à efetiva igualdade na família e nas oportunidades de realização fora do lar
não prescinde de uma mais equânime divisão das tarefas típicas da esfera privada, o
cuidado com os filhos entre elas. Somente dispensadas da sobrecarga doméstica as
mulheres terão disponibilidade para se dedicar a outras atividades, em igualdade de
condições com os homens, em busca de realizações pessoais não relacionadas à
afetividade e à intimidade próprias da vida privada. Para tanto, combater o estereótipo
que liga a mulher ao cuidado dos filhos e reconhecer-lhe a mesma aptidão que os homens
na esfera pública são duas faces da mesma moeda, vislumbrando-se íntima relação entre
a desnaturalização do cuidado e o acesso das mulheres aos espaços de poder e às rodas
econômicas e políticas, ao lado do homem. Ao mesmo tempo, dissociar as mulheres do
papel de cuidadoras que tradicionalmente ocupam permite que homens aprendam a cuidar
de crianças e a desempenhar tarefas domésticas, reforçando a ideia do cuidado como algo
que se aprende e não como uma aptidão natural decorrente do sexo.
O ordenamento jurídico vem sentindo o influxo das teorias feministas que negam
a existência de uma vocação natural e denunciam a construção social que há por trás do
estereótipo que liga a mulher ao cuidado. O instituto da guarda é especialmente útil para
observar o fenômeno, por tratar do aspecto da vida que se está a desenvolver.
Diferentemente do poder familiar, a guarda envolve a atenção rotineira e o desempenho
de tarefas cotidianas inerentes à lida diária com crianças, consumindo expressiva
quantidade de tempo e energia do responsável por ela. O esforço despendido com o
cuidado dos filhos produz resultados importantes sob o aspecto subjetivo dos seres em
formação, mas pode limitar a possibilidade de atuação da pessoa guardiã em outros
campos. Se imaginarmos a atribuição da guarda exclusivamente à mulher, fácil
compreender a restrição de possibilidades de desenvolvimento individual e profissional

24
OKIN, Susan Moller. Gênero, o público e o privado, p. 308; MELO, Hildete Pereira de. THOMÉ,
Débora. Mulheres e poder: histórias, ideias e indicadores, p. 112.

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que isso acarreta, com impactos diretos na participação feminina em todas as esferas da
vida pública.

4. A REGULAÇÃO JURÍDICA DO CUIDADO NA FAMÍLIA : A GUARDA SOB A PERSPECTIVA DE


GÊNERO

O cuidado tem sido objeto de atenção no direito brasileiro, sob diversas


acepções.25 Nestas linhas, será aprofundado na perspectiva da responsabilidade dos
genitores pelos filhos menores, cujo melhor interesse e proteção integral necessariamente
envolvem a dimensão do cuidado.
A história da guarda bem ilustra a mudança na regulação do papel da mulher no
direito de família brasileiro, em correspondência às conquistas feministas e às práticas
sociais de cada tempo.
Em rápidas linhas, a guarda, atributo do poder familiar, pode ser compreendida
como um direito-dever dos pais em relação a seus filhos, voltado ao atendimento de
carências com alimentação, vestuário, medicação, higiene, assistência médica,
odontológica, educação e recreação.26 Inclui a custódia e a proteção que é devida aos
menores, nos aspectos materiais e morais, visando seu desenvolvimento psíquico.27
Na redação original da primeira codificação da república brasileira, em caso de
dissolução da sociedade conjugal, o cônjuge inocente ficava com a guarda da criança. Em
caso do reconhecimento da culpa recíproca ou de anulação do casamento, a mulher ficava
com a guarda das filhas, até a maioridade, e dos filhos, até os seis anos (CC/1916, art.
326, caput e §§ 1º e 2º). O tratamento diferente a depender do sexo da criança e a
atribuição da mãe limitada à criação da filha revelam que não se creditava à mulher
capacidade para cuidar da formação do homem, confiando-se ao pai a guarda do filho do
gênero masculino assim que finda a primeira infância. Em 1962, a Lei 4.121 (Estatuto da
Mulher Casada) aboliu a relevância do sexo e da idade como critérios para a fixação da

25
Para se aprofundar sobre as possibilidades de enfoque do cuidado no direito, conferir: PEREIRA, Tania
da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de (coords.). Cuidado e responsabilidade; PEREIRA, Tania da Silva;
OLIVEIRA, Guilherme de (coords.). Cuidado e vulnerabilidade; PEREIRA, Tania da Silva; OLIVEIRA,
Guilherme de (coords.). Cuidado como valor jurídico.
26
FUJITA, Jorge Shiguemitsu. Filiação, pp. 86-87.
27
MADALENO, Rafael; MADALENO, Rolf. Guarda Compartilhada: física e jurídica, p. 55.

