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TOMO 10
DIREITO CIVIL
COORDENAÇÃO DO TOMO 10
Rogério Donnini
Adriano Ferriani
Erik Gramstrup
Editora PUCSP
São Paulo
2022
ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP
DIREITO CIVIL
DIRETOR
Vidal Serrano Nunes Júnior
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
DIRETORA ADJUNTA
FACULDADE DE DIREITO
Julcira Maria de Mello
Vianna Lisboa
CONSELHO EDITORIAL
1.Direito - Enciclopédia. I. Campilongo, Celso Fernandes. II. Gonzaga, Alvaro. III. Freire,
André Luiz. IV. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
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ENCICLOPÉDIA JURÍDICA DA PUCSP
DIREITO CIVIL
INTRODUÇÃO
SUMÁRIO
Introdução ......................................................................................................................... 2
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DIREITO CIVIL
5. Guarda e as medidas protetivas previstas nos arts. 22, IV, e 23, V, da Lei Maria da
Penha ..................................................................................................................... 17
8. Conclusões ............................................................................................................ 24
Referências ..................................................................................................................... 25
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sustentável para o milênio, estabelecidos na agenda da ONU para 2030, como necessária
para “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas” (Objetivo
5). Entre os desdobramentos do referido objetivo, incluiu-se a promoção da
responsabilidade compartilhada dentro do lar e da família (item 5.4), visando garantir a
igualdade de oportunidades de participação plena e efetiva das mulheres, em todos os
níveis de tomada de decisão (item 5.5).
As teorias feministas vêm há muito aprofundando a reflexão sobre a presença da
mulher no espaço doméstico, chamando a atenção tanto para a artificialidade da ideia de
que o cuidado dos filhos é naturalmente da mãe, corolário da função reprodutiva, quanto
para a desvalorização dessa função e para as respectivas consequências que a ocupação
com o cuidado traz do ponto de vista da disponibilidade da mulher para além da vida
privada. Defende-se que há uma relação entre a má divisão das tarefas domésticas e o
desempenho feminino nas esferas públicas, seja na política, seja no mundo corporativo,
por exemplo, na consideração de que o tempo é uno, de modo que aquele despendido com
uma atividade certamente impactará na outra. Bem por isso, o direito internacional dos
direitos humanos, encampando lições feministas, associou a proteção à mulher contra a
desigualdade e a discriminação a uma mais equânime divisão das tarefas no lar, aí
incluído o cuidado com os filhos.
A partir do quadro normativo global, que traz o combate a estereótipos de gênero
como estratégia para enfrentar a violência e a discriminação contra a mulher, relevante
refletir sobre as medidas protetivas disciplinadas nos arts. 22, IV e 23, V, da LMP,
submetendo-as à análise do ponto de vista dos estereótipos de gênero.
As regras escolhidas preveem a restrição ou suspensão de visitas aos filhos e a
matrícula ou transferência dos dependentes para a instituição de educação básica mais
próxima do domicílio da ofendida, como medidas de proteção à mulher em situação de
violência.
A ideia não é criticar tais previsões nem debater dados empíricos sobre a
realidade do protagonismo das mulheres na educação dos filhos, mas sim aprofundar a
relação entre direito e gênero sob uma perspectiva crítica, propondo reflexão sobre os
limites do direito como instrumento emancipatório em prol das mulheres.
Entendido o direito como um produto cultural tanto quanto as demais produções
humanas de uma determinada época e local, não é desarrazoado supor que sofra os
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2. O ESTEREÓTIPO DA MULHER-MÃE-CUIDADORA
1
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe, p. 231.
2
NICHOLSON, Linda. Interpretando o gênero.
3
Oliveira. Noronha. Afinal, o que é “mulher”? E quem foi que disse?, p. 753.
4
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo, pp. 101-102.
