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COM AGOSTINHO, E ALÉM DELE
Comitê Científico da Série Inconfidentia Philosophica
Célia López Alcalde (Universidade do Porto – Porto / Espanha)
Cláudia Maria Rocha de Oliveira (Faculdade Jesuíta – MG / Brasil)
Cristiane Pieterzack (Domus ASF – Roma / Itália)
Elke Beatriz Felix Pena (Instituto Federal de Minas Gerais – MG / Brasil)
Francisco Jozivan Guedes de Lima (Universidade Federal do Piauí – PI / Brasil)
Geraldo Luiz de Mori (Faculdade Jesuíta – MG / Brasil)
Ivonil Parraz (Seminário Arquidiocesano São José – SP / Brasil)
João Carlos Onofre Pinto (Universidade Católica Portuguesa – Braga / Portugal)
João Rebalde (Universidade do Porto – Porto / Portugal)
José Carvajal Sánchez (Fundación Universidad Juan de Castellanos – Tunja / Colombia
José Higuera Rubio (Universidade do Porto – Portugal / Espanha)
Lúcio Álvaro Marques (Universidade Federal do Triângulo Mineiro – MG / Brasil)
Luis Martinez Andrade (Collège d'études mondiales – FMSH / França)
Márcio Antônio de Paiva (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais – MG / Brasil)
Massimo Pampaloni (Pontificio Istituto Orientale – Roma / Italia)
Nilo Ribeiro Júnior (Faculdade Jesuíta – MG / Brasil)
Orietta Ombrosi (Università Sapienza di Roma / Italia)
Paula Renata de Campos Alves (Instituto Federal de Minas Gerais – MG / Brasil)
Pedro Henrique Passos Carné (Universidade Federal de Campina Grande – PB / Brasil)
Philippe Nouzille (Ateneo Santo Anselmo – Roma / Itália)
Rodrigo Reis Lastra Cid (Universidade Federal do Amapá – AP / Brasil)
Romualdo Dias (Universidade Estadual Paulista – SP / Brasil)

Conselho Editorial Institucional


Adilson Luiz Umbelino Couto (ITSJ / FDLM)
Edmar José da Silva (FDLM)
Edvaldo Antonio de Melo (FDLM)
Euder Daniane Canuto Monteiro (FDLM)
João Paulo Rodrigues Pereira (FDLM)
José Geraldo Coura (FDLM)
Maria Elisa Silva Mendes (FDLM)
Maurício de Assis Reis (Univiçosa / UEMG / FDLM)
Rodrigo Alexandre de Figueiredo (FDLM)
COM AGOSTINHO, E ALÉM DELE

HOMENAGEM AOS 30 ANOS DE DOCÊNCIA


DO PROF. MARCOS ROBERTO NUNES COSTA

Organizadores/Autores
Anderson de Assunção Ferreira (in memoriam)
Edson Gonçalves da Silva
Gerson Francisco de Arruda Júnior
Ricardo Evangelista Brandão
Diretor da Série: Edvaldo Antonio de Melo
Diagramação: Marcelo Alves
Capa: Gabrielle do Carmo
Fotografia / Imagem de Capa: Rafael Ferreira Costa

A Editora Fi segue orientação da política de


distribuição e compartilhamento da Creative Commons
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https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR

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bibliográficas são prerrogativas de cada autor. Da mesma
forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e
exclusiva responsabilidade de seu respectivo autor.

Serie Inconfidentia Philosophica – 17

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

C728 Com Agostinho, e além dele: homenagem aos 30 anos de docência do prof. Marcos
Roberto Nunes Costa [recurso eletrônico] / Anderson de Assunção Ferreira,
Edson Gonçalves da Silva, Gerson Francisco de Arruda Júnior, Ricardo
Evangelista Brandão... [et al.]. Cachoeirinha : Fi, 2023.

344p.

ISBN 978-65-85725-34-7

DOI 10.22350/9786585725347

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Santo Agostinho – Pensamento. I. Costa, Marcos Roberto Nunes. II.


Ferreira, Anderson de Assunção. III. Silva, Edson Gonçalves da. IV. Arruda Júnior,
Gerson Francisco de. V. Brandão, Ricardo Evangelista.

CDU 1:27(Agostinho)

Catalogação na publicação: Mônica Ballejo Canto – CRB 10/1023


SUMÁRIO

PREFÁCIO 9
Gerson Francisco de Arruda Júnior

1 15
A CRÍTICA DE WITTGENSTEIN À “VISÃO AGOSTINIANA DA LINGUAGEM”
Anderson de Assunção Ferreira (In Memoriam)

2 37
DE CONCORDIA: REFLEXÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE HARMONIA SOCIAL, BEM
COMUM E JUSTIÇA À LUZ DO PENSAMENTO DE AGOSTINHO E CÍCERO
Ricardo Evangelista Brandão

3 59
INTERIOR INTIMO MEO: INTERIORIDADE E VERDADE EM SANTO AGOSTINHO DE
HIPONA
Antonio Pereira Júnior

4 83
ELEMENTOS DO PENSAMENTO DE AGOSTINHO SOBRE O MATRIMÔNIO
Marlesson Castelo Branco do Rêgo

5 101
AGOSTINHO DE HIPONA: AMBIGUIDADES DE UM PRECURSOR DO FILOSSEMITISMO
NA PATRÍSTICA LATINA
Tiago Macedo Bezerra Maia

6 134
A MÚSICA DE SANTO AGOSTINHO: O ELO ENTRE A BELEZA TERRENA E A SUPREMA
BELEZA
Janduí Evangelista de Oliveira
7 158
A LEI E A CARIDADE: O ANTIGO E O NOVO TESTAMENTO COMO METÁFORAS DO AGIR
HUMANO EM AGOSTINHO DE HIPONA
Gracielle Nascimento Coutinho

8 184
ALMA, ESPÍRITO, MENTE: OS SEUS “FIÉIS DEPOSITÁRIOS”À LUZ DA ANTROPOLOGIA
AGOSTINIANA EM INTERFACE COM AS NEUROCIÊNCIAS
Pompeia Rosalia Sena Maltese

9 209
O OBJETO DA CIÊNCIA NATURAL SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO
Rodrigo José de Lima

10 226
O CONCEITO DE MAL NO MANIQUEÍSMO: UMA RELAÇÃO ENTRE O LIVRE-ARBÍTRIO E
A SOBERBA
Marcone Felipe Bezerra de Lima

11 259
CONCEITO DE LIBERTAS E SUA RELAÇÃO COM A GRAÇA NAS CONFISSÕES DE SANTO
AGOSTINHO
Claubervan Lincow Silva

12 281
O CONHECIMENTO EM DUAS REALIDADES DISTINTAS, MAS NÃO SEPARADAS:
QUANDO AGOSTINHO ILUMINOU O INTELECTO DE TOMÁS DE AQUINO
Edson Gonçalves da Silva

13 301
CARATERIZAÇÃO WITTGENSTEINIANA DO “CONCEITO FILOSÓFICO DE
SIGNIFICAÇÃO” QUE SUBJAZ À “CONCEPÇÃO AGOSTINIANA DA LINGUAGEM”
Gerson Francisco de Arruda Júnior

SOBRE O HOMENAGEADO 315


PUBLICAÇÕES DO PROF. MARCOS ROBERTO NUNES COSTA 317
PREFÁCIO
Gerson Francisco de Arruda Júnior

O presente livro, que apresentamos ao público leitor com um certo


atraso, é uma merecida homenagem a um daqueles muitos professores
que influenciaram vários de seus alunos. Na verdade, o livro tem a
pretensão de ser muito mais do que uma simples homenagem. De fato,
ele objetiva ser, por um lado, uma clara e sincera manifestação de
gratidão, e, por outro lado, um público e notório reconhecimento de
uma trajetória intelectual e profissional indiscutivelmente séria,
profícua e influenciadora. Trata-se, assim, de um Festschrift de ex-
alunos e ex-orientandos em homenagem ao Professor Marcos Roberto
Nunes Costa, professor associado 3 da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE), pelos seus 30 anos de docência.
A ideia inicial que norteou este Festschrift foi a de que cada autor
deveria produzir um texto que tivesse, de modo direto ou indireto, a
participação do Professor Marcos Roberto Nunes Costa, tanto como
professor quanto como orientador. O resultado da produção escrita dos
que aceitaram fazer parte do projeto foi um conjunto de textos que se
caracteriza por sua abrangência teórica e pelo compromisso acadêmico
claramente evidentes na lista de seus autores e de suas respectivas
contribuições.
A versão final desta coletânea contém treze capítulos. Como não
poderia ser diferente, grande parte desses capítulos, oito ao todo
10 • Com Agostinho, e além dele

(nomeadamente os capítulos 3 a 8, 10, 11), abordam assuntos diretamente


ligados ao objeto de estudo que o prof. Marcos Roberto Nunes Costa
dedicou boa parte dessas suas três décadas de ensino e pesquisa, a saber,
o pensamento agostiniano. Por “diretamente”, queremos dizer que são
capítulos cuja temática é tratada exclusivamente a partir do
pensamento de Santo Agostinho. Dos cinco capítulos restantes, quatro
deles tratam do pensamento de agostinho em diálogo com outros
pensadores – são eles: os capítulos 1, 2, 12 e 13, e um capítulo, o nono da
coletânea, discute questões associadas ao pensamento de Tomás de
Aquino.
Os temas, portanto, são muito variados. Mas, se podemos, ainda
que no geral, agrupá-los, encontraremos, basicamente, os seguintes
temas: ética e política, os capítulos 2, 5 e 7; antropologia, capítulo 8; teoria
do conhecimento e ciência, capítulos 9 e 12; matrimônio, capítulo 4; música
e estética, capítulo 6; linguagem, capítulos 1 e 13; interioridade e verdade,
capítulo 3; o problema do mal, graça e livre-arbítrio, capítulos 10 e 11.
O capítulo 9, o único rigorosamente não agostiniano da
homenagem, foi escrito pelo prof. Rodrigo José de Lima, sob o título O
OBJETO DA CIÊNCIA NATURAL SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO. Nesse
contexto, um fato que merece destaque é que o prof. Rodrigo José de
Lima teve a invejável oportunidade de ter sido orientando do professor
Marcos Roberto Nunes Costa, tanto na graduação, como no mestrado e
no doutorado.
Dentre os textos que apresentam um certo nível de diálogo entre
Agostinho e outros pensadores, encontramos:
Gerson Francisco de Arruda Júnior • 11

- o capítulo 2, escrito pelo prof. Ricardo Evangelista Brandão, e cujo título é DE


CONCORDIA: REFLEXÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE HARMONIA SOCIAL, BEM
COMUM E JUSTIÇA À LUZ DO PENSAMENTO DE AGOSTINHO E CÍCERO, e discorre
sobre o importante tema ético político da concórdia, a partir de duas obras de
Agostinho, a Epístola 138 e a De civitate Dei, tendo como pano de fundo o
pensamento de Cícero;
- o capítulo 12, intitulado O CONHECIMENTO EM DUAS REALIDADES DISTINTAS,
MAS NÃO SEPARADAS: QUANDO AGOSTINHO ILUMINOU O INTELECTO DE TOMÁS
DE AQUINO, escrito pelo prof. Edson Gonçalves da Silva, e cuja proposta se
reveste de um caráter polêmico, uma vez que, quanto a determinados aspectos
da teoria do conhecimento, ele pretende demonstrar que o pensamento de
Tomás de Aquino se apresenta com um apaziguador entre a doutrina cristã
agostiniana e os textos de Aristóteles;
- e o capítulo 13, escrito pelo prof. Gerson Francisco de Arruda Júnior, que, em
tese, traz à tona e discorre sobre as controvérsias e polêmicas sobre a crítica de
Wittgenstein à chamada “visão agostiniana da linguagem”, como bem diz o
título: CARATERIZAÇÃO WITTGENSTEINIANA DO “CONCEITO FILOSÓFICO DE
SIGNIFICAÇÃO” QUE SUBJAZ À “CONCEPÇÃO AGOSTINIANA DA LINGUAGEM”.

Entre os textos da coletânea que apresentam uma abordagem


predominantemente agostiniana, encontramos:

- o capítulo 3, cujo título é INTERIOR INTIMO MEO: INTERIORIDADE E VERDADE


EM SANTO AGOSTINHO DE HIPONA, e tem como autor o prof. Antonio Pereira
Júnior, que, no fundo, propõe realizar um mapeamento de todo percurso
trilhado por Agostinho em seu itinerário de busca da Verdade.
- sob o título ELEMENTOS DO PENSAMENTO DE AGOSTINHO SOBRE O
MATRIMÔNIO, o prof. Marlesson Castelo Branco do Rêgo nos chama a atenção,
no capítulo 4, para uma compreensão adequada da influente doutrina de
Agostinho sobre o matrimônio na história do pensamento cristão, considerando
os contextos dos debates nos quais tal doutrina se desenvolveu;
12 • Com Agostinho, e além dele

- no quinto capítulo, o prof. Tiago Macedo Bezerra Maia nos dá uma contribuição
singular, quando tenta explicitar, a partir do título AGOSTINHO DE HIPONA:
AMBIGUIDADES DE UM PRECURSOR DO FILOSSEMITISMO NA PATRÍSTICA
LATINA, elementos filossemitas no arcabouço filosófico-teológico agostiniano,
demonstrando assim, também, o quão vanguardista foi o hiponense em suas
tematizações e formulações sobre o povo judeu.
- o capítulo 6 desta coletânea trata de um livro importante, mas, ao que tudo
indica, ainda pouco estudo, que é o A Música, de Santo Agostinho. A partir desse
livro, o prof. Janduí Evangelista de Oliveira objetiva, com o seu artigo A MÚSICA
DE SANTO AGOSTINHO: O ELO ENTRE A BELEZA TERRENA E A SUPREMA BELEZA,
fomentar a experiência musical como instância promotora do desenvolvimento
integral do ser humano que se dá a partir da ampliação de nossa capacidade
sensitiva que não limita o valor da música ao prazer sensível, mas que vislumbra
o suprassensível.
- no sétimo capítulo, a profa. Gracielle Nascimento Coutinho apresenta e
problematiza sobre o desenvolvimento da consciência ético-moral humana sob
o prisma filosófico-teológico do tratado agostiniano Sobre o Espírito e a Letra, no
artigo A LEI E A CARIDADE: O ANTIGO E O NOVO TESTAMENTO COMO
METÁFORAS DO AGIR HUMANO EM AGOSTINHO DE HIPONA.
- a profa. Pompeia Rosalia Sena Maltese, no seu texto intitulado ALMA, ESPÍRITO,
MENTE: OS SEUS “FIÉIS DEPOSITÁRIOS”À LUZ DA ANTROPOLOGIA AGOSTINIANA
EM INTERFACE COM AS NEUROCIÊNCIAS, que caracteriza o capítulo 8, discute
um importante tema da antropologia agostiniana, dialogando com aspectos
importantes da neurociência.
- os capítulos 10 e 11, escritos respectivamente pelos profs. Marcone Felipe
Bezerra de Lima e Claubervan Lincow Silva, abordam aspectos da temática
sobre o mal, a graça e liberdade. O capítulo 10, sob o título O CONCEITO DE MAL
NO MANIQUEÍSMO: UMA RELAÇÃO ENTRE O LIVRE-ARBÍTRIO E A SOBERBA, no
qual o problema do mal é analisado a partir de sua relação com o livre-arbítrio.
Já no capítulo 11, encontramos uma análise do CONCEITO DE LIBERTAS E SUA
RELAÇÃO COM A GRAÇA NAS CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO, no qual se
Gerson Francisco de Arruda Júnior • 13

defende que a graça e a liberdade devem ser tomados como princípios


complementares e indissociáveis, e tenta mostrar isso a partir da analises
desses conceitos nas obras agostinianas, passando a sua aplicação relacional
dentro da obra Confissões.

Por fim, mas não menos importante, temos o capítulo 1 que, na


verdade, é uma publicação póstuma. Com pequenas modificações, o
capítulo consiste no terceiro capítulo da dissertação de mestrado
apresentada e defendida, em 2019, pelo meu irmão de fé, amigo sincero
e professor Anderson de Assunção Ferreira. A dissertação, à qual tive o
privilégio de ser o coorientador, foi elabora sob a orientação do prof.
Marcos Roberto Nunes Costa, no Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco. Devido ao seu
falecimento, os organizadores desta coletânea decidiram honrar o prof.
Anderson de Assunção Ferreira, que inclusive era um dos organizadores
desta homenagem, publicando o seu capítulo como texto de abertura,
com a devida autorização de sua esposa Núbia Assunção. Aproveito a
oportunidade para registrar a minha sincera gratidão ao prof. Anderson
de Assunção Ferreira, pela amizade e companheirismo.
Enfim, junto com este singelo tributo, queremos deixar nossos
parabéns e nossa expressão de gratidão e admiração ao Professor
Marcos Roberto Nunes Costa, bem como o nosso agradecimento pelos
seus anos de dedicação docente e pela aventura ímpar de orientação na
pesquisa que pudemos vivenciar com ele. Desejamos também estender
essa gratidão a cada autor que contribuiu com a preparação e o envio do
seu capítulo para este Festschrift. Por fim, aos nossos leitores, aos quais
14 • Com Agostinho, e além dele

externamos nossos votos de uma boa leitura, desejando que esta


homenagem possa, de modo significativo e provocante, ajudá-los em
suas pesquisas.
1
A CRÍTICA DE WITTGENSTEIN À “VISÃO
AGOSTINIANA DA LINGUAGEM” 1
Anderson de Assunção Ferreira 2 (In Memoriam)

1. 1 ENUNCIAÇÃO DO PROBLEMA

Neste capítulo, faremos uma análise da pertinência, ou não, da


crítica feita por Wittgenstein à concepção agostiniana da linguagem.
Existem alguns pontos de vista a serem observados. Há, por exemplo,
entre os estudiosos agostinianos, quem defenda a tese de que
Wittgenstein não compreendeu bem a “visão agostiniana da linguagem”
eaté mesmo que o filósofo austríaco tenha distorcido o pensamento do
filósofo hiponense. Existem também alguns estudiosos wittgensteinianos
quedefendem a tese de que não aconteceu uma ruptura no pensamento
de Wittgenstein e sim uma continuidade, João da Penha chega a firmar
que: “A discussão reúne material vasto o suficiente para preencher as
páginas de um livro volumoso.” (PENHA, 2013, p. 60).
Confesso que, como muitos, ao iniciar essa pesquisa eu
compreendia que a crítica feita por Wittgenstein era literalmente

1
Com algumas poucas modificações, este texto consiste no terceiro capítulo da dissertação de mestrado
apresentada e defendida pelo prof. Anderson de Assunção Ferreira, sob a orientação do prof. Marcos
Roberto Nunes Costa, em 2019, no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal
de Pernambuco. Devido ao seu falecimento, os organizadores desta coletânea decidiram honrar o prof.
Anderson de Assunção Ferreira, que inclusive era um dos organizadores, publicando, postumamente, o
texto aqui apresentado, com a devida autorização de sua esposa Núbia Assunção.
2
O prof. Anderson de Assunção Ferreira era formado em Teologia e Filosofia. Era mestre em Filosofia,
pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, e, no ano do seu falecimento, estava cursando o
doutorado em Filosofia, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN.
16 • Com Agostinho, e além dele

direcionada a Agostinho; porém, ao longo de minha pesquisa, e também


com a ajuda do meu orientador, percebi que a crítica era na verdade a
uma determinada tradição filosófica. Tentarei, em primeiro lugar,
provar essa tese; em segundo lugar, mostrarei os argumentos de quem
defende a ideia de que Wittgenstein não só criticou Agostinho de forma
direta, mas que ele não entendeu bem e distorceu o pensamento do
filósofo hiponense; e, em seguida, darei uma resposta a quem entende
que a crítica é diretamente direcionada a Agostinho, como também
tentarei provar que a “visão agostiniana da linguagem” não se sustenta
diante dos argumentos de Wittgenstein.
Na segunda fase do seu pensamento, Wittgenstein é caracterizado
principalmente por uma forte crítica à tradição filosófica, crítica essa
que abarca inclusive a filosofia de sua primeira fase, pois Wittgenstein
“[...] chegou a considerar o método e as doutrinas do Tractatus como um
paradigma de filosofia tradicional.” (FANN, 1999, p. 76). O filósofo, no
prefácio às Investigações, diz: “[...] pareceu-me dever publicar juntos
aqueles velhos pensamentos [do Tractatus, R.P.C.] e os novos, pois estes
apenas poderiam ser verdadeiramente compreendidos por sua oposição
ao meu velho modo de pensar, tendo-o como pano de fundo.”
(WITTGENSTEIN 1999, p. 26).
Agora “[...] as exposições de Wittgenstein estão cheias de analogias,
imagens enigmáticas, estranhos jogos simulados de perguntas e
respostas, comparações irônicas, que frequentemente desembocam em
questões irrespondidas.” (STEGMÜLLER 1976, p. 431). Do Tractatus para
as Investigações, portanto, muda significativamente o estilo de
exposição dos pensamentos:
Anderson de Assunção Ferreira • 17

Enquanto no Tractatus nos defrontamos com proposições que se


apresentam com uma espécie de categoricidade ‘absoluta’, que parecem não
tolerar contradição alguma, nas Investigações Filosóficas Wittgenstein nos
apresenta uma permanente dialética de tese e antítese que reflete a luta
espiritual do Autor, luta na qual ele, incansavelmente, adota ideias de
outros filósofos ou ideias que ele próprio defendera anteriormente, para
então criticá-las a fundo e superá-las. (STEGMÜLLER 1976, p. 430).

A filosofia do segundo Wittgenstein rompe não somente com as


opiniões e o estilo da tradição e do primeiro Wittgenstein, mas também
com seus propósito, uma vez que o primeiro pretendia resolver por
completo os problemas da filosofia como ele mesmo afirma no prefácio
do Tractatus: “[...] a verdade dos pensamentos aqui comunicados parece-
me intocável e definitiva.Portanto, é minha opinião que, no essencial,
resolvi de vez os problemas.” (WITTGENSTEIN 1994, p. 133). Ele chega
até a abandonar a filosofia após a publicação do Tractatus. Já no prefácio
às Investigações encontramos um Wittgensteinmaismodesto: “Não
desejaria, com minha obra, poupar aos outros o trabalho de pensar,
massim, se for possível, estimular alguém a pensar por si próprio.”
(WITTGENSTEIN1999, p. 26).
A filosofia passa a ser uma atividade terapêutica, onde o objetivo
agora não é mais das respostas as questões filosóficas, mas sim dissolvê-
las. Ela deixa de ser uma busca pela verdade e passa a ser um “fazer
pensar”:

[...] não devemos construir nenhuma espécie de teoria. Não deve haver nada
de hipotético em nossas considerações. Toda elucidação deve desaparecer e
ser substituída apenas por descrição. E esta descrição recebe sua luz, isto é,
sua finalidade, dos problemas filosóficos. (WITTGENSTEIN 1999, p. 65).
18 • Com Agostinho, e além dele

Aqui fica clara a ruptura de pensamento no segundo Wittgenstein


com relação a sua primeira fase, encontramos um filósofo
completamente diferente do primeiro até mesmo na forma de se fazer
filosofia. Passaremos agora a observar o fato de que a crítica feita por
ele é na verdade uma crítica à tradição filosófica.
Podemos resumir a crítica wittgensteiniana à tradição filosófica na
seguintetese: “Os filósofos são levados à confusão por estarem
antecedentemente dispostos a vervários usos da linguagem de modos a
eles inapropriados [pois possuem] uma tendênciapara ver a linguagem
a partir de uma perspectiva equivocada oudesorientada.” (FOGELIN,
1997, p. 34).
Podemos compreender essa desorientação ou equívoco da seguinte
forma: Há na tradição filosófica um recorrente entrelaçamento
entreontologia, epistemologia e filosofiada linguagem, ou se preferir
entre mundo, pensamento e linguagem, esse entrelaçamento constitui
a principal característica do Tractatuse que foi responsável pelo
nascimento de uma determinada “visão de mundo” queacabou por
tornar-se constituinte dos fundamentos daquilo que comumente
édenominado pela tradição de filosofia.A sua crítica é literalmente
direcionada a esses fundamentos; portanto, sua crítica se dirige a tal
entrelaçamento, que se mostraequivocado na medida em que
representa um ideal e não a realidade acerca dalinguagem. Wittgenstein
afirma nas Investigações: “O ideal está instaladodefinitivamente em
nossos pensamentos [...] De onde vem isso? A ideia é como
óculosassentados sobre o nariz e o que vemos, vemos através deles. Nem
nos ocorre a idéia detirá-los.” (WITTGENSTEIN 1999, p. 64). Assim, há
Anderson de Assunção Ferreira • 19

um ideal atuante nas considerações da tradição filosófica sobre a


linguagem que leva a errosque, fazendo parte da base das teorias
filosóficas, torna essas teorias completamenteequivocadas. As
principais características desse ideal, que recebem as
críticascontundentes do segundo Wittgenstein, podem ser divididas,
segundo Fogelin (1997), em duas categorias amplas: o referencialismo e
o perfeccionismo lógico.
O referencialismo (ou a teoria referencial do significado)
Wittgenstein resume essadeterminada visão da linguagem da seguinte
fórmula: “[...] aspalavras da linguagem denominam objetos – frases são
ligações de tais denominações.” (WITTGENSTEIN 1999, p. 27).
Predominante na tradiçãofilosófica essa visão da linguagem, para a qual
uma palavra tem significado se a ela corresponde um objeto, sejaele
físico ou material, seja ele lógico ou racional, seja ele psicológico ou
mental. Essa visão está presente no Tractatus, e nessa obra é levada às
últimas consequências, naforma de sua teoria da figuração.
A crítica à teoria referencial dosignificado feita por Wittgenstein
no início das Investigações, citando uma passagem das Confissões de
Santo Agostinho, demonstra essa teoriade forma bastante simples. Em
primeiro lugar, Wittgenstein chaga a conclusão de que Agostinho não
fala de uma diferença entre espécies de palavras, e pensa apenas
emnomes de coisas e de pessoas, e nos outros tipos de palavras como
algo que se terminarápor encontrar.
O perfeccionismo lógico é o outro aspecto criticado por
Wittgenstein, talvez esse seja até mesmo mais importante – e ao mesmo
tempo mais implícito do que o referencialismo. Ele éum ideal de
20 • Com Agostinho, e além dele

exatidão lógica que permeia toda a filosofia tradicional. O que leva


Wittgenstein a formular a filosofia do Tractatus foi a exigência da
fundamentação de uma linguagem ideal, na qual desaparecesse toda a
ambiguidade da linguagem ordinária.A análise lógica de uma
proposição leva apenas a um resultado, e a proposição atômica se refere
a um único fato atômico no mundo. Cada palavra, deste modo, tem um
significado unívoco, pois se refere a um objeto simples. Este ideal de
exatidão é criticado por Wittgenstein em sua segunda fase do seu
pensamento com a demonstração de que a absolutização dos
significados de “simples” e “exato” nos levam a erros filosóficos, tal
como a absolutização do significado enquanto referencial também nos
leva a erros filosóficos. Tanto “simples” e “complexo” quanto “exato” e
“inexato” são palavras utilizadas de diversos modos, conforme a
situação e os objetivos dos juízos de complexidade ou de exatidão.
Complexidade ou exatidão absolutas não existem, portanto o ideal de
exatidão é impossível de se alcançar.
O início de tal visão da linguagem possuída pela tradição filosófica,
a saber, de uma linguagem referencial e detentora de uma exatidão
ideal, remonta a Platão, como nota o próprio Wittgenstein, que cita a
seguinte passagem do diálogo platônico Teeteto:

“[...] para os elementos primitivos [...] dos quais nós e tudo mais somos
compostos, não há nenhuma explicação; pois tudo o que é em si e por si
pode apenas ser designado com nomes [...] Estes elementos primitivos eram
os ‘individuals’ de Russell e os meus [isto é, do próprio Wittgenstein, R.P.C.]
‘objetos’.” (WITTGENSTEIN 1999, p. 43-44).
Anderson de Assunção Ferreira • 21

Platão o primeiroa colocar claramente a necessidade de uma


exatidão na linguagem, de uma definição última de um termo, e também
foi ele quem primeiro se utilizou de uma solução metafísica – com sua
teoria das ideias – para resolver o problema da linguagem e do
pensamento. Platão elevou a relação entre pensamento e linguagem já
existente no logos grego à categoria ontológica, criando o
entrelaçamento mundo-pensamento-linguagem. Na luta entre Platão e
os sofistas, a tradição escolheu Platão e tomou para si sua “visão de
mundo”. O segundo Wittgenstein abandona estes pressupostos da
filosofia tradicional e faz uma filosofia que lembra, em alguns aspectos,
o pensamento sofístico.
Na segunda fase de seu pensamento, Wittgenstein procura rever
tais pressupostos eencontra neles a fonte de muitos erros filosóficos.
Sua crítica é à filosofia tradicional, criadora de sistemas teóricos que
almejam a verdade, e por isso sua filosofia se faz de forma assistemática.
Nas Investigações, é por meio da dúvida e da ironia acerca das ideias
tradicionais a respeito da linguagem que vemos surgir o pensamento
wittgensteiniano, cujo fundamento consiste numa espécie de
pragmatismo, o qual recomenda que a nossa “[...] consideração deve ser
modificada, mas tendo como centro nossa verdadeira necessidade.”
(WITTGENSTEIN 1999, p. 64).Não mais se busca, como no Tractatus,
criar uma teoria que fundamente uma linguagem ideal, mas sim
descrever a realidade da linguagem – deste modo ela é vista, nas
Investigações, como uma ferramenta de interação social, que assume
vários modos, chamados de “jogos de linguagem”, de acordo com a
função a ser realizada e com a cultura da qual ela emerge.A filosofia
22 • Com Agostinho, e além dele

passa a ser vista não como uma rival da ciência, criadora de teorias
positivas, mas como uma atividade terapêutica cujo objetivo é dissolver
os problemas filosóficos:

Estes problemas não são empíricos, mas são resolvidos por meio de um
exame do trabalho de nossa linguagem e de tal modo que este seja
reconhecido: contra o impulso de mal compreendê-lo. Os problemas são
resolvidos não pelo acúmulo de novas experiências, mas pela combinação
do que é já há muito tempo conhecido. A filosofia é uma luta contra o
enfeitiçamento do nosso entendimento pelos meios da nossa linguagem.
(WITTGENSTEIN 1999, p. 65).

1.2 ARGUMENTOS A FAVOR DA “VISÃO AGOSTINIANA DA LINGUAGEM”

Há diferentes valorações quanto a recepção da crítica feita por


Wittgenstein entre os estudiosos de Agostinho. Alguns defendem a ideia
de que não se pode falar de uma “uma” visão representativista em
Agostinho, pois afirmam haver uma evolução no pensamento do
filósofo hiponense quanto a esse assunto, há também uma discursão se
o texto das Confissões pode ser tomado como expoente de toda a filosofia
da linguagem agostiniana, uma vez que se trata de um texto
autobiográfico. Alguns comentaristas chegam até a afirmar que o
filósofo austríaco não apenas reduziu, mas também distorceu o
pensamento de Agostinho sobre a linguagem. Estudiosos como Eduardo
PIACENZA analisam o De Magistro procurando demonstrar que nesta
obra, Wittgenstein não distorce o pensamento do filósofo medieval no
que se refere à sua visão representativista de nomeação, porém com sua
crítica tão pesada, ele contribuiu na criação de uma imagem que não dar
o valor suficiente para o pensamento agostiniano sobre a
Anderson de Assunção Ferreira • 23

linguagem. 3Ele apresenta três questões retiradas do De Magistro onde


ele defende que Agostinho eleva ao extremo a teoria representativista
da linguagem.
A primeira delas é o reísmo semântico; essa é a concepção de que
os nomes próprios literalmente significam as coisas nomeadas, assim
sendo o seu valor semântico se esgota nelas. Dessa forma não mais
existindo a coisa, o seu significado também deixa de existir. O
significado vem das coisas e não das palavras, pois é o conhecimento da
coisa que possibilita entender o significado. Quanto ao ponto de vista
semântico, todas as palavras são vistas como nomes. Dessa forma
quando a palavra não encontra uma coisa então devemos buscar na alma
(como por exemplo, as conjunções e as preposições...)
Em segundo lugar o atomismo/isolamento semântico. Aqui é
abolida toda a diferença entre uma oração e uma lista de nomes, entre
o “dizer algo de algo” e o mero “nomear”, entre descrever e nomear; pois
há uma relação direta entre o nome e o nomeado. Também é abolida
toda a diferença semântica do nome nos seus diferentes contextos
linguísticos.
Em terceiro lugar a redução dos possíveis usos da linguagem. Isso
significa que a linguagem fica reduzida a um papel evocativo, pois o
significado da palavra basta para o conhecimento, não surge nada novo
na junção das palavras de uma oração. Assim sendo, separado do
contexto verbal situacional, o nome só pode evocar o seu portador
ausente. Para Agostinho o nome só pode evocar o portador se eu já o

3
PIACENZA, Eduardo. El “De Magistro” de San Agustín y la semântica contemporânea, In: Agustinos 37
(1992), p. 47.
24 • Com Agostinho, e além dele

conheço. se se tratar de um objeto sensível, reportar-me-ei às


experiências feitas por meus sentidos corporais; se se tratar de um
objeto inteligível, reportar-me-ei à imagem impressana memória. Se
não conheço as coisas designadas pelas palavras, elas de nada
meserviriam; se já as conheço, tampouco poderiam ensinar-me algo
que eu já não soubesse. Assim, desembocamos numa total perda do
valor epistêmico da palavra. 4 A mediação linguística passa a ser um
acompanhamento inessencial, contingente e acrescentado
aoconteúdo que está na coisa mesma e que se obtém por experiência
direta (sensível ou inteligível) 5.
O decisivo para o conhecimento, portanto, é a relação direta com a
coisa conhecida. Quando não é possível encontrar essa coisa entre as
coisas do mundo, então o homem éincitado a buscá-la no seu interior.
Aí ele encontra a luz que ilumina o seu conhecimento. Assim, segundo
Piacenza, o desenrolar da obra De Magistro é apenas uma preparação
paraa doutrina do Mestre interior (de onde vem o nome da obra). É
evidente aqui a influênciado platonismo em Agostinho: o recolher-se

4
“Las cosas laspercibimos o por los sentidos corporales, si sonsensibles o carnales; o por la mente, si
soninteligibles o espirituales. Ni unas niotraslasmuestranlaspalabras. Si estas se refieren a realidades
sensibles presentes, les damos asentimiento no por laspalabras que se nos dicen, sino por
lapercepcióndirecta que de ellastenemos; y si están ausentes, por lasimágenes que
ennosotroshanimpreso y que conservamos grabadasenlamemoria... Y si hablamos de realidades
inteligibles o espirituales, laspercibimosconelentendimiento y larazón; tampoco mediante laspalabras”.
Cf. HEREDIA, op. cit., p. 172.
5
“Ensu argumento Agustín presupone que ellenguaje es unacompañamientoinesencial y contingente
delconocimiento; que laspalabrasaparecen como algo que se sobreañade, asociándose de un modo
puramente externo, a unos contenidos cognoscitivos ya plenamente constituidos de antemanocon
total independencia de ellas; que elconocimiento se da por una experiencia directa de las cosas,
experiencia que está libre y no requiereningunamediaciónlingüística. De este modo, ellenguajesólosirve
para manifestar exteriormente um contenidoya plenamente configurado sinsucontribución”. Cf.
PIACENZA, op. cit., pp. 36-37.
Anderson de Assunção Ferreira • 25

dentro de si mesmo para receber a luz nãoparece outra coisa que a teoria
da busca das reminiscências de realidades percebidas no mundo das
ideias de Platão. Mas, então, como se vê, o conhecimento passa a ser
umassunto privado. A comunicação e a linguagem aparecem como algo
inessencial aoconhecimento. A dimensão intersubjetiva, a comprovação
da objetividade de qualquerconhecimento por parte de outros, passa a
ser algo agregado extrinsecamente. 6
As obras de Agostinho mais significativas sobre filosofia da
linguagem são De Magistro e De doctrinachristiana. Sobre essas obras
Wittgenstein nunca fez uma referência explicita.
Maria Leonor Xavier afirma que Wittgenstein “julga Agostinho
equivocadamente” quando usa dessa passagem, pois segundo ela, a
ostensão não mostra realmente as coisas que as palavras significam,
mas revela principalmente a complexidade do tecido de relações que
constitui a realidade concreta da linguagem verbal, em especial, a tripla
relação, respectivamente, com o mundo das coisas possíveis de serem
nomeadas com o mundo da comunidade que fixa a relação entre as
palavras e as coisas, e, ainda, com o mundo interior dos afectos da alma
que motivam o uso das palavras. (XAVIER, 1989, p. 42-43).
Marciano Adílio Spica afirma: não se pode dizer, como queria
Wittgenstein, que Agostinho acreditava piamente numaconcepção
segundo a qual as palavraseram como que etiquetas grudadas nascoisas.
Não se pode conceber a visão dereferencialidade nessa perspectiva

6
“Enlaconclusión a que se llegaen ‘De Magistro’ es elpensamiento platónico o neoplatónico el que está
presente. El hecho de lailuminaciónlo determina san Agustín de un modo paralelo al que se empleaenel
‘Menón’ platónico para laprueba de lareminiscencia”. Cf. HEREDIA, op. cit., p. 176.
26 • Com Agostinho, e além dele

porvários motivos, mas um dos maisconvincentes é que Agostinho


mostra, através da frase Si nihilex tanta Superisplacet urbe relinqui? que
nem todas aspalavras dessa sentença possuemsignificado, pois nem
todas as palavrastêm como referência uma coisa (Cf. AGOSTINHO, 1995,
p. 60) 7.
Da Silva comenta:

A concepção da linguagem extraída por Wittgenstein das Confissões não se


preocupa em elaborar uma teoria da linguagem propriamente dita, em
termos modernos, visto que a citação de Wittgenstein das Confissões
encontra-se em uma obra de cunho religioso de Agostinho, e se trate de uma
descrição pessoal, e como ele aprendeu a utilizar a linguagem. (DA SILVA,
2008).

Assim sendo, percebemos que Wittgenstein usa de forma


equivocada a passagem de Confissões para afirmar que nela contém toda
a filosofia agostiniana da linguem. Mas a pergunta ainda persiste, por
que Wittgenstein escolhe a passagem de Confissões? Talvez a melhor
resposta seja que lendo Agostinho, provavelmente, Wittgenstein se deu
contade que aquilo que ele considerava uma reviravolta, na realidade,
era, apenas, a sistematização de uma concepção antiquíssima. Eis que a
passagem de Agostinho, oportunamente escolhida, podia representar
ainda melhor do que os próprios aforismas do Tractatus, a concepção de
linguagem que ele mesmo havia professado, não muitos anos antes.

7
SPICA, M, A. A insuficiência da linguagem: apontamentos a respeito do De Magistro de Agostinho.
Revista Espaço Acadêmico nº109, junho, 2010.
Anderson de Assunção Ferreira • 27

1.3 CRÍTICA AO ARGUMENTO FAVORÁVEL À “VISÃO AGOSTINIANA DA


LINGUAGEM”

Wittgenstein inicia as Investigações Filosóficas com uma longa


citação de Agostinho. Para o filósofo austríaco, tal passagem reflete
certa imagem da essência da linguagem humana que por muito tempo
perdurou nos clássicos da história da filosofia, a saber, que as palavras
denominam objetos.
Norman Malcolm recorda que Wittgenstein venerava as obras de
Agostinho e ao mesmo tempo informa o porquê de Wittgenstein iniciar
as Investigações filosóficas com uma citação de Agostinho: “Disse-me
que tinha decidido começar as Investigações filosóficas com uma citação
das Confissões, não porque o conceito expresso por S. Agostinho não
tivesse sido expresso por outros filósofos, mas porque o fato mesmo de
que uma mente assim elevada o tivesse pensado demonstrava a sua
importância. (MALCOLM, 1998, p.85). Percebemos então que a intenção
de Wittgenstein não é propriamente fazer uma crítica a Agostinho, mas
sim a toda uma tradição filosófica, que desde de Platão, passando por
Agostinho predominava até os dias de Wittgenstein.Vargas comenta:

O método tradicionalmente adotado na filosofia (desde Platão, passando por


Agostinho, marcando toda a corrente idealista ao longo da história da
filosofia), segundo Wittgenstein, admite a priori a relação de representação
do nomeado no nome, sem ater-se a entender mais detalhadamente essa
relação. Ao contrário, como ocorre no texto citado de Agostinho, toma esse
modelo particular de relação como a essência de toda a linguagem; a partir
do particular, pretende chegar às estruturas essenciais. Ao proceder assim,
do particular ao universal, num salto que de maneira alguma se explica, o
28 • Com Agostinho, e além dele

método idealista procederia de maneira tão inexplicável como o esperar


nascer ratos de trapos por geração espontânea. (VARGAS, 2009, p. 148.

Fica claro que Wittgenstein tinha uma grande admiração por


Agostinho nas palavras citadas por Malcolm. Mas ainda fica a pergunta
o porquê da escolha da passagem de Confissões? Uma vez que esse não
seria num sentido ultimo um tratado filosófico, na verdade o texto é
mais autobiográfico. Assim sendo, as passagens sobre o aprendizado da
língua materna não expressariam um esboço de uma teoria sobre a
língua, ou sobre o seu aprendizado na infância. Santos comenta:

Para Wittgenstein, é nessa essência da linguagem humana referenciada na


citação de Agostinho que se encontram as raízes da ideia de que cada
palavra possui uma significação, significado esse que substitui o objeto que
a palavra referencia por um signo. A ideia de que cada palavra possui um
significado (Bedeutung) e que cada significado corresponde a um objeto
(Gegenstand) é a base fundamental daquilo que Wittgenstein denominou
como ‘imagem agostiniana da linguagem’. (SANTOS, 2015).

Mais uma vez fica clara a intenção de se fazer uma crítica a uma
tradição filosófica e que Wittgenstein poderia por exemplo citar outros
nomes ao invés do nome de Agostinho como Platão, Frege, Bertrand
Russel etc.. Mas mesmo que a crítica não seja diretamente a Agostinho
os seus argumentos sobre a linguagem não se sustentam diante de uma
tão ferrenha crítica feita por Wittgenstein.
Após citar o texto das Confissõesde Agostinho, em que ele descreve
como aprendeu afalar, Wittgenstein imediatamente compreende que:
“Nestas palavrasobtemos, ao que me parece, uma determinada imagem
da essência da linguagem humana, queé esta: as palavras da linguagem
Anderson de Assunção Ferreira • 29

denominam objetos – as sentenças são os liames de taisdenominações”


(IF § 1).
A essa observação, Wittgenstein segue um exemplo, o da frase
“cinco maçãs vermelhas”, e assim demonstra que nem todas as palavras
possuem a mesma função a saber, a de designar objetos – pois, embora
faça sentido perguntar a que objeto se refere a palavra “maçã” e, em
certo sentido, a que objeto se refere a palavra “vermelho”, não faz
sentido perguntar a que objeto se refere a palavra “cinco”. Como nota
Fann (1999, p. 85-86):

Tal pergunta tem sentido tão somente quando se supõe que a palavra ‘cinco’
desempenha a mesma função (ou pertence à mesma categoria) que ‘maçãs’
e ‘vermelho’ [...] A tendência a perguntar pelo significado de uma palavra,
inclusive quando seu uso está perfeitamente claro, surge do ‘conceito
filosófico de significado’ que ‘repousa em uma ideia primitiva acerca de
como funciona a linguagem’.

Lançando mão de mais exemplos, Wittgenstein reforça a ideia de


que nem todas as palavras designam objetos, e que, portanto, a visão
agostiniana da linguagem não explica todos os fenômenos linguísticos,
e é, ao mesmo tempo, uma representação primitiva do funcionamento
da linguagem e a representação de uma linguagem primitiva,
insuficiente nela mesma para descrever a realidade, visto não alcançar
a totalidade da significação dos objetos e elementos constitutivos desta
realidade. Outro dos vários argumentos de Wittgenstein contra a teoria
referencial é o fato de que, se o significado de uma palavra fosse o objeto
por ela designado, ela perderia seu significado caso esse objeto
desaparecesse. Aqui o uso da palavra “significação” é que está sob
30 • Com Agostinho, e além dele

análise: quando se designa com esse substantivo a coisa que


“corresponde” à palavra, indubitavelmente está se fazendo um uso
incorreto:

Isto é, confunde-se a significação de um nome com o portador do nome. Se


o sr. N. N. morre, diz-se que morre o portador do nome, e não que morre a
significação do nome. E seria absurdo falar assim, pois se o nome deixasse
de ter significação, não haveria nenhum sentido em dizer: ‘o sr. N. N.
morreu’. (WITTGENSTEIN 1999, p.42).