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DIREITO CIVIL

guarda, mas manteve a inocência, estabelecendo que, em caso de culpa de ambos pelo
fim do casamento, a guarda dos filhos ficaria com a mãe, regulação essa que foi mantida
na Lei do Divórcio, de 1977, e perdurou no direito de família até a entrada em vigor do
Código Civil de 2002, em janeiro de 2003. De acordo com o tratamento legal da guarda,
até 2002, a definição de quem ficaria com os filhos dependia de investigação da
responsabilidade de cada cônjuge pelo fim do casamento, sendo que, na hipótese de culpa
recíproca, a guarda ficaria para a mãe. Na avaliação de Grisard, a norma partia “de uma
presunção que tem fundamento psicofisiológico, ao estimar que a mãe se encontra em
posição mais adequada para criar e educar os filhos”,28 refletindo, no direito, o estereótipo
de que a mulher seria “naturalmente” mais apta para cuidar dos filhos.
A partir da Constituição de 1.988, com o reconhecimento da união estável como
entidade familiar, a previsão da família monoparental e a afirmação da igualdade entre o
homem e a mulher na sociedade conjugal (CF, art. 226, §§ 3º, 4º e 5º), a doutrina identifica
a passagem da estrutura hierárquica e vertical da família para uma forma horizontal, plural
e democrática,29 com consequências relacionadas à posição ocupada pela mulher, que
deixa de estar legalmente submetida à chefia do marido na sociedade conjugal, como
previsto no CC/1916, art. 233, e passa a gozar dos mesmos direitos e deveres que o
homem na comunhão familiar (CC/2002, art. 1.511). Tal mudança refletiu-se na
transformação do pátrio poder, de titularidade do homem (CC/1916 art. 380), em poder
familiar, atribuído tanto ao pai quanto à mãe (CC/2002, art. 1.631), e impactou igualmente
a legislação infraconstitucional sobre a guarda.
Já na redação original do Código Civil em vigor não constavam quaisquer
referências à inocência ou ao sexo do cônjuge como critérios para a definição da pessoa
guardiã,30 em harmonia com o princípio da dignidade humana e com os paradigmas
introduzidos pela Constituição de 1988. Sob esse aspecto, o reconhecimento da criança e
do adolescente como sujeitos de direito merecedores de proteção integral e a afirmação
da igualdade entre o homem e a mulher na família impactaram diretamente na regulação
da guarda, eliminando o critério da culpa e a preferência pela mulher que orientaram o

28
GRISARD FILHO, Waldyr. Guarda Compartilhada: um novo modelo de responsabilidade parental, p.
130.
29
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família, pp. 23-27.
30
Redação original: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2002/lei-10406-10-janeiro-2002-432893-
publicacaooriginal-1-pl.html>, arts. 1.578 e 1.583.

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instituto no direito anterior. A consideração da responsabilidade pelo fim do casamento