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de relatos colhidos por médicos que atenderam mulheres e da literatura francesa, Beauvoir
conclui: “[t]odos esses exemplos bastam para mostrar que não existe ‘instinto’ materno:
a palavra não se aplica em nenhum caso à espécie humana. A atitude da mãe é definida
pelo conjunto de sua situação e pela maneira por que a assume”, 5 atestando a relevância
do aspecto sociocultural para a atitude de cuidado da mãe em relação aos filhos. A análise
da experiência concreta de mulheres permitiu à autora formular a ideia de que o gestar,
inerente à função reprodutiva feminina, essa sim biológica, não implica necessariamente
a revelação de uma boa mãe, dissociando a crença de que a mulher, por natureza, teria
pendor para o cuidado das crianças, por nascença e em razão de seu sexo. Ao contrário,
vários fatores interferem para o bom ou mau desempenho da função materna. Segundo
Beauvoir, “[a] relação da mãe com os filhos define-se no seio da forma global que é a sua
vida; depende de suas relações com o marido, com o passado, com suas ocupações e
consigo mesma”. 6
Para Beauvoir, a atribuição da tarefa de cuidar dos filhos à mulher resulta de uma
forma específica de divisão do trabalho entre os sexos, com consequências prejudiciais
às mulheres desde os tempos antigos. Enquanto ao homo faber incumbiam funções e atos
criativos, que transcendiam sua condição animal, construindo instrumentos e inventando
técnicas para pescar e caçar, o trabalho doméstico que cabia à mulher, por ser o único
conciliável com os encargos da maternidade, era mecânico e repetitivo: “reproduzem-se
dia após dia sob uma forma idêntica que se perpetua quase sem modificação através dos
séculos: não produzem nada de novo”.7 Segundo a autora, tal modo de dividir o trabalho
contribuiu para a inferioridade das mulheres, que se limitavam a repetir a vida, enquanto
os homens descobriam razões de viver. Diante da restrição de horizontes envolvida na
vida doméstica e no cuidado dos filhos, como se houvesse “uma lei inscrita no céu ou nas
entranhas da terra (que) determina que a mãe e o filho se pertençam exclusivamente um
ao outro”, Beauvoir avalia que a manutenção dessa divisão de trabalho resulta em “uma
dupla e nefasta opressão”.8 Na perspectiva da autora, a divisão de trabalho estabelecida
já entre os povos primitivos tolheu a criatividade da mulher e encerrou-a na repetição
5
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo, p. 679.
6
Idem, p. 693.
7
Idem, p. 102.
8
Idem, p. 697.
6
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cotidiana das atividades do lar. Do ponto de vista das generalizações que essa organização
social implica, visualiza-se uma mulher não apenas cuidadora e moldada para o
atendimento das necessidades dos outros, mas também esvaziada de sonhos e desejos,
sem espaço mental e tempo real para dedicação a projetos pessoais, a desnudar
consequências negativas associadas ao estereótipo da mulher cuidadora.
As lições de Beauvoir permitem questionar a ideia de que toda mulher sempre
será uma boa mãe, por força da natureza. Defende a autora que circunstâncias pessoais,
sociais e familiares são essenciais para a qualidade da relação entre a mãe e a prole,
desmistificando o ideal universal de mulher, segundo o qual haveria a propensão ao
cuidado como característica comum e necessária, inerente à função reprodutiva, imutável
e estabilizada, em todas as pessoas do sexo feminino. Como aponta Nicholson, esse tipo
de questionamento, controvertendo a naturalização de papeis sociais, permitiu avançar
em direção a mudanças até então dificultadas pela assunção implícita de fincar no
conceito de sexo, estritamente ligado à biologia, a diferença entre homens e mulheres.9
A partir dessas lições, assume-se, nestas linhas, que a crença na vocação da
mulher para o cuidado dos filhos resulta mais de uma construção social do que de uma
aptidão natural, sendo oportuno refletir sobre a associação que existe entre a mulher e o
cuidado, cristalizada em estereótipo de gênero tão intenso que muitas vezes leva à
confusão entre “ser mulher” e “cuidar”.