Todos essesconjunto de observações introduzidos por


Wittgenstein, apontam para o fato de que é um enganoconceber a
denominação deobjetos como a função essencial da linguagem.
Cardoso Comenta:

Da concepção da palavra como nome de objeto e da definição ostensiva


como essenciais no ato de significação, a descrição de fatos será privilegiada
como a função primeira, às vezes também única, da linguagem. Esta visão
tem raízes profundas no pensamento ocidental. O próprio autor do
Tractatus, com a teoria pictórica do significado, refinou ainda mais aquela
concepção. Para o Tractatus (sentenças 3.202-3.203, 3.22), o nome, na
proposição, designa o objeto. A proposição, através da combinação de
nomes representa uma determinada configuração de objetos, mostrando
como eles se encontram combinados na realidade (TLP 3.14; 3.2-3.22; 4.023).
No conjunto, a linguagem, a totalidade das proposições verdadeiras, faz
uma figuração do mundo (TLP 3.01; 4.001). (CARDOSO, )

Nas Investigações Filosóficas, com a analogia dos jogos de


linguagem, a generalizaçãoda função descritiva da linguagem perde
consistência. A linguagem não é uma articulação denomes de objetos (IF
59), nem a denominação é o fator originário e fundamental no
Anderson de Assunção Ferreira • 31

processode significação (IF 1). O ato de dar nome não abarca a totalidade
da linguagem. Com asfrases, além de denominar, os homens fazem as
coisas mais diversas. Quando se diz “Água!”, o que se pretende com isso?
Apontar uma substância, fazer um pedido ou fazer um alerta? Éclaro
que a “substância” em questão entra no discurso, mas o que conta são
os diferentescontextos onde a palavra é usada (IF 27). Vê-se, portanto,
que a definição ostensiva nãoaponta univocamente para o objeto
indicado. A coisa para qual se aponta com um gesto éambígua. Em cada
caso, uma definição ostensiva pode ser interpretada de um modo ou
deoutro (IF 28). Para sair da ambiguidade, necessita-se apontar para o
designado e proferir o seunome “Isto é N” (IF 15, 37, 38). A definição
ostensiva, para significar algo, precisa sercompletada por ulteriores
explicações verbais: “'Como se chama isto?’ – ao que se segue
adenominação” (IF 27). A definição ostensiva explica o uso – o
significado - de uma palavra, caso seja claro o papel que ela vai
desempenhar na linguagem (IF 30).
O apontar para um objeto é uma parte importante para treinar uma
criança e ensinar-lhe uma linguagem. Contudo, o ensino ostensivo das
palavras exercita este papel no processode socialização linguística,
porque está situado em um contexto de relações interpessoais, onde o
uso do gesto indicativo supõe todo um mecanismo restante (IF 6, 26). O
ensinoostensivo das palavras é um jogo de linguagem que supõe uma
certa competência linguística,sem a qual a definição ostensiva nada
significaria (IF 7). Para alguém perguntar sobre umnome de uma coisa,
é necessário dominar um discreto número de outras atividades (IF 31).
Dar nome ou apontar para uma coisa pressupõe o domínio de um dos
32 • Com Agostinho, e além dele

jogos de linguagem napreparação para o uso de uma palavra (IF 26, 27.
31). Assim sendo, o “denominar”, longe de ser uma atividade natural e
espontânea, resulta de um processo muito sofisticado querequer uma
enorme quantidade de atividades educativas. Fora de um jogo de
linguagem, fora de um contexto de uso, fora do conjunto de outras
atividades com as quais seencontram correlacionadas, as palavras da
definição ostensiva certamente nada designariam (IF 9-11; 23, 26, 27).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Chegamos à conclusão de queem primeiro lugar há uma ruptura do


pensar filosófico entre o primeiro e o segundo Wittgenstein como fora
anteriormente bem exposto. Enquanto o primeiro estava em busca da
verdade e com isso pretendia resolver todos os problemas da filosofia, o
segundo está mais preocupado com o fazer pensar a ponto de afirmar
que não se deve construir nenhuma espécie de teoria, toda a elucidação
deveria der substituída por descrição.
Em segundo lugar que Santo Agostinho não foi o alvo direto de
Wittgenstein, a utilização de uma pequena passagem de suas Confissões
serviu para por em discussão a imagem de linguagem nela radicada e
tacitamente partilhada por diversas teorias filosóficas ocidentais. Devo
mais uma vez afirma que ao iniciar esse trabalho eu acreditava ser a
crítica direcionada diretamente ao filósofo hiponense, por isso acredito
que devamos ser sempre lembrados que a intenção do filósofo austríaco
não era fazer uma crítica direta a Agostinho, mas sim a toda uma
tradição filosófica. Tradição essa que pregava o entrelaçamento entre
Anderson de Assunção Ferreira • 33

mundo, pensamento e linguagem ( ontologia, epistemologia e filosofia


da linguagem); portanto a sua crítica se dirige a esse entrelaçamento,
que se mostra equivocado na medida em que representa um ideal e não
a realidade acerca da linguagem. O referencialismo e o perfeccionismo
lógico defendidos por tal tradição se tornam o alvo principal de sua
crítica.
Em terceiro lugar observamos que a visão agostiniana da
linguagem não se sustenta mediante os argumentos de Wittgenstein.
Principalmente a sua teoria referencial, onde o mesmo não fala sobre
uma diferença entre espécies de palavras, e pensa apenas em nomes de
coisas e de pessoas, e afirma que os outros tipos de palavras seriam algo
que se terminará por encontrar. a esse argumento Wittgenstein
utilizando de vários exemplos como: os das cinco, maçãs vermelhas
reforça a ideia de que nem todas as palavras designam objetos. Ele chega
a chamar a “visão agostiniana” de uma representação primitiva da
linguagem, insuficiente nela mesma para descrever a realidade.
Podemos sem sombra de dúvidas a firmar que temos a partir desse
pensamento uma virada linguística. Wittgenstein dá novos rumos a
linguagem, seu pragmatismo linguístico tem influenciado todo o
mundo desde então. Ao romper com a ideia de que as palavras possuem
uma essência ontológica ele quebra com toda uma tradição que como
vimos anteriormente vem desde os antigos e era a concepção
predominante até os dias do filósofo austríaco.
Ao que me parece Wittgenstein tem uma visão naturalista da
linguagem, pois para o mesmo ela é algo intrínseco ao ser humano. Ele
chegar até a afirmar que se apontarmos no dedo indicador para algo é
34 • Com Agostinho, e além dele

natural ao ser humano seguir o dedo para o objeto apontado, porém se


fizéssemos o mesmo com um cão ele viria cheirar o nosso dedo.
Acredito ser importante também lembrar que Wittgenstein não
desprezou de todo a concepção agostiniana da linguagem, mas, como o
mesmo falou, ela pode ser enquadrada como um dos jogos de linguagem,
a saber o mais primitivo dos jogos.

REFERÊNCIAS

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2009.

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Revista Didaskalia. Lisboa, v. XIX, p. 35-46, 1989.
DE CONCORDIA: REFLEXÕES SOBRE A RELAÇÃO
2
ENTRE HARMONIA SOCIAL, BEM COMUM E JUSTIÇA
À LUZ DO PENSAMENTO DE AGOSTINHO E CÍCERO
Ricardo Evangelista Brandão 1

“Em verdade, é totalmente tola a ideia de julgar que é justo o que se encontra
nas instituições e nas leis dos povos. Porventura, seriam leis as
promulgadas pelos tiranos?” (CÍCERO, De legibus, XV, 42).

INTRODUÇÃO

Sabemos que não há filósofo que de alguma forma em seus textos


não exiba as marcas de seu tempo, pois, somos seres situados na
história, e pensamos e problematizamos nossa época, e isso é uma
verdade para o homem comum bem como para o grande filósofo que a
despeito de em muitos momentos por meio de sua obra transcender seu
contexto temporal, ainda assim, como nos ensina Hegel, nenhuma
filosofia é construída sem algum lastro histórico, nascida de alguma
forma dos anseios de um povo 2. Aurélio Agostinho é um exemplo

1
Doutor em Filosofia pela UFPE, professor efetivo de Filosofia do Instituto Federal de Pernambuco e
coordenador do projeto de pesquisa: CONTRIBUIÇÕES FILOSÓFICAS PARA UMA TEORIA DA JUSTIÇA
SOCIAL: discussão acerca da possibilidade de uma teoria da justiça social a partir do prisma de Aurélio
Agostinho, Amartya Sen e suas fontes teóricas, e possíveis aplicações para a justiça social no Agreste
Pernambucano. E-mail: ricardobrand75@gmail.com
2
Recomendamos para um aprofundamento no assunto a leitura do excelente texto do Hegel
“Introdução à História da Filosofia”. Segue um breve trecho para refletirmos sobre a relação entre o
filósofo e a história, que nos auxilia a pensar sobre o que está sendo defendido no corpo da introdução
desse artigo: "Contudo, os homens não criam uma filosofia ao acaso: é sempre uma determinada
filosofia que surge no seio de um povo, e a determinação do ponto de vista do pensamento é idêntica
à que se apodera de todas as demais manifestações históricas do espírito desse povo, está em íntima
relação com elas e delas constitui o fundamento" (HEGEL, 1974, p. 361).
38 • Com Agostinho, e além dele

explícito da imanência contextual do filósofo, visto que não há texto seu


– entre seus tratados, diálogos, epístolas e sermões - que não tenha sido
composto para resolver alguma demanda de sua época.
No presente artigo trabalharemos o tema ético político da
concordia à luz de obras com profundas marcas da época. O substantivo
latino concórdia, que de forma comum é traduzido em português por
concórdia, significa acordo, harmonia, concerto, união, consonância,
concórdia (cf. SARAIVA, 2006, p. 270). Levando em consideração que nas
obras que trabalharemos o termo é usado no contexto das relações
sociais, poderemos estabelecer o seguinte conceito: concordia é uma
espécie de união ou harmonia social entre as pessoas de um grupo
determinado. Essa concordância pode ter como base as opiniões sobre
algum assunto ou a vontade de realizar algo. Ou seja, o que determinará
as bases para essa união é o contexto. De forma que podemos dizer que
essa concordia nunca se dá no vácuo, mas está sempre lastreada por algo
em comum.
Delimitaremos nesse artigo o estudo de duas obras de Agostinho
com contextos semelhantes, notadamente a Epístola 138 3, escrita em 412,
e os livros II e XIX da De civitate Dei, escrita entre 413-426. O que torna
esses escritos semelhantes em contexto é que ambos foram escritos
após o saque de Roma pelos Godos, liderados por Alarico em 410, e
tentam defender o cristianismo ante a acusação de que a adoção do
cristianismo como religião oficial do império teria enfraquecido o

3
A datação das obras que analisaremos nesse texto terá como base a cronologia das obras de Agostinho
presente no primeiro volume da coleção “Obras Completas de San Agustin”, da Biblioteca de Autores
Cristianos (BAC) organizada por Victorino Capanaga (cf. CAPANAGA, 1994, v. 1, p. 384-387).
Ricardo Evangelista Brandão • 39

espírito guerreiro dos romanos com as lições pacifistas do Cristo. Nessa


contextura em que ambos escritos foram produzidos, Agostinho utiliza
as reflexões de Cícero presente no diálogo De República, e em sua
apologia utiliza o termo concórdia para conceituar povo e república.
Assim sendo, pretendemos analisar a forma em que o filósofo de
Hipona utiliza o conceito concordia, se de fato ele respeita em sua
interpretação as intenções de Cícero, como as três perícopes
mencionadas – Epístola 138, De civ. Dei II e De Civ. Dei XIX – se
complementam e aprofundam cada uma em seu contexto textual o
conceito mencionado. E por fim, investigaremos, mediante a análise dos
fragmentos mencionados, se com esse conceito estaríamos diante de
um esboço de filosofia política voltada para o bem comum.

2.1 SOBRE A CONCORDIA: ANÁLISE CONCEITUAL À LUZ DA EPÍSTOLA 138

A Epístola 138 foi endereçada ao seu amigo e irmão na fé Marcelino,


escrita em resposta à Epístola 136 (escrita entre 411 a 412) que tem por
autor Marcelino, que na ocasião terceiriza a Agostinho questões que lhe
foram apresentadas por Velusiano e outros pagãos de sua convivência
(cf. MARCELINO, Ep. 136, 1, 2). Entre as várias indagações apresentadas
por Marcelino está o preceito cristão presente no sermão da montanha
dos evangelhos, de que não se deve devolver o mal recebido com mal, ou
seja, recomenda-se dar a outra face ante uma ofensa recebida 4.

4
Esse preceito aparece em dois evangelhos sinóticos: Mateus 5, 39 e Lucas 6, 29. Todavia, a passagem
mais conhecida está em Mateus: “Eu, porém vos digo: não resistais ao homem mal; antes, àquele que te
fere na face direita oferece-lhe também a esquerda” (5, 39). No versículo imediatamente anterior Jesus
cita a famosa Lex Talionis, que preceituava uma reciprocidade direta ao dano cometido, ou seja, se uma
pessoa machucou um olho de alguém, igualmente terá seu olho machucado: “Ouvistes o que foi dito:
olho por olho e dente por dente” (Mateus 5, 38). Dessa forma, nesse trecho do sermão do monte Jesus
40 • Com Agostinho, e além dele

Marcelino relata que segundo os críticos a adesão de Roma ao


cristianismo, o preceito mencionado supra, enfraquecia a capacidade de
resposta do império ante os ataques inimigos, logo, seria uma
possibilidade nada descartável de que o enfraquecimento de Roma, que
culminou em sua invasão pelos Godos de Alarico, teria como causa
preceitos extremamente pacifistas como esses e o abandono da fé pagã,
de forma que seria inconciliável o cristianismo com a república romana
(cf. MARCELINO, Ep. 136, 1, 2).
Ao começar a tratar do assunto em sua Epistola Agostinho
argumenta que embora de forma falaciosa o comportamento acima
referido seja criticado quando apregoado pelos cristãos, quando foi
relatado por Cícero semelhante comportamento do César todos
aplaudiam (cf. AGOSTINHO, Ep. 138, 9). Logo, de forma irônica, afirma
que Roma não encontrou o declínio após o advento do cristianismo,
pois, mesmo antes de existir o Cristo histórico o comportamento de não
se vingar de todas as injúrias indistintamente sofridas era uma prática
comum dos imperadores romanos, elogiada pelo povo de Roma.
Destarte, a não reciprocidade das injúrias não é a causa do declínio
do império, muito pelo contrário, se de fato os governos de Roma
tivessem levado a sério a prescrição evangélica, argumenta Agostinho,
resultaria em um império maior, de melhor qualidade e mais longevo
(cf. AGOSTINHO, Ep. 138, 2, 10). E nesse contexto argumentativo nosso
pensador na intenção de explicar que muito antes de existir o
cristianismo o declínio do império já se fazia presente, aproveita a

está propondo uma lei que a seu entender seria moralmente superior às leis do antigo testamento, a lei
do amor, que intrinsecamente está presente a não reciprocidade às ofensas recebidas.
Ricardo Evangelista Brandão • 41

argumentação crítica desenvolvida no diálogo Da República de Cícero


sobre a ideia de povo e república, e ao fazer isso Agostinho começa a
desenvolver o conceito de concordia. Analisemos o texto do pensador
cristão: “O que é a república se não o interesse do povo? Logo, o interesse
comum é o interesse da cidade. E o que é a cidade se não uma multidão
reunida pelo vínculo da concórdia?” (AGOSTINHO, Ep. 138, 2, 10) 5.
O termo respublica 6 se refere à forma de governo romana que
Cícero analisa em seu Da República, sem dúvida Agostinho detinha esse
sentido em mente nesse trecho, mas – como bom retórico que era –
igualmente aproveitou o significação da palavra na língua latina, pois,
respublica é um substantivo que significa literalmente coisa ou negócio
(res) público ou do povo (publica), podendo significar interesse público
ou até mesmo bem ou patrimônio comum (cf. SARAIVA, 2006, p. 1032).
É o próprio autor depois de mencionar a respublica que assevera para
não possuirmos dúvidas quanto às suas intenções (nisi res populi – se
não o interesse ou a coisa do povo). Ou seja, já que a respublica é negócio
do povo, tudo o que se deveria fazer ou deixar de fazer nela deveria ser
no interesse desse povo e não dos mais fortes, poderosos ou
governantes. Mas, qualquer povo poderia produzir uma república, e

5
“Quid enim est respublica nisi res populi? Res ergo communis, res utique civitatis. Quid est autem civitas nisi
hominum multitudo in quoddam vinculum redacta concordiae?” (AGOSTINHO, Ep. 138, 2, 10).
6
Respublica é uma forma de organizar o poder que os romanos estabeleceram para substituir o governo
dos reis. Essa palavra latina seria uma expressão do termo grego politeia (Πολιτεία) usado com frequência
por Aristóteles. Contudo, Nicola Matteucci, em um de seus verbetes no “Dicionário de Política”, comenta
que se trata de uma tipologia política distinta das tradicionais formas de governo monarquia,
aristocracia e democracia, visto que elas têm como foco uma forma governo (kratos – poder ou archia -
governo), enquanto a res publica tem como interesse a coisa pública, como expressa o estudioso: “Com
efeito, res publica quer pôr em relevo a coisa pública, a coisa do povo, o bem comum, a comunidade,
enquanto que, quem fala de monarquia, aristocracia, democracia, realça o princípio do governo (archia)”
(MATTEUCCI, 2010, p. 1107, In. BOBBIO; MATTEUCCI; PASQUINO (Org.).
42 • Com Agostinho, e além dele

qualquer interesse do povo, seja ele qual for, deveria ser respeitado?
Assim, arremata o hiponense (Res ergo communis, res utique civitatis –
Logo, o interesse comum é o interesse da cidade). Dessa forma, o
interesse do povo que caracteriza uma respublica ou civitas 7 é o interesse
da civitas. Até parece um jogo repetitivo de palavras, mas, a intenção da
perícope é ressaltar o interesse da civitas, isto é, todas aquelas ações ou
inações para o bem da manutenção da república, pois, uma vez que o
povo decidiu viver em sociedade, obviamente é interesse sine qua non
desse povo todas as decisões no âmbito social que possam fortalecer
esse formato de sociedade.
Ainda assim poderia ficar uma ideia deveras vaga, pois, quais
interesses comuns seriam esses que caracterizam uma cidade, por
exemplo, se a reciprocidade violenta fosse um ideal em comum poderia
ser um dos interesses que dão sentido a respublica? Segundo o texto
objeto de nossa análise em hipótese alguma, pois, é justamente a tese
contrária que ele pretende demonstrar em sua argumentação ao
entender o “dar a outra face” como uma postura positiva na cidade. Por
isso, ressalta o papel da concórdia (Quid est autem civitas nisi hominum
multitudo in quoddam vinculum redacta concordiae? - E o que é a cidade
se não uma multidão reunida pelo vínculo da concórdia?). Dependendo

7
O Agostinólogo Manfredo Thomaz Ramos, em seu excelente estudo acerca do epistolário comparado
com De civitate dei, demonstra que os termos civitas e respublica são usados de forma intercambiável
por Agostinho com dois sentidos: o significado que conhecemos como Estado ou “[...] comunidade ou
sociedade política organizada, que, sozinha, pode garantir o bem comum ou ‘salus publica’ (‘salvação
pública’), e que na antiguidade clássica tomou os nomes de ‘polis’ (‘cidade’) e de ‘res publica’” (2015, p.
149). E com o sentido de cidade celeste ou comunidade dos servos de Deus. À vista disso, o que
determinará o sentido dos termos nas obras de Agostinho, se religioso ou secular, será o contexto.
Doravante nesse artigo utilizaremos de forma intercambiável os termos civitas e respublica com o
primeiro sentido colocado nessa nota, semelhante à acepção de Estado.
Ricardo Evangelista Brandão • 43

da forma que nós interpretemos esse fragmento, fica esclarecido que o


liame dos interesses que forma essa multidão é a concordia. Ou seja, a
concordia seria um valor em si mesmo, não um caminho para alcançar
outra coisa. Dessarte, ela seria como uma espécie de harmonia social, de
maneira que a harmonia social seria um valor em si mesmo para
determinar a existência da respublica.
O agostinólogo espanhol Saturnino Ávarez Turienzo ressalta um
fator que pode ser um complicador para a interpretação supra, pois, o
pronome que determina o substantivo concordia na sentença é quoddan,
que sendo indefinido poderia ter o sentido de algum, de modo que
poderíamos traduzir literalmente a expressão - quoddam vinculum
redacta concordiae – por: algum vínculo da concórdia (cf. TURIENZO,
1998, p. 683). Portanto, se o Turienzo estiver correto, teríamos que
investigar qual é essa concórdia. Nesse caso, ante esse legítimo impasse
exegético, nos cabe recorrer primeiramente ao contexto dessa epístola,
e em seguida aprofundar o assunto com os fragmentos dos livros II e
XIX De civitate Dei que mencionamos na introdução. Nesse texto
epistolar o contexto não deixa dúvida que a concordia presente no
fragmento é de fato a união ou harmonia social, pois, lembremos que
toda a argumentação de Agostinho que o conduziu ao termo em análise,
foi a defesa do princípio cristão de dar a outra face como um valor
importante para a respublica, visto que jamais a civitas poderia ter como
base a vingança e a violência, mas, o interesse do povo, logo, na medida
em que o interesse do povo é preservar a vida o mais saudável -
socialmente falando - possível, com toda a certeza não seria interesse
do povo a reciprocidade violenta, pois todos sabem a instabilidade social
44 • Com Agostinho, e além dele

que esse comportamento por parte do Estado tem potencial de gerar.


Destarte, a concordia seria o sentimento comum do povo resultante da
não reciprocidade agressiva, de maneira que seria muito difícil não
interpretá-la como harmonia.
Além disso, o hiponense afirma apologeticamente que os Romanos
que viveram antes de Cristo, uma vez que os deuses de seu panteão em
sua maioria não eram pacíficos, em nome da sobrevivência, tiveram que
encontrar maneiras de harmonizar a homenagem a esses deuses com a
concordia, pois, se tivessem replicado em sua postura política os
exemplos de seus deuses, a civitas teria sucumbido em guerras civis (cf.
AGOSTINHO, Ep. 138, 2, 10) 8.
Para concluir a análise do uso do termo concordia nessa carta, cabe
ressaltar que Agostinho interpreta o dar a outra face como uma
disposição interior: “Em fim, estes preceitos dizem respeito mais à
preparação do coração que está dentro, do que as obras que se realizam
no exterior” (AGOSTINHO, Ep. 138, 2, 13) 9. Isto é, não seria correto
interpretar de forma literal dar a outra face, pois, argumenta o filósofo
que até mesmo Jesus e o apóstolo Paulo ao serem esbofeteados não
deram a outra face literalmente, demonstrando assim que não se deve

8
Outro argumento que Agostinho utiliza no texto é que o homem justo deveria evitar ao máximo revidar
o mal com o mal, pois, os que assim agem podem estar contribuindo para o aumento de pessoas
injustas. Pois, ao retribuir o mal com bem há a chance do injusto se converter por esse exemplo, e por
outro lado, quando o ofendido retribui o mal com o mal, se torna igualmente injusto, contribuindo
assim para aumentar o número dos injustos em duas vertentes: pelo mau exemplo da vingança, e pela
conversão do justo em injusto pela adesão à vingança: “O homem justo e piedoso deve, pois, estar
preparado para tolerar com paciência a malícia daqueles que eles querem converter em bons, para que
o número destes cresça, antes que unir-se com igual malícia ao número dos maus - Paratus itaque debet
esse homo iustus et pius, patienter eorum malitiam sustinere, quos fieri bonos quaerit, ut numerus potius
crescat bonorum, non ut pari malitia se quoque numero addat malorum” (AGOSTINHO, Ep. 138, 2, 12).
9
“Denique ista praecepta magis ad praeparationem cordis quae intus est, pertinere, quam ad opus quod in
aperto fit” (AGOSTINHO, Ep. 138, 2, 13).
Ricardo Evangelista Brandão • 45

entender esse preceito de forma exterior, mas, como uma disposição


interior (praeparationem cordis quae intus est). Ou seja, o argumento de
que os romanos foram enfraquecidos em seu espírito guerreiro por
preceitos como esse - exemplificado pelo dar a outra face - não se
sustenta, pois, o preceito cristão exorta à disposição não violenta, de
paz, de concórdia, não sendo uma proibição a alguma respublica a se
defender de agressões estrangeiras 10.

10
No contexto do último fragmento citado Santo Agostinho, dando exemplos dos castigos dos pais que
repreendem os filhos de forma justa para o próprio bem dos castigados, nos dá a entender que não se
pode excluir a justiça a priori a uma ação violenta do Estado para defender seu povo. De forma que ele
não demoniza a reciprocidade violenta da respublica se for para corrigir uma notória injustiça: “Portanto,
se esta república terrena mantivesse os preceitos cristãos, as mesmas guerras não se levariam a cabo
sem benevolência, pois seria mais facilmente olhada pelos vencidos com vistas a uma sociedade
tranquila, pacificada na piedade e na justiça. É útil a derrota para aqueles a quem se remove a licença
da iniquidade. Porque não há coisa mais infeliz que a felicidade dos pecadores, que se nutre da
impunidade penal e se fortalece na má vontade, que é como um inimigo interior” – “Ac per hoc si terrena
ista respublica praecepta christiana custodiat, et ipsa bella sine benevolentia non gerentur, ut ad pietatis
iustitiaeque pacatam societatem victis facilius consulatur. Nam cui licentia iniquitatis eripitur, utiliter vincitur;
quoniam nihil est infelicius felicítate peccantium, qua poenalis nutritur impunitas, et mala voluntas velut
hostis interior roboratur” (AGOSTINHO, Ep. 138, 2, 14). O filósofo cristão com essa reflexão dá imensa
elasticidade exegética ao “dar a outra face”, pois, até a guerra de uma respublica justa contra uma injusta
é permitida para corrigir a segunda. Sem dúvida comparar um castigo de um pai, que sempre tem como
meta o melhor para o filho, com as guerras, mesmo as chamadas justas – se é que é possível colocar
essas duas palavras, guerra e justa, em uma mesma sentença – é no mínimo inocente. Contudo, sem
dúvida o contexto de pressão para tornar o cristianismo incompatível com a república romana
dimensionou essa possibilidade de permissão de um castigo bélico estatal, pois, no fragmento citado
se destaca que as guerras seriam realizadas com benevolência, para converter os vencidos pelo exemplo
de uma postura menos cruel na guerra. A chamada “Guerra Justa” é sem dúvida um assunto muito
sensível na reflexão teológica - filosófica agostiniana. Na De civitate Dei XIX, 7 Agostinho novamente faz
menção ao assunto, em um contexto semelhante ao apontado na Epístola 138, que de certa forma
explica o que levou o pensador à refletir esse assunto. Em um texto em que escreveu aproximadamente
entre os anos 400 ao 405, o Contra Fausto, o tema é bordado com riqueza de detalhes. O texto foi escrito
com o objetivo de auxiliar os fiéis ante a incapacidade de argumentar de forma satisfatória ante um livro
do bispo maniqueu Fausto (cf. AGOSTINHO, Contra Fausto, I, 1). No livro 22 Agostinho revela que em seu
texto Fausto entendia ser inconciliável a postura dos cristãos católicos aceitarem a autoridade dos
escritos de todos os apóstolos e ao mesmo tempo a autoridade dos profetas do Antigo Testamento,
visto que os primeiros vêem a lei como negativa e os segundos como positiva (cf. AGOSTINHO, Contra
Fausto, XXII, 1). Nesse contexto apologético e exegético, a partir do capítulo 74 do livro 22, o filósofo
cristão passa a defender a justiça das guerras no Antigo Testamento, guerras essas ordenadas por Deus
aos patriarcas com a intenção de pacificar, defender o povo eleito, a fé e a moralidade verdadeira (cf.
AGOSTINHO, Contra Fausto, XXII, 74). Em sua argumentação Agostinho afirma que essa postura em vista
de alguns tipos de guerras é expediente comum aos dois testamentos, e não apenas algo referente à
velha aliança da lei mosaica. No Velho Testamento as menções às guerras eram diretas, com Deus
ordenando os líderes de Israel atacar ou se defender dos inimigos de forma bélica, já no Novo
46 • Com Agostinho, e além dele

Ao menos no texto sob nossa análise, por todos os motivos


elencados, o que designa uma civitas ou respublica é o bem comum 11, e
esse bem comum é a concordia. Assim, a concordia nesse contexto teria
o sentido equivalente a uma harmonia ou paz social. Incumbe-nos
doravante analisar se ela permanece com sentido semelhante, ou
teremos um aprofundamento na compreensão do conteúdo da
concórdia na De civitate Dei.

2.2 A CONCORDIA À LUZ DOS LIVROS II E XIX DA DE CIVITATE DEI

A mesma indagação de Marcelino exposta na Epístola 138 é o


leitmotiv da De civitate Dei (cf. AGOSTINHO, De civ. Dei, I, 1-10) escrita um
pouco depois entre 413 a 426 12. Como nossa intenção é abordar a

Testamento, argumenta o pensador cristão que essa postura permanece, porém, de forma mais sutil:
“Como os maniqueus muitas vezes acusam abertamente a João, ouça o mesmo Senhor Jesus Cristo que
ordena que se pague a Cesar o que João diz que deve bastar ao soldado. Ele diz: Dai a César o que é de
César e a Deus o que é de Deus. E se os tributos são pagos, é para que os soldados que se tornam
necessários pelas guerras recebam seus salários” – “Sed quia Manichaei Ioannem aperte blasphemare
consueverunt, ipsum Dominum Iesum Christum audiant hoc stipendium iubentem reddi Caesari, quod
Ioannes dicit debere sufficere militi. Reddite, inquit, Caesari quae Caesaris sunt, et Deo quae Dei sunt. Et ad
hoc enim tributa praestantur, ut propter bella necessario militi stipendium praebeatur” (AGOSTINHO, Contra
Fausto, XXII, 74). A despeito dessa controversa argumentação do hiponense é importante destacar que
a guerra nunca deve ser deflagrada pelos cidadãos, mas pelo Estado, logo, a vingança pessoal em
hipótese alguma deve ser confundida com guerra justa. A lógica do filósofo é simples: na medida em
que apenas cabe a Deus a autorização para a guerra justa, e não existe autoridade secular que não foi
determinada ou permitida por Ele, exclusivamente ao governante cabe a deflagração de tal guerra (cf.
AGOSTINHO, Contra Fausto, XXII, 75). Além disso, dado que Deus é justo, as guerras que têm como meta
a vingança, o poder, o puro aumento de riqueza e território, não são justas, mas, geradas pela condição
pecaminosa humana.
11
Segundo o estudioso da filosofia agostiniana Niceto Blázquez, um dos motivos pelos quais as ações
humanas devem ter como meta o bem comum é a sociabilidade que nos é inata, de maneira que todo
comportamento humano, leis e estruturas sociais se direcionam ao bem comum, e esse último existe
devido à sociabilidade (cf. BLÁZQUEZ, 2012, p. 180-182). Formando assim uma espécie de círculo
virtuoso na relação entre as diversas estruturas individuais e sociais humanas e a sociabilidade, que em
última instância na vida concreta percebemos esse círculo nas ações que têm como meta o bem
comum.
12
Na medida em que é o próprio filósofo de Hipona que expõe no Livro I, 1-10 do De civitate Dei que
estava respondendo às indagações de Marcelino, muito do que foi escrito sobre as motivações da
Epístola 138 serve como razões contextuais para a composição da obra analisada no corpo do texto.
Ricardo Evangelista Brandão • 47

concordia nos livros II e XIX do De civitate Dei, temos uma situação


hermenêutica interessante, pois, visto que a obra completa foi escrita
em aproximados treze anos, o livro II estima-se ter sido composto no
ano 413 apenas um ano após a supra mencionada Epístola, enquanto o
livro XIX foi escrito após 13 anos notadamente em 416, de forma que esse
lapso temporal nos dá a oportunidade de compreender se houve
alteração nas reflexões de Agostinho no interregno descrito.
No livro segundo, em sua odisséia apologética, Agostinho relata as
reflexões sobre a decadência do Império por meio de sua interpretação
dos textos do historiador Salústio e do filósofo Cícero. Na intenção de
desassociar a decadência de Roma ao Cristianismo utiliza a
argumentação de Salústio, que em síntese afirma que a concórdia
presente em Roma nunca foi oriunda do amor ou qualquer princípio
elevado eticamente, mas, motivada pelo medo que os romanos possuíam
dos cartagineses. De maneira que bastou Roma destruir Cartago para a
discórdia voltar a imperar, por isso ressalta Agostinho as eloquentes
palavras do historiador romano: “Mas a discórdia, a avareza, a ambição,
inevitáveis filhas da prosperidade, desenvolveram-se de modo

Além do que já foi exposto, cabe ressaltar que nos 22 livros do De civitate Dei Agostinho desenvolveu
apologeticamente uma interpretação da história na perspectiva da fé cristã, escrevendo a primeira
teologia e filosofia da história (cf. LEÃO, In. AGOSTINHO, 2000, p. 17). Esse percurso apologético que
defenderá em resumo que Roma entrara em declínio muito antes da profissão de fé ao cristianismo, é
escrito estabelecendo a comparação entre duas cidades não geográficas, mas místicas que em síntese
se distinguem por dois tipos de pessoas diferenciadas pelo objeto de seu amor: “Dois amores fundaram,
pois, duas cidades, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo a Deus, a terra; o amor a Deus, levado
ao desprezo de si próprio, a celestial. Gloria-se a primeira em si mesma e a segunda em Deus [...]. Naquela
seus príncipes e as nações avassaladas vêem-se sob o jugo da concupiscência de domínio; nesta servem
em mútua caridade [...]” - “Fecerunt itaque civitates duas amores dúo; terrenam scilicet amor sui usque ad
contemptum Dei, caelestem vero amor Dei usque ad contemptum eui. Denique illa in se ipsa, haec in Domino
gloriatur. [...] Lili in principibus eius, vel in eis quas 6ubiugat nationibus dominandi libido dominatur: in hac
serviunt invicem in chántate [...]” (AGOSTINHO, De civ. Dei, XIV, 28 – PL 41).
48 • Com Agostinho, e além dele

exorbitante após a destruição de Cartago” (AOSTINHO, De civ. Dei, II, 18,


1) 13. O fato relatado por Salústio não é estranho ao que acontece em
qualquer país que atravessa um grande infortúnio como uma guerra ou
estado de guerra, a sensação do iminente conflito faz com que a
comunidade se una internamente como uma forma de proteção mútua
consciente ou inconsciente.
Incontestavelmente o pensador de Hipona faz suas as reflexões
críticas do supra mencionado historiador, no argumento de que a
verdadeira concórdia não esteve presente em Roma mesmo antes do
nascimento de Cristo. De forma que até mesmo os consensos internos
eram pautados na conveniência dos mais fortes, ricos e poderosos, e na
submissão dos pobres e oprimidos pela sobrevivência. Não podemos
chamar de concórdia uma harmonia motivada pelo conforto dos mais
ricos, e na sujeição dos miseráveis a esses ricos em troca de uma
paupérrima sobrevivência (cf. AGOSTINHO, De civ. Dei, II, 20). Nessa
crítica defesa ao cristianismo, nas entrelinhas está presente a tese de
que a concórdia real tem como meta algo pensado ou realizado em prol
do bem comum, visto que até as leis em uma comunidade, sendo justas
- imperativas ou proibitivas - tem como fundamento o bem comum14.
Simplesmente não é possível uma concórdia em que se aceita como

13
“At discordia, et avaritia, atque ambitio, et caetera secundis rebus oriri sueta mala, post Carthaginis
excidium máxime aucta sunt” (AGOSTINHO, De civ. Dei, II, 18, 1 – PL 41).
14
No “O Livre-Arbítrio”, Agostinho ao dialogar sobre a diferença entre a lei temporal e a lei eterna afirma
que todas as leis temporais, quando justas, têm como modelo a lei eterna. Uma das características de
uma lei justa é ter utilidade pública (cf. AGOSTINHO, De lib. arb., I, 6, 14), de forma que a própria lei
punitiva - que existe para ordenar as desordens geradas pelo pecado original - ao punir os criminosos
desincentivam a recorrência da prática criminosa e protegem os não criminosos, sendo, portanto,
expressão do bem comum (cf. AGOSTINHO, De lib. arb.. I. 15, 32).
Ricardo Evangelista Brandão • 49

correto a exploração do rico ao pobre, e ver com tranquilidade o luxo


dos ricos em detrimento da miséria e exploração dos pobres em sua
pobreza. Nessas condições, o assentir dos pobres em hipótese
alguma é sinal de concordância, mas, resultado de uma resignação
forçada pela necessidade e falta de alternativas.
Rito contínuo, Agostinho faz uma breve interpretação do texto “De
República” de Cícero, dando certo realce ao conceito analisado nesse
artigo. A harmonia é um conceito que o hiponense faz uso para teorizar
diversos assuntos como a beleza e o ordenamento do cosmos, todavia,
no livro II capítulo 21, se utiliza do texto de Cícero para explicar como
seria a concordia na civitas. Assim, da mesma forma que deve haver certa
harmonia na música entre sons iguais e distintos, bem como com os
tons das diversas vozes, para que ela possa ser agradável aos ouvidos,
deve existir certo equilíbrio entre as diversas classes sociais de uma
civitas. O conceito de harmonia presente na música se equivale ao de
concordia para civitas, como nos adverte o filósofo cristão: “E aquilo que
no canto os músicos chamam de harmonia era na cidade a concórdia, o
mais suave e estreito vínculo de consistência em toda a república, que
sem justiça não pode, em absoluto, subsistir” (AGOSTINHO, De civ. Dei,
II, 21, 1) 15.
A concórdia como equilíbrio entre as diversas classes sociais,
notadamente, ricos, classe média, pobre e muito pobres, poderia se dar
da mesma forma que mencionamos em linhas anteriores, como

15
“Et quae harmonía a musicis dicitur in cantu, eam esse in civitate concordiam, arctissimum atque optimum
omni in república vinculum incolumitatis, eamque sine iustitia nullo pacto esse posse” (AGOSTINHO, De civ.
Dei, II, 21, 1 – PL 41).
50 • Com Agostinho, e além dele

subjugação dos miseráveis aos mais ricos e poderosos. Contudo,


Agostinho afirma que a verdadeira concórdia não pode ser imposta,
esmagando os que não possuem poder algum de barganha, mas, por
meio da justiça. Sem a justiça não é possível existir uma concórdia
verdadeira, mas, apenas um verniz de pacificidade que esconde o
sofrimento e a opressão. Assim, poderíamos afirmar, sem medo de
cometer violência exegética, que essa concórdia defendida como
verdadeira, na medida em que versa sobre uma harmonia social
garantida pela justiça, é pautada pelo bem comum.
No texto que serviu de fonte para a crítica de Agostinho, o “De
República” de Cícero, o filósofo romano a despeito de afirmar que a
harmonia da música equivale à concórdia na república, não especifica
que elementos distintos são esses concordes em uma república: “[...]
assim também um Estado, prudentemente composto da mescla e
equilíbrio de todas as ordens, concorda com a reunião dos elementos no
Estado, a concórdia, a paz, a união, vínculo sem a qual a república não
permanece incólume [...]” (CÍCERO, De República, II, 40). Esse “equilíbrio
de todas as ordens” não é específico no texto, todavia, pelo contexto em
que Cícero fala no diálogo pela boca de Cipião, provavelmente está
fazendo referência às diversas facções políticas cuja rivalidade
atrapalhava a estabilidade de Roma. De forma que a interpretação
acerca das diversas classes sociais provavelmente é contribuição do
pensador de Hipona. Ou seja, entendemos que causava certo incômodo
ao filósofo cristão o desequilíbrio entre as classes sociais, e
principalmente quando esse desequilíbrio gerava uma resignação pela
opressão sob os que quase nada têm.
Ricardo Evangelista Brandão • 51

Ato contínuo, Agostinho menciona o conceito de povo de Cícero,


que enriquecerá a nossa discussão sobre a concordia:

Esgotada, como parecia, esta discussão, Cipião retorna ao interrompido


discurso, recorda e realça uma vez mais a breve definição que dera de
república, que se reduzia a dizer que é coisa do povo. E determina o que é
povo, dizendo não ser qualquer conjunto de indivíduos, mas uma associação
baseada no consenso do direito e na utilidade comum (AGOSTINHO, De Civ.
Dei, II, 21, 2) 16.

Não obstante sabermos se tratar de uma reprodução do texto “De


República” de Cícero, entendemos que Agostinho se apropria do trecho
em seu argumento apologético à fé cristã, dessa forma assumiremos o
excerto como eco do pensamento do filósofo cristão no assunto. Cabe
também destacar que o fato do termo concordia não aparecer transcrito
no texto em análise é irrelevante, pois, o conceito está perfeitamente
esboçado pelos termos consesu, que significa conformidade, acordo,
consentimento, concordância (cf. SARAIVA, 2006, p. 288). Assim, temos
no fragmento citado uma pequena diferença com relação ao uso do
termo concordia no conceito de respublica da Epístola 138, 2, 10. Naquele
texto a concordia em si mesma seria o vínculo responsável pelo conceito
de respublica, diferentemente, na perícope supra a concordância que
forma um povo é a do direito (iuris consensu – consenso do direito), e a
da utilidade ou interesses (utilitatis communione – utilidade comum).

