Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Organizadores/Autores
Anderson de Assunção Ferreira (in memoriam)
Edson Gonçalves da Silva
Gerson Francisco de Arruda Júnior
Ricardo Evangelista Brandão
Diretor da Série: Edvaldo Antonio de Melo
Diagramação: Marcelo Alves
Capa: Gabrielle do Carmo
Fotografia / Imagem de Capa: Rafael Ferreira Costa
C728 Com Agostinho, e além dele: homenagem aos 30 anos de docência do prof. Marcos
Roberto Nunes Costa [recurso eletrônico] / Anderson de Assunção Ferreira,
Edson Gonçalves da Silva, Gerson Francisco de Arruda Júnior, Ricardo
Evangelista Brandão... [et al.]. Cachoeirinha : Fi, 2023.
344p.
ISBN 978-65-85725-34-7
DOI 10.22350/9786585725347
CDU 1:27(Agostinho)
PREFÁCIO 9
Gerson Francisco de Arruda Júnior
1 15
A CRÍTICA DE WITTGENSTEIN À “VISÃO AGOSTINIANA DA LINGUAGEM”
Anderson de Assunção Ferreira (In Memoriam)
2 37
DE CONCORDIA: REFLEXÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE HARMONIA SOCIAL, BEM
COMUM E JUSTIÇA À LUZ DO PENSAMENTO DE AGOSTINHO E CÍCERO
Ricardo Evangelista Brandão
3 59
INTERIOR INTIMO MEO: INTERIORIDADE E VERDADE EM SANTO AGOSTINHO DE
HIPONA
Antonio Pereira Júnior
4 83
ELEMENTOS DO PENSAMENTO DE AGOSTINHO SOBRE O MATRIMÔNIO
Marlesson Castelo Branco do Rêgo
5 101
AGOSTINHO DE HIPONA: AMBIGUIDADES DE UM PRECURSOR DO FILOSSEMITISMO
NA PATRÍSTICA LATINA
Tiago Macedo Bezerra Maia
6 134
A MÚSICA DE SANTO AGOSTINHO: O ELO ENTRE A BELEZA TERRENA E A SUPREMA
BELEZA
Janduí Evangelista de Oliveira
7 158
A LEI E A CARIDADE: O ANTIGO E O NOVO TESTAMENTO COMO METÁFORAS DO AGIR
HUMANO EM AGOSTINHO DE HIPONA
Gracielle Nascimento Coutinho
8 184
ALMA, ESPÍRITO, MENTE: OS SEUS “FIÉIS DEPOSITÁRIOS”À LUZ DA ANTROPOLOGIA
AGOSTINIANA EM INTERFACE COM AS NEUROCIÊNCIAS
Pompeia Rosalia Sena Maltese
9 209
O OBJETO DA CIÊNCIA NATURAL SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO
Rodrigo José de Lima
10 226
O CONCEITO DE MAL NO MANIQUEÍSMO: UMA RELAÇÃO ENTRE O LIVRE-ARBÍTRIO E
A SOBERBA
Marcone Felipe Bezerra de Lima
11 259
CONCEITO DE LIBERTAS E SUA RELAÇÃO COM A GRAÇA NAS CONFISSÕES DE SANTO
AGOSTINHO
Claubervan Lincow Silva
12 281
O CONHECIMENTO EM DUAS REALIDADES DISTINTAS, MAS NÃO SEPARADAS:
QUANDO AGOSTINHO ILUMINOU O INTELECTO DE TOMÁS DE AQUINO
Edson Gonçalves da Silva
13 301
CARATERIZAÇÃO WITTGENSTEINIANA DO “CONCEITO FILOSÓFICO DE
SIGNIFICAÇÃO” QUE SUBJAZ À “CONCEPÇÃO AGOSTINIANA DA LINGUAGEM”
Gerson Francisco de Arruda Júnior
- no quinto capítulo, o prof. Tiago Macedo Bezerra Maia nos dá uma contribuição
singular, quando tenta explicitar, a partir do título AGOSTINHO DE HIPONA:
AMBIGUIDADES DE UM PRECURSOR DO FILOSSEMITISMO NA PATRÍSTICA
LATINA, elementos filossemitas no arcabouço filosófico-teológico agostiniano,
demonstrando assim, também, o quão vanguardista foi o hiponense em suas
tematizações e formulações sobre o povo judeu.
- o capítulo 6 desta coletânea trata de um livro importante, mas, ao que tudo
indica, ainda pouco estudo, que é o A Música, de Santo Agostinho. A partir desse
livro, o prof. Janduí Evangelista de Oliveira objetiva, com o seu artigo A MÚSICA
DE SANTO AGOSTINHO: O ELO ENTRE A BELEZA TERRENA E A SUPREMA BELEZA,
fomentar a experiência musical como instância promotora do desenvolvimento
integral do ser humano que se dá a partir da ampliação de nossa capacidade
sensitiva que não limita o valor da música ao prazer sensível, mas que vislumbra
o suprassensível.
- no sétimo capítulo, a profa. Gracielle Nascimento Coutinho apresenta e
problematiza sobre o desenvolvimento da consciência ético-moral humana sob
o prisma filosófico-teológico do tratado agostiniano Sobre o Espírito e a Letra, no
artigo A LEI E A CARIDADE: O ANTIGO E O NOVO TESTAMENTO COMO
METÁFORAS DO AGIR HUMANO EM AGOSTINHO DE HIPONA.
- a profa. Pompeia Rosalia Sena Maltese, no seu texto intitulado ALMA, ESPÍRITO,
MENTE: OS SEUS “FIÉIS DEPOSITÁRIOS”À LUZ DA ANTROPOLOGIA AGOSTINIANA
EM INTERFACE COM AS NEUROCIÊNCIAS, que caracteriza o capítulo 8, discute
um importante tema da antropologia agostiniana, dialogando com aspectos
importantes da neurociência.
- os capítulos 10 e 11, escritos respectivamente pelos profs. Marcone Felipe
Bezerra de Lima e Claubervan Lincow Silva, abordam aspectos da temática
sobre o mal, a graça e liberdade. O capítulo 10, sob o título O CONCEITO DE MAL
NO MANIQUEÍSMO: UMA RELAÇÃO ENTRE O LIVRE-ARBÍTRIO E A SOBERBA, no
qual o problema do mal é analisado a partir de sua relação com o livre-arbítrio.
Já no capítulo 11, encontramos uma análise do CONCEITO DE LIBERTAS E SUA
RELAÇÃO COM A GRAÇA NAS CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO, no qual se
Gerson Francisco de Arruda Júnior • 13
1. 1 ENUNCIAÇÃO DO PROBLEMA
1
Com algumas poucas modificações, este texto consiste no terceiro capítulo da dissertação de mestrado
apresentada e defendida pelo prof. Anderson de Assunção Ferreira, sob a orientação do prof. Marcos
Roberto Nunes Costa, em 2019, no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal
de Pernambuco. Devido ao seu falecimento, os organizadores desta coletânea decidiram honrar o prof.
Anderson de Assunção Ferreira, que inclusive era um dos organizadores, publicando, postumamente, o
texto aqui apresentado, com a devida autorização de sua esposa Núbia Assunção.
2
O prof. Anderson de Assunção Ferreira era formado em Teologia e Filosofia. Era mestre em Filosofia,
pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, e, no ano do seu falecimento, estava cursando o
doutorado em Filosofia, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.
16 • Com Agostinho, e além dele
[...] não devemos construir nenhuma espécie de teoria. Não deve haver nada
de hipotético em nossas considerações. Toda elucidação deve desaparecer e
ser substituída apenas por descrição. E esta descrição recebe sua luz, isto é,
sua finalidade, dos problemas filosóficos. (WITTGENSTEIN 1999, p. 65).
18 • Com Agostinho, e além dele
“[...] para os elementos primitivos [...] dos quais nós e tudo mais somos
compostos, não há nenhuma explicação; pois tudo o que é em si e por si
pode apenas ser designado com nomes [...] Estes elementos primitivos eram
os ‘individuals’ de Russell e os meus [isto é, do próprio Wittgenstein, R.P.C.]
‘objetos’.” (WITTGENSTEIN 1999, p. 43-44).
Anderson de Assunção Ferreira • 21
passa a ser vista não como uma rival da ciência, criadora de teorias
positivas, mas como uma atividade terapêutica cujo objetivo é dissolver
os problemas filosóficos:
Estes problemas não são empíricos, mas são resolvidos por meio de um
exame do trabalho de nossa linguagem e de tal modo que este seja
reconhecido: contra o impulso de mal compreendê-lo. Os problemas são
resolvidos não pelo acúmulo de novas experiências, mas pela combinação
do que é já há muito tempo conhecido. A filosofia é uma luta contra o
enfeitiçamento do nosso entendimento pelos meios da nossa linguagem.
(WITTGENSTEIN 1999, p. 65).
3
PIACENZA, Eduardo. El “De Magistro” de San Agustín y la semântica contemporânea, In: Agustinos 37
(1992), p. 47.
24 • Com Agostinho, e além dele
4
“Las cosas laspercibimos o por los sentidos corporales, si sonsensibles o carnales; o por la mente, si
soninteligibles o espirituales. Ni unas niotraslasmuestranlaspalabras. Si estas se refieren a realidades
sensibles presentes, les damos asentimiento no por laspalabras que se nos dicen, sino por
lapercepcióndirecta que de ellastenemos; y si están ausentes, por lasimágenes que
ennosotroshanimpreso y que conservamos grabadasenlamemoria... Y si hablamos de realidades
inteligibles o espirituales, laspercibimosconelentendimiento y larazón; tampoco mediante laspalabras”.
Cf. HEREDIA, op. cit., p. 172.
5
“Ensu argumento Agustín presupone que ellenguaje es unacompañamientoinesencial y contingente
delconocimiento; que laspalabrasaparecen como algo que se sobreañade, asociándose de un modo
puramente externo, a unos contenidos cognoscitivos ya plenamente constituidos de antemanocon
total independencia de ellas; que elconocimiento se da por una experiencia directa de las cosas,
experiencia que está libre y no requiereningunamediaciónlingüística. De este modo, ellenguajesólosirve
para manifestar exteriormente um contenidoya plenamente configurado sinsucontribución”. Cf.
PIACENZA, op. cit., pp. 36-37.
Anderson de Assunção Ferreira • 25
dentro de si mesmo para receber a luz nãoparece outra coisa que a teoria
da busca das reminiscências de realidades percebidas no mundo das
ideias de Platão. Mas, então, como se vê, o conhecimento passa a ser
umassunto privado. A comunicação e a linguagem aparecem como algo
inessencial aoconhecimento. A dimensão intersubjetiva, a comprovação
da objetividade de qualquerconhecimento por parte de outros, passa a
ser algo agregado extrinsecamente. 6
As obras de Agostinho mais significativas sobre filosofia da
linguagem são De Magistro e De doctrinachristiana. Sobre essas obras
Wittgenstein nunca fez uma referência explicita.
Maria Leonor Xavier afirma que Wittgenstein “julga Agostinho
equivocadamente” quando usa dessa passagem, pois segundo ela, a
ostensão não mostra realmente as coisas que as palavras significam,
mas revela principalmente a complexidade do tecido de relações que
constitui a realidade concreta da linguagem verbal, em especial, a tripla
relação, respectivamente, com o mundo das coisas possíveis de serem
nomeadas com o mundo da comunidade que fixa a relação entre as
palavras e as coisas, e, ainda, com o mundo interior dos afectos da alma
que motivam o uso das palavras. (XAVIER, 1989, p. 42-43).
Marciano Adílio Spica afirma: não se pode dizer, como queria
Wittgenstein, que Agostinho acreditava piamente numaconcepção
segundo a qual as palavraseram como que etiquetas grudadas nascoisas.
Não se pode conceber a visão dereferencialidade nessa perspectiva
6
“Enlaconclusión a que se llegaen ‘De Magistro’ es elpensamiento platónico o neoplatónico el que está
presente. El hecho de lailuminaciónlo determina san Agustín de un modo paralelo al que se empleaenel
‘Menón’ platónico para laprueba de lareminiscencia”. Cf. HEREDIA, op. cit., p. 176.
26 • Com Agostinho, e além dele
7
SPICA, M, A. A insuficiência da linguagem: apontamentos a respeito do De Magistro de Agostinho.
Revista Espaço Acadêmico nº109, junho, 2010.
Anderson de Assunção Ferreira • 27
Mais uma vez fica clara a intenção de se fazer uma crítica a uma
tradição filosófica e que Wittgenstein poderia por exemplo citar outros
nomes ao invés do nome de Agostinho como Platão, Frege, Bertrand
Russel etc.. Mas mesmo que a crítica não seja diretamente a Agostinho
os seus argumentos sobre a linguagem não se sustentam diante de uma
tão ferrenha crítica feita por Wittgenstein.
Após citar o texto das Confissõesde Agostinho, em que ele descreve
como aprendeu afalar, Wittgenstein imediatamente compreende que:
“Nestas palavrasobtemos, ao que me parece, uma determinada imagem
da essência da linguagem humana, queé esta: as palavras da linguagem
Anderson de Assunção Ferreira • 29
Tal pergunta tem sentido tão somente quando se supõe que a palavra ‘cinco’
desempenha a mesma função (ou pertence à mesma categoria) que ‘maçãs’
e ‘vermelho’ [...] A tendência a perguntar pelo significado de uma palavra,
inclusive quando seu uso está perfeitamente claro, surge do ‘conceito
filosófico de significado’ que ‘repousa em uma ideia primitiva acerca de
como funciona a linguagem’.
processode significação (IF 1). O ato de dar nome não abarca a totalidade
da linguagem. Com asfrases, além de denominar, os homens fazem as
coisas mais diversas. Quando se diz “Água!”, o que se pretende com isso?
Apontar uma substância, fazer um pedido ou fazer um alerta? Éclaro
que a “substância” em questão entra no discurso, mas o que conta são
os diferentescontextos onde a palavra é usada (IF 27). Vê-se, portanto,
que a definição ostensiva nãoaponta univocamente para o objeto
indicado. A coisa para qual se aponta com um gesto éambígua. Em cada
caso, uma definição ostensiva pode ser interpretada de um modo ou
deoutro (IF 28). Para sair da ambiguidade, necessita-se apontar para o
designado e proferir o seunome “Isto é N” (IF 15, 37, 38). A definição
ostensiva, para significar algo, precisa sercompletada por ulteriores
explicações verbais: “'Como se chama isto?’ – ao que se segue
adenominação” (IF 27). A definição ostensiva explica o uso – o
significado - de uma palavra, caso seja claro o papel que ela vai
desempenhar na linguagem (IF 30).
O apontar para um objeto é uma parte importante para treinar uma
criança e ensinar-lhe uma linguagem. Contudo, o ensino ostensivo das
palavras exercita este papel no processode socialização linguística,
porque está situado em um contexto de relações interpessoais, onde o
uso do gesto indicativo supõe todo um mecanismo restante (IF 6, 26). O
ensinoostensivo das palavras é um jogo de linguagem que supõe uma
certa competência linguística,sem a qual a definição ostensiva nada
significaria (IF 7). Para alguém perguntar sobre umnome de uma coisa,
é necessário dominar um discreto número de outras atividades (IF 31).
Dar nome ou apontar para uma coisa pressupõe o domínio de um dos
32 • Com Agostinho, e além dele
jogos de linguagem napreparação para o uso de uma palavra (IF 26, 27.
31). Assim sendo, o “denominar”, longe de ser uma atividade natural e
espontânea, resulta de um processo muito sofisticado querequer uma
enorme quantidade de atividades educativas. Fora de um jogo de
linguagem, fora de um contexto de uso, fora do conjunto de outras
atividades com as quais seencontram correlacionadas, as palavras da
definição ostensiva certamente nada designariam (IF 9-11; 23, 26, 27).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
HORN, Christoph. Agostinho: teoria lingüística dos sinais. Revista Veritas. Porto Alegre
v. 51 n. 1 Março 2006 p. 5-17.
KING. Peter. Agostinho sobre a linguagem. In. MECONI, David Vicente; STUMP. Eleonore
(ogrs.) Agostinho. Trad. de Jaime Clasen. São Paulo: Ideias & Letras, 2016, p. 355-376.
SILVA, Marcos Roberto Damásio da. Teoria referencial em Agostinho: uma crítica
wittgensteiniana. Disponível em: http://inclinacoesfilosoficas.blogspot.com.br/
2008/07/teoria-referencial-em-agostinho-uma.html
“Em verdade, é totalmente tola a ideia de julgar que é justo o que se encontra
nas instituições e nas leis dos povos. Porventura, seriam leis as
promulgadas pelos tiranos?” (CÍCERO, De legibus, XV, 42).
INTRODUÇÃO
1
Doutor em Filosofia pela UFPE, professor efetivo de Filosofia do Instituto Federal de Pernambuco e
coordenador do projeto de pesquisa: CONTRIBUIÇÕES FILOSÓFICAS PARA UMA TEORIA DA JUSTIÇA
SOCIAL: discussão acerca da possibilidade de uma teoria da justiça social a partir do prisma de Aurélio
Agostinho, Amartya Sen e suas fontes teóricas, e possíveis aplicações para a justiça social no Agreste
Pernambucano. E-mail: ricardobrand75@gmail.com
2
Recomendamos para um aprofundamento no assunto a leitura do excelente texto do Hegel
“Introdução à História da Filosofia”. Segue um breve trecho para refletirmos sobre a relação entre o
filósofo e a história, que nos auxilia a pensar sobre o que está sendo defendido no corpo da introdução
desse artigo: "Contudo, os homens não criam uma filosofia ao acaso: é sempre uma determinada
filosofia que surge no seio de um povo, e a determinação do ponto de vista do pensamento é idêntica
à que se apodera de todas as demais manifestações históricas do espírito desse povo, está em íntima
relação com elas e delas constitui o fundamento" (HEGEL, 1974, p. 361).
38 • Com Agostinho, e além dele
3
A datação das obras que analisaremos nesse texto terá como base a cronologia das obras de Agostinho
presente no primeiro volume da coleção “Obras Completas de San Agustin”, da Biblioteca de Autores
Cristianos (BAC) organizada por Victorino Capanaga (cf. CAPANAGA, 1994, v. 1, p. 384-387).
Ricardo Evangelista Brandão • 39
4
Esse preceito aparece em dois evangelhos sinóticos: Mateus 5, 39 e Lucas 6, 29. Todavia, a passagem
mais conhecida está em Mateus: “Eu, porém vos digo: não resistais ao homem mal; antes, àquele que te
fere na face direita oferece-lhe também a esquerda” (5, 39). No versículo imediatamente anterior Jesus
cita a famosa Lex Talionis, que preceituava uma reciprocidade direta ao dano cometido, ou seja, se uma
pessoa machucou um olho de alguém, igualmente terá seu olho machucado: “Ouvistes o que foi dito:
olho por olho e dente por dente” (Mateus 5, 38). Dessa forma, nesse trecho do sermão do monte Jesus
40 • Com Agostinho, e além dele
está propondo uma lei que a seu entender seria moralmente superior às leis do antigo testamento, a lei
do amor, que intrinsecamente está presente a não reciprocidade às ofensas recebidas.
Ricardo Evangelista Brandão • 41
5
“Quid enim est respublica nisi res populi? Res ergo communis, res utique civitatis. Quid est autem civitas nisi
hominum multitudo in quoddam vinculum redacta concordiae?” (AGOSTINHO, Ep. 138, 2, 10).
6
Respublica é uma forma de organizar o poder que os romanos estabeleceram para substituir o governo
dos reis. Essa palavra latina seria uma expressão do termo grego politeia (Πολιτεία) usado com frequência
por Aristóteles. Contudo, Nicola Matteucci, em um de seus verbetes no “Dicionário de Política”, comenta
que se trata de uma tipologia política distinta das tradicionais formas de governo monarquia,
aristocracia e democracia, visto que elas têm como foco uma forma governo (kratos – poder ou archia -
governo), enquanto a res publica tem como interesse a coisa pública, como expressa o estudioso: “Com
efeito, res publica quer pôr em relevo a coisa pública, a coisa do povo, o bem comum, a comunidade,
enquanto que, quem fala de monarquia, aristocracia, democracia, realça o princípio do governo (archia)”
(MATTEUCCI, 2010, p. 1107, In. BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO (Org.).
42 • Com Agostinho, e além dele
qualquer interesse do povo, seja ele qual for, deveria ser respeitado?
Assim, arremata o hiponense (Res ergo communis, res utique civitatis –
Logo, o interesse comum é o interesse da cidade). Dessa forma, o
interesse do povo que caracteriza uma respublica ou civitas 7 é o interesse
da civitas. Até parece um jogo repetitivo de palavras, mas, a intenção da
perícope é ressaltar o interesse da civitas, isto é, todas aquelas ações ou
inações para o bem da manutenção da república, pois, uma vez que o
povo decidiu viver em sociedade, obviamente é interesse sine qua non
desse povo todas as decisões no âmbito social que possam fortalecer
esse formato de sociedade.
Ainda assim poderia ficar uma ideia deveras vaga, pois, quais
interesses comuns seriam esses que caracterizam uma cidade, por
exemplo, se a reciprocidade violenta fosse um ideal em comum poderia
ser um dos interesses que dão sentido a respublica? Segundo o texto
objeto de nossa análise em hipótese alguma, pois, é justamente a tese
contrária que ele pretende demonstrar em sua argumentação ao
entender o “dar a outra face” como uma postura positiva na cidade. Por
isso, ressalta o papel da concórdia (Quid est autem civitas nisi hominum
multitudo in quoddam vinculum redacta concordiae? - E o que é a cidade
se não uma multidão reunida pelo vínculo da concórdia?). Dependendo
7
O Agostinólogo Manfredo Thomaz Ramos, em seu excelente estudo acerca do epistolário comparado
com De civitate dei, demonstra que os termos civitas e respublica são usados de forma intercambiável
por Agostinho com dois sentidos: o significado que conhecemos como Estado ou “[...] comunidade ou
sociedade política organizada, que, sozinha, pode garantir o bem comum ou ‘salus publica’ (‘salvação
pública’), e que na antiguidade clássica tomou os nomes de ‘polis’ (‘cidade’) e de ‘res publica’” (2015, p.
149). E com o sentido de cidade celeste ou comunidade dos servos de Deus. À vista disso, o que
determinará o sentido dos termos nas obras de Agostinho, se religioso ou secular, será o contexto.
Doravante nesse artigo utilizaremos de forma intercambiável os termos civitas e respublica com o
primeiro sentido colocado nessa nota, semelhante à acepção de Estado.
Ricardo Evangelista Brandão • 43
8
Outro argumento que Agostinho utiliza no texto é que o homem justo deveria evitar ao máximo revidar
o mal com o mal, pois, os que assim agem podem estar contribuindo para o aumento de pessoas
injustas. Pois, ao retribuir o mal com bem há a chance do injusto se converter por esse exemplo, e por
outro lado, quando o ofendido retribui o mal com o mal, se torna igualmente injusto, contribuindo
assim para aumentar o número dos injustos em duas vertentes: pelo mau exemplo da vingança, e pela
conversão do justo em injusto pela adesão à vingança: “O homem justo e piedoso deve, pois, estar
preparado para tolerar com paciência a malícia daqueles que eles querem converter em bons, para que
o número destes cresça, antes que unir-se com igual malícia ao número dos maus - Paratus itaque debet
esse homo iustus et pius, patienter eorum malitiam sustinere, quos fieri bonos quaerit, ut numerus potius
crescat bonorum, non ut pari malitia se quoque numero addat malorum” (AGOSTINHO, Ep. 138, 2, 12).
9
“Denique ista praecepta magis ad praeparationem cordis quae intus est, pertinere, quam ad opus quod in
aperto fit” (AGOSTINHO, Ep. 138, 2, 13).
Ricardo Evangelista Brandão • 45
10
No contexto do último fragmento citado Santo Agostinho, dando exemplos dos castigos dos pais que
repreendem os filhos de forma justa para o próprio bem dos castigados, nos dá a entender que não se
pode excluir a justiça a priori a uma ação violenta do Estado para defender seu povo. De forma que ele
não demoniza a reciprocidade violenta da respublica se for para corrigir uma notória injustiça: “Portanto,
se esta república terrena mantivesse os preceitos cristãos, as mesmas guerras não se levariam a cabo
sem benevolência, pois seria mais facilmente olhada pelos vencidos com vistas a uma sociedade
tranquila, pacificada na piedade e na justiça. É útil a derrota para aqueles a quem se remove a licença
da iniquidade. Porque não há coisa mais infeliz que a felicidade dos pecadores, que se nutre da
impunidade penal e se fortalece na má vontade, que é como um inimigo interior” – “Ac per hoc si terrena
ista respublica praecepta christiana custodiat, et ipsa bella sine benevolentia non gerentur, ut ad pietatis
iustitiaeque pacatam societatem victis facilius consulatur. Nam cui licentia iniquitatis eripitur, utiliter vincitur;
quoniam nihil est infelicius felicítate peccantium, qua poenalis nutritur impunitas, et mala voluntas velut
hostis interior roboratur” (AGOSTINHO, Ep. 138, 2, 14). O filósofo cristão com essa reflexão dá imensa
elasticidade exegética ao “dar a outra face”, pois, até a guerra de uma respublica justa contra uma injusta
é permitida para corrigir a segunda. Sem dúvida comparar um castigo de um pai, que sempre tem como
meta o melhor para o filho, com as guerras, mesmo as chamadas justas – se é que é possível colocar
essas duas palavras, guerra e justa, em uma mesma sentença – é no mínimo inocente. Contudo, sem
dúvida o contexto de pressão para tornar o cristianismo incompatível com a república romana
dimensionou essa possibilidade de permissão de um castigo bélico estatal, pois, no fragmento citado
se destaca que as guerras seriam realizadas com benevolência, para converter os vencidos pelo exemplo
de uma postura menos cruel na guerra. A chamada “Guerra Justa” é sem dúvida um assunto muito
sensível na reflexão teológica - filosófica agostiniana. Na De civitate Dei XIX, 7 Agostinho novamente faz
menção ao assunto, em um contexto semelhante ao apontado na Epístola 138, que de certa forma
explica o que levou o pensador à refletir esse assunto. Em um texto em que escreveu aproximadamente
entre os anos 400 ao 405, o Contra Fausto, o tema é bordado com riqueza de detalhes. O texto foi escrito
com o objetivo de auxiliar os fiéis ante a incapacidade de argumentar de forma satisfatória ante um livro
do bispo maniqueu Fausto (cf. AGOSTINHO, Contra Fausto, I, 1). No livro 22 Agostinho revela que em seu
texto Fausto entendia ser inconciliável a postura dos cristãos católicos aceitarem a autoridade dos
escritos de todos os apóstolos e ao mesmo tempo a autoridade dos profetas do Antigo Testamento,
visto que os primeiros vêem a lei como negativa e os segundos como positiva (cf. AGOSTINHO, Contra
Fausto, XXII, 1). Nesse contexto apologético e exegético, a partir do capítulo 74 do livro 22, o filósofo
cristão passa a defender a justiça das guerras no Antigo Testamento, guerras essas ordenadas por Deus
aos patriarcas com a intenção de pacificar, defender o povo eleito, a fé e a moralidade verdadeira (cf.