Cook, na obra Estereotipos de Género, define o estereótipo como uma visão
generalizada ou uma preconcepção sobre os atributos ou características dos membros de
um grupo ou sobre os papeis que tais membros devam cumprir.10 De um lado, o
estereótipo facilita a inteligibilidade social ao dispensar uma investigação sobre cada
indivíduo e ao permitir o pronto estabelecimento de conexões entre pares. De outro,
diminui o leque de opções e restringe a liberdade de escolha, ao ditar comportamentos
para todos os que pertencem ao grupo, indistinta e independentemente dos projetos
pessoais de cada um. Cook reconhece que os estereótipos afetam homens e mulheres, mas
aponta que têm um efeito mais flagrante sobre elas, atribuindo-lhes papeis servis,
desvalorizando seus atributos e características, condicionando-as a assumir papel
9
NICHOLSON, Linda. Interpretando o gênero.
10
COOK, Rebecca J; CUSACK. Simone. Estereotipos de Género. perspectivas legales e transnacionales,
p. 11.
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11
COOK, Rebecca J; CUSACK. Simone. Estereotipos de Género. perspectivas legales e transnacionales,
pp. 1-2.
12
Idem, p. 15.
13
COOK, Rebecca J. CUSACK. Simone. Estereotipos de género. perspectivas legales e transnacionales,
p. 32.
14
Idem, p. 33.
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e pai dos filhos, o amor romântico reforça os estereótipos de mulher como procriadora,
esposa, amante fiel e mãe.15 Na síntese de MacKinnon, a versão contemporânea do
estereótipo feminino expõe a mulher como alguém “dócil, suave, passiva, que se ocupa
dos demais, vulnerável, fraca, narcisista, infantil, incompetente, masoquista e doméstica,
feita para o cuidado dos filhos, da casa e do marido”.16
Tanto teorias feministas que fundam a desigualdade social entre os sexos na
divisão do trabalho quanto aquelas que focam em outros aspectos apontam o cuidado
como uma imposição cultural à mulher. Quer por força do trabalho reprodutivo quer em
decorrência da organização familiar romântica, liberal e patriarcal, o estereótipo da
mulher-mãe-cuidadora compõe o ideal universal de mulher que se faz presente nas
interações envolvendo a categoria mulher.
Ocorre que as funções não remuneradas, típicas da maternidade e da criação dos
filhos, são desvalorizadas nas sociedades capitalistas, cumprindo aprofundar alguns dos
impactos negativos que o estereótipo da mulher cuidadora traz.
15
SILVA, Artenira da Silva e; GARCÍA-MANSO, Almudena; BARBOSA, Gabriela Sousa da Silva. Una
revisión histórica de las violencias contra mujeres, pp. 187-188.
16
MACKINNON, Catharine A. Feminismo, marxismo, método e o estado: uma agenda para a teoria, p.
819.
17
COOK, Rebecca J.; CUSACK. Simone. Estereotipos de género. perspectivas legales e transnacionales,
p. 3.
9
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18
OKIN, Susan Moller. Gênero, o público e o privado, pp. 314-315.