deixou de ser relevante e suprimiu-se a referência à mãe, passando o melhor interesse da
criança e do adolescente a nortear as decisões atributivas da guarda, em proteção aos
filhos como pessoas em desenvolvimentos, não confundíveis com objetos ou prêmios
concedidos ao inocente.31
A previsão legal de igualdade entre homens e mulheres no exercício do poder
familiar, estudos psicológicos sobre a importância da figura paterna para o
desenvolvimento psíquico dos filhos e as mudanças sociais no papel das mulheres,
outrossim, são outros fatores propulsores da eliminação da atribuição preferencial da
guarda à mãe, que vigorava no texto legal desde a primeira codificação brasileira. Não
obstante, na prática, a guarda continuou a ser fixada às mulheres, inclusive por
considerações no sentido de que a mulher possuiria mais e melhores habilidades para os
cuidados básicos e práticas domésticas.32 Em pesquisa do IBGE sobre dados relativos ao
ano de 2002, apurou-se que a guarda dos filhos ficou para a mãe em 91,8% das separações
e em 89,7% dos divórcios.33 Em 2.007, alguns anos após a vigência do Código Civil, novo
levantamento do mesmo órgão constatou que a mãe ainda ficava com a guarda dos filhos
em 89,1% dos processos,34 demonstrando a força do estereótipo e a distância entre a
mudança legislativa e as concepções socioculturais compartilhadas em determinado
tempo e espaço, fiadoras da pretensa vocação da mulher para a vida doméstica e para o
cuidado das crianças.
Em 2008, a Lei 11.698 alterou o Código Civil na parte relacionada à guarda e
modificou a redação do art. 1.583 ao introduzir a guarda compartilhada no sistema
jurídico nacional, compreendendo-a como a “responsabilização conjunta e o exercício de
direitos e deveres do pai e da mãe que não vivam sob o mesmo teto, concernentes ao
poder familiar dos filhos comuns” (§ 1º). A guarda, até então unilateral e da mãe, na
grande parte dos casos, passou a ser passível de compartilhamento entre os sexos, em
revalorização à paternidade e em atenção ao desenvolvimento socioafetivo equilibrado

31
LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias, p. 192; MADALENO, Rafael. MADALENO, Rolf. Guarda
compartilhada: física e jurídica, p. 68.
32
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Guarda compartilhada: novo regime da guarda de crianças e
adolescentes à luz das leis nº 11.698/2008 e 13.058/2014, p. 172.
33
Idem, pp. 171-172.
34
LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias, p. 192; MADALENO, Rafael. MADALENO, Rolf. Guarda
compartilhada: física e jurídica, p. 194.

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das crianças e adolescentes.35 Em dezembro de 2.014, por força de nova mudança


legislativa, a guarda compartilhada foi enfatizada como modelo prioritário, sendo
determinada uma divisão equilibrada do tempo de convívio com o pai e com a mãe, tendo
em vista o melhor interesse dos filhos (CC, art. 1.583, § 2º, e art. 1.584, § 2º).
A corresponsabilidade entre o homem e a mulher com o cuidado da prole
também está prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente. Em 2016, a Lei 13.257
inseriu um parágrafo único no art. 22 do Estatuto, expressamente determinando que a mãe
e o pai têm direitos iguais e deveres e responsabilidades compartilhados no cuidado e na
educação das crianças.
A breve retrospectiva sobre a regulação da guarda no direito civil autoriza
identificar um ponto positivo em direção à desconstrução da crença na mulher como
cuidadora primária. Partindo de uma disposição legal impositiva da guarda unilateral à
mãe, a legislação passou a determinar a guarda compartilhada, preferencialmente, a qual,
em tese, tende a diminuir a sobrecarga imposta à mulher com as tarefas inerentes ao
espaço doméstico e as funções de cuidado das crianças. O compartilhamento da guarda
estabelecido na lei, como regra, outrossim, considera a habilidade do homem para se
responsabilizar pelas crianças, impondo-lhe o custo de tempo e atenção que essa
responsabilidade traz, sinalizando em direção a uma maior igualdade entre os direitos e
deveres do homem e da mulher na família, ao reconhecer o protagonismo dos genitores
de ambos os sexos pela criação dos filhos.
Nesse sentido, a guarda compartilhada está em sintonia com o afrouxamento do
estereótipo de gênero que atribui à mulher o papel de cuidadora primária. A expectativa
é de que, desonerada de parte das responsabilidades domésticas e familiares, a mulher
passe a ter mais tempo e disponibilidade para si, seus projetos e realizações, podendo
desenvolver sua personalidade para além da casa e da maternidade. Sob esse aspecto, a
alteração do Código Civil, no que toca à guarda, pode ser interpretada como
cumprimento, pelo Estado Brasileiro, das obrigações impostas pela CEDAW e pela
Convenção de Belém do Pará, de tomar medidas legislativas apropriadas para assegurar
o pleno desenvolvimento e progresso das mulheres, em igualdade de condições com os

35
GRISARD FILHO, Waldyr. Guarda compartilhada: um novo modelo de responsabilidade parental, p.
138.

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homens, por meio do combate a estereótipos de gênero relacionados à divisão do trabalho


doméstico e à responsabilidade pela criação dos filhos, como estratégia de enfrentamento
à violência e à discriminação contra a mulher.