16
“Qua quaestione, quantum satis visum est, pertractata Scipio ad intermissa revertitur recolitque suam atque
commendat brevem rei publicae definitionem, qua dixerat eam esse rem populi. Populum autem non omnem
coetum multitudinis, sed coetum iuris consensu et utilitatis communione sociatum esse determinat”
(AGOSTINHO, De civ. Dei, II, 21, 2 – PL 41). A intenção do pensador de Hipona ao lançar mão do fragmento
citado, é argumentar que se o grande filósofo romano entendia que a decadência de Roma a
descredenciava para ser povo e república, e visto que ele – Cícero - é anterior ao advento de Cristo, não
faz sentido imputar o declínio do império na conta do cristianismo.
52 • Com Agostinho, e além dele

Destarte, o que caracteriza um povo em hipótese alguma é a


quantidade de pessoas ou território, mas, a concordância ou
consentimento jurídico (iuris consensu), ou seja, se está falando aqui o que
é deveras caro aos contratualistas, que todo povo deve se organizar em
torno de pactos civilizacionais como as leis que determinam o que
devemos e o que não devemos fazer. É impossível se viver em uma
sociedade sem esse consentimento jurídico - seja ele tácito ou não - de
maneira que até nas civilizações mais antigas algum tipo de regra para
regular as pessoas que convivem em um espaço comum está presente.
Além do consentimento a algum regramento jurídico, igualmente
caracteriza um povo a utilidade em comum (utilitatis communione), pois,
cada povo é caracterizado por interesses presentes no contexto cultural,
histórico, religioso e filosófico desse povo. Por mais diferentes que sejam
as pessoas partícipes de um específico povo, existem interesses em
comum que os caracterizam, visto que foram educados nessa cultura e
aprenderam a escolher e pensar inseridos nesse contexto ético cultural.
Logo, não seria um exagero afirmar que uma concórdia no direito
e nos interesses em comum se equivaleria ao bem comum que deveria
estar presente em qualquer tipo de sociedade. Visto que qualquer coisa
que favoreça o convívio entre as pessoas, e que facilite a vida individual
em comunidade, é uma expressão do bem comum, de forma que tanto o
regramento jurídico como os interesses em comum cooperam nesse
sentido. A despeito do fato que vivermos em sociedade, somos seres
distintos, com sonhos e aspirações subjetivas, e muitas vezes nossos
interesses individuais conflitam com os coletivos, contudo, na medida
em que vivemos em sociedade e não isolados - no caso de dilemas entre
Ricardo Evangelista Brandão • 53

os interesses individuais e os coletivos - os interesses e regramentos


coletivos devem se sobrepor aos particulares 17.
No livro XIX do De civitate Dei, não obstante ter sido escrito 13 anos
após o livro II mantém exatamente a mesma definição de respublica 18,
diferenciando apenas no contexto em que essa definição se encontra.
Assim, logo depois de repetir o conceito de respublica, aprofunda o que
seria o iuris consensu sustentando que a intenção de Cícero não é se
referir a qualquer regramento jurídico, mas apenas àquele que tem
como fonte a verdadeira justiça: “Com efeito, não devem chamar-se
direito as iníquas instituições dos homens, pois eles mesmos dizem que
o direito mana da justiça e é falsa a opinião de quem quer que
erradamente sustente ser direito o que é útil ao mais forte”
(AGOSTINHO, De Civ. Dei, XIX, 21, 1) 19.
A perícope citada é esclarecedora, pois, o consentimento jurídico que
caracteriza um povo não é um sistema jurídico que seja favorável ao mais
forte em detrimento dos mais débeis, já que qualquer constituição desse
gênero não tem como fonte a vera justitia. Assim, fica cada vez mais
transparente que a concórdia jurídica defendida por Agostinho deve ter

17
No contexto do último fragmento citado, Agostinho reflete sobre as várias formas de governo para se
administrar uma civitas, e em todas elas seja uma monarquia, aristocracia ou democracia, quando não
se tem como meta o bem comum, não existe respublica (cf. AGOSTINHO, De Civ. Dei, II, 21, 2), ideia essa
igualmente presente na “Política” de Aristóteles e no “Da República” de Cícero (cf. ARISTÓTELES, Política
III, 5, 1279b; CÍCERO, Da República I, 26, 27). Assim é fato inconteste que essa concórdia jurídica e de
interesses são formas de expressar o bem comum.
18
No capítulo 21 do livro XIX o próprio Agostinho afirma que está aprofundando ideias que foram
iniciadas no livro II, logo a tônica em demonstrar que Roma estava em declínio antes do início do
cristianismo permanece.
19
“Non enim iura dicenda sunt vel putanda iniqua hominum constituta, cum illud etiam ipsi ius esse dicant,
quod de iustitiae fonte manaverit, falsumque esse, quod a quibusdam non recte sentientibus dici solet, id esse
ius, quod ei, qui plus potest, utile est” (AGOSTINHO, De civ. Dei, XIX, 21, 1 – PL 41).
54 • Com Agostinho, e além dele

um papel social relevante, dado que é nítida a preocupação de que as leis


sejam forjadas para beneficiar os poderosos, que sabemos terem imenso
poder de barganha entre os legisladores, de forma que as normas
jurídicas que devem contar com a concordância do povo é que tem como
objeto o bem comum. E na medida em que, independente da forma de
governo, os pobres têm sempre uma situação desfavorável com relação
aos ricos e poderosos, o bem comum não pode ser traduzido como uma
simples igualdade de direitos e deveres – pois, isso seria favorecer ao mais
poderoso – mas, proteger os mais vulneráveis. Ou seja, o bem comum
seria uma espécie de regra jurídica que trabalha com direitos e deveres
com igualdade proporcional à condição de poder dos cidadãos, de forma
que essa proporcionalidade mencionada considere e proteja os menos
favorecidos em seus direitos e deveres. Afinal, qual diferença prática teria
entre um sistema jurídico que é útil ao mais forte, e outro que defenda a
igualdade de direitos e deveres independente da condição de poder dos
indivíduos? Provavelmente apenas semântica, pois essa indistinta
igualdade sem dúvida é útil aos mais fortes.
Tendo em vista que a maior parte dos textos que analisamos nesse
artigo fazem referência ao conceito de populus e respublica presente no
“Da República” de Cícero, não seria adequado concluí-lo sem
minimamente comentar o mencionado texto. Logo, citando o texto do
filósofo romano: “É, pois – prosseguiu o africano – a República é coisa do
povo, considerando tal, não todos os homens de qualquer modo
congregados, mas a reunião que tem seu fundamento no consentimento
jurídico e na utilidade comum” (CÍCERO, Da República I, 25). A despeito de
Cícero pela boca de Cipião, o africano, ter afirmado que o que dá
Ricardo Evangelista Brandão • 55

fundamentação à ideia de povo é o consentimento jurídico e os interesses


em comum desses congregados, no contexto imediato declara que a causa
eficiente de um povo não é a necessidade de proteção mútua, seja contra
inimigos ou contra as necessidades materiais, mas, a sociabilidade que
nos é inata. Nisso o pensador romano aceita as reflexões de Aristóteles na
“Política”, que debita na conta da pulsão social inerente a cada homem a
causa das primeiras sociedades primitivas - como a família – bem como
as mais desenvolvidas que ele denomina de polis (cf. ARISTÓTELES,
Política I, 1252b – 1253a).
Ora, se a causa eficiente para a existência do povo e da república é a
sociabilidade natural, a consequência é que necessariamente para se
governar essa organização de pessoas de forma duradoura – seja qual for
a forma de governo – deve-se guiar pelo princípio do bem comum que se
expressa pelo conjunto de regras jurídicas que ordenam esse povo, assim
como pelos interesses comuns dos associados. De forma que qualquer
governo não baseado no bem comum, por não respeitar a natureza
humana, está fadado ao fracasso (cf. CÍCERO, Da República I, 26). Dessa
forma, é muito difícil exagerar sobre a importância da concordia, pois,
sem ela é impossível a concretização da sociabilidade humana.
Em nosso comentário supra, partimos do pressuposto de que o
consentimento jurídico proposto por Cícero é uma expressão do bem
comum, todavia, poderíamos argumentar que esse consentimento
poderia ser imposto por poderosos, de maneira que se assim fosse seria
muito difícil se defender que um consentimento feito nessas bases seria
expressão do bem comum. Para que não haja dúvidas quanto a isso,
observemos o que o próprio escreveu:
56 • Com Agostinho, e além dele

Sendo a lei o laço da sociedade civil, e proclamando seu princípio a comum


igualdade, sobre que base assenta uma associação de cidadãos cujos direitos
não são os mesmos para todos? Se não se admite a igualdade da fortuna, se
a igualdade da inteligência é um mito, a igualdade de direitos parece ao
menos obrigatória entre os membros de uma mesma república (CÍCERO, Da
República I, 32).

No contexto imediatamente anterior a essa passagem Cícero está


divagando sobre as várias formas de governo, e como elas se tornariam
degeneradas ao se colocarem contra o bem comum. Prontamente, na
perícope citada defende como funciona a concórdia em uma
democracia, que sendo bem realista, na remota possibilidade de se
defender a igualdade econômica e de dons naturais - como a inteligência
- na democracia que reina a concórdia é caracterizada pela igualdade de
direitos 20. Dessa forma, obviamente se essa igualdade de direitos - que
é a concretização do consentimento jurídico - surge quando reina a
concórdia na democracia, então essa igualdade jurídica sem dúvida é
uma expressão do bem comum e não dos interesses dos poderosos.
Sabemos hoje que em uma condição de extrema desigualdade – com
pessoas em estado de miséria e outras em situação de grande riqueza –
a igualdade de direitos não é o suficiente, tendo que existir alguns
direitos que protejam os mais vulneráveis, de forma que uma igualdade
pura simples, a despeito de ser um avanço em se comparando a um
direito que favorece o mais poderoso, acaba sendo na prática favorável

20
Segundo a historiadora estudiosa do pensamento de Cícero Claudia Beltrão da Rosa, Cícero segue a
mesma tônica de Aristóteles em sua “Política”, designadamente, que existe uma relação complementar
entre a forma de governo e as leis que serão organizadas na ordenação dessa forma de governo (Cf.
ROSA, In. ARAÚJO, 2010, p. 37). Ou seja, as leis não só são determinadas pela forma de governo, como
também são a expressão dessa forma de governo, de maneira que não é possível termos o mesmo
ordenamento jurídico em uma monarquia e em uma democracia.
Ricardo Evangelista Brandão • 57

ao mais forte. Entretanto, provavelmente seria anacrônico exigir essas


progressistas reflexões do pensador romano considerando seu
contexto, logo, sem dúvida proclamar igualdade em direitos se
constituiu em um avanço significativo para a época.

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58 • Com Agostinho, e além dele

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tomo I, p. 673-691.
3
INTERIOR INTIMO MEO: INTERIORIDADE
E VERDADE EM SANTO AGOSTINHO DE HIPONA
Antonio Pereira Júnior 1

“Tu estavas mais dentro de mim do que a minha parte mais íntima. E eras
superior a tudo que eu tinha de mais elevado” (AGOSTINHO, 1997, p. 74).

INTRODUÇÃO

A doutrina da interioridade é, sem dúvida, um dos temas mais


profícuos e instigantes do pensamento de Santo Agostinho. Nela, o
Santo Doutor descreve os caminhos a serem percorridos no processo de
busca e apreensão da Verdade. Assim sendo, a interioridade agostiniana
pode ser entendida como uma profunda experiência de busca da
Verdade vivenciada no interior de si mesmo, com a intenção de
encontrar descanso e repouso para o coração, na Verdade Ontológica
que se encontra obnubilada no interior da própria alma (animus).
A descoberta da interioridade pelo Hiponense se deu em ocasião de
sua passagem pelo neoplatonismo. Foi somente após a leitura dos libri
platonicorum que Agostinho tomou conhecimento da existência de um
mundo puramente espiritual e imaterial, diametralmente oposto ao
materialismo que ele havia conhecido no maniqueísmo.Assim, percebeu

1
Doutor em Filosofia. Professor da Universidade do estado do Rio Grande do Norte (UERN). E-mail:
pereirajunior@uern.br
60 • Com Agostinho, e além dele

que a resposta para suas inquietações não se encontrava na


exterioridade como ele supunha, mas na interioridade de si mesmo.
Numa análise mais atenta da doutrina da interioridade de Santo
Agostinho, é possível perceber que ela tem como lastro o aforismo
grego, “conhece-te a ti mesmo” (γνῶθισεαυτόν). Todavia, na filosofia
agostiniana, o axioma é aplicado não apenas para o conhecimento de si
mesmo (nosce te ipsum), mas como método de investigação da Verdade.
Em vista disso, em Agostinho, o conhecimento de si implicará o
conhecimento da Verdade, uma vez que devido a sua imanência, esta
Summa Essentia ali se mantém sempre presente como Verdade Eterna
do ser e Luz Imutável do intelecto, de modo que, ao adentrar em seu
íntimo na tentativa de conhecer a si mesmo, o homem poderá se deparar
com a luz desta Verdade em seu interior.
Isto posto, este breve ensaio pretende realizar um mapeamento de
todo percurso trilhado por Agostinho em seu itinerário de busca da
Verdade. Para tanto, consultaremos as principais fontes agostinianas
que trataram mais especificamente do temacomo, por exemplo:
Confessiones, De vera religione, De doctrinacristiana. Traremos também
para debate alguns dos principais comentadores de Santo Agostinho
como o famoso medievalista Etiene Gilson, Juan Pegueroles, Johannes
Brachtendorf, dentre outros. Com isso, esperamos conseguir responder
à problemática que norteará esta pesquisa: qual o itinerário percorrido
por Santo Agostinho em sua busca pela Verdade?
Antonio Pereira Júnior • 61

3.2 A VIA DA INTERIORIDADE AGOSTINIANA

A via da interioridade foi o caminho trilhado por Santo Agostinho


para encontrar a Verdade, que o inquietava desde a sua juventude. Por
vezes, ele buscou respostas para seus questionamentos na exterioridade
do mundo sensível, como ele mesmo afirma em suas Confessiones:
“habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora!”
(AGOSTINHO, 1997, p. 299). Todavia, foi somente após seu contato com
o platonismo – ou, mais precisamente, com o neoplatonismo, onde
conheceu o conceito de substantia spiritualise descobriu a existência do
mundo inteligível – que Agostinho percebeu o equívoco de sua busca:
não era fora, isto é, na exterioridade, que ele haveria de encontrar a
Verdade, mas dentro de si mesmo, na interioridade da sua própria alma.
Era para lá que ele deveria dirigir-se. Com isso em mente, escreve no De
vera religione: “Não saias de ti, mas volta para dentro de ti mesmo, a
Verdade habita no coração do homem. E se não encontrares senão a tua
natureza sujeita a mudanças, vai além de ti mesmo” (AGOSTINHO, 2002,
p. 98).
Notemos que, na citação supra, Agostinho sinaliza o local de
habitação da Verdade, ela se encontra no coração do homem (in cor
hominis), isto é, no interior (intus) da sua alma. E aí está a grande
constatação de Agostinho: a Verdade é imanente ao homem. De fato, ele
estava errado durante todo o tempo de sua busca, uma vez que não era
nas coisas efêmeras e mutáveis que o homem haveria de encontrar a
Verdade, mas dentro de si mesmo; o caminho era inverso, conforme
expresso na asserção “Não saias de ti, mas volta para dentro de ti mesmo”.
62 • Com Agostinho, e além dele

É importante ressaltar que a imanência da Verdade não exclui a


sua transcendência. A Verdade está no interior do homem ao mesmo
tempo em que o transcende, daí o conselho do Santo Doutor: “se não
encontrares (...), vai além de ti mesmo”. Peña, comentando sobre este
primeiro contato de Santo Agostinho com a interioridade,
complementa:

No ano que precedeu a sua conversão, Agostinho compreendeu, lendo os


platônicos, que existia um mundo espiritual e que para chegar até ele
deveria usar o caminho da interioridade. Isto significa entrar dentro de nós
mesmos, mas não para ali permanecer, mas sim, para usar o coração como
trampolim para elevar-nos até Deus (PEÑA, 2011, p. 190, tradução e
destaque nosso) 2.

Um dado importante a ser considerado no excerto em relevo é o fato


do comentador chamar a atenção para o detalhe de que a interioridade
agostiniana não conduz a alma a nenhum tipo de solipsismo, no qual ela
ficaria perdida em si mesma, divagando em suas próprias sensações. Ao
contrário, ela penetra em seu íntimo para encontrar a Verdade, destino
(telos) e felicidade (beatitudo) de todo ser criado.
Na sequência, apresentaremos o detalhamento de todo o itinerário
de busca da Verdade percorrido por Santo Agostinho, desde antes
mesmo da sua entrada na interioridade de sua alma, até o seu encontro
com a Verdade imutável (Luz eterna do intelecto), numa realidade
metafísico-espiritual que transcende o seu próprio “eu”.

2
“Agustín comprendió en la año que precedió a su conversión, leyendo a los neoplatónicos, que existía un
mundo espiritual y que para llegar a él debía usar el camino de la interioridad. Esto significa entrar dentro de
nosotros mismos, pero no para quedarse ahí, sino para usar el corazón como un trampolín para elevarnos
hasta Dios”
Antonio Pereira Júnior • 63

3.2.1 DA EXTERIORIDADE À INTERIORIDADE

Ao estudar a metafísica da interioridade em Santo Agostinho, o


leitor desatento pode incorrer no erro de supor que as coisas exteriores
devem ser ignoradas nesse processo de busca da Verdade.
Especialmente se considerar as palavras do próprio Agostinho, que fora
do contexto, podem passar tal impressão: “Retinham-me longe de ti as
tuas criaturas” (AGOSTINHO, 1997, p. 299). Quando o Santo Doutor
afirma que as criaturas de Deus o mantinham longe da Verdade, não
significa dizer que elas sejam em si empecilho em sua busca.Na verdade,
é a forma como a pessoa se relaciona com elas que vai determinar a sua
aproximação ou afastamento de Deus ou da Verdade.
É que, para o Filósofo Africano, existem coisas que devem ser
fruídas ou gozadas, – isto é, aquelas que estão no âmbito do eterno e
imutável – e outras que devem ser somente utilizadas e jamais fruídas–
ou seja, as coisas sensíveis e, portanto, efêmeras e transitórias. O
problema acontece quando se inverte essa ordem, utilizando-se daquilo
que deveria ser gozado e fruindo daquilo que deveria ser apenas
utilizado como instrumento para se chegar ao Bem Supremo.
Assim, em De doctrina cristiana, Agostinho escreve:

Nós criaturas humanas, que gozamos e utilizamos das coisas, encontramo-


nos situados entre as que são para fruir e as que são para utilizar. Se
quisermos gozar do que se há simplesmente de usar, perturbamos nossa
caminhada e algumas vezes até nos desviamos do caminho. Atacados pelo
amor das coisas inferiores, atrasamo-nos ou alienamo-nos da posse das
coisas feitas para fruirmos ao possuí-las (AGOSTINHO, 2002, p. 44, grifo
nosso).
64 • Com Agostinho, e além dele

Para que fique claro quais coisas são dignas de fruição e quais são
dignas de serem utilizadas, Boehner e Gilson elucidam: “do que
podemos fruir? Em derradeira instância, só Deus, isto é, a Divina
Trindade (...) Agostinho não se cansa de repetir: não se deve fruir senão
de Deus” (BOEHNER e GILSON, 2012, p. 193, grifo nosso).Isto porque,
para Santo Agostinho, fruir significa aderir a um objeto, por amor a ele
próprio, enquanto usar/utilizar consiste em se servir de algo para
alcançar o objeto a ser fruído.Por conseguinte, aderir a algo que não seja
a Deus é enganar-se a si mesmo,depositando nos bens inferiores
(inferiora bona) a esperança de sua felicidade, o que para nosso ilustre
Pensador seria algo inconcebível.
O que se pretende afirmar é que a exterioridade, longe de servir de
obstáculo no itinerário de busca da Verdade, deve servir como
instrumento e meio de elevação da alma até Deus, uma vez que, segundo
a teoria da participação de Agostinho, todas as criaturas mantêm uma
espécie de vínculo ontológico com seu Criador, fonte de todas as suas
qualidades e atributos. Assim, se qualquer coisa sensível é considerada
bela é porque mantém participação direta com a Beleza Suprema, isto é,
Deus.
Dessa forma, é possível, por meio da contemplação das criaturas,
ultrapassara malha das coisas sensíveis e atingir às coisas
inteligíveis/espirituais. Em citação, afirma o aclamado Bispo: “por meio
das coisas criadas contemplemos as invisíveis de Deus (Rm 1, 20), isto é,
por meio dos bens corporais e temporais, procuremos conseguir as
realidades espirituais e eternas” (AGOSTINHO, 2002, p. 45). E assim, com
Antonio Pereira Júnior • 65

essas palavras, Agostinho define a primeira etapa de sua doutrinada


interioridade.
Desse modo, é através da contemplação e da superação das coisas
exteriores que o homem deve atingir o interior da sua própria alma. Em
nota complementar ao livro décimo do De Trinitate, Oliveira confirma:

a interioridade, condição do verdadeiro conhecimento de si, é o


despojamento, a ascese, a separação do sensível. Trata-se de retirar da alma
o que a encobre a si mesma, para que possa se perceber intuitivamente, na
perfeita coincidência consigo mesma, e assim tornar-se transparente a si
mesma (OLIVEIRA, 1984, p. 643).

Após adentrar em seu próprio íntimo, Agostinho percorre então a


vasta região da sua alma em busca da Verdade 3, no entanto, nada
encontra senão mudança e vicissitude. Por fim, chega em sua memória:

Ultrapassarei então essas minhas energias naturais, subindo passo a passo


(gradibus ascendens) até aquele que me criou. Chegarei assim ao campo e
aos vastos palácios da memória, onde se encontram os inúmeros tesouros
de imagens de todos os gêneros, trazidas pela percepção (AGOSTINHO, 1997,
p. 278, grifo e destaque nosso).

É interessante destacar o caráter ascético-ascensional da


interioridade agostiniana. Já em sua memória, Agostinho continua
elevando-se degrau por degrau (gradibus ascendens), sempre convicto de
que naquela região encontrará a Suma Verdade. A hipótese de que Deus
se encontra na memória assenta-se no fato de que para nosso Filosofo,
o homem possui uma espécie de marca invisível impressa por seu

3
Cf. livros VII e VIII das Confissões.
66 • Com Agostinho, e além dele

Criador em sua alma. Fato que pode ser constatado já no primeiro livro
das suas Confissões: “fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso coração,
enquanto não repousa em ti” (AGOSTINHO, 1997, p. 19).
Ora, a inquietude de coração não seria uma realidade em Agostinho
se, de alguma forma, antes não houvesse, pelo menos, resquício de algo
no interior de sua alma que fosse causa-motor dessa inquietação. Mas
que força (uis) seria esta, capaz de provocar em Agostinho o ímpeto de
uma busca tão intensa e ardorosa? Ele mesmo nos responde: “o meu
peso é o amor (pondus meum amor meus); por ele sou levado para onde
sou levado” (AGOSTINHO, 1997, p. 411, destaque nosso).
O Amor é o fundamento ontológico de todo o sistema filosófico de
Santo Agostinho. É ele a força que impulsiona a vontade (voluntas) do
homem em direção ao objeto do seu desejo. Todavia, mesmo para amar
é preciso antes conhecer aquilo que será objeto desse amor. Em relação
a isso, Agostinho, referindo-se à beatitude, afirma: “não a amariam
(beata vita) se dela não tivessem alguma noção (notitia) na memória”
(AGOSTINHO, 1997, p. 296, destaque nosso).
Aplicando essa máxima à busca do Deus-Verdade de Agostinho,
temos que, para ele, necessariamente, deve existir algum tipo de
conhecimento à priori desse Deus-Verdade já impresso na memória do
homem, de forma que este possa daquele se recordar, para assim amá-
Lo; consequentemente, desejá-Lo e,iniciar a sua busca.Aqui, é possível
perceber a mescla da gnosiologia agostiniana com sua doutrina da
interioridade. O conhecimento torna-se, em Agostinho, pressuposto
indispensável no caminho que leva em direção a si mesmo e,
consequentemente, à Verdade.
Antonio Pereira Júnior • 67

Para fortalecer o seu argumento, o Hiponense confere a seguinte


interpretação daquela parábola da dracma perdida (Lc. 15,8):

A mulher, que havia perdido a dracma e a procurava com lanterna acesa,


não a teria encontrado se dela não se lembrasse. Tendo-a depois achado,
como saberia se era aquela, se dela não se recordasse? Lembro-me de ter
perdido também muitos objetos e de tê-los procurado e encontrado. Sei
disso porque me perguntavam enquanto procurava: “É isto? É aquilo”? E eu
continuava a responder não, enquanto não me fosse mencionado
exatamente o que eu procurava. Se não me recordasse do objeto, qualquer
que ele fosse, não o teria encontrado, por não poder reconhecê-lo, mesmo
que me fosse apresentado (AGOSTINHO, 1997, p. 290-291).

Ressaltamos que tal conhecimento a priori não deve ser entendido


como um conhecimento completo e já pronto da Verdade. É, como bem
falou o Santo Bispo, apenas uma notitia impressa na memória, para que
a alma possa dela lembrar-se, e, assim, ter condições de primeiramente
amá-la– uma vez que só se ama o que se conhece 4 –;em seguida,buscá-
la – pois ninguém busca o que não conhece –para, enfim, encontrá-la–
reconhecendo que a Verdade é,de fato, aquilo que buscava e não outra
coisa.
Assim, considerando o conhecimento – seja sensível ou inteligível
– como elemento necessário à busca da Verdade e sabendo, ainda, que é
na memória onde são armazenadas – em forma de imagens – todas as
nossas experiências, Agostinho acredita ser justamente nessa região, o
local onde deverá, por fim, encontrar a Verdade que tanto busca: “Onde
habitais, Senhor, na minha memória? Em que recanto dela habitais? Que

4
Cf. De TrinitateX, 2, 4.
68 • Com Agostinho, e além dele

esconderijo aí construístes,que santuário edificastes? Deste-me a honra


de habitar em minha memória, mas em que parte? É o que estou
procurando” (AGOSTINHO, 1997, p. 298, grifo nosso).
Como podemos notar na citação, a busca pela Verdade não termina
com a chegada à memória. É preciso ainda percorrer seus vastos
palácios (lata praetoria) e adentrar na profundidade de suas regiões para
ali encontrar a Verdade. Este santuário de imenso poder (magnovis),
apesar de ser constantemente frequentado por nós – pois,
habitualmente a ele nos dirigimos, seja para recordar de coisas e
acontecimentos do nosso cotidiano, seja para consultar conceitos e
ideias lá impressas que nos auxiliam em nossas decisões morais –,
permanece bastante desconhecido devido, justamente, à falta de um
olhar mais preciso e ponderado sobre essa região. Daí a insistência de
Agostinho na necessidade do “conhecer a si mesmo” (nosce te ipsum)
nesse processo de interiorização.
Assim, encontramos em Agostinho esse caráter bipartite da
memória, isto é, uma memória sensível, onde são guardadas as
lembranças de todas as nossas experiências com a realidade exterior
como, por exemplo, as recordações de acontecimentos, lugares, pessoas,
sons, cores, etc.; e uma memória inteligível, onde estão impressas as
ideias inatas que não são frutos de nossas experiências, haja vista, terem
estado sempre presentes nesse local como, por exemplo, as noções dos
entes matemáticos (números e formas geométricas) e das ciências
liberais (dialética), de justiça, de felicidade, e a própria noção de
umamemoria Dei, como veremos mais adiante.
Sobre essa memória inteligível, nos escreve o Autor das Confissões:
Antonio Pereira Júnior • 69

Descobrimos assim que aprender as coisas — cujas imagens não atingimos


pelos sentidos, mas que contemplamos interiormente sem imagens, tais
como são em si mesmas — significa duas coisas: colher pelo pensamento o
que a memória já continha esparsa e desordenadamente, e obrigá-lo pela
reflexão a estar como que à mão, em vez de se ocultar na desordem e no
abandono, de modo a se apresentar sem dificuldade à nossa reflexão.
Quantas noções desse gênero contém a minha memória, noções já
encontradas e, segundo a expressão usada anteriormente, como que à mão,
e neste caso dizem que as aprendemos e conhecemos (AGOSTINHO, 1997, p.
282-283, grifo nosso).

Ainda na memória, Agostinho encontra outras espécies (species) de


imagens (imagines) como aquelas provindas dos afetos humanos tais
como alegria, tristeza, medo, desejo, felicidade etc. que são, nas palavras
do Santo Doutor, como que alimentos desse “estômago da alma” (venter
animae),que é a memória. Nela, Agostinho encontra,ainda, a imagem da
própria lembrança (o homem lembra-se de se lembrar); a imagem de
coisas ausentes aos seus sentidos; e até mesmo a imagem do
esquecimento. Sobre esse paradoxo da presença do esquecimento na
memória, escreve Brachtendorf:

Compreendemos a palavra “memória” porque a própria memória sempre


está presente, mas o que dizer da palavra “esquecimento”? Será que aqui
também compreendemos porque a coisa ou sua imagem está presente na
memória? Segundo Santo Agostinho, o esquecer não é um objeto externo
que possa ser representado por uma imagem sensorial na alma. Ao
contrário, o próprio esquecimento deve ter estado presente na alma, para,
por exemplo, deixar uma imagem de si. Ora, o esquecimento é uma
exterminação do que vem ao seu encontro, e como tal ele não pode produzir
uma imagem de si. Por outro lado, o fato de compreendermos a palavra
“esquecimento”e podermos, portanto, nos lembrar do esquecimento não é
explicável pela presença do próprio esquecimento na memória, pois onde
70 • Com Agostinho, e além dele

está presente o esquecimento aí é impossível de lembrança


(BRACHTENDORF, 2012, p. 213, grifo nosso).

Como se percebe, não é que o esquecimento em si precise estar


presente na memória para poder gerar a sua respectiva imagem, pois se
assim o fosse, nenhum tipo de lembrança seria possível, haja vista a
simples presença do esquecimento já ser, por si só, suficiente para
extinguir qualquer tipo de recordação ou lembrança. Todavia, é a
compreensão do que seja “esquecimento”, e não a presença dele, que nos
faz lembrar de ter esquecido algo. Doutro modo, sabemos o que significa
“esquecer”, logo, ao lembrar de algo que deveria ter sido feito,
imediatamente se associa este fato à ideia que se tem do esquecimento
na memória.
Entrementes, Agostinho percebe que na memória também se
encontra uma espécie de autoconhecimento, pois ele lembra e reflete
sobre si mesmo. Assim, o homem não só é capaz de lembrar e pensar
sobre a realidade extra mentis, mas também recorda de si mesmo e tem
consciência de sua própria existência no mundo. Dessa forma, nosso
Filósofo, tomado de espanto e admiração pela grandeza e potencialidade
da memória, passa, então, a especular sobre quem,de fato, ele é e qual a
sua essência: “Grande é o poder da memória, Senhor; tem algo de
terrível, uma infinita e profunda complexidade. Mas isto é o espírito,
isto sou eu próprio. Que sou eu, então, ó meu Deus? Qual a minha
natureza?” (AGOSTINHO, 1997, p. 289, grifo nosso).
Para um melhor entendimento da citação acima, duas
considerações se fazem necessárias. Primeiramente, sobre o fato do
homem ser sua própria memória (memoria sui). Sabe-se que Agostinho
Antonio Pereira Júnior • 71

estabelece certa hierarquia entre a alma e o corpo, sendo aquela


superior a este. Assim, muitas vezes, ao aludir ao homem como um todo
(composto corpo/alma) Agostinho, seguindo a tradição platônica, se
refere a ele simplesmente como “alma”. De modo que ao exclamar “mas
isto é o espírito, isto sou eu próprio”, está se remetendo não apenas à
memória enquanto operação da alma, mas a si mesmo enquanto pessoa
humana; ele é a sua memória. Sobre essa questão, Teixeira esclarece:

O Bispo de Hipona, quando trata do tema sobre a memória, quer sobretudo,


salientar aquilo que ele chama de memória-substância e não da faculdade
ou potência, que chamamos memória. (...) Neste sentido, quando digo que
me recordo e que tenho memória, entendimento e vontade, quem se recorda
sou eu, a pessoa, a alma. Conclui Agostinho que falar da memória, significa
falar da pessoa ou da alma (TEIXEIRA, 2003, p. 212).

Em segundo lugar, sendo o homem sua memória, e estando Deus


ali presente de forma perene e contínua 5, podemos inferir que o
conhecimento de si leva o homem, inevitavelmente, ao conhecimento
de Deus – nosce te ipsum, nosce Deum tuum 6 –, e isto se dá de forma tão
íntima e profunda que ambas as buscas se entrelaçam e se confundem.
Deste modo, ir ao encontro do Deus-Verdade de Agostinho é ir ao
encontro de si mesmo, numa espécie de retorno do homem ao seu “eu”
desconhecido mais profundo e interior 7. Um “eu” que, na doutrina da
interioridade agostiniana, necessariamente, precisa ser desbravado e

5
Cf. Conf. X, 24, 35; 25, 36.
6
“Conhece-te a ti mesmo, conhece o teu Deus”.
7
Cf. Conf. III, 6, 11
72 • Com Agostinho, e além dele

percorrido para que a inquietude de alma, finalmente, ceda lugar ao


repouso em Deus – inquietum est cor nostrum donec requiescat in te 8.
Ultrapassadas todas essas partes da memória (pars memoriae),
Agostinho ainda se vê sem resposta para sua pergunta inicial: onde a
Verdade habita em minha memória? É possível perceber sua angústia
levada quase ao desespero ao se deparar com a possibilidade de
infortúnio em sua busca. A citação que se segue é uma espécie de
summarium de todo o percurso trilhado pelo Santo Doutor por entre as
cavidades dessas profundas e misteriosas cavernas da alma humana.

Onde habitas, Senhor, na minha memória? Em que recanto dela habitas?


Que esconderijo aí construíste, que santuário edificaste? Deste-me a honra
de habitar em minha memória, mas em que parte? É o que estou
procurando. Ao recordar-me de ti, ultrapassei as regiões da memória que
também os animais possuem, porque aí, entre as imagens dos seres
corpóreos, eu não te encontrava. Passei às regiões onde depositei os
sentimentos do espírito, e nem mesmo aí te encontrei. Entrei na sede da
própria alma — pois o espírito também se recorda de si mesmo — e nem aí
estavas. Comonão és imagem corpórea, e tampouco sentimento de um ser
vivente como alegria, tristeza, desejo, temor, lembrança, esquecimento e
outros semelhantes, assim também tu, não podes ser o próprio espírito,
porque és o Senhor e Deus do espírito. E enquanto todas essas coisas são
mutáveis, tu permaneces imutável acima de todas elas. E te dignaste habitar
na minha memória desde que te conheci. Mas, por que procurar em que
parte habitas, como se na memória houvesse vários compartimentos? É
certo que nela habitas, pois recordo-me de ti desde o dia em que te conheci.
E é aí que te encontro quando me lembro de ti (AGOSTINHO, 1997, p. 298).

Como se percebe, Agostinho está convicto de encontrar Deus em


sua memória. E, de fato, Ele tem de estar de alguma forma ali presente,

8
Conf. I, 1, 1.
Antonio Pereira Júnior • 73

pois, com efeito, existe uma lembrança viva de Deus na alma humana
e,conforme mencionado, o local onde acontece essa atividade
(recordatio) é nessa região ou, segundo alguns comentadores, na
memoria Dei. Todavia, convém ressaltar que essa memória metafísico-
ontológica do homem não deve ser entendida como um espaço
reservado para habitação do Ser Absoluto de Deus, mas como o ato
próprio de recordar o que é ali operado.
Fato é que, assim como o conhecimento dos objetos inteligíveis, o
conhecimento de Deus não é apreendido da mesma forma como se dá
com o conhecimento das coisas sensíveis 9, mas através de uma espécie
de recordação daquilo que, de alguma forma, já se encontra presente de
modo implícito no homem interior (in interiorem hominem). Nesse
sentido, é possível notar certa “aproximação” da gnosiologia
agostiniana com a doutrina platônica da reminiscência, a qual afirma
que todo e qualquer tipo de conhecimento não é senão uma recordação
da alma de uma experiência vivida no mundo das Ideias 10.
Dada a incompatibilidade de alguns pontos da teoria da
reminiscência platônica com a doutrina cristã, Santo Agostinho não
pode assenti-la em sua totalidade; ele admite apenas partes desta teoria
e estabelece, então, que o conhecimento apriorístico de Deus é resultado
daquela “marca invisível” deixada por Ele no coração do homem (in cor

9
Em Agostinho, o processo de construção do conhecimento em nível sensível se dá da seguinte forma:
os sentidos exteriores, ao entrarem em contato com o objeto sensível, sofrem modificações do estado
em que se encontram, fazendo com que a alma – que está presente em todo o corpo – perceba tal
alteração e reproduza na mens, ou no pensamento, a sensação daquele objeto. Tal sensação é
transformada, imediatamente, em uma imagem semelhante ao objeto (fantasma ou fantasia). Com isso,
o sentido interior apreende o conhecimento que foi gerado a partir dessa imagem e o retém na memória
para que ele seja acessado, por meio da lembrança, sempre que for preciso.
10
Cf. Mênon (79, e7–86, c6).
74 • Com Agostinho, e além dele

hominis) no ato da sua criação. Assim, para Agostinho, Deus imprime


esse conhecimento do Divino em sua alma como forma de lembrá-lo da
existência do inteligível-metafísico-Sagrado. Isto feito, oferece-lhe as
devidas condições para que ele, recordando do seu Deus, sinta sua falta
(desiderium); sentindo sua falta, O busque; na busca, possaencontrá-Lo
e, assim, retornar (conversio) ao seu Princípio Ontológico, fonte de toda
a sua felicidade (beatitudo).
Mister se faz notar que a reinterpretação cristã da doutrina da
reminiscência platônica por parte de Agostinho será de fundamental
importância para a construção da sua teoria da iluminação divina. Por
conseguinte, ao passo que o Santo Doutor a vai construindo, vai
incorporando elementos da reminiscência platônica que, de alguma
forma, é possível se adequar ao cristianismo e rejeitando aquilo que vai
de encontro ao pensamento cristão. Esta manobra, ele realiza de forma
tão maestral que a iluminação divina e seus princípios constitutivos
assumem características completamente novas,dando origem a esta
doutrina que influenciará todo o Ocidente tardo-antigo, perpassando a
idade média e fazendo eco até os dias de hoje.
No que concerne à influência da reminiscência platônica sobre a
iluminação agostiniana, destaca Pegueroles:

Que Santo Agostinho não ensinou a reminiscência platônica é evidente,


pois, como temos mostrado, descobrimos a verdade não em recordações do
passado que foram conservadas na alma, mas na luz divina perenemente
presente nela. A princípio, ele fez uso de expressões platônicas, mas logo
depois limitou o seu sentido e o deixou inequivocamente reduzido à sua
própria doutrina da iluminação. Ver os objetos à luz de Deus não implica a
memória platônica do passado, mas a memória agostiniana do presente, que
Antonio Pereira Júnior • 75

é algo completamente diferente (PEGUEROLES, 1972, p. 42, tradução


nossa). 11

Superada esta dificuldade, Santo Agostinho tem o seu primeiro


contato com Deus em sua memória, todavia, ainda não é o encontro
definitivo com o Ser Absoluto de Deus, é antes uma recordação, como
ele mesmo escreve: “E é aí que te encontro, quando me lembro de ti”
(AGOSTINHO, 1997, p. 298). Todavia, o Deus-Verdade de Agostinho está
acima de sua própria alma, Ele o transcende. Aqui, seu itinerário muda
novamente de direção; agora, de dentro de si mesmo, em sua mais
íntima interioridade, ele precisa olhar para cima e saltar no metafísico-
transcendente, para, aí sim, contemplá-Lo a partir da mais íntima parte
de sua alma (interior intimo meo) 12.

3.2.2 AB INTERIORIBUS AD SUPERIORA

A última etapa do itinerário de busca da Verdade de Santo


Agostinho é marcada por uma súbita mudança de trajetória. Desde a
entrada em seu próprio íntimo, Agostinho foi gradativamente
penetrando as diversas camadas de sua alma até o momento em que ele
parece encontrar os limites interiores de si mesmo, não sendo mais
capaz de avançar um passo se quer em direção ao objeto de sua busca.
Isto se dá devido às limitações naturais inerentes a todas as criaturas

11
Que San Agustín no ha ensenado a reminiscencia platónica, es evidente, puesto que, como se ha visto,
descubrimos la verdad no en los recuerdos conservados de tiempo atrás en el alma, sino en la luz divina
perennemente presente en ella. Al principio echó mano de expresiones platónicas, pero más tarde limitó su
sentido e lo dejó reducido inequívocamente a su propia doctrina de la iluminación. Ver los objetos a la luz de
Dios no implica la memoria platónica del pasado, sino la memoria agustiniana del presente, que es cosa
completamente distinta.
12
Conf. III, 6, 11.
76 • Com Agostinho, e além dele

como, por exemplo, temporalidade, finitude, contingência,


mutabilidade e, no caso do homem, acrescido a tudo isso, o seu
afastamento voluntário do Ser (Deus) por ocasião do pecado original
(originale peccatum), que obscureceu a sua visão interior, impedindo o
seu retorno à Eterna Verdade, causa eficiente de todas as coisas.
Dessarte, impossibilitado de seguir com sua investigação, o
Hiponense, num ato de humildade, reconhece suas misérias, limitações
e sua total incapacidade para alcançar a Verdade usando unicamente a
força da razão (ratio). “Quiseste mostrar-me, antes de tudo, como fazes
resistência aos soberbos e concedes tua graça aos humildes, e como em
tua misericórdia quiseste indicar o caminho da humildade”
(AGOSTINHO, 1997, p. 186). É justamente nesse momento de angústia e
desespero que a Suprema Verdade (Summa Veritas), que tanta
inquietação trouxe ao coração de Agostinho (cor inquietum), se apresenta
acima da sua mens 13, impelindo-o a olhar para o alto, para além de si
mesmo, proporcionando com isso uma inesperada mudança na
trajetória (conversio) em sua busca: ab interioribus ad superiora.
Agora apto e amparado pela Graça divina, Agostinho pode, enfim,
contemplar, com os olhos interiores da sua alma (intelletctus), a Verdade
Ontológica que se apresenta em forma de Luz imutável (lucem
incommutabilem). São dele as palavras:

Acima destes meus olhos e acima de minha própria inteligência, vi uma luz
imutável. Não era essa luz vulgar e evidente a todos com os olhos da carne,
ou uma luz mais forte do mesmo gênero. Era como se brilhasse muito mais
clara e tudo abrangesse com sua grandeza. Não era uma luz como esta, mas

13
Mens: parte superior da alma humana.
Antonio Pereira Júnior • 77

totalmente diferente das luzes desta terra. Também não estava acima de
minha mente como o óleo sobre a água nem como o céu sobre a terra, mas
acima de mim porque ela me fez, e eu abaixo porque fui feito por ela. Quem
conhece a verdade, conhece esta luz (AGOSTINHO, 1997, p. 190).

Como podemos notar, o que caracteriza a mudança de trajetória na


busca pela Verdade em Agostinho é justamente a manifestação dessa
Luz acima da sua mente, uma vez que, até aquele momento, todo
itinerário se dava em uma esfera racional – ou seja, pelas diversas
partes da alma (pars animae) – e agora este percurso é transmudado para
uma realidade metafísico-espiritual que transcende não somente a tudo
que existe, mas àquilo que há de mais elevado em toda criação: a razão
humana.
Isto posto, o “olhar para cima” na doutrina da interioridade
agostiniana sugere uma espécie de “salto metafísico da alma”, que vai
do interior de si mesma (animus) ao “lugar” de habitação da Verdade
Ontológica, a qual sempre esteve iluminando o intelecto, da mesma
forma que, de forma análoga, a luz do sol ordinariamente continua
iluminando as coisas e objetos dispostos no mundo sensível.
Outro ponto a ser considerado na citação supra é que, ao enfatizar
a sobreposição desta Luz em relação a ele mesmo e a sua própria mente,
Santo Agostinho quer destacar a não-sujeição da Luz inteligível em
relação aos limites naturais das leis físicas da espacialidade e
temporalidade, das quais são dependentes todas as coisas do mundo
sensível. Assim, longe de ser subjugada por qualquer ser criado, a Eterna
Verdade se posiciona acima de toda existência, sendo, desta forma, mais
78 • Com Agostinho, e além dele

elevada (superior)que todas as criaturas, uma vez que foi ela mesma
quem as criou.
Para finalizar, vale a pena ainda ressaltar a importância que a
virtude da humildade (virtus humilitatis) desempenha nesse árduo
caminho de busca da Verdade. É como se a prática desta virtude
conferisse ao homem as credenciais necessárias para a contemplação da
Verdade, que habita em seu próprio interior. Corroborando com esse
pensamento, escreve Ana Ferreira em sua tese de doutorado: “Cristo
indica a via da humildade e do amor para o reconhecimento da verdade”
(FERREIRA, 2012, p. 210).Seu argumento pode ser confirmado em alguns
textos agostinianos como, por exemplo: “Eu não tinha a humildade
suficiente para possuir o meu Deus” (AGOSTINHO, 1997, p. 197),
deixando claro com isso a necessidade da prática dessa virtude em todo
esse itinerário de busca, apreensão e contemplação da Verdade.
Por conseguinte, o encontro do Santo Doutor com a Verdade que
tanto o inquietou foi descrito de forma poética e apaixonante no livro X
das Confessiones, em uma das passagens mais belas de toda a sua Obra:

Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis
que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora! Eu,
disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas. Estavas
comigo, mas eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti as tuas
criaturas, que não existiriam se em ti não existissem. Tu me chamaste, e teu
grito rompeu a minha surdez. Fulguraste e brilhaste e tua luz afugentou a
minha cegueira. Espargiste tua fragrância e, respirando-a, suspirei por ti.
Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tu me tocaste, e agora estou
ardendo no desejo de tua paz (AGOSTINHO, 1997, p. 299).
Antonio Pereira Júnior • 79

Se bem examinarmos a citação, encontraremos ali uma síntese


perfeita dos acontecimentos, emoções, sentimentos e sensações
sofridas durante todo o percurso. Ali estão presentes suas lamentações
pelas procrastinações e todo tempo perdido antes do seu encontro com
a Verdade (tarde te amei...tarde demais eu te amei); sua descoberta da
interioridade (eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de
fora); sua angústia e frustração nas buscas infortunas da exterioridade
(eu, disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas); seu
remorso pela Verdade sempre ter estado consigo, mas nunca ter sequer
sido notada sua presença (estavas comigo, mas eu não estava contigo); por
fim, sua satisfação e deleite pelo encontro com a Verdade e por ter todos
os seus sentidos interiores afetados com sua doce Presença (Tu me
chamaste, e teu grito rompeu a minha surdez. Fulguraste e brilhaste e tua
luz afugentou a minha cegueira...).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A via da interioridade consiste no caminho percorrido por Santo


Agostinho para alcançar a Verdade que, para ele, coincide com o próprio
Deus. Em seu itinerário de busca, descobriu no platonismo o mundo
inteligível e percebeu que estava equivocado quanto à orientação e o
rumo de suas perquirições. A resposta para suas inquietações se
encontrava dentro de si mesmo (interioridade) e não nas coisas
exteriores (exterioridade).
Todavia, as coisas sensíveis teriam seu lugar no seu itinerário até
Deus. De acordo com a teoria da participação agostiniana, é possível
80 • Com Agostinho, e além dele

contemplar os vestígios de Deus em suas criaturas, de modo que a


exterioridade – primeira etapa do processo de busca e apreensão da
Verdade – torna-se (-) trampolim para a entrada na interioridade de si
mesmo. Agora, é preciso superar a tessitura do mundo sensível e
alcançar a realidade metafísica do mundo inteligível-espiritual, e isso
só será possível penetrando no íntimo e desconhecido “espaço” de sua
própria alma.
Uma vez em seu interior, o Santo Doutor perpassou pelas regiões
mais profundas de si mesmo. Em todas elas não encontrou senão
mudança e vicissitude. A Verdade Ontológica ainda permanecia velada
em seu íntimo. Todavia, Agostinho estava ciente da presença inata de
Deus em sua memória. Então, adentrando essa região, perpassou a
memória sensível (onde se encontravam armazenadas todas as
lembranças de suas experiências passadas), atingiu sua memória
inteligível (onde estão impressas as Ideias/Razões eternas)
encontrando, por fim,a lembrança do seu Deus-Verdade numa região
específica da memória que se convencionou chamar de memoriaDei.
Entretanto, a lembrança de Deus (recordatio Dei) não deve ser ainda
entendida como uma manifestação definitiva da presença da Verdade
no homem. Ela permanece lembrança, uma marca impressa (uma
espécie de assinatura de Deus) deixada na memória com o intuito de
despertar o desejo e a sede da Verdade.
Em Agostinho, esse desejo ardente pela Verdade é transformado
em ansiedade, angústia e desespero ao perceber que alcançou os limites
de sua interioridade e, ainda assim, não conseguiu encontrar a Verdade
que tanto buscava. Nesse instante, num momento de confissão e
Antonio Pereira Júnior • 81

reconhecimento de sua incapacidade para alcançar a Verdade com sua


razão (ratio), é que a Eterna Verdade aparece em forma de Luz imutável
em seu intelecto (intellectus), forçando uma nova mudança na trajetória
de sua busca, concluindo, assim, todas as etapas do seu itinerário: da
exterioridade para interioridade, da interioridade para cima (para além
de si mesmo).

REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. Maria Luiza Jardim Amarante. São Paulo: Paulus,
1997 (Coleção Patrística, v. 10).

AGOSTINHO, Santo. A Trindade. Trad. Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 1984
(Coleção Patrística, v. 7).

AGOSTINHO, Santo. A verdadeira religião. Trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo:
Paulus, 2002 (Coleção Patrística, v. 19).

AGOSTINHO, Santo. A doutrina cristã. Trad. Nair de Assis Oliveira. São Paulo: Paulus,
2002 (Coleção Patrística, v. 17).

BOEHNER, Philotheus; GILSON, Etiene. História da filosofia cristã. Trad. Raimindo


Vier. Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.

BRACHTENDORF, Johannes. Confissões de Agostinho. Trad. Milton Camargo Mota. São


Paulo, SP: Loyola, 2012.

FERREIRA, Ana Rita de Almeida Araújo Francisco. Do escondido: Santo Agostinho e os


limites da estética. 2012. 387 f. Tese (Doutorado em Filosofia). Universidade de
Lisboa, Lisboa, 2012.

GILSON, Etienne. Introduction a L’étude de Saint Augustin.3. ed. Paris: J. Vrin, 1949.

OLIVEIRA, Nair de Assis. Notas Complementares. In: AGOSTINHO, Santo. A Trindade.


São Paulo: Paulus, 1984, p. 643.
82 • Com Agostinho, e além dele

PEGUEROLES, Juan. El pensamiento filosófico de San Agustín. Barcelona: Editoria


Labor, 1972.

PEÑA, Angel, P. San Agustín de Hipona: el buscador de la verdad. Lima, Perú: [s.n.], 2011.

TEXEIRA, Evilázio Borges. ImagoTrinitatis: Deus, sabedoria e felicidade: estudo


teológico sobre o De Trinitate de Santo Agostinho. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.
ELEMENTOS DO PENSAMENTO
4
DE AGOSTINHO SOBRE O MATRIMÔNIO
Marlesson Castelo Branco do Rêgo 1

“A primeira sociedade foi constituída por um homem e uma mulher. Deus


não os criou separadamente, unindo-os depois como dois estranhos.”
(AGOSTINHO, 2007, p.29).

INTRODUÇÃO

Matrimoniume seus termos afins constituem o tema de dois


tratados de Agostinho: Dos bens do matrimônio (De bono coniugali) e Das
núpcias e a concupiscência (De nuptiis et concupiscentia). O primeiro foi
escrito em 401 no contexto da polêmica joviniana, pela qual o celibato e
o casamento estão postos em um mesmo nível qualitativo de vida cristã.
Por um lado, Agostinho vê com simpatia as preocupações do monge
Joviniano contra aqueles que haviam depreciado radicalmente o
casamento em defesa do celibato e da vida ascética. Por outro lado, ao
afirmar que o celibato é superior ao matrimônio, Agostinho discorda de
Joviniano, porém, o faz sem negar a genuína bondade das relações
conjugais. E ao fazê-lo, elabora a doutrina dos três bens do casamento,
a qual se tornaria clássica na teologia católica: o bem da prole, o bem da
fidelidade recíproca e o bem da indissolubilidade. O segundo tratado foi
escrito entre 419 e 421 em meio à polêmica pelagiana e na forma de uma

1
Doutor em Ciências Humanas pela UFSC e Professor do IFPE. E-mail: mcastel.rego@gmail.com
84 • Com Agostinho, e além dele

tréplica contra o bispo Juliano de Eclano, o qual havia replicado à


doutrina de Agostinho sobre o pecado original e a concupiscência,
acusando-o de negar a bondade do matrimônio. Em resposta, Agostinho
ratifica o que já havia posto no primeiro tratado e aborda os problemas
da relação entre ética matrimonial e concupiscência.
A concepção do casamento como um fenômeno social e uma
realidade jurídica já está presente entre os gregos através do termo
γαμος (gamos), que remonta a Platão, a quem se atribui a obra As Leis. O
termo é tratado na obra dentro dos domínios da legalidade e da
moralidade. Embora a escolha da esposa não seja imposta ao cidadão por
lei, o casamento é concebido como um dever do cidadão em função da
procriação de filhos legítimos. Tal dever é evidente pela multa anual
imposta ao cidadão solteiro acima dos trinta e cinco anos de idade, o
qual passa a ser tido como um mau cidadão (Cf. As Leis, VI, 774b-c). O
interesse do Estado em sucessores recebe aqui o reforço de um vínculo
religioso na forma do culto aos deuses domésticos no lar, cuja
perenidade está sob responsabilidade do primogênito da família grega.
O aspecto social e o jurídico do casamento entre os gregos
propagou-se pelo Ocidente até a sua cristianização, a partir do século III
d.C. Entretanto, durante o século II d.C.,uma concepção negativa do
matrimônio surgiu entre os primeiros apologistas cristãos, alguns sob
forte influência do dualismo maniqueísta e do gnosticismo, outros
movidos por uma perspectiva escatológica ascética que via o
matrimônio e a procriação como atividades mundanas sem sentido.
Não obstante o legado grego de γαμος e a concepção apologética
cristã primordial do termo, surge com Agostinho (354-430) o que
Marlesson Castelo Branco do Rêgo • 85

poderíamos chamar de uma teoria cristã de matrimonium, até então não


vista em seu contexto cultural greco-romano, a partir de duas
influências fundamentais: 1 –as Escrituras da tradição judaico-cristã e,
subordinada a estas, 2 – a filosofia platônica e neoplatônica. Porém,
para uma compreensão adequada da influente doutrina de Agostinho
sobre o matrimônio na história do pensamento cristão, se faz necessário
situá-la nos contextos dos debates nos quais tal doutrina se
desenvolveu.

4.1 O MATRIMÔNIO NA POLÊMICA CONTRA JOVINIANO

Nas suas Retratações, Agostinho expõe a ocasião e a motivação que


o levaram a escrever o tratado intitulado Dos bens do matrimônio:

A heresia de Joviniano, ao igualar o mérito das virgens consagradas com a


castidade conjugal, se propagou tanto na cidade de Roma, que se falava de
que até muitas religiosas, de cuja pureza não houve nunca a menor suspeita,
se precipitaram ao matrimônio, [...]. Desse modo se rompiam também o
santo celibato dos santos varões [...]. Ademais, com a faculdade que Deus me
dava, foi necessário sair ao encontro do veneno que se propagava
ocultamente, sobretudo porque se jactavam de que não fora possível refutar
a Joviniano, elogiando o matrimônio, senão vituperando-o. Por esta razão
publiquei o livro cujo título é A bondade do matrimônio (ret. II, 22, 1).

O monge Joviniano, que viveu em Roma no final do século IV,


defendia que atos ascéticos não resultam em méritos especiais diante
de Deus, acentuando a igualdade entre o celibato e a vida conjugal. O
pano de fundo dessa igualdade era a eficácia do batismo, marca de uma
comunidade redimida na qual as considerações do mérito ascético eram
irrelevantes. Nesse sentido, as ideias de Joviniano tocaram num ponto
86 • Com Agostinho, e além dele

sensível do cristianismo ocidental, pois, segundo Agostinho, virgens


consagradas e monges abandonaram o celibato e contraíram
matrimônio sob a influência de tais ideias, vistas pelo Bispo de Hipona
como “venenosas” em relação à escolha da vida ascética. Por esta razão,
Agostinho tratou de defender a superioridade do celibato sobre o
matrimônio contra Joviniano, ao mesmo tempo em que afirmava a
genuína bondade do matrimônio contra aqueles que depreciavam a
união conjugal.
Ao insistir na genuína bondade das relações matrimoniais,
Agostinho desenvolve a ideia dos três bens da união conjugal, segundo
uma doutrina que se tornou clássica na teologia católica.O primeiro
desses bens é o matrimônio como o primeiro vínculo natural da
sociedade humana: “A primeira sociedade foi constituída por um
homem e uma mulher. Deus não os criou separadamente, unindo-os
depois como dois estranhos. [...]. Os filhos vêm estreitar os laços desta
sociedade[...].” (AGOSTINHO, 2007, p.29). Há de se distinguir aqui dois
bens ligados à união matrimonial, a saber, a “associação amigável”
(societas amicalis) entre duas pessoas, que é um bem em si mesmo, e a
geração de filhos, um bem natural que não deve ser buscado por si
mesmo e sim em função de outros bens, por exemplo, a propagação do
povo de Deus:

[...] devemos deduzir que nos primeiros tempos do gênero humano, e


principalmente para a propagação do povo de Deus, pelo qual fosse
anunciado e do qual havia de nascer o Príncipe e Salvador de todos os povos:
os santos Patriarcas deveram usar necessariamente deste bem das núpcias,
desejável, não por si mesmo, mas por este outro motivo (Ibidem, p. 41-42).
Marlesson Castelo Branco do Rêgo • 87

Portanto, Agostinho entende que no passado, isto é, antes de


Cristo, a procriação era necessária para a propagação do povo do qual
havia de nascer o Salvador. Porém, depois de Cristo tal necessidade não
existe:

Ora, como na atualidade e no mundo inteiro abundam as amizades


espirituais para constituir uma sociedade prazerosa, santa e sincera, deve-
se aconselhar inclusive àqueles que querem casar-se com o único intuito de
gerar filhos, que prefiram o bem da continência, que é mais excelente
(Ibidem, p.42).

O Bispo de Hipona vê o gênero humano devidamente constituído


em seu tempo e que “não faltará prole e abundante sucessão, donde
possam surgir boas e santas amizades” por meio dos casados. Além
disso, até de uma união ilícita de incontinentes luxuriosos é possível que
Deus, na Sua bondade, faça surgir um fruto benéfico. Entretanto,
Agostinho deixa claro que os cristãos devem entender o matrimônio
como um bem relativo. Por um lado, é um bem pelo qual subsiste a
propagação do gênero humano, no qual a sociedade amistosa é um bem
excelente, e quem faz uso do matrimônio com este fim faz bem. Por
outro lado, devem casar-se só aqueles que não se contêm, como afirma
o Apóstolo: “Mas, se não podem guardar a continência, casem-se, pois é
melhor casar-se do que ficar abrasado” (I Cor., 7.9). Essa é a linha
segundo a qual o Doutor da Igreja defenderá a superioridade do celibato,
dado que os bens oriundos do matrimônio e os filhos já não são
estritamente necessários 2: “Portanto, honestamente desejamos estes

2
Agostinho não se opõe à realidade social e jurídica do Império romano, onde o cidadão tem o dever
cívico de procriar filhos, através dos quais oferece braços e inteligência para o Império. A legislação
88 • Com Agostinho, e além dele

bens, quando nos são necessários; mas é melhor não os desejar porque
mais perfeitamente os não queremos, quanto é menor a necessidade que
deles temos” (AGOSTINHO, 2007, p.41).
Outro bem a ser destacado por Agostinho no matrimônio é a mútua
fidelidade, tema fundamental da ética matrimonial. A respeito desse
bem, Hamman,ao estudar a cultura no norte da África do tempo de
Agostinho,vem em nosso auxílioa o descrever a celebração do
casamento: “O ritual consistia na troca dos consentimentos, após o
juramento de fidelidade” (HAMMAN, 1989, p.67).Entretanto, não era
difícil constatar um desrespeito à fidelidade, embora desejada e
valorizada. Nas suas Confissões, Agostinho reconhece o problema a
partir de sua própria casa ao lembrar de Mônica, sua mãe, como uma
esposa-modelo cristã, e de seu pai, Patrício, um pagão conhecedor do
Direito do fórum e que só abraçou a instrução de Cristo no final da vida:

Educada assim na modéstia e temperança, Vós a tornáveis mais submissa


aos pais do que eles a tornavam submissa a Vós. Quando chegou à idade
núbil plena, deram-na em matrimônio a um homem, a quem servia como o
senhor. [...]. Sofria-lhe também as infidelidades matrimoniais com tanta
paciência, que nunca teve discórdia alguma com o marido, por este motivo.
Esperava que a vossa misericórdia, descendo sobre ele, o fizesse casto,
quando crescesse em Vós. [...]. Mas ela sabia que era melhor não resistir à
ira do esposo, nem por ações nem por palavras. [...]. Enfim, muitas senhoras,
tendo maridos muito mais benignos, traziam no rosto desfigurado os
vestígios das pancadas. Conversando entre amigas, enxovalhavam a vida
dos esposos (Conf. IX, 9, 19).

demográfica e matrimonial impulsionava a procriação como chave para a grandeza de Roma. O Bispo,
porém, vê no celibato cristão voluntário um passo significativo rumo à escatológica Cidade de Deus.
Marlesson Castelo Branco do Rêgo • 89

Nessa passagem, o Bispo de Hipona chama a atenção, com o


exemplo de seus pais, para os casamentos acertados entre parentes, que
não preparavam os cônjuges para um intercâmbio afetivo verdadeiro.
Se a vida sexual for reduzida à simples procriação, não fará qualquer
concessão ao erotismo e não irá predispor o casal à busca da mútua
complementaridade. De qualquer modo, a fidelidade no matrimônio
inclui o compromisso dos cônjuges de manterem relações sexuais
unicamente entre si e, portanto, evitar o adultério. Tal compromisso
também implica na responsabilidade mútua dos cônjuges para manter
relações sexuais entre si a fim de aliviar a pressão pelo desejo sexual:

Os esposos devem a si mesmos uma servidão mútua, não somente na


fidelidade da união dos sexos em ordem à procriação, [...], mas também por
condescender com a fraqueza de ambos e evitar uniões ilícitas. De tal modo,
que se um dos cônjuges quiser guardar continência, não o possa fazer sem
o consentimento do outro (Dos bens do mat.,6,6).

Agostinho toma como base o escrito paulino “A mulher não tem


poder sobre seu corpo, mas sim o marido; e o marido não tem poder
sobre seu corpo, e sim a mulher” (I Cor., 7,4), de modo que o desejo seja
dirigido a um vínculo legítimo e não flua de modo desordenado e
fortuito.Trata-se de uma abordagem igualitária dos cônjuges em termos
de direitos e deveres na fidelidade recíproca, contrariando a legislação
em vigor naquela época, pois “A legislação permitia o divórcio,
particularmente em caso de esterilidade ou adultério da mulher. Como
se o marido jamais fosse estéril ou infiel!” (HAMMAN, 1989, p.71).
Agostinho, por seu turno, sabia que a infidelidade dos maridos e a
violência contra as esposas era uma das misérias cotidianas em Hipona.
90 • Com Agostinho, e além dele

Quanto à esterilidade, Agostinho discorda que ela dê causa à


dissolução do matrimônio no âmbito da Igreja:

Uma vez contraído o matrimônio na Cidade do nosso Deus, que é a Igreja,


[...], recebe um caráter sacramental, não pode ser dissolvido, exceto pela
morte do cônjuge. Permanece o vínculo nupcial, ainda que a prole, por cuja
causa foi realizado, não tenha aparecido por causa de manifesta
esterilidade; de tal modo que os cônjuges, [...], não podem separar-se e unir-
se a outros para procurar descendência. Se isto fizerem, cometerão
adultério com aqueles a quem se unam, permanecendo eles sempre
cônjuges (Dos bens do mat., 15,17).

Neste ponto, convém introduzir o terceiro bem específico do


matrimônio, ou seja, o sacramento (sacramentum) e sua função como
símbolo ou signo sagrado. Quando fala do aspecto sacramental do
matrimônio, Agostinho não se refere a uma instituição formal da Igreja,
mas sim a um significado transcendente que se encontra nas relações
humanas. Além disso, o significado particular de “sacramento” no
matrimônio depende da situação deste na história da salvação.
Tome-se como exemplo as discussões sobre os Patriarcas no
Antigo Testamento, e em particular os registros bíblicos sobre Abraão,
sua esposa Sara e a serva Hagar. Agostinho afirma que

Acercar-se de outra mulher com o consentimento da esposa, para ter filhos,


que serão do marido pela paternidade e da esposa pelo direito e pelo
consentimento, entre os antigos Patriarcas era lícito, mas que agora
também o seja não me atrevo a afirmá-lo. Pois hoje não é tanta, [...], a
necessidade de propagação, quando, além da esposa, era lícito tomar outras
para que a descendência fosse numerosa. [...], assim unir-se a diversas
mulheres com os direitos matrimoniais foi naqueles santos um dever
piedoso, não libidinoso (Ibid).
Marlesson Castelo Branco do Rêgo • 91

Assim, as núpcias no tempo dos Patriarcas não eram menos


legítimas do que no tempo de Agostinho, principalmente no que diz
respeito à procriação. Entretanto, os homens casados dos dois tempos
são diferentes: os do passado, foram às núpcias pela piedade e a
necessidade de gerar filhos era de ordem espiritual porque a procriação
era prenúncio profético de coisas futuras; nos tempos de Agostinho, o
desejo por filhos é de ordem carnal.
Ademais, falando em termos de sacramento no matrimônio,
acrescenta Agostinho:

Como de muitas almas há de formar-se a Cidade dos que têm uma só alma
e um só coração em Deus, [...], por isso o sacramento do matrimônio está
restrito a um só marido e uma só esposa, [...].Assim como o mistério
encerrado na pluralidade dos matrimônios daquele tempo foi figura da
multidão de fiéis de todas as nações, que na terra se submeteriam a Deus,
que será realizada futuramente na única Cidade celestial (Ibidem, 18, 21).

Nota-se aqui uma equivalência feita por Agostinho entre os termos


“sacramento” e “mistério”. Tal conexão específica é proporcionada a ele
a partir de três textos paulinos: 1 –“Ainda que tivesse o dom da profecia,
o conhecimento de todos os mistérios e de toda a ciência, [...], se não
tivesse a caridade, nada seria” (I Cor., 13.2); 2 –“Por isso deixará o homem
seu pai e sua mãe e se ligará à sua mulher, e serão ambos uma só carne.
É grande este mistério: refiro-me à relação entre Cristo e sua Igreja” (Ef.,
5.32); 3 –“Portanto, considerem-nos os homens como servidores de
Cristo e administradores dos mistérios de Deus” (I Cor., 4.1).Colocando a
sua visão neoplatônica a serviço de uma exegese das Escrituras, o Bispo
de Hipona entende que o mundo material e visível,o matrimônio e os
92 • Com Agostinho, e além dele

atos sacerdotais apontam para uma realidade interior mais profunda,


isto é, a realidade material se converte em símbolo que revela (e vela)
um mundo espiritual mais profundo.O mundo visível dá testemunho de
seu autor, por exemplo, enquanto o matrimônio fala da união de Cristo
(o noivo) com sua Igreja (a noiva). Além disso, as palavras do Cristo, “Por
isso deixará o homem seu pai e sua mãe e se ligará à sua mulher, e serão
ambos uma só carne” (Mt., 19.5), revelam a indissolubilidade dessa
união, ainda que os sacramentos (mistérios) dos casamentos
particulares sejam menores do que o sacramento (mistério) maior da
união do Cristo com sua Igreja.

4.2 O MATRIMÔNIO NA POLÊMICA PELAGIANA

As reflexões de Agostinho sobre o matrimônio não ficaram


restritas ao contexto da polêmica contra Joviniano. Nas primeiras
décadas do século V, ele se viu envolvido na controvérsia contra Pelágio
e seus seguidores no que tange à concepção de natureza humana: para
Pelágio, o ser humano não é prisioneiro de uma inclinação mórbida para
o mal, e, portanto, é livre para agir bem; para Agostinho, a natureza
humana merece elogios enquanto criação divina, mas, na condição
atual, encontra-se enferma devido ao mecanismo do pecado,
necessitada da graça divina que sana, glorifica e aperfeiçoa o ser
humano. E esta é a motivação para Agostinho escrever a respeito do
modo como o “pecado original” (originale peccatum) de Adão e Eva afeta
o caráter do desejo sexual humano.
Marlesson Castelo Branco do Rêgo • 93

Em seu Comentário literal ao Gênesis, Agostinho afirma: “Logo que


transgrediram o preceito, [...], dirigiram seus olhos para seus membros
e os desejaram com um movimento que lhes era desconhecido” (Gn. litt.,
XI, 31, 41). E a respeito desse “movimento” (motum), esclarece adiante
que se trata do “mesmo movimento pelo qual se efetua nos animais o
apetite da concupiscência” (Ibidem, XI, 31, 42). Em outros termos, um
“movimento bestial” que se dá independentemente do controle racional
ou da vontade humana. Além disso, há um aspecto genético a considerar
nessa noção histórica de natureza humana, de acordo com as reflexões
do Bispo de Hipona a respeito da passagem bíblica que registra o
princípio da união carnal do casal primordial, e que se encontra na obra
De Civitate Dei (Sobre a Cidade de Deus):

Não temos a menor dúvida de que o crescer, multiplicar-se e povoar a terra,


[...], é dom do matrimônio, instituído por Deus desde o princípio, antes do
pecado, ao criar o homem e a mulher. O sexo, evidentemente, supõe algo
carnal. [...], ser refratário a isso constituiria notável absurdo (De civ. Dei, XIV,
22) 3.

A relação sexual é legítima no matrimônio 4. Por essa relação, a


natureza primordial seria transmitida aos descendentes do casal

3
(Nos autem nullo dubitamos, […] crescere et multiplicari et implerem terram donum esse nuptiarum, quas
Deus ante peccatum hominis ab initio constituit, creando masculum et feminam, qui sexus evidens utique in
carne est. [...], magnae absurditatis est reluctari).
4
No termo matrimonium, cuja raiz é mater (mãe), está implícito o aspecto da procriação posto em foco
aqui devido ao debate contra o pelagianismo. Porém, dado o caráter precípuo dos escritos paulinos em
Agostinho, é razoável considerar a concepção estóica do matrimônio recepcionada pelo apóstolo Paulo:
“A mulher não dispõe do seu corpo, mas é o marido quem dispõe. Domesmo modo, o marido não
dispões do seu corpo, mas é a mulher quem dispõe” (I Cor., 7,4). Vê-se aqui o núcleo ético da concepção
monogâmica do matrimônio que se encontra nos Fragmentos de Musônio Rufo (século I d.C.): “O
elemento fundamental do matrimônio é a comunhão de vida e a geração de filhos. Marido e esposa
juntam-se para agirem juntos, para pôr tudo em comum, de modo que nenhum deles tem algo de seu,
nem mesmo o próprio corpo”. O estóico, como o apóstolo, não considera a função reprodutiva como
94 • Com Agostinho, e além dele

primordial. Porém, com a mudança da natureza primordial em natureza


“decaída”, derivada do mecanismo do pecado, esta é a natureza
transmitida.
É com esta concepção de natureza que Agostinho escreve Das
núpcias e a concupiscência, uma obra dirigida ao Conde Valério por volta
de 418. Nela, Agostinho afirma que há de se fazer uma distinção entre a
bondade do matrimônio e o mal da concupiscência, preceito este que
reafirma nas suas Retratações (Retractationum): “[...], pelo que o mal da
libidinagem faz bom uso da castidade conjugal para procriação dos
filhos” (Retract., II, 53) 5.
Por um lado, o matrimônio é, sem dúvida, bom, visto que foi
instituído quando o ser humano se encontrava em sua “natureza
primordial” (primordia naturae), anterior à “queda” adâmica, não se
encontrando nesta condição nem a ignorância do Bem (Deus), nem a
inclinação do ser humano para o mal. Por outro lado, há uma natureza
resultante da “queda” ôntica do ser humano pelo seu livre-arbítrio,
contaminada agora pela concupiscência, a qual foi transmitida aos
descendentes do primeiro casal. E neste ponto reside a base da
controvérsia contra os pelagianos, os quais defendem que a “queda” do
ser humano atinge seu mérito e não sua natureza, sendo a mesma desde
Adão.

suficiente para definir o matrimônio, visto que filhos podem ser gerados fora do matrimônio, à
semelhança dos animais. Logo, a essência do matrimônio consiste nos laços afetivos e na comunhão de
vida que podem existir entre um homem e uma mulher e não no ato da procriação. Afinal, de que serve
a procriação se não houver harmonia no cosmos e na cidade?
5
([…], quo malo libidinis bene utitur ad filios procreando pudicitia coniugalis.)
Marlesson Castelo Branco do Rêgo • 95

Nessa linha da argumentação de Agostinho, o que se costuma


chamar hoje de “um instinto natural primitivo para a procriação”, e,
talvez, assim fosse visto pelos pelagianos, é visto pelo Bispo de Hipona
da seguinte maneira:

Indubitavelmente, é esta concupiscência, esta lei do pecado que habita nos


membros, a que a lei da justiça proíbe obedecer, como disse o Apóstolo: Não
reine o pecado em vosso corpo mortal, para obedecer a seus desejos, nem
ofereçais vossos membros ao pecado como instrumentos de iniquidade
(mat. y conc., I, 23, 25).

Ao citar um trecho da carta de Paulo aos cristãos em Roma,


Agostinho recepciona o ensino paulino que vê na concupiscência um
meio pelo qual o pecado ainda pode reinar. Seja no sentido amplo do gozo
de bens ou no restrito de “apetite” sexual, a concupiscência conduz,
vencida a razão, à injustiça, no sentido de um mal uso de uma coisa, em
princípio, boa.
Vê-se aqui uma sutil distinção entre concupiscência e pecado, dado
que, até hoje, é costume se tomar um termo pelo outro. Nesse sentido,
Agostinho sugere um discernimento: “Também se chama pecado
porque, se vence, suscita o pecado, do mesmo modo que o frio é
chamado ‘preguiçoso’, não porque seja produzido por preguiçosos, mas
porque suscita preguiçosos” (Ibid). Assim, de modo análogo, a
concupiscência, embora não seja pecado, é descrita como algo que pode
conduzir, possivelmente, ao pecado, mas não necessariamente.
Entretanto, uma vez que o texto paulino é dirigido a cristãos, segue
a questão: qual é a acepção de concupiscência nos seres humanos que
contraíram matrimônio segundo a fé cristã? Tal acepção se acha no
96 • Com Agostinho, e além dele

tratado Sobre a Graça de Cristo e sobre o Pecado Original (De Gratia Christi
et Peccato Originali):

A concupiscência da carne seria prejudicial somente pelo fato de fazer parte


da natureza humana, se a remissão dos pecados não favorecesse de modo
tal que, existindo do nascido e do renascido, existe e prejudica o nascido, e,
no renascido, apenas existe. No entanto, desfavorece os nascidos de tal
modo que, se não renascerem, nenhum proveito lhes traz o fato de terem
nascido de renascidos (De gr. Chr., II, 39, 44) 6.

Nessa passagem do Livro II da obra, Agostinho se refere à natureza


humana do “nascido” (da carne 7) e do “renascido” (do Espírito), estando
implícito aqui o diálogo entre Jesus e Nicodemos registrado no
Evangelho de João (Jo., 3:3-7). Tanto o indivíduo naturalmente nascido
quanto o que, além disso, abraçou a fé em Cristo, experimentam a
concupiscência, porém, sem a mesma força, pois prejudica apenas ao
“nascido”, sendo a causa de seus deslizes, e apenas existe no “renascido”,
não estando este sob domínio da concupiscência e sim submisso à graça
divina.
Assim, o homem e a mulher, ambos cristãos, ou “renascidos”, estão
engajados na luta contra a concupiscência recorrendo à graça do Cristo,
necessária para o bem viver. E se o termo “renascido” for tomado pelo
equivalente “batizado”, na distinção entre cristãos e pagãos, pode-se

6
(Obesset ista carnis concupiscentia, etiam tantummodo quod inesset, nisi peccatorum remissio sic
prodesset, ut quae in eis est: et nato, et renato, nato quidem et inesse et obesse, renato autem inesse quidem,
sed non obesse possit. In tantum autem obest natis, ut nisi renascantur, nihil possit prodesse si nati sunt de
renatis).
7
Segundo a exegese bíblica de Agostinho, no tratado De natura et gratiacontra Pelágio, “carne” não
significa a substância física, que é boa; “carnal” é a condição de caducidade do ser humano afastado de
Deus. Quem vive na “carne” põe tudo a serviço dos próprios interesses e desejos, seguindo o egoísmo,
que é a fonte do “pecado original”.
Marlesson Castelo Branco do Rêgo • 97

considerar outra pertinente passagem na obra Das núpcias e a


concupiscência:

[...] A concupiscência da carne tem sido vencida no batismo não para que
não exista, mas para que não se impute como pecado. Ainda que já tenha
sido dissolvida sua culpa, permanece até que seja sanada toda nossa
enfermidade quando, progredindo a renovação do homem interior de dia
em dia, o homem exterior se vista de incorruptibilidade. [...] Por enquanto,
até que se cumpra o que segue, Ele sana todas tuas debilidades, o que redime
da corrupção tua vida, a concupiscência carnal permanece no corpo [...], e
temos ordem de não obedecer a seus viciosos desejos de cometer coisas
ilícitas para que o pecado não reine em nosso corpo mortal. Esta
concupiscência, por outro lado, diminui diariamente nos que progridem na
virtude e nos continentes; muito mais quando se chega à velhice. Sem
dúvida, nos que se escravizam viciosamente a ela adquire tanta força que,
ordinariamente, não deixa de comportar-se com toda falta de vergonha e
indecência, inclusive na idade em que os membros e as partes do corpo
destinadas a esta obra têm perdido seu vigor (mat. y conc., I, 24, 28).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Face ao exposto, os tratados de Agostinho Dos bens do matrimônio e


Das núpcias e a concupiscência podem ser considerados uma influente
síntese sobre o tema da comunhão conjugal entre duas concepções
extremas e opostas: uma pessimista, que via no casamento um meio de
colocar os corpos mortais a serviço da vida corruptível; outra de
extremo otimismo, que igualava, em mérito, a vida monástica ou o
celibato voluntário à vida conjugal. Em meio a essa tensão, o Bispo de
Hipona propõe que a união conjugal seja considerada boa, em teoria,
mas considera a natureza humana,do ponto de vista das Escrituras e da
vida cotidiana concreta. Uma é a natureza íntegra na qual o casal
98 • Com Agostinho, e além dele

primordial fora criado, anterior à “queda” ôntica, outra é a natureza


“contaminada” pela concupiscência, a qual potencializa a prática de atos
ilícitos, transmitida de geração em geração.
Ademais, ligado ao aspecto histórico da natureza humana, o
matrimônio se insere no plano de salvação do ser humano em dois
estágios: I – o período dos patriarcas e das matriarcas do Antigo
Testamento, onde a prioridade era a procriação inserindo no
povoamento da terra a sequência de gerações até o nascimento do
Cristo; II –o período depois de Cristo, onde a geração de filhos, embora
seja um bem, não é mais necessária aos cristãos e o casamento passa a
ser visto como um vínculo legítimo aos que carecem de domínio próprio
para praticar o celibato.
Entretanto, vale salientar um elemento que serve de “fio condutor”
do pensamento de Agostinho ao tratar do matrimônio através dos
tempos: trata-se do vínculo primordial natural da sociedade humana,
onde a noção de casamento como uma “associação amigável” é um bem
em si, e a prole é um bem relativo, ou seja, é bem em função de outro
bem. E ao tratar da prole como uma possibilidade, mas não como uma
necessidade decorrente do casamento, o Bispo de Hipona não se
restringe ao espírito das leis romanas e suas razões de ordem
econômica, militar e expansionista por trás do incentivo à procriação.
Agostinho prefere colocar o bem da prole ao lado do bem da fidelidade
entre os cônjuges e da indissolubilidade do matrimônio, independente
de filhos gerados ou não, segundo o espírito de justiça. Sua preocupação
maior é com a concupiscência da natureza humana decaída, a qual
Marlesson Castelo Branco do Rêgo • 99

potencializa relações humanas injustas em geral, e em particular no


matrimônio.
Nos dias atuais, quando governos de alguns países europeus e do
Japão discutem o incentivo à procriação, seja por razões nacionais de
produzir descendência, seja por razões econômicas, o desafio de se
chegar a relações pacíficas entre homens e mulheres permanece. Afinal,
de que adianta a geração de filhos sem paz na cidade dos homens a
partir de seus núcleos familiares?

REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, Santo. Comentário literal ao Gênesis. In: Comentário ao Gênesis. Trad. de


Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2005.

AGOSTINHO, Santo. Confissões. (Coleção os Pensadores). Trad. de J. Oliveira Santos e A.


Ambrósio de Pina. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2000.

AGOSTINHO, Santo. De civitate Dei. (Coleção S. Aurelli Augustini OPERA OMNES:


PATROLOGIAE ET ELENCHUS). Disponível em <htpp://www.augustinus.it/latino/
index.htm>. Acesso em 20 abr. 2016.

AGOSTINHO, Santo. De gratia Christi et de peccato originali (Coleção S. Aurelli


Augustini OPERA OMNES: PATROLOGIAE ET ELENCHUS). Disponível em
<htpp://www.augustinus.it/latino/index.htm>. Acesso em 30 out. 2016.

AGOSTINHO, Santo. Dos bens do matrimônio. (Coleção PATRÍSTICA. v. 16). ed. 2.Trad.
de Vicente Rabanal. São Paulo: Paulus, 2007.

AGUSTÍN, San. El matrimonio y la concupiscencia. (Coleção San Agustín OBRAS


COMPLETAS VERSIÓN ESPAÑOLA). Disponível em <htpp://www.augustinus.it/
latino/index.htm>. Acesso em 10 out. 2016.

AGUSTÍN, San. Las retractaciones. (Coleção San Agustín OBRAS COMPLETAS VERSIÓN
ESPAÑOLA). Disponível em <htpp://www.augustinus.it/latino/index.htm>. Acesso
em 13 jan 2016.
100 • Com Agostinho, e além dele

AGUSTÍN, San. Retractationum libri duo. (Coleção S. Aurelli Augustini OPERA OMNES:
PATROLOGIAE ET ELENCHUS). Disponível em <htpp://www.augustinus.it/latino/
idex.htm>. Acesso em 13 jan 2016.

BÍBLIA. Português. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.

HAMMAN, A. Santo Agostinho e seu tempo. (Coleção PATROLOGIA).Trad. de Álvaro


Cunha. São Paulo: Ed. Paulinas, 1989.

PLATÃO. As leis. ed. 2. Trad. de Edson Bini. São Paulo: EDIPRO, 2010.

RÊGO, Marlesson C. B. do. A noção de natureza em Santo Agostinho. (Coleção Cadernos


Patrísticos – Textos e Estudos, v. IX, n. 16). Florianópolis: Edinei da Rosa Cândido
(Ed.), 2015.
AGOSTINHO DE HIPONA:
5
AMBIGUIDADES DE UM PRECURSOR DO
FILOSSEMITISMO NA PATRÍSTICA LATINA
Tiago Macedo Bezerra Maia 1

INTRODUÇÃO

A relevância das reflexões contidas nas linhas deste capítulo está


em se constituir uma primeira aproximação reflexiva sobre um recorte
de pesquisa, no interior do pensamento agostiniano, não muito
visibilizado nem adequadamente estudado entre estudiosos brasileiros
de filosofia, teologia, sociologia, história e demais ciências humanas e
sociais.
Por isso, é uma seara pouco conhecida mesmo na cena filosófica
nacional, no ínterim das ideias agostinianas, e ainda menos são
abordadas suas implicações sociais, políticas e históricas, apesar de e
não obstante já serem encontrados alguns trabalhos dedicados ao tema
no exterior.
A temática em questão se desvelando percurso dos pensamentos
de Aurélio Agostinho de Hipona (354-430 d.C.), que ainda tem muito a
dizer acerca de sua visão sobre o judaísmo e o “lugar” dos judeus,

1
Doutorando em Sociologia (PPGS/UFPE, nas linhas Cultura Política, Identidades Coletivas e
Representações Sociais / Teoria e Pensamento Social), atual bolsista da FACEPE. Mestre em Filosofia
(PPGFIL/UFPE, nas linhas Ética e Política / Fenomenologia e Hermenêutica), ex-bolsista da CAPES.
Especialista em Ensino de Filosofia (Contemporâneos/FAINTVUSA). Bacharel em Filosofia (UFPE) e
Ciências Sociais (UFRPE). E-mail: maia.tito.professor@gmail.com
102 • Com Agostinho, e além dele

especialmente, no esteio da sua inovadora compreensão histórica.


Inaugura assim, um olhar mais positivo direcionado aos semitas – mas
controverso e permeado de ambiguidades, desde seu tempo, na história
do cristianismo e da Igreja Católica – sendo considerado dúbio dessa
época até hoje, para alguns de seus leitores e, mais atualmente, é
encarado como um astuto e estratégico precursor de uma novidade para
outros que se debruçam sobre suas obras.
Nesse sentido, importa se perguntar que elementos podem ser
identificados e caracterizados como traços ou indícios de um primevo
filossemitismo no pensamento de Agostinho? Como situar a presença
judaica nas reflexões filosófico-teológicas agostinianas? Qual o impacto
dessas suas pioneiras ideias para o cristianismo tardo-antigo? Essas são
as principais inquietações norteadoras que esse escrito tentará
responder e elucidar.
O Santo Doutor, cujo notório episcopado foi experienciado na
cidade norte-africana de Hipona, operou uma das primeiras grandes
sínteses das duas principais Tradições formadoras do “espírito
ocidental”: A Tradição Greco-Romana – o neoplatonismo plotiniano e
um certo tipo de aristotelismo ciceroniano, por exemplo, dentre outros
matizes filosóficos tão diversos quanto potentes do pensamento
filosófico de seu tempo – com a Tradição Judaico-Cristã – os Textos
Sagrados judaicos veterotestamentários (cf. MAIA, 20005; 2018) e a
Literatura Sacra cristã neotestamentária –, dentre outras correntes e
tendências teológicas então existentes (cf. COSTA, 1999; 2012;
BOEHNER; GILSON, 1991; DROBNER,2003; ERLER; GRAERER, 2003;
GILSON, 2006; 2007; 2010).
Tiago Macedo Bezerra Maia • 103

O próprio “berço” (núcleo familiar) no qual nasceu o hiponense,


parece uma “metáfora” que pode ser aqui aplicada e apropriada para
ilustrar parcialmente um “cenário” de intensas e conflituosas
interações dialógicas entre as Tradições acima elencadas, como um
“prelúdio” em forma de figuração que informa alguns dos caminhos que
foram percorridos por Agostinho em sua formação intelectual e
espiritual.
Historicamente, ele viveu entre os séculos IV e V, um período hoje
conhecido como Antiguidade Tardia, marcado por crises sociais
diversas (culturais, políticas e econômicas) que levariam à desagregação
e à pulverização dos sistemas basilares que ainda sustentavam a
sociedade romana em declínio, cujos ventos ali correntes davam sinais
cristalinos de que o fim de uma já agonizante Antiguidade Clássica
estava cada dia mais próximo (cf. BROWN, 1999; 2005; COSTA, 1999;
2012; ERLER; GRAERER, 2003).
No contexto do cristianismo primitivo tardo-antigo (sublinha-se
que, antes e durante a Patrística), as reincidentes e corriqueiras
polêmicas com os judeus foram se acirrando e recrudescendo. E,
rapidamente, esses reiterados e contínuos conflitos com o povo judaico
se instalaram de forma crescente entre os cristãos e gradualmente se
enraizaram no cristianismo nascente (cf. BOEHNER; GILSON, 1991;
DROBNER, 2003).
Isso se deu desde que Jesus Cristo foi entregue por Judas Iscariotes
ao Sinédrio dos fariseus liderado por Caifás e Anás, condenado
religiosamente à pena capital por blasfêmia e politicamente por
incitação popular contra a ordem romana e desafiar leis imperiais de
104 • Com Agostinho, e além dele

César. Os fariseus contaram ainda com uma estranha passividade-


permissividade de Herodes Antipas, que reinava na Galileia e na Peréia.
A partir disso, os embates foram eclodindo e os enfrentamentos
cristãos-judaicos paulatinamente se revelando (cf. BARON, 1968;
BROWN, 1999).
Baron (1968) elucida que, nessa época, em 33 d.C., para grande parte
do povo judeu, os cristãos formavam um grupo difuso e em construção,
ainda considerados como uma seita judaica dissidente e, até então,
quase que irrelevantes. Mas, isso começa a mudar com a prisão,
condenação e morte de Jesus, pelos motivos já supracitados,
fundamentais para sua acusação farisaica. Desde então, no cristianismo
emergente, a culpa e as consequências desse fato “Deicida” que a cruz
representa, seriam atribuídas aos judeus e sua descendência e agravado,
também, pelo não reconhecimento e rejeição do Deus cristão encarnado
e a não aceitação e negação da mensagem de Boa Nova, por parte dos
judeus que individual e comunitariamente seriam, por tudo isso,
historicamente culpados no olhar cristão.
Fredriksen (2001; 2010) explana que a construção de uma visão
negativa estigmatizada, preconceituosa e de representações
estereotipadas do povo judeu e do judaísmo será difundida e legitimada
sem nenhuma oposição, na cristandade, até a emergência do
pensamento agostiniano e suas reflexões sobre uma “questão” tão
basilar para o cristianismo. Já no século IV d.C., Agostinho, com seu
pluridimensional pensamento e suas multifacetadas reflexões, abordou
as relações do cristianismo com o povo judeu e o judaísmo (cf. VAN
OORT, 2013).
Tiago Macedo Bezerra Maia • 105

O Bispo de Hipona aponta, com suas ideias, para uma posição


aparentemente dissonante e heterodoxa, se comparada à maior parte
do patrimônio intelectual do cristianismo até ali produzido. E ele fez
isso com tanta habilidade que, além de demonstrar abertura, simpatia,
admiração e acolhida de aspectos diversos e até acréscimo de algumas
concepções judaicas em suas reflexões, realizou isso argumentando de
forma a justificar e legitimar a existência de uma providencial relação
quase “umbilical” dos cristãos com os judeus e do cristianismo com o
judaísmo, desde a gênese da história (cf. FREDRIKSEN, 2001; 2010; VAN
OORT, 2013).
Nesse sentido, para alcançar seu intuito, Agostinho postula,
inclusive, quanto à uma “utilidade” (não meramente utilitária), para a
existência do povo judeu, pontuando ser uma realização da vontade de
Deus e no melhor da amorosa providência divina para os cristãos.
Assim, de acordo com os desígnios do Alto, pela sua “simples” presença
na história, os herdeiros descendentes de Abraão e Moisés já estariam
fazendo, também e concomitantemente, o bem a eles próprios e suas
comunidades, mas, principalmente, aos cristãos (cf. FREDRIKSEN, 2001;
2010; VAN OORT, 2013).
O africano Doutor da Igreja parece chegar, por isso, em vários
momentos a elucidar, e não apenas discretamente, a favor dos judeus.
Ousou defendê-los de modo expresso e categórico, por vezes
contundente e repetidamente, como forma de fazer a cristandade
compreender a necessidade da e para a Providência Divina permitir a
existência e a continuidade do povo de Israel e da religião israelita. Para
isso, atribuiu um novo sentido em uma original perspectiva históricade
106 • Com Agostinho, e além dele

crucialidade filosófico-teológica para a temática, ainda mais


importante pelo tensionado contexto relacional que ali afligia e atingia,
diametralmente, cristão e judeus.
Essa inovadora forma agostiniana de tratar as questões relativas
ao povo judeu (e extendida ao judaísmo e suas tradições), surgiu após
séculos de uma interação frágil já estabelecida na história do
cristianismo, fundada sob marcas evidentes de muitas adversidades e
polêmicas nos mais variados níveis interativos entre cristãos e o povo
israelita.
Para alguns estudiosos da Patrística, os construtos de Agostinho
sobre o tema parecem abrir uma “janela” no tempo, mas nos moldes não
anacrônicos de uma “caracterização antecipada” ou “antecipação
figurativa” do que hoje se conhece como filossemitismo. Isso mostra e
clarifica, mais uma vez, como o pioneirismo do pensamento de
Agostinho, também nesse ponto filosófico-teológico, se colocou muito à
frente da temporalidade na qual veio à tona (século IV d.C.).
Tendo o filossemitismo sido um termo de elaboração bem mais
recentemente (século XIX d.C.), ressalta-se como uma prudente
precaução, que não há pretensão anacrônica de enquadrar Agostinho
nos limites de “amarras conceituais” hodiernas. No entanto, objetiva-
se, a partir dessa terminologia, explicitar, através de considerações
sobre as leituras de alguns de seus mais notórios intérpretes nacionais
e estrangeiros, elementos filossemitas no arcabouço filosófico-
teológico agostiniano, demonstrando assim, também, o quão
vanguardista foi nas suas tematizações e formulações sobre o povo
Tiago Macedo Bezerra Maia • 107

judeu. Mas antes, faz-se importante uma breve discussão mais geral
sobre o filossemitismo e algumas de suas principais nuances.