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pois limita as oportunidades da mulher participar da vida política e econômica e tem sido
usada para justificar a exclusão das mulheres da vida pública em todas as culturas.19
No Brasil não é diferente. Com base em estudo do Banco Mundial e em relatório
da Organização Internacional do Trabalho, Soares, Bastos e Fachin asseveram que grande
parte da desigualdade de gênero no mercado de trabalho está relacionada a uma divisão
desigual do trabalho em casa, com as mulheres respondendo por 76,2% de todas as horas
de trabalho não remunerado.20 De outro lado, os homens representam a maioria da
população na faixa etária entre 16 e 59 anos que está no mercado de trabalho: 86,3% dos
homens nessa faixa etária possui trabalho remunerado, contra 63,7% das mulheres na
mesma situação, havendo um forte contingente feminino dedicado exclusivamente ao
trabalho reprodutivo.21 Ao mesmo tempo em que a responsabilidade no lar dificulta o
acesso ao trabalho remunerado, o papel tradicional da mulher, associado ao estereótipo
do cuidado, importa na concentração da mão de obra feminina nos setores de educação,
saúde, serviços sociais, serviços domésticos, alojamento e alimentação, enquanto os
homens ocupam postos nos setores agropecuário, industrial e na construção civil.22 Os
preconceitos e estereótipos que delineiam o papel social feminino também impactam nas
carreiras e nos salários das mulheres, pouco representadas nos cargos de diretoria e com
salários menores que os dos homens em aproximadamente 30%, segundo estatística social
do IBGE relativa ao ano de 2019.23
Tais indicadores revelam como estereótipo do cuidado produz consequências
sobre as realizações econômica, profissional e pessoal das mulheres. Absorvidas pela
rotina doméstica e sobrecarregadas com as tarefas do lar, imaginável que possam ter
cerceadas suas liberdades de fazer escolhas e acabem descartando alternativas que
demandem concentração, dedicação e tempo, não necessariamente por desejo genuíno,
mas por autêntica limitação de projetos existenciais que o estereótipo do cuidado
potencialmente acarreta. Em acréscimo e não menos importante, cumpre destacar que a
19
COOK, Rebecca J.; CUSACK. Simone. estereotipos de género. perspectivas legales e transnacionales,
p. 26.
20
SOARES, Inês Virginia Prado; BASTOS, Lucia Elena A. Ferreira; FACHIN, Melina Girardi. Economia
dos cuidados: quem perde com o pandemônio feminino na pandemia?
21
MELO, Hildete Pereira de; THOMÉ, Débora. Mulheres e poder: histórias, ideias e indicadores, p. 112
22
Idem, p. 113.
23
Disponível em <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-
noticias/noticias/27598-homens-ganharam-quase-30-a-mais-que-as-mulheres-em-2019>. Acesso em
20.11.2020.
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divisão de papeis que atribui às mulheres o trabalho não remunerado impacta diretamente
na estrutura de poder na família, resultando muitas vezes na dependência econômica,24
dificultando às mulheres a tomada de decisão e a direção da própria vida tanto no espaço
público quanto no âmbito doméstico.
Pelo exposto, é possível afirmar que a emancipação feminina em direção à
liberdade e à efetiva igualdade na família e nas oportunidades de realização fora do lar
não prescinde de uma mais equânime divisão das tarefas típicas da esfera privada, o
cuidado com os filhos entre elas. Somente dispensadas da sobrecarga doméstica as
mulheres terão disponibilidade para se dedicar a outras atividades, em igualdade de
condições com os homens, em busca de realizações pessoais não relacionadas à
afetividade e à intimidade próprias da vida privada. Para tanto, combater o estereótipo
que liga a mulher ao cuidado dos filhos e reconhecer-lhe a mesma aptidão que os homens
na esfera pública são duas faces da mesma moeda, vislumbrando-se íntima relação entre
a desnaturalização do cuidado e o acesso das mulheres aos espaços de poder e às rodas
econômicas e políticas, ao lado do homem. Ao mesmo tempo, dissociar as mulheres do
papel de cuidadoras que tradicionalmente ocupam permite que homens aprendam a cuidar
de crianças e a desempenhar tarefas domésticas, reforçando a ideia do cuidado como algo
que se aprende e não como uma aptidão natural decorrente do sexo.
O ordenamento jurídico vem sentindo o influxo das teorias feministas que negam
a existência de uma vocação natural e denunciam a construção social que há por trás do
estereótipo que liga a mulher ao cuidado. O instituto da guarda é especialmente útil para
observar o fenômeno, por tratar do aspecto da vida que se está a desenvolver.