5. GUARDA E AS MEDIDAS PROTETIVAS PREVISTAS NOS ARTS. 22, IV, E 23, V, DA LEI
MARIA DA PENHA

Pincelado o quadro geral sobre como a naturalização do cuidado pelas mulheres


tem sido objeto de atenção das feministas e sobre a recente alteração no tratamento da
guarda no direito brasileiro, volta-se os olhos às medidas protetivas relativas à suspensão
de visitas e à transferência de escola como meios de proteção à mulher.
Os artigos escolhidos têm a seguinte redação:
“Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a
mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao
agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas
de urgência, entre outras:
(...)
IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida
a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar; (...)
Art. 23. Poderá o juiz, quando necessário, sem prejuízo de outras medidas:
(...)
V - determinar a matrícula dos dependentes da ofendida em
instituição de educação básica mais próxima do seu domicílio, ou a
transferência deles para essa instituição, independentemente da
existência de vaga”. (Os grifos não constam no original.)
Nada problemático chama a atenção numa primeira leitura. Frente à uma
situação de violência, razoável afastar o agressor como forma de preservar a integridade
da vítima.
Ocorre que as determinações de distanciamento relacionadas à suspensão de
visitas aos filhos e à transferência para escola próxima ao domicílio da mãe remetem a
modelo feminino estereotipado, a merecer uma análise mais detida. Com isso, objetiva-
se tornar visíveis estereótipos presentes nas normas abstratas, como estratégia de

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conscientização quanto à complexidade da relação entre direito e gênero. Passa-se, então,


ao escrutínio das referidas disposições legais por uma perspectiva de gênero crítica.
Tanto a restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores quanto a
transferência ou matrícula em escola próxima do domicílio da mulher partem da premissa
de que o dia a dia dos filhos necessariamente é responsabilidade da mãe, tanto assim que,
em caso de necessidade de distanciamento do pai, medidas serão adotadas para garantir a
exclusividade do cuidado materno como forma de proteção à mulher.36
Tais previsões pressupõem um modelo de guarda ultrapassado, próprio de um
direito de família hierarquizado, no qual o cuidado dos filhos era atribuído
preferencialmente à mãe, enquanto a chefia da sociedade conjugal cabia ao marido,
traduzindo uma divisão de papeis de gênero há muito questionada. De fato, a noção de
suspensão de visitas, utilizada pela LMP, remete à guarda unilateral, àquela atribuída com
exclusividade a um dos genitores e que situa o outro na posição de mero visitante,
modalidade de guarda essa que deixou de ser a regra diante do paradigma de igualdade
entre o homem e a mulher introduzido pela Constituição de 1988.
Literalmente, o legislador refere a “visitas” ao tratar da guarda unilateral (CC,
art. 1.589), utilizando a expressão “regime de convivência” ao regulamentar a guarda
compartilhada, que pressupõe uma divisão de tempo equilibrada e o envolvimento
simultâneo dos genitores com a rotina das crianças (CC, art. 1.584, § 3º). Como explicita
a doutrina, o direito de visitas, típico da guarda exclusiva, gera “pais de fim de semana”
e “mães de feriado”, privando os filhos da presença cotidiana de um dos genitores, 37
traduzindo um tipo de contato que dificulta o vínculo afetivo e a intimidade tão
importantes para o desenvolvimento psíquico infanto-juvenil. Além disso, a guarda
unilateral onera desproporcionalmente a mulher, detentora da guarda na maior parte dos
casos, sobrecarregando-a com as exigências do dever de cuidar dos filhos. Como aponta
Dias:
“É importante lançar um olhar mais detido sobre a condição da mulher
para aferir se realmente há igualdade ou se esta é apenas formal.
Quando ela fica com a guarda dos filhos e compromete suas atividades

36
Quanto às ideias de que um homem violento dificilmente será um bom pai e de que conviver com o
agressor não será saudável para os filhos, remete-se à leitura do tópico seguinte.
37
LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias, p. 199.