AGOSTINHO, Contra Fausto, XXII, 74). Em sua argumentação Agostinho afirma que essa postura em vista
de alguns tipos de guerras é expediente comum aos dois testamentos, e não apenas algo referente à
velha aliança da lei mosaica. No Velho Testamento as menções às guerras eram diretas, com Deus
ordenando os líderes de Israel atacar ou se defender dos inimigos de forma bélica, já no Novo
46 • Com Agostinho, e além dele
Testamento, argumenta o pensador cristão que essa postura permanece, porém, de forma mais sutil:
“Como os maniqueus muitas vezes acusam abertamente a João, ouça o mesmo Senhor Jesus Cristo que
ordena que se pague a Cesar o que João diz que deve bastar ao soldado. Ele diz: Dai a César o que é de
César e a Deus o que é de Deus. E se os tributos são pagos, é para que os soldados que se tornam
necessários pelas guerras recebam seus salários” – “Sed quia Manichaei Ioannem aperte blasphemare
consueverunt, ipsum Dominum Iesum Christum audiant hoc stipendium iubentem reddi Caesari, quod
Ioannes dicit debere sufficere militi. Reddite, inquit, Caesari quae Caesaris sunt, et Deo quae Dei sunt. Et ad
hoc enim tributa praestantur, ut propter bella necessario militi stipendium praebeatur” (AGOSTINHO, Contra
Fausto, XXII, 74). A despeito dessa controversa argumentação do hiponense é importante destacar que
a guerra nunca deve ser deflagrada pelos cidadãos, mas pelo Estado, logo, a vingança pessoal em
hipótese alguma deve ser confundida com guerra justa. A lógica do filósofo é simples: na medida em
que apenas cabe a Deus a autorização para a guerra justa, e não existe autoridade secular que não foi
determinada ou permitida por Ele, exclusivamente ao governante cabe a deflagração de tal guerra (cf.
AGOSTINHO, Contra Fausto, XXII, 75). Além disso, dado que Deus é justo, as guerras que têm como meta
a vingança, o poder, o puro aumento de riqueza e território, não são justas, mas, geradas pela condição
pecaminosa humana.
11
Segundo o estudioso da filosofia agostiniana Niceto Blázquez, um dos motivos pelos quais as ações
humanas devem ter como meta o bem comum é a sociabilidade que nos é inata, de maneira que todo
comportamento humano, leis e estruturas sociais se direcionam ao bem comum, e esse último existe
devido à sociabilidade (cf. BLÁZQUEZ, 2012, p. 180-182). Formando assim uma espécie de círculo
virtuoso na relação entre as diversas estruturas individuais e sociais humanas e a sociabilidade, que em
última instância na vida concreta percebemos esse círculo nas ações que têm como meta o bem
comum.
12
Na medida em que é o próprio filósofo de Hipona que expõe no Livro I, 1-10 do De civitate Dei que
estava respondendo às indagações de Marcelino, muito do que foi escrito sobre as motivações da
Epístola 138 serve como razões contextuais para a composição da obra analisada no corpo do texto.
Ricardo Evangelista Brandão • 47
Além do que já foi exposto, cabe ressaltar que nos 22 livros do De civitate Dei Agostinho desenvolveu
apologeticamente uma interpretação da história na perspectiva da fé cristã, escrevendo a primeira
teologia e filosofia da história (cf. LEÃO, In. AGOSTINHO, 2000, p. 17). Esse percurso apologético que
defenderá em resumo que Roma entrara em declínio muito antes da profissão de fé ao cristianismo, é
escrito estabelecendo a comparação entre duas cidades não geográficas, mas místicas que em síntese
se distinguem por dois tipos de pessoas diferenciadas pelo objeto de seu amor: “Dois amores fundaram,
pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo a Deus, a terra; o amor a Deus, levado
ao desprezo de si próprio, a celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus [...]. Naquela
seus príncipes e as nações avassaladas vêem-se sob o jugo da concupiscência de domínio; nesta servem
em mútua caridade [...]” - “Fecerunt itaque civitates duas amores dúo; terrenam scilicet amor sui usque ad
contemptum Dei, caelestem vero amor Dei usque ad contemptum eui. Denique illa in se ipsa, haec in Domino
gloriatur. [...] Lili in principibus eius, vel in eis quas 6ubiugat nationibus dominandi libido dominatur: in hac
serviunt invicem in chántate [...]” (AGOSTINHO, De civ. Dei, XIV, 28 – PL 41).
48 • Com Agostinho, e além dele
13
“At discordia, et avaritia, atque ambitio, et caetera secundis rebus oriri sueta mala, post Carthaginis
excidium máxime aucta sunt” (AGOSTINHO, De civ. Dei, II, 18, 1 – PL 41).
14
No “O Livre-Arbítrio”, Agostinho ao dialogar sobre a diferença entre a lei temporal e a lei eterna afirma
que todas as leis temporais, quando justas, têm como modelo a lei eterna. Uma das características de
uma lei justa é ter utilidade pública (cf. AGOSTINHO, De lib. arb., I, 6, 14), de forma que a própria lei
punitiva - que existe para ordenar as desordens geradas pelo pecado original - ao punir os criminosos
desincentivam a recorrência da prática criminosa e protegem os não criminosos, sendo, portanto,
expressão do bem comum (cf. AGOSTINHO, De lib. arb.. I. 15, 32).
Ricardo Evangelista Brandão • 49
15
“Et quae harmonía a musicis dicitur in cantu, eam esse in civitate concordiam, arctissimum atque optimum
omni in república vinculum incolumitatis, eamque sine iustitia nullo pacto esse posse” (AGOSTINHO, De civ.
Dei, II, 21, 1 – PL 41).
50 • Com Agostinho, e além dele
16
“Qua quaestione, quantum satis visum est, pertractata Scipio ad intermissa revertitur recolitque suam atque
commendat brevem rei publicae definitionem, qua dixerat eam esse rem populi. Populum autem non omnem
coetum multitudinis, sed coetum iuris consensu et utilitatis communione sociatum esse determinat”
(AGOSTINHO, De civ. Dei, II, 21, 2 – PL 41). A intenção do pensador de Hipona ao lançar mão do fragmento
citado, é argumentar que se o grande filósofo romano entendia que a decadência de Roma a
descredenciava para ser povo e república, e visto que ele – Cícero - é anterior ao advento de Cristo, não
faz sentido imputar o declínio do império na conta do cristianismo.
52 • Com Agostinho, e além dele
17
No contexto do último fragmento citado, Agostinho reflete sobre as várias formas de governo para se
administrar uma civitas, e em todas elas seja uma monarquia, aristocracia ou democracia, quando não
se tem como meta o bem comum, não existe respublica (cf. AGOSTINHO, De Civ. Dei, II, 21, 2), ideia essa
igualmente presente na “Política” de Aristóteles e no “Da República” de Cícero (cf. ARISTÓTELES, Política
III, 5, 1279b; CÍCERO, Da República I, 26, 27). Assim é fato inconteste que essa concórdia jurídica e de
interesses são formas de expressar o bem comum.
18
No capítulo 21 do livro XIX o próprio Agostinho afirma que está aprofundando ideias que foram
iniciadas no livro II, logo a tônica em demonstrar que Roma estava em declínio antes do início do
cristianismo permanece.
19
“Non enim iura dicenda sunt vel putanda iniqua hominum constituta, cum illud etiam ipsi ius esse dicant,
quod de iustitiae fonte manaverit, falsumque esse, quod a quibusdam non recte sentientibus dici solet, id esse
ius, quod ei, qui plus potest, utile est” (AGOSTINHO, De civ. Dei, XIX, 21, 1 – PL 41).
54 • Com Agostinho, e além dele
20
Segundo a historiadora estudiosa do pensamento de Cícero Claudia Beltrão da Rosa, Cícero segue a
mesma tônica de Aristóteles em sua “Política”, designadamente, que existe uma relação complementar
entre a forma de governo e as leis que serão organizadas na ordenação dessa forma de governo (Cf.
ROSA, In. ARAÚJO, 2010, p. 37). Ou seja, as leis não só são determinadas pela forma de governo, como
também são a expressão dessa forma de governo, de maneira que não é possível termos o mesmo
ordenamento jurídico em uma monarquia e em uma democracia.
Ricardo Evangelista Brandão • 57
REFERÊNCIAS
AGUSTÍN, San. Del libre albedrío. In: Obras completas de San Agustín. ed. bilingüe.
Trad. introd. y notas de P. Evaristo seijas. Madrid: La Editorial Católica / BAC, 1963.
tomo III, p. 190-411.
AGUSTÍN, San. Escritos antimaniqueos (2o): Contra Fausto. In: Obras completas de san
Agustín. Ed. bilingue. Trad., introd. y notas de Pio de Luis. Madrid: La Editorial
Catolica/BAC, 1993. Tomo XXXI, 834 p. (livro)
AGUSTÍN, San. La Ciudad de Dios. In: Obras completas de San Agustín. Trad., introd. y
notas de Jose Moran. ed. bilíngue. Madrid: La Editorial Católica / BAC, 1958, vol. XVI,
Libros I-XII.
AGUSTÍN, San. La Ciudad de Dios. In: Obras completas de San Agustín. Trad., introd. y
notas de Jose Moran. ed. bilíngue. Madrid: La Editorial Católica / BAC, 1958, vol. XVII,
Libros XIII-XXII.
AGUSTÍN, San. Epistola 138. In: AGUSTÍN, San. Cartas (2o): Ep. 124 – 187. In: Obras
completas de san Agustín. Ed. bilingue. Traducion, introducion y notas de Lope
Cilleruelo. Madrid: La Editorial Catolica/BAC, 1987. Tomo XIa, p. 98.
CAPANAGA, Victorino. Cuadro Cronológcio de las Obras de San Agustin. In: Obras
completas de San Agustín. 6. ed. bilíngüe.Trad. introd. y notas de Victorino
Capanaga. Madrid: La Editorial Católica / BAC, 1994. tomo I, p. 384-387.
MARCELINO. Epistola 136. In: AGUSTIN, San. Cartas (2o): Ep. 124 - 187. In: Obras
completas de san Agustín. Ed. bilingue. Traducion, introducion y notas de Lope
Cilleruelo. Madrid: La Editorial Catolica/BAC, 1987. Tomo XIa, p. 98.
ROSA, Claudia Beltrão. O vir bonus e a prudência civilis em Marco Túlio Cícero. In:
ARAÚJO, Sônia Regina Rebel de; ROSA, Claudia Beltrão; JOLY, Fábio Duarte (Org.).
Intelectuais, poder e política na Roma Antiga. Rio de Janeiro: FAPERJ, 2010.
TURIENZO, Saturnino Ávarez. SAN AGUSTÍN: La moral y La política. In: OROZ RETA,
José. El pensamiento de San Agustín pera el hombre de hoy. Valencia: EDICEP, 1998.
tomo I, p. 673-691.
3
INTERIOR INTIMO MEO: INTERIORIDADE
E VERDADE EM SANTO AGOSTINHO DE HIPONA
Antonio Pereira Júnior 1
“Tu estavas mais dentro de mim do que a minha parte mais íntima. E eras
superior a tudo que eu tinha de mais elevado” (AGOSTINHO, 1997, p. 74).
INTRODUÇÃO
1
Doutor em Filosofia. Professor da Universidade do estado do Rio Grande do Norte (UERN). E-mail:
pereirajunior@uern.br
60 • Com Agostinho, e além dele
2
“Agustín comprendió en la año que precedió a su conversión, leyendo a los neoplatónicos, que existía un
mundo espiritual y que para llegar a él debía usar el camino de la interioridad. Esto significa entrar dentro de
nosotros mismos, pero no para quedarse ahí, sino para usar el corazón como un trampolín para elevarnos
hasta Dios”
Antonio Pereira Júnior • 63
Para que fique claro quais coisas são dignas de fruição e quais são
dignas de serem utilizadas, Boehner e Gilson elucidam: “do que
podemos fruir? Em derradeira instância, só Deus, isto é, a Divina
Trindade (...) Agostinho não se cansa de repetir: não se deve fruir senão
de Deus” (BOEHNER e GILSON, 2012, p. 193, grifo nosso).Isto porque,
para Santo Agostinho, fruir significa aderir a um objeto, por amor a ele
próprio, enquanto usar/utilizar consiste em se servir de algo para
alcançar o objeto a ser fruído.Por conseguinte, aderir a algo que não seja
a Deus é enganar-se a si mesmo,depositando nos bens inferiores
(inferiora bona) a esperança de sua felicidade, o que para nosso ilustre
Pensador seria algo inconcebível.
O que se pretende afirmar é que a exterioridade, longe de servir de
obstáculo no itinerário de busca da Verdade, deve servir como
instrumento e meio de elevação da alma até Deus, uma vez que, segundo
a teoria da participação de Agostinho, todas as criaturas mantêm uma
espécie de vínculo ontológico com seu Criador, fonte de todas as suas
qualidades e atributos. Assim, se qualquer coisa sensível é considerada
bela é porque mantém participação direta com a Beleza Suprema, isto é,
Deus.
Dessa forma, é possível, por meio da contemplação das criaturas,
ultrapassara malha das coisas sensíveis e atingir às coisas
inteligíveis/espirituais. Em citação, afirma o aclamado Bispo: “por meio
das coisas criadas contemplemos as invisíveis de Deus (Rm 1, 20), isto é,
por meio dos bens corporais e temporais, procuremos conseguir as
realidades espirituais e eternas” (AGOSTINHO, 2002, p. 45). E assim, com
Antonio Pereira Júnior • 65
3
Cf. livros VII e VIII das Confissões.
66 • Com Agostinho, e além dele
Criador em sua alma. Fato que pode ser constatado já no primeiro livro
das suas Confissões: “fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração,
enquanto não repousa em ti” (AGOSTINHO, 1997, p. 19).
Ora, a inquietude de coração não seria uma realidade em Agostinho
se, de alguma forma, antes não houvesse, pelo menos, resquício de algo
no interior de sua alma que fosse causa-motor dessa inquietação. Mas
que força (uis) seria esta, capaz de provocar em Agostinho o ímpeto de
uma busca tão intensa e ardorosa? Ele mesmo nos responde: “o meu
peso é o amor (pondus meum amor meus); por ele sou levado para onde
sou levado” (AGOSTINHO, 1997, p. 411, destaque nosso).
O Amor é o fundamento ontológico de todo o sistema filosófico de
Santo Agostinho. É ele a força que impulsiona a vontade (voluntas) do
homem em direção ao objeto do seu desejo. Todavia, mesmo para amar
é preciso antes conhecer aquilo que será objeto desse amor. Em relação
a isso, Agostinho, referindo-se à beatitude, afirma: “não a amariam
(beata vita) se dela não tivessem alguma noção (notitia) na memória”
(AGOSTINHO, 1997, p. 296, destaque nosso).
Aplicando essa máxima à busca do Deus-Verdade de Agostinho,
temos que, para ele, necessariamente, deve existir algum tipo de
conhecimento à priori desse Deus-Verdade já impresso na memória do
homem, de forma que este possa daquele se recordar, para assim amá-
Lo; consequentemente, desejá-Lo e,iniciar a sua busca.Aqui, é possível
perceber a mescla da gnosiologia agostiniana com sua doutrina da
interioridade. O conhecimento torna-se, em Agostinho, pressuposto
indispensável no caminho que leva em direção a si mesmo e,
consequentemente, à Verdade.
Antonio Pereira Júnior • 67
4
Cf. De TrinitateX, 2, 4.
68 • Com Agostinho, e além dele
5
Cf. Conf. X, 24, 35; 25, 36.
6
“Conhece-te a ti mesmo, conhece o teu Deus”.
7
Cf. Conf. III, 6, 11
72 • Com Agostinho, e além dele
8
Conf. I, 1, 1.
Antonio Pereira Júnior • 73
pois, com efeito, existe uma lembrança viva de Deus na alma humana
e,conforme mencionado, o local onde acontece essa atividade
(recordatio) é nessa região ou, segundo alguns comentadores, na
memoria Dei. Todavia, convém ressaltar que essa memória metafísico-
ontológica do homem não deve ser entendida como um espaço
reservado para habitação do Ser Absoluto de Deus, mas como o ato
próprio de recordar o que é ali operado.
Fato é que, assim como o conhecimento dos objetos inteligíveis, o
conhecimento de Deus não é apreendido da mesma forma como se dá
com o conhecimento das coisas sensíveis 9, mas através de uma espécie
de recordação daquilo que, de alguma forma, já se encontra presente de
modo implícito no homem interior (in interiorem hominem). Nesse
sentido, é possível notar certa “aproximação” da gnosiologia
agostiniana com a doutrina platônica da reminiscência, a qual afirma
que todo e qualquer tipo de conhecimento não é senão uma recordação
da alma de uma experiência vivida no mundo das Ideias 10.
Dada a incompatibilidade de alguns pontos da teoria da
reminiscência platônica com a doutrina cristã, Santo Agostinho não
pode assenti-la em sua totalidade; ele admite apenas partes desta teoria
e estabelece, então, que o conhecimento apriorístico de Deus é resultado
daquela “marca invisível” deixada por Ele no coração do homem (in cor
9
Em Agostinho, o processo de construção do conhecimento em nível sensível se dá da seguinte forma:
os sentidos exteriores, ao entrarem em contato com o objeto sensível, sofrem modificações do estado
em que se encontram, fazendo com que a alma – que está presente em todo o corpo – perceba tal
alteração e reproduza na mens, ou no pensamento, a sensação daquele objeto. Tal sensação é
transformada, imediatamente, em uma imagem semelhante ao objeto (fantasma ou fantasia). Com isso,
o sentido interior apreende o conhecimento que foi gerado a partir dessa imagem e o retém na memória
para que ele seja acessado, por meio da lembrança, sempre que for preciso.
10
Cf. Mênon (79, e7–86, c6).
74 • Com Agostinho, e além dele
11
Que San Agustín no ha ensenado a reminiscencia platónica, es evidente, puesto que, como se ha visto,
descubrimos la verdad no en los recuerdos conservados de tiempo atrás en el alma, sino en la luz divina
perennemente presente en ella. Al principio echó mano de expresiones platónicas, pero más tarde limitó su
sentido e lo dejó reducido inequívocamente a su propia doctrina de la iluminación. Ver los objetos a la luz de
Dios no implica la memoria platónica del pasado, sino la memoria agustiniana del presente, que es cosa
completamente distinta.
12
Conf. III, 6, 11.
76 • Com Agostinho, e além dele
Acima destes meus olhos e acima de minha própria inteligência, vi uma luz
imutável. Não era essa luz vulgar e evidente a todos com os olhos da carne,
ou uma luz mais forte do mesmo gênero. Era como se brilhasse muito mais
clara e tudo abrangesse com sua grandeza. Não era uma luz como esta, mas
13
Mens: parte superior da alma humana.
Antonio Pereira Júnior • 77
totalmente diferente das luzes desta terra. Também não estava acima de
minha mente como o óleo sobre a água nem como o céu sobre a terra, mas
acima de mim porque ela me fez, e eu abaixo porque fui feito por ela. Quem
conhece a verdade, conhece esta luz (AGOSTINHO, 1997, p. 190).
elevada (superior)que todas as criaturas, uma vez que foi ela mesma
quem as criou.
Para finalizar, vale a pena ainda ressaltar a importância que a
virtude da humildade (virtus humilitatis) desempenha nesse árduo
caminho de busca da Verdade. É como se a prática desta virtude
conferisse ao homem as credenciais necessárias para a contemplação da
Verdade, que habita em seu próprio interior. Corroborando com esse
pensamento, escreve Ana Ferreira em sua tese de doutorado: “Cristo
indica a via da humildade e do amor para o reconhecimento da verdade”
(FERREIRA, 2012, p. 210).Seu argumento pode ser confirmado em alguns
textos agostinianos como, por exemplo: “Eu não tinha a humildade
suficiente para possuir o meu Deus” (AGOSTINHO, 1997, p. 197),
deixando claro com isso a necessidade da prática dessa virtude em todo
esse itinerário de busca, apreensão e contemplação da Verdade.
Por conseguinte, o encontro do Santo Doutor com a Verdade que
tanto o inquietou foi descrito de forma poética e apaixonante no livro X
das Confessiones, em uma das passagens mais belas de toda a sua Obra:
Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis
que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora! Eu,
disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas. Estavas
comigo, mas eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti as tuas
criaturas, que não existiriam se em ti não existissem. Tu me chamaste, e teu
grito rompeu a minha surdez. Fulguraste e brilhaste e tua luz afugentou a
minha cegueira. Espargiste tua fragrância e, respirando-a, suspirei por ti.
Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tu me tocaste, e agora estou
ardendo no desejo de tua paz (AGOSTINHO, 1997, p. 299).
Antonio Pereira Júnior • 79
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus,
1997 (Coleção Patrística, v. 10).
AGOSTINHO, Santo. A Trindade. Trad. Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 1984
(Coleção Patrística, v. 7).
AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. Trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo:
Paulus, 2002 (Coleção Patrística, v. 19).
AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus,
2002 (Coleção Patrística, v. 17).
GILSON, Etienne. Introduction a L’étude de Saint Augustin.3. ed. Paris: J. Vrin, 1949.
PEÑA, Angel, P. San Agustín de Hipona: el buscador de la verdad. Lima, Perú: [s.n.], 2011.
INTRODUÇÃO
1
Doutor em Ciências Humanas pela UFSC e Professor do IFPE. E-mail: mcastel.rego@gmail.com
84 • Com Agostinho, e além dele
2
Agostinho não se opõe à realidade social e jurídica do Império romano, onde o cidadão tem o dever
cívico de procriar filhos, através dos quais oferece braços e inteligência para o Império. A legislação
88 • Com Agostinho, e além dele
bens, quando nos são necessários; mas é melhor não os desejar porque
mais perfeitamente os não queremos, quanto é menor a necessidade que
deles temos” (AGOSTINHO, 2007, p.41).
Outro bem a ser destacado por Agostinho no matrimônio é a mútua
fidelidade, tema fundamental da ética matrimonial. A respeito desse
bem, Hamman,ao estudar a cultura no norte da África do tempo de
Agostinho,vem em nosso auxílioa o descrever a celebração do
casamento: “O ritual consistia na troca dos consentimentos, após o
juramento de fidelidade” (HAMMAN, 1989, p.67).Entretanto, não era
difícil constatar um desrespeito à fidelidade, embora desejada e
valorizada. Nas suas Confissões, Agostinho reconhece o problema a
partir de sua própria casa ao lembrar de Mônica, sua mãe, como uma
esposa-modelo cristã, e de seu pai, Patrício, um pagão conhecedor do
Direito do fórum e que só abraçou a instrução de Cristo no final da vida:
demográfica e matrimonial impulsionava a procriação como chave para a grandeza de Roma. O Bispo,
porém, vê no celibato cristão voluntário um passo significativo rumo à escatológica Cidade de Deus.
Marlesson Castelo Branco do Rêgo • 89
Como de muitas almas há de formar-se a Cidade dos que têm uma só alma
e um só coração em Deus, [...], por isso o sacramento do matrimônio está
restrito a um só marido e uma só esposa, [...].Assim como o mistério
encerrado na pluralidade dos matrimônios daquele tempo foi figura da
multidão de fiéis de todas as nações, que na terra se submeteriam a Deus,
que será realizada futuramente na única Cidade celestial (Ibidem, 18, 21).
3
(Nos autem nullo dubitamos, […] crescere et multiplicari et implerem terram donum esse nuptiarum, quas
Deus ante peccatum hominis ab initio constituit, creando masculum et feminam, qui sexus evidens utique in
carne est. [...], magnae absurditatis est reluctari).
4
No termo matrimonium, cuja raiz é mater (mãe), está implícito o aspecto da procriação posto em foco
aqui devido ao debate contra o pelagianismo. Porém, dado o caráter precípuo dos escritos paulinos em
Agostinho, é razoável considerar a concepção estóica do matrimônio recepcionada pelo apóstolo Paulo:
“A mulher não dispõe do seu corpo, mas é o marido quem dispõe. Domesmo modo, o marido não
dispões do seu corpo, mas é a mulher quem dispõe” (I Cor., 7,4). Vê-se aqui o núcleo ético da concepção
monogâmica do matrimônio que se encontra nos Fragmentos de Musônio Rufo (século I d.C.): “O
elemento fundamental do matrimônio é a comunhão de vida e a geração de filhos. Marido e esposa
juntam-se para agirem juntos, para pôr tudo em comum, de modo que nenhum deles tem algo de seu,
nem mesmo o próprio corpo”. O estóico, como o apóstolo, não considera a função reprodutiva como
94 • Com Agostinho, e além dele
suficiente para definir o matrimônio, visto que filhos podem ser gerados fora do matrimônio, à
semelhança dos animais. Logo, a essência do matrimônio consiste nos laços afetivos e na comunhão de
vida que podem existir entre um homem e uma mulher e não no ato da procriação. Afinal, de que serve
a procriação se não houver harmonia no cosmos e na cidade?
5
([…], quo malo libidinis bene utitur ad filios procreando pudicitia coniugalis.)
Marlesson Castelo Branco do Rêgo • 95
tratado Sobre a Graça de Cristo e sobre o Pecado Original (De Gratia Christi
et Peccato Originali):
6
(Obesset ista carnis concupiscentia, etiam tantummodo quod inesset, nisi peccatorum remissio sic
prodesset, ut quae in eis est: et nato, et renato, nato quidem et inesse et obesse, renato autem inesse quidem,
sed non obesse possit. In tantum autem obest natis, ut nisi renascantur, nihil possit prodesse si nati sunt de
renatis).
7
Segundo a exegese bíblica de Agostinho, no tratado De natura et gratiacontra Pelágio, “carne” não
significa a substância física, que é boa; “carnal” é a condição de caducidade do ser humano afastado de
Deus. Quem vive na “carne” põe tudo a serviço dos próprios interesses e desejos, seguindo o egoísmo,
que é a fonte do “pecado original”.
Marlesson Castelo Branco do Rêgo • 97
[...] A concupiscência da carne tem sido vencida no batismo não para que
não exista, mas para que não se impute como pecado. Ainda que já tenha
sido dissolvida sua culpa, permanece até que seja sanada toda nossa
enfermidade quando, progredindo a renovação do homem interior de dia
em dia, o homem exterior se vista de incorruptibilidade. [...] Por enquanto,
até que se cumpra o que segue, Ele sana todas tuas debilidades, o que redime
da corrupção tua vida, a concupiscência carnal permanece no corpo [...], e
temos ordem de não obedecer a seus viciosos desejos de cometer coisas
ilícitas para que o pecado não reine em nosso corpo mortal. Esta
concupiscência, por outro lado, diminui diariamente nos que progridem na
virtude e nos continentes; muito mais quando se chega à velhice. Sem
dúvida, nos que se escravizam viciosamente a ela adquire tanta força que,
ordinariamente, não deixa de comportar-se com toda falta de vergonha e
indecência, inclusive na idade em que os membros e as partes do corpo
destinadas a esta obra têm perdido seu vigor (mat. y conc., I, 24, 28).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
AGOSTINHO, Santo. Dos bens do matrimônio. (Coleção PATRÍSTICA. v. 16). ed. 2.Trad.
de Vicente Rabanal. São Paulo: Paulus, 2007.
AGUSTÍN, San. Las retractaciones. (Coleção San Agustín OBRAS COMPLETAS VERSIÓN
ESPAÑOLA). Disponível em <htpp://www.augustinus.it/latino/index.htm>. Acesso
em 13 jan 2016.
100 • Com Agostinho, e além dele
AGUSTÍN, San. Retractationum libri duo. (Coleção S. Aurelli Augustini OPERA OMNES:
PATROLOGIAE ET ELENCHUS). Disponível em <htpp://www.augustinus.it/latino/
idex.htm>. Acesso em 13 jan 2016.