Diferentemente do poder familiar, a guarda envolve a atenção rotineira e o desempenho
de tarefas cotidianas inerentes à lida diária com crianças, consumindo expressiva
quantidade de tempo e energia do responsável por ela. O esforço despendido com o
cuidado dos filhos produz resultados importantes sob o aspecto subjetivo dos seres em
formação, mas pode limitar a possibilidade de atuação da pessoa guardiã em outros
campos. Se imaginarmos a atribuição da guarda exclusivamente à mulher, fácil
compreender a restrição de possibilidades de desenvolvimento individual e profissional
24
OKIN, Susan Moller. Gênero, o público e o privado, p. 308; MELO, Hildete Pereira de. THOMÉ,
Débora. Mulheres e poder: histórias, ideias e indicadores, p. 112.
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que isso acarreta, com impactos diretos na participação feminina em todas as esferas da
vida pública.
25
Para se aprofundar sobre as possibilidades de enfoque do cuidado no direito, conferir: PEREIRA, Tania
da Silva; OLIVEIRA, Guilherme de (coords.). Cuidado e responsabilidade; PEREIRA, Tania da Silva;
OLIVEIRA, Guilherme de (coords.). Cuidado e vulnerabilidade; PEREIRA, Tania da Silva; OLIVEIRA,
Guilherme de (coords.). Cuidado como valor jurídico.
26
FUJITA, Jorge Shiguemitsu. Filiação, pp. 86-87.
27
MADALENO, Rafael; MADALENO, Rolf. Guarda Compartilhada: física e jurídica, p. 55.
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guarda, mas manteve a inocência, estabelecendo que, em caso de culpa de ambos pelo
fim do casamento, a guarda dos filhos ficaria com a mãe, regulação essa que foi mantida
na Lei do Divórcio, de 1977, e perdurou no direito de família até a entrada em vigor do
Código Civil de 2002, em janeiro de 2003. De acordo com o tratamento legal da guarda,
até 2002, a definição de quem ficaria com os filhos dependia de investigação da
responsabilidade de cada cônjuge pelo fim do casamento, sendo que, na hipótese de culpa
recíproca, a guarda ficaria para a mãe. Na avaliação de Grisard, a norma partia “de uma
presunção que tem fundamento psicofisiológico, ao estimar que a mãe se encontra em
posição mais adequada para criar e educar os filhos”,28 refletindo, no direito, o estereótipo
de que a mulher seria “naturalmente” mais apta para cuidar dos filhos.
A partir da Constituição de 1.988, com o reconhecimento da união estável como
entidade familiar, a previsão da família monoparental e a afirmação da igualdade entre o
homem e a mulher na sociedade conjugal (CF, art. 226, §§ 3º, 4º e 5º), a doutrina identifica
a passagem da estrutura hierárquica e vertical da família para uma forma horizontal, plural
e democrática,29 com consequências relacionadas à posição ocupada pela mulher, que
deixa de estar legalmente submetida à chefia do marido na sociedade conjugal, como
previsto no CC/1916, art. 233, e passa a gozar dos mesmos direitos e deveres que o
homem na comunhão familiar (CC/2002, art. 1.511). Tal mudança refletiu-se na
transformação do pátrio poder, de titularidade do homem (CC/1916 art. 380), em poder
familiar, atribuído tanto ao pai quanto à mãe (CC/2002, art. 1.631), e impactou igualmente
a legislação infraconstitucional sobre a guarda.
Já na redação original do Código Civil em vigor não constavam quaisquer
referências à inocência ou ao sexo do cônjuge como critérios para a definição da pessoa
guardiã,30 em harmonia com o princípio da dignidade humana e com os paradigmas
introduzidos pela Constituição de 1988. Sob esse aspecto, o reconhecimento da criança e
do adolescente como sujeitos de direito merecedores de proteção integral e a afirmação
da igualdade entre o homem e a mulher na família impactaram diretamente na regulação
da guarda, eliminando o critério da culpa e a preferência pela mulher que orientaram o
28
GRISARD FILHO, Waldyr. Guarda Compartilhada: um novo modelo de responsabilidade parental, p.