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profissionais e, em certa medida, também a vida pessoal, pode estar em


situação de vulnerabilidade em razão de uma peculiar situação que
vivencia”.38
Em razão das violações de direitos que pode representar, a guarda unilateral
deixou de ser a regra no direito de família, em proteção às crianças e aos adolescentes e
em prol da igualdade material entre o homem e a mulher. Ocorre que a LMP, em
descompasso com a preferência legislativa pela guarda compartilhada (CC, art. 1.584, §
2º), estabeleceu a restrição ou suspensão de visitas e a transferência para escola próxima
ao domicílio da mãe como medidas de proteção à mulher. Com isso, e esse é o ponto que
releva destacar, reeditou no direito brasileiro a família da tradição, calcada no estereótipo
de que a mulher é a principal responsável pelo cuidado dos filhos e pela vida doméstica
familiar.
Como salientado, a concepção de “visita”, no direito de família, está atrelada ao
modelo unilateral de guarda, cujas desvantagens para as crianças e para a mulher já foram
reconhecidas pelo legislador civil quando do estabelecimento da guarda compartilhada
como regra. Ao incluir a suspensão ou restrição de visitas aos filhos e determinar a
transferência para escola próxima ao seu domicílio, entre as medidas protetivas à mulher,
o legislador assume a responsabilidade da mulher pelos cuidados diários das crianças
como um dado natural e como uma realidade inquestionável, presumindo a guarda
unilateral inclusive em contradição com a regulação do direito de família sobre o tema.
Vale insistir que a juridicidade da regra da guarda materna, introduzida pela Lei do
Divórcio, inseria-se em um modelo de família hierarquizado, em que o homem era o chefe
e à mulher incumbia o papel de colaboradora com o marido, que vigorou no Brasil até a
Constituição de 1988. Com a promulgação do Código Civil de 2002, a preferência pela
guarda feminina foi excluída da legislação, de modo que a nova disciplina da guarda não
traz qualquer referência a sexo.
Nesse quadro, autorizado apontar que a inspiração do legislador, ao incluir as
medidas protetivas de suspensão de visitas e de transferência de escola para local próximo
ao domicílio da mulher, não foi o sistema jurídico, mas sim o estereótipo de gênero que
associa a mulher, abstratamente considerada, ao cuidado dos filhos. Note-se que,

38
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias, p. 151.

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enquanto a previsão legal de suspensão de visitas consta na redação original da LMP e,


portanto, ingressou no sistema jurídico em 2006, a medida protetiva de matrícula ou
transferência dos filhos para escola próxima ao domicílio da mulher foi introduzida no
ordenamento em outubro de 2019, pela Lei 13.882, a demonstrar a força e a persistência
do estereótipo de gênero que generaliza o cuidado dos filhos pelas mulheres como fato
natural.
Não se postula que a reprodução de estereótipos de gênero na LMP ocorra
propositadamente ou de modo consciente, até porque a lei está a tratar de contextos de
violência contra a mulher, em que há uma vulnerabilidade pressuposta e um imperativo
de firme e pronta intervenção estatal. Daí porque não se nega que as medidas protetivas
sob análise possam ser vantajosas e úteis para a eficaz proteção da mulher, em casos
concretos. Porém, sem embargo do pragmatismo utilitário, mostra-se relevante refletir
sobre a presença de normas de gênero nas previsões legais que presumem o cuidado pela
mulher como algo natural, e não cultural, cristalizando estereótipos na norma abstrata.
Nessa linha, constata-se que o dever-ser estipulado na lei baseia-se em uma
divisão de papeis de gênero rígida, extremamente custosa à mulher. Ao prever a
suspensão e restrição de visitas e ao determinar a transferência de escola para local
próximo ao domicílio da mãe, o legislador toma por certo que a responsabilidade pelos
filhos é e continuará sendo preferencialmente da mulher, contrariamente à igualdade entre
direitos e deveres dos genitores em relação aos filhos. Mais do que isso, assim o
estabelece como uma medida protetiva da mulher, em desconsideração a toda literatura
que aponta para a estreita relação que existe entre a sobrecarga imposta pela naturalização
do cuidado e a desvantagem da mulher nos campos político, econômico e social.
Além de calcado na naturalização do cuidado, o modelo feminino predisposto
nas medidas protetivas em foco carrega, também, acentuada carga moral, estabelecendo
que a mulher sob o amparo da lei corresponde à mãe heroína e abnegada, que abre mão
da colaboração do outro e assume para si o trabalho envolvido no cuidado, disposta a
dedicar seu tempo aos filhos, qualquer que seja a renúncia pessoal que isso possa
significar. Parte de uma mulher que, mesmo em situação de violência, reconhece-se como
a pessoa preferencialmente responsável pelas tarefas do lar e pela criação das crianças e
aceita as consequências da exclusão do parceiro das demandas familiares para cuidar de
tudo sozinha, em nome de sua segurança. Nesse cenário, a mulher utilizada como