5.1 FILOSSEMITISMO: ELENCANDO CARACTERÍSTICASEM BUSCA DE UMA


DEFINIÇÃO

Nos últimos anos, tem sido observado um crescente número de


estudos sobre o filossemitismo em muitos campos das ciências
humanas e sociais. Essas produções têm sido realizadas desbravando a
compreensão de aspectos nodais e superando muitas dificuldades,
dentre elas a de uma ainda quase inexistente literatura filosófica
especializada, sobre as especificidades filossemitas e de conteúdos
correlatos. Aqui, por isso, mais uma vez se reforça quão relevante é o
capítulo, justificando sua presença nessa obra coletiva de filosofia,
homenagem ao patrologista e medievalista Prof. Dr. |Marcos Roberto
Nunes Costa (UFPE).
Na sociologia, na politologia, na antropologia, na teologia, na
história, etc.,porém, os estudos são ainda tímidos e os especialistas
raros, mas bem mais notabilizados.No entanto, para os cientistas sociais
em especial, é pacífico que a maioria desses trabalhos apresenta uma
recorrente superficialidade, uma certa carência de esforços mais detido
com as devidas acurácia e densidade normalmente percebidas, tanto no
concernente ao aprofundamento necessário, quanto à sistematização
dos conhecimentos até aqui alcançados nas áreas científico-sociais.
Karp e Sutcliffe (2011) e Rose (2020) elucidam que, a partir da virada
do século XX para o XXI, e ainda com maior ênfase na segunda metade
desse século, após o final da 2ª Guerra Mundial e do terror do
108 • Com Agostinho, e além dele

Holocausto judaico (depois de 1945), tem ocorrido uma ‘onda’ de


filossemitismo, inclusive entre os que, historicamente, foram
considerados “inimigos” dos judeus, como muitas igrejas e
denominações cristãs na diversidade e pluralidade do campo religioso
do cristianismo, como no catolicismo (na Igreja Católica), por exemplo.
Assim, uma recentíssima espécie de “virada filossemita”, portanto,
parece ter motivado e estar mobilizando e impulsionando essa série de
novos estudos de uma gama de autores que tendem a abordar o tema de
forma dialógica e interdisciplinar. E estes, têm se posicionando sempre
numa tentativa constante de superar as lacunas e assim melhor
acompanhar e aprofundar o “estado da arte”, tal como tematizado nas
diversas áreas das humanidades.
O filossemitismo pode ser encontrado em uma miríade de
“versões”, em diversas formas de expressão através de múltiplas ideias
e práticas, manifestando características que podem ser identificadas em
forma de pensamento e/ou ação, nos mais distintos momentos
históricos e nos mais variados espaços geográficos (não obstante o
termo ser um “filho” do contexto europeu do século XIX).
Nota-se, no entanto, dentre as lacunas antes e acima já pontuadas,
que tal fenômeno ainda não foi nem ao menos definido totalmente e/ou
conceituado completamente, nem pelos seus poucos estudiosos foram
convencionados parâmetros satisfatórios para identificação e
caracterização pacíficas de suas ocorrências e manifestações, teórica
e/ou empiricamente (MASSEY, 2000).
De acordo com Bruder (2017) e Rose (2020), o filossemitismo pode
ser traduzido, analisado e compreendido como uma gama de
Tiago Macedo Bezerra Maia • 109

sentimentos positivos, tais como ‘amizade ou amor pelo povo semita’,


aqui entendido, preponderantemente, o povo judeu (juntamente com o
judaísmo, sua cultura e suas tradições).
Paulatina e gradualmente os indivíduos e/ou grupos sociais
(formados por indivíduos), parecem sinalizar uma tendência de, com o
tempo, passar por uma transição e, dentre esses, alguns indivíduos e/ou
grupos filossemitas absorveriam ou incorporariam elementos
“judaizantes”, assimilando em partes ou na totalidade,símbolos e ritos
próprios do povo judeu, do judaísmo, das identidades sociopolíticas,
culturais e religiosas judaicas (cf. D’ COSTA, 2014; 2018; 2019; 2020;
BRUDER, 2017; ROSE, 2020; BELLEW, 2021).
Isso propiciou não apenas abertura e diálogo na reconfiguração da
nova forma de se relacionar com o povo judeu, mas permitiu, por
exemplo, que os católicos carismáticos junto com os protestantes
pentecostais, venham gradativamente se “judaizando”, sendo notada
uma presença crescente de elementos judaicos no cotidiano de suas
igrejas e comunidades, nas liturgias, nas datas de festas litúrgicas e
celebrativas, nos ritos e nas indumentárias rituais, até mesmo nos
destinos das viagens do turismo religioso de seus fiéis e adeptos, etc.
(CARRANZA, 2017; MACHADO; MARIZ; CARRANZA, 2022).
Atualmente, essa transição mostra-se ainda discreta, mas
perceptível em alguns grupos religiosos no interior do cristianismo, de
algum modo gradualmente crescente, tal como foi destacado nas
análises propostas por Machado, Mariz e Carranza (2022). Esse
“movimento” de dimensões e impactos globais no cristianismo, é algo
que parece ser total e completamente novo no interior da Igreja
110 • Com Agostinho, e além dele

Católica, e vem se enraizando no seio do carismatismo, pelo menos


desde a década de 1960 da segunda metade do século XX(cf. COHEN,
2017; KARP; SUTTCLIFFE, 2011; LASSNER; TRUBOWITZ, 2008; LEWIN,
2009; MERKLEY, 2001; SZOCIK, WALDEN, 2017; WERTHEIM, 2017).
Por outro lado, sublinham Bellew (2021), D’Costa (2014; 2018; 2019;
2020) e Machado, Mariz e Carranza (2022), que podem ser notadas, em
toda a história,manifestações filossemitas, mas com a ressalva de que
essas partiram de posições individuais similares (mesmo diante de seus
respectivos contextos específicos). Estas, ao longo do tempo, foram
aparecendo e criando raízes nas sociedades, instituições e culturas,
deste modo algumas ideias e práticas filossemitas foram alargando suas
influências, em uma escala hemisférica do cristianismo ocidental.
Nesse sentido, esse escrito procura defender a hipótese de que
Agostinho de Hipona foi, também, um dos primeiros e principais
percussores do filossemitismo entre os pensadores cristãos da
Patrística Latina tardo-antiga, sendo possível identificar e caracterizar
elementos filossemitas no bojo de suas ideias filosófico-teológicas,
como indicam as reflexões de alguns de seus mais renomados
intérpretes, que aqui serão “pontes” para se aclarar a identificação de
acentos filossemitas em Agostinho.
É sabido que, por exemplo, ressonâncias dos pressupostos lançados
por Agostinho deram base às profundas e sensíveis mudanças nas
relações judaico-católicas constatadas no medievo, nos cinco séculos
que se seguiram após sua morte e, na contemporaneidade, a partir do
Concílio Vaticano II. As ideias do hiponense passaram a ser
veementemente recuperadas e são revisitadas até hoje de modo
Tiago Macedo Bezerra Maia • 111

recorrente pelos católicos, em especial, os carismáticos - por


conveniência de suas agendas sociopolíticas conservadoras
(KWASNIEWSKI, 2002; D’COSTA, 2014; 2018; 2019; 2020; CARRANZA,
2017; MAÇANEIRO; SOUSA, 2020).
Agora, nesse momento do capítulo, o foco passará a ser a
identificação e a caracterização dos traços do pensamento agostiniano
que notabilizam, entre suas ambiguidades (sejam elas reais ou
aparentes), os sinais de seu seminal filossemitismo, no interior do
cristianismo patrístico latino antigo tardio.
Esse esforço compreensivo se dará no intuito de que se possa,
assim, melhor perceber a inovação reflexiva que o Bispo de Hipona
desenvolve com a introdução de elementos filossemitas pioneiros em
seus construtos filosófico-teológicos sobre a presença e o papel do povo
judeu e da religião judaica na história cristã.

5.2 AGOSTINHO DE HIPONA E A PATRÍSTICA: AS AMBIGUIDADES DE UM


PRECURSOR DO FILOSSEMITISMO

Aurélio Agostinho de Hipona elaborou um pensamento filosófico-


teológico incontornável para todo estudioso das humanidades. Um
conjunto de ideias sempre necessário e poderoso, apesar de sua “longa
idade”, por tratar de muitas das questões fundamentais do e para o ser
humano, é de uma atualidade surpreendente.
Suas reflexões são oriundas de uma emaranhada teia de complexos
processos históricos, políticos e culturais que deram origem às
sociedades do Ocidente cristão tardo-antigo. E o contexto do modelo
social e relacional vigente e praticado na cristandade da época, no que
112 • Com Agostinho, e além dele

se refere ao povo judeu e ao judaísmo, faz suas reflexões ainda mais


singulares e impactantes.
Ao mesmo tempo em que suas ideias sintetizam aspectos variados
das diversas tendências filosóficas e tradições teológicas, foi em grande
medida, especialmente na sua maturidade, forjado por especificidades
das mais tensas questões existentes entre o cristianismo e o judaísmo e
das intensas polêmicas que incidiam e reincidiam nos espaços de
sociabilidade partilhados por cristãos e judeus, como se deu desde os
primeiros séculos da cristandade.
Os esforços reflexivos agostinianos, em alguns momentos e mesmo
quando ambíguos, parecem se propor à “missiva” de elaborar uma
espécie de “alternativa”às duras e tendenciosas doutrinas filosófico-
teológicas originadas na Igreja oriental, com base na Patrística Grega, e
que tomaram um vulto entre os cristãos ocidentais. Ideias de
perspectivas e orientações negativas concernentes aos judeus e ao
judaísmo difundidas desde o Oriente, também no decadente mundo
romano ocidental dos séculos IV e V d.C. Mas, mesmo diante esse
ruidoso ponto acerca dos judeus, sublinha-se que os Padres Gregos
deixaram, também, indeléveis contribuições para a ética e para a
política desse tempo, e como legado à posteridade (cf. MAIA; COSTA,
2007).
Fredriksen (2001; 2010) e Van Oort (2013), cada qual à sua maneira,
explicitam que Agostinho, para isso, precisou realizar uma das mais
bem sucedidas sínteses da história do pensamento cristão, que articulou
e integrou hábil e magistralmente vários elementos concernentes às
questões que enfrentava, que contribuíram com suas argumentações e
Tiago Macedo Bezerra Maia • 113

ideias sobre a temática, na Tradição Greco-Romana e, mas


especialmente,na já milenar Tradição Judaica, com alguns aspectos
paulinos,já “canônicos” desde o primeiro século de um cristianismo
emergente (cf. BROWN, 2005; BOEHNER; GILSON, 1991; COSTA, 1999;
2009; 2012; FITZGERALD, 2001; LE GOFF; SCHMITT, 2006; LOYN, 1991;
MAIA; COSTA, 2005; MAIA, 2018; MIETHKE, 1993; SOUZA, 1995;TRAPÈ,
1994).
É interessante notar que, em várias de suas obras filosófico-
religiosas, apenas para elencar alguns exemplos, como seus títulos já
apontam, sejam elas respostas às polêmicas que travava, como o “Contra
acadêmicos”; formas escritas de apologia do cristianismo, como
“Confissões” ou “Cidade de Deus”; ou de exposição e difusão da doutrina
cristã, como “A Doutrina Cristã” e “A Trindade”; e em escritos de
interpretação e exegese das Escrituras como “Comentários aos Salmos”
e “Comentários ao Gênesis”; e muitas outras, etc., com uma clara veia
paulina, refletem sobre vários aspectos práticos e simbólicos tocantes
ao povo judeu e sua fé. Ou seja, mesmo por vezes sendo tratada
secundariamente, essa tematização também acompanhou a vida e a
produção de Agostinho.
O Bispo de Hipona aceitaria que a legitimidade pública do judaísmo
sofresse alterações substanciais, passando para um status de
inferioridade como religião não legítima em seu tempo, se comparada à
legislação tradicional romana de tempos anteriores relacionada aos
judeus e suas práticas religiosas.
E essa pode ter sido uma viável estratégia agostiniana de grandes
ressonâncias práticas para a cristandade, pois seria um dos pilares
114 • Com Agostinho, e além dele

fundamentais sobre os quais se ergueria e afirmaria a identidade dos


cristãos antigo tardios, com ecos em todo o imaginário do cristianismo
no medievo, através da naturalização ou normalização da supressão ou
negação identitária judaica (BARON, 1968).
Baron (1968) elucida que, a partir da perda de um status público
protegido e legitimado juridicamente, com o tempo, os judeus e o
judaísmo viriam a passar, desde então, por inúmeras limitações e lhes
seriam impostas uma diversidade de maneiras de marginalização,
“temperadas” e catalisadas com e por variadas e reincidentes formas de
repressão e perseguição. O cerco às comunidades e às tradições judaicas
estava se fechando, com o apoio “popular” dos cristãos.
Nesse sentido, nota-se que a afirmação do que é ser, de quem é um
cristão “igual” aos outros cristãos (como identidade), já comportaria,
conformaria e perpassaria uma deliberada exclusão e uma intencional
inferiorização do que é e de quem é o outro “diferente” (como
alteridade), a saber: o judeu.
Para alguns (muitos) cristãos ali situados social e historicamente,
o judeu deveria, se possível e inclusive, “não-ser” mesmo enquanto
outro. E, para realizar esse empreendimento ali gestado e que viria a
autorizar a consequente segregação/eliminação de “não seres” judeus,
ao longo dos anos, muitas foram as técnicas empregadas na história em
várias sociedades, em muitos lugares, em diferentes temporalidades,
das fogueiras às câmaras de gás, qualquer coincidência, guardadas as
proporções sociais, dimensões espaciais, as tecnologias aplicadas,
ressalvando toda analogia anacrônica, não é mera semelhança. Desde o
tempo de Agostinho (com o fortalecimento da relação-aliança Império-
Tiago Macedo Bezerra Maia • 115

Igreja), não só a “sorte” do povo judeu, mas essa semente “antissemita”


foi lançada e, na história, houve de tempos em tempos, a colheita de seus
“podres frutos”.
Nessa época tardo-antiga, o intuito era fazer com que, assim, os
cristãos pudessem vir a ser e viver mais plenamente, mais em paz e
melhor, e até com mais saúde física e espiritual, já na Terra, em sua
jornada da vida, enquanto esperavam pelo Céu, com tal “planejamento”
da exclusão e marginalização gradual dos judeus e uma crescente
proibição e perseguição de suas tradições, das práticas religiosas
judaicas e, no medievo, seria acrescido a tudo isso o veto persecutório
às suas práticas econômicas, etc.. Mais uma vez, reitera-se, eis uma
perigosa e germinal combinação de ideias “propiciatórias” aos
rudimentos do antissemitismo no Ocidente (de atitudes antissemitas)
que já ali começariam a aflorar e reverberariam em toda a história
posterior da humanidade (BARON, 1968).
Mas, a dúbia decisão tomada por Agostinho sobre os semitas, no
ponto da “licitude” religiosa judaica, parece passar a impressão de
acolher tais ideias e políticas imperiais de inferiorização identitária
como uma ambígua forma de proteção pela invisibilidade de um povo
judeu segregado (cf. BARON, 1968; SZOCIK; WALDEN, 2017), e pela
minoritização da identidade religiosa (cf. BURITY; GIUMBELLI, 2020;
BURITY, 2015) do judaísmo. Essa escolha foi impulsionada por uma
conjuntura social, política e cultural do momento específico na história
em que viveu, e de acordo com tal contexto, operou sua escolha como
um “cálculo estratégico” a tentar minimizar as perdas aos semitas (cf.
COSTA, 1999; 2012; BROWN, 2005; GILSON, 2010).
116 • Com Agostinho, e além dele

Portanto, ali se desenhou e realizou um tipo de “ensaio” para um


cenário, nessa e em todas as épocas posteriores, gradualmente excludente
dedicado à produção de uma atmosfera geradora de um sentimento de
ódio crescente aos semitas, manifesto em uma multiplicidade de formas
de punição inscritas e experiência das no âmago da cotidianidade e que
infligiam constantes sofrimentos e perdas aos judeus, além das
supressões e restrições cada vez mais pesadas, arbitrárias e cerceadoras
em torno do judaísmo e de suas práticas de fé(cf. GIL; CORRAL,
2001;KWASNIEWSKI, 2002; LASSNER; TRUBOWITZ, 2008; MAÇANEIRO;
SOUSA, 2020; SZOCIK; WALDEN, 2017; WERTHEIM, 2017).
Em consequência, reforça-se o argumento de que, a partir desse
momento, se iniciou uma antiga e rudimentar prática de “limpeza ou
higienização social”, que viria a se tornar comum na história das
comunidades judaicas, pois foram contra elas investidas. Essa tentativa
de “assepsia” sociopolítica e cultural foi levada a cabo e os semitas foram
sendo invisibilizados ao serem conduzidos e, periodicamente alocados,
em locais marginais de clara segregação, caracterizados por muitas
restrições sociais, precariedades e vulnerabilidades, desde as formas de
sobrevivência (qualidade de vida) às redes de sociabilidade (interações
com não-judeus). Novamente, semelhanças: guetos repletos de párias e
indesejados como forma de “depuração” social e étnica, não foram uma
novidade quando foram aplicados aos judeus pelos nazistas, por
exemplo. Na Antiguidade, por motivos religiosos, depois, na
posteridade, econômicos e raciais.
Baron (1968) mostra que aspectos do dia-a-dia dos judeus foram
amplamente prejudicados ou impedidos e outros arbitrariamente
Tiago Macedo Bezerra Maia • 117

retirados pelas novas leis que passaram à vigência na época, em uma


clara “ofensiva” expressa juridicamente, dos agora aliados Igreja e
Império contra os semitas.
Essas leis foram pensadas, articuladas e aplicadas por cristãos,
líderes eclesiais e políticos em conjunto, no Oriente e Ocidente, com
certa anuência “popular” da cristandade tardo-antiga para com isso,
produziu, em todos os âmbitos da vida social, esses e outros efeitos
práticos de punição e degradação individual e coletiva no povo judeu. As
autoridades religiosas e seculares cristãs pensavam que, em poucos
anos, assim se chegaria à eliminação dos “perigos judaicos”.
Do ponto de vista político-jurídico, a transição de religião legítima
a religiosidade proibida, para o judaísmo, e a consequente “legalização”
das degradantes reprimendas e condições de vida aplicadas aos judeus,
ou seja, o modelo primeiro de tratamento da “questão judaica” teve, no
período tardo-antigo dos séculos IV e V d.C., desse modo, o seu
“acabamento inicial” (mesmo que provisoriamente), de tal modo que
essa realidade social, nesse ponto, também influenciou o arcabouço
filosófico-teológico agostiniano, em especial, da maturidade.
Mas, isso seria uma simples conclusão ou até mera especulação, se
esse aspecto e muitos outros a ele ligados, encadeados e concatenados,
não se mostrassem “agostinianamente” ambíguos e figurando, até certo
ponto, como contradições (aparentes) ou dubiedades (estrategicamente)
presentes em suas reflexões, como uma maneira de justificar
providenciais objetivos maiores e propósitos muito mais louváveis para
os judeus. E isso sem deixar de ser como um convicto pensador do
cristianismo (FREDRIKSEN, 2001; 2010; VAN OORT, 2013).
118 • Com Agostinho, e além dele

Ambiguamente (e até ironicamente para alguns), o Bispo


Agostinho, em meio à construção de sua síntese, reelaborou também o
quadro filosófico e teológico da “questão judaica”, pelas sendas de um
novo olhar sobre os judeus e sua religião, que levaria os cristãos, nos
cinco séculos depois dele (séculos V ao X), a um convívio mais tolerante
e ameno, menos tenso e conflituoso com esse povo semita. Após
Agostinho, essas novas elaborações mais complacentes e menos
agressivas com o povo judeu, se tornaram a Doutrina Oficial da Igreja
sobre a temática durante o Pontificado de Gregório, o Magno (590-604
d.C.).
Agostinho, em alguns de seus primeiros sermões e primeiras
apologias, confrontou e polemizou com judeus de seu tempo (cf.
AGUSTÍN, 1990), mas essa temática não se configuraria ou se
apresentaria com centralidade em suas reflexões iniciais como cristão
(pós conversão), figurando de modo esparso e assistemático, além de
apresentar tom negativo e de enfrentamento “contra” os semitas.
Apenas na sua maturidade o tema viria a ser encarado com mais foco,
maior dedicação e até certa “sistematicidade”, com um tom brando e
mais positivo no que refere ao povo judeu (cf. COSTA, 1999; BROWN,
2005; GILSON, 2010).
As primeiras pregações (sermões) de Agostinho nas quais polemiza
com intelectuais e religiosos judaicos, situa-se no corpus de textos da
cristandade primitiva e tardo-antiga, principalmente, chamado
Adversus Judaeus, contra os (adversários) judeus (em uma tradução
livre). Um conjunto de reflexões e críticas contundentes (por vezes até
impiedosas) de pensadores cristãos de toda a Patrística do Oriente e do
Tiago Macedo Bezerra Maia • 119

Ocidente (Grega e Latina, respectivamente), lançadas contra o judaísmo


e o povo milenarmente praticante dessa fé. Assim, um dos textos desse
começo do cristianismo primitivo e patrístico, de nome homônimo, é de
Agostinho (cf. AGUSTÍN, 1990).
Com seu pensamento exposto nessa compilação, Agostinho sucede,
nos tensos e conflituosos debates com (e contra) os judeus, icônicos
expoentes doutrinários da filosofia e da Patrística já consagrados do e
no cristianismo da Antiguidade Tardia, nomes da grandeza de
Tertuliano (160-220 d.C.), Eusébio de Cesareia (265-339 d.C.) e o
capadócio João Crisóstomo (347-407 d.C.), dentre outros.
Mas, Fredriksen (2001; 2010) e Van Oort (2013) revelam, entre
outras peculiaridades agostinianas quanto aos judeus e o judaísmo, que,
não obstante seu início polemista, o mais impressionante, diferente e
por vezes na contramão de toda a Patrística, é que a doutrina
agostiniana obre os judeus, nas suas mais maduras reflexões, por outro
lado,confere e atribui a esse povo e sua religião um papel específico e
um protagonismo teleológico especial no coração do pensar da sua
maturidade, na sua filosofia – teológica– da história. Inclusive, passa a
argumentar veementemente e postular reiteradamente a “recepção”
dessa “função” escatológica e soteriológica do povo judeu (e do
judaísmo) no interior do cristianismo, para a sua doutrina e para a
Doutrina da Igreja.
Nas suas reflexões maduras, ele pensou um pioneiro significado
positivo à presença judaica em termos cristãos de sua interpretação
histórica (cf. AGOSTINHO, 1991; 1995), reconhecendo-a necessária num
sentido plausível, viável e até útil para a cristandade, para o povo judeu
120 • Com Agostinho, e além dele

e para a humanidade como um todo. Sob essas suas novas lentes sobre
a “questão judaica”, numa unidade compreensiva com a história cristã,
aponta para o passado errante dos judeus e o descumprimento da Lei de
Deus – tensões relacionais com o judaísmo de seu tempo pois negaram
e condenaram a cristo e sua mensagem – e as esperanças para o futuro
da cristandade e dos judeus em um projeto divino de história que levaria
a uma salvação comum (cf. FREDRIKSEN, 2001; 2010; VAN OORT, 2013).
Tal perspectiva, manifesta de forma expressa no pensamento
agostiniano mais maduro, com maior ênfase na “Cidade de Deus” (cf.
AGOSTINHO, 1991; 1995), se coloca em clara oposição às justificativas
filosófico-teológicas, até então válidas, para práticas políticas dos
cristãos contra os judeus e sua fé. A difusão dessas suas ideias implicou,
para as comunidades judaicas, num “alivio”, um “respiro”, um
destensionamento e a configuração, ao menos momentânea, de um
novo e mais brando status social, com a novidade de outro parâmetro
relacional (de sociabilidade e interação) da cristandade ocidental que,
com Agostinho, começou a ser difundido e logo praticado, com relação
aos semitas: a tolerância.
Essa “novidade” agostiniana viria a possibilitar aos judeus, às suas
comunidades e aos adeptos e praticantes de sua religião, uma certa
segurança mais efetiva e vias de sobrevivência menos precárias nas
regiões e jurisdições cristãs e imperiais, pelo menos, nos tempos antigo
tardio e do alto medievo (séculos IV ao V d.C.).
E, antes de aprofundar a reflexão sobre o papel dos judeus na
filosofia/teologia da história de Agostinho, importa ressaltar que
estudiosos do assunto, em um viés de discussão sobre a historiografia e
Tiago Macedo Bezerra Maia • 121

a marcação temporal antigo tardio,consideram que, por toda sua


relevância, e em virtude dos impactos e das transformações
socioculturais e jurídico-políticas que proporcionou na cristandade,
consideram o pensamento agostiniano como um dos principais
“eventos divisores”da Antiguidade, que demarcariam a passagem, a
complexa transição histórica destapara a Idade Antiga e para a Idade
Média (cf. MARROU, 1983).
Aqui, faz-se de grande valia recordar, diante dessa nova e melhor
realidade judaica “agostinianamente construída”, que o hiponense
mostrou uma ambivalente posição por, muitas vezes, em suas ideias
sobre o povo e a religião semita. Por exemplo, se colocou de modo
aparentemente indefinido em situações como a sua aceitação da
inferiorização judaica como afirmação da identidade cristã de um lado,
e o status social de tolerância de outro, ao elaborar os pressupostos de
tal prerrogativa por ele atribuída aos judeus e ao judaísmo, por seu papel
insubstituível na história da cristandade. Seria essa “estratégia dúbia”
só um efeito retórico?
Se por uma mão, para ele, é incompreensível como o povo judeu
vivia a não aceitação, a negação de Jesus Cristo e de seus ensinamentos,
oferecendo-o à cruz romana (ideia que reproduz, nas entrelinhas, a
culpa judaica do Deicídio – “Assassinato ou morte do Deus-Cristo”); em
outra mão, ressoando o legado paulino (de Paulo de Tarso), judeu
convertido cristão que muito o influenciou, em sua maturidade, o
hiponense demonstra respeito, admiração e simpatia pela sociedade,
cultura, história e religião judaicas.
122 • Com Agostinho, e além dele

Nesses momentos, mostra um certo filossemitismo, uma


tendência precursora filossemita tão nítida que não pode ser negada até
por cristãos os mais conservadores e/ou tradicionalistas radicais ou
fundamentalistas, protagonistas da e na história do cristianismo
passado e do presente.
Em situações como essa, o africano culpabiliza Judas Iscariotes e
sua descendência judaica (o discípulo traidor que entregou Cristo à fúria
conspiracionista dos judeus fariseus do Sinédrio) que, alegoricamente e
em seu conjunto, poderiam representar todo o povo judeu, que assim,
por isso, receberia por decorrência a culpa pelo Deicídio e
consequências sobre os judeus recairia. Uma vez mais, destaca-se que
essa era uma representação corrente e recorrente sobre os semitas
entre os cristãos do tempo de Agostinho (BARON, 1968).
Em virtude disso, os cristãos pensavam, por consequência, que o
povo judeu deveria ser punido e até ser amaldiçoado, porventura,
novamente com a escravidão. Nesse momento, Agostinho não poupa
nem os judeus recém-conversos, seus filhos, netos, bisnetos e todas as
gerações posteriores, nem mesmo após a conversão, que estariam
sujeitas à punição de viverem um novo cativeiro (cf. AGUSTÍN, 1990).
É aí que, ao adentrar no pensamento da maturidade de Agostinho
(1991; 1995), logo se percebe a novidade e importância da formulação da
ideia de uma necessária e finalística presença judaica nas reflexões
filosófico-teológicas agostinianas da história. Isso se faz angular como
um dos mais importantes vetores determinantes das implicações
sociais, culturais e, principalmente, político-jurídicas, que darão uma
“solução provisória” voltada para a tolerância, que terá validade prática
Tiago Macedo Bezerra Maia • 123

por alguns séculos, sobre as relações do cristianismo com o povo judeu


e com o judaísmo (cf. FREDRIKSEN, 2001; 2010).
Van Oort (2013) explicita que o resultado prático do impacto e da
consolidação desse pensamento agostiniano na doutrina da Igreja é que,
por algum tempo, na teoria, não mais se ameaçaria a vida de judeus
individualmente ou em massas coletivas de suas comunidades, e nem
haveria, de modo algum, compulsoriedade, obrigatoriedade e nem
imposições que levassem à conversão dos mesmos ao cristianismo.
O fato é que, nas ideias filosófico-teológicas de Agostinho (cf. 1991;
1995) sobre a história, os judeus são protagonistas finalísticos de uma
missão: receber, guardar, preservar e repassar a “titularidade” da Lei de
Deus e seus princípios para o cristianismo.Uma função mais que
honrosa e essencial dentro da nova perspectiva agostiniana, que
permeia de sentido a necessidade e utilidade da presença judaica na
História Sagrada. Uma função dentre as principais, para e na teleologia
filosófico-teológica agostiniana (cf. FREDRIKSEN, 2001; 2010; VAN
OORT, 2013).
Nesse ponto de sua argumentação, o Bispo Africano indica outros
elementos de filossemitismo e a sua precedência precursora entre
pensadores cristãos da Patrística, pois, ao tratar desse protagonismo
finalístico judaico na “Economia da Salvação” da História Sagrada
(soteriológica e escatologicamente), também e principalmente, o são (ou
pelo menos assim devem ser) para os cristãos. O hiponense, inclusive,
passa a inserir termos e palavras com significados “judaizantes”, em seu
vocabulário e corpus filosófico-teológico.
124 • Com Agostinho, e além dele

Nota-se, porém, que Agostinho, inicialmente, encontrou-se em


meio a posições aparentemente dispensacionalistas (que separa os
papéis do povo judeu e dos cristãos, em seus “marcadores” de funções
específicas em cada etapa histórica, e por toda a história).
Mas, eis que uma outra compreensão supersessionista surge em
Agostinho, ou seja, uma “teologia/filosofia da substituição”, na qual
Israel e seu povo seriam substituídos pela Igreja e os cristãos
respectivamente, ou seja, o judaísmo seria superado pelo cristianismo
portanto, e isso se realizaria no fluxo da história, devendo essa
“condição” dos “eleitos” se realizar, antes do final dos tempos e como
preparação para o Juízo.
Não obstante, um ponto de fulcral importância para esse capítulo,
é a constatação de que o hiponense lança mão, em aparente paradoxo e
também pioneiramente, de vocábulos judaicos (como já mencionado em
parágrafos anteriores), mas escritos em sua forma latina, e aplicados
numa interpretação não literal, mas alegórica, termos como Jerusalém,
Israel, Templo, Povo Eleito, Sinai, etc. Mais uma vez, reitera-se e
sublinha-se o caráter filossemita dessa sua atitude de recepção para
com tais elementos tão usuais na religião, na cultura e vida social
judaicas.
A partir daí, o povo judeu, o judaísmo e a sua presença na história
salvífica, vieram a nela figurar e parece terem sido considerados, por
Agostinho (1991; 1995), como cruciais nas suas elaborações reflexivas
teológico-filosóficas relativas aos semitas, no seu pensamento maduro.
Mesmo que não reconheçam a Cristo como Filho de Deus e o seu
Messias Salvador por eles milenarmente esperado, o povo judeu
Tiago Macedo Bezerra Maia • 125

participa ativamente e como protagonistas especiais, da economia da


salvação agostiniana, tendo uma finalidade premente e sendo
incontornavelmente necessários, precipuamente funcionais e úteis a
Deus, portanto (cf. FREDRIKSEN, 2001; 2010; VAN OORT, 2013).
Nas compreensões escatológica soteriológica de Agostinho (cf.
1991; 1995), a história é particionada em quatro fases ou etapas de modo
que esses momentos se desvelariam a) anteriormente à Lei do Sinai, b)
após a recepção da Lei Mosaica, c) Tempo da Graça e conversão iniciado
com a 1ª vinda de Cristo e d) Tempo da Paz, que se iniciará com a 2ª
vinda de Cristo e o Juízo Final (cf. FREDRIKSEN, 2001; 2010; VAN OORT,
2013; GILSON, 1965; LETTIERI, 1988).
Nos termos desta perspectiva escatológica agostiniana, os judeus
que nela se situam como essenciais, foram os receptores da Lei revelada
por Javé, o próprio Deus a Moisés no Monte Sinai, na primeira etapa
histórico-salvífica, e foram aqueles que a preservaram e a transmitiram
na segunda etapa do processo de salvação coletiva na história.
Para Agostinho (cf. 1991; 1995), os seres humanos não são do
mundo, mas estão nele como que peregrinando (homo viator) nas searas
e veredas do tempo, em busca da reconciliação para com Deus, após a
queda do paraíso edênico e do estado de intimidade inicial Criador-
criatura que lá viveram, e perderam desde Adão, com o pecado original.
Diferentemente da Tradição Greco-Romana da Antiguidade
Ocidental, pautada na noção circular de eterno retorno (circular), a
concepção da Tradição Judaico-Cristã, nos tempos da Patrística tardo-
antiga e tal como expressa por Agostinho em sua ideia de história, que
126 • Com Agostinho, e além dele

com direcionamento linear-ascendente (espiralada), passa a ter um


outro e novo sentido e teleologia (cf. COSTA, 2012; GILSON, 2010).
Como alternativa à casualidade e, por vezes, aleatoriedade do
destino e à ciclicidade histórica, tal como concebida pelos antigos
gregos e romanos, Agostinho (cf. 1991; 1995) coloca a amorosa
Providência Divina como “fonte” e principal fator impulsionador da
história que lhe dá um sentido de ascendência, de subida a Deus, uma
finalidade salvífica para o tempo dos “humanos peregrinos” (cf.
GILSON, 1965; LETTIERI, 1988).
A “questão judaica”, então, nessa sua maturidade reflexiva, deixa
de ser secundária e é enfrentada com uma certa centralidade no
pensamento agostiniano maduro. Trata-se de um aspecto providencial,
imprescindível e necessário para a sua compreensão de um sentido
teleológico para a e na história (cf. VAN OORT, 2013).
Mesmo tendo transgredido, negligenciado e até negado em
momentos distintos da história a ambas manifestações divinas (a Lei e
a Cristo), os judeus (e também as comunidades judaicas e o judaísmo)
passam a gozar de um papel de expressão, digno de admiração e
destaque, no núcleo do pensamento filosófico-teológico agostiniano
sobre a história. Eis mais uma demonstração de um pioneiro
filossemitismo do Bispo de Hipona.
Mas, dubiamente, o Santo Doutor menciona, em mais um fulcro de
“teologia da substituição”, que, próximo ao Juízo, finalmente, o
judaísmo seria substituído pelo cristianismo, o povo judeu pelos
cristãos, e no seu ponto nevrálgico e dorsal, o Templo substituído pela
Igreja, para a realização plena da história da salvação. Ao mesmo tempo,
Tiago Macedo Bezerra Maia • 127

porém, introduz aí uma ideia alargada de “testemunho” como categoria


aplicada à compreensão da presença judaica na história cristã (cf.
FREDRIKSEN, 2001; 2010).
Assim, Agostinho (1991; 1995) passa a ver o povo judeu como um
“povo testemunha”, cuja presença histórica também tem a
função/finalidade de testemunhar, antes, durante e depois de Cristo e
do cristianismo, os desígnios de Deus, seja na preparação para a 1ª vinda
(tempo da graça e reconciliação) ou para a 2ª vinda de Cristo (juízo final
e tempo da paz), sendo essenciais também com isso, para o processo
salvífico da humanidade, na história, do ponto de vista agostiniano (cf.
FREDRIKSEN, 2001; 2010; VAN OORT, 2013).
Os judeus devem, portanto, sobreviver a todas as restrições,
perseguições e massacres que sofrem e sofreram durante a passagem
do tempo e das 4 fases (etapas) históricas, pessoal e comunitariamente.
Assim seria para que pudessem testemunhar e anunciar Javé e Cristo
através das Escrituras, já que os Textos Sagrados os põem em um fio
condutor de sentido histórico “comum” pois o Antigo Testamento
prepararia para o Novo Testamento na perspectiva agostiniana.
Para Agostinho (1991; 1995), em última instância, os judeus existem
para que seja salva a Igreja e através desta, a humanidade cristã, pois
fora dela não haveria plena salvação (“Ex Ecclesiam, nulla salus est”), já
que, no final dos tempos, até o povo judeu nela se integraria (como
teologia da substituição ou supersessionismo). A sua diáspora no
mundo, seria uma parte angular e providencial de semeadura do
testemunho judaico, pois teriam a oportunidade de levar Javé e Cristo,
juntos, através das Escrituras, aos 4 cantos da Terra.
128 • Com Agostinho, e além dele

À GUISA CONCLUSIVA

Após Agostinho, a queda de Roma em 473 d.C., e a consolidação do


poder da Igreja na Alta Idade Média (séculos V ao X d.C.), a moderação
do Bispo de Hipona terá muitos adversários no seio da cristandade,
principalmente entre os Escolásticos (mas só a partir do ano 1000 d.C.,
terão início políticas compulsórias de conversão e eliminação dos
judeus), ou seja, nos primeiros cinco séculos do medievo, a doutrina
agostiniana será um balizador para uma “convivência” mais branda e
tolerante, menos restrita e hostil, dos cristãos do Ocidente com o povo
judeu em diáspora.
Mesmo não sendo vivenciada do mesmo modo em todos os lugares
e em todo esse tempo de cinco séculos, com certeza, foi o pensamento
filosófico-teológico agostiniano, de acento filossemita, por vezes
assertivo e nítido e algumas vezes ambivalente e difuso, no concernente
à história e suas implicações e reverberações sociopolíticas e jurídicas,
que favoreceu e protegeu a vida de muitos judeus nesse momento
histórico de contínuas instabilidades, principalmente, nas relações
judaico-católicas da época.
Esse texto procurou situar o pensamento agostiniano
analogicamente (mas não anacronicamente), em dois pontos
fundamentais, na medida em que avança na sua compreensão do papel
dos judeus e do judaísmo na história e seu sentido. Ele gradualmente se
aproxima do que atualmente se chama de filossemitismo e, não obstante
suas muitas ambivalências, suas reflexões desvelam características que
podem ser identificadas como (“proto”-) filossemitas.
Tiago Macedo Bezerra Maia • 129

Por isso, foi feita a sugestão de, com relação ao tema, posicioná-lo
também aqui, na perspectiva de um pensador “avant la lettre" (como em
grande parte de suas reflexões à frente de seu tempo) e precursor, em
mais esse ponto de suas reflexões, a “Questão Judaica”, como talvez o
mais avançado e “atual” dentre os filósofos e os teólogos da Patrística.
Agostinho tinha consciência da situação caótica vivida e o desamparo
experienciado pelos judeus de seu tempo, bem como da dura realidade
que a doutrina da Igreja vigente os expunha.
O Bispo Africano não poupou esforços para lhes conferir um outro
lugar de protagonismo essencialmente necessário, inserindo-os na sua
ideia e sentido de história cristã, possibilitando-lhes, com isso, novas
maneiras de se relacionar e conviver com os cristãos em uma tolerância
político-religiosa e sociocultural que viria a ser praticada nos cinco
séculos seguintes como a doutrina “católica” vigente sobre os judeus e
o judaísmo durante a Alta Idade Média.

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A MÚSICA DE SANTO AGOSTINHO: O ELO ENTRE
6
A BELEZA TERRENA E A SUPREMA BELEZA
Janduí Evangelista de Oliveira 1

“Assim, as coisas terrenas, subordinadas às celestes, associam os


movimentos de seu tempo, graças a sua harmoniosa sucessão, por assim
dizer, ao Cântico do Universo”
(AGOSTINHO, Sobre a música, VI, XI, 29)

INTRODUÇÃO

A música não é apenas combinação de sons. Ela é modo pelo qual o


homem compreende a si mesmo, os outros, o mundo e Deus. Todavia,
enxergamos um problema quanto ao emprego da música na atualidade,
onde

[...] a paisagem sonora moderna tem estimulado o desejo por ruído. Com o
aumento dos níveis sonoros nos ambientes de trabalho e nas ruas, também
foram procurados níveis mais altos de sons, tanto nas músicas como nas
atividades recreativas (SCHAFER, 2009, p. 16).

A partir daí a música se limita a um simples produto destinado ao


lazer que, ao invés de contribuir para o desenvolvimento integral do ser
humano, termina por desconectá-lo de si mesmo, dos outros e da
realidade sobremaneira que limita a experiência musical apenas à sua

1
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba. Professor efetivo na Secretaria de Estado da
Educação e da Ciência e Tecnologia (SEECT) da Paraíba e professor substituto no Departamento de
Filosofia da Universidade Estadual da Paraíba - Campina Grande. E-mail para contato:
janduiomi@hotmail.com
Janduí Evangelista de Oliveira • 135

condição corporal, esquecendo a dimensão intelectiva, afetiva, social e


política. Por isso, é necessário reaprender a ouvir música, aprofundar
seu sentido a partir da sensibilização do ouvido para fruir do complexo
mundo da música.
Nesse intuito, objetivamos com o presente texto fomentara
experiência musical como instância promotora do desenvolvimento
integral do ser humano que se dá a partir da ampliação de nossa
capacidade sensitiva que não limita o valor da música ao prazer sensível,
mas que vislumbra o supra sensível. Neste propósito, as reflexões de
Agostinho sobre a música nos servirão de suporte uma vez que interliga
a música terrena à música celeste. Para tanto, far-se-á uma discussão
inicial da música enquanto ciência liberal – a partir do diálogo Sobre a
Ordem – para num segundo momento, mostrar a música numa
perspectiva propriamente filosófica, com a análise do diálogo Sobre a
musica, ambos de autoria de Agostinho.

6.1 A MÚSICA NO DIÁLOGO SOBRE A ORDEM

No diálogo Sobre a Ordem encontramos as primeiras reflexões de


Agostinho sobre a música. Na qualidade de arte liberal, ela favorece a
resolução do problema da ordem do Universo que se ver confrontada
pela desordem observada no mundo sensível, mais precisamente, no
mal praticado nas ações humanas particulares. Para tanto, a música
desempenha um papel importante justamente porque favorece o
autoconhecimento que nesse contexto é tomado como condição
necessária à vida virtuosa.
136 • Com Agostinho, e além dele

Para conhecer-se a si mesmo, ele precisa de um ótimo modo de viver, para


afastar-se dos sentidos, refletir em si mesmo e manter-se em si mesmo.
Alcançam isto somente aqueles que, ou cauterizam pelo retiro de certas
feridas de opiniões que o curso da vida quotidiana lhes inflige, ou as
medicam pelas artes liberais (AGOSTINHO, Sobre a ordem, I, I, 3, 2008, p.98).

Assim, a música funciona como um fármaco que cura os males


internos ao mesmo tempo em que favorece o acesso à ordem geral do
universo, que em sua perfeita unidade encontra-se ancorada e impressa
na alma humana. Por conseguinte, se desenvolve a capacidade de evitar
o deleite na multiplicidade do mundo, bem como, a formação da unidade
necessária ao perfeito funcionamento de todas as coisas e à boa vida.

[...] a erudição moderada e parcimoniosa nas disciplinas liberais, Licêncio,


nos torna mais resolutos, mais perseverantes e amantes mais agradáveis
para abraçar a verdade, para desejá-la mais ardentemente, segui-la com
mais constância e, finalmente, apegar-nos com mais doçura à vida feliz
(AGOSTINHO, Sobre a ordem, I, VII, 24, 2008, p.108).

Então, na condição de instância formadora de determinadas


virtudes, a música acaba por colocar o homem em harmonia com a
ordem universal, a causa última donde tudo provém ordenadamente.
Para Agostinho, “[...] a ordem é aquilo que, se a conservarmos em nossa
vida, nos leva a Deus e, se não a conservarmos em nossa vida, não
chegaremos a Deus” (Sobre a ordem, I, IX, 27, 2008, p.110). Por isso, a
desordem terrena se constitui num bloqueio para a ordem Universal e
uma convergência para o mal, e por isso, pode ser evitada a partir da
experiência musical autêntica.
Janduí Evangelista de Oliveira • 137

A razão atua na música por meio da métrica, base de toda harmonia


e que também se faz presente na dança ou qualquer movimento
cadenciado dos membros. Pois,

[...] o movimento rítmico deleita os sentidos, enquanto a alma se deleita


somente na bela significação captada no movimento por meio dos sentidos.
Isto se nota também mais facilmente nos ouvidos, pois o que soa
agradavelmente agrada e atrai a audição, mas o bom significado que se
apresenta por meio do som, como mensageiro dos ouvidos, refere-se
somente à mente (AGOSTINHO, Sobre a ordem, II, XI, 34, 2008, p.137).