PLATÃO. As leis. ed. 2. Trad. de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2010.
INTRODUÇÃO
1
Doutorando em Sociologia (PPGS/UFPE, nas linhas Cultura Política, Identidades Coletivas e
Representações Sociais / Teoria e Pensamento Social), atual bolsista da FACEPE. Mestre em Filosofia
(PPGFIL/UFPE, nas linhas Ética e Política / Fenomenologia e Hermenêutica), ex-bolsista da CAPES.
Especialista em Ensino de Filosofia (Contemporâneos/FAINTVUSA). Bacharel em Filosofia (UFPE) e
Ciências Sociais (UFRPE). E-mail: maia.tito.professor@gmail.com
102 • Com Agostinho, e além dele
judeu. Mas antes, faz-se importante uma breve discussão mais geral
sobre o filossemitismo e algumas de suas principais nuances.
e para a humanidade como um todo. Sob essas suas novas lentes sobre
a “questão judaica”, numa unidade compreensiva com a história cristã,
aponta para o passado errante dos judeus e o descumprimento da Lei de
Deus – tensões relacionais com o judaísmo de seu tempo pois negaram
e condenaram a cristo e sua mensagem – e as esperanças para o futuro
da cristandade e dos judeus em um projeto divino de história que levaria
a uma salvação comum (cf. FREDRIKSEN, 2001; 2010; VAN OORT, 2013).
Tal perspectiva, manifesta de forma expressa no pensamento
agostiniano mais maduro, com maior ênfase na “Cidade de Deus” (cf.
AGOSTINHO, 1991; 1995), se coloca em clara oposição às justificativas
filosófico-teológicas, até então válidas, para práticas políticas dos
cristãos contra os judeus e sua fé. A difusão dessas suas ideias implicou,
para as comunidades judaicas, num “alivio”, um “respiro”, um
destensionamento e a configuração, ao menos momentânea, de um
novo e mais brando status social, com a novidade de outro parâmetro
relacional (de sociabilidade e interação) da cristandade ocidental que,
com Agostinho, começou a ser difundido e logo praticado, com relação
aos semitas: a tolerância.
Essa “novidade” agostiniana viria a possibilitar aos judeus, às suas
comunidades e aos adeptos e praticantes de sua religião, uma certa
segurança mais efetiva e vias de sobrevivência menos precárias nas
regiões e jurisdições cristãs e imperiais, pelo menos, nos tempos antigo
tardio e do alto medievo (séculos IV ao V d.C.).
E, antes de aprofundar a reflexão sobre o papel dos judeus na
filosofia/teologia da história de Agostinho, importa ressaltar que
estudiosos do assunto, em um viés de discussão sobre a historiografia e
Tiago Macedo Bezerra Maia • 121
À GUISA CONCLUSIVA
Por isso, foi feita a sugestão de, com relação ao tema, posicioná-lo
também aqui, na perspectiva de um pensador “avant la lettre" (como em
grande parte de suas reflexões à frente de seu tempo) e precursor, em
mais esse ponto de suas reflexões, a “Questão Judaica”, como talvez o
mais avançado e “atual” dentre os filósofos e os teólogos da Patrística.
Agostinho tinha consciência da situação caótica vivida e o desamparo
experienciado pelos judeus de seu tempo, bem como da dura realidade
que a doutrina da Igreja vigente os expunha.
O Bispo Africano não poupou esforços para lhes conferir um outro
lugar de protagonismo essencialmente necessário, inserindo-os na sua
ideia e sentido de história cristã, possibilitando-lhes, com isso, novas
maneiras de se relacionar e conviver com os cristãos em uma tolerância
político-religiosa e sociocultural que viria a ser praticada nos cinco
séculos seguintes como a doutrina “católica” vigente sobre os judeus e
o judaísmo durante a Alta Idade Média.
REFERÊNCIAS
AGOSTINHO, Santo. A cidade de Deus: contra os pagãos. 3. ed. Petrópolis: Vozes; São
Paulo: Federação Agostiniana Brasileira, 1991. (2 v.).
AGUSTÍN, Santo. Tratado contra los judios. Madrid: La Editorial Católica - Biblioteca
de Autores Cristianos (BAC), 1990.
BARON, Salo Wittmayer. Historia social y religiosa de pueblo judío. Buenos Aires:
Paidós, 1968.
Magisterium of the Catholic Church vis-à-vis Zionism between 1948 and 2005.
Dissertation (Master of Philosophy). University of Bristol, Bristol, 2021.
BOEHNER, Philoteus. GILSON, Étienne. História da filosofia cristã: desde as origens até
Nicolau de Cusa. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1991.
BROWN, Peter. Santo Agostinho: Uma biografia. Rio de Janeiro: Record, 2005.
COSTA, Marcos Roberto Nunes. Santo Agostinho: um gênio intelectual a serviço da fé.
Porto Alegre: Edipucrs, 1999.
COSTA, Marcos Roberto Nunes. 10 lições sobre Santo Agostinho. Petrópolis: Vozes,
2012.
COHEN. Daniel. Towards a history of philo-semitic’ Europe since 1945. Europe Now, 2
nov. 2017.
D’COSTA, Gavin. Vatican II: catholic doctrines on jews and muslims. Oxford: Oxford
University Press, 2014.
Tiago Macedo Bezerra Maia • 131
D’COSTA, Gavin. Developing the conversation: A Divine Messiah and a Catholic Zionism.
Pro Ecclesia, Vol. XXVII, No. 4, 2018.
D’COSTA, Gavin. Catholic doctrines on the jewish people after Vatican II. Oxford:
Oxford University Press, 2019.
D’COSTA, Gavin. Catholic Zionism the Jewish State is a sign of God's fidelity. First
Things, Jan., 2020.
FITZGERALD, Allan (Org.). Diccionario de San Augustín. Madrid: Monte Carmelo, 2001.
FREDRIKSEN, Paula. Augustine and the jews: a christian defense of jews and judaism.
New Haven/London: Yale University Press, 2010.
GILSON, Étiene. O espírito da filosofia medieval. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
GILSON, Étienne. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
GILSON, Étienne. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. 2. ed. São Paulo: Discurso
Editorial; Paulus, 2010.
LETTIERI, Gaetano. Il senso della storia in Agostino d’Ippona. Roma: Edizione Borla,
1988.
LOYN, Henry. Dicionário da Idade Média. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1991.
MAIA, Tiago Macedo Bezerra; COSTA, Marcos Roberto Nunes. Ética e justiça social em
Basílio Magno e João Crisóstomo. Symposium. Recife, v. 11, 2007.
MAIA, Tiago Macedo Bezerra. COSTA, Marcos Roberto Nunes. Os fundamentos da Lei,
da Justiça e do Direito na Tradição Greco-Romana. Ágora Filosófica. Recife, v. ano
5, n. 2, 2005.
MERKLEY, Paul Charles. Christian attitudes towards the State of Israel. Montreal &
Kingston: McGill/Queens University Press, 2001.
MIETHKE, Jurgen. Las ideas políticas de la Edad Media. Buenos Aires: Editorial Biblos,
1993.
SZOCIK, Konrad; WALDEN, Philip L. The attitude of the Catholic Church toward the
jews: an outline of a turbulent history. Koninklijke Brill, n. 64, 2017.
VAN OORT, Johannes. Jerusalem and Babylon: a study of Augustine’s City of God and
the sources of his Doctrine of the Two Cities. Leiden/Boston: Brill Academic
Publishers, 2013.
INTRODUÇÃO
[...] a paisagem sonora moderna tem estimulado o desejo por ruído. Com o
aumento dos níveis sonoros nos ambientes de trabalho e nas ruas, também
foram procurados níveis mais altos de sons, tanto nas músicas como nas
atividades recreativas (SCHAFER, 2009, p. 16).
1
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba. Professor efetivo na Secretaria de Estado da
Educação e da Ciência e Tecnologia (SEECT) da Paraíba e professor substituto no Departamento de
Filosofia da Universidade Estadual da Paraíba - Campina Grande. E-mail para contato:
janduiomi@hotmail.com
Janduí Evangelista de Oliveira • 135
2
O pé métrico é o conjunto de sílabas em relação numérica entre si.
3
O ritmo, chamado também de número, é a combinação dos pés que permite a união entre si sem um
limite definido.
138 • Com Agostinho, e além dele
4
Para aprofundamento dessa questão, consultar Livro XI das Confissões de Agostinho.
Janduí Evangelista de Oliveira • 139
5
“Música es la ciencia de modular bien” (AGUSTIN, La música, I, II, 2).
6
“La música es el arte del movimiento ordenado, Y se puede decir que tiene movimiento ordenado todo
aquello que se mueve armoniosamente, guardadas las proporciones de tiempos e intervalos (ya, en efecto,
deleita, y por esta razón se puede denominar ya modulación sin inconveniente alguno); pero puede ocurrir,
por otra parte, que esa armonía y proporción cause deleite cuando no es necesario. Por ejemplo, si alguien
que canta con voz dulcísima y danza con gracia quiere con ello causar diversión, cuando la situación reclama
seriedad, no emplea bien, por cierto, la modulación armoniosa; es decir, puede afirmarse que tal artista
emplea mal, o sea, inconvenientemente, ese movimiento, que es ya bueno por el hecho de que es armonioso
(AGUSTIN, La música, I, III, 4, 1986, p.78-9).
7
Mal modulada, carente de harmonia e que não fala à interioridade humana.
140 • Com Agostinho, e além dele
são inatas, (Cf. AGOSTINHO, Sobre a música, I, VI, 12, 1986, p.95) 8.Ao que
acresce depois: “Vamos chamar, portanto, se concordamos, racional
para os movimentos que são mensuráveis uns aos outros; irracional, por
outro lado, aqueles que carecem dessa medida” (AGOSTINHO, Sobre a
música, I, IX, 15, 1986, p.99) 9. Por isso, toda medida e proporção se
antepõem com razão ao excesso e ao ilimitado, visto que os que não
guardam medida e proporção não se unem entre si por nenhuma razão.
Por conseguinte, haverá maior harmonia nos movimentos racionais,
que são iguais entre si, que entre aqueles que não guardam a medida
nem a proporção. Por conseguinte, até mesmo o prazer sensível não
ocorre em qualquer harmonia, pois os sentidos são mais abertos a
determinadas combinações harmônicas, melódicas e rítmicas.
Portanto, os vestígios musicais encontrados na mente e nos objetos
sensíveis torna possível o processo que vai da beleza terrena até a
Suprema beleza. Por isso, os ritmólogos e metrólogos da Antiguidade
insistiam que o ritmo deve ter um limite claro, determinado e concreto
de maneira que a duração do movimento não seja muito longa. Todas
essas relações se fazem visíveis porque a preocupação com a unidade,
chave da arte europeia, sempre esteve presente na obra de Agostinho.
Assim, o músico deve decidir pela razão, a duração de cada sílaba
no verso e distribuí-la convenientemente, uma vez que a medida das
palavras deve chegar aos ouvidos, conforme o ritmo requer
8
“Por esta razón explica ya, si te place, esa disciplina de tan alto rango que ya no me puede parecer un arte
vulgar” (AGUSTIN, La música, I, VI, 12, 1986, p.95).
9
“Llamemos, por tanto, si estamos de acuerdo, racionales a los movimientos que son entre sí mensurables;
irracionales, por otro lado, los que carecen de esa medida” (AGUSTIN, La música, I, IX, 15, 1986, p.99).
Janduí Evangelista de Oliveira • 141
naturalmente. Assim agindo, ele fará com que os sons dos versos
percebidos pelos ouvidos provoquem o prazer que lhe é devido.
Porquanto, não são propriamente os sons que causam o deleite da alma,
mas a ordem na qual estão submetidos.
Por isso, conforme se leu no Livro V do Sobre a musica, não basta
unicamente o peso da autoridade, na música o que conta é o peso e a
certeza da razão. Consequentemente, o que encanta o ouvido é
precisamente a simetria harmoniosa na qual a música é feita. Porque a
razão aponta para o que é essencial no ordenamento das partes. Neste
domínio, escreve:
A própria razão serviu como um guia seguro, porque, como não há nada
melhor que a igualdade e você tem que procurá-la na divisão, se não puderes
conseguir, somos forçados a buscar sua aproximação, para não ficar
excessivamente longe dela (AGOSTINHO, Sobre a música,V, IV, 7, 1986,
p.255) 10.
10
“La razón misma te ha servido de guía segura. Porque, como nada hay mejor que la igualdad y hay que
buscarla en la división, si no se pudiere conseguir estamos obligados a buscar su aproximación para no
alejarnos excesivamente de ella” (AGUSTIN, La música, V, IV, 7, 1986, p.255).
11
“[…] con toda nuestra finura posible, lleguemos a esas íntimas moradas donde ella está libre de toda forma
corpórea” (AGUSTIN, La música, V, XIII, 28, 1986, p.283).
142 • Com Agostinho, e além dele
ouvidos (Sobre a música, VI, II, 3, 1986, p.289) 12. Mas, essa potência
natural que atua como uma força decisiva nos ouvidos, não deixa de
existir no silêncio nem nos introduz o som, mas é captada por ele (o
ouvido) como digno de aprovação ou reprovação.Para tanto, duas coisas
são necessárias: primeiramente que os ritmos que estão no próprio som
podem existir sem aqueles que estão no próprio ato de ouvir, enquanto
os segundos não podem existir sem aqueles primeiros. Para mais, é
necessário ainda considerar um terceiro gênero de ritmo, aquele que
está na própria atividade do recitador.
É manifesto que, esses ritmos estão em uma certa atividade do espírito; uma
atividade que, uma vez que não produz som ou afeta os ouvidos, mostra que
esse gênero pode existir sem esses dois, dos quais um está no som e o outro
no ouvinte quando ouve (AGOSTINHO, Sobre a música, VI, III, 4, 1986,
p.290) 13.
12
“Por tanto, aquella potencia por la que aceptamos los sonidos armoniosos y rechazamos los estridentes,
hace que el verso acaricie con un mismo género rítmico los oídos” (AGUSTIN, La música, VI, II, 3, 1986, p.289).
13
“Es cosa manifiesta que estos ritmos están en una cierta actividad del espíritu; una actividad que, como no
produce ningún sonido ni pone afección alguna a los oídos, muestra que este género puede existir sin aquellos
dos, de los que uno está en el sonido y el otro en el oyente cuando oye” (AGUSTIN, La música, VI, III, 4, 1986,
p.290).
144 • Com Agostinho, e além dele
14
“[…] tiene él una belleza propia de su modo de ser, y por esto mismo hace suficientemente estimable la
dignidad del alma, y ni el castigo ni la enfermedad de ésta logró despojarle del legado de una cierta belleza”
(AGUSTIN, La música, VI, IV, 7, 1986, p.295).
“Llámense, por tanto, los primeros ritmos números de juicio; los segundos, números proferidos; los terceros,
15
números entendidos; los cuartos, números recordables; los quintos, números sonoros” (Cf. AGUSTIN, La
música, VI, VI, 16,1986, p.308).
16
“Así, pues, está claro que estos números, que ocupan alta presidencia por su rango de jueces, no están
ligados por la duración de tiempos” (AGUSTIN, La música, VI, VII, 17,1986, p.310)
Janduí Evangelista de Oliveira • 145
que excede esses espaços, não podem ser abarcado por ele para emitir seu
julgamento (AGOSTINHO, Sobre a música, VI, VII, 18, 1986, p.310) 17.
Há também outra indicação pelo que podemos perceber, penso eu, que um
movimento presente da alma já existiu alguma outra vez em nós, ao que
vale a pena dizer como reconhecê-lo, quando sob uma espécie de luz
interior comparamos os movimentos recentes de sua atividade, na qual nós
encontramos no momento da lembrança, com aqueles outros movimentos
memoráveis, já mais sossegados; e essa classe de conhecimento é
reconhecimento e recordação (AGOSTINHO, Sobre a música, VI, VIII, 22, 1986,
p.317-8) 18.
17
“[…] estos números de juicio están contenidos en ciertos límites de duraciones temporales, que no pueden
sobrepasar cuando juzgan, y todo cuanto excede estos espacios, no pueden ellos abarcarlo para emitir su
juicio” (AGUSTIN, La música, VI, VII, 18, 1986, p.310).
18
“Hay también otro indicio por el que podemos percibir, pienso yo, que un movimiento presente del alma ha
estado ya alguna otra vez en nosotros, lo que vale tanto decir como re-conocerlo, cuando bajo una especie
de luz interior comparamos los movimientos recientes de su actividad, en la que nos hallamos en el momento
de recordar, con aquellos otros movimientos recordables, ya más sosegados; y esta clase de conocimiento es
el reconocimiento y la recordación” (AGUSTIN, La música, VI, VIII, 22, 1986, p.317-8).
146 • Com Agostinho, e além dele
Mas eu penso que, quando se canta o verso que nós temos citado: Deus
creator omnium (Deus, criador de todas as coisas), estamos ouvindo-o por
meio de números entendidos, reconhecemos por aqueles da memória,
pronunciamos pelos proferidos e sentimos prazer graças àqueles de
julgamento; e eu não sei através de que outros números nós o apreciamos;
e partindo desse prazer experimentado, que é como uma decisão
espontânea do número de julgamentos, emitimos sobre o dito prazer uma
sentença muito mais firme, de acordo com essas harmonias mais ocultas
(AGOSTINHO, Sobre a música, VI, IX, 23, 1986, p.320) 19.
19
“Mas yo pienso que, cuando se canta el verso que nosotros hemos citado: Deus creator omnium (Dios,
creador de todas las cosas), lo estamos oyendo por medio de los números entendidos, lo reconocemos por los
de la memoria, lo pronunciamos por los proferidos y sentimos placer gracias a los de juicio; y no sé a través
de qué otros números lo valoramos; y partiendo de ese placer experimentado, que es como una decisión
espontánea de los números de juicio, emitimos sobre dicho placer una sentencia mucho más firme, de
acuerdo con esas armonías más ocultas” (AGUSTIN, La música, VI, IX, 23, 1986, p.320).
Janduí Evangelista de Oliveira • 147
E se, com razão, nos havia parecido que, a sensação de prazer não estivesse
impregnada por si mesmo de certas harmonias, não poderia de modo algum
acomodar intervalos perfeitamente iguais e rejeitar os elementos confusos,
também pode parecer crucial que a razão, que prevalece sobre este prazer,
não pode ser de nenhum modo capaz, sem possuir harmonias mais
vigorosas, de julgar as harmonias que tem em si mesmo num grau inferior
(AGOSTINHO, Sobre a música, VI, IX, 24, 1986, p.322) 20.
20
“Y si con razón nos hubo parecido que si el sentido del placer no estuviese impregnado por sí mismo de
ciertas armonías, no podría acoger de ningún modo intervalos perfectamente iguales y rechazar los
elementos con-fusos, también puede parecer cosa cabal que la razón, que señorea sobre este placer, no pueda
ser de ningún modo capaz, sin poseer armonías más vigorosas, de juzgar las armonías que tiene bajo sí
misma en inferior grado” (AGUSTIN, La música, VI, IX, 24, 1986, p.322).
148 • Com Agostinho, e além dele
21
“[…] la razón por sí misma, en efecto, consideró en primer término en qué consiste la auténtica modulación,
y la vio con claridad encarnada en un movimiento libre y dirigido hacia el objeto de su belleza. […]. Por
último, consideró qué papel tendría el alma en la regulación, producción, percepción y retención de estas
cosas de las que ella misma es origen; y separó todos estos ritmos psicológicos de los ritmos corporales y
reconoció que ella misma no pudo observar todos estos datos, ni distinguirlos ni enumerarlos con exactitud
sin tener en sí misma ciertos ritmos, y sentenciando a manera de un juez, antepuso estos ritmos últimos a los
demás de inferior rango” (AGUSTIN, La música, VI, X, 25, 1986, p.323).
22
“Porque el placer es como el peso del alma. El placer, por tanto, orienta al alma: Pues donde esté tu tesoro,
allí estará también tu corazón; donde está el placer, allí también está el tesoro, y donde está el corazón, allí
la felicidad o la desgracia” (AGUSTIN, La música, VI, XI, 29, 1986, p.327).
Janduí Evangelista de Oliveira • 149
23
“Así, las cosas terrenas, subordinadas a las celestes, asocian los movimientos de su tiempo, gracias a su
armoniosa sucesión, por así decirlo, al Cántico del Universo” (AGUSTIN, La música, VI, XI, 29, 1986, p.327-8).
24
“[…] estos números de la razón destacan en belleza, y si nos separásemos de ellos por completo, cuando
nos inclinamos al cuerpo, los números proferidos no regularían a los números sensibles, que, a su vez, a través
de los cuerpos que ellos mueven, producen las bellezas sensibles de los tiempos; y así, saliendo al encuentro
de los números sonoros, se producen también los números entendidos; y la misma alma, al recibir todos estos
impulsos suyos, los multiplica, por así decirlo, dentro de sí misma y produce los números de la memoria; y esta
potencia del alma, que se llama memoria, es una gran ayuda en las complejísimas actividades de esta vida”
(AGUSTIN, La música, VI, XI, 31, 1986, p.329).
150 • Com Agostinho, e além dele
Porque ele era mais poderoso quando íamos atrás dele; e embora não
desapareça completamente, é certamente menor quando o detivemos, e
assim, por meio de distâncias seguras frente a qualquer tipo de movimento
lascivo, no qual o obscurecimento da essência da alma começa,
restabelecido o gozo das harmonias da razão, toda a nossa vida retorna a
Deus, dando ao corpo as harmonias da saúde, sem receber daí alegria: é o
que acontecerá quando o homem exterior for desfeito e apareça
transformado num estado melhor (AGOSTINHO, Sobre a música,VI, XI, 33,
1986, p.332) 25.
Pois, não vá pensar que é nas formas corporais, que, após um exame puro,
jamais ousará classificar como iguais, nem tão pouco nos intervalos dos
tempos em que parece que ignoramos se há um espaço, um pouco mais
longo ou mais curto que o necessário, que escapa à percepção (AGOSTINHO,
Sobre a música, VI, XII, 34, 1986, p.333) 26.
25
“Porque era más poderoso cuando íbamos tras él; y si bien no desaparece por completo, es ciertamente
menor cuando le ponemos freno, y de esta suerte, por medio de alejamientos seguros ante toda clase de
movimiento lascivo, en el que comienza el eclipse de la esencia del alma, restablecido el gozo hacia las
armonías de la razón, nuestra vida entera retorna a Dios, dando al cuerpo las armonías de la salud, sin recibir
de ahí alegría: es lo que acontecerá cuando se destruya el hombre exterior y aparezca su transformación en
un estado mejor” (AGUSTIN, La música, VI, XI, 33, 1986, p.332).
26
“Pues no vas a pensar que está en las formas corporales, que, tras un examen puro, jamás osarás calificar
de iguales, ni tampoco en los intervalos de los tiempos en los que parecidamente ignoramos si existe un
espacio, un poco más largo o más breve de lo preciso, que escape a la percepción” (AGUSTIN, La música, VI,
XII, 34, 1986, p.333).
Janduí Evangelista de Oliveira • 151
[...] coisas belas são apreciadas pela sua harmonia, na qual já temos
mostrado que a igualdade está sendo buscada ardentemente. Porque esta
não se encontra somente na beleza que concerne ao sentido da audição e
nem no movimento dos corpos, mas também nas formas visíveis
propriamente, nas quais a beleza já é mais comumente falada (Sobre a
música, VI, XIII, 38, 1986, p.339) 28.
Por isso, nos afastamos de tudo que é exagerado como sons muito
altos, assim como, daqueles demasiadamente suaves. É justamente por
27
“¿De dónde, pues, debe creerse que se comunica al alma algo eterno e inmutable, si no viene de Dios,
el único eterno e inmutable?” (AGUSTIN, La música, VI, XII, 36, 1986, p.336).
28
“[…] cosas bellas gustan por su armonía, en la cual ya hemos demostrado que se está buscando
ardientemente la igualdad. Porque ésta no se encuentra solamente en la belleza que concierne alsentido del
oído y en el movimiento de los cuerpos, sino también en las formas visibles mismas, en las que ya de un modo
más corriente se habla de belleza” (AGUSTIN, La música, VI, XIII, 38, 1986, p.339).
152 • Com Agostinho, e além dele
Dizer que há harmonia entre dois números é o mesmo que dizer de que
houve fascínio entre duas coisas a fins, logo, o que agrada os ouvidos
não é o som em particular, mas acima de tudo aquilo que ele representa,
ou seja, a Suprema beleza, a ordem e à proporção que há nele e que
também está presente na alma.
[...] a alma procura a estabilidade e eternidade, e uma que vez que nele não
encontra por causa da inferioridade de sua beleza culmina na mudança do
29
“Y donde hay igualdad o semejanza, allí hay armonía con su número, porque nada hay tan igual o
semejante que el uno comparado al uno” (AGUSTIN, La música, VI, XIII, 38, 1986, p.340).
Janduí Evangelista de Oliveira • 153
Por essa razão, feliz é o homem que não se limita à beleza terrena,
mas que enxerga a Suprem beleza através daquela, feliz é o homem que
dá primazia aquelas harmonias que servem para a manutenção do
próprio bem das almas, se serve também daquelas harmonias como
reguladoras e vigias de outras harmonias.
Afinal, não são harmonias inferiores à razão e belas em seu gênero, mas o
amor pela beleza inferior que contamina a alma. E como esta não só a ama
a igualdade (da qual, segundo nossa necessidade, falamos muito), mas
também a categoria inferior, a própria alma vem a perder sua própria
ordem; e, apesar disso, ela não superou a ordem das coisas, já que ela está
num lugar e está de um modo em que, como suma ordem, estão as coisas e
tal como elas são. Porque uma coisa é guardar a ordem, outra coisa distinta
é está sujeita à ordem. Guarda a ordem a alma quando, desde si mesma, ama
inteiramente o que está sobre seu ser, isto é, a Deus e as almas, suas
companheiras, como a si mesma. Por essa força do amor, efetivamente,
coloca ordem nas coisas inferiores e não se mancha em contato com elas
(AGOSTINHO, Sobre a música, VI, XIV, 46, 1986, p.346-7) 31.
30
“[…] el alma busca en él, a saber: la estabilidad y la eternidad, no las encuentra, ya que su baja belleza
culmina en el cambiante paso de las cosas, y lo que en tal belleza es trasunto de estabilidad, le viene
transferido de Dios a través del alma” (AGUSTIN, La música, VI, XIV, 44, 1986, p.345).
31
“Después de todo, no son las armonías inferiores a la razón y bellas en su género, sino el amor de la belleza
inferior lo que contamina al alma. Y como ésta no sólo ama la igualdad (de la que según nuestro menester
hemos hablado bastante), sino también el inferior rango, el alma misma viene a perder su propio orden; y, a
pesar de ello, no sobrepasó el orden de las cosas, ya que ella está en un lugar y está de una manera en que,
con sumo orden, están las cosas y tal como ellas son. Porque una cosa es guardar el orden, otra distinta estar
sometido al orden. Guarda el orden el alma cuando desde sí misma, toda ella entera, ama lo que está sobre
su ser, es decir, a Dios, y a las almas, sus compañeras, como a sí misma. Por esta fuerza del amor,
efectivamente, pone orden en las cosas inferiores y no se mancha en contacto con ellas” (AGUSTIN, La
música, VI, XIV, 46, 1986, p.346-7).