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paradigma pelo legislador reflete o estereótipo que atribui a dedicação à casa, a repetição
inerente à rotina do lar e o cuidado primário como papeis femininos, subentendendo que
a mulher estará juridicamente protegida desde que corresponda a tais expectativas.
Renova-se na legislação a crença de que a mulher é a mais apta para cuidar dos filhos, em
razão do sexo, onerando-a com responsabilidades que intensificam as demandas
domésticas e contribuem para mantê-la encerrada no espaço privado, com potenciais
prejuízos para aquelas que se objetiva proteger: as mulheres.

6. A SITUAÇÃO DOS FILHOS

Não menos importante, há que se considerar a situação dos filhos, igualmente


invisibilizada pela força normativa envolvida no estereótipo da mulher-mãe-cuidadora.
Nas disposições em análise, a suspensão ou restrição de visitas aos filhos e a
transferência de escola aparecem como formas de proteção à mulher. Os filhos são
tratados como acessórios que seguem o principal, como partes interdependentes da mãe,
sem que se perquira sobre seu melhor interesse em questões fundamentais como o
rompimento do convívio paterno e a fruição do direito à educação, não sendo
desarrazoado supor consequências negativas na hipótese de transferência de escola,
independentemente de vaga, como previsto no art. 23 da LMP.
É verdade que a situação de violência contra a mulher pode, sim, levar ao
afastamento do agressor em relação aos filhos, justificando a suspensão de visitas e,
inclusive, do poder familiar, nos moldes previstos na lei civil. Nesse caso, contudo, é a
relação entre o genitor e a prole que deve ser objeto de avaliação, dada a independência
entre a relação conjugal ou de companheirismo, de um lado, e a relação parental, de outro.
De fato, sendo o caso, tais providências devem ser pensadas à luz dos direitos
fundamentais e da proteção integral assegurados às crianças e adolescentes pelo
ordenamento brasileiro, sob pena de negar aos filhos a dignidade de serem tratados como
fins em si mesmos ao servirem-se deles como meios ou instrumentos para proteção de
terceiros. É dizer: o afastamento do contato entre pais e filhos, se tiver de ser determinado,
deve objetivar a tutela dos direitos dos filhos, de crescerem em um ambiente familiar
saudável, e não servir de estratégia de proteção à mulher.

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A prévia oitiva da equipe multidisciplinar ou similar, prevista em lei, pode