Logo, o prazer sensível que se experimenta na música funciona


como auxílio na superação das deficiências humanas que não
conseguem penetrar e contemplar diretamente a verdadeira beleza. E
assim, usando os sentidos como intermediários e associados entre si, o
entendimento contemplam a ordem universal da qual a virtude decorre.
Dessa maneira, a música promove a gradação racional do prazer na
medida em que através dos sons percebidos na audição, mostra que seu
verdadeiro valor se dá, justamente, porque eles são ornados com certa
medida de tempos e com uma variedade de combinação de acentos
agudos e graves que a gramática instituiu ao dar os nomes de pés 2

métricos. Assim, os sons e as palavras passaram a ter maior importância


através do trabalho do poeta, porque seja nos ritmos , seja na mesma 3

modulação musical, tudo está dominado pelos números (as cadências),


ou ainda a ordem, que a tudo completa. Nesse sentido, Agostinho

2
O pé métrico é o conjunto de sílabas em relação numérica entre si.
3
O ritmo, chamado também de número, é a combinação dos pés que permite a união entre si sem um
limite definido.
138 • Com Agostinho, e além dele

[...] descobriu que havia números divinos e eternos, principalmente que,


com a ajuda deles, ela havia elaborado tudo o que foi dito acima. E já se lhe
tornava difícil tolerar que o esplendor e a suavidade dessas coisas se
turvassem pela matéria corporal das vozes (Sobre a ordem, II, XIV, 41, 2008,
p.140).

Ao que acresce depois: “Assim esta disciplina, que participa do


sentido e da inteligência, recebeu o nome de música” (AGOSTINHO,
Sobre a ordem, II, XIV, 41, 2008, p.140-1). Por isso, na experiência musical,
a beleza a ser buscada é aquela fundada na ordem universal, pois suas
figuras estão perfeitamente permeadas pelas medidas e pelos números
eternos . Só assim, a música afeta a alma convenientemente, quer dizer,
4

quando segue os verdadeiros vestígios da razão, da ordem universal,


presentes no prazer sensível.

6.2 A MÚSICA NO DIÁLOGO SOBRE A MÚSICA

Como vimos, o sentido inicial da música no pensamento de


Agostinho, é aquele herdado da antiguidade clássica que vê a música
como ciência que designa as três artes do movimento: a palavra, o canto
e a dança. É nesse sentido que a música apareceu no diálogo Sobre a
ordem e estendeu-se pelos cincos livros iniciais do Sobre a musica.

6.2.1 A MÚSICA ENQUANTO ARTE LIBERAL

No diálogo Sobre a musica, Agostinho começa afirmando que o


estudo do som, não compete à outra ciência, senão à ciência musical que

4
Para aprofundamento dessa questão, consultar Livro XI das Confissões de Agostinho.
Janduí Evangelista de Oliveira • 139

ele define nestes termos: “A música é a ciência de modular bem” (Sobre


a música, I, II, 2, 1986, p.73) e acrescenta depois:
5

A música é a arte do movimento ordenado. E se pode dizer que tem


movimento ordenado tudo que se move de forma harmoniosa, guardadas as
proporções de tempos e intervalos (já, de fato, deleita-se, e por isso pode ser
chamado de modulação sem nenhum inconveniente); mas pode acontecer,
por outro lado, que essa harmonia e proporção causem deleite, quando isso
não é necessário. Por exemplo, se alguém que canta com voz doce e dança
com graça querendo com isso causar diversão, quando a situação exige
seriedade, não emprega bem, por certo, a modulação harmoniosa; isto é,
pode-se dizer que tal artista faz mau uso, isto é, usa inconvenientemente,
do movimento, que é bom justamente, porque foi feito de modo harmonioso
(AGOSTINHO, Sobre a música, I, III, 4, 1986, p.78-9) 6.

Portanto, a música é uma ciência verdadeiramente liberal com


papel bem definido, isto é, o de promover a vida virtuosa. Nesse
domínio, a experiência musical pode ocorrer na perspectiva da verdade
bem como na ótica da imitação: a perspectiva da imitação a música se
circunscreve na dimensão corporal, no prisma da verdade ela fala à
razão/alma.Em vista disso, Agostinho diz que a natureza deu a todos o
sentido da audição pelo qual se distingue a música boa da música ruim 7.
Dando com isso, a clara indicação de que as noções racionais das artes

5
“Música es la ciencia de modular bien” (AGUSTIN, La música, I, II, 2).
6
“La música es el arte del movimiento ordenado, Y se puede decir que tiene movimiento ordenado todo
aquello que se mueve armoniosamente, guardadas las proporciones de tiempos e intervalos (ya, en efecto,
deleita, y por esta razón se puede denominar ya modulación sin inconveniente alguno); pero puede ocurrir,
por otra parte, que esa armonía y proporción cause deleite cuando no es necesario. Por ejemplo, si alguien
que canta con voz dulcísima y danza con gracia quiere con ello causar diversión, cuando la situación reclama
seriedad, no emplea bien, por cierto, la modulación armoniosa; es decir, puede afirmarse que tal artista
emplea mal, o sea, inconvenientemente, ese movimiento, que es ya bueno por el hecho de que es armonioso
(AGUSTIN, La música, I, III, 4, 1986, p.78-9).
7
Mal modulada, carente de harmonia e que não fala à interioridade humana.
140 • Com Agostinho, e além dele

são inatas, (Cf. AGOSTINHO, Sobre a música, I, VI, 12, 1986, p.95) 8.Ao que
acresce depois: “Vamos chamar, portanto, se concordamos, racional
para os movimentos que são mensuráveis uns aos outros; irracional, por
outro lado, aqueles que carecem dessa medida” (AGOSTINHO, Sobre a
música, I, IX, 15, 1986, p.99) 9. Por isso, toda medida e proporção se
antepõem com razão ao excesso e ao ilimitado, visto que os que não
guardam medida e proporção não se unem entre si por nenhuma razão.
Por conseguinte, haverá maior harmonia nos movimentos racionais,
que são iguais entre si, que entre aqueles que não guardam a medida
nem a proporção. Por conseguinte, até mesmo o prazer sensível não
ocorre em qualquer harmonia, pois os sentidos são mais abertos a
determinadas combinações harmônicas, melódicas e rítmicas.
Portanto, os vestígios musicais encontrados na mente e nos objetos
sensíveis torna possível o processo que vai da beleza terrena até a
Suprema beleza. Por isso, os ritmólogos e metrólogos da Antiguidade
insistiam que o ritmo deve ter um limite claro, determinado e concreto
de maneira que a duração do movimento não seja muito longa. Todas
essas relações se fazem visíveis porque a preocupação com a unidade,
chave da arte europeia, sempre esteve presente na obra de Agostinho.
Assim, o músico deve decidir pela razão, a duração de cada sílaba
no verso e distribuí-la convenientemente, uma vez que a medida das
palavras deve chegar aos ouvidos, conforme o ritmo requer

8
“Por esta razón explica ya, si te place, esa disciplina de tan alto rango que ya no me puede parecer un arte
vulgar” (AGUSTIN, La música, I, VI, 12, 1986, p.95).
9
“Llamemos, por tanto, si estamos de acuerdo, racionales a los movimientos que son entre sí mensurables;
irracionales, por otro lado, los que carecen de esa medida” (AGUSTIN, La música, I, IX, 15, 1986, p.99).
Janduí Evangelista de Oliveira • 141

naturalmente. Assim agindo, ele fará com que os sons dos versos
percebidos pelos ouvidos provoquem o prazer que lhe é devido.
Porquanto, não são propriamente os sons que causam o deleite da alma,
mas a ordem na qual estão submetidos.
Por isso, conforme se leu no Livro V do Sobre a musica, não basta
unicamente o peso da autoridade, na música o que conta é o peso e a
certeza da razão. Consequentemente, o que encanta o ouvido é
precisamente a simetria harmoniosa na qual a música é feita. Porque a
razão aponta para o que é essencial no ordenamento das partes. Neste
domínio, escreve:

A própria razão serviu como um guia seguro, porque, como não há nada
melhor que a igualdade e você tem que procurá-la na divisão, se não puderes
conseguir, somos forçados a buscar sua aproximação, para não ficar
excessivamente longe dela (AGOSTINHO, Sobre a música,V, IV, 7, 1986,
p.255) 10.

Dado o exposto, vejamos agora aparte da música que se encontra


para a além da medida e da proporção, isto é, além dos traços sensíveis
“[...] e com toda delicadeza possível, chegamos àquelas moradas íntimas,
onde ela está livre de toda forma corpórea” (AGOSTINHO, Sobre a
música, V, XIII, 28, 1986, p.283) . 11

10
“La razón misma te ha servido de guía segura. Porque, como nada hay mejor que la igualdad y hay que
buscarla en la división, si no se pudiere conseguir estamos obligados a buscar su aproximación para no
alejarnos excesivamente de ella” (AGUSTIN, La música, V, IV, 7, 1986, p.255).
11
“[…] con toda nuestra finura posible, lleguemos a esas íntimas moradas donde ella está libre de toda forma
corpórea” (AGUSTIN, La música, V, XIII, 28, 1986, p.283).
142 • Com Agostinho, e além dele

6.2.2 DEUS, FONTE E LUGAR DOS NÚMEROS ETERNOS

Com efeito, o Livro VI do Sobre a música de Agostinho nos apresenta


sua reflexão propriamente filosófica sobre a música. “Por isso, a métrica
deixa de ser a preocupação fundamental e, em seu lugar temos as
investigações metafísicas sobre a natureza da sensação e da beleza
musical” (FAGUNDES, 2014, p. 64).
Nessa continuação, na intenção de solucionar o problema da
percepção do ritmo, Agostinho os classificou da seguinte forma: 1) os
ritmos sonoros, isto é, o ritmo do som como um fenômeno físico, o som
escutado; 2) os ritmos entendidos ou sentidos, ritmos da atividade
humana quando são pronunciados, concebidos no pensamento, durante
a respiração e no batimento do coração. Tal ritmo é obra da alma, pois
não necessita dos ritmos sonoros, do ouvido e da memória, podendo ser
alterado de acordo com a vontade; 3) os ritmos de memória, oriundos dos
demais ritmos, é formado a partir do ritmo ouvido ou concebido no
pensamento, este, permanece impresso na memória; 4) os ritmos
pronunciados, aqueles que a alma expressa através da voz, movimentos
do rosto e do corpo ou por meio de um instrumento e por fim, 5) os
ritmos de juízo, que nada mais são que a capacidade inata de avaliar o
movimento ou harmonia.
Assim, ao se referir aos ritmos de juízo diz Agostinho: “Portanto,
aquela potência pela qual aceitamos os sons harmônicos e rejeitamos o
estridente, faz com que o verso acaricie com o mesmo gênero rítmico os
Janduí Evangelista de Oliveira • 143

ouvidos (Sobre a música, VI, II, 3, 1986, p.289) 12. Mas, essa potência
natural que atua como uma força decisiva nos ouvidos, não deixa de
existir no silêncio nem nos introduz o som, mas é captada por ele (o
ouvido) como digno de aprovação ou reprovação.Para tanto, duas coisas
são necessárias: primeiramente que os ritmos que estão no próprio som
podem existir sem aqueles que estão no próprio ato de ouvir, enquanto
os segundos não podem existir sem aqueles primeiros. Para mais, é
necessário ainda considerar um terceiro gênero de ritmo, aquele que
está na própria atividade do recitador.

É manifesto que, esses ritmos estão em uma certa atividade do espírito; uma
atividade que, uma vez que não produz som ou afeta os ouvidos, mostra que
esse gênero pode existir sem esses dois, dos quais um está no som e o outro
no ouvinte quando ouve (AGOSTINHO, Sobre a música, VI, III, 4, 1986,
p.290) 13.

Então, a alma produz esses ritmos exatamente porque eles estão


na memória e quando nos movemos para outros pensamentos os
deixamos novamente como que depositados em suas seções remotas.
Ademais, sua permanência na memória não depende necessariamente
dos demais ritmos, o que nos leva crer que há gêneros, que são mais
excelentes que outros. Consequentemente, por serem mais elevados que
outros, sua duração no tempo não está limitada à percepção sensível.

12
“Por tanto, aquella potencia por la que aceptamos los sonidos armoniosos y rechazamos los estridentes,
hace que el verso acaricie con un mismo género rítmico los oídos” (AGUSTIN, La música, VI, II, 3, 1986, p.289).
13
“Es cosa manifiesta que estos ritmos están en una cierta actividad del espíritu; una actividad que, como no
produce ningún sonido ni pone afección alguna a los oídos, muestra que este género puede existir sin aquellos
dos, de los que uno está en el sonido y el otro en el oyente cuando oye” (AGUSTIN, La música, VI, III, 4, 1986,
p.290).
144 • Com Agostinho, e além dele

De outra parte, o corpo pode de atuar sobre a alma, apesar da sua


condição de inferioridade. No entanto, o corpo “[...] tem uma beleza
própria em seu modo de ser, e por isso mesmo a dignidade da alma é
suficientemente estimável, e nem o castigo e nem a enfermidade dele
consegue retirar o legado de certa beleza” (AGOSTINHO, Sobre a música,
VI, IV, 7, 1986, p.295) 14. Então, a sensação em si é um bem, e enquanto
tal, coloca o ser humano numa condição privilegiada aos demais seres,
principalmente daqueles que carecem de sensação.
Voltemos à discussão sobre os ritmos para acrescentar que
Agostinho os classifica ainda da seguinte forma: os ritmos sonoros são
chamados de números de julgamento; os ritmos entendidos ou sentidos,
números proferidos; os ritmos de memória, números entendidos; os ritmos
pronunciados, números recordáveis e os ritmos de juízo, números sonoros
(Cf. AGOSTINHO, Sobre a música, VI, VI, 16, 1986, p.310) 15. E numa clara
referência aos números de julgamentos, diz: “Assim, é claro que esses
números, que ocupam alta presidência por sua posição de juízes, não
estão ligados pela duração do tempo” (AGOSTINHO, Sobre a música, VI,
VII, 17, 1986, p.310) 16. Todavia,

[...] esses números de julgamento estão contidos em certos limites de


durações temporárias, que eles não podem exceder quando julgam, e tudo o

14
“[…] tiene él una belleza propia de su modo de ser, y por esto mismo hace suficientemente estimable la
dignidad del alma, y ni el castigo ni la enfermedad de ésta logró despojarle del legado de una cierta belleza”
(AGUSTIN, La música, VI, IV, 7, 1986, p.295).
“Llámense, por tanto, los primeros ritmos números de juicio; los segundos, números proferidos; los terceros,
15

números entendidos; los cuartos, números recordables; los quintos, números sonoros” (Cf. AGUSTIN, La
música, VI, VI, 16,1986, p.308).
16
“Así, pues, está claro que estos números, que ocupan alta presidencia por su rango de jueces, no están
ligados por la duración de tiempos” (AGUSTIN, La música, VI, VII, 17,1986, p.310)
Janduí Evangelista de Oliveira • 145

que excede esses espaços, não podem ser abarcado por ele para emitir seu
julgamento (AGOSTINHO, Sobre a música, VI, VII, 18, 1986, p.310) 17.

Portanto, devida a sua própria natureza, os números de julgamento


adquirem uma posição de destaque relação aos demais exatamente
porque todos eles são subjugados ao seu domínio. Consequentemente, o
que impede e afasta o homem da desordem é uma espécie de mensagem
silenciosa que confere harmonia e intimidade com a ordem universal
que se converte no reto julgamento, que indica a causa de todas as
coisas, inclusive de toda harmonia e concórdia.
De outra parte, os números entendidos estão igualmente sujeitos aos
números de julgamento para serem apreciados e, de fato são, na medida
em que são subsidiados pela memória:

Há também outra indicação pelo que podemos perceber, penso eu, que um
movimento presente da alma já existiu alguma outra vez em nós, ao que
vale a pena dizer como reconhecê-lo, quando sob uma espécie de luz
interior comparamos os movimentos recentes de sua atividade, na qual nós
encontramos no momento da lembrança, com aqueles outros movimentos
memoráveis, já mais sossegados; e essa classe de conhecimento é
reconhecimento e recordação (AGOSTINHO, Sobre a música, VI, VIII, 22, 1986,
p.317-8) 18.

17
“[…] estos números de juicio están contenidos en ciertos límites de duraciones temporales, que no pueden
sobrepasar cuando juzgan, y todo cuanto excede estos espacios, no pueden ellos abarcarlo para emitir su
juicio” (AGUSTIN, La música, VI, VII, 18, 1986, p.310).
18
“Hay también otro indicio por el que podemos percibir, pienso yo, que un movimiento presente del alma ha
estado ya alguna otra vez en nosotros, lo que vale tanto decir como re-conocerlo, cuando bajo una especie
de luz interior comparamos los movimientos recientes de su actividad, en la que nos hallamos en el momento
de recordar, con aquellos otros movimientos recordables, ya más sosegados; y esta clase de conocimiento es
el reconocimiento y la recordación” (AGUSTIN, La música, VI, VIII, 22, 1986, p.317-8).
146 • Com Agostinho, e além dele

Como resultado, os números da memória também estão


subordinados aos números de julgamentos, da mesma forma que os
números de ação e os números entendidos, ou até mesmo com ambos, que
trazem à luz, por assim dizer, de seus lugares ocultos para ligá-los outra
vez à memória, recuperam o que de certo modo foi apagado. Então,
quando os sons afetam o ouvido formulamos nossa apreciação através
da memória e dos números de juízo especialmente.
Com isso, Agostinho mostra Deus como fonte das harmonias
eternas e, para tanto, os números de julgamento são estudados no intuito
de descobrir a existência racional dessas harmonias superiores. E ainda
que nesses números não seja possível identificar os espaços de tempo,
seu julgamento é possível porque de qualquer forma, eles ocorrem num
certo período de tempo, pelo menos naqueles que podem se reproduzir
da memória. Nesse domínio, diz:

Mas eu penso que, quando se canta o verso que nós temos citado: Deus
creator omnium (Deus, criador de todas as coisas), estamos ouvindo-o por
meio de números entendidos, reconhecemos por aqueles da memória,
pronunciamos pelos proferidos e sentimos prazer graças àqueles de
julgamento; e eu não sei através de que outros números nós o apreciamos;
e partindo desse prazer experimentado, que é como uma decisão
espontânea do número de julgamentos, emitimos sobre o dito prazer uma
sentença muito mais firme, de acordo com essas harmonias mais ocultas
(AGOSTINHO, Sobre a música, VI, IX, 23, 1986, p.320) 19.

19
“Mas yo pienso que, cuando se canta el verso que nosotros hemos citado: Deus creator omnium (Dios,
creador de todas las cosas), lo estamos oyendo por medio de los números entendidos, lo reconocemos por los
de la memoria, lo pronunciamos por los proferidos y sentimos placer gracias a los de juicio; y no sé a través
de qué otros números lo valoramos; y partiendo de ese placer experimentado, que es como una decisión
espontánea de los números de juicio, emitimos sobre dicho placer una sentencia mucho más firme, de
acuerdo con esas armonías más ocultas” (AGUSTIN, La música, VI, IX, 23, 1986, p.320).
Janduí Evangelista de Oliveira • 147

Portanto, a sensação torna-se uma forma da vida do espírito,


resultado da ação da alma sobre si mesma, determinada em virtude de
sua atenção às sensações do corpo, que ela vivifica, e não de uma ação
desempenhada pela matéria sobre uma alma inerte.

E se, com razão, nos havia parecido que, a sensação de prazer não estivesse
impregnada por si mesmo de certas harmonias, não poderia de modo algum
acomodar intervalos perfeitamente iguais e rejeitar os elementos confusos,
também pode parecer crucial que a razão, que prevalece sobre este prazer,
não pode ser de nenhum modo capaz, sem possuir harmonias mais
vigorosas, de julgar as harmonias que tem em si mesmo num grau inferior
(AGOSTINHO, Sobre a música, VI, IX, 24, 1986, p.322) 20.

Por consequência, esse tipo de harmonia poderia ser chamada de


harmonias sensuais e que, indevidamente, se incorporou na música
para obter o primeiro posto. Todavia, é preciso lembrar da defesa do
argumento do domínio da razão sobre as harmonias em geral, em que
se recomenda olhar para a força e o poder da razão, conforme se lê:

[...] a própria razão, de fato, considerou em primeiro lugar em que consiste


a autêntica modulação, e a viu claramente incorporada em um movimento
livre e dirigida para o objeto de sua beleza. [...] Por último, considerou que
papel a alma teria na regulação, produção, percepção e retenção dessas
coisas das quais ela própria é a origem; e separou todos esses ritmos
psicológicos dos ritmos corporais e reconheceu que ela mesma não podia
observar todos esses dados, nem distingui-los nem enumerá-los com
precisão sem ter em si certos ritmos, e sentenciando à maneira de um juiz,

20
“Y si con razón nos hubo parecido que si el sentido del placer no estuviese impregnado por sí mismo de
ciertas armonías, no podría acoger de ningún modo intervalos perfectamente iguales y rechazar los
elementos con-fusos, también puede parecer cosa cabal que la razón, que señorea sobre este placer, no pueda
ser de ningún modo capaz, sin poseer armonías más vigorosas, de juzgar las armonías que tiene bajo sí
misma en inferior grado” (AGUSTIN, La música, VI, IX, 24, 1986, p.322).
148 • Com Agostinho, e além dele

antepondo esses últimos ritmos aos demais de menor categoria


(AGOSTINHO, Sobre a música, VI, X, 25, 1986, p.323) 21.

Em vista disso, a razão age objetivando o seu próprio prazer,


porque diante das variações dos tempos, mostra suas inclinações na
regulação dos ritmos desse gênero, porque o que apreciamos na
harmonia dos ritmos sensíveis nada mais é que certa igualdade e
intervalos de duração equivalente, já ordenados conforme a ciência
musical.

Porque o prazer é como a potência da alma. O prazer, portanto, guia a alma:


pois onde está o seu tesouro, ali estará também o seu coração; onde está o
prazer, ali também está o tesouro e onde está o coração, ali há felicidade ou
infelicidade (AGOSTINHO, Sobre a música, VI, XI, 29, 1986, p.327) 22.

Assim, a percepção da beleza, como qualquer outra, torna-se


atenção prestada pela alma ao corpo. Em contrapartida, não se pode
deixar cativar pelas sensações inferiores, que em grande parte são
culpadas pela fraqueza e queda da alma. Entretanto, a beleza terrena
não é em si mesma má, mas somente quando é buscada em si mesma e
sem nenhuma relação com a Suprema beleza: “Assim, as coisas terrenas,
subordinadas às celestes, associam os movimentos de seu tempo, graças

21
“[…] la razón por sí misma, en efecto, consideró en primer término en qué consiste la auténtica modulación,
y la vio con claridad encarnada en un movimiento libre y dirigido hacia el objeto de su belleza. […]. Por
último, consideró qué papel tendría el alma en la regulación, producción, percepción y retención de estas
cosas de las que ella misma es origen; y separó todos estos ritmos psicológicos de los ritmos corporales y
reconoció que ella misma no pudo observar todos estos datos, ni distinguirlos ni enumerarlos con exactitud
sin tener en sí misma ciertos ritmos, y sentenciando a manera de un juez, antepuso estos ritmos últimos a los
demás de inferior rango” (AGUSTIN, La música, VI, X, 25, 1986, p.323).
22
“Porque el placer es como el peso del alma. El placer, por tanto, orienta al alma: Pues donde esté tu tesoro,
allí estará también tu corazón; donde está el placer, allí también está el tesoro, y donde está el corazón, allí
la felicidad o la desgracia” (AGUSTIN, La música, VI, XI, 29, 1986, p.327).
Janduí Evangelista de Oliveira • 149

a sua harmoniosa sucessão, por assim dizer, ao Cântico do Universo”


(AGOSTINHO, Sobre a música, VI, XI, 29, 1986, p.327-8) 23. De modo
consequente, isso se verifica em relação a música sensível que, apesar
de sua imperfeição, em última instância vincular-se à harmonia
universal. Assim fala Agostinho:

[...] esses números da razão se destacam na beleza, e se nos separássemos


completamente deles, quando nos curvarmos ao corpo, os números
proferidos não regulariam os números sensível, que por sua vez, através dos
corpos que eles movem, produzem as belezas sensíveis dos tempos; e assim,
saindo ao encontro dos números sonoros, os números entendidos também
são produzidos; e a própria alma, ao receber todos esses impulsos seus,
multiplica-os, por assim dizer, dentro de si mesma e produz os números da
memória; e esta potência da alma, que se chama memória, é uma grande
ajuda nas atividades muito complexas desta vida (Sobre a música,VI, XI, 31,
1986, p.329) 24.

Nessa continuação, pode-se concluir que o prazer sensível não é


um mal em si mesmo. O que é admoestado e sua vivência
indiscriminada, porque enquanto tal, eles são potencias da alma que,
devidamente experimentado, contribuem para que a alma passe da
beleza terrena à Suprema beleza. Por isso a alma não deve – enquanto
participar da temporalidade – ficar restrita às coisas espirituais, para
que o ânimo por elas não seja diminuído:

23
“Así, las cosas terrenas, subordinadas a las celestes, asocian los movimientos de su tiempo, gracias a su
armoniosa sucesión, por así decirlo, al Cántico del Universo” (AGUSTIN, La música, VI, XI, 29, 1986, p.327-8).
24
“[…] estos números de la razón destacan en belleza, y si nos separásemos de ellos por completo, cuando
nos inclinamos al cuerpo, los números proferidos no regularían a los números sensibles, que, a su vez, a través
de los cuerpos que ellos mueven, producen las bellezas sensibles de los tiempos; y así, saliendo al encuentro
de los números sonoros, se producen también los números entendidos; y la misma alma, al recibir todos estos
impulsos suyos, los multiplica, por así decirlo, dentro de sí misma y produce los números de la memoria; y esta
potencia del alma, que se llama memoria, es una gran ayuda en las complejísimas actividades de esta vida”
(AGUSTIN, La música, VI, XI, 31, 1986, p.329).
150 • Com Agostinho, e além dele

Porque ele era mais poderoso quando íamos atrás dele; e embora não
desapareça completamente, é certamente menor quando o detivemos, e
assim, por meio de distâncias seguras frente a qualquer tipo de movimento
lascivo, no qual o obscurecimento da essência da alma começa,
restabelecido o gozo das harmonias da razão, toda a nossa vida retorna a
Deus, dando ao corpo as harmonias da saúde, sem receber daí alegria: é o
que acontecerá quando o homem exterior for desfeito e apareça
transformado num estado melhor (AGOSTINHO, Sobre a música,VI, XI, 33,
1986, p.332) 25.

De outra parte, a memória não recebe as representações apenas


dos movimentos carnais da alma, mas também dos movimentos
espirituais. Essa igualdade, que não encontramos segura e permanente
nas harmonias sensíveis, reconhecemos envolta em sombras e
efemeridades, decorre doutras regiões:

Pois, não vá pensar que é nas formas corporais, que, após um exame puro,
jamais ousará classificar como iguais, nem tão pouco nos intervalos dos
tempos em que parece que ignoramos se há um espaço, um pouco mais
longo ou mais curto que o necessário, que escapa à percepção (AGOSTINHO,
Sobre a música, VI, XII, 34, 1986, p.333) 26.

Nessa acepção, o lugar das harmonias perfeitas ultrapassa a


percepção sensível. E por isso, a razão nos obriga a admitir, mais uma
vez, que as harmonias sensíveis são produtos das harmonias eternas.

25
“Porque era más poderoso cuando íbamos tras él; y si bien no desaparece por completo, es ciertamente
menor cuando le ponemos freno, y de esta suerte, por medio de alejamientos seguros ante toda clase de
movimiento lascivo, en el que comienza el eclipse de la esencia del alma, restablecido el gozo hacia las
armonías de la razón, nuestra vida entera retorna a Dios, dando al cuerpo las armonías de la salud, sin recibir
de ahí alegría: es lo que acontecerá cuando se destruya el hombre exterior y aparezca su transformación en
un estado mejor” (AGUSTIN, La música, VI, XI, 33, 1986, p.332).
26
“Pues no vas a pensar que está en las formas corporales, que, tras un examen puro, jamás osarás calificar
de iguales, ni tampoco en los intervalos de los tiempos en los que parecidamente ignoramos si existe un
espacio, un poco más largo o más breve de lo preciso, que escape a la percepción” (AGUSTIN, La música, VI,
XII, 34, 1986, p.333).
Janduí Evangelista de Oliveira • 151

Em consequência, a beleza terrena aponta para o lugar onde as


harmonias eternas estão: “De que lugar, então, deve-se acreditar que
algo eterno e imutável é comunicado à alma, se não vem de Deus, o único
eterno e imutável?” (AGOSTINHO, Sobre a música, VI, XII, 36, 1986,
p.336) . Para tal, é coisa manifesta que por meio da dialética é possível
27

se dirigir para Deus, para compreender a verdade imutável, numa


espécie de movimento orientado pela memória, e assim, contemplar
essa verdade. Portanto, é necessário que a alma realize esse retorno,
exatamente, para que encontre aí o sentido pleno de sua existência, o
que não acontecerá se ela ficar presa na contemplação da beleza terrena.
De outra parte, parece haver uma confluência entre aquilo que a
razão aponta como belo e bom com a vontade enquanto faculdade da
alma, dado a preferência pelas coisas belas que se verifica na maioria
das pessoas. O que Agostinho justifica dizendo que:

[...] coisas belas são apreciadas pela sua harmonia, na qual já temos
mostrado que a igualdade está sendo buscada ardentemente. Porque esta
não se encontra somente na beleza que concerne ao sentido da audição e
nem no movimento dos corpos, mas também nas formas visíveis
propriamente, nas quais a beleza já é mais comumente falada (Sobre a
música, VI, XIII, 38, 1986, p.339) 28.

Por isso, nos afastamos de tudo que é exagerado como sons muito
altos, assim como, daqueles demasiadamente suaves. É justamente por

27
“¿De dónde, pues, debe creerse que se comunica al alma algo eterno e inmutable, si no viene de Dios,
el único eterno e inmutable?” (AGUSTIN, La música, VI, XII, 36, 1986, p.336).
28
“[…] cosas bellas gustan por su armonía, en la cual ya hemos demostrado que se está buscando
ardientemente la igualdad. Porque ésta no se encuentra solamente en la belleza que concierne alsentido del
oído y en el movimiento de los cuerpos, sino también en las formas visibles mismas, en las que ya de un modo
más corriente se habla de belleza” (AGUSTIN, La música, VI, XIII, 38, 1986, p.339).
152 • Com Agostinho, e além dele

causa dessa igualdade ou similaridade que passamos a desejar os objetos


sensíveis: “E onde há igualdade ou semelhança, ali há harmonia com seu
número, porque não há nada tão igual ou semelhante ao um comparado
a si mesmo” (AGOSTINHO, Sobre a música, VI, XIII, 38, 1986, p.340) . 29

Dizer que há harmonia entre dois números é o mesmo que dizer de que
houve fascínio entre duas coisas a fins, logo, o que agrada os ouvidos
não é o som em particular, mas acima de tudo aquilo que ele representa,
ou seja, a Suprema beleza, a ordem e à proporção que há nele e que
também está presente na alma.

No caso da audição, primeiro o som produz um movimento interno no


ouvido, através da vibração do ar, em seguida a alma o acolhe e modifica o
movimento do ouvido e, por fim, a consciência que a alma tem dessa
modificação na sua própria ação sobre o ouvido, gera a sensação auditiva.
Portanto, não é por causa do corpo que alma sente alguma coisa, mas sim
por causa de si mesma (FAGUNDES, 2015, p.64).

Logo, o valor da alma não está, em último caso, em si mesma, dado


que o seu ser vem de Deus. Sua força depende inteiramente de sua
permanência no lugar que lhe é devido, isto é, próxima a Deus. Ademais,
é preciso ter cuidado, para que essa condição não se converta em
presunção, porque causaria gradualmente seu esvaziamento, e por
consequência ela se distanciaria de Deus, isto é, da contemplação da
verdadeira beleza do universo. Por isso,

[...] a alma procura a estabilidade e eternidade, e uma que vez que nele não
encontra por causa da inferioridade de sua beleza culmina na mudança do

29
“Y donde hay igualdad o semejanza, allí hay armonía con su número, porque nada hay tan igual o
semejante que el uno comparado al uno” (AGUSTIN, La música, VI, XIII, 38, 1986, p.340).
Janduí Evangelista de Oliveira • 153

ritmo das coisas, e o que em tal beleza é uma transposição de estabilidade,


é transferido por Deus através da alma (AGOSTINHO, Sobre a música, VI,
XIV, 44, 1986, p.345) 30.

Por essa razão, feliz é o homem que não se limita à beleza terrena,
mas que enxerga a Suprem beleza através daquela, feliz é o homem que
dá primazia aquelas harmonias que servem para a manutenção do
próprio bem das almas, se serve também daquelas harmonias como
reguladoras e vigias de outras harmonias.

Afinal, não são harmonias inferiores à razão e belas em seu gênero, mas o
amor pela beleza inferior que contamina a alma. E como esta não só a ama
a igualdade (da qual, segundo nossa necessidade, falamos muito), mas
também a categoria inferior, a própria alma vem a perder sua própria
ordem; e, apesar disso, ela não superou a ordem das coisas, já que ela está
num lugar e está de um modo em que, como suma ordem, estão as coisas e
tal como elas são. Porque uma coisa é guardar a ordem, outra coisa distinta
é está sujeita à ordem. Guarda a ordem a alma quando, desde si mesma, ama
inteiramente o que está sobre seu ser, isto é, a Deus e as almas, suas
companheiras, como a si mesma. Por essa força do amor, efetivamente,
coloca ordem nas coisas inferiores e não se mancha em contato com elas
(AGOSTINHO, Sobre a música, VI, XIV, 46, 1986, p.346-7) 31.

30
“[…] el alma busca en él, a saber: la estabilidad y la eternidad, no las encuentra, ya que su baja belleza
culmina en el cambiante paso de las cosas, y lo que en tal belleza es trasunto de estabilidad, le viene
transferido de Dios a través del alma” (AGUSTIN, La música, VI, XIV, 44, 1986, p.345).
31
“Después de todo, no son las armonías inferiores a la razón y bellas en su género, sino el amor de la belleza
inferior lo que contamina al alma. Y como ésta no sólo ama la igualdad (de la que según nuestro menester
hemos hablado bastante), sino también el inferior rango, el alma misma viene a perder su propio orden; y, a
pesar de ello, no sobrepasó el orden de las cosas, ya que ella está en un lugar y está de una manera en que,
con sumo orden, están las cosas y tal como ellas son. Porque una cosa es guardar el orden, otra distinta estar
sometido al orden. Guarda el orden el alma cuando desde sí misma, toda ella entera, ama lo que está sobre
su ser, es decir, a Dios, y a las almas, sus compañeras, como a sí misma. Por esta fuerza del amor,
efectivamente, pone orden en las cosas inferiores y no se mancha en contacto con ellas” (AGUSTIN, La
música, VI, XIV, 46, 1986, p.346-7).
154 • Com Agostinho, e além dele

Não obstante, é preciso recordar que a beleza terrena não é


desprezível porque ela não é algo concebido fora do trabalho da Divina
Providência, porque ela, certamente, é bela em sua espécie. Basta que
não a amemos mais que a Suprema beleza. “Porque, como temporais,
como um tabuleiro no meio das ondas do mar, nos afastaremos delas,
não as jogando como fardos pesados ou abraçando-as como se fossem
nossa base, mas fazendo bom uso delas mesmas” (AGOSTINHO, Sobre a
música, VI, XIV, 46, 1986, p.347) . Feito isso, a alma torna-se habilitada a
32

atingir a união profunda com a ordem universal de todas as coisas,


donde, não apenas se sentirá sujeita a ordem, mas também a observa
como a ordem inabalável e fixa.
No entanto, se em todos os sentidos e em todas as nossas ações nos
adaptamos aos nossos desejos, que na maior parte são por coisas
impróprias, eles acabam por dominar a vida humana. De início os
objetos são aceitos com tolerância e depois com grande prazer. Por isso,
o prazer sensível não será indiferente a ordem universal.
Na continuação, diremos que a providência divina conduz a alma
das harmonias terrenas para as harmonias eternas. “Pois Deus,
extremamente bom e extremamente justo, não olha com maus olhos
para nenhuma beleza que nasça para a realidade, ou para a condenação
da alma, ou para a sua conversão, ou para a sua perseverança”

32
“Y no las amemos como para hacernos dichosos en sus goces. Porque, como son temporales, a fuer de una
tabla en medio de las olas del mar nos alejaremos de ellas, no arrojándolas como pesados fardos ni
abrazándolas como si fuesen nuestro fundamento, sino haciendo buen uso de las mismas” (AGUSTIN, La
música, VI, XIV, 46, 1986, p.347).
Janduí Evangelista de Oliveira • 155

(AGOSTINHO, Sobre a música, VI, XVII, 56, 1986, p.357) .Desta maneira, 33

as harmonias brilham universalmente, já que pela sua unidade é bela


graças à igualdade e à simetria unidas por essa mesma ordem. Desse
modo, o verso Deus creator omnium (Deus, criador de todas as coisas)
encanta os ouvidos não somente pela harmonia de seu som, mas,
precisamente pela precisão e verdade de sua afirmação.

Na verdade, todas essas coisas, que enumeramos com a ajuda da percepção


sensível do nosso corpo, não podem adquirir nem preservar as harmonias
locais, que parecem estar em um modo estável de ser, mas graças a outras
harmonias temporárias que as precedem, ocultas e silenciosas, e estão
dentro do movimento. Da mesma forma, a essas harmonias, ativa nos
intervalos ordenados do tempo, precede e regula o movimento vital, que
obedece ao Senhor de todas as coisas, não porque já tenha em si ordenado
os intervalos temporais de suas harmonias, mas graças a um poder que
governa os tempos. E, sobre esse poder, as harmonias racionais e
intelectuais das almas abençoadas e santas que, sem a mediação de qualquer
outra natureza, reconhecem a própria lei de Deus, sem a qual a folha da
árvore não cai e por quem estão contados nossos cabelos, transmitindo essa
lei até aos âmbitos terrestres e infernais! (AGOSTINHO, Sobre a música, VI,
XVII, 58, 1986, p.360) 34.

33
“Pues Dios, sumamente bueno y sumamente justo, no mira con malos ojos ninguna belleza que nace a la
realidad, o por condenación del alma, o por su conversión, o por su perseverancia” (AGUSTIN, La música, VI,
XVII, 56, 1986, p.357).
34
“En realidad, todas estas cosas, que enumeramos con ayuda de la sensible percepción de nuestro cuerpo,
no pueden adquirir ni conservar las armonías locales que parecen estar en un modo de ser estable sino gracias
a otras armonías temporales que les preceden, ocultas y en silencio, y están dentro del movimiento. Asimismo,
a estas armonías, activas en los intervalos ordenados de los tiempos, precede y regula el movimiento vital,
que obedece al Señor de todas las cosas, no porque tiene ya en sí ordenados los intervalos temporales de sus
armonías, sino gracias a una potencia que gobierna los tiempos. ¡Y, sobre esta potencia, las armonías
racionales e intelectuales de las almas bienaventuradas y santas que, sin la mediación de ninguna otra
naturaleza, recogen la ley misma de Dios, sin la cual no cae la hoja del árbol y para quien están contados
nuestros cabellos, transmitiendo esa ley hasta los ámbitos terrenos e infernales!” (AGUSTIN, La música, VI,
XVII, 58, 1986, p.360).
156 • Com Agostinho, e além dele

Portanto, tudo que é adquirido pela percepção sensível não pode


ser tomado como um fim em si mesmo, visto que as harmonias
presentes na realidade sensível estão, em último caso, dependentes das
harmonias superiores, que se encontram ocultas e silenciosas no
movimento do universo e que obedecem a ordem universal de todas as
coisas que governa o tempo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do exposto, podemos afirmar que desde o diálogo Sobre a


Ordem, a música já figura no contexto geral do pensamento de Santo
Agostinho como a ciência que, por meio da instrução, conduz a alma da
multiplicidade do mundo para a unidade perfeita e o que será concluída
no diálogo Sobre a Música mediante o aprofundamento da questão
através da leitura autenticamente filosófica da música. Para tanto,
Agostinho coloca a ciência musical como ciência responsável por todos
os sons que apresentam uma determinada duração e que justifica a sua
definição de música como a ciência do modular bem. A modulação, nesse
contexto, significou à habilidade de produzir um determinado
movimento, que é procurado por si mesmo e provoca prazer enquanto
tal.
Por ser uma ciência, o trato com a música requer conhecimento,
disciplina e habilidade; do contrário, ela será usada indevidamente. Por
isso, vimos o estudo do ritmo e do movimento como origem da arte e da
melodia, e também o número sendo apresentado como gerador da
ordem e da harmonia de todo movimento mediante a proporcionalidade
Janduí Evangelista de Oliveira • 157

e, por conseguinte, o conhecimento racional e científico dos números


da medição e do movimento, na qual nossos sentidos são capazes de
perceber. E embora os sentidos tenham limitações perceptivas,
podemos vislumbrar os vestígios da Suprema beleza a partir da beleza
terrena que nossa alma experimenta através da música.

REFERÊNCIAS

AGOSTINHO, Santo. Contra os acadêmicos - A ordem - A grandeza da alma - O mestre.


Tradução de Agustinho Belmonte. São Paulo: Paulus, 2008. 414 p. (Coleção Patrística,
n. 24).

AGUSTÍN, San. La música. In: Obras Completas de San Agustín. Edição Bilingüe.
Traducion, introducion y notas de Alfonso Ortega. Madrid: La Editorial Católica
(BAC), 1986. Tomo XXXIX, p. 47-361.

FAGUNDES, Claudiberto. ‘De musica’, diálogo filosófico de Agostinho de Hipona. Porto


Alegre: UFRS, 2014, 386 f. Tese (Doutorado em Educação).

SCHAFER, R. Murray. Educação sonora: 100 exercícios de escuta e criação de sons.


Tradução de Marisa Trench de Oliveira Fonterrada. São Paulo: Editora
Melhoramentos, 2009. 141 p.
A LEI E A CARIDADE: O ANTIGO E O NOVO
7
TESTAMENTO COMO METÁFORAS DO
AGIR HUMANO EM AGOSTINHO DE HIPONA 1

Gracielle Nascimento Coutinho 2

“Amar-se mutuamente (diligereinvincem) é o mandamento da lei, é o próprio


espírito desta lei que visa cada lei isoladamente.”
(ARENDT, 1997, p. 113)

INTRODUÇÃO

Este texto objetiva refletir sobre o desenvolvimento da consciência


ético-moral humana sob o prisma filosófico-teológico do tratado
agostiniano Sobre o Espírito e a Letra. Não se trata de um discurso
teológico ou religioso, apesar das referências bíblicas de que não
podemos fugir por fazerem parte da própria estrutura argumentativa
de Agostinho, mas de uma análise do humano à luz de obras mais
teológicas do hiponense, porém, problematizadas filosoficamente.
O cerne de nossa discussão é a relação do homem com a
normatividade e o que torna a vontade humana dissidente ao que a lei
lhe preceitua, evidenciando que isto não se aplica a um tipo específico

1
Este texto é um recorte de minha tese de doutorado publicada em meio digital pela Editora Fi.
COUTINHO, Gracielle Nascimento. O convergir da vontade humana a Deus: Sujeito ético e alteridade
em Santo Agostinho. Prefácio de Marcos Roberto Nunes Costa. Porto Alegre: Editora Fi, 2021, 233 p. ISBN
978-65-5917-401-0. Disponível em: <https://www.editorafi.org/401agostinho>
2
Graduada e Mestre em Filosofia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE), Doutora em Filosofia pela
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professora efetiva da Secretaria de Educação do Estado do
Ceará (SEDUC-CE). Contato: gracielle.ncoutinho@gmail.com
Gracielle Nascimento Coutinho • 159

de lei, mas a qualquer imperativo normativo. Com efeito, o homem


intenta excetuar-se do dever em geral, razão pela qual, podemos
conduzir esta discussão tanto no âmbito da obediência à lei temporal
quanto no que toca à recepção dos mandamentos divinos do Antigo
Testamento, como o faremos.
Apesar de necessária à sociabilidade, toda norma é insuficiente
para conformar os homens, deliberadamente, a uma conduta justa, pois
necessita ameaçá-los para ordená-los. Porque ordena, traz em si a
possibilidade da infração e, em decorrência desta, a punição; aliás, se
não fosse seu caráter “corretivo”, a própria lei não teria razão de ser,
visto que ela existe em função da incapacidade do homem de praticar o
bem quando movido por seus amores desordenados (o pecado). Dito de
outro modo, toda norma, temporal ou divina, é como uma consciência
moral externa ao próprio sujeito, exigindo dele o que ele é incapaz de
cumprir autonomamente.
Assim sendo, há um conflito entre o desejo humano e a
normatividade, e não poderia ser diferente, dado que a norma não é
concebida na interioridade do sujeito que a ela se submete. Há uma
dissidência da vontade que a põe em desacordo com a lei quando ela é
contrária ao que se deseja. Eis, aqui, a dinâmica dos diversos amores da
vontade humana regendo (e originando) diferentes tipos de sujeito
moral e de sociabilidade, e que Agostinho designou sob duas Cidades,
como descreve no tratado Sobre a Cidade de Deus XIV, 28. O amor é o peso
de toda ação humana (cf. Conf. XIII, 9), de sua conduta, mas nem todo
amor move a vontade humana ao que lhe convém.
160 • Com Agostinho, e além dele

Esta análise do humano frente à normatividade faz-nos questionar


o lugar da liberdade humana, uma vez que a obediência à uma norma
pode dar-se com ou sem a anuência do sujeito, isto é, de forma
deliberada ou imposta. Estas nuances na recepção e no cumprimento do
dever denotam diferentes estágios, por assim dizer, de
desenvolvimento da consciência ético-moral. São estes estágios, o que
os caracteriza e como pode o sujeito ascender de um patamar a outro o
que visamos abordar em nossas reflexões.
Assim, iniciamos nossa exposição abordando a dinâmica dos
amores que regem a vontade humana. Na sequência, discorremos acerca
do modus operandi da lei no Antigo Testamento em comparativo à lei
temporal, de que forma ambas se impõem ao humano e como este as
recebe. E, finalmente, destacamos o agir humano frente aos preceitos
divinos do Antigo Testamento e à mensagem do Novo Testamento.