154 • Com Agostinho, e além dele
32
“Y no las amemos como para hacernos dichosos en sus goces. Porque, como son temporales, a fuer de una
tabla en medio de las olas del mar nos alejaremos de ellas, no arrojándolas como pesados fardos ni
abrazándolas como si fuesen nuestro fundamento, sino haciendo buen uso de las mismas” (AGUSTIN, La
música, VI, XIV, 46, 1986, p.347).
Janduí Evangelista de Oliveira • 155
(AGOSTINHO, Sobre a música, VI, XVII, 56, 1986, p.357) .Desta maneira, 33
33
“Pues Dios, sumamente bueno y sumamente justo, no mira con malos ojos ninguna belleza que nace a la
realidad, o por condenación del alma, o por su conversión, o por su perseverancia” (AGUSTIN, La música, VI,
XVII, 56, 1986, p.357).
34
“En realidad, todas estas cosas, que enumeramos con ayuda de la sensible percepción de nuestro cuerpo,
no pueden adquirir ni conservar las armonías locales que parecen estar en un modo de ser estable sino gracias
a otras armonías temporales que les preceden, ocultas y en silencio, y están dentro del movimiento. Asimismo,
a estas armonías, activas en los intervalos ordenados de los tiempos, precede y regula el movimiento vital,
que obedece al Señor de todas las cosas, no porque tiene ya en sí ordenados los intervalos temporales de sus
armonías, sino gracias a una potencia que gobierna los tiempos. ¡Y, sobre esta potencia, las armonías
racionales e intelectuales de las almas bienaventuradas y santas que, sin la mediación de ninguna otra
naturaleza, recogen la ley misma de Dios, sin la cual no cae la hoja del árbol y para quien están contados
nuestros cabellos, transmitiendo esa ley hasta los ámbitos terrenos e infernales!” (AGUSTIN, La música, VI,
XVII, 58, 1986, p.360).
156 • Com Agostinho, e além dele
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
AGUSTÍN, San. La música. In: Obras Completas de San Agustín. Edição Bilingüe.
Traducion, introducion y notas de Alfonso Ortega. Madrid: La Editorial Católica
(BAC), 1986. Tomo XXXIX, p. 47-361.
INTRODUÇÃO
1
Este texto é um recorte de minha tese de doutorado publicada em meio digital pela Editora Fi.
COUTINHO, Gracielle Nascimento. O convergir da vontade humana a Deus: Sujeito ético e alteridade
em Santo Agostinho. Prefácio de Marcos Roberto Nunes Costa. Porto Alegre: Editora Fi, 2021, 233 p. ISBN
978-65-5917-401-0. Disponível em: <https://www.editorafi.org/401agostinho>
2
Graduada e Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), Doutora em Filosofia pela
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professora efetiva da Secretaria de Educação do Estado do
Ceará (SEDUC-CE). Contato: gracielle.ncoutinho@gmail.com
Gracielle Nascimento Coutinho • 159
[...] a mesma vontade com vigor maior. Pois, a vontade, faculdade que
possuímos por natureza, apresenta uma variedade de afetos, conforme as
Gracielle Nascimento Coutinho • 161
3
É interessante a leitura que Hannah Arendt faz acerca do amor como distinto da vontade. Para a filósofa,
a vontade é sempre movimento em direção ao que busca, enquanto o amor é a fruição do que se busca
e, portanto, põe fim ao movimento e à própria vontade. Segundo a pensadora: “A realização é a
beatitude, que não consiste em amar, mas em fruir daquilo que é amado e desejado. Todo o amor é
tensão dirigida para esta fruição. No entanto, ninguém é feliz se não fruir do que ama. [...] Fruir é estar
perto do objeto desejado, firme e sem inquietude” (ARENDT, 1997, p. 36). Em sua obra A vida do espírito:
o pensar, o querer e o julgar, complementa: “[...] o amor, ao contrário da vontade e do desejo, não se
extingue quando alcança seu objetivo, mas sim possibilita ao espírito ‘permanecer imóvel para poder
desfrutá-lo’” (ARENDT, 1995, p. 261).
162 • Com Agostinho, e além dele
4
Sob esta perspectiva da ação e da intenção que a motiva, Agostinho também identifica que alguns
crimes podem ser cometidos por ausência de paixão como ocorre, por exemplo, em duas situações de
homicídio retratadas no Sobre o livre arbítrio, a saber: 1) aquele cometido acidentalmente; e 2) o que é
praticado pelo soldado no cumprimento de seu dever. Agostinho não os considera culpáveis porque:
“[...] se o homicídio consiste no ato de matar um homem, pode acontecer que isso seja, por vezes, sem
pecado. Pois o soldado mata o inimigo; o juiz ou seu mandante executa o criminoso; e também, talvez,
164 • Com Agostinho, e além dele
Talvez seja na paixão que esteja a malícia do adultério. [...] Para te fazer
compreender que a paixão é bem aquilo que é mal no adultério, considera
um homem que está impossibilitado de abusar da mulher de seu próximo.
Todavia, se for demonstrado, de um modo ou de outro, qual o seu intento e
que o teria realizado se o pudesse, segue-se que ele não é menos culpado
por aí do que se tivesse sido apanhado em flagrante delito (De lib. arb., I, 3,
8) 5.
o lançador de flechas, quando uma delas escapa de suas mãos, sem o querer ou por inadvertência.
Todas essas pessoas não me parecem pecar ao matar um homem.[...] Mas comumente essas pessoas
sequer são chamadas homicidas” (De lib. arb., I, 4, 9). No caso do soldado, a própria lei temporal
prescreve-lhe matar o inimigo para a manutenção da ordem social e ele sofreria punição se não o fizesse.
Também no homicídio acidental não é por vontade que um indivíduo mata outro, menos ainda quem
o faz em legítima defesa. Entretanto, há um terceiro caso de homicídio em que Agostinho reconhece
uma paixão motivadora: quando um escravo mata seu senhor com vistas a uma vida sem temor. Embora
uma vida sem medo seja um bem e, portanto, não haja mau desejo na ação do escravo, o meio pelo
qual ele a busca – matando seu senhor – não é justificável pela lei temporal. Ademais, a ação
premeditada do escravo pode, ainda, segundo hipótese levantada por Agostinho, ter um outro objetivo
em vista: libertar-se de seu senhor para poder satisfazer livremente suas paixões concupiscentes (Cf. De
lib. arb., I, 4, 10). Em suma, desta reflexão resulta que, para toda norma, é a ação propriamente dita que
importa ser refreada para a manutenção da paz na civitas. A paixão, sede de toda má ação, soa menos
importante neste contexto e é exatamente esta dimensão que visamos destacar em nossa discussão.
5
Segundo Roberto Pich, “o que faz de uma ação como o adultério uma ação má é um elemento que lhe
é intrínseco (a natureza do desejo presente na ação em função de uma potência do agente como causa)
e que é interno ao agente (a natureza do desejo no sujeito em função de uma potência de um agente
como causa): a ‘paixão’ (libido) ou o ‘desejo’ (cupiditas) é o mal no adultério. Aqui, a precisão
terminológica é recomendável, uma vez que Agostinho procura descrever um componente chave da
estrutura interna das ações” (PICH, 2005, p. 189).
Gracielle Nascimento Coutinho • 165
6
“Que diremos pois? É a lei pecado? De modo nenhum. Mas eu não conheci o pecado senão pela lei;
porque eu não conheceria a concupiscência se a lei não dissesse: ‘Não cobiçarás’ ” (Rm 7, 7). Cf. De spirit.
et litt., XIV, 25.
Gracielle Nascimento Coutinho • 167
7
“E o preceito, se é observado por temor da pena, e não por amor da justiça, não é observado com
liberdade, mas com espírito de servidão, não é observado. Pois não é um bom fruto o que não procede
da raiz da caridade” (De spirit. et litt., XIV, 26)
8
“Mas julgavam que cumpriam esta lei com sua justiça, quando eram mais seus transgressores. Mas a
lei produzia a ira (cf. Rm. 4, 15) ao colmar o pecado, o qual praticavam sem poder alegar nenhuma
ignorância. Pois todos os que praticavam o preceituado na lei praticavam-no não sendo auxiliados pelo
Espírito Santo, por temor ao castigo, e não por amor à justiça” (De spirit. et litt., VIII, 13).
Gracielle Nascimento Coutinho • 169
9
Segundo Franz Hinkelammert: “Paulo denuncia os crucificadores, que são os chefes deste mundo.
Concede-lhes, não obstante, que ajam segundo a sabedoria deste mundo, o que implica que agem em
nome da lei. Embora cegos, não se acham destituídos de razões. Há conflito, mas o conflito é com
aqueles dos quais se diz na Carta aos Romanos, ‘aprisionam a verdade na injustiça’ (Rm 1, 18). [...] Não
sabem o que fazem, desconhecem a sabedoria de Deus e a rejeitam. Fazem-no, porém, em nome de
uma sabedoria do mundo. Não é a maldade que explica a crucifixão, mas a cegueira e a própria loucura
da sabedoria deste mundo” (HINKELAMMERT, 2012, p. 37-38). Sobre esta loucura da sabedoria deste
mundo, afirma ainda Hinkelammert: “O que é a loucura da sabedoria deste mundo? Não é
irracionalidade per se. É a irracionalidade do racionalizado. A crítica não nega essa racionalidade per se,
mas descobre em seu interior a irracionalidade: quem busca a vida pelo cumprimento da lei encontra a
morte” (Ibid., p. 64).
170 • Com Agostinho, e além dele
10
cf. De spirit. et litt. XXVII, 47. Sobre a explanação agostiniana acerca da justiça praticada pelos gentios,
cf. ibid. XXVI, 43.
11
Isto é válido, inclusive, para a lei temporal. Mas, a esta altura de nossa discussão, não mais nos interessa
tratar sobre ela. Referimo-nos a ela apenas para destacar que a lei divina que ordena e pune tem essa
mesma natureza em comum com as leis humanas e servem, ambas, para a manutenção da ordem social.
Não é este, contudo, o enfoque de nossa reflexão.
Gracielle Nascimento Coutinho • 173
“Assim duas vontades, uma concupiscente, outra dominada, uma carnal e outra espiritual, batalhavam
12
para que a lei externa ao homem velho seja agora gravada no homem
interior . Com este fim surge a lei da fé, instaurada com o Novo
16
foi banida dos corações pelo pecado, e, por isso, apagada a culpa e
inscrevendo-se nos corações a lei, cumprem naturalmente o que ela
prescreve” (De spirit. et litt., XXVII, 47).
14
Quando falamos de graça divina, temos em mente a ideia de Deus tal como ele é pensado
filosoficamente no medievo cristão, isto é, como causa primeira. Pois, quando se diz que Deus é criador,
não se invoca apenas uma narrativa bíblica, mas razões pelas quais é necessário existir um Ser
subsistente do qual proceda o ser de todas as demais coisas existentes. Pensar Deus é entendê-lo como
o princípio ontológico que confere à criatura humana não apenas o ser, mas todas as suas faculdades
epotencialidades – como a inteligência, a memória e a vontade – e sua capacidade de valorar/ajuizar
retamente. Portanto, tratamos o conceito de graça divina como atuação daquele Princípio através do
qual o sujeito imprime eticidade à moralidade.
15
“[...] o auxílio divino para agirmos segundo a justiça não consistiu em que Deus nos tenha dado a lei
com os seus bons e santos preceitos. Mas consiste em que a nossa vontade, sem a qual não podemos
praticar o bem, seja ajudada e elevada pelo Espírito difundido da graça, sem cujo socorro a doutrina da
lei é letra que mata, porque, em vez de justificar os ímpios, mantém oprimidos os réus da prevaricação.
[...] assim aqueles que sabem pela lei como o homem deve viver, não são justificados pelo seu
conhecimento, porque, desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, não
se sujeitaram à justiça de Deus (De spirit. et litt., XII, 20).
16
“Com efeito, se há inspiração pela fé que opera animada pela caridade, tem início o deleitar-se na lei
de Deus segundo o homem interior” (De spirit. et litt., XIV, 26). Ainda sobre a renovação provocada pela
lei da fé, escreve Agostinho: “[...] a lei antiga foi escrita fora do homem, para atemorizá-lo exteriormente,
e a nova foi gravada no próprio homem para justificá-lo interiormente” (De spirit. et litt., XVII, 30).
17
“[...] o Espírito da graça age de modo que renova em nós a imagem de Deus, na qual fomos criados”
(De spirit. et litt., XXVII, 47).
Gracielle Nascimento Coutinho • 175
Essa é a lei que Cristo não veio abolir, mas dar-lhe pleno cumprimento. Não
é, porém, por essa lei, mas pela graça, que os ímpios são justificados. E isso
é obra do Espírito vivificador, sem o qual a letra mata. Se tivesse sido dada
uma lei capaz de comunicar a vida, então sim, realmente a justiça viria da
lei. Mas a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado, a fim de que a
promessa pela fé em Jesus Cristo fosse concedida aos que crêem. Por essa
promessa, ou seja, em virtude do benefício da graça de Deus, a lei torna os
homens transgressores, ou com más obras efetivas, se o ardor da
concupiscência transpuser as barreiras do temor, ou ficando o pecado no
desejo, se o temor do castigo vencer o atrativo libidinoso. [...] O objetivo da
utilidade do ‘encerrou’ ficou explicitado na sequência: Antes que chegasse
a fé, nós éramos guardados sob a tutela da lei para a fé que haveria de se
revelar (De spirit. et litt., XIX, 34) 18.
18
Note que o trecho “[...] ou ficando o pecado no desejo, se o temor do castigo vencer o atrativo
libidinoso” (De spirit. et litt., XIX, 34) reforça a reflexão que conduzimos sobre a dicotomia intenção
(paixão) e ação.
176 • Com Agostinho, e além dele
Aquele Testamento era antigo, porque este é novo. Mas por que aquele é
antigo e este é novo, se pelo Novo se cumpre a mesma lei que disse no Velho:
Não cobiçarás? [...] aquele é chamado Antigo devido à ferida do homem
velho, a qual não se curava pela letra que manda e ameaça; este é
denominado Novo, pela novidade do Espírito, que cura o homem novo do
pecado velho (De spirit. et litt., XX, 35).
Pois, pelo Novo [Testamento] é escrita no coração dos fiéis a lei de Deus, que
pelo Antigo foi gravada em tábuas; pelo Novo está gravada mediante a
regeneração, o que pela antiguidade não foi destruído totalmente. Assim
como a imagem de Deus, que a impiedade não banira complemente, se
renova na alma dos crentes pelo Novo Testamento, pois nela permaneceu,
o que faz com que a alma humana não deixe de ser racional, assim também
19
“Porque pela lei ninguém se justificará, já que a lei revela apenas o que fazer e o que evitar, de modo
que a vontade cumpra o que a lei mostra, e assim o homem se justifique não pelo que manda a lei, mas
pelo uso da liberdade. [...] Agora, porém, independentemente da lei, se manifestou a justiça de Deus,
testemunhada pela lei e pelos profetas” (De spirit. et litt., IX, 15).
Gracielle Nascimento Coutinho • 177
nele a lei de Deus, não totalmente destruída pela injustiça, é gravada ao ser
renovada pela graça. A lei gravada em tábuas não pudera causar nos judeus
esta inscrição, que é a justificação, mas apenas a transgressão (De spirit. et
litt., XXVIII, 48).
20
Agora, porém, independentemente da lei, se manifestou a justiça de Deus, testemunhada pela lei e
pelos profetas (cf. Rm 3, 21). [...] Portanto, a justiça de Deus, embora seja concessão sem a lei, não se
manifestou sem a lei. Pois, como poderia ser testemunhada pela lei, se se manifestasse sem a lei? Mas a
justiça de Deus é concessão independentemente da lei, porque ele a confere ao crente mediante o
Espírito da graça, sem a ajuda da lei, ou seja, sem ser auxiliada pela lei (De spirit. et litt., IX, 15).
178 • Com Agostinho, e além dele
CONSIDERAÇÕES FINAIS
relacionamento próprios com a norma aqueles para quem ela chega pela
imposição, como na submissão aos mandamentos do Antigo Testamento
ou mesmo às leis temporais, ambas muito punitivas. Por outro lado, é
distinto este mesmo relacionar-se com a norma quando, pela
interiorização do amor ao próximo (caridade),o indivíduo transcende a
própria lei, cumprindo-a por livre disposição da vontade e,
consequentemente, como ato de liberdade.
Neste sentido, podemos dizer que estão entregues à moralidade
punitiva intrínseca ao Antigo Testamento quem se encontra em um nível
de desenvolvimento ético-moral ainda imaturo. Estes necessitam da lei
para conduzi-los, coagindo-os vez em quando para atender a este
objetivo. Em contrapartida, tem uma consciência ética mais
amadurecida quem entendeu, conforme a mensagem do Novo
Testamento, que esta obediência precisa ser voluntária, do contrário,
não é efetiva conformidade ao preceito.
Deste modo, o Antigo e o Novo Testamentos podem ser concebidos
como formas diferentes de comunicar uma mesma mensagem.
Diferentes porque se adaptam à capacidade de compreensão de quem as
recebe. Não à toa, o Antigo Testamento apenas prenuncia, e então,
prepara o humano para a recepção da caridade, a plenitude da lei,
porque ela não seria compreendida por homens de entendimento e
coração ainda rudes, capazes de obedecer apenas sob a lógica de prêmios
e castigos.
A lei divina, bem como as leis temporais, cumpre o papel de evitar
ou punir a transgressão (ação), mas não necessariamente em educar as
paixões humanas (intenção). Ela ordena e pune porque a
Gracielle Nascimento Coutinho • 181
REFERÊNCIAS
AGOSTINHO, Santo. A cidade de Deus (I): livro I a VIII. 4 ed. Tradução, prefácio, nota
biográfica e transcrições de J. Dias Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2011.
AGOSTINHO, Santo. A cidade de Deus (II): livro IX a XV. 4 ed. Tradução, prefácio, nota
biográfica e transcrições de J. Dias Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
2011.
AGOSTINHO, Santo. A cidade de Deus (III): livro XVI a XXII. 4 ed. Tradução, prefácio,
nota biográfica e transcrições de J. Dias Pereira. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2011.
CUNHA, Mariana Paolozzi Sérvulo da. O movimento da alma: a invenção por Agostinho
do conceito de vontade. Porto Alegre: Edipucrs, 2001.
INTRODUÇÃO
1
Doutora em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP); Mestre em Filosofia
pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB); graduada em Fisioterapia e Filosofia (Bacharelado e
Licenciatura) pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); em Psicologia (Bacharelado, Licenciatura e
Formação de Psicólogos) e Teologia (Bacharelado) pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).
Trabalha atualmente no Centro de Atendimento Educacional Especializado do Recife (CAEER- RECIFE) pela
Secretaria de Educação do Governo do Estado de Pernambuco, que oferece atendimento a pessoas com
deficiência nas áreas intelectual, visual e auditiva. E-mail: pr.maltese@yahoo.com.br
Pompeia Rosalia Sena Maltese • 185
2
PASCAL, !988, p. 107 – Pensamento IV, 277.
3
Por vezes, encontramos o nome Neurociência ou Neurociências. Neurociência é uma designação que
delimita o estudo acerca do sistema nervoso como uma ciência específica, no entanto, é muito comum
encontrarmos o termo Neurociências, por sua estreita interdisciplinaridade com diversas ciências, conforme
veremos. As duas terminologias não alteram o seu alcance de compreensão. Em nosso artigo, faremos a
opção pela denominação de Neurociências, tendo em vista a promoção de um diálogo interdisciplinar.
186 • Com Agostinho, e além dele
4
Trazemos aqui um jogo de palavras a partir dos livros: Santo Agostinho: a vida e as ideias de um filósofo
adiante do seu tempo, de Gareth Matthews, e Santo Agostinho: um gênio intelectual a serviço da fé, de
Marcos Costa.
Pompeia Rosalia Sena Maltese • 187
5
Ver Berger e Luckmann em nossa lista de Referências e suas considerações sobre os termos aqui
utilizados.
6
“Palácios da memória” é um termo utilizado por santo Agostinho para designar o vasto acúmulo de
conteúdos que podem ser evocados a partir de emoções ou sentimentos que nos impressionam. As
Confissões, sua obra autobiográfica, traz-nos explanações sobre a memória que, em função de sua
profundidade, são equiparadas a um verdadeiro tratado.
7
Aqui, no uso das palavras proeminência e preeminência imitamos a retórica agostiniana, reiteradamente
utilizada em seus escritos, dos quais podemos citar as suas Confissões. Entre os comentadores de
Agostinho, como Gilson, tornou-se unânime a menção ao Cogito agostiniano, que passou a ser chamado
assim em função da similaridade de sua formulação com o Cogito cartesiano. Tais comentadores
vislumbraram no pensamento agostiniano a anterioridade na formulação do Cogito desde os escritos
dos chamados diálogos de Cassicíaco. A respeito, ver CABRAL, Alexandre Marques. Ontologia e
188 • Com Agostinho, e além dele
conhecimento em Santo Agostinho. In: SAMPAIO, Juliana Lira; BITTENCOURT, Renato Nunes; BARROS,
Tiago Mota da Silva (orgs). Filosofia: um panorama histórico-temático. Rio de Janeiro: Mauad X, 2013.
8
Esta tríade faz parte das primeiras inquietações filosóficas que inauguraram um tipo de pensamento
reflexivo, e que veio a se estabelecer com o nome de Filosofia.
Pompeia Rosalia Sena Maltese • 189
Fonte:https://www.facebook.com/drsaulalmeida/photos/a.120829032917603/24071310759
5861/?type=3
9
A respeito do termo vejamos, além da ilustração, o que nos relatam Bear, Connors e Paradiso (2017,
p.5): “Há cerca de 7.000 anos, as pessoas já faziam orifícios no crânio de outros (um processo chamado
trepanação), evidentemente com o intuito de curar e não de matar. Tais crânios mostram sinais de cura
após a operação, indicando que esse procedimento era realizado em sujeitos vivos e não era meramente
um ritual conduzido após a morte. Alguns indivíduos sobreviveram a múltiplas cirurgias cranianas. Não
temos muita clareza a respeito do que esses cirurgiões primitivos queriam realizar, embora haja quem
especule que esse procedimento poderia ter sido utilizado para tratar dores de cabeça ou transtornos
mentais, talvez oferecendo aos ‘maus espíritos’ uma porta de saída.”
Pompeia Rosalia Sena Maltese • 191
10
Tentaremos ser mais precisos nesta nota explicativa: o que chamamos comumente de cérebro recebe
o nome de encéfalo, que se divide em telencéfalo, mesencéfalo, ponte encefálica, bulbo e cerebelo.
Toda esta estrutura encontra-se em nossa caixa craniana. O telencéfalo é a região do encéfalo
relacionada às funções mentais superiores ou funções cerebrais superiores – das quais fizemos menção
às funções cognitivas. Daí, na estrutura do encéfalo como um todo, o telencéfalo é chamado de cérebro
propriamente dito.Esquematicamente temos: Encéfalo= cérebro (telencéfalo) + mesencéfalo + ponte
encefálica + bulbo + cerebelo.
192 • Com Agostinho, e além dele
não está contida na caixa craniana, a nossa medula espinhal 11, que segue
ao bulbo – dentro do crânio – e sai por uma abertura inferior da caixa
craniana, alojando-se na coluna vertebral.
Sem mais delongas, o que queremos dizer é que o nosso Sistema
Nervoso Central rege nossos pensamentos e nossas ações, se
considerarmos ações como todo movimento para um objetivo,
consciente ou inconsciente, como é o caso dos movimentos reflexos. O
estímulo reflexo gera um movimento que percorre a nossa medula
espinhal e a elaboração posterior deste movimento se processa em
nosso cérebro, como, por exemplo: uma espetada no braço gera um
movimento, uma ação de retirada daquela parte do corpo pela sensação
dolorosa que é enviada ao nosso cérebro. Similarmente, qualquer outro
movimento corporal é elaborado em nosso cérebro.
No entanto, a evidência desta correlação só aos poucos foi sendo
estabelecida. Considerando o Egito antigo, as correlações da
responsabilização do cérebro ou coração para os comandos corporais
aconteceram de forma não muito diferente na Grécia antiga.
Empédocles de Agrigento (430 a. C.) – anteriormente à Hipócrates (377
a. C.) – já correlacionava o funcionamento cognitivo ao cérebro, o que
foi corroborado posteriormente pelo pai da Medicina, conforme nos
apresenta Caldas (2010, p. 9), em sua citação:
Deveria ser sabido que ele (cérebro) é a fonte do nosso prazer, alegria, riso
e diversão, assim como do nosso pesar, dor, ansiedade e lágrimas, e nenhum
outro que não o cérebro. É especificamente o órgão que nos habilita a
pensar, ver e ouvir, a distinguir o feio do belo, o mau do bom, o prazer do
11
Não confundir com medula óssea.
Pompeia Rosalia Sena Maltese • 193
CORAÇÃO CÉREBRO
12
O termo paixão provém da palavra grega παθος (pathos), constituindo-se como uma antiga discussão
filosófica. A sua conotação discursiva, de acepção negativa em todo o debate filosófico, ganhou novos
contornos com o cristianismo, no qual a paixão passou a ser considerada, por vezes, como algo positivo
pela estreiteza de sua relação com a emoção. Isto se dá exatamente no direcionamento do debate
agostiniano. A respeito, ver o verbete Emoção em Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia. Ver ainda Paixão
em Reale, em sua História da Filosofia Antiga, vol. V. Phatos é também traduzido como doença, de modo
que assim o encontramos na terminologia médica.
194 • Com Agostinho, e além dele
13
Ver lista de Referências ao final do texto.
196 • Com Agostinho, e além dele
14
Ver lista de Referências ao final do texto.
15
Ver Oliveira e Junges, Saúde mental e espiritualidade/religiosidade: a visão de psicólogos, em nossas
Referências ao final do texto.
Pompeia Rosalia Sena Maltese • 197
[...] pode-se dizer da mente e do cérebro que eles não são duas realidades
separadas e distintas. São simultaneamente neurônios e imagens mentais.
São sentimentos e produtos do espírito. São a um só tempo realidade
‘mística’ e realidade ‘material’.
Homo religious realça o ser do homem fadado à espiritualidade, ou seja, a espiritualidade é constitutiva
16
do ser humano.
198 • Com Agostinho, e além dele
19
Na verdade, fazendo jus a uma concepção propriamente cristã do homem, na qual a consideração
acerca da ressurreição dos corpos imprime o caráter de corpo como um valor, do que aquela carregada
pela influência grega, abertamente dicotômica, na qual o corpo é um mero acidente.
O Maniqueísmo era uma das tendências do gnosticismo, uma heresia que provinha do cristianismo,
20
mesclando elementos deste com outras concepções religiosas e correntes filosóficas, sincretizando-os.
Agostinho, nele permaneceu ao longo de quase dez anos de sua vida. A este respeito ver Costa, 2003,
em nossa lista de Referências.
21
Os Solilóquios são conhecidos como uma de suas primeiras obras. São escritos em forma de diálogos
entre outros de seus livros e, por isso, fazem parte dos chamados diálogos de Cassicíaco, região do norte
da Itália para onde Agostinho se retirou por um período de sua vida após sua conversão ao cristianismo.
200 • Com Agostinho, e além dele
não é alma” (AGOSTINHO, 2008, p.493 - De Trin, XV,7,11) 22. Parece clara
a unidade pressuposta por Agostinho e a mera distinção de suas partes.