amenizar os danos, mas não basta para assegurar a visibilidade das crianças como sujeitos
de direitos, uma vez que a notória escassez de psicólogos e assistentes sociais nos quadros
do Poder Judiciário pode tornar letra morta o laudo psicossocial antecipado, em grande
parte dos casos. Tal previsão tampouco suaviza o fato de a suspensão ou restrição de
visitas bem como a transferência ou matrícula de escola estarem inseridas como medidas
protetivas em benefício da mulher, em franca desconsideração aos direitos próprios dos
filhos, que podem acabar expostos à situação de risco agravado pela potencial perda da
capacidade de proteção da prole da mulher inserida no ciclo da violência, como apontam
Reichenheim, Hasselmann e Moraes, em estudo específico sobre as consequências da
violência familiar na saúde de crianças e adolescentes.39
Nesse cenário, as ideias de que os interesses dos filhos necessariamente
coincidem com os da mãe e de que permanecer com ela será o melhor para as crianças e
adolescentes estão mais relacionadas à força normativa dos estereótipos de gênero
calcados nos ideais de mulher-mãe, de abnegação e de perfeição do cuidado maternal,
inspirados na tradição judaico cristã e associados à ideologia do século XIX, do que à real
consideração da imperativa tutela dos direitos envolvidos. Os filhos acabam
desconstituídos da qualidade de sujeitos e tratados como partes integrantes de um todo
maior, que engloba também a casa e a vida doméstica, negando-se-lhes a dignidade
inerente à condição de pessoa humana.

7. ESTEREÓTIPOS E VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NA FAMÍLIA

Na lição de Cook, já referida, os estereótipos sobre papeis sociais incluem uma


noção normativa, prescrevendo como homens e mulheres devem agir. Enquanto no
direito a repreensão pelo descumprimento da norma é estatal, no caso do gênero é a
própria sociedade quem penaliza a inobservância da regra. No que toca à mulher, essa
sanção pode vir na forma de violência, muitas vezes praticada no âmbito doméstico e

39
REICHENHEIM, Michael E; HASSELMANN, Maria Helena; MORAES, Claudia Leite. Consequências
da violência familiar na saúde da criança e do adolescente: contribuição para a elaboração de propostas
de ação.

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familiar, vislumbrando-se nítida aproximação entre estereótipos e violência contra a


mulher, nos moldes desenvolvidos a seguir.
Scott, ao definir gênero como “um elemento constitutivo de relações sociais
baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos” e como “uma forma primeira de
significar as relações de poder”,40 igualmente identifica a importância de conceitos
normativos, sejam eles religiosos, educativos, científicos, políticos ou jurídicos para a
conformação do binarismo que distingue o masculino do feminino, deixando clara a
colaboração do direito para a conformação do gênero. Para o pós-feminismo, não só os
estereótipos, mas a própria identidade “mulher” carrega um aspecto normativo, como
assinalam Oliveira e Noronha ao aprofundar a teoria de Butler.41
Do ponto de vista do ordenamento, isso significa reconhecer que o legislador, ao
referir à mulher, não está apenas apontando para um sexo, um gênero ou uma identidade
pré-existente e neutra, mas também prescrevendo como esse sexo, esse gênero e essa
identidade devem ser; não está apenas retratando uma realidade objetiva, anteriormente
dada, mas também contribuindo para construir essa realidade ao antever comportamentos
e ditar papeis sociais para a “mulher”. Tal categoria, por sua vez, é abstratamente
entendida como estática e rígida, como se fosse possível reduzir todas as mulheres a uma
experiência única, em oposição aos homens.
Por força desse fenômeno, a presença implícita do estereótipo do cuidado na
LMP não só normaliza a crença de que tal função é preferencialmente feminina, como
também contribui para a manutenção de um ideal de mulher como pessoa naturalmente
cuidadora, reforçando-se, pela via do direito, um modelo atrelado a papeis restritos e pré-
definidos, na família e na sociedade.
Como sintetizado por Rubin: “nós não somos oprimidas apenas por sermos
mulheres, mas também por termos de ser mulheres”,42 reconhecendo-se uma pressão não
apenas sobre o que somos, mas também sobre como devemos agir para corresponder às
expectativas e às regras de gênero que moldam o dever-ser do sujeito “mulher”.

40
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica, p. 21.
41
OLIVEIRA, Adriana Vidal de. NORONHA, Joanna Vieira. Afinal, o que é “mulher”? E quem foi que
disse?, p. 752.
42
RUBIN, Gayle. The traffic in women: notes on the political economy of sex, p. 204: “we are not only
oppressed by having to be as women, we are oppressed by having to be women” (Tradução livre).