7.1 O AMOR, MOTOR DA VONTADE HUMANA

A vontade, juntamente com os amores que ela concebe, é a grande


protagonista da sociabilidade. No tratado Sobre a Trindade XII, 18,
Agostinho apresenta esta faculdade como sinônimo dos termos amor e
apetite e, no livro XV da mesma obra, ela reaparece como correlata ao
amor e à dileção, os quais são, nas palavras de Agostinho:

[...] a mesma vontade com vigor maior. Pois, a vontade, faculdade que
possuímos por natureza, apresenta uma variedade de afetos, conforme as
Gracielle Nascimento Coutinho • 161

realidades pelas quais somos seduzidos ou ofendidos, quer nos


avizinhemos, quer nos oponhamos a ela (De Trin., XV, 21, 41) 3.

Conforme Nicola Abbagnano, “[...] em S. Agostinho, a noção de


amor ainda é a mesma dos gregos: uma espécie de relação, união ou
vínculo que liga um ser ao outro [...]” (ABBAGNANO, 2007, p. 41). Esta
característica unitiva do amor também se encontra na faculdade da
vontade pela qual se dá o encontro entre o sujeito que busca e o objeto
do desejo por ele buscado. É a vontade que move o ser humano à
realização de algo, por exemplo, a busca do conhecimento. Além disso,
é a vontade que internaliza ou concebe o amor. Na Epístola 140,
Agostinho define o amor como “[...] um apetite natural, pressuposto pela
vontade livre, que deve, iluminada pela luz natural da razão, orientá-lo
somente para Deus, sumo Bem” (Ep. 140, 3,4). Definindo o amor como
apetite (appetitus), Agostinho compreende-o como dileção (dilectio) a
quaisquer objetos do desejo, embora enfatize que este apetite deva ser
orientado para Deus.
Mais do que um impulso que direciona a vontade humana à busca
do que lhe apetece, o amor é o motor mesmo da sociabilidade humana,
de modo que as relações interpessoais, em sociedade, são reflexos do
amor segundo o qual cada sujeito se norteia. Neste sentido, Agostinho

3
É interessante a leitura que Hannah Arendt faz acerca do amor como distinto da vontade. Para a filósofa,
a vontade é sempre movimento em direção ao que busca, enquanto o amor é a fruição do que se busca
e, portanto, põe fim ao movimento e à própria vontade. Segundo a pensadora: “A realização é a
beatitude, que não consiste em amar, mas em fruir daquilo que é amado e desejado. Todo o amor é
tensão dirigida para esta fruição. No entanto, ninguém é feliz se não fruir do que ama. [...] Fruir é estar
perto do objeto desejado, firme e sem inquietude” (ARENDT, 1997, p. 36). Em sua obra A vida do espírito:
o pensar, o querer e o julgar, complementa: “[...] o amor, ao contrário da vontade e do desejo, não se
extingue quando alcança seu objetivo, mas sim possibilita ao espírito ‘permanecer imóvel para poder
desfrutá-lo’” (ARENDT, 1995, p. 261).
162 • Com Agostinho, e além dele

supera a concepção grega (platônica) de amor – como busca de


satisfação e completude do desejo humano – e coloca-o na centralidade
da vida prática, como coração da conduta ética. Isto quer dizer que o
amor que impulsiona cada indivíduo não é apenas o movente do seu
agir, mas, sobretudo, o que lhe dá identidade como membro de uma
Civitas, define que sujeito social o indivíduo é, que tipo de sociedade ele
constrói e como se dá seu relacionamento com seus pares. É este o
entendimento que extraímos acerca das famosas Cidades de que fala
Agostinho em seu Tratado Sobre a Cidade de Deus: “Dois amores, pois,
fundaram ‘duas Cidades’, a saber: o amor próprio, levado ao desprezo a
Deus, engendrou a Cidade terrena; o amor a Deus levado ao desprezo de
si próprio, a celestial” (De civ. Dei, XIV, 28).
No tratado supracitado, Agostinho faz referência também ao
termo charitas como sinônimo de amor e dilectio. Contudo, charitas
denomina o amor ordenado a Deus, um amor bom, enquanto amor e
dilectio podem significar, igualmente, o desejo de bens ou males:

De quem tem propósito de amar a Deus e ao próximo como a si mesmo, não


segundo o homem, mas segundo Deus, se diz ser de boa vontade por esse
amor. Nas Sagradas Letras o nome mais corrente de tal afeto é o de caridade,
mas chamam-no também de amor [...]. Julguei-me no dever de recordar
tudo isso precisamente por alguns pensarem que uma coisa é dileção ou
caridade e outra o amor. Dizem dever-se tomar em bom sentido a dileção e
em mau o amor [...]. Já mostramos que a palavra “amor” também se usa em
bom sentido (Deciv. Dei, XIV, 6).

Os objetos do querer humano, bem como a inclinação do sujeito


a eles, podem ser bons ou maus. Deste modo, são correlatos os
termos amor, appetitus e dilectio – bem como o vocábulo passio –,
Gracielle Nascimento Coutinho • 163

porque podem referir-se, indistintamente, a paixões boas ou más.


Quando é bom o amor, dileção, apetite ou paixão, este recebe a
denominação de charitas e, quando mau, corresponde a cupiditas
(concupiscência). Em nossa discussão, referimo-nos à vontade
humana como dilectio em função de sua dupla inclinação, ora a bens
temporais ora a bens eternos. É exatamente este amor, dileção,
apetite ou paixão subjacente à ação humana que a define como boa
ou má. Portanto, o mal (ou pecado) de uma ação consiste no desejo
que incita o sujeito a praticá-la.
Agostinho destaca a existência de uma dimensão psicológica
intrínseca ao agir humano. Na discussão agostiniana acerca do
pecado, é imprescindível considerar a dualidade entre a intenção do
sujeito – a paixão (amor, apetite, dileção) que ele segue – e a ação
que, apesar de ser o que mais pesa sobre a sociabilidade, é somente
consequência daquela. Aliás, uma das originalidades de Agostinho
em relação ao platonismo de que ele se serve é a descoberta de que o
reto agir não se reduz ao conhecimento do que é justo ou bom, mas
que a adesão a tais valores resulta também de uma apreciação
volitiva do sujeito. Esta dicotomia intenção-ação é evidenciada, por
exemplo, quando, no tratado Sobre o livre arbítrio, Agostinho discorre
sobre o adultério afim de identificar o que o torna mau 4 e, acerca
dele, diz:

4
Sob esta perspectiva da ação e da intenção que a motiva, Agostinho também identifica que alguns
crimes podem ser cometidos por ausência de paixão como ocorre, por exemplo, em duas situações de
homicídio retratadas no Sobre o livre arbítrio, a saber: 1) aquele cometido acidentalmente; e 2) o que é
praticado pelo soldado no cumprimento de seu dever. Agostinho não os considera culpáveis porque:
“[...] se o homicídio consiste no ato de matar um homem, pode acontecer que isso seja, por vezes, sem
pecado. Pois o soldado mata o inimigo; o juiz ou seu mandante executa o criminoso; e também, talvez,
164 • Com Agostinho, e além dele

Talvez seja na paixão que esteja a malícia do adultério. [...] Para te fazer
compreender que a paixão é bem aquilo que é mal no adultério, considera
um homem que está impossibilitado de abusar da mulher de seu próximo.
Todavia, se for demonstrado, de um modo ou de outro, qual o seu intento e
que o teria realizado se o pudesse, segue-se que ele não é menos culpado
por aí do que se tivesse sido apanhado em flagrante delito (De lib. arb., I, 3,
8) 5.

Também ao confessar o roubo das peras em sua juventude,


Agostinho revela uma descoberta: que “da vontade pervertida nasce
o desejo e, quando se obedece, nasce o hábito e, quando não se resiste
ao hábito, nasce a necessidade. Assim entrelaçado por elos ligados
entre si mantinha-se preso à dura servidão da vontade perversa”
(Conf., VIII, 5, 10). Agostinho percebe que não somente uma ação
infratora é um mal, pois o delito tem início em sua idealização na
mente do agente e não deixa de ser um mal se o indivíduo é
impossibilitado de realizar o que intenciona. Disto decorre que as

o lançador de flechas, quando uma delas escapa de suas mãos, sem o querer ou por inadvertência.
Todas essas pessoas não me parecem pecar ao matar um homem.[...] Mas comumente essas pessoas
sequer são chamadas homicidas” (De lib. arb., I, 4, 9). No caso do soldado, a própria lei temporal
prescreve-lhe matar o inimigo para a manutenção da ordem social e ele sofreria punição se não o fizesse.
Também no homicídio acidental não é por vontade que um indivíduo mata outro, menos ainda quem
o faz em legítima defesa. Entretanto, há um terceiro caso de homicídio em que Agostinho reconhece
uma paixão motivadora: quando um escravo mata seu senhor com vistas a uma vida sem temor. Embora
uma vida sem medo seja um bem e, portanto, não haja mau desejo na ação do escravo, o meio pelo
qual ele a busca – matando seu senhor – não é justificável pela lei temporal. Ademais, a ação
premeditada do escravo pode, ainda, segundo hipótese levantada por Agostinho, ter um outro objetivo
em vista: libertar-se de seu senhor para poder satisfazer livremente suas paixões concupiscentes (Cf. De
lib. arb., I, 4, 10). Em suma, desta reflexão resulta que, para toda norma, é a ação propriamente dita que
importa ser refreada para a manutenção da paz na civitas. A paixão, sede de toda má ação, soa menos
importante neste contexto e é exatamente esta dimensão que visamos destacar em nossa discussão.
5
Segundo Roberto Pich, “o que faz de uma ação como o adultério uma ação má é um elemento que lhe
é intrínseco (a natureza do desejo presente na ação em função de uma potência do agente como causa)
e que é interno ao agente (a natureza do desejo no sujeito em função de uma potência de um agente
como causa): a ‘paixão’ (libido) ou o ‘desejo’ (cupiditas) é o mal no adultério. Aqui, a precisão
terminológica é recomendável, uma vez que Agostinho procura descrever um componente chave da
estrutura interna das ações” (PICH, 2005, p. 189).
Gracielle Nascimento Coutinho • 165

leis são úteis à manutenção da paz temporal, pois a obediência a elas


evita muitos crimes. Entretanto, ela conforma os indivíduos de
forma não deliberada e apenas enquanto pode cerceá-los, vigiá-los e
punir suas transgressões.
A obediência a toda e qualquer norma pode ser arbitrária ou
livre. O que determina a qualidade desse modus operandi é a dinâmica
psicológica das paixões que orientam o sujeito a agir. Interessa-nos,
neste trabalho, refletir sobre essas duas possibilidades com as quais
a vontade humana relaciona-se com a normatividade. Uma em que
ela obedece impositivamente a um hetero-nomos, uma lei que parte
do exterior e se impõe a ela como contrária às suas paixões e o seu
querer; outra em que a vontade se auto determina ao cumprimento
do que lhe é devido, porque o preceito corresponde ao seu querer,
como se tivesse sido concebido internamente pelo sujeito, como um
auto-nomos. Estas formas de encarar a norma refletem o nível de
consciência ético-moral em que o sujeito se encontra. Nosso intuito
é pensar o decurso da vontade humana de um hetero-nomos a um
auto-nomos, isto é,da imposição da lei ao seu assentimento. Este
desenrolar de uma consciência ética será exposto a partir da relação
da vontade com os mandamentos divinos do Antigo Testamento e de
sua abertura à caridade do Novo Testamento.

7.2 A LEI TEMPORAL E OS MANDAMENTOS DA LEI DIVINA: UM


CONTRAPONTO

A psicologia das paixões como sede de todo mal ou pecado


mostra que a dissidência do homem à lei temporal reside no amor
166 • Com Agostinho, e além dele

desregrado da vontade e não, somente e necessariamente, no


descumprimento de um preceito. A vontade má pode permanecer
mesmo que haja uma conformação do sujeito à norma. Entretanto,
enquanto submisso a uma lei que lhe obrigue ao dever, a prática da
justiça e do bem jamais será autônoma e livre.
Alei temporal, por sua vez, não determina o que é mal, apenas o
reconhece e, por isso, proíbe e pune sua prática para o bem do corpo
civil, porque um delito “[...] não é um mal precisamente por ser proibido
pela lei, mas ao contrário, é proibido pela lei por ser mal” (De lib. arb., I,
3, 6). De igual modo, a lei divina (os mandamentos do decálogo) não veio
para instaurar o pecado, mas para dar à humanidade o conhecimento
sobre ele . Em suma, a lei divina, que traz a consciência do pecado,
6

assume a mesma função da lei temporal, neste aspecto.


Sobre as leis divina e temporal podemos ainda dizer que ambas
submetem os homens pelo temor e, portanto, cumprem o papel de
refrear as más ações que causariam dano ao corpo civil, mas nada
podem contra a paixão que motiva a ação ora impedida,ora punida por
elas. Na reflexão sobre os mandamentos divinos, Agostinho segue a
interpretação paulina de que, embora eles ofereçam ao homem o
reconhecimento do pecado, razão pela qual a lei divina é santa, justa e
boa (cf. Rm. 7, 12), eles também incitam a transgressão, pois a proibição
aumenta o mau desejo. É Paulo a quem Agostinho cede a palavra em seu
tratado Sobre o Espírito e a Letra:

6
“Que diremos pois? É a lei pecado? De modo nenhum. Mas eu não conheci o pecado senão pela lei;
porque eu não conheceria a concupiscência se a lei não dissesse: ‘Não cobiçarás’ ” (Rm 7, 7). Cf. De spirit.
et litt., XIV, 25.
Gracielle Nascimento Coutinho • 167

Mas o pecado, aproveitando da situação, através do preceito, gerou em mim


toda espécie de concupiscência: pois sem a lei, os pecados estão mortos.
Outrora eu vivia sem lei; mas, sobrevindo o preceito, o pecado reviveu e eu
morri. Constatou-se assim que o preceito dado para a vida produziu a
morte. Pois o pecado aproveitou a ocasião, e servindo-se do preceito me
seduziu e por meio dele me matou. De modo que a lei é santa, e santo, justo
e bom é o preceito. Portanto, uma coisa boa se transformou em morte para
mim? De modo algum! Mas foi o pecado que, para se revelar pecado,
produziu em mim a morte através do que é bom. Para que o pecado, através
do preceito, aparecesse em toda sua virulência (De spirit. et litt., XIV, 25).

Ora, a lei é insuficiente, não somente por não educar as paixões


concupiscentes, mas ainda, porque, paradoxalmente, mantém as
pessoas presas às suas paixões e à lógica da obediência por temor. A
norma dilacera a vontade humana entre o querer concupiscente e o que
ela deve perseguir. Esta característica heterônoma do sujeito frente à
normatividade aplica-se a todo e qualquer nomos. Por isto, é possível um
contraponto entre a lei divina e a lei temporal.
Os mandamentos divinos e a lei temporal instituída na civitas
são orientação à justiça e ocasião de perdição, simultaneamente.
Ambas revelam as paixões desordenadas, exortam que as más ações
sejam rechaçadas, mas aumentam o pecado quando o mau desejo se
une à transgressão. Por esta razão, e especificamente no que tange à
lei divina, Agostinho segue a crítica de Paulo à doutrina da lei,
referindo-se a ela como “a letra que mata” (2Cor. 3, 6), pois: “[...] se
torna mais agradável o que se cobiça pelo fato de ser proibido. E é
isso que disfarça o pecado mediante o preceito e, por seu intermédio,
mata quando sobrevém a transgressão, a qual não existe onde não há
lei” (De spirit. et litt., IV, 6).
168 • Com Agostinho, e além dele

A ideia de que a letra (a lei divina) mata refere-se ainda, e


sobretudo, ao cumprimento vazio daqueles que a ela obedecem
somente por temor 7. Era comum dentre os doutos da lei a ideia de
que as obras bastavam para a sua justificação (cf. Rm. 2, 20) 8.
Contudo, nas palavras de Agostinho, “[...] perante Deus não existia
na vontade o que perante os homens aparecia nas obras, e por isso
eram considerados réus, porque Deus sabia que cometiam o mal e, se
fosse possível, impunemente” (De spirit. et litt., VIII, 14).
A lei divina também revela a transgressão humana sob o prisma
dicotômico do querer e do agir humanos, isto é, enquanto ação na
forma da desobediência/infração; e como paixão, quando a
obediência resulta do medo da penalidade e não de uma livre
aceitação do dever e da justiça. Com efeito, tanto a lei temporal como
a lei divina refreiam a ação má, mas não a paixão desordenada que a
impulsiona, pois, segundo o tratado Sobre o Espírito e a Letra, um “[...]
preceito que se cumpre não por amor à justiça, mas por medo de
punição, cumpre-se servilmente; não se cumpre com pura liberdade
e, consequentemente, não é cumprido” (De spirit. et litt., XIV, 26).
No cumprimento servil da lei, não apenas permanece o pecado
enquanto paixão/intenção. Há ainda outra espécie de pecado
cometido justamente pela obediência cega aos preceitos quando os

7
“E o preceito, se é observado por temor da pena, e não por amor da justiça, não é observado com
liberdade, mas com espírito de servidão, não é observado. Pois não é um bom fruto o que não procede
da raiz da caridade” (De spirit. et litt., XIV, 26)
8
“Mas julgavam que cumpriam esta lei com sua justiça, quando eram mais seus transgressores. Mas a
lei produzia a ira (cf. Rm. 4, 15) ao colmar o pecado, o qual praticavam sem poder alegar nenhuma
ignorância. Pois todos os que praticavam o preceituado na lei praticavam-no não sendo auxiliados pelo
Espírito Santo, por temor ao castigo, e não por amor à justiça” (De spirit. et litt., VIII, 13).
Gracielle Nascimento Coutinho • 169

doutos da lei encerravam sob ela toda sorte de injustiças, fazendo de


si mesmos e de seu arbítrio a própria lei. Estes, os chefes de Estado,
“os homens da lei”, segundo a perspicaz observação de Paulo,
aprisionam a verdade e a justiça na injustiça da lei (cf. Rm 1, 18).
Franz Hinkelammert explicita bem esta prática:

O apóstolo estabelece uma distinção entre o pecado e os pecados. Os pecados


violam a lei. Não obstante, o pecado é cometido no cumprimento da lei. E é
esse o pecado de que trata Paulo em sua crítica da lei. [...] Paulo denuncia a
lei na medida em que se considera o cumprimento da lei como a justiça. Já
em Paulo, o pecado implica um problema ideológico. Aquele que considera
a justiça o resultado do cumprimento da lei produz a injustiça. Quando tem
seu cumprimento considerado instrumento da justiça, a lei se transforma
em seu contrário; segundo as palavras de Paulo, sendo lei de Deus, ela se
torna lei do pecado. O crime cometido aparece agora como resultado da
própria justiça (HINKELAMMERT, 2012, p. 11-12) 9.

Hinkelammert evidencia a ausência de justiça no cumprimento


da lei. Também por esta razão “a lei é letra que mata” (2 Cor. 3, 6).
Chamamos a atenção para a mesma contradição apontada pelo autor,
porém sob justificativa distinta. Julgamos que existem duas noções
de justiça que os homens pensam alcançar cumprindo a lei. A
primeira delas resulta da obediência imposta a uma lei justa, não

9
Segundo Franz Hinkelammert: “Paulo denuncia os crucificadores, que são os chefes deste mundo.
Concede-lhes, não obstante, que ajam segundo a sabedoria deste mundo, o que implica que agem em
nome da lei. Embora cegos, não se acham destituídos de razões. Há conflito, mas o conflito é com
aqueles dos quais se diz na Carta aos Romanos, ‘aprisionam a verdade na injustiça’ (Rm 1, 18). [...] Não
sabem o que fazem, desconhecem a sabedoria de Deus e a rejeitam. Fazem-no, porém, em nome de
uma sabedoria do mundo. Não é a maldade que explica a crucifixão, mas a cegueira e a própria loucura
da sabedoria deste mundo” (HINKELAMMERT, 2012, p. 37-38). Sobre esta loucura da sabedoria deste
mundo, afirma ainda Hinkelammert: “O que é a loucura da sabedoria deste mundo? Não é
irracionalidade per se. É a irracionalidade do racionalizado. A crítica não nega essa racionalidade per se,
mas descobre em seu interior a irracionalidade: quem busca a vida pelo cumprimento da lei encontra a
morte” (Ibid., p. 64).
170 • Com Agostinho, e além dele

sendo ato da vontade humana o seu cumprimento. É uma falsa justiça


por ser o cumprimento não sincero de um mandamento bom, em
uma relação heterônoma entre o humano e a lei.A segunda forma de
justiça é mais que uma falsa justiça,é a própria injustiça que reside
no cumprimento cego da lei, mesmo quando, através dela,
legitimam-se atrocidades. Um exemplo disto é a crucificação de
Cristo, evento em que nenhuma lei foi violada e, inclusive, cumprida.
Desta forma, uma lei justa se converte na injustiça praticada por
homens com autoridade suficiente para julgar o errado como o certo
a se fazer. O evangelista João denuncia esta contradição do
cumprimento da lei, que opõe justiça e injustiça, em uma passagem
em que parece se referir à morte de Paulo, ao dizer: “Virá até mesmo
a hora em que todo aquele que vos matar pensará estar prestando
culto a Deus” (cf. Jo 16, 2).É esta a injustiça tornada lei, quando os
judeus subverteram a verdade e a justiça em seu entendimento da
lei, tal como reforça a análise de Hinkelammert. Pois,

o que eles cometeram e continuam a cometer era o crime que se comete no


cumprimento da lei: nenhuma lei foi violada. Os tribunais e a polícia
estavam ao lado daqueles que cometeram o crime. Jesus fez uma crítica
semelhante às leis rituais da lei judia [...] (Ibid., p. 82-83).

Elencamos estas diferentes espécies de obediência mecânica da


lei, porém, limitamo-nos à primeira delas, lembremos, aquela em
que a norma é seguida por temor da punição. A relação equivocada
do humano com a lei divina e a concupiscência aflorada pelo
conhecimento do pecado não implicam dizer que a lei seria
Gracielle Nascimento Coutinho • 171

desnecessária, ou mesmo um mal. Sua função é orientar a conduta


humana. Ainda que exorte punindo, a lei divina é um pedagogo e uma
forma de imprimir moralidade a homens ainda muito inconscientes
e rudes eticamente. Ter sido gravada em pedra é uma metáfora para
o quão exterior ela se encontra daqueles que se submetem às paixões
desordenadas e o quão distante de sua compreensão estão os homens
desta natureza.
A lei divina é necessária, porém não é o bastante, porque o
cumprimento imposto de um preceito não é ainda adesão e amor à
justiça. Inexiste aqui uma interiorização ética e, portanto, uma
autonomia da vontade humana. Porque insuficiente, a lei divina
necessita de um complemento, pois, como dissemos, ela é o ponto de
partida na construção de um entendimento humano sobre ações
injustas que, até então, não eram reconhecidas como tal. Em um
primeiro momento, a lei prescreve e impõe uma obediência. A
compreensão acerca da utilidade e da razão de ser dessa obediência,
bem como de sua aceitação ou internalização pelo sujeito, é um
processo que se segue a partir daí. É impossível exigir que a lei divina
tornasse instantaneamente éticos homens que só entendiam uma
linguagem punitiva.
Não obstante, não compreendamos com esta exposição que o
“caminho” que apontamos para a construção de uma consciência
ética deva ser, necessariamente, seguido por todo indivíduo. É
inconcebível pensar isto por algumas razões: 1) porque a lei divina
não foi entregue à humanidade como um todo, mas a um povo, os
judeus; 2) porque as verdades judaico-cristãs não são universais; e 3)
172 • Com Agostinho, e além dele

em resultado dos pontos anteriores, há indivíduos para os quais os


mandamentos divinos sequer são necessários, dada sua capacidade
de serem justos pelo seguimento da própria lei natural e, pois, sem
que uma norma externa lhes obrigue a isto 10. Intentamos apenas
mostrar a finalidade da lei divina, a saber, introduzir em um
processo de educação de suas paixões e de seu agir aqueles que desta
lógica precisam.
A prática da justiça não pode se iniciar sem a lei divina, primeiro
normatizador da vontade humana 11. Entretanto, os mandamentos
revelam “[...] apenas o que fazer e o que evitar, de modo que a vontade
cumpra o que a lei mostra, e assim o homem se justifique não pelo
que manda a lei, mas pelo uso da liberdade” (De spirit. et litt.,IX, 15).
Não há liberdade se se obedece ao mandamento divino por temor do
castigo, como ocorre frente a lei temporal ao punir crimes. Em todas
as expressões de normatividade, o humano lida com um dever sob a
forma de um hetero-nomos, uma norma externa. Contudo, a
finalidade última da lei, especificamente da lei divina que nos
interessa, é que as pessoas transponham o seu caráter normativo e a
cumpram por livre escolha.

10
cf. De spirit. et litt. XXVII, 47. Sobre a explanação agostiniana acerca da justiça praticada pelos gentios,
cf. ibid. XXVI, 43.
11
Isto é válido, inclusive, para a lei temporal. Mas, a esta altura de nossa discussão, não mais nos interessa
tratar sobre ela. Referimo-nos a ela apenas para destacar que a lei divina que ordena e pune tem essa
mesma natureza em comum com as leis humanas e servem, ambas, para a manutenção da ordem social.
Não é este, contudo, o enfoque de nossa reflexão.
Gracielle Nascimento Coutinho • 173

7.3 A LEI DIVINA E A CARIDADE

Sobre a lei divina, Agostinho escreve em seu tratado Sobre o


Espírito e a Letra: “O ensinamento, pelo qual recebemos os preceitos
ordenados a uma vida sóbria e reta, é letra que mata, se não se fizer
presente o Espírito que dá a vida” (De spirit. et litt., IV, 6). Não se trata
de uma morte literal, obviamente. A letra mata quando potencializa
no sujeito o mau desejo que lhe põe em conflito com o caráter
normativo da lei. Mata porque evidencia a dinâmica das paixões que
dilaceram a vontade humana entre o que ela deseja e o que ela deve
almejar 12, conforme a reta ordem do amor.A concupiscência é morte
porque o mal é corrupção da natureza humana. E, uma vez
corrompida, a vontade humana torna-se débil em seu querer e seu
julgar. Estão mortos os que agem pelo impulso das paixões
desordenadas porque não conseguem desviar-se delas, quer se
submetam ou não aos preceitos divinos, conforme a análise que
fizemos.
Agostinho atribui ao pecado a obediência à lei por temor e,
consequentemente, a incapacidade da vontade humana de restaurar-se,
sozinha, da corrupção ou “morte” que ela causou a si mesma. Por esta
razão, ela precisa do Espírito que vivifica. Agostinho refere-se, pois, à
atuação da graça divina curando a debilidade humana e sem a qual é 13

“Assim duas vontades, uma concupiscente, outra dominada, uma carnal e outra espiritual, batalhavam
12

mutuamente em mim. Discordando, dilaceravam-me a alma (Conf. VIII, 5).


13
“[...] a nossa vontade se revela enferma pela lei, para que a graça cure a vontade e a vontade curada
cumpra a lei, não oprimida pela lei nem necessitada da lei” (De spirit. et litt., IX, 15). E ainda: “Portanto, a
lei foi dada para que se procurasse a graça; a graça foi dada para dar pleno cumprimento à lei. Pois não
se dava pleno cumprimento à lei não devido à sua imperfeição, mas devido à imperfeição da malícia da
carne, a qual se manifestava pela lei, mas havia de ser curada pela graça” (De spirit. et litt., XIX, 34).
174 • Com Agostinho, e além dele

impossível o sujeito ser justificado – tornado justo – e reconhecer


verdadeiramente a lei. Se o pecado é morte, porque corrupção da
natureza humana, esta só pode ser restaurada por aquele do qual o
indivíduo recebeu o seu ser . Assim, faz-se necessário o auxílio de Deus
14 15

para que a lei externa ao homem velho seja agora gravada no homem
interior . Com este fim surge a lei da fé, instaurada com o Novo
16

Testamento. Não é novo por suceder cronologicamente ao Velho


(Testamento), senão porque este era para o homem velho, submisso ao
pecado, e aquele é para o homem novo, cuja imagem divina é renovada
pela graça , o que significa dizer, nas palavras de Agostinho, que “a lei
17

foi banida dos corações pelo pecado, e, por isso, apagada a culpa e
inscrevendo-se nos corações a lei, cumprem naturalmente o que ela
prescreve” (De spirit. et litt., XXVII, 47).

14
Quando falamos de graça divina, temos em mente a ideia de Deus tal como ele é pensado
filosoficamente no medievo cristão, isto é, como causa primeira. Pois, quando se diz que Deus é criador,
não se invoca apenas uma narrativa bíblica, mas razões pelas quais é necessário existir um Ser
subsistente do qual proceda o ser de todas as demais coisas existentes. Pensar Deus é entendê-lo como
o princípio ontológico que confere à criatura humana não apenas o ser, mas todas as suas faculdades
epotencialidades – como a inteligência, a memória e a vontade – e sua capacidade de valorar/ajuizar
retamente. Portanto, tratamos o conceito de graça divina como atuação daquele Princípio através do
qual o sujeito imprime eticidade à moralidade.
15
“[...] o auxílio divino para agirmos segundo a justiça não consistiu em que Deus nos tenha dado a lei
com os seus bons e santos preceitos. Mas consiste em que a nossa vontade, sem a qual não podemos
praticar o bem, seja ajudada e elevada pelo Espírito difundido da graça, sem cujo socorro a doutrina da
lei é letra que mata, porque, em vez de justificar os ímpios, mantém oprimidos os réus da prevaricação.
[...] assim aqueles que sabem pela lei como o homem deve viver, não são justificados pelo seu
conhecimento, porque, desconhecendo a justiça de Deus e procurando estabelecer a sua própria, não
se sujeitaram à justiça de Deus (De spirit. et litt., XII, 20).
16
“Com efeito, se há inspiração pela fé que opera animada pela caridade, tem início o deleitar-se na lei
de Deus segundo o homem interior” (De spirit. et litt., XIV, 26). Ainda sobre a renovação provocada pela
lei da fé, escreve Agostinho: “[...] a lei antiga foi escrita fora do homem, para atemorizá-lo exteriormente,
e a nova foi gravada no próprio homem para justificá-lo interiormente” (De spirit. et litt., XVII, 30).
17
“[...] o Espírito da graça age de modo que renova em nós a imagem de Deus, na qual fomos criados”
(De spirit. et litt., XXVII, 47).
Gracielle Nascimento Coutinho • 175

A lei da fé não vem para negar ou contradizer a lei anterior – as


tábuas da lei, que Agostinho passa a denominar lei antiga com o
advento do Novo Testamento –, mas para dar-lhe pleno cumprimento.
A fé traz o entendimento do dever. Enquanto a lei antiga proíbe,
obriga e ameaça, a fé substitui o temor pelo amor. Purificando a
vontade concupiscente, a graça extirpa aquela distância entre a lei e
a vontade que a tornava aversa à prática da justiça. Por isso, diz
Agostinho:

Essa é a lei que Cristo não veio abolir, mas dar-lhe pleno cumprimento. Não
é, porém, por essa lei, mas pela graça, que os ímpios são justificados. E isso
é obra do Espírito vivificador, sem o qual a letra mata. Se tivesse sido dada
uma lei capaz de comunicar a vida, então sim, realmente a justiça viria da
lei. Mas a Escritura encerrou tudo debaixo do pecado, a fim de que a
promessa pela fé em Jesus Cristo fosse concedida aos que crêem. Por essa
promessa, ou seja, em virtude do benefício da graça de Deus, a lei torna os
homens transgressores, ou com más obras efetivas, se o ardor da
concupiscência transpuser as barreiras do temor, ou ficando o pecado no
desejo, se o temor do castigo vencer o atrativo libidinoso. [...] O objetivo da
utilidade do ‘encerrou’ ficou explicitado na sequência: Antes que chegasse
a fé, nós éramos guardados sob a tutela da lei para a fé que haveria de se
revelar (De spirit. et litt., XIX, 34) 18.

A lei da fé não prescreve outra coisa senão o que a lei antiga já


ordenava. Esta última, pela qual os judeus reduziam o cumprimento
da lei às boas obras – por isto Agostinho também a chama de lei das
obras – lidava com uma vontade ainda concupiscente e incapaz de

18
Note que o trecho “[...] ou ficando o pecado no desejo, se o temor do castigo vencer o atrativo
libidinoso” (De spirit. et litt., XIX, 34) reforça a reflexão que conduzimos sobre a dicotomia intenção
(paixão) e ação.
176 • Com Agostinho, e além dele

lutar contra si mesma, enquanto a lei da fé incide sobre uma vontade


mais receptiva ao preceito, porque renovada pela graça que a exorta
ao amor à justiça. Com efeito, o Novo Testamento traz a novidade do
Espírito e, por conseguinte, uma novidade de espírito para o
humano. Por isto, o Novo Testamento é o complemento que faltava à
lei antiga e vem para lhe dar efetivo cumprimento.

Aquele Testamento era antigo, porque este é novo. Mas por que aquele é
antigo e este é novo, se pelo Novo se cumpre a mesma lei que disse no Velho:
Não cobiçarás? [...] aquele é chamado Antigo devido à ferida do homem
velho, a qual não se curava pela letra que manda e ameaça; este é
denominado Novo, pela novidade do Espírito, que cura o homem novo do
pecado velho (De spirit. et litt., XX, 35).

Agostinho sintetiza o caráter distintivo destas duas leis, a das


obras e a lei da fé,nestas palavras: “o que a lei das obras ordena
ameaçando, a lei da fé o faz crendo” (De spirit. et litt., XIII, 22). A lei
da fé infunde a caridade, o amor ordenado sem o qual é impossível
abraçar a justiça livremente 19. Assim, é pela fé que se ama e, então,
cumpre-se o mandamento.

Pois, pelo Novo [Testamento] é escrita no coração dos fiéis a lei de Deus, que
pelo Antigo foi gravada em tábuas; pelo Novo está gravada mediante a
regeneração, o que pela antiguidade não foi destruído totalmente. Assim
como a imagem de Deus, que a impiedade não banira complemente, se
renova na alma dos crentes pelo Novo Testamento, pois nela permaneceu,
o que faz com que a alma humana não deixe de ser racional, assim também

19
“Porque pela lei ninguém se justificará, já que a lei revela apenas o que fazer e o que evitar, de modo
que a vontade cumpra o que a lei mostra, e assim o homem se justifique não pelo que manda a lei, mas
pelo uso da liberdade. [...] Agora, porém, independentemente da lei, se manifestou a justiça de Deus,
testemunhada pela lei e pelos profetas” (De spirit. et litt., IX, 15).
Gracielle Nascimento Coutinho • 177

nele a lei de Deus, não totalmente destruída pela injustiça, é gravada ao ser
renovada pela graça. A lei gravada em tábuas não pudera causar nos judeus
esta inscrição, que é a justificação, mas apenas a transgressão (De spirit. et
litt., XXVIII, 48).

Esta lei aumentava a transgressão, mas era necessária pela


ausência de autonomia do sujeito na prática da justiça e do bem.
Afinal, a lei só existe porque o homem é infrator/pecador. A lei
antiga, isto é, a lei divina de que outrora tratamos,conduz os homens
e prepara-os para a recepção da caridade, que só poderia ser revelada
posteriormente, quando sua compreensão seria possível.

Então que é a lei? É um complemento ajuntado em vista das transgressões,


até que viesse a descendência a quem fora feita a promessa [...]. Se fosse
dada uma lei que pudesse vivificar, em verdade a justiça viria pela lei; mas
a Escritura encerrou tudo sob o império do pecado, para que a promessa
mediante a fé em Jesus Cristo fosse dada aos que crêem. Antes que viesse a
fé, estávamos encerrados sob a vigilância de uma lei. Esperando a revelação
da fé. Assim a lei se nos tornou pedagogo encarregado de levar-nos a Cristo,
para sermos justificados pela fé. Mas, depois que veio a fé, já não
dependemos de pedagogo, porque todos sois filhos de Deus pela fé em Jesus
Cristo (De spirit. et litt. VIII, 9).

A lei do Antigo Testamento prepara e anuncia a chegada do Novo


Testamento 20, porque esta é seu complemento. Nosso esforço é
mostrar que isto não soa para nós tão somente como uma verdade
teológica, mas que a conversão a Deus operada neste movimento é

20
Agora, porém, independentemente da lei, se manifestou a justiça de Deus, testemunhada pela lei e
pelos profetas (cf. Rm 3, 21). [...] Portanto, a justiça de Deus, embora seja concessão sem a lei, não se
manifestou sem a lei. Pois, como poderia ser testemunhada pela lei, se se manifestasse sem a lei? Mas a
justiça de Deus é concessão independentemente da lei, porque ele a confere ao crente mediante o
Espírito da graça, sem a ajuda da lei, ou seja, sem ser auxiliada pela lei (De spirit. et litt., IX, 15).
178 • Com Agostinho, e além dele

análoga à construção do sujeito ético. Não o cristão, exclusivamente,


mas o sujeito de uma sociedade qualquer, do passado e do presente.
O que a teologia ensina é algo muito humano e diz respeito à vida
terrena: a alteridade, o reconhecimento da humanidade do outro,
independentemente de quaisquer características sociais que o
diferenciem. O cumprimento da lei exige o reconhecimento da
alteridade porque ela é sempre para o eu e o outro. Ela exige que a
ação de um eu não seja nociva a um outro: “não matar”, “não roubar”,
“não cobiçar” etc. Onde a entidade do outro é desconsiderada, não há
verdadeira justiça. Não havendo a caridade, o outro é respeitado
apenas pelo temor da lei que obriga a tal, e não pela consideração da
humanidade que o eu e o outro compartilham. Somente a caridade
permite esta identidade entre os sujeitos. Em suma, porque “a
caridade não pratica o mal contra o próximo” (cf. Rm 13, 9), ela
sintetiza e substitui todos os outros mandamentos, porque o
reconhecimento da humanidade comum a todos dispensa qualquer
lei heterônoma para este cuidado, razão pela qual ela é plenitude da
lei.
A caridade, aquele amor ou dileção ordenado de que tratamos
no início de nossa exposição, é o que dá pleno cumprimento à lei
porque nenhum preceito dirige-se a indivíduos isolados, mas aos
membros de uma comunidade em suas relações recíprocas. Em suma,
ela não diz estritamente sobre crer em Deus, nem tampouco sobre
praticar boas obras com vista à uma vida futura;tratado dever ético
que cada sujeito deve ter, voluntariamente, para com o outro na
civitas terrena.
Gracielle Nascimento Coutinho • 179

Porque a eticidade é processo e o ser humano se desenvolve


desde um estado de anomia, passando pela heteronomia até o agir
autônomo, julgamos que as “etapas” em que o homem é conduzido,
isto é, da lei do Antigo Testamento à caridade do Novo Testamento, são
análogas à educação ética do sujeito como tal, por seguirem,
pedagogicamente, os diferentes estágios de compreensão humana
sobre o seu agir e terem objetivo comum: o bem agir. Amar ao
próximo a quem se vê, em função de Deus que não é visto, revela-nos
uma característica importante da caridade: o amor ao próximo é o
amor a Deus historicizado, plasmado no tempo, nas sociedades de
todas as épocas. Deus se faz presente em toda sua criação e, quando
o homem a ama como convém, ama, em última instância, aquele que
a fez. Pois, quem ama ao próximo cumpriu toda a lei.

De fato, conforme diz o Apóstolo, os preceitos: “Não cometerás adultério”,


“Não matarás”, “Não cobiçarás”, escritos nas tábuas de pedra, se resumem
nesta sentença: “Amarás o teu próximo como a ti mesmo”. A caridade não
pratica o mal contra o próximo. Portanto, a caridade é a plenitude da lei.
Portanto, a lei de Deus é a caridade. O desejo da carne não se submete à lei
de Deus, nem o pode, mas como nas tábuas da lei são gravadas as obras da
caridade para encher de terror o desejo da carne, a lei é a das obras e letra
que mata o transgressor. Quando, porém, a caridade se difunde no coração
dos crentes, a lei é a da fé e Espírito que comunica a vida ao que ama
(Despirit. et litt., XVII, 29).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A mensagem do Novo Testamento, quando assimilada pelo sujeito,


traz-lhe uma mudança de perspectiva e atitude. Têm uma postura e um
180 • Com Agostinho, e além dele

relacionamento próprios com a norma aqueles para quem ela chega pela
imposição, como na submissão aos mandamentos do Antigo Testamento
ou mesmo às leis temporais, ambas muito punitivas. Por outro lado, é
distinto este mesmo relacionar-se com a norma quando, pela
interiorização do amor ao próximo (caridade),o indivíduo transcende a
própria lei, cumprindo-a por livre disposição da vontade e,
consequentemente, como ato de liberdade.
Neste sentido, podemos dizer que estão entregues à moralidade
punitiva intrínseca ao Antigo Testamento quem se encontra em um nível
de desenvolvimento ético-moral ainda imaturo. Estes necessitam da lei
para conduzi-los, coagindo-os vez em quando para atender a este
objetivo. Em contrapartida, tem uma consciência ética mais
amadurecida quem entendeu, conforme a mensagem do Novo
Testamento, que esta obediência precisa ser voluntária, do contrário,
não é efetiva conformidade ao preceito.
Deste modo, o Antigo e o Novo Testamentos podem ser concebidos
como formas diferentes de comunicar uma mesma mensagem.
Diferentes porque se adaptam à capacidade de compreensão de quem as
recebe. Não à toa, o Antigo Testamento apenas prenuncia, e então,
prepara o humano para a recepção da caridade, a plenitude da lei,
porque ela não seria compreendida por homens de entendimento e
coração ainda rudes, capazes de obedecer apenas sob a lógica de prêmios
e castigos.
A lei divina, bem como as leis temporais, cumpre o papel de evitar
ou punir a transgressão (ação), mas não necessariamente em educar as
paixões humanas (intenção). Ela ordena e pune porque a
Gracielle Nascimento Coutinho • 181

heteronormatividade é o padrão de consciência ético-moral dos


indivíduos que a ela estão sujeitos. E não se trata de uma questão
histórica. A humanidade não está mais evoluída hoje. A metáfora de que
aqui tratamos não é sobre um avanço da humanidade enquanto tal, mas
do processo que ocorre no interior de cada pessoa que se determina à
vida ética. É uma metáfora para a dependência humana de uma lei
externa à consciência e para a consciência autônoma e livre de
imposições. Era necessário que viesse uma primeira lei ordenando, para
que depois se compreendesse o preceito e o seguisse livremente. Para o
indivíduo cuja consciência ética não se encontra plenamente
desenvolvida, eis a lei. É sua tarefa ordenar ao dever aqueles que não se
autodeterminam para tal.
Mais ainda, o Antigo e o Novo Testamento são ainda como metáforas
sob as quais compreendemos cada estágio da construção de seres
humanos éticos e livres. Cada um refletindo um tipo de humano, com
seus amores e a civitas que em que habita, a eles se dirigindo, guiando
ou exortando. São metáforas porque o Antigo Testamento é mandamento
gravado em pedra, isto é, simboliza a lei da exteriormente humana e
que, em princípio e por este motivo, é estranha à vontade que a recebe;
de igual modo, é metafórico o Novo Testamento, que grava esta mesma
lei “no coração de carne”. Que quer dizer isto senão a lei assimilada,
interiorizada e assentida pelo sujeito como que concebida por ele
mesmo?
182 • Com Agostinho, e além dele

REFERÊNCIAS

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AGOSTINHO, Santo. A cidade de Deus (III): livro XVI a XXII. 4 ed. Tradução, prefácio,
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Gulbenkian, 2011.

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Petrópolis: Vozes, 2006. 21 ed. 367 p. (Coleção Pensamento Humano).

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pecado original. In: A graça (I): Tradução de Agustinho Belmonte. 3. ed. São Paulo:
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Oliveira. Revisão de Honório Dalbosco. São Paulo: Paulus, 1995. 296 p. (Coleção
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ARENDT, Hannah. A vida do espírito: o pensar, o querer e o julgar. Rio de Janeiro:


Relumé Dumará, 1995.

ARENDT, Hannah. O conceito de amor em Santo Agostinho: ensaio de interpretação


filosófica. Tradução de Alberto Pereira Dinis. Lisboa: Instituto Piaget, 1997, 189 p.