Daí, Meconi e Stump (2016, p.162) a repetem e acrescentam seu
comentário bastante elucidativo a respeito daquela afirmação:
22
O seu livro A Trindade é uma obra da maturidade, juntamente com suas Confissões e A Cidade de Deus,
nas quais encontramos as mesmas considerações sobre a unidade corpo e alma.
23
Ver, entre outros, Sobre a potencialidade da alma: “E num breve resumo: ainda confessando que a alma
humana não é o mesmo que Deus, temos que deduzir que nada criado está mais perto de Deus.”
(AGOSTINHO, 2005, p. 75 – De quant. animae, 34, 77).
Pompeia Rosalia Sena Maltese • 201
24
Trazemos aqui uma paráfrase do comentário de Meconi e Stump (2016, p.165) a respeito de Agostinho
e sua compreensão do dualismo corpo-alma: “De acordo com Agostinho, é a alma que conduz à
identidade numérica de um ser humano através do tempo e também depois do tempo”. A conciliação
da paráfrase acima com a afirmação dos autores que aqui trazemos sobre o pensamento de Agostinho
veremos logo a seguir.
Pompeia Rosalia Sena Maltese • 203
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução de Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo:
Paulus, 1997 (Coleção Patrística, n. 10)
25
Do poema Igual-desigual, de Carlos Drummond de Andrade, que atesta a identidade numérica –
conforme mencionado – de nosso serindivíduo.
Pompeia Rosalia Sena Maltese • 207
AGOSTINHO, Santo. Solilóquios; A vida feliz. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 3. ed.
São Paulo: Paulus, 2007a. (Coleção Patrística, n. 11).
COSTA, Marcos Roberto Nunes. Santo Agostinho: um gênio intelectual a serviço da fé.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999. (Coleção Filosofia, 91).
FRANKL, Vikctor Emil. Sede de sentido. Tradução Henrique Elfes.São Paulo: Quadrante,
2016b.
MARQUES, Lúcio Alvaro. Neurociência e mística: existe uma possibilidade para pensar
Deus?. Veritas (Porto Alegre), v. 63, n. 3, p. 1058-1072, 2018.
208 • Com Agostinho, e além dele
MECONI, Vincent; STUMP, Eleonore (orgs.). Agostinho. Tradução de Jaime Clasen. São
Paulo: Ideias e letras, 2016.
SANTOS, Ana Leonor Serra Morais dos. Animal Sentimental: O contributo das
neurociências para uma redefinição do humano. Opción, v. 31, n. 6, p. 611-631, 2015.
INTRODUÇÃO
1
Doutor em filosofia (UFPE). E-mail: rodrigocfch@gmail.com
2
Obra doravante mencionada por DT,as menções ao texto da mesma obra disponibilizada no corpus
thomisticum serão indicadas por In BDT.
210 • Com Agostinho, e além dele
9.1 DESENVOLVIMENTO
3
Quidditas, termo introduzido pelas traduções latinas feitas no séc. XII das obras de Aristóteles a partir
do árabe, corresponde à expressão aristotélica (quod quid erat esse). Exprime a essência ou definição de
uma coisa, denota o elemento formal constitutivo dela, aquilo pelo qual lhe é atribuída determinada
Rodrigo José de Lima • 213
enquanto princípio de apreensão do que a coisa é. Por isso, ele diz que
“a coisa não é inteligível senão pela sua definição” (AQUINO, 2010, p.16);
em outras palavras, “a essência é aquilo que é significado pela definição”
(AQUINO, 2010, p. 17).
Pretende-se destacar a relação entre a definição de um ente e sua
intelecção: os entes que pertencem à ciência natural são aqueles em cuja
definição é posta a matéria sensível. Cabe aqui relembrarmos a
conhecida distinção tomista entre materia communisetsignata; a
primeira, compreende o elemento concreto considerado em seu aspecto
genérico, ou seja, indiscriminadamente, tal noção subjaz à ideia de
carne ou ossos; a segunda, por sua vez, refere-se as dimensões restritas
enquanto determinações do particular, esta consideração constitui as
noções de “esta carne”, “estes ossos”. Afirma Tomás:
espécie e, ao mesmo tempo, a separa de todas as outras espécies. A quidditas responde a questão quid
sit, o que é? Consequentemente expressa aquilo pelo qual uma coisa é tal, e, se distingue das outras
coisas. Tomando a Metafísica, afirma-se que “é a essência considerada enquanto expressada pela
definição”.
214 • Com Agostinho, e além dele
Unumquodque autem potest considerari sine omnibus his quae ei non per se
comparantur. Et ideo formae et rationes rerum quamvis in motu exsistentium,
prout in se considerantur, absque motu sunt. Et sic de eis sunt scientiae et
Rodrigo José de Lima • 215
4 A razão de Boécio considerar a divisão da especulativa em um texto que versa inicialmente sobre um
artigo de fé, encontra sua razão de ser no discurso sobre Deus pressupor a compreensão das condições
de possibilidade e limites do conhecimento humano, no interior deste conhecimento especulativo que
Aristóteles lidou, Boécio julgou a fundamentação prévia de sua análise.
Rodrigo José de Lima • 217
e não tomá-lo como palavra definitiva sobre o assunto, devendo então ser
estudado juntamente com outras obras (AQUINAS, 1986, p.3).
Antes de considerarmos a maneira como Tomás tratou o problema
na Sententia super Physicam, cabe relembrarmos a abordagem
aristotélica presente no segundo livro da Física, particularmente no
capítulo II. A necessidade da distinção decorre da aparente
comunicabilidade dos objetos da física e da matemática: “pois também
os corpos naturais têm superfícies e sólidos, bem como comprimentos
e pontos, a respeito dos quais o matemático faz seu estudo” 5
(ARISTÓTELES, 2009, p. 46) e “os que estudam a natureza
manifestamente se pronunciam também sobre a figura da lua e do sol”
(ARISTÓTELES, 2009, p. 46).
Ele procura delimitar cada uma das ciências ao estabelecer seus
objetos que, respeitando o princípio metodológico, exigem
procedimento heterogêneo por causa das especificidades de cada um
dos entes de estudo. Isto se coaduna ainda com o pressuposto do
proceder em alguma ciência ser antecedido pelo entendimento do seu
modo de operar; para esclarecer, portanto, o que é a aduncidade, deve
ser tratado como se procede na Física (ARISTÓTELES, 2009, p. 46).
A oposição estabelecida entre os entes naturais e os matemáticos
julga a concomitância das propriedades que se seguem aos entes
naturais e que os matemáticos consideram apenas isolando-as. Em
outras palavras, o filósofo natural toma o composto de forma e matéria,
isto é, o ente enquanto efetivado pela forma, ao passo que o matemático
5
Como bem observou o Dr. Lucas Angioni: “é a crítica à separação platônica que parece levar Aristóteles
ao problema do método da ciência na natureza” (ARISTÓTELES, 2009, p. 221).
Rodrigo José de Lima • 219
[...] because everything which has matter is mobile, it follows that mobile
being is the subject of natural philosophy. For natural philosophy is about
natural things, and natural things are those whose principle is nature. But
nature is a principle of motion and rest inthat in which it is. Therefore
natural science deals with those things which have in them a principle of
motion (AQUINAS, 1963, p. 21).
Quia ens mobile est corpus naturale – nam solum corpus naturale est mobile
motu physico seu senbili -, corpus naturale est Philosophiae naturalis obiectum
materiale; obiectum autem formale <<quod>> est ens mobile seu mobile ut sic.
Totum enim ordinem corporeum sub ratione mobilitatis sensilis considerat
Philosophia naturalis (GREDT, 1961, p. 217).
em que não estabelece a razão formal, ao menos não em princípio e per se,
para os objetos da física (KELLY, 1963, p. 19).
Ora, ao considerar o corolário de que “tudo que tem matéria é
móvel” e que “o Ser móvel é objeto da Filosofia Natural”, ele está
tomando um aspecto formal na sua análise: o ens mobile enquanto tal é
o objeto da física.
Se o fato de ter matéria e, consequentemente ser móvel, é a razão
de estabelecer o escopo da Ciência Natural, devemos lembrar que ele
não concebe que os entes matemáticos existam independentemente dos
entes naturais dos quais eles propriedades. Em outras palavras, o
argumento considerado tão somente por si, caracterizaria os entes
naturais, mas não faria menção aos matemáticos, ao menos não pelo
mesmo critério adotado. Por isso, é necessário incluir o argumento dos
modos de definição, pois aí os entes matemáticos são considerados
separados das coisas materiais das quais são propriedades.
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
AQUINAS, Thomas. Faith, reason and theology: Questions I-IV of his commentary on
the De Trinitate of Boethius. Ontario: Pontifical Institute of Medieval Studies, 1987.
AQUINO, Tomás de. Comentário sobre os oito livros da Audição Física ou Física de
Aristóteles. In: NASCIMENTO, Carlos Arthur Ribeiro do PICH, Roberto Hofmeister
(Orgs). As ciências intermediárias (I): algumas abordagens históricas. Porto Alegre:
Edipucrs, 2013, p. 288-294.
AQUINO, Tomás de. O ente e a essência. 6 Ed. Tradução de Carlos Arthur Ribeiro do
Nascimento. Petrópolis: Vozes, 2010.
KELLY, Matthew John. The interpretation of St. Thomas Aquinas of Aristotle, Physics
191a 7-8: The underlying nature is known by analogy. Dissertation (Doctorate in
philosophy) – University of Notre Dame, Department Philosophy, Michigan, 1963.
O CONCEITO DE MAL NO MANIQUEÍSMO: UMA
10
RELAÇÃO ENTRE O LIVRE-ARBÍTRIO E A SOBERBA 1
Marcone Felipe Bezerra de Lima 2
1
Esse texto foi desenvolvido a fim de homenagear o professor Marcos Roberto Nunes Costa (UFPE).
Agradecemos a Deus pela vida do professor Marcos, pois todos que o conhecem ratificam sua
generosidade, principalmente, seu incentivo à pesquisa. Ter conhecido o senhor, professor Marcos,
parafraseando Agostinho, é um dos bens de Deus em nossas vidas. Um forte abraço! Deus o abençoe
sempre em Cristo Jesus!
2
Mestre em Filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP – Bolsista da CAPES). É
Especialista no Ensino da Filosofia e Docência no Ensino de Letras-Português. Graduado em Letras-
Inglês. Graduando em Teologia e Especializando em Ciências da Religião (FATIN). Participa, desde 2018,
do grupo de Estudos em Filosofia Medieval com ênfase em Agostinho sob organização do professor
Marcos Roberto Nunes Costa (UFPE). E-mail: marconefelipe25@hotmail.com.
3
A esse respeito, diz nas Confissões: “Resolvi por isso dedicar-me ao estudo das Sagradas Escrituras, para
conhecê-las. E encontrei um livro que não se abre aos soberbos e, que também não se revela às crianças;
humilde no começo, mas que nos leva aos píncaros e está envolto em mistério, à medida que se vai à
frente. Eu era incapaz de nele penetrar ou de baixar a cabeça à sua entrada. O que senti nessa época,
diante das Escrituras, foi bem diferente do que agora afirmo. Tive a impressão de uma obra indigna de
ser comparada à majestade de Cícero. Meu orgulho não podia suportar aquela simplicidade de estilo. Por
outro lado, a agudeza de minha inteligência não conseguia penetrar-lhe o íntimo. Tal obra foi feita para
acompanhar o crescimento dos pequenos, mas eu desdenhava fazer-me pequeno, e, no meu orgulho,
sentia-me grande” (Conf., III, 5, 9, grifo nosso).
Marcone Felipe Bezerra de Lima • 227
homem, haja vista ter sido criado com a natureza má. Se o homem não
tem culpa, logo não precisa de arrependimento, ou seja, anula-se a
Graça de Cristo.
Na obra Confissões, Agostinho mostra o porquê do pecado:
Existe certo atrativo num corpo belo, no ouro, na prata, e em todas as coisas;
entre o tato e os objetos existe uma sorte de harmonia de grande
importância; e os outros sentidos encontram também nos corpos um
estímulo adequado. As honras do mundo, o poder de comandar e dominar
têm sedução, e deles nasce o desejo de vingança. Todavia, para conseguir
tais bens, não deve o homem afastar-se de ti, Senhor, nem desviar-se de tua
lei. A vida neste mundo seduz por sua própria beleza e pela harmonia que
mantém com todos as pequenas coisas belas que nos cercam. Também a
amizade entre os homens torna-se querida pelo vínculo suave que une
muitas almas numa só. Mas se desejamos todos esses bens
imoderadamente e por eles mesmos, bens inferiores que são, e
abandonamos os bens superiores como és tu, Senhor nosso Deus, a tua
verdade e a tua lei, então cometemos pecado. Na verdade, esses bens
inferiores também satisfazem, mas não como satisfaz o meu Deus, que tudo
criou, pois nele o justo encontra a sua alegria, e ele é a alegria dos homens
de coração reto (Conf., II, 5, 10, grifo nosso).
Eu, miserável, o que foi que amei em ti, furto meu, noturno delito dos meus
dezesseis anos? Não eras belo, pois eras roubo! Mas, realmente és alguma
coisa, para que eu possa dirigir-me a ti? As peras que roubamos, sim, eram
belas, por serem criaturas tuas, ó Deus bom, criador de toda beleza, sumo
bem e meu verdadeiro bem. Sim, eram belas aquelas frutas, mas não era a
elas que minha alma infeliz cobiçava, eu as possuía em abundância e
melhores. Eu as colhi somente para roubar, e uma vez colhidas atirei-as
fora saciar-me apenas com a minha maldade, saboreada com alegria. Se
alguma tocou meus lábios, foi o meu crime que me deu sabor. E agora,
Senhor meu Deus, procuro o que me seduziu nesse furto. Não possui beleza
alguma. E não falo da beleza que reside na justiça ou na sabedoria, nem da
beleza da inteligência humana, da memória, dos sentidos e de toda a vida
vegetativa, nem da beleza das estrelas na harmonia do firmamento, nem da
beleza da terra e do mar, cheios de vidas que nascendo tomam o lugar dos
mortos. E tampouco falo da beleza limitada e ilusória dos vícios sedutores.
A soberba quer imitar a grandeza, enquanto somente tu és o Deus altíssimo
que estás sobre todas as coisas (Conf., II, 6, 12, grifo nosso).
contrário, quis usurpar o ser de Deus, que não lhe pertencia por natureza.
A usurpação significa, portanto, um ato de roubo, um querer extorquir o
que pertence a outro, um apropriar-se de algo que não lhe é próprio. Em sua
origem, com efeito, no pecado de Adão, a soberba é apresentada como um
‘apetecer, como algo devido, e reivindicar para si o que propriamente se deve
unicamente a Deus’. Adão, sendo homem, não se contenta com aquilo que
lhe é próprio e pretende extorquir o que é alheio, que pertence a outro, a
divindade. Confirmando essa imagem do roubo, Agostinho fala, no De
Sancta Virginitate, do ‘ladrão da soberba’, que pretende arrombar a casa da
virgem para roubar-lhe o precioso dom da virgindade, que, por sua vez, só
pode ser custodiado pela caridade, por meio do dom da humildade. Da
mesma forma, no livro II das Confessionum apresenta o relato do roubo de
algumas peras em sua própria experiência de adolescente como uma
metáfora do pecado original (2014, p. 128-129).
4
No tratado Sobre a Natureza e a Graça, diz: “Não se deve dizer ao ser humano: “É necessário pecar para
não pecar’. Diga-se, no entanto: ‘Deus às vezes teabandona no que te provoca a soberba, para te
convenceres de que não és autônomo, mas dele dependente, e assim aprenderes a vencer a soberba’.
Não se há de acreditar no que conta o Apóstolo a seu respeito, seja o que for, e não é admirável e não
se acreditaria, se não no-lo referisse ele mesmo, o qual não é lícito contradizer, pois diz a verdade? Qual
é o cristão ignorante de que a primeira sedução para o pecado veio de Satanás (Gn 3,1-6), e que ele é o
primeiro causador de todos os pecados? No entanto, conforme diz o Apóstolo: Os quais (Himeneu e
Alexandre) entreguei a Satanás, a fim de que aprendam a não mais blasfemar (1Tm 1,20). A obra de Satanás
pode ser desfeita por obra de Satanás?Que Pelágio examine estas e outras passagens e considere
demasiado engenhosas certas afirmações suas, tão-só aparentemente engenhosas, mas uma vez
examinadas mostram que são infundadas. E por que quer ilustrar seu pensamento com comparações
que mais nos facilitam a resposta? Ele assim discorre: ‘O que mais direi? Se se acredita que o fogo pode
extinguir o fogo, então se há de acreditar que o pecado é remédio para o pecado’. Se não se pode
apagar o fogo com o fogo, pode-se — como provei — curar a dor com a dor. Com o veneno pode-se
anular também a força do veneno, como ele pode averiguar e assim aprender. E se tiver em conta que
às vezes o ardor da febre se atenua com o calor medicinal, talvez concorde que se pode apagar o fogo
com o fogo” (De nat. et grat. XXVIII, 32).
232 • Com Agostinho, e além dele
5
Ainda no tratado Sobre a Natureza e a Graça, diz: “Pelágio pergunta: ‘Como se há de separar do pecado
a própria soberba?’ Por que esta preocupação, se está claro que a soberba é pecado? Mas ele continua:
‘O ato de pecar implica um ato de soberba, como o ato de soberba implica o de pecado. Examina o que
é cada pecado e vê se deparas algum que não envolva o apelo da soberba’. Ele desenvolve esta sentença
e tenta prová-la com as seguintes palavras: ‘Todo pecado, se não me engano, é desprezo de Deus e
todo desprezo de Deus é soberba. Que maior ato de soberba do que desprezar a Deus? Portanto, todo
pecado é soberba e o confirma a Escritura, que diz: O início de todo o pecado é a soberba’. Examine Pelágio
com toda a atenção e encontrará na Lei profunda diferença entre o pecado de soberba e os outros
pecados. Cometem-se, é verdade, muitos pecados por soberba, mas nem toda má ação é fruto da
soberba, como os pecados por ignorância ou por fraqueza ou os que se cometem entre choros e
Marcone Felipe Bezerra de Lima • 233
gemidos. De fato, a soberba, sendo por si um grande pecado, de tal modo pode existir sem os outros,
que, como antes disse, muitas vezes se imiscui e se introduz com mais rapidez não nas más, e sim nas
boas ações. Por isso, está escrito com muita verdade o que Pelágio entendeu de modo diferente: O início
de todo o pecado é a soberba. Ela lançou por terra o diabo, do qual se origina o pecado, e o qual, por
inveja posterior, derrubou o homem, que estava em pé, da mesma posição de onde ele caiu. E a serpente
procurou a porta do orgulho para entrar, quando disse: Sereis como deuses (Gn 3,5). Por esta razão está
escrito: O início de todo o pecado é a soberba, e: O princípio da soberba do homem é afastar-se de Deus (Eclo
10,15.14)” (De nat. et grat., XXIX, 33).
234 • Com Agostinho, e além dele
Eu, miserável, que frutos colhi das ações que cometi então e que agora
recordo envergonhado, especialmente daquele furto que me satisfez pelo
furto em si e nada mais? De fato, ele em si nada valia, e por isso me tornei
ainda mais miserável! No entanto, eu não o teria praticado, se estivesse
sozinho. Lembro-me bem do meu estado de alma: sozinho não o teria feito
absolutamente. Portanto, amei também no furto a companhia daqueles com
quem o cometi; daí não ser verdade ter amado apenas o furto em si. Não,
não amei mais nada, pois a cumplicidade não é mais um nada. O que será
ela na realidade? Quem me pode responder senão aquele que me ilumina o
coração e lhe dissipa as trevas? Por que me ocorreu indagar, discutir,
analisar estes fatos? Se eu tivesse na ocasião desejado de fato aqueles frutos
que roubei, e com eles me tivesse regalado, poderia tê-los roubado sozinho.
Poderia ter cometido a iniquidade, satisfazendo o meu desejo, sem
necessidade de estimular, por outras companhias, o prurido de minha
cobiça. O fato é que não eram os frutos que me atraíam, mas a ação má que
eu cometia em companhia de amigos que comigo pecavam (Conf., II, 8, 16,
grifo nosso).
6
No tratado Sobre a Natureza e a Graça: “O que querem dizer as palavras de Pelágio: ‘Como o homem
pode se responsabilizar perante Deus pelo resto de pecado, que não reconhece como seu? Se é pecado
necessário, não é seu. Ou se é seu, é voluntário; e se é voluntário, podia ser evitado’. Respondemos: ‘É
totalmente seu, mas a culpa com que é cometido ainda não foi sanada totalmente. O mau uso da saúde
motivou seu enraizamento no homem, o qual, seja por fraqueza, seja por cegueira, se entregou a muitos
pecados, uma vez debilitado. É necessária a súplica para se curar e viver depois com saúde perene. Não
se dê lugar à soberba, como se ao homem devolvesse a saúde a mesma força que o levou ao pecado”
(De nat. et grat., XXX, 34).
236 • Com Agostinho, e além dele
a razão assim lhe fez compreender o seu estado de culpa diante de Deus.
Esse problema conceitual do mal está intrínseco à compreensão da
criação, visto que o entendimento da origem justifica a natureza da
fonte e, assim, sua vontade:
7
COSTA, 2002, p. 100-101, comenta que, no maniqueísmo, Agostinho pensava ter encontrado a
verdadeira resposta ao problema do mal moral no homem, pois como o mal estava na natureza humana
pelo ato de um ser eterno de essência má, não haveria responsabilidade, e sim resultado.
238 • Com Agostinho, e além dele
do Verbo, sempre unido ao Pai, pelo qual Deus diz tudo eternamente, não
pelo som da voz, nem por pensamentos que envolvem o tempo, mas pela luz
coeterna da sabedoria que ele gerou. Mas imita a forma do Verbo, sempre e
de modo imutável unido ao Pai, quando de acordo com a conversão ao que
sempre e verdadeiramente existe, ou seja, ao criador de sua substância, ela
toma sua forma e se torna criatura perfeita segundo a sua espécie. De modo
que no que a Escritura narra: Deus disse: ‘Faça-se’, entendamos a palavra
incorpórea de Deus na natureza de seu Verbo coeterno que chama a si a
imperfeição da criatura para que não seja informe, mas receba sua forma
de acordo com que cada uma é feita seguindo uma ordem. Nesta conversão
e formação, a seu modo imita o Deus Verbo, ou seja, o Filho de Deus, sempre
igual ao Pai com total semelhança e igual essência, pela qual ele e o Pai são
um. Não imita, entretanto, esta forma do Verbo se, afastada do Criador,
mantém-se informe e imperfeita; por isso, não se faz menção do Filho,
porque é Verbo, mas somente porque é princípio, quando se diz: No
princípio, Deus fez o céu e a terra. O começo da criatura se insinua ainda na
informidade da imperfeição; mas se faz menção do Filho, que é também o
Verbo, pelo fato de estar escrito: Deus disse: ‘Faça-se’, e, assim, pelo fato de
ser o princípio, insinua o começo da criatura por ele existente ainda
imperfeita. Mas pelo fato de ser Verbo, insinua a perfeição da criatura, que
chamou a si, para se revestir de forma aderindo ao Criador, e, imitando,
segundo a sua espécie, a forma inerente eternamente e de modo imutável
ao Pai, por quem de modo permanente o Verbo é o que é o Pai (Ibid., IV, 9).
O Verbo Filho não tem uma vida informe. Para ele o ser é viver, mas também
viver é o mesmo que viver sábia e bem-aventuradamente. Mas a criatura,
ainda que espiritual e intelectual ou racional, a qual parece ser a mais
próxima do Verbo, pode ter uma vida informe, pois se para ela ser é o
mesmo que viver, não é o mesmo viver que viver sábia e bem-
aventuradamente. Pois, afastada da Sabedoria incomutável, vive néscia e
miseravelmente, o que representa sua informidade. Reveste-se de forma,
porém, quando se converte para a incomutável luz da Sabedoria, o Verbo de
Deus. Por ele, pois, subsiste de qualquer modo que exista e viva, converte-
Marcone Felipe Bezerra de Lima • 239
O que o Filho fala, o Pai fala, porque o que o Pai fala denomina-se Verbo, e
este é o Filho; o que Deus fala de maneira eterna, se é lícito empregar essa
maneira, é o Verbo coeterno. Pois é inerente a Deus a maior benignidade,
também santa e justa; é na verdade um amor que se volta para suas obras,
não por necessidade, mas por munificência. Por isso, antes que se
escrevesse: Deus disse: ‘Faça-se a luz’, a Escritura fez preceder: E o Espírito
de Deus pairava sobre as águas, ou porque quis denominar pelo nome ‘água’
toda a matéria corporal, para assim insinuar de onde foram feitas e
formadas todas as coisas, as quais já podemos reconhecer cada uma em sua
espécie, ou ainda denominou água porque vemos que todas as coisas na
terra são formadas e crescem em variadas espécies a partir de uma natureza
úmida; ou porque quis designar a vida espiritual como flutuante antes da
forma da conversão. O Espírito de Deus pairava certamente, pois o que quer
que fosse que ele começara a formar e a acabar estava sujeito à boa vontade
do Criador, de modo que, falando Deus em seu Verbo: ‘Faça-se a luz’, em sua
bondade, ou seja, em seu beneplácito permanecesse o que foi feito segundo
a sua espécie. Portanto, é justo que agradasse a Deus, conforme diz a
Escritura: E foi feita a luz; e Deus viu a luz porque era boa (Ibid., V, 11).
Ev. Ignoro se existe alguém que chegue a pecar, sem antes o ter aprendido.
Mas caso isso seja verdade, pergunto: De quem aprendemos a pecar?
Ag. Julgas a instrução (disciplinam) ser algo de bom?
Ev. Quem se atreveria a dizer que a instrução é um mal?
Ag. E caso não for nem um bem nem um mal?
Ev. A mim, parece-me que é um bem.
Ag. Por certo! Com efeito, a instrução comunica-nos ou desperta em nós a
ciência, e ninguém aprende algo se não for por meio da instrução. Acaso
tens outra opinião?
Ev.Penso que por meio da instrução não se pode aprender a não ser coisas
boas.
Ag. Vês, então, que as coisas más não se aprendem, posto que o termo
‘instrução’ deriva precisamente do fato de alguém se instruir.
Ev. De onde hão de vir, então, as más ações praticadas pelos homens, se elas
não são aprendidas?
Ag.Talvez, porque as pessoas se desinteressam e se afastam do verdadeiro
ensino, isto é, dos meios de instrução. Mas isso vem a ser outra questão. O
que, porém, mostra-se evidente é que a instrução sempre é um bem, visto
que tal termo deriva do verbo ‘instruir’. Assim, será impossível o mal ser
objeto de instrução. Caso fosse ensinado, estaria contido no ensino e, desse
modo, a instrução não seria um bem. Ora, a instrução é um bem, como tu
mesmo já o reconheceste. Logo, o mal não se aprende. E em vão que
procuras quem nos teria ensinado a praticá-lo. Logo, se a instrução falar
sobre o mal, será paia nos ensinar a evitá-lo e não para nos levar a cometê-
lo. De onde se segue que, fazer o mal, não seria outra coisa do que renunciar
à instrução. (Pois a verdadeira instrução só pode ser para o bem)(Ibid., I, 1,
2, grifo nosso).