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Com isso, dificultam-se outras possibilidades de escolha, à vista das cobranças


para corresponder às expectativas de cuidado impostas pelos estereótipos de gênero, com
consequências inclusive do ponto de vista da violência. Como destaca Marques ao tratar
da psicodinâmica entre o homem abusador e a mulher vitimada: “Em comum, ambos
compartilham uma visão estereotipada de gênero - onde os róis e papeis são extremamente
bem definidos”.43 A realidade de tal assertiva pôde ser constatada por esta autora à frente
da Vara Norte de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de São Paulo, Capital,
onde, não raras vezes, as agressões ocorreram por “falhas” no desempenho do trabalho
doméstico, como a queima da comida, falta de banho nos filhos e atraso no cumprimento
das tarefas da casa, por exemplo.
Ao supor a disponibilidade absoluta para a prole da mulher em situação de
violência, o legislador contribui para a naturalização do cuidado pelas mulheres e estimula
a crença de que se trata de aptidão inata e não de comportamento aprendido, em
contradição às conquistas feministas dos últimos séculos. Daí a importância de dar
visibilidade aos estereótipos prejudiciais ocultos na lei, de modo a combater a violência
e ampliar a liberdade e as possibilidades de escolha das mulheres.

8. CONCLUSÕES

A partir do exposto, surgem pistas que apontam para limitações do sistema


jurídico como instrumento de emancipação feminina, visto que o próprio direito pode
servir de reforço a papeis de gênero estereotipados e prejudiciais às mulheres. Visualizar
o direito como tecnologia de gênero pressupõe admitir que deixe “de ser definido como
o sistema que pode impor a neutralidade de gênero para ser redefinido como um dos
sistemas (discursos) produtores não apenas de diferenças de gênero, mas também de
formas bastante específicas de diferenças polarizadas”,44 não raro em prejuízo das
mulheres.
Forte na lição de Diniz e Gumieri, pode-se identificar certa ambiguidade no
tratamento de questões de gênero pela LMP, que consolida conquistas civilizatórias ao

43
MARQUES, Daniela de Freitas. Violência contra a mulher: sedução e morte nas relações afetivas, p.
287.
44
SMART, Carol. A mulher do discurso jurídico, p. 1248.

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mesmo tempo em que providencia atualizações silenciosas da moral patriarcal, pela


centralidade da família,45 como parece ser o caso das medidas protetivas que naturalizam
o cuidado e reforçam o estereótipo da mulher-mãe.
Lançar luz sobre essa função menos nobre não pretende sugerir a irrelevância do
sistema jurídico como instrumento de proteção dos direitos das mulheres, mas sim
reconhecer que, na qualidade de produção humana, o direito sofre influxos de normas de
gênero tanto quanto outras produções socioculturais.
Refletir sobre o irrealismo de imaginar o direito livre da influência de
estereótipos torna possível uma busca por emancipação sem utopia, nos moldes
preconizados por Allen,46 voltada à transformação de um estado fixo de dominação em
um terreno móvel de relações hierárquicas, caracterizado pela flexibilidade de posições
de dominância, em vez de procurar formas de libertação absoluta, como se fosse possível
cogitar a existência de relações humanas isentas de poder.
No caso da luta feminista, uma alternativa para tanto se abre pela possibilidade
de reconfiguração e renegociação dos papeis sociais na família, relacionados à
responsabilidade pelas tarefas domésticas e pelos cuidados dos filhos, como previsto na
guarda compartilhada, com vistas a tornar possível a ampliação de práticas de liberdade
em benefício das mulheres.
Por meio da explicitação dos estereótipos de gênero nas medidas protetivas,
aponta-se para a complexidade da relação entre direito e gênero, esperando que o debate
seja cada vez mais aprofundado em direção ao cumprimento das normas nacionais e
internacionais que estabelecem o combate a estereótipos como estratégia para fazer frente
à discriminação e à violência contra a mulher.

REFERÊNCIAS

ALLEN, Amy. Emancipação sem utopia: Sujeição, modernidade e as


exigências normativas da teoria crítica feminista. São Paulo: Novos Estudos, 2015.

45
DINIZ, Debora. GUMIERI, Sinara. Violência de gênero no Brasil: ambiguidades da política criminal,
p. 205.
46
ALLEN, Amy. Emancipação sem utopia: sujeição, modernidade e as exigências normativas da teoria
crítica feminista.

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