130.
29
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Princípios fundamentais norteadores do direito de família, pp. 23-27.
30
Redação original: <https://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/2002/lei-10406-10-janeiro-2002-432893-
publicacaooriginal-1-pl.html>, arts. 1.578 e 1.583.
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31
LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias, p. 192; MADALENO, Rafael. MADALENO, Rolf. Guarda
compartilhada: física e jurídica, p. 68.
32
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Guarda compartilhada: novo regime da guarda de crianças e
adolescentes à luz das leis nº 11.698/2008 e 13.058/2014, p. 172.
33
Idem, pp. 171-172.
34
LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias, p. 192; MADALENO, Rafael. MADALENO, Rolf. Guarda
compartilhada: física e jurídica, p. 194.
15
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35
GRISARD FILHO, Waldyr. Guarda compartilhada: um novo modelo de responsabilidade parental, p.
138.
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5. GUARDA E AS MEDIDAS PROTETIVAS PREVISTAS NOS ARTS. 22, IV, E 23, V, DA LEI
MARIA DA PENHA
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Quanto às ideias de que um homem violento dificilmente será um bom pai e de que conviver com o
agressor não será saudável para os filhos, remete-se à leitura do tópico seguinte.
37
LÔBO, Paulo. Direito civil: famílias, p. 199.
18
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38
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias, p. 151.
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paradigma pelo legislador reflete o estereótipo que atribui a dedicação à casa, a repetição
inerente à rotina do lar e o cuidado primário como papeis femininos, subentendendo que
a mulher estará juridicamente protegida desde que corresponda a tais expectativas.
Renova-se na legislação a crença de que a mulher é a mais apta para cuidar dos filhos, em
razão do sexo, onerando-a com responsabilidades que intensificam as demandas
domésticas e contribuem para mantê-la encerrada no espaço privado, com potenciais
prejuízos para aquelas que se objetiva proteger: as mulheres.
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39
REICHENHEIM, Michael E; HASSELMANN, Maria Helena; MORAES, Claudia Leite. Consequências
da violência familiar na saúde da criança e do adolescente: contribuição para a elaboração de propostas
de ação.
22
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40
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil para análise histórica, p. 21.
41
OLIVEIRA, Adriana Vidal de. NORONHA, Joanna Vieira. Afinal, o que é “mulher”? E quem foi que
disse?, p. 752.
42
RUBIN, Gayle. The traffic in women: notes on the political economy of sex, p. 204: “we are not only
oppressed by having to be as women, we are oppressed by having to be women” (Tradução livre).
23
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8. CONCLUSÕES
43
MARQUES, Daniela de Freitas. Violência contra a mulher: sedução e morte nas relações afetivas, p.
287.
44
SMART, Carol. A mulher do discurso jurídico, p. 1248.
24
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REFERÊNCIAS
45
DINIZ, Debora. GUMIERI, Sinara. Violência de gênero no Brasil: ambiguidades da política criminal,
p. 205.
46
ALLEN, Amy. Emancipação sem utopia: sujeição, modernidade e as exigências normativas da teoria
crítica feminista.
25
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BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2009.
COOK, Rebecca; CUSAC, Simone. Estereotipos de género. perspectivas
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DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 4. ed. São Paulo:
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DINIZ, Debora. GUMIERI, Sinara. Violência de gênero no Brasil:
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e Jéssica da Mata. (coords). Belo Horizonte: Editora D’Plácido, 2018.
FUJITA, Jorge Shiguemitsu. Filiação. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2011
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Guarda compartilhada: novo regime
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MADALENO, Rafael. MADALENO, Rolf. Guarda Compartilhada: física e
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ideias e indicadores. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018
NICHOLSON, Linda. Interpretando o gênero. Florianópolis: Revista de
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