242 • Com Agostinho, e além dele
Ev. Seja como dizes, já que tão fortemente me obrigas a reconhecer que não
aprendemos a fazer o mal. Dize-me, entretanto, qual a causa de
praticarmos o mal?
Ag. Ah! Suscitas precisamente uma questão que me atormentou por demais,
desde quando era ainda muito jovem. Após ter-me cansado inutilmente de
resolvê-la, levou a precipitar-me na heresia (dos maniqueus), com tal
violência que fiquei prostrado. Tão ferido, sob o peso de tamanhas e tão
inconsistentes fábulas, que se não fosse meu ardente desejo de encontrar a
verdade, e se não tivesse conseguido o auxílio divino, não teria podido
emergir de lá nem aspirar à primeira das liberdades — a de poder buscar a
verdade. Visto que a ordem seguida, então, atuou em mim com tanta
eficácia para resolver satisfatoriamente essa questão, seguirei igualmente
contigo aquela mesma ordem pela qual fui libertado. Seja-nos, pois, Deus
propício e faça-nos chegar a entender aquilo em que acreditamos. Estamos,
assim, bem certos de estar seguindo o caminho traçado pelo profeta que diz:
‘Se não acreditardes não entendereis’. Ora, nós cremos em um só Deus, de
quem procede tudo aquilo que existe. Não obstante, Deus não é o autor do
pecado. Todavia, perturba-nos o espírito uma consideração: se o pecado
procede dos seres criados por Deus, como não atribuir a Deus os pecados,
sendo tão imediata a relação entre ambos? (De lib. arb., I, 2, 4, grifo nosso).
que a luz, tão cara aos olhos límpidos, seja desagradável aos olhos irritados.
Tua justiça desagrada aos homens maus, e com maior razão lhes
desagradam as víboras e vermes que criaste bons e de acordo com a parte
inferior da criação. Com esta parte também os malvados estão de acordo, e
tanto mais quanto mais diferem de ti. Por outro lado, os justos são tanto
mais parecidos com os elementos superiores da criação, quanto mais se
tornam semelhantes a ti. E procurando o que era a iniquidade compreendi
que ela não é uma substância existente em si, mas a perversão da vontade
que, ao afastar-se do Ser supremo, que és tu, ó Deus, se volta para as
criaturas inferiores; e, esvaziando-se por dentro, pavoneia-se
exteriormente (Conf., VII, 16, 22, grifo nosso).
Escutei, Senhor meu Deus, e consegui recolher uma doce gota da tua
verdade. Compreendi que a alguns desagradam as tuas obras. Sustentam
que muitas delas criaste impelido pela necessidade; assim, por exemplo, a
estrutura dos céus e o sistema dos astros. Dizem que essas não foram
criadas por ti, mas que já existiam, provindas de outra fonte. Tu as terias
apenas reunido, compondo-as e coordenando-as, quando edificaste as
muralhas do mundo, depois de teres vencido os teus inimigos, para que,
cativos nessa construção, não pudessem de novo rebelar-se contra ti.
Quanto aos outros seres, não os terias criado nem ao menos ordenado;
assim, por exemplo, os corpos carnais, os animais menores e tudo o que se
radica na terra; teria sido um espírito hostil e uma natureza não criada por
ti e oposta à tua, quem teria gerado e formado tais seres nas regiões
inferiores do universo. São loucos os que assim falam, porque não vêem as
Marcone Felipe Bezerra de Lima • 245
tuas obras através do teu espírito, nem nelas te reconhecem (Conf., XIII, 30,
45).
8
A esse respeito, cf. MONDIM, 1981, p. 156-157, que diz: “A causa do mal não é Deus. Sendo o mal a
privação de perfeição devida, Deus não pode ser seu autor, porque, fazendo as coisas, Deus lhes dá tudo
o que lhes é necessário, todo o ser que lhes compete. ‘Como poderia, com efeito, aquele que é a causa
do ser de todas as coisas ser a causa do não ser?’ Logo, a causa do mal não é Deus. Resta que a causa
do mal seja a criatura. Esta conclusão se tira também do exame das duas formas principais sob as quais
o mal se manifesta: o sofrimento e a culpa. Ora, o responsável pela culpa é o homem. O mal tem, pois,
como causa última o homem. Em que consiste a culpa? Em submeter-se a razão humana à paixão, em
desobedecer às leis divinas, em afastar-se do bem supremo. Quando um homem se afasta do bem
imutável e se volta para um bem particular, inferior, peca, e nisto consiste o mal”.
246 • Com Agostinho, e além dele
sem saber que minha ida deveria separar-nos para sempre. O prefeito
Símaco, após submeter-me à prova de um discurso, me fez partir. Assim
que cheguei a Milão, encontrei o bispo Ambrósio, conhecido no mundo
inteiro como um dos melhores, e teu fiel servidor. Suas palavras
ministravam constantemente ao povo a substância do teu trigo, a alegria
do teu óleo e a embriaguez sóbria do teu vinho. Tu me conduzias a ele sem
que eu o soubesse, para que eu fosse por ele conduzido conscientemente a
ti. Esse homem de Deus acolheu-me paternamente e ficou feliz com a minha
chegada, na bondade digna de um bispo. Comecei a estimá-lo, a princípio
não como mestre da verdade, pois não tinha esperança de encontrá-la em
tua Igreja, mas como homem bondoso para comigo. Acompanhava
assiduamente suas conversas com o povo, não com a intenção que deveria
ter, mas para averiguar se sua eloquência merecia a fama de que gozava, se
era superior ou inferior à sua reputação. Suas palavras me prendiam a
atenção. Mas, o conteúdo não me preocupava, até o desprezava. Eu me
encantava com a suavidade de seu modo de discursar; era mais profundo,
embora menos jocoso e agradável que o de Fausto quanto à forma. A
respeito do conteúdo, porém, não era possível qualquer comparação:
perdia-se este último entre as falsidades dos maniqueus, ao passo que o
outro ensinava a doutrina mais sadia da salvação. Mas, a salvação está longe
dos ímpios. Eu era um deles, ainda que estivesse me aproximando dela
paulatinamente e sem o perceber (Conf. V, 13, 23, grifo nosso).
1. (1) Tantas têm sido as controvérsias entre os homens, que alguns deles,
como Platão e seus discípulos, estabeleceram três princípios para todas as
coisas: Deus, o modelo e a matéria. Afirmaram que estes princípios são
incorruptíveis, incriados e sem início; que Deus não é propriamente o
criador da matéria, mas o artífice em vista de um modelo. Quer dizer:
atentando para a ideia, Deus fez o mundo da matéria que eles chamam υλη,
a qual deu a todas as coisas as condições de gerar. Eles julgam também que
o mundo em si mesmo é incorruptível, nem criado nem feito. Outros ainda,
como pensava Aristóteles ao debater com seus discípulos, estabeleceram
dois princípios: matéria e forma, e com estes um terceiro, chamado
princípio eficiente, ao qual competia produzir convenientemente o que
julgasse necessário. (2) Ora, o que pode ser tão inadequado como ligar a
eternidade da obra com a eternidade do Deus onipotente, ou então dizer que
a obra em si mesma é deus, e envolver céu, terra e mar com honras divinas?
Daí resultou acreditarem que partes do mundo fossem deuses, embora o
mundo em si mesmo não seja entre eles uma questão de pouca monta. (3)
Com efeito, Pitágoras propõe um único mundo. Outros dizem que existem
mundos inumeráveis, como escreve Demócrito, cujo antigo prestígio
influenciou a maior parte dos filósofos naturalistas. Aristóteles chega a
dizer que o mundo em si mesmo sempre existiu e existirá. Em
contrapartida, Platão ousa afirmar que o mundo não existiu sempre, mas
sempre existirá, embora muitos provem, com os escritos dele, que o mundo
não existiu sempre, nem sempre existirá. (4) Em meio às dissensões destes
filósofos, como se pode reconhecer a verdade? Pois uns dizem que o mundo
é Deus, porque a seu ver a mente divina parece ser-lhe imanente; outros,
9
Se Ambrósio escreveu o Examerão em 387 ou 388, Agostinho quando se batizou aos 33 anos em 387,
ou teve acesso à obra ou às homilias do Bispo.
250 • Com Agostinho, e além dele
que partes do mundo são deuses, outros, tanto uma coisa como outra. E a
propósito: não se pode compreender a forma dos deuses, nem seu número,
nem lugar, vida ou cuidados. Pois em verdade, entendido como mundo,
deve-se conceber um deus redondo, incandescente, a girar, impulsionado
como que por movimentos sem sentido, impelido por movimento alheio,
não próprio (AMBRÓSIO, 2009, p. 17-18).
Por tudo isso, prevendo pelo Espírito divino que surgiriam estes erros dos
homens, e talvez já tivessem começado a surgir, o santo Moisés assim diz
no início de suas palavras: No princípio Deus fez o céu e a terra. Uniu o início
das coisas, o autor do mundo e a criação da matéria, para compreenderes o
seguinte: primeiro, que Deus existia antes do início do mundo, ou melhor,
que Ele é o início de todas as coisas (assim, como no Evangelho, àqueles que
diziam: Tu, quem és? – o Filho de Deus respondeu: o princípio, e que vos falo);
segundo, que Deus deu o início à geração das coisas; terceiro, que Deus é o
Criador do mundo – e não um imitador da matéria, comandado por uma
certa ideia, e que da matéria tivesse formado suas obras não por seu próprio
arbítrio, mas pela contemplação de um modelo. E Moisés diz muito bem: No
princípio fez. Expressou desta forma a incompreensível rapidez da obra,
apresentando o resultado da ação realizada, de preferência à indicação do
seu começo. (6) Vejamos quem é a pessoa que diz isso. Moisés era em
verdade um erudito, versado em todo o conhecimento dos egípcios. Tirado
do rio, a filha de Faraó o amou como a um filho; sustentado com recursos
reais, ela quis que ele fosse formado e instruído em todas as disciplinas da
sabedoria do seu tempo. Este Moisés, embora tivesse recebido seu nome da
água, não pensou que devia dizer que todas as coisas são constituídas de
água, como diz Tales; embora tivesse sido educado no palácio real, preferiu
sofrer um exílio voluntário, por amor da justiça, a permanecer no auge do
poder e acrescentar aos prazeres a prática do pecado. Finalmente, antes de
ser chamado à missão de libertar o povo, impelido de inato zelo pela justiça,
vingou a injúria sofrida por um de seus compatriotas; atraiu sobre si a
inveja e apartou-se dos prazeres. Quando arrefeceu completamente o
tumulto na casa real, dirigiu-se a um lugar distante na Etiópia; lá, afastado
das demais ocupações, orientou todo o seu espírito para o conhecimento
divino e assim viu a glória de Deus face a face. A Escritura atesta que não
surgiu em Israel nenhum profeta maior do que Moisés, que conheceu o Senhor
face a face. Não falou com o sumo Deus nem em visão, nem em sonho – mas
boca a boca; não foi agraciado em figura nem por alegorias –, mas com a
honra clara e evidente da presença divina. (7) Assim este Moisés abriu sua
boca e extravasou aquilo que o Senhor falava nele, conforme o que lhe
dissera, quando o enviou a Faraó, rei do Egito: Vai, que eu abrirei tua boca e
te ensinarei o que deves falar. Ora, se o que ele devia dizer a respeito do povo
252 • Com Agostinho, e além dele
que ia libertar, ele o recebera de Deus, quanto mais o que devia dizer a
respeito do céu. Portanto, não foi em argumentação de sabedoria humana,
nem em disputas artificiosas de filosofia, mas sim numa demonstração de
espírito e virtude, como testemunha da obra divina, que ele ousou dizer: No
princípio Deus fez o céu e a terra. Não, ele não ficou assistindo a um processo
lento e desnecessário, até que o mundo se formasse por uma aglomeração
de átomos. Também não julgou que Deus devia ser entendido como um
simples aprendiz da matéria, a qual contemplasse para poder plasmar o
mundo, mas devia ser entendido como Criador. Com efeito, homem cheio
de sabedoria, ele adverte que só a mente divina contém a substância e as
causas das coisas visíveis e invisíveis – e não, como discutem os filósofos,
que uma aglomeração mais densa de átomos é responsável pela constância
dos ajuntamentos. Moisés julgou que aqueles que estabelecem princípios
tão diminutos e insubstanciais para o céu e para a terra, tecem uma teia de
aranha. Pois estes princípios, assim como fortuitamente se agregam, assim
também fortuita e casualmente se desagregam – a não ser que subsistissem
pela Divina Virtude de seu Timoneiro. Mas não é à toa que eles desconhecem
o Timoneiro, pois que não conheceram a Deus, por quem todas as coisas são
regidas e guiadas. Portanto, sigamos aquele que conheceu o Criador e o
Timoneiro – e não nos deixemos levar por vãs conjecturas (AMBRÓSIO,
2009, p. 18-21).
meus pais, até que alguma certeza viesse apontar-me o caminho a seguir
(Conf., V, 14, 24, grifo nosso) 10.
10
Cf. Conf., XIII, 28,43; 33,48: “Ó Deus, viste finalmente que todas as coisas que tinhas criado eram ‘muito
boas’. Também nós as vemos, e observamos que são todas muito boas. Depois de dizeres a cada uma
das espécies das tuas obras que fossem criadas, e depois de elas o serem, viste que eram boas. Contei
que sete vezes está escrito que tu julgaste boa a obra que criaste. A oitava vez foi quando, completadas
todas as tuas obras, tu as julgaste não somente boas, mas ótimas, quando tomadas em conjunto. Cada
uma das criaturas em particular era boa, mas, tomadas em conjunto, eram muito boas. O mesmo se diz
da beleza dos corpos, porque o corpo, que é composto de membros belos, é bem mais belo que os
membros separadamente, cujo conjunto harmonioso compõe o todo, embora os membros
considerados separadamente sejam belos também. Tuas obras te louvam para que te amemos. E nós te
amamos, para que tuas obras te louvem, elas que tiveram início e fim no tempo, nascimento e morte,
progresso e regresso, beleza e imperfeição. Todas elas têm sucessivamente manhã e tarde, ora oculta
ora manifestamente. Do nada foram criadas por ti, não da tua substância; não de alguma matéria não
tua que existisse antes de ti, mas de matéria concreta, criada por ti ao mesmo tempo que lhe deste uma
forma sem nenhum intervalo de tempo. Uma coisa é a matéria do céu e da terra, outra é a aparência do
céu e da terra. Essa matéria foi criada do nada, e essa forma do mundo foi tirada da matéria informe,
mas essas duas operações foram simultâneas, de modo que entre a forma e a matéria não houve
intervalo de tempo”.
Marcone Felipe Bezerra de Lima • 255
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
AMBRÓSIO, Santo. Examerão: os seis dias da criação. Tradução de Célia Mariana Franchi
Fernandes da Silva. São Paulo: Paulus, 2009. 278 p. [Coleção Patrística, n. 26].
COSTA, Marcos Roberto Nunes. 10 lições sobre Santo Agostinho. 4 ed. Petrópolis: Vozes,
2014.
SILVA, Severino Pedro da. A doutrina do pecado. Rio de Janeiro: CPAD, 2013.
INTRODUÇÃO
1
Bacharel em Teologia pela Faculdade Teológica Integrada – FATIN (2013); Licenciado em Filosofia pela
Universidade Federal de Pernambuco – UFPE (2016); Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de
Pernambuco – UFPE (2019). E-mail: lincow_cbj@hotmail.com
260 • Com Agostinho, e além dele
2
Tomando por exemplo a palavra “libertas”, percebe-se que nem sempre há uma distinção da
terminologia latina de Agostinho para “liber”, devido a língua latina apresentar um único adjetivo qual
significa o gozo do livre-arbítrio e o gozo da liberdade, para esta dificuldade que abrange outras obras
mais extensas de Agostinho, Cf. GILSON,2010,309-310; Cf. ROLAND J. TESKE in: FITZGERALD, 2001, p. 931-
936.
3
ROLAND J. TESKE in: FITZGERALD, 2001, p.931-936, conceitua múltiplas definições que Agostinho toma
por libertas, tendo sido utilizado significado desta palavra no sentido político (Cf. Civ. Dei 1.4; 3.21; 6.10;
18.26; Ep. 204) e sentindo religioso (Cf. Grat. et Pecc. or. 1.18.19–1.21.22). Em seu sentido religioso,
Agostinho define subcategorias de libertas, como por exemplo ao falar da liberdade pré-lapsariana (Cf.
Corrept. 10.26–12.37; C. Jul. imp. 1.94; Persev. 7.13) e liberdade pós-lapsariana (Cf. Trin. 11.5.8), bem como
a verdadeira liberdade e falsa liberdade que merecem definições para uma boa compreensão da obra
Confessiones. Ainda acerca das definições sobre a liberdade, há as definições de libertas maior e libertas
minor, por isso diz PEGUEROLES in COSTA, 2012, p.51: “Santo Agostinho às vezes distingue dois graus de
liberdade, que chama de menor e maior, liberum arbitrium e libertas. Outras vezes, distingue três graus
de liberdade: liberum arbitrium, libertas minor e libertas maior. No primeiro caso, liberum arbitrium é a
possibilidade do bem, libertas é a necessidade do bem. No segundo caso, liberum arbitrium é o mesmo
que voluntário, libertas minor é a possibilidade do bem e libertas maior é a necessidade do bem”. Cf.
SILVA, 2019, p.26-40; SPROUL, 2012, p.57; Para uma expansão conceitual mais moderna e ampla, Cf.
MORELAND e CRAIG, 2005, p.334.
4
Não há um consenso se houve um radicalismo ou mudança de posicionamento de Agostinho frente a
concepção da relação entre graça e livre-arbítrio. De acordo com GILSON, 2010, p.300 os entraves de
Agostinho contra os pelagianos levaram o Bispo de Hipona a duras consequências e má interpretação
do significado de libertas por parte de seus leitores, já STUMP, 2016, p.2010-2011, ao falar sobre o De
Libero arbítrio, mostra que o posicionamento de Agostinho se preserva o mesmo ao longo de sua vida,
tendo apenas o destinatário diferente, ou seja, quando em tratativa contra o maniqueísmo era
necessário maior ênfase no livre-arbítrio e quando contra os pelagianos, maior ênfase na graça. Ainda
sobre esta temática, STEAD, 1999, 212-215, afirma um posicionamento mais radical de Agostinho no
que tange o conceito de liberdade e graça, principalmente quando se comparam as obras da
maturidade e a obra De Liberum Arbitrium. Cf. COSTA, 2002, p.357
Claubervan Lincow Silva • 261
5
O efeito causal ou causação, pode ser definido como: “relação entre duas coisas, isto é, a causa e o
efeito. Para o compatibilista, o único tipo de causação é aquela chamada de causação evento-evento
(também denominada situação-situação). O único tipo de entidade que pode ser colocada na relação
causal é o evento.” Cf. MORELAND e CRAIG, 2005, p.346.
6
O autor dá uma ênfase na ação da graça no sentido volitivo do homem, de modo que, a atuação da mesma
(graça) é aplicada sem ser sentida e de modo incitativo, tornando o homem verdadeiramente livre, fazendo
com que sua livre vontade se direcione para onde a graça assim o quer, dessa forma Agostinho afirma não
apenas a graça como causa primeira da boa ação do homem, mas também como socorro e misericórdia
perante uma vontade que por si só, só quer o mal. Conf. VII. 8.12: “Com um aguilhão secreto provocavas em
mim a inquietude, para que eu me mantivesse insatisfeito, até que te tornasses uma certeza ao meu olhar
interior. Meu tumor diminuía ao contato misterioso de tua mão benfazeja. A vista perturbada e obscurecida
de minha inteligência melhorava dia a dia, graças ao colírio de dores curativas”
7
Portanto a vera libertas possui um valor tanto antropológico como soteriológico dentro do pensamento
agostiniano, pois com a ação da vontade de acordo com as leis divinas, o homem não mais é escravizado
pelos malefícios oriundos de uma vontade caída, atingida pelo pecado original que é dividida por sua
própria concupiscência (Conf. VII.5.10; VII.11.25), mas a vontade passa a querer (amar) o bem. Cf. Conf.
IV.4.7. ROLAND J. TESKE in: FITZGERALD, 2001, p.934: “(...) o prazer espontâneo da vontade no bem
liberta-a dos constrangimentos do temor e da concupiscência associados com os hábitos carnais que
262 • Com Agostinho, e além dele
ditam uma dura servidão ao mal (...). Ao contrário da lei do pecado, que liga a vontade ao mal, a lei da
liberdade liberta a vontade da necessidade de pecar.”
8
Como veremos mais adiante ao retratar a relação de Graça e liberdade na obra Confessiones. Cf. Conf.
II.6.12.
9
Tratando dos pecados cometidos e das culpas que lhe atingira (Conf.III.3.5), o Bispo de Hipona faz mais
uma distinção salutar para a sua concepção de liberdade. Ao utilizar do artifício da retórica, citando o
que “não é” para explicar “o que é”, Agostinho cita a liberdade de um fugitivo, qual retrata uma
“liberdade” condicionada ao pecado. Cf. Conf. III. 3.5: “Por isso me puniste com graves castigos; mas estes
eram nada diante das minhas culpas, ó Deus meu, ó misericórdia infinita, que és o meu refúgio contra
esses males terríveis, entre os quais presunçoso divaguei, de cabeça erguida, afastando-me de ti cada
vez mais, ao amar os meus, e não os teus caminhos, ao amar a liberdade de um fugitivo.”
Claubervan Lincow Silva • 263
10
SPROUL, 2012, p.44 afirma acerca da importância da graça na teologia agostiniana: “‘A grande
contribuição que Agostinho deu à vida e ao pensamento do mundo’, diz B. B. Warfield, ‘é a
personificação na teologia da graça, que ele apresentou com notável clareza e força, vitalmente em suas
Confessions, e dogmaticamente nos seus tratados antipelagianos’. De acordo com Warfield, Agostinho
estabeleceu a graça como algo indispensável à vida cristã: ‘Essa doutrina da graça veio das mãos de
Agostinho com seu esboço positivo e completamente reformulado: o homem pecador depende
inteiramente, para a sua recuperação para o bem e para Deus, da graça livre de Deus; essa graça é, por
essa razão, indispensável, preveniente, irresistível, infalível; e sendo assim a livre graça de Deus deve ter
consistido, em todos os detalhes da sua conferência e obra, na intenção de Deus desde toda a
eternidade’. Warfield apreendeu a essência do foco central de Agostinho na graça.” Segundo STEAD,
1999, p.2016: “a doutrina de Agostinho sobre a necessidade vital da graça divina foi geralmente aceita
como uma contribuição decisiva para teologia cristã (...)”.
11
Segundo Stead (199, p.213), não só o conceito de gratia tem a influência do neoplatonismo, mas o
próprio de libertas teve sua ressignificação a partir do neoplatonismo. Deste modo, Stead compreende
que Agostinho influenciado por Plotino, elabora um novo significado para liberdade (mais amplo do
que o utilizado no De Liberum arbitrium) absorvendo o conceito non posse peccare: “Essa paradoxal
definição (non posse peccare) sugere que o homem realmente bom perde sua liberdade de escolha; uma
fórmula melhor indicaria que ele escolhe livremente, mas todas as suas escolhas são boas”.
12
Para uma abordagem mais pormenorizada acerca da influência do Neoplatonismo na filosofia
agostiniana, Cf. COSTA, 2002, 152-195.
264 • Com Agostinho, e além dele
13
Agostinho utiliza a graça em quatro grandes definições, sendo a primeira definição: 1) graça praeveniet,
encontrada nos Salmos 59:10 e é por esta graça que Deus age na volição de primeira e segunda ordem
do homem, ou seja, a graça praeveniet é a ação primária de Deus no intelecto do homem, em sua
imaginação e em seus desejos. Cf. KELLY,1994, p.278; De nat. et. Grat.35. 2) Há a graça que auxilia a
vontade do homem após ser despertada pela graça praeveniet atuando nas volições de segunda ordem,
por isso, Agostinho atribui a ela o nome de graça cooperante, Cf. De nat. et. Grat.33. Outra definição, 3)
A graça adiuntorium sine quo, graça esta possuída por Adão, qual tinha a finalidade de estabelecer nele
o posse non peccare (pode não pecar) encontrada em De nat. et. Grat.29-34. Cf. KELLY, 1994, p.273; SILVA,
2019, p.41; COSTA, 2002, p.357; SPROUL, 2012, p.46. E por fim, 4) Agostinho toma como definição de
graça, a graça adiuntorium quo, possuindo por definição, ser uma graça concedida aos eleitos e
predestinados, que tem à vontade em total acordo com aquilo que Deus quer, ou seja, uma vida em
plena retidão. Cf. COSTA, 2002, p.364.
14
A ação da graça na liberdade humana age por meio da presciência divina, onde Deus conhece os
acontecimentos que sucederão, de modo compatibilista, Conf. VII.4.6: “De modo algum pode a corrupção
afetar o nosso Deus, seja por uma vontade, seja por qualquer necessidade ou seja por qualquer
acontecimento imprevisto, porque ele é o próprio Deus, e tudo o que quer para si é bom, e ele próprio é o
bem; porém estar sujeito à corrupção não é um bem. Tu não podes ser obrigado a alguma coisa contra a
tua vontade, pois tua vontade não é maior que o teu poder; e somente seria maior, se fosses maior que tu
mesmo. O poder e a vontade de Deus são o próprio Deus. Para ti, que tudo conheces, existe acaso algo
imprevisto? Enfim, nenhum ser existe, senão enquanto o conheces”. Cf. MORELAND e CRAIG, 2005,p.335-
337.Isso garante ao homem uma ação verdadeiramente livre, pois mesmo que em última instância essa
proposição requeira um domínio soberano de Deus, Deus por seu conhecimento sabe de todas as escolhas
“livres” qual o homem fará, e fazendo as escolhas para o bem, há a concretização da verdadeira liberdade.
Esta teoria não é de todo inovadora e própria do pensamento de Agostinho, Orígenes por exemplo em
Princ. 3.12-13 sugere um pensamento muito semelhante. Deste modo, Agostinho insere a causalidade nas
ações fortuitas do homem, sendo regidas por Deus que controla deterministicamente por meio da graça,
mas não viola o arbítrio humano. Cf. STEAD, 1999, p.215
Claubervan Lincow Silva • 265
15
Esse mesmo comentarista (KELLY, 1994, p.277) ao falar da graça e predestinação acentua o significado
de graça afirmando: “E não se pode limitar a graça apenas às ajudas externas que os pelagianos estavam
dispostos a aceitar. Antes mesmo de começarmos a desejar o que é bom, a graça de Deus precisa estar
em operação dentro de nós. Ela é, portanto, ‘um poder interno e secreto, maravilhoso e inefável’,
mediante o qual Deus opera nos corações dos homens.”.
16
As Confissões de Agostinho, escrita em 397-400 podem ser caracterizadas como um desnudo da alma
do autor, tendo como temática aquilo mesmo que seu título propõe, confessar uma alma que de modo
simultâneo escancara seus pecados, mostra quem é o verdadeiro “eu” e enaltece o Criador de todas as
coisas, atribuindo-lhe todo bem e toda dádiva. Esta Obra não apenas demonstra conotações literárias
de testemunhos pessoais, com uma exímia habilidade da língua e domínio da retórica, mas assim como
grande parte dos escritos de Agostinho, ela contém reflexões filosóficas que auxiliaram a construção de
todo um legado posterior. Cf. Clássicos da literatura cristã, 2015, p.213: “O bispo Agostinho de Hipona
(354-430) é uma das figuras exponenciais da história da Igreja e da tradição cultural do Ocidente. Um
dos teólogos e filósofos mais destacados do cristianismo, ele influenciou poderosamente não só o
pensamento católico, mas também a Reforma protestante. Confissões é considerada uma de suas obras
principais, ao lado de A cidade de Deus e A Trindade. Ela foi a primeira obra a explorar amplamente os
estados interiores da mente humana e o relacionamento mútuo entre graça e livre-arbítrio”.
17
De acordo com Amarante (in. Conf., 1997, p.9), a tradução desta frase dá-se de seguinte modo: “Tu o
incitas para que sinta prazer em louvar-te”, também segue uma tradução semelhante OLIVEIRA e DE
PINA in Conf., 2014, p.27, qual diz: “Vós o incitais a que se deleite nos vossos louvores”, já PISETTA in
Conf., 2015, p.219, traduz: “Tu nos despertaste para o prazer em te louvar”. Em ambas as traduções, a
força verbal em “tu excitas” demonstra a ação do agente sobre o locutor, isto é, a ação primeira de Deus
no homem.
266 • Com Agostinho, e além dele
18
É importante ressaltar que os Pais da Igreja, principalmente os Padres gregos, já se debruçavam acerca
da: antropologia, influência da queda de Adão, suas consequências (Hamartologia) e da relação da graça
e livre-arbítrio (mesmo que lhes faltassem a potência e notoriedade qual o Bispo de Hipona deu a este
assunto). Cf. KELLY, 1994, p.262-266; Cf. Gregório de Nazianzo, 37,21; Cf. Gregório de Nissa, or.cat.30s. O
pai grego Gregório de Nazianzo afirmava por exemplo, que havia uma cooperação entre graça e livre
arbítrio, donde em Or.37.13-15, ele mostra haver uma relação sinergística na salvação, isto é, o homem
tem participação ativa no querer e fazer o bem. O padre Crisóstomo, afirmava de modo semelhante em
In Gen. Hom. 25.7, onde segundo ele, Deus fortalece o desejo do homem, cooperando então com a
atuação do livre-arbítrio.
19
De acordo com GILSON (2010, p.298), deve ser observado que a escolha voluntária nunca ocorre de
maneira casual, mas há sempre causalidade na voluntariedade desta escolha, GILSON, 2010, p.298:
“Certamente, a escolha voluntária nunca ocorre sem motivos, e alguns motivos podem pesar sobre ela
com uma força irresistível; o livre-arbítrio é precisamente uma escolha que se exerce em virtude de
motivos.”
Claubervan Lincow Silva • 267
20
Agostinho encerra o livro I demonstrando que todo o bem é advindo de Deus, sendo impossível o
homem fazer ou querer qualquer bem se de Deus não for doado gratuitamente. Cf. Conf. I.20.31:
“Portanto, bom é aquele que me criou. Ele é o meu bem, e eu exulto em sua honra por todos os bens
que constituem a minha existência desde a infância. Meu pecado era não procurar nele, e sim nas suas
criaturas — isto é, em mim mesmo e nos outros — os prazeres, as honras e a verdade. Eu me precipitava
assim na dor, na confusão e no erro. Graças a ti, ó minha doçura, minha glória, minha confiança, meu
Deus, pelos dons que me deste. Conserva-os, pois. E assim me conservarás. Então crescerá e se
aperfeiçoará tudo o que me deste. E eu mesmo viverei contigo, porque foste tu que me deste a
possibilidade de existir”.
21
Um dos pontos da Hamartiologia agostiniana consiste quando o homem se acha autossuficiente a
ponto de querer encontrar ou desfrutar dos bens que só podem ser obtidos em Deus, Cf. Conf.II.6.14: “É
assim que o homem peca, quando se afasta de ti e busca fora de ti a pureza e a limpidez, que ele não
pode encontrar senão voltando para ti”
268 • Com Agostinho, e além dele
mas de uma falsa liberdade (manca libertas) que estava escravizada pelo
pecado. 22
Agostinho mostra que a liberdade além de libertar do julgo da
escravidão do pecado em um sentido regenerador (regenerationem a
reatu peccati), também preserva na prática da bondade 23 aquele qual
desfruta deste dom 24, sendo aí o ponto sine qua non para afirmar-se que
é impossível atrelar liberdade ao pecado.
Concomitantemente ao falar dos fundamentos naturais da moral,
elencando as três principais fontes da iniquidade: paixões do poder,
paixões da curiosidade e paixões da satisfação dos sentidos
(Conf.III.8.16); Agostinho retoma a partir da reflexão antimaniquéia o
que seria o pecar, isto é, ir contra a justa ordem, reverberando a
perversão da própria natureza, ficando o homem cativo ao pecado não
obtendo liberdade, sendo engodado por uma pseudoliberdade 25.
22
Agostinho revela acerca desse fato, Conf. II.6.14: “Mas o que foi que achei naquele roubo, em que foi
que imitei o meu Senhor, ainda que mal e pervertidamente? Talvez eu tenha sentido prazer em agir
contra a lei pela fraude, já que não o podia fazer pela força, para imitar, escravo que era, uma falsa
liberdade, praticando impunemente o que não me era lícito, mediante uma tenebrosa paródia de tua
onipotência. Eis-me aqui, escravo que foge do seu senhor, à procura da escuridão. Oh, podridão! Oh,
vida monstruosa! Oh, abismo da morte! Como pude achar prazer no ilícito somente por ser ilícito?”
23
Nesta questão da perseverança dos santos, o conceito de libertas de Agostinho carrega uma
similaridade com o pensamento de Orígenes contido em sua obra Orig. Princ. 1.4.1. Orígenes sustenta
que o homem que é verdadeiramente bom, não cometerá pecados graves e os pecados de menor
potencial serão logo corrigidos. Cf. STEAD,1999, p.213.
24
Agostinho afirma neste ponto Cf. Conf.II.7.15: “Que esse alguém apenas te ame meu Deus, ainda mais,
reconhecendo que aquele que me libertou da exaustão do pecado, o preservou também da mesma
funesta debilidade.” Entre outros assuntos a preservação da graça seria um preâmbulo para dois futuros
livros que Agostinho escreveria no combate contra os pelagianos, o primeiro sob o título: “De
praedestinatione sanctorum”, escrito em 429, sendo um dos últimos livros escritos por Agostinho
(posterior a obra Retractione), qual defende seu posicionamento acerca da predestinação e graça. A
segunda obra é “De Dono Perseverantiae”, escrito também em 429, cuja função seria dirimir os
questionamentos levantados pelos monges e clérigos da Gália, a respeito da predestinação. Cf. SILVA,
2019, pp.131-155.
25
É possível perceber nesse trecho qual Agostinho diz, Conf. III.8.16, grifo nosso.: “Por orgulho individual
ama-se uma parte de ti, falsamente tomada pelo todo. E assim retornamos a ti com humilde piedade, e
tu nos purificas dos maus hábitos, e te mostras indulgente para com quem se reconhece pecador,
Claubervan Lincow Silva • 269
“ouves os lamentos dos cativos”, e nos libertas daqueles grilhões que nós mesmos preparamos, contanto
que jamais nos ergamos contra ti em atitude de falsa liberdade, cobiçosos de possuir mais, com o risco
de tudo perder, dando mais preferência ao nosso bem particular do que a ti, que és o bem universal.”Cf.
Conf.II.4.9; Cf. SILVA,2019, p.35
26
O debate entre a relação da graça (determinismo) e liberdade humana, transcendeu o período de vida
de Agostinho, ultrapassando épocas (com mais ou menos ênfases na persona divina) mas com uma
objetivação de tentar entender a relação metafísica e ontológica do tema. Deste modo podemos tomar
algumas definições de compatibilismo: “como posição de que um ato está sendo causalmente
determinado é compatível com o fato de ser um ato pelo qual um agente é moralmente responsável
ou um ato que um agente fez de vontade livre (...)”, STUMP, 2016, p.209. Ao expor este embate paradoxal
entre determinismo e liberdade, os autores MORELAND e CRAIG, 2005, p.335, definem como
compatibilismo a forma filosófica qual “defende que a liberdade e o determinismo são compatíveis
entre si; portanto, a verdade do determinismo não anula a liberdade.” Outra definição importante de
Compatibilismo, desta vez não de modo abrangente, mas aplicado à filosofia agostiniana, é a de
STEAD,1999, p.215: “Observa que todas as nossas decisões devem ser tomadas levando em consideração
os impulsos que nos acometem em grande parte ao acaso. Ora, por exemplo, ouvimos cantar um hino,
ora topamos com uma prostituta provocante, e de imediato há uma resposta involuntária, a que os
estóicos chamam de propatheia, antes que possamos identificar e controlar nossos pensamentos.
Agostinho sustenta que Deus pode tramar quais impulsos acometerão um homem a cada momento,
sabendo como ele responderá, e assim pode levá-lo à ação que está preestabelecida, sem violar seu
livre-arbítrio. Deus não interfere em nenhum movimento de vontade que controlamos
conscientemente; ele simplesmente controla aquilo que a nossos olhos parece serem fortuitos. Essa
teoria tem um interesse filosófico já que Agostinho adota aquilo que alguns filósofos chamaram de
posição “compatibilista”: a liberdade humana, em certo sentido, é compatível com um curso dos
acontecimentos completamente determinado. E sua repercussão teológica é que o futuro, inclusive
nosso próprio destino pessoal, é não só previamente conhecido, mas predeterminado.” Cf.
INCANDELA,1994, pp.148-153; Cf. SILVA,2019, pp.169.
27
No trecho em seu livro, Agostinho relata, Conf. V.1.1: “Quem a ti se confessa, nada de novo te informa
de quanto lhe vai na alma, pois nem o coração mais fechado pode subtrair-se ao teu olhar, nem a dureza
dos homens pode afastar a tua mão: tu a tornas branda de acordo com o teu querer, seja perdoando,
seja punindo. Ninguém pode fugir ao teu calor”
270 • Com Agostinho, e além dele
por meio da sua graça agia em seu coração, “(...) enquanto a tua mão
suave e misericordiosa plasmava e formava pouco a pouco o meu
coração, eu refletia na infinidade de fatos em que acreditava, sem tê-los
visto ou deles ter sido testemunha” (Conf. VI.5.7), sendo uma ação ativa
da vontade de Deus na volição de Agostinho, efetivando uma condução
doce que culmina na verdadeira liberdade cristã, desarmando uma
vontade que antes era conduzida pelo pecado e agora é proveniente de
uma graça libertadora. Ainda nesta perspectiva, quando Agostinho
relata da sua amizade com Alípio, o autor ressalta a ação da graça qual
inclina o homem suavemente, fazendo com que este queira aquilo que a
graça concede, sendo aí o modus operandi da graça, isto é, a graça age na
vontade do homem de tal modo que o homem passa a agir e querer de
tal forma que sua vontade e finalidade tornam-se uma só coisa, eis aí o
que compõe na prática a verdadeira liberdade. 28
Em seu livro VII, ao tratar acerca de suas inquietações e dúvidas
que lhe afligiam na constante busca pela verdade, Agostinho é
impactado pelas objeções feitas por seu amigo Nebrídio (Conf. VII.2.3),
que atingiram o espírito inquietante de Agostinho concernente às
doutrinas que os maniqueus defendiam (COSTA,2003, pp.176). Ao
referir-se diretamente acerca do problema do mal (Conf. VII. 3.4),
tomando como ponto inicial a origem do mal moral no homem, o autor
diz: “Esforçava-me por compreender o significado do que ouvia dizer
28
Agostinho ainda vai além neste exemplo, mostrando que a ação divina no homem é de tal forma tão
graciosa que age de forma imperceptível, Cf. Conf. VI. 7.11: “Mas tu, Senhor, que governas a sorte de tuas
criaturas, não te esquecias de quem havia de ser, entre teus filhos, ministro dos teus sagrados mistérios.
E para que a reabilitação fosse claramente reconhecida como obra tua, usaste de mim como
instrumento, sem que eu o percebesse”.
Claubervan Lincow Silva • 271
29
Agostinho em sua obra De Libero arbitrium, tratava desta temática, onde tentava responder
questionamentos como: Quid sit malum? - o que é o mal?” e Unde male faciamus? - de onde vem o
praticarmos o mal?”,estas perguntas compõe todo o desenrolar da temática do Livro, tendo como
Evódio como interlocutor. Cf. De lib. arb. I,1,1. Nesta obra de sua não-maturidade, vê-se ainda resquícios
do neoplatonismo e a luta constante contra as doutrinas maniquéias, tanto uma luta interna quanto
externa no Bispo de Hipona, não tendo um pensamento ainda totalmente definido acerca do tema da
relação da graça e liberdade como vê-se nas obras contra os pelagianos. Ainda assim, nesta obra,
podem-se observar detalhes que serviriam de coluna para seu pensamento maduro, mesmo que ainda
não se encontre a definição de distinção tão clara da verdadeira liberdade e da falsa liberdade,
passagens como a De lib. arb. III,17,47, Agostinho é enfático em dizer que sem liberdade não há pecado,
sendo discordante da maioria de suas obras contra os pelagianos e das Confessiones se vista sem o
devido cuidado semântico e conceitual do emprego da palavra “liberdade”.Outras passagens ajudam a
mostrar que a “guerra” do homem está em sua própria vontade. Cf. De lib. arb. III,17,48. Cf. MECONI e
STUMP, 2016, pp.454; Cf. COSTA, 2002, pp.429; Cf. SILVA, 2008, pp.109; Cf. GILSON, 2010, pp.542; Cf.
EVANS, 2006, pp.270.
272 • Com Agostinho, e além dele
relata: “Como explicar que a minha vontade tenda para o mal e não
para o bem? Será isso talvez uma punição justa? Quem plantou em mim
esses germes de sofrimento e os alimentou, uma vez que sou criatura do
meu Deus que é cheio de amor?” (Conf. VII.3.5, grifo nosso). Aqui o autor
cita a frase “unde igitur mihi male velle et bene nolle?” como forma de
demonstrar suas antigas dúvidas de onde vinha este querer 30 o mal e
não o bem, mostrando toda a influência paulina 31 em sua antropologia,
bem como ressaltando que há uma “tendência” ou “inclinação” para o
mal, que nada mais é do que a ingerência do pecado original.
Portanto, a utilização do termo “livre determinação da vontade”
neste contexto (Conf. VII. 3.5), deve ser compreendida não com o sentido
de uma agência “livre libertária”, ou de uma vontade que goza
verdadeiramente de uma liberdade, mas deve ser tomada como sentido
de que o homem não pode ser coagido (sentido de ir contra a sua própria
vontade) para fazer ou conceber o mal, sem que ele mesmo queira.
No decorrer do livro, Agostinho relata o seu encontro com o Bispo
Simpliciano (Conf. VIII, 1.1) 32 que lhe discorre acerca da conversão de
30
AMARANTE in AGOSTINHO, 1997, p.177, traduz utilizando-se do verbo “tender”, ou seja, “(...) que minha
vontade tenda para o mal”, dando um sentido ainda mais contundente a ação condicionada que se
“tendência” tanto para o bem quanto para o mal.
31
Tendo como base em Rm 7:19-20,é notório que o apóstolo Paulo influencia Agostinho de modo
profundo, conduzindo-o a um pessimismo antropológico, revelando a Lei do pecado, qual amarra e
subordina o homem em contraponto com a influência da graça que liberta e faz o homem ser livre. Cf.
Conf. II.21.27.
32
Sucessor de Santo Ambrósio, Bispo Simpliciano foi ordenado Bispo de Milão em 397, tendo um
importante papel na conversão de Agostinho, relatando-lhe o fato da conversão de Mário Vitorino,
importante professor de retórica que se abstém do seu sucesso acadêmico em prol do cristianismo, haja
vista que o Imperador romano Juliano (331-363) baixou um édito expulsando os cristãos de seus cargos
de docente de retórica e oratória, Cf. Conf. VIII, 5. 10: “Acrescentou em seguida que, no tempo do
imperador Juliano, uma lei proibia aos cristãos de ensinar literatura e oratória. Vitorino aceitou a
imposição e preferiu renunciar à escola de parolagem em favor da tua Palavra, que torna eloquente
língua das crianças.”
Claubervan Lincow Silva • 273
33
Agostinho ressalta no trecho de sua obra, Conf. VIII. 5.10: “Também eu queria fazer o mesmo, porém
era impedido, não por grilhões alheios, mas por minha própria vontade férrea. O inimigo dominava-me
o querer e forjava uma cadeia que me mantinha preso. Da vontade pervertida nasce a paixão; servindo
à paixão, adquire-se o hábito, e, não resistindo ao hábito, cria-se a necessidade. Com essa espécie de
anéis entrelaçados (por isso falei de cadeia), mantinha-me ligado à dura escravidão. A nova vontade
apenas despontava; a vontade de servir-te e de gozar-te, ó meu Deus, única felicidade segura, ainda não
era capaz de vencer a vontade anterior, fortalecida pelo tempo. Desse modo, tinha duas vontades, uma
antiga, outra nova; uma carnal, outra espiritual, que se combatiam mutuamente; e essa rivalidade me
dilacerava o espírito”.
34
Tema também influenciado pelas epístolas paulinas. Cf. Gl 5: 17-25.
274 • Com Agostinho, e além dele
neste aspecto da luta das “vontades” 35, “com efeito, ir ou chegar junto a
ti não é senão um ato de querer ir, mas com vontade forte e plena, e não
titubeante e ferida, numa luta da parte que se ergue contra a parte que
fraqueja” (Conf. VIII.8.19).
Deste modo, chega-se a ação do “querer/poder” (GILSON, 2010,
p.252-253), onde o querer se desdobra em uma ação de poder ir até onde
se ama 36, fato este, qual mostra que por mais impactado que estivesse
Agostinho por todo o testemunho da vida monástica relatado pelos
amigos de Ponticiano, o autor não a queria verdadeiramente devido a
estar utilizando-se de uma manca libertas, preferindo bens menores ao
gozo do Sumo Bem. 37
35
O conceito de voluntas é extremamente amplo e por vezes pode relatar um paradoxo formal de uma
vontade dividida, porém é no sentido de vontade que Agostinho insere a perspectiva do mal moral em
sua antropologia. No De Lib. Arb. III, 1,3, o autor trata a vontade como ação do poder/querer: “Quanto ao
movimento pelo qual a vontade se inclina de um lado e de outro, se não fosse voluntário e posto em
nosso poder, o homem não seria digno de ser louvado quando sua vontade se orienta para os bens
superiores, tampouco ser inculpado quando, girando, por assim dizer, sobre si mesmo, inclina-se para
os bens inferiores”. Para GILSON é na vontade que o amor eclode, fazendo com que o homem passe a
efetivar a sua ação, seja quando ele age de modo a ser influenciado pela graça ou não, “[...] o homem
conhece a regra; a questão é se ele a quer” (Cf. GILSON, 2010, 252). Então pode-se entender a
importância da vontade pois, a “força de que uma decisão tão importante depende tão somente a
vontade” Cf.GILSON, 2010, p. 252. Deste modo, entende-se que não há duas vontades se digladiando
entre si em um sentido ipsis litteris, mas um querer moral ora influenciado pela graça, ora influenciado
pelas coisas carnais. Para maior abrangência acerca da Voluntas e sua ação Cf. GILSON, 2010, pp.252-
262; SILVA, 2019, pp.19-26; STREFLING, 2015, pp.65-81.
36
No livro XIII, 9,10, da Conf. Agostinho vai falar sobre o amor (“pondus meum amor meus; e o feror
quocumque feror”) como sendo o peso, o local natural de repouso da vontade, sendo a primeira causa
da cadeia causal da vontade do homem e sem ele não há ação, portanto pode-se afirmar que a relação
querer/poder dá-se primeiro pelo amor. Cf. GILSON, 2010, 257; Cf. De Trinit. XV,41.
37
Ainda acerca do fato testemunhal dos amigos de Ponticiano, Agostinho relata que Deus usou aquilo
para o fazer refletir, onde mesmo o autor não querendo ouvir, Deus com sua graça confrontava-o
constantemente com as narrativas de modo que toda a iniquidade de Agostinho fosse perante ele
ressurtido. Cf. Conf. VIII. 7.16: “Foi isso que nos contou Ponticiano. E tu, Senhor, enquanto ele falava, me
fazias refletir sobre mim mesmo, tirando-me da posição de costas, em que eu me havia colocado para
não me enxergar a mim mesmo, e me colocavas diante de minha própria face, para que eu visse quanto
era indigno, disforme e sórdido, coberto de manchas e de chagas. E eu via, e me horrorizava, e não tinha
como fugir de mim mesmo. Se tentava desviar o olhar de mim mesmo, lá estava Ponticiano continuando
o seu relato, e tu me colocavas diante de mim mesmo e me impelias, por assim dizer, para diante de
Claubervan Lincow Silva • 275
meus próprios olhos, a fim de que eu descobrisse a minha iniquidade e a detestasse. Eu a conhecia, mas
fingia não percebê-la, e tentava afastá-la, e a esquecia.”
38
No trecho em Conf. VIII. 9.22, diz Agostinho: “Quando deliberava servir desde logo ao Senhor meu
Deus, como há muito tempo já pretendia, era eu quem o queria, e ao mesmo tempo era eu quem não
o queria: sempre eu. Não tinha uma vontade plena, nem decidida falta de vontade; daí a luta comigo
mesmo, deixando-me dilacerado. Essa divisão se produzia contra a minha vontade, embora isso não
demonstrasse a existência em mim de outra alma, e sim o castigo da minha própria alma. Não era eu
que praticava a ação, mas o pecado que habitava em mim, punição de um pecado livremente cometido
enquanto filho de Adão.”
276 • Com Agostinho, e além dele
A partir daí Agostinho elenca sua máxima: “da quod iubes et iube quod
vis” (Conf. X.29.40), traduzido por: “Concede-me o que me ordenas, e
ordena o que quiseres” 39. Esta máxima aparece quatro vezes consecutivas
no livro X, é a partir dela que Agostinho demonstra toda a sua visão da
relação entre graça e liberdade. Essa máxima aparece três vezes para falar
a respeito do auxílio da graça na vontade humana concernente a
continência e moderação 40 e aparece uma única vez 41 para falar do
comedimento frente aos apetites dos homens e orgulho, mas em ambos
os casos, Agostinho demonstra que essa máxima é concernente a ação
livre do homem e fruto da ação primária da graça, não apenas no fato de
agir sobre algo, mas também pelo fato do sentimento posterior desta ação
livre ser visto como uma ação primária da graça, de modo que tanto a
causa como consequência são frutos de graça, “Daí se conclui claramente,
ó Deus Santo, que és tu quem concede a graça quando fazemos o que
mandas” (Conf. X. 31.45). Por isso diz Agostinho: “Muitas graças nos
concedes quando te invocamos. E todas as que recebemos, antes de pedi-
las, foi de ti que as recebemos. E reconhecê-las, depois de recebidas, é
também uma graça tua” (Conf. X. 31.45).
Conclui-se que ao elencar “Concede-me aquilo que ordenas, e
ordena o que quiseres”, Agostinho demonstra o pleno gozo da liberdade
39
Eis aí a plena potencialização da liberdade humana efetivada no único modo cabível segundo
Agostinho, que é a partir daquilo que Deus quer, o homem passa a realizar/efetivar. Cf. Conf. X. 29.40;
X.31.45; X.37.60; Cf. Retrac. I. 9.6.
40
Tal máxima aparece duas vezes em Conf. X. 29.40: “da quod iubes et iube quod vis... continentiam iubes:
da quod iubes et iube quod vis” e Conf. X.37.60: “imperas nobis et in hoc genere continentiam: da quod
iubes et iube quod vis.” Esta última citação fala sobre a continência a respeito das tentações e
pestinências das más línguas.
41
Aparece em Conf. X. 31.45: “conforta me, ut possim, da quod iubes et iube quod vis.”
Claubervan Lincow Silva • 277
REFERÊNCIAS
OBRAS PRIMÁRIAS
AGOSTINHO, Santo. Confissões. [tradução Maria Luiza Jardim Amarante]. – São Paulo:
Paulus, 1997. – Coleção Patrística. 450 p. (Coleção Patrística, n. 10).
42
Agostinho sempre colocará Deus como agente causador da Liberdade e é Nele que a Liberdade
sempre estará de modo verdadeiro e único. Pode-se tomar por exemplo, quando o Bispo de Hipona fala
das amarras das tentações que são presentes nos órgãos sensoriais e em especial no ouvido qual ele
mostra Deus como o libertador e aquele que solta o homem das amarras do pecado (de uma falsa
liberdade) Cf. Conf. X.33.49: “Os prazeres do ouvido me prendem e escravizam com mais tenacidade,
mas tu me soltaste e me livraste deles.”
43
Comentando acerca disso diz GILSON,2010, p.301: “Posto que a vontade deseja o bem, então ela é por
essência destinada a realizá-lo; não obstante, posto que ela é incapaz de realizar o bem que ela deseja,
então há nela algo corrompido; nomeemos como causa dessa corrupção o pecado, e prescrevamos o
remédio para ele, a Redenção do homem por Deus, desenvolvida com a graça de Jesus Cristo. (...) por
mais tempo que uma vontade contar apenas consigo mesma para fazer o bem, ela permanece
impotente. A solução do enigma, aqui como alhures, é que é necessário receber o que se quer ter
quando se é incapaz de dá-lo a si mesmo. Graças ao sacrifício do Cristo, a partir de então, há um socorro
divino sobrenatural pelo qual a lei se torna realizável pela vontade humana, e da qual a essência mesma
do pelagianismo é desconhecer a necessidade.”
278 • Com Agostinho, e além dele
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução e nota de José M. Silva Rosa. Covilã: LusoSofia
Press, 2007.
Obras secundárias
AGOSTINHO, Santo. A cidade de Deus: contra os pagãos. 3. ed. Tradução de Oscar Paes
Leme. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Federação Agostiniana Brasileira, 1991. v. I, 414;
v. II, 589 p.
AGUSTÍN, San. Escritos antipelagianos (4o): Réplica a Juliano, obra inacabada (livros I -
III). In: Obras completas de san Agustín. Ed. bilingue. Tradución, introducción y
notas de Luis Arias. Madrid: La Editorial Catolica/BAC, 1985. Tomo XXXVI, 653 p.
AGUSTÍN, San. Escritos antipelagianos (5o): Réplica a Juliano, obra inacabada (livros IV-
VI).In: Obras completas de san Agustín. Ed. bilingue. Tradución e notas de Luis
Arias. Madrid: La Editorial Catolica/BAC, 1985. Tomo XXXVII, 605 p.
FITZGERALD. Allan (og.). Diccionario San Augustín: San Augustín a través del
tiempo.Madrid: Editor Monte Carmelo, 2001, p.1408.
INCANDELA, Joseph. Review of William Anglin’s free will and the christian faith. The
Tomist 58, p.148-153,1994.
MECONI, David Vicente; STUMP, Eleonore (orgs.). Agostinho. Tradução de Jaime Clesen,
São Paulo: Ideias & Letras, 2016, 454 p.
ORÍGENES. In Rom. Com. 5,9: EH 249. Johannes Quasten, Patrología I, 5. Edicion. Madrid:
Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), 1995, p. 395.
INTRODUÇÃO
1
Doutorando em Filosofia pela UFC; Mestre em Filosofia pela UFPE; Especialista em Educação e Professor
com licenciatura em Filosofia. E-mail: edsonsilva.filo@gmail.com
282 • Com Agostinho, e além dele
2
Segundo Elcias Costa, teria Santo Anselmo proclamado o lema: “credo ut intellegam”, ou seja, “eu creio
para poder compreender” (2010, p. 46).
Edson Gonçalves da Silva • 283
pensamento árabe averroísta. Mais tarde, essa defesa ganha corpo nos
escritos do seu aluno quando este se pronuncia no seu tratado contra a
unidade do intelecto único, que era defendido nos textos de Averróis.
Inspirado pela publicação do “Tratado sobre unidade do intelecto”
do seu mestre Alberto Magno, o Aquinate toma a dianteira em defesa de
uma alma intelectiva individual. No entanto, as polêmicas das doutrinas
árabes e as interpretações confusas, nas quais seu mestre encontrava-
se envolvido, colaboraram para que Tomás de Aquino adequasse o
pensamento aristotélico aos estudos escolásticos, além de promover um
sistema harmonioso, preciso e claro a respeito do conhecimento.
Segundo Roberto Castro (2016, p. 73), Tomás de Aquino colocava as
ideias do estagirita no crivo da razão. Mesmo que usufruísse da
expressão “como disse o filósofo3” que apontava para a fala de
Aristóteles, não significava afirmar uma verdade absoluta, mas a
presença de evidências válidas. Conforme Pieper (apud CASTRO, 2016, p.
73) “Tomás nunca supôs que a doutrina de Aristóteles fosse sempre de
acordo com a doutrina cristã, ainda que certamente houvesse tais
opiniões entre os aristotélicos medievais”.
A exposição desta teoria aristotélico-tomista é vista pelos
seguidores neoplatônicos [agostinianistas] como forte indício para
causar uma ruptura na doutrina vigente por tratar-se do conhecimento,
tido como dogma, e do conceito de Homem. Sobretudo, é importante
ressaltar a observação de Marcos Costa quanto à intencionalidade dos
textos escritos por Agostinho de Hipona, segundo ele,
3
“Sicut patet per Philosophum”.
284 • Com Agostinho, e além dele
Seus escritos, com raras exceções, são respostas a problemas reais, fruto do
envolvimento com as grandes questões doutrinais de seu tempo,
especialmente os embates com as principais heresias que ameaçavam a
doutrina da Igreja (Maniqueísmo, Donatismo, Arianismo e Pelagianismo);
ou são respostas às mais variadas questões (político-sociais, espirituais,
domésticas, etc), que lhes eram solicitadas, em cartas, por seus diocesanos
(COSTA, 1998, p. 483-496).
Com efeito, se crer não fosse uma coisa e compreender outra, e se não
devêssemos, primeiramente, crer nas sublimes e divinas verdades que
desejamos compreender, seria em vão que o profeta teria dito “Se não o
crerdes não entendereis”. [...] Pois não se pode considerar como encontrado
4
“Intellige ut credas, crede ut intelligas”.
5
Doravante citado como “De lib. arb.”
Edson Gonçalves da Silva • 287
Por serem três as realidades: o ser, o viver e o entender. É verdade que a pedra
existe e o animal vive. Contudo, ao que me parece, a pedra não vive. Nem o
288 • Com Agostinho, e além dele
animal entende. Entretanto, estou certíssimo de que o ser que entende possui
também a existência e a vida. É porque não hesito em dizer: o ser que possui
senão uma ou duas delas. Porque, com efeito, o ser vivo por certo também
existe, mas não se segue daí que entenda. Tal é, como penso, a vida dos
animais. Por outro lado, o que existe não possui necessariamente a vida e a
inteligência. Posso afirmar, por exemplo, que um cadáver existe. Ninguém,
porém, dirá que vive. Ora, o que não vive, muito menos entende (Ibidem).
6
Professor da UFABC.
Edson Gonçalves da Silva • 291
7
Comenta Marcos Costa (2000, p. 10), “[...] Agostinho fala da existência de duas luzes no homem: uma
corporal, própria dos sentidos externos, e outra espiritual, própria do sentido interno, ou da alma, que
capacita a corporal a ver os objetos”.
8
“Condição indispensável”.
9
“Experimentum enim solum certificat in talibus, eo quod de tam particularibus naturis syllogismus haberi
non potest.” (Tradução própria).
Edson Gonçalves da Silva • 293
10
Ver livro “A unidade do intelecto contra os averroístas”, Tomás de Aquino, editora Paulus.
Edson Gonçalves da Silva • 295
11
Disputas pedagógicas aplicadas nas universidades em formato de debates para revelar verdades
teológicas e científicas.
296 • Com Agostinho, e além dele
CONSIDERAÇÕES FINAIS
homem como criatura de Deus e sua busca pela felicidade. Embora essa
doutrina não fosse sistemática, teve como ponto principal a ligação, sem
intermediários, do lume incriado com o contingente humano e falível a
respeito do conhecimento da verdade infalível. Quando a alma elabora
um juízo das razões eternas, está usufruindo do intelecto divino sem
que, para isto, o intelecto humano precise ter alguma participação
própria nesta operação. Certamente, essa relação não está isenta de leis
e elas irão coordenar o acesso às razões eternas, pois são as regras que
darão o fundamento da certeza evidente.
Por outro lado, para Tomás de Aquino, Aristóteles é o
esclarecimento racional necessário para o pensamento humano, para
além dele, apenas a fé cristã conduziria o homem à beatitude. Sua tarefa
foi difícil ao buscar uma justaposição integrativa entre o pensamento
da patrística neoplatônica avicenizante e o pensamento filosófico
metafísico do Estagirita. Sua brilhante genialidade não excluiu os
ensinos do seu mestre Alberto Magno que o auxiliou na dicotomia entre
a filosofia e a teologia. Tampouco o separou da doutrina agostiniana,
mas aproveitou esta para retirar “as ervas daninhas”, se assim podemos
afirmar, que causaram confusões nela.
Diferente de Duns Scot, Tomás não critica Agostinho, mas volta-se
para aqueles que, pela via dos textos traduzidos do grego para o latim,
contaminara-os com suas interpretações filosóficas e buscaram afirmar
uma teoria distante da qual a doutrina cristã ensinava.
O pensamento aristotélico, mesmo nascido em uma doutrina pagã,
trazia, em seu centro, uma sistemática racional quanto à relação do
divino com a alma intelectiva. Tomás observa, na leitura de alguns
Edson Gonçalves da Silva • 299
REFERÊNCIAS
AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Tradução Alexandre Correia. São Paulo:
Permanência (Ecclesiae), 2020. vol. I, parte I, 768 pp.
MAGNI, Alberti. De vegetabilibus libri VII: historiae naturalis pars XVIII. Editione
Carolus Jessen, Berolini, 1867. 754 p.
MAGNO, Alberto. Tratado sobre a unidade do intelecto. Edição Bilíngue. Trad. Matteo
Raschietti. São Paulo: ed. Madamu, 2022, 1. edição. 235 p.
SCOT, John Duns. Opus Oxoniense (I, d.3, parte 1, q.4). São Paulo: ed. Abril, 1973, 1. edição.
Trad. Coleção Os pensadores.
INTRODUÇÃO
1
Doutor em Filosofia. Professor de Filosofia na UNICAP, FATIN e SPN. E-mail: gerson.arruda@unicap.br
302 • Com Agostinho, e além dele
2
Neste texto, as Investigações Filosóficas de Wittgenstein serão referenciadas da seguinte maneira: a sigla
IF, seguida do número do(s) respectivo(s) parágrafo(s).
3
É de grande proveito ler a esclarecedora exposição de David Stern sobre este assunto (Cf. STERN, David.
G. Wittgenstein’s Philosophical Investigations: an introduction. Cambridge: Cambridge University
Press, 2004, p. 72 – 87. (Cambridge Introductions to key philosophical texts). ISBN 0-521.89132-9. E ainda:
PICHLER, Alois. Wittgensteins Philosophische Untersuchungen: zurtextgenese von §§ 1 – 4. Bergen,
1997, p. 38 – 69; 107 – 115).
Gerson Francisco de Arruda Júnior • 303
4
Sobre isso, Cf. HUBER, Carlo. ... e la parola si fece carne. Roma: EPUG, 2001.
Gerson Francisco de Arruda Júnior • 305
5
No § 46 das Investigações Filosóficas, Wittgenstein identifica esses elementos originários como os
“Individuls”, de Russell, e os “Objetos”, do Tractatus. Quanto a estes últimos, Cf. TLP, 2.01 – 2.032; e ainda:
CUNHA, Rui Daniel. A dedução dos objetos no Tractatus. Revista Portuguesa de Filosofia. Braga, Tomo
XLV, fasc. 2, p. 225 – 246, abril/jun. 1989. Trimestral; LOMBARDI, Olímpia. Que son los objetos del
Tractatus? Revista de Filosofia. Madrid, vol. XII, n. 21, p. 55 - 76. 1999; HINTIKKA, Merrill B. The objets of
Wittgenstein`s Tractatus. In: LEINFELLNER, Werner; KRAEMER, Eric; SCHANK, Jeffrey (Eds.). Language and
ontology: proceedings of the 6º international Wittgenstein Symposium. Vienna: Hölder-Pichler-
Tempsky, 1982. p. 429 – 434).
306 • Com Agostinho, e além dele
6
Sobre a questão da essência da linguagem nas Investigações Filosóficas, Cf. ARRUDA JÚNIOR, Gerson
Francisco de. 10 Lições sobre Wittgenstein. Petrópolis: Vozes, 2017. p. 73-81.
308 • Com Agostinho, e além dele
O processo pelo qual tudo isto ocorre é “um processo, por assim
dizer, oculto”, e não é descabido afirmar que o ato de nomear que o
constitui realmente “aparece como uma estranha ligação de uma
palavra com um objeto” (IF, §§ 37, 38, 94).
É, pois, ao assegurar tal paradigma de nomeação que este
paradigma de significação” – que, segundo Wittgenstein, “é comum a
toda representação primitiva do modo como a linguagem funciona” (IF,
§ 2), e que talvez por isso mesmo tendemos a considerar quase como
natural – privilegia certo grupo de palavras – os nomes próprios – e
ignora as outras classes de palavras que compõem a linguagem, “como
se houvesse apenas uma coisa que se chamasse: ‘falar das coisas’”(IF, §
27).
Sem dúvida alguma, nele se pensa, “primeiramente, em
substantivos como «mesa», «cadeira», «pão» e em nomes de pessoas”,
e só depois, em “nomes de certas atividades e qualidades, e todas as
restantes espécies de palavras”, que, nas palavras de Wittgenstein, são
consideradas apenas em “segundo plano” e “como algo que se irá
encontrar”(IF, § 1).
Para este modelo de significação não existem, portanto,
“diferentes espécies de palavras”(IF, § 2). Ao ignorar completamente
esse fato e, por conseguinte, admitir que a única tarefa da linguagem é
“falar das coisas” (que, na verdade, é uma outra maneira de ressaltar a
ideia de que a sua única função é a de representar a realidade), este modo
de conceber a linguagem encerra o fenômeno linguístico num “domínio
estritamente circunscrito” daquilo que de fato chamamos «linguagem».
Neste sentido, não há nenhum erro em concebê-la – como fez
Gerson Francisco de Arruda Júnior • 309
7
Sobre o conceito wittgensteiniano de jogos de linguagem, Cf. ARRUDA JÚNIOR, Gerson Francisco de.
Linguagem e jogo: aspectos fundamentais do conceito wittgensteiniano de «Sprachspiele».
Perspectiva Filosófica, vol. 41, n. 1, 2014, p. 13-29. ISSN 23579986.
8
Quanto à essa multiplicidade de significado em relação ao uso, Cf. ARRUDA JÚNIOR, G. F. de; LUNA, J.
M. G. de. Wittgenstein e a distinção entre sentido e significado: uma proposta de leitura do § 556 das
Investigações Filosóficas. Veritas (Porto Alegre), 2022, 67(1), e40079. https://doi.org/10.15448/1984-
6746.2022.1.40079
Gerson Francisco de Arruda Júnior • 311
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ARRUDA JÚNIOR, Gerson Francisco de. 10 Lições sobre Wittgenstein. Petrópolis: Vozes,
2017. p. 73-81.
LOMBARDI, Olímpia. Que sonlos objetos del Tractatus? Revista de Filosofia, Madrid, v.
XII, n. 21, p. 55-76, 1999.
PINTO, Paulo Roberto Margutti. Iniciação ao silêncio: análise do Tractatus. São Paulo:
Loyola, 1998.
Marcos Roberto Nunes Costa, filho de Tiago Nunes da Costa e Raimunda Nunes limeira,
nascido na cidade de Itapetim – PE, fez o Primário no Grupo Escolar Tereza Torres e o
Ginásio e 2º Grau no Colégio Municipal de Itapetim. Concluiu a Graduação em Filosofia,
pela UNICAP, em 1989, e o Mestrado em Filosofia, pela UFPE, em 1996. Em 2000, concluiu
o Doutorado em Filosofia, pela PUCRS, com um período de pesquisa na Università delli
Studi di Parma – Itália, tendo como área de pesquisa a Filosofia Medieval, mais
especificamente o pensamento de Santo Agostinho, e em 2016 fez um Pós-doutorado em
Filosofia pela Universidade do Porto – Portugal. É autor de diversos livros,
principalmente na área de filosofia medieval, dentre os quais destacam-se: “Santo
Agostinho: um gênio intelectual a serviço da fé”, pela Edipucrs – Porto Alegre (1999); “O
Problema do Mal na Polêmica Antimaniquéia de Santo Agostinho”, pela
Edipucrs/Unicap – Porto Alegre/Recife (2002), que foi sua tese de doutoramento;
“Maniqueísmo: história, filosofia e religião”, pela Vozes – Petrópolis (2003); “Origens
Medievais do Estado Moderno: contribuições da filosofia política medieval para
construção do conceito de soberania popular na modernidade”, em conjunto com
Raimundo Antônio Marinho Patriota, pela Printer/INSAF – Recife (2004); “Temas
Tomistas em Debate”, em conjunto com o Prof. Dr. Elcias Ferreira da Costa, pelo
Instituto de Pesquisas Filosóficas Santo Tomás de Aquino – Recife (2003); “A Ética
Medieval face aos Desafios da Contemporaneidade”, em conjunto com o Prof. Dr. Luis
Alberto De Boni, pela Edipucrs/Unicap/INSAF/ Instituto de Pesquisas Filosóficas Santo
Tomás de Aquino (2004); “A Filosofia Medieval no Brasil: persistência e resistência”, pela
Printer – Recife (2006); “Tempo de Eternidade na Filosofia Medieval”, em conjunto com
o Prof. Dr. Luis Alberto De Boni e Prof. Jan G.J. ter Reegen, pela EST Edições- Porto
Alegre (2007); “Introdução ao Pensamento Ético-Político de Santo Agostinho”, pela
Loyola – São Paulo (2009); 10 Lições sobre Santo Agostinho”, pela Editora Vozes, com 4
edições – Petrópolis (2012 a 2022), e “Mulheres intelectuais na Idade Média: entre a
316 • Com Agostinho, e além dele
1 LIVROS COMPLETOS
COSTA, Marcos Roberto Nunes. Santo Agostinho: um gênio intelectual a serviço da fé.
Porto Alegre: Edipucrs, 1999. 215 p. (Coleção Filosofia, n. 91). ISBN 978-85-7430-042-
X.
______. 10 Lições sobre Santo Agostinho. (com 4 edições) Petrópolis: Vozes, 2012-
2022. 85 p. ISBN 978-85-326-4322-3
______. Santo Agostinho, “de corpo e alma”: um estudo acerca da relação corpo-alma
na filosofia-teologia agostiniana (no prelo, a sair em breve)
COSTA, Marcos Roberto Nunes ; COSTA, Elcias Ferreira da. (orgs.). Temas tomistas em
debate. Recife: Instituto de Pesquisa Filosóficas Santo Tomás de Aquino/Círculo
católico de Pernambuco, 2003. 147 p. (Série Estudos, n. II). ISBN 978-85-89762-01-7.
______. ; CORREIA JUNIOR, João Luiz (orgs.). Os mistérios do corpo: uma leitura
multidisciplinar. Recife: INSAF, 2004. 201 p. ISBN 978-85-89935-03-5.
______. ; REEGEN, Jan G. J. ter ; DE BONI, Luis Alberto (orgs.). Tempo e eternidade na
Idade Média. Porto Alegre: EST Edições, 2007. 151 p. ISBN 978-85-7517-025-0.
______. ; BEZERRA, Cícero Cunha (orgs.). Reflexões sobre éticas gregas e filosofia
contemporânea. Recife: Editora da UFPE, 2014. 182 p. ISBN 978-85-415-0475-1
______. O problema do mal em santo Agostinho. In: COSTA, Marcos Roberto Nunes
(org). A filosofia medieval no Brasil: persistência e resistência: homenagem dos
orientandos e ex-orientandos ao mestre Dr. Luis Alberto De Boni. Recife: Printer,
2006. p. 161-175. ISBN 85-9853-805-1.
______. A questão do agir humano em Santo Agostinho. In: SEVERO NETO, Manoel
(org.). Direito, cidadania e processo. Recife: FASA, 2006. v. 3, p. 57-78. ISBN 85-70841-
08-6.
______. Santo Agostinho frente ao antigo adágio “fora da Igreja não há salvação”.
In: STORCK, Alfredo et al. (orgs.). Filosofia medieval. São Paulo: ANPOF, 2019. p. 80-
90. ISBN: 978-85-88072-78-7.
COSTA, Marcos Roberto Nunes ; COSTA, Elcias Ferreira da. Apresentação. In: COSTA.
Marcos Roberto Nunes ; COSTA, Elcias Ferreira da (orgs.). Temas tomistas em debate.
Recife: Instituto de Pesquisa Filosóficas Santo Tomás de Aquino/Círculo católico de
Pernambuco, 2003. p. 106-118 (Série Estudos, n. II). ISBN 978-85-89762-01-7.
______. ; CORREIA JUNIOR, João Luiz. Introdução. In: COSTA, Marcos Roberto Nunes
; CORREIA JUNIOR, João Luiz (orgs.). Os mistérios do corpo: uma leitura
multidisciplinar. Recife: INSAF, 2004. p. 7-9. ISBN 978-85-89935-03-5.
_____. ; DE BONI, Luis A. Apresentação. In: COSTA, Marcos Roberto Nunes ; DE BONI,
Luis A. (orgs). A ética medieval face aos desafios da contemporaneidade. Porto
Alegre/Recife: Edipucrs,Unicap, Insaf, Círculo Católico de Pernambuco, 2004. 11-12.
ISBN 978-85-7430-496-4.
______. Introdução. In: COSTA, Marcos Roberto Nunes (org). A filosofia medieval no
Brasil: persistência e resistência: homenagem dos orientandos e ex-orientandos ao
mestre Dr. Luis Alberto De Boni. Recife: Printer, 2006. p. 7-10. ISBN 978-85-9853-
805-1.
______. Prefácio. In: OLIVEIRA, Alberto Rodrigues de. História socioeconômica das
regiões de São Vicente e Piedade – Itapetim – PE. Recife: CEHM/CONDEPE/FIDEM,
2006. p. 3-4. ISBN 978-85-9065-670-5.
Publicações • 325
______. Prefácio. In: OLIVEIRA, Alberto Rodrigues de. História e cultura do povo de São
Vicente – Itapetim/PE. Recife: CEHM/FIDEM/CONDEPE, 2008. p. 7-8. ISBN 978-85-
98538-05-1.
______. Prefácio. In: CORREIA, Fábio José Barbosa. O problema do tempo em Agostinho
de Hipona e Henri Bérgson. Recife: FASA, 2009. p. 3-5. ISBN 978-85-7084-169-8.
______. Prefácio. In: RÊGO, Paulo Romero Batista. História, igreja e poder: o papel da
religião no processo histórico de formação/sustentação do poder político-
econômico-ideológico temporal da civilização ocidental cristã [1559-1978]. Porto
Alegre: Editora Fi, 2020, p. 9-16. ISBN 978-85-5696-786-2.
______. Prefácio. In: PEREIRA JÚNIOR, Antônio. Santo Agostinho: sobre a verdade,
contra os céticos. Mossoró: UERN, 2021, p. 19-25. ISSN – 978-85-7621-277-5.
______. Dados biográficos de Louro do Pajeú – O rei dos trocadilhos. In: COSTA,
Marcos Nunes ; PATRIOTA, Raimundo. O aventureiro e o boêmio: Pinto e Louro a
maior dupla de poetas repentistas. Recife: CEPE Editora, 2021, p. 33-36. ISBN 978-
85-7858-905-9.
______. Dados sobre o autor. In: AMORIM, Pedro. O poeta dos vaqueiros. Recife: CEPE
Editora, 2021, p. 9-19. ISBN 978-85-7858-906-6.
______. Dados sobre o autor. In: BATISTA, Dimas. Obras poéticas. Recife: CEPE
Editora, 2021, p. 3-7. ISBN 978-85-7858-907-3.
326 • Com Agostinho, e além dele
______. Prefácio. In: LIMA, Marcone Felipe Bezerra de. O evangelho da graça e a graça
do evangelho: o Sola Gratia a partir do imago Dei em Santo Agostinho. Moreno: IGP
Editora, 2022, p. 13-25. ISBN 978-65-86822-26-7.
______. Prefácio. In: BRANDÃO, Ricardo Evangelista. O belo, o que ele é? investigações
sobre os fundamentos da beleza na natureza em Agostinho de Hipona. São Paulo:
Editora Dialética, 2022, p. p. 7-10 INBN 978-65-252-2434-3.
______. Prefácio. In: TEIXEIRA NETO, José. O De libero arbítrio de Santo Agostinho e o
problema do mal. Porto Alegre: Editora Fi, 2022, p. 13-24 INBN 978-65-5917-494-2.
COSTA, Marcos Roberto Nunes. Reflexões acerca da contradição entre a livre vontade
humana e a providência divina. Anais da 3a Mostra de Pesquisa, Pós-Graduação e
Extensão e IV Jornada de Iniciação Científica – UNICAP. Recife: FASA, 2002. Tomo I,
p. 82-83.
______.; SILVA, José Ailton da. A moral como pressuposto para se alcançar a
“verdadeira felicidade” em santo Agostinho. Anais da V Jornada de Iniciação
Científica – UNICAP. Recife: FASA, 2003. I CD-ROM. Windows 3.1.
______.; SILVA, José Rinaldo da. A vida ético-moral em santo Agostinho: uma
aplicação do livre-arbítrio à vida prática. Anais da V Jornada de Iniciação Científica
– UNICAP. Recife: FASA, 2003. I CD-ROM. Windows 3.1.
Publicações • 327
______.; MAIA, Tiago Macedo Bezerra. Ética e justiça social em Basílio Magno e João
Crisóstomo. Anais da Sessão de Comunicação de Pesquisa da 4a Semana de Integração
Católica-Sociedade – Católica. Recife: FASA, 2006. p. 455-462. I CD-ROM. Windows
3.1. ISBN 85-7084-099-3.
______.; MOURA, Ocilaine Silva de. O eudemonismo agostinianao: uma reflexão para
o resgate de nossa espiritualidade. Anais Eletrônicos das Sessões de Comunicações do
II Simpósio Internacional de Teologia e Ciências da Religião - UNICAP. Recife: FASA,
2007. p. 674-684. I CD-ROM. Windows 3.1. ISBN 85-78412-23-0.
______.; MOURA, Ocilaine Silva de. Levantar o véu, mais uma vez, da nossa
consciência: um estudo do pensamento ético-político de santo Agostinho e suas
possíveis contribuições para a contemporaneidade. Anais Eletrônicos da 9a Jornada
de Iniciação Científica da UNICAP. Recife: FASA, 2007. p. 656-661. I CD-ROM.
Windows 3.1. ISBN 85-70841-18-3.
Filosofia Medieval Juan Duns Sscoto Buenos Aires: FEPAI, 2008. p. 166-177. I CD-ROM.
Windows 3.1. ISBN 978-950-9262-00-3.
______. SILVA, Leila Rúbia da Costa. O mal ético-moral: último e genuíno estágio da
resposta agostiniana do mal. Anais Eletrônicos da 12a Jornada de Iniciação Científica
da UNICAP. Recife: FASA, 2010. p. 37. I CD-ROM. Windows 3.1. ISSN 2175-4764
330 • Com Agostinho, e além dele
______. ; LIMA, Rodrigo José de. O conhecimento dos primeiros princípios da ciência
natural segundo Tomás de Aquino. In: Jornadas de Filosofia Medieval – Ciclo
2012/Nacional – maio a novembro de 2012. Campina Grande. Jornadas de Filosofia
Medieval – Anais Eletrônicos - UEPB e Principium, CD-ROM. v. 1, n. 1, 2012. p. 208-217.
ISSN 2238-7889.
Metafísica, Arte e Religião na Idade Média. Vitória: DLL/UFES, 2013, p. 391-406. ISBN:
978-85-61857-13-4.
______. ESPIG, Maria Zélide Andreoli. A filosofia é para escrever? a distância entre
o pensar, o falar e o escrever filosofia Revista Ágora Filosófica –UNICAP. Recife, ano
6, n. 1, p. 49-60, jan./jun. 2006. Semestral. ISSN 1679-5385.
______. ; VIEIRA, Carlos Alberto Pinheiro; BRANDÃO, Ricardo Evangelista. Por uma
estética do feio: uma aplicação do conceito de fealdade aristotélica à realidade
social atual. Revista Ágora Filosófica –UNICAP. Recife, ano 6, n. 2, p. 129-138, jul./dez.
2006. Semestral. ISSN 1679-5385.
______. ; SILVIA, Leila Rúbia da Costa. Os “Sete Pecados Capitais”, segundo Tomás
de Aquino. Revista Ágora Filosófica –UNICAP. Recife, ano 7, n. 2, p. 131-139, jul./dez.
2007. Semestral. ISSN 1679-5385.
Publicações • 337
______.; SILVA, Ednaldo Isidoro da. O postulado de Deus na ciência cartesiana: uma
aproximação entre Descartes e Tomás de Aquino. Revista Ágora Filosófica –UNICAP.
Recife, ano 7, n. 2, p. 93-104, jul./dez. 2007. Semestral. ISSN 1679-5385.
______.; MAIA, Tiago Macedo Bezerra. Ética e justiça social em Basílio Magno e João
Crisóstimo. Revista Symposium – UNICAP. Recife, ano 11, n. 2, p. 5-16, jul./dez. 2007.
ISSN 0039-7695.
______. Estética na filosofia medieval Revista Ágora Filosófica - UNICAP. Recife, ano
11, n. 1, p. 11-29, jan./jun. 2011. Semestral. ISSN 1679-5385.
______. O poder coercitivo: um bem a serviço da paz temporal, com vista à vida
eterna, segundo Santo Agostinho. Anacronismo y Irrupción – Revista de Teoria y
Filosofia Política Clássica e Moderna. Buenos Aires, v. 4, n. 6, p. 149-164, 2014. ISSN
2250-4982.
_______. Egéria (séc. IV/V), a primeira escritora em língua latina da Idade Média.
Revista Sísifo, Feira de Santana, v. 1, n. 6, p. 39-49, 2017. ISSN 2359-3121.
______. SILVA, Felipe Gustavo Soares da. A Bula Unam Sanctam de Bonifácio VIII no
contexto da disputa pelo poder político no final da Idade Média. Argumentos,
Fortaleza, ano 10, n. 20, p. 141- 151, 2018. ISSN 1984-4247.
www.editorafi.org
contato@editorafi.org