COUTINHO, Gracielle Nascimento. O convergir da vontade humana a Deus: Sujeito ético


e alteridade em Santo Agostinho. Prefácio de Marcos Roberto Nunes Costa. Porto
Gracielle Nascimento Coutinho • 183

Alegre: Editora Fi, 2021, 233 p. ISBN 978-65-5917-401-0. Disponível


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CUNHA, Mariana Paolozzi Sérvulo da. O movimento da alma: a invenção por Agostinho
do conceito de vontade. Porto Alegre: Edipucrs, 2001.

HINKELAMMERT, Franz. A maldição que pesa sobre a lei: as raízes do pensamento


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2012.

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PICH, Roberto H. Agostinho e a “descoberta” da vontade: primeiro estudo. Revista


Veritas, Porto Alegre, v, 50, n. 2, p. 139-157.
ALMA, ESPÍRITO, MENTE:
8
OS SEUS “FIÉIS DEPOSITÁRIOS”À LUZ DA
ANTROPOLOGIA AGOSTINIANA EM INTERFACE
COM AS NEUROCIÊNCIAS
Pompeia Rosalia Sena Maltese 1

Não serei o poeta de um mundo caduco [...] O presente é tão grande.


Não nos afastemos, não nos afastemos muito. Vamos de mãos dadas!
(Mãos dadas, Carlos Drummond de Andrade)

INTRODUÇÃO

Fiel depositário, em geral, é uma terminologia jurídica que indica


aquele ou aquela que guarda um determinado bem, ou seja, o guardião
de um bem. Consideremos, portanto, um ligeiro esboço daquilo que
estamos chamando de “fiéis depositários” no tocante a algumas
categorias filosóficas como alma, espírito, mente. Melhor dizendo:
existe um lugar, uma localização para tais categorias?
Encontramos aqui um avizinhamento de outras categorias
funcionalmente similares a estas que ora trazemos como razão, ou
mesmo coração– tão comum nas Escrituras bíblicas para expressar

1
Doutora em Ciências da Religião pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP); Mestre em Filosofia
pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB); graduada em Fisioterapia e Filosofia (Bacharelado e
Licenciatura) pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE); em Psicologia (Bacharelado, Licenciatura e
Formação de Psicólogos) e Teologia (Bacharelado) pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP).
Trabalha atualmente no Centro de Atendimento Educacional Especializado do Recife (CAEER- RECIFE) pela
Secretaria de Educação do Governo do Estado de Pernambuco, que oferece atendimento a pessoas com
deficiência nas áreas intelectual, visual e auditiva. E-mail: pr.maltese@yahoo.com.br
Pompeia Rosalia Sena Maltese • 185

aquelas – e, certamente encontraremos algumas mais na investigação


daquilo que expressa ou evoca nossas emoções, sentimentos,
pensamentos ou, no dizer da discussão filosófica a respeito, as nossas
paixões. Mais do que propriamente uma resposta, deparamo-nos com
uma gama de questionamentos. Na verdade, se tivermos alguma resposta,
esta não se encerraria numa única, dada a imensa discussão tecida,
mesmo que numa diversidade de terminologias. O que dita o nosso agir
ou aquilo que manifestamos em nosso comportamento? Pascal nos traz
um bom aceno a respeito deste dilema quando nos diz que “o coração tem
razões que a própria razão desconhece” 2. Mas, neste caso, seria apenas
uma metáfora a indicar outro lugar para a nossa razão?
Atualmente, tais discussões entram na pauta das Neurociências,
chamando a atenção da comunidade científica como um todo 3. O viés de
cientificidade destas discussões favoreceu a jovem – ainda – ciência
psicológica, herdeira da Filosofia que, transpondo seus debates
metafísicos e aliando-se à Fisiologia, finalmente alcançou o status de
uma nova ciência: a Psicologia. Por sua vez, uma relação profícua viria
inaugurar um salto qualitativo da Psicologia com as Neurociências em
uma nova leitura: a Neuropsicologia, acentuando a temática da cognição
e da aprendizagem humana, entre outros. Desta vez, com uma clara
intenção de encontrar ou, mais ousadamente ainda, apontar finalmente

2
PASCAL, !988, p. 107 – Pensamento IV, 277.
3
Por vezes, encontramos o nome Neurociência ou Neurociências. Neurociência é uma designação que
delimita o estudo acerca do sistema nervoso como uma ciência específica, no entanto, é muito comum
encontrarmos o termo Neurociências, por sua estreita interdisciplinaridade com diversas ciências, conforme
veremos. As duas terminologias não alteram o seu alcance de compreensão. Em nosso artigo, faremos a
opção pela denominação de Neurociências, tendo em vista a promoção de um diálogo interdisciplinar.
186 • Com Agostinho, e além dele

e de uma vez por todas, o “fiel depositário” daquelas instâncias,


anteriormente discutidas numa visão metafísica. Lançamo-nos, então,
em sempre novas discussões: herói ou vilão este novo cenário científico?
Neste horizonte de argumentação perguntamos ainda se encontramos
aí uma superação ou o prolongamento do dualismo corpo/alma na atual
dicotomia mente/cérebro.
Neste debate de longas datas, vejamos um recorte do mesmo
recuperando a contribuição de um “filósofo adiante do seu tempo”, ou
seja, do “gênio intelectual” agostiniano, que “a serviço da fé” 4 nos
contempla antecipadamente com questões diversas como ecologia,
inconsciente, a apreensão do tempo e do espaço, percepção, memória,
estas últimas, incluídas no conceito de funções cognitivas e de essencial
importância na análise do comportamento através da Avaliação e da
Reabilitação Neuropsicológica, uma das áreas que eclodiram com as
Neurociências. Deste modo, não é de nos admirar o pioneirismo de
Agostinho em diversas áreas.
No caso das Neurociências, seria profícuo resgatar o que este autor
nos traz acerca da memória, uma vez que, entre os baluartes da
investigação daquelas, existe uma preocupação por qualidade de vida e
pela gerência comportamental de cada indivíduo tendo em vista
alcançá-la. Dentre as funções cognitivas, é a memória o elemento de
preservação do nosso patrimônio de experiências, mencionado por Berger

4
Trazemos aqui um jogo de palavras a partir dos livros: Santo Agostinho: a vida e as ideias de um filósofo
adiante do seu tempo, de Gareth Matthews, e Santo Agostinho: um gênio intelectual a serviço da fé, de
Marcos Costa.
Pompeia Rosalia Sena Maltese • 187

e Luckmann 5. Mas, não só no sentido de experiência particular, como


também naquilo que reverbera em nós das experiências acumuladas
historicamente e culturalmente, o que se configura, segundos os
autores supracitados, como patrimônio universal de sentido.
Este patrimônio universal de sentido torna-se coletado numa espécie
de reservatório social de sentido, para o qual acorremos e a partir do qual
imprimimos as nossas experiências particulares ou, em outros termos,
a nossa subjetividade. Tais experiências tornam-se registradas nos
nossos “palácios da memória” 6. A história individual é resguardada ou
ameaçada pelo alcance ou limite desta preservação, em muitos casos
despersonalizando a conformação de pessoa que compõe o nosso ser
humano. A respeito disto, conhecemos o tão famigerado – no sentido
pejorativo do termo – Mal de Alzheimer.
Entre outros pioneirismos do “gênio” agostiniano, encontramos
uma prévia exposição do que passou a ser chamado Cogito, desta vez,
agostiniano, a partir do qual se pode dizer que muito antes da
proeminência do Cogito cartesiano, que se estabeleceu ao longo da Idade
Moderna, encontramos a preeminência do Cogito agostiniano 7.

5
Ver Berger e Luckmann em nossa lista de Referências e suas considerações sobre os termos aqui
utilizados.
6
“Palácios da memória” é um termo utilizado por santo Agostinho para designar o vasto acúmulo de
conteúdos que podem ser evocados a partir de emoções ou sentimentos que nos impressionam. As
Confissões, sua obra autobiográfica, traz-nos explanações sobre a memória que, em função de sua
profundidade, são equiparadas a um verdadeiro tratado.
7
Aqui, no uso das palavras proeminência e preeminência imitamos a retórica agostiniana, reiteradamente
utilizada em seus escritos, dos quais podemos citar as suas Confissões. Entre os comentadores de
Agostinho, como Gilson, tornou-se unânime a menção ao Cogito agostiniano, que passou a ser chamado
assim em função da similaridade de sua formulação com o Cogito cartesiano. Tais comentadores
vislumbraram no pensamento agostiniano a anterioridade na formulação do Cogito desde os escritos
dos chamados diálogos de Cassicíaco. A respeito, ver CABRAL, Alexandre Marques. Ontologia e
188 • Com Agostinho, e além dele

Deste modo, queremos expor aqui o olhar de Santo Agostinho que,


debruçando-se sobre estudos diversos na tentativa de compreender
Deus, o homem e o mundo 8, traz-nos uma compreensão antropológica
sobre as questões acima levantadas: a alma, a mente, a razão, o
pensamento, o corpo, que perfazem a dimensão de seu antrophos
(ανθρωπος), questões estas que hoje estão na pauta das discussões das
Neurociências. Mas, Agostinho, além de filósofo é, acima de tudo, um
teólogo e suas discussões que versam sobre o homem o consideram
como Imago Dei, homem à imagem e semelhança de Deus. Desta forma,
importa-lhe a psicologia, ologos da alma, embora discuta-se muito hoje
sobre esta alma como instância ausente da ciência psicológica, no
sentido de experiência humana e existencialidade, por conta da pauta
cognitivista e seus objetos afins como aprendizagem, conhecimento,
comportamento, cuja exterioridade com que se apresentam parecem
rebaixar aquela recôndita etimologia.
Assim sendo, as diversas outras ciências contra-atacam, reagindo
à instrumentalização do homem como máquina, e se erguem em suas
argumentações tentando recompor a unidade deste em meio à sua
fragmentação, proposta por outros discursos que versam sobre o
homem. Vale lembrar que a Economia, a Ciência Política, em tempos de
outrora e ainda hoje são discutidas filosoficamente – embora tenham se
estabelecido como ciências específicas a partir da Idade Moderna, tal

conhecimento em Santo Agostinho. In: SAMPAIO, Juliana Lira; BITTENCOURT, Renato Nunes; BARROS,
Tiago Mota da Silva (orgs). Filosofia: um panorama histórico-temático. Rio de Janeiro: Mauad X, 2013.
8
Esta tríade faz parte das primeiras inquietações filosóficas que inauguraram um tipo de pensamento
reflexivo, e que veio a se estabelecer com o nome de Filosofia.
Pompeia Rosalia Sena Maltese • 189

como a Psicologia – trazendo-nos acenos sobre o homem, apesar do


nosso esquecimento disto. São Ciências Humanas e, portanto, essenciais
à vida humana em suas cercanias. As políticas públicas e a Economia
entrariam também, desta forma, em discussão com as Neurociências na
perspectiva de ensejo à qualidade de vida. Vejamos, pois, en passant,
como se deu o desabrochar das Neurociências.

8.1 AS NEUROCIÊNCIAS: UM BREVE ACENO HISTÓRICO

Dada a vastidão daquilo que aqui nos propomos a discutir, faremos


um breve histórico dos primórdios das Neurociências para, em seguida,
compreendermos o seu caráter interdisciplinar e sua articulação com
outras ciências. Deste modo, buscaremos uma interseção com o campo
da antropologia agostiniana na busca do que inquirimos inicialmente: o
lugar da alma no corpo, seu limite e extensão.
O que hoje congregamos com o nome de Neurociências faz parte de
uma discussão antiga, ou seja, filosófica. Melhor dizendo, o seu
nascedouro é anterior à Filosofia, mas a sua discussão, enquanto
sistematização, é notadamente filosófica. No entanto, antes de se tornar
uma discussão filosófica, encontramos registros pré-históricos que
datam de um milhão de anos ou mais (BEAR; CONNORS; PARADISO,
2017; DE TONI; ROMANELLI; DE SALVO, 2005). Peças arqueológicas
deste período foram encontradas com perfurações cranianas por
instrumentos pontiagudos que forneciam indícios cirúrgicos.
190 • Com Agostinho, e além dele

Tais perfurações encontradas nestes registros históricos


sugeriram a técnica da trepanação 9, bastante difundida na Idade Média,
para o tratamento de desordens mentais. Em referência a relatos de
Walsh, os autores De Toni, Romanelli e De Salvo (2005, p. 49) afirmam
que “desde a origem pré-histórica, a trepanação vem sendo realizada
por diversos povos, observando-se, inclusive, em dias atuais este tipo de
intervenção cirúrgica em algumas tribos”. Vejamos, a seguir, uma
ilustração a respeito:

Fonte:https://www.facebook.com/drsaulalmeida/photos/a.120829032917603/24071310759
5861/?type=3

Curiosa é também a correlação cérebro/coração na investigação da


alma humana que encontramos no registro de Bear, Connors e Paradiso

9
A respeito do termo vejamos, além da ilustração, o que nos relatam Bear, Connors e Paradiso (2017,
p.5): “Há cerca de 7.000 anos, as pessoas já faziam orifícios no crânio de outros (um processo chamado
trepanação), evidentemente com o intuito de curar e não de matar. Tais crânios mostram sinais de cura
após a operação, indicando que esse procedimento era realizado em sujeitos vivos e não era meramente
um ritual conduzido após a morte. Alguns indivíduos sobreviveram a múltiplas cirurgias cranianas. Não
temos muita clareza a respeito do que esses cirurgiões primitivos queriam realizar, embora haja quem
especule que esse procedimento poderia ter sido utilizado para tratar dores de cabeça ou transtornos
mentais, talvez oferecendo aos ‘maus espíritos’ uma porta de saída.”
Pompeia Rosalia Sena Maltese • 191

(2017, p.5), no qual fica evidente que os rituais de mumificação favoreciam


aos egípcios o desvendamento do cérebro humano, apesar da hesitação
daqueles no tocante aos comandos corporais de um e de outro:

Escritos recuperados de médicos do Egito antigo, datando de quase 5000


anos atrás, indicam que eles já estavam bastante cientes de muitos dos
sintomas de lesões cerebrais. No entanto, também está bem claro que, para
eles, o coração, e não o encéfalo, era a sede do espírito e o repositório de
memórias. De fato, enquanto o resto do corpo era cuidadosamente
preservado para a vida após a morte, o encéfalo do morto era removido
pelas narinas e jogado fora! O ponto de vista que sugeria ser o coração a sede
da consciência e do pensamento permaneceu até a época de Hipócrates.

À guisa de esclarecimento, queremos antes de dar continuidade


histórica à compreensão sobre o cérebro humano, estabelecer algumas
distinções. Costumamos imaginar, erroneamente, o cérebro como
aquela estrutura que fica sob o abrigo da caixa craniana. No entanto, a
nossa caixa craniana abriga outras estruturas – mesencéfalo, ponte
encefálica, bulbo, cerebelo, talvez menos mencionados –, sendo o
cérebro uma delas, com a denominação mais específica de telencéfalo,
no qual se encontram as atividades mentais superiores. Em seu
conjunto, estas estruturas recebem o nome de encéfalo 10. Todas elas
fazem parte do nosso Sistema Nervoso Central. Por outro lado, temos
uma estrutura que também faz parte do Sistema Nervoso Central que

10
Tentaremos ser mais precisos nesta nota explicativa: o que chamamos comumente de cérebro recebe
o nome de encéfalo, que se divide em telencéfalo, mesencéfalo, ponte encefálica, bulbo e cerebelo.
Toda esta estrutura encontra-se em nossa caixa craniana. O telencéfalo é a região do encéfalo
relacionada às funções mentais superiores ou funções cerebrais superiores – das quais fizemos menção
às funções cognitivas. Daí, na estrutura do encéfalo como um todo, o telencéfalo é chamado de cérebro
propriamente dito.Esquematicamente temos: Encéfalo= cérebro (telencéfalo) + mesencéfalo + ponte
encefálica + bulbo + cerebelo.
192 • Com Agostinho, e além dele

não está contida na caixa craniana, a nossa medula espinhal 11, que segue
ao bulbo – dentro do crânio – e sai por uma abertura inferior da caixa
craniana, alojando-se na coluna vertebral.
Sem mais delongas, o que queremos dizer é que o nosso Sistema
Nervoso Central rege nossos pensamentos e nossas ações, se
considerarmos ações como todo movimento para um objetivo,
consciente ou inconsciente, como é o caso dos movimentos reflexos. O
estímulo reflexo gera um movimento que percorre a nossa medula
espinhal e a elaboração posterior deste movimento se processa em
nosso cérebro, como, por exemplo: uma espetada no braço gera um
movimento, uma ação de retirada daquela parte do corpo pela sensação
dolorosa que é enviada ao nosso cérebro. Similarmente, qualquer outro
movimento corporal é elaborado em nosso cérebro.
No entanto, a evidência desta correlação só aos poucos foi sendo
estabelecida. Considerando o Egito antigo, as correlações da
responsabilização do cérebro ou coração para os comandos corporais
aconteceram de forma não muito diferente na Grécia antiga.
Empédocles de Agrigento (430 a. C.) – anteriormente à Hipócrates (377
a. C.) – já correlacionava o funcionamento cognitivo ao cérebro, o que
foi corroborado posteriormente pelo pai da Medicina, conforme nos
apresenta Caldas (2010, p. 9), em sua citação:

Deveria ser sabido que ele (cérebro) é a fonte do nosso prazer, alegria, riso
e diversão, assim como do nosso pesar, dor, ansiedade e lágrimas, e nenhum
outro que não o cérebro. É especificamente o órgão que nos habilita a
pensar, ver e ouvir, a distinguir o feio do belo, o mau do bom, o prazer do

11
Não confundir com medula óssea.
Pompeia Rosalia Sena Maltese • 193

desprazer. É o cérebro também que é a sede da loucura e do delírio, dos


medos e sustos que nos tomam, muitas vezes à noite, mas às vezes também
de dia; é onde jaz a causa da insónia e do sonambulismo, dos pensamentos
que não ocorrerão, deveres esquecidos e excentricidades.

Apesar disto e, posteriormente a ambos, para Aristóteles (322 a.C.)


era o coração e não o cérebro que guardava primazia sobre a esfera da
emoção, do sentimento, das paixões 12em geral e também da razão. É o
que vemos em Caldas (2010, p.8), num quadro bastante elucidativo, em
referência à Aristóteles:

CORAÇÃO CÉREBRO

–Éafectadopelasemoções; – Não é afectado pelas emoções;


–Todososanimaistêmcoração ou órgão similar; –Sóosvertebradosencefa-
– É a fonte do sangue que é lópodestêmcérebro,emesmo assim os outros
necessáriaparaassensações; animais têm sensações;
– É quente, característico da vida superior; –Nãotemsangueeporisso não tem sensações;
–Liga-seatodososórgãosdos –Éfrio;
sentidosemúsculosatravés dos vasos –Nãoestáligadoaosórgãos dos sentidos;
sanguíneos; – Não é essencial para a vida;
–Éessencialparaavida; –Forma-semaistarde;
– Forma-se mais cedo e é o primeiro a parar; –Insensível:seocérebrode
–Temsensibilidade; umanimalvivoforexposto,
–Estálocalizadonumaposição central, podesercortadosemquehaja sinais de dor ou
apropriada à sua função central. sofrimento;
–Nãoestánumaposição central.
Fonte: CALDAS, 2010, p. 8.

12
O termo paixão provém da palavra grega παθος (pathos), constituindo-se como uma antiga discussão
filosófica. A sua conotação discursiva, de acepção negativa em todo o debate filosófico, ganhou novos
contornos com o cristianismo, no qual a paixão passou a ser considerada, por vezes, como algo positivo
pela estreiteza de sua relação com a emoção. Isto se dá exatamente no direcionamento do debate
agostiniano. A respeito, ver o verbete Emoção em Ferrater Mora, Dicionário de Filosofia. Ver ainda Paixão
em Reale, em sua História da Filosofia Antiga, vol. V. Phatos é também traduzido como doença, de modo
que assim o encontramos na terminologia médica.
194 • Com Agostinho, e além dele

Desta feita, perdurou por muito tempo ainda a compreensão de que


era o coração e não o cérebro a instância que respondia pelas funções
mentais superiores e, mesmo com as evidências científicas provindas
dos séculos seguintes, sobretudo da Idade Moderna, o coração ainda
desponta como guardião da emoção, do sentimento e, portanto, das
paixões, ao qual se devotam as almas na avidez da expressão poética que
dele emana.
Aqui, retomamos a questão que trouxemos de início: onde residem
todas estas impressões? Elas se perdem com a morte do corpo, que já
não lhes dá continuidade? Mas, antes mesmo desta separação
corpo/alma, o que ocorre com os acontecimentos passados? Se perdem
igualmente com o tempo que passa? Embora estejam as Neurociências
em ascensão, tais controvérsias mantêm-se, ainda hoje, num
conflituoso embate.
O resgate dos saberes antigos nas pesquisas neurocientíficas desde
o seu desabrochar, no final do século XIX e, consideravelmente no
século passado, dá-nos elementos a favor de sua multi e
interdisciplinaridade, corroborando, sobretudo, que, apesar de sua
terminologia de certo modo recente, há uma longa história por trás de
suas atuais pesquisas. No cenário ocupado pelo homem, os seus diversos
saberes se aglutinam, pois, e encontramos novos termos, novas
nomenclaturas: Neuropsicologia, Neurofilosofia, Neuroética,
Neurofenomenologia, Neuroteologia, entre outras mais, aglutinadas ao
prefixo neuro, hoje muito em voga pelo patamar ocupado pelas
Neurociências nos dias atuais. Considerando o autor que ora
Pompeia Rosalia Sena Maltese • 195

apresentamos e sua eminência teológica, busquemos conhecer um


pouco a Neuroteologia.

8.1.1 NEUROTEOLOGIA: O QUE É ISTO?

Notadamente, cada época histórica trouxe consigo, em seus


diversos contextos, auspícios para uma melhor qualidade de vida, ao
menos idealmente, a depender do sistema político, de determinadas
comunidades, grupos sociais ou mesmo clãs ao longo da história
humana, marcada por medos e inseguranças em sua guerra pela
sobrevivência. O que é fomentado ou combatido ansiava a busca por
qualidade de vida, embora o tratamento dado a isto se utilizasse de
termos diversos. Hoje, quando falamos em qualidade de vida pensamos
em lazer, atividade física, boa alimentação e ensejos de longevidade. A
Organização Mundial de Saúde tem se colocado, atualmente, atenta a
essas discussões, até mesmo pelo envelhecimento da população em
larga escala, que requer investidas nas políticas públicas na tentativa de
mitigar o agravamento desta questão.
Segundo Berger e Luckmann, em seu livro Modernidade, pluralismo
e crise de sentido 13, vivemos, nos dias de hoje, imersos num desenfreado
pluralismo que ameaça a auto evidência, ou seja, as referências
identitárias foram se perdendo nos últimos anos pelo afrouxamento das
instituições e da oferta desenfreada de estímulos que, ao contrário de
fornecer alternativas de escolhas, aguçam a indecisão e a incerteza.
Questões acerca do vazio existencial, proveniente desta crise de sentido,

13
Ver lista de Referências ao final do texto.
196 • Com Agostinho, e além dele

foram também discutidas pelo fundador da Logoterapia, o psiquiatra


austríaco Viktor Frankl 14, na mesma perspectiva de implicação com
qualidade de vida. Elas propiciaram, como ensejo para esta última, a
inclusão da dimensão espiritual pela Organização Mundial de Saúde
(OMS) em 1988, independente das práticas religiosas dos sujeitos em
questão 15.
Certamente, estas discussões, com o advento das Neurociências e
o fomento das pesquisas sobre o cérebro humano, abriram-se ao campo
de outras especialidades ou especulações científicas, de modo a se falar
não só em Neuropsicologia, como já mencionamos, mas também em
suas interfaces com a Filosofia e a Teologia. Daí, a Neuroteologia.
Podemos dizer que as Ciências da Religião encontraram nas
Neurociências uma nova perspectiva de abordar o fenômeno religioso.
Aliás, quando falamos em Ciências da Religião estamos considerando o
olhar das diversas ciências sobre o fenômeno religioso, na perspectiva
do objeto formal de cada uma delas. Portanto, a Psicologia, pelo viés da
subjetividade e do comportamento; a Filosofia, nas inquietantes
provocações acerca do homem, do mundo e de Deus; a Teologia, na
dimensão espiritual humana e tantas outras ciências, nas respectivas
abordagens de seu objeto formal. O pensar sobre as Neurociências é
diverso, levando, portanto, a diversas proposições e associação com
outras ciências.

14
Ver lista de Referências ao final do texto.
15
Ver Oliveira e Junges, Saúde mental e espiritualidade/religiosidade: a visão de psicólogos, em nossas
Referências ao final do texto.
Pompeia Rosalia Sena Maltese • 197

As discussões acerca da relação mente/cérebro trazem consigo


algumas teses que atraem debates neuroteológicos, dentre as quais
podemos citar duas delas: a tese ontológica e a tese da irredutibilidade
(MARQUES, 2018, p. 1060). A primeira defende a ideia de que cérebro e
mente – ou seja, o processamento mental com as suas funções
cognitivas e afetivas – são a mesma coisa. Dito de outro modo, a mente
se reduz ao funcionamento cerebral. Desta forma, resolve-se o dualismo
mente/cérebro. A tese da irredutibilidade, conforme indica o próprio
nome, postula que a mente não está reduzida ao funcionamento
cerebral, embora admita a sua causalidade: “o mental por mais que
emerja do físico não pode reduzir-se a esse nível” (MARQUES, 2018, p.
1060). O dualismo mente/cérebro se resolve aqui pela causalidade
cerebral, na qual não existe mente sem cérebro.Percebe-se, pois, que as
duas abordagens tentam preservar a unidade do homem, o que também
o demonstra a reflexão teológica. Nesta linha de raciocínio, Valle (2001,
p. 44) nos aponta em suas argumentações filosóficas em defesa do
homoreligious 16que:

[...] pode-se dizer da mente e do cérebro que eles não são duas realidades
separadas e distintas. São simultaneamente neurônios e imagens mentais.
São sentimentos e produtos do espírito. São a um só tempo realidade
‘mística’ e realidade ‘material’.

A Neuroteologia pretende, portanto, discutir estes impasses, uma


vez que o cérebro é massa corpórea e corruptível. Se a mente e o cérebro

Homo religious realça o ser do homem fadado à espiritualidade, ou seja, a espiritualidade é constitutiva
16

do ser humano.
198 • Com Agostinho, e além dele

são uma só unidade, qual seria a permanência da atividade – ou


processamento mental – gerada nesta unidade uma vez que o cérebro
se desintegra? Diante desses dilemas, os seus argumentos buscam a
preservação da atividade humana na relutância de seu aniquilamento,
uma vez que estas discussões se acentuam demasiadamente quando se
coloca em relevo a dimensão noética 17 ou espiritual do homem. É,
portanto, no direcionamento da dimensão espiritual do homem que
atentamos quando nos referimos à Neuroteologia, o pensar sobre Deus,
independentemente de sua designação 18, em correlação com as
estruturas cerebrais que fazem do homo sapiens, constitutivamente,
homoreligious. Não se trata de agregar o prefixo neuro a uma teologia
específica. Segundo Valle (2001, p. 40):

As religiões da humanidade, das mais “primitivas” às mais sofisticadas,


surgiram só na medida em que os mecanismos neuropsicológicos humanos
se apuraram e assumiram as características do sentir, do agir e do pensar
propriamente humanos. São características que se vinculavam ao senso de
si e dos outros em um mundo e uma natureza percebidos como necessários
e imanentes, mas também, de alguma forma relacionados com forças ou
entidades “transcendentes”.

Quando estas reflexões se voltam para a compreensão da


experiência mística a partir da perspectiva ontogenética e, porque não
dizer, filogenética humana, fatalmente, vai ocorrer ali um
entrecruzamento com as Neurociências. Desta feita, temos a
Neuroteologia.

A dimensão noética é bastante mencionada na Logoterapia e diz respeito ao desejo de transcendência


17

humana, àquilo que faz parte de sua dimensão espiritual.


18
De que ou qual Deus é este.
Pompeia Rosalia Sena Maltese • 199

8.2 A DIMENSÃO CORPO E ALMA NOS ESCRITOS AGOSTINIANOS

A antropologia agostiniana, inicialmente, parecia vislumbrar o


homem numa certa dicotomia corpo e alma. No entanto, à medida que
seus escritos foram avançando, evidenciou-se uma concepção de
homem em sua totalidade, ou seja, em sua peculiar manifestação de
unidade corpo e alma 19. Lembremos que antes de sua conversão ao
cristianismo, Agostinho era adepto do maniqueísmo 20, que tem em seus
fundamentos uma concepção dualista e a ideia de dois princípios, um do
bem e outro do mal a reger o universo. A incursão deste autor pela
Filosofia lhe imprimiu esta mesma influência, que repercutiu em sua
explanação inicial, tal qual vemos em seus Solilóquios 21, que se inclui
entre os seus primeiros escritos: “[...] somos compostos de duas partes,
isto é, de alma e de corpo, das quais a primeira parte – a alma – é melhor,
e a pior parte é o corpo [...].” (AGOSTINHO, 2007, p.42- 43 – Sol, I, XII, 21).
O entendimento acerca desta unidade corpo/alma, aos poucos, vai
sendo explicitada: “Se definirmos de outro modo o homem, e dissermos:
‘O homem é uma substância racional que consta de alma e corpo’, fica
esclarecido que ele tem uma alma, que não é corpo; e tem um corpo, que

19
Na verdade, fazendo jus a uma concepção propriamente cristã do homem, na qual a consideração
acerca da ressurreição dos corpos imprime o caráter de corpo como um valor, do que aquela carregada
pela influência grega, abertamente dicotômica, na qual o corpo é um mero acidente.
O Maniqueísmo era uma das tendências do gnosticismo, uma heresia que provinha do cristianismo,
20

mesclando elementos deste com outras concepções religiosas e correntes filosóficas, sincretizando-os.
Agostinho, nele permaneceu ao longo de quase dez anos de sua vida. A este respeito ver Costa, 2003,
em nossa lista de Referências.
21
Os Solilóquios são conhecidos como uma de suas primeiras obras. São escritos em forma de diálogos
entre outros de seus livros e, por isso, fazem parte dos chamados diálogos de Cassicíaco, região do norte
da Itália para onde Agostinho se retirou por um período de sua vida após sua conversão ao cristianismo.
200 • Com Agostinho, e além dele

não é alma” (AGOSTINHO, 2008, p.493 - De Trin, XV,7,11) 22. Parece clara
a unidade pressuposta por Agostinho e a mera distinção de suas partes.
Daí, Meconi e Stump (2016, p.162) a repetem e acrescentam seu
comentário bastante elucidativo a respeito daquela afirmação:

Para Agostinho, o ser humano é uma substância racional que consiste de


alma e corpo. Nem a alma sozinha, nem o corpo, é um ser humano
individual ou uma pessoa humana. Só o compósito alma-corpo é um homem
individual ou uma pessoa humana.

Decerto, a discussão sobre a materialidade e imaterialidade de uma


e de outra substância, e a relevância discursiva de todos os s seus
escritos no tocante à alma como sede da mente, da razão, do
pensamento, o que a faz estar bem perto de Deus 23, o fazem antepor sua
importância e considerá-la como regente do próprio corpo, sua
inabitação. Em Sobre a potencialidade da alma, Agostinho deixa isto bem
claro: “E se quer uma definição da alma, e saber o que ela é, respondo
facilmente: É substância dotada de razão, apta a reger um corpo”
AGOSTINHO, 2005, p. 67 – De quant. animae, 13.22).
Quando falamos em corpo, pensamos numa estrutura física e,
embora a alma não possa ser pensada fora dela, parece escapar dessa
estrutura. A dificuldade desta compreensão leva Agostinho a elaborar
uma analogia geométrica em seu livro Sobre a potencialidade da alma no
qual, embora atento à forma em suas considerações analógicas, assevera

22
O seu livro A Trindade é uma obra da maturidade, juntamente com suas Confissões e A Cidade de Deus,
nas quais encontramos as mesmas considerações sobre a unidade corpo e alma.
23
Ver, entre outros, Sobre a potencialidade da alma: “E num breve resumo: ainda confessando que a alma
humana não é o mesmo que Deus, temos que deduzir que nada criado está mais perto de Deus.”
(AGOSTINHO, 2005, p. 75 – De quant. animae, 34, 77).
Pompeia Rosalia Sena Maltese • 201

que a alma suplanta a materialidade do corpo e tem etapas de


crescimento que lhe são próprias. Encontramos ainda no livro citado
que a alma “apresenta certo progresso até sem desenvolvimento do
corpo” (AGOSTINHO, 2005, p. 75 – De quant. animae, 16, 27). Um dos
capítulos deste seu livro traz a seguinte nota explicativa: “[...] a alma,
que não é abstração, e tem realidade própria, é a magnitude inteligível,
intuída por nós em sua verdade existencial” (AGOSTINHO, 2005, p. 81–
De quant. animae – destaque do comentador). Em comentários a este
respeito, Strefling (2014, p. 184-185) afirma que:

Todo o corpo, por ter longitude, latitude e profundidade, é extenso, porém,


isso não pertence à alma; todavia, não significa que a alma, por carecer de
extensão, não seja uma coisa: assim como não se pode pensar na justiça
como algo largo ou alto, da mesma forma, a alma deve ser pensada fora de
toda extensão. Por sua relação com o corpo, tendemos a considerá-la
semelhante a ele, embora não seja, necessariamente, corpo aquilo que tenha
aparência de um corpo, como é o caso, por exemplo, de nossos sonhos, nos
quais vemos uma semelhança completa de nosso corpo, mas que, na
verdade, não é corpo, não tem extensão, pois se trata apenas da alma, que
imagina e retém na memória [...] A alma se encontra em todo o corpo que
anima e se acha difundida, não por difusão local, mas como atividade
vivificante, de tal modo que está presente toda inteira e, simultaneamente,
em todas e cada uma das partes do corpo.

Ademais, a consideração cristã de pessoa implica a apropriação


corpo/alma como uma unidade, sendo o corpo a demarcação de nossa
individualidade. Não existe indivíduo fora do corpo. Como instrumento
ou meio que expressa as sensações e as funções cognitivas do homem e
que lhe dão acesso ao conhecimento de si mesmo, do mundo e de Deus,
o corpo é o depositário daquilo que extrapola o meramente sensível, ou
202 • Com Agostinho, e além dele

seja, as sensações, as percepções. O corpo é sempre único, fazendo jus à


denominação de indivíduo, que é aquilo que caracteriza um único
elemento da mesma espécie e que se aplica não só à espécie humana,
mas também à espécie animal, bem como à vegetal. O corpo é a
“identidade numérica do ser humano” 24, de modo que a referência ao
corpo vai além de uma consideração materialista, sendo constitutivo da
pessoa e, para o cristianismo ganha um papel de excelência, por ser
considerado templo no qual habita o Espírito de Deus, conforme as
Escrituras bíblicas. Para este, o cristianismo, o corpo é, portanto, um
bem e exterioriza a alma que nele habita.
Para Agostinho, o corpo é uma mescla de agente, enquanto
impulsionado para um movimento, mas, também de passivo, por este
mesmo motivo: é impulsionado, algo o move, ou seja, ele é movido, em
seu aspecto sensível, como receptáculo das sensações. As sensações, por
sua vez, caracterizam-se como uma primeira via para o conhecimento,
que se dá por etapas. É a partir destas ponderações que compreendemos
a relevância da alma nos escritos agostinianos, por ser ele “um pensador
que presta atenção à vida interior: experiências, ocorrências mentais,
atos que considera irredutíveis aos eventos ou propriedades corporais”
(MECONI; STUMP, 2016, p. 178).
Segundo Lima Vaz (1993, p. 175), o corpo não pode ser
compreendido como uma mera entidade física: “Não se trata do corpo

24
Trazemos aqui uma paráfrase do comentário de Meconi e Stump (2016, p.165) a respeito de Agostinho
e sua compreensão do dualismo corpo-alma: “De acordo com Agostinho, é a alma que conduz à
identidade numérica de um ser humano através do tempo e também depois do tempo”. A conciliação
da paráfrase acima com a afirmação dos autores que aqui trazemos sobre o pensamento de Agostinho
veremos logo a seguir.
Pompeia Rosalia Sena Maltese • 203

enquanto entidade físico-biológica, mas do corpo enquanto dimensão


constitutiva e expressiva do ser do homem”. Do mesmo modo o entrevê
Agostinho, pois, nem mesmo os escritos iniciais de sua estada em
Cassicíaco remeteram as suas ponderações acerca do corpo a demérito.
Talvez, apenas aparentemente, pela supremacia da alma e sua alta
consideração sobre as questões do conhecimento.
À época de Agostinho, os estudos anatômicos e fisiológicos eram
ainda incipientes, até mesmo um tabu, deixando de sê-lo a partir da
concepção do corpo como máquina, na Idade Moderna. Esta concepção
sofre hoje uma dura – e legítima – crítica, no entanto, foi o que permitiu
avanços para a compreensão daquele a partir mesmo das técnicas de
dissecação que impulsionaram os conhecimentos acerca da anatomia
humana, pois, anteriormente a isto, o corpo era intocável. Considerando
o corpo como o conhecemos hoje em sua unidade de sistemas –
endócrino, digestório, circulatório, nervoso, entre os demais –
anatomicamente e fisiologicamente falando, encontraremos uma
instância regente, que é um lugar de elaboração e interpretação da
realidade e que também é corpo e tem, inclusive, massa, extensão e
outros atributos corpóreos. Inegavelmente, hoje entendemos que a
nossa atividade, envolvendo experiências, emoções e sentimentos
encontram-se em nosso cérebro. O grande dilema filosófico e também
teológico, entre tantas outras implicações com estes conhecimentos, é
reduzir naquele órgão esta atividade.
Os conceitos de alma, espírito, mente são terminologias que muitas
vezes se confundem pelo seu avizinhamento e amplitude semântica. Tais
categorias encontram-se muito bem discutidas em Vaz (1993, p.180-181),
204 • Com Agostinho, e além dele

em sua Antropologia filosófica, na qual destacamos também a de corpo, em


continuidade com o que trouxemos deste autor anteriormente:

a compreensão explicativa conceitualizou o corpo na sua alteridade objetiva


com relação ao Eu observante e racional [...] o corpo se mostrou um lugar
originário de significações que aparecem integrando necessariamente o
campo de expressão do Eu [...] o sujeito se questiona sobre a corporalidade
como estrutura essencial constitutiva desse seu ser.

Conjecturamos que o mesmo diria Agostinho em sua


argumentação a respeito desta categoria. Aliás, esta sua argumentação
já foi explicitada. No entanto, na conjugalidade de sua compreensão
sobre a unidade corpo / alma, a sua resolução é mais teológica que
filosófica, apesar da lógica que emprega como instrumento para aquela
compreensão. Refutando a noção grega de transmigração das almas e
em sua argumentação sobre a ressurreição dos corpos, tese teológica
cristã, Meconi e Stump (2016, p. 166) nos afirma que:

Para Agostinho, as partes metafísicas que constituem um ser humano, ou


seja, a alma e o corpo, hão de ser numericamente idênticas de modo que
numericamente o mesmo ser humano exista [...] A reunião dos mesmos
elementos é, portanto, necessária e suficiente para a identidade numérica
da ressurreição corporal com o corpo terreno [...] O que faria de um corpo o
meu corpo seria a sua ligação com a minha alma.

A argumentação teológico-filosófica de Agostinho vê na


perspectiva da ressurreição dos corpos não só a salvaguarda da unidade
corpo/alma, bem como a preservação da categoria do mental e seus
correlatos, portanto, naturalmente, sem contrariar a sua antropologia
teológica, o não aniquilamento da dimensão espiritual humana.
Pompeia Rosalia Sena Maltese • 205

Sem pretensão de esgotarmos aqui nossa temática, apenas


trouxemos intercessões em suas teias de conhecimento. Ademais,
temos um limite metodológico na empreitada deste nosso artigo, ao
qual ensejamos uma continuidade de aprofundamento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A nossa incursão nesta temática é simplesmente à guisa de


provocação para que dela demandem novas interlocuções e
aprofundamentos. A interdisciplinaridade das Neurociências com a
Filosofia, a Teologia e outras ciências se lança como a alternativa capaz
de gerar uma maior compreensão dos “mistérios” humanos, porém
sempre num contínuo e aberto questionamento e na acolhida de
proposições divergentes, que podem ser colocadas como hipóteses para
uma ulterior investigação. Na tentativa de remeter um conhecimento
ao outro, poderíamos chamar esta alternativa de transdisciplinaridade,
necessária a uma análise séria e ponderada para dirimir as
controvérsias e embates.
As realidades intangíveis da nossa existência não são menos reais
porque são intangíveis. Elas subsistem em nossas memórias e na
memória que permanece sobre nós. A argumentação teológico-
filosófica de Agostinho vislumbra a pessoa, realidade humana, num
continuum para além do corpo perecível, onde este mesmo corpo
resgatará sua corporalidade em união com a alma em sua composição
de unidade criada. Ao menos, esta é a defesa daquele autor. Até o
momento, não encontramos unanimidade sobre as relações existentes
206 • Com Agostinho, e além dele

entre cérebro e mente. Tampouco estas discussões caberiam aqui. Mas,


seremos leais à tradição filosófica em suas primeiras investigações, na
qual a pergunta é mais importante e instigante do que a resposta, pois
“nenhum modelo científico tem a pretensão de esgotar o real [...] as
explicações mais interessantes resultam do diálogo, não são exclusivas,
portanto, de um tipo de saber.” (SANTOS, 2015, p. 629).
As categorias filosóficas aqui trazidas como alma, espírito, mente,
respondem também pelas realidades intangíveis, tais como nossos
sonhos, emoções, desejos, sentimentos, pensamentos, nossa
consciência, nossa razão e seus correlatos. Seremos remetidos a outros
questionamentos no encontro interdisciplinar das Neurociências com a
tradição filosófica e as demais ciências, tendo em vista um mais amplo
conhecimento sobre estas realidades. Enfim, poderíamos apontar entre
os “fiéis depositários” de todas estas instâncias o homem, em si mesmo,
“esse estranho ímpar” 25, em sua inteireza de corpo e alma, e em sua
busca pelo autoconhecimento. Mas, sigamos a tradição filosófica em
propor sempre novos questionamentos, pois não podemos e não
queremos encerrá-los aqui.

REFERÊNCIAS

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Paulus, 1997 (Coleção Patrística, n. 10)

AGOSTINHO, Santo. Sobre a potencialidade da alma. Tradução de Aloysio Jansen de


Faria. Petrópolis: Vozes, 2005.

25
Do poema Igual-desigual, de Carlos Drummond de Andrade, que atesta a identidade numérica –
conforme mencionado – de nosso serindivíduo.
Pompeia Rosalia Sena Maltese • 207

AGOSTINHO, Santo. Solilóquios; A vida feliz. Tradução de Nair de Assis Oliveira. 3. ed.
São Paulo: Paulus, 2007a. (Coleção Patrística, n. 11).

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Paulus, 2008. (Patrística, 7).

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desvendando o sistema nervoso [recurso eletrônico]. Tradução de Carla Dalmazet
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orientação do homem moderno. Tradução de Edgar Orth.3. ed. Petrópolis: Vozes,
2012.

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SAMPAIO, Juliana Lira; BITTENCOURT, Renato Nunes; BARROS, Tiago Mota da Silva
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7-17, 2010.

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evolução da neuropsicologia: da antiguidade aos tempos modernos. Psicologia
Argumento, v. 23, n. 41, p. 47-55, 2005.

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concentração. 40. ed. revista. Tradução de Walter O. Schlupp e Carlos C. Aveline.São
Leopoldo: Sinodal; Petrópolis: Vozes, 2016a.

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208 • Com Agostinho, e além dele

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MECONI, Vincent; STUMP, Eleonore (orgs.). Agostinho. Tradução de Jaime Clasen. São
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STREFLING, Sérgio Ricardo. Os sete graus de atividade da alma humana no De


quantitateanimae de Santo Agostinho. Trans/Form/Ação, v. 37, p. 179-200, 2014.

VALLE, Edênio. Neurociências e religião: interfaces. Revista de estudos da religião, v. 6,


n. 3, p. 1-49, 2001.

VAZ, Henrique C. de Lima. Antropologia filosófica I. São Paulo: Loyola, 1993.


9
O OBJETO DA CIÊNCIA NATURAL
SEGUNDO TOMÁS DE AQUINO
Rodrigo José de Lima 1

“É, com efeito, natural ao homem aspirar ao conhecimento da verdade.”


(Tomás de Aquino).

INTRODUÇÃO

O interesse da filosofia pela catalogação dos saberes é uma


temática que perpassa a história do pensamento filosófico. Prevaleceu
o entendimento que uma das condições de possibilidade para o
conhecimento ser efetivado é que deveria haver a equivalência entre o
objeto e o método adequado para investigá-lo. Tomás, enquanto
herdeiro da tradição filosófica, partilhou tal interesse e abordou o
assunto em várias passagens ao longo de sua obra.
Apesar de alguns autores terem chamado a atenção para a
importância do interesse de Tomás sobre o aspecto metodológico do
procedimento das ciências, tal perspectiva continua sendo ofuscada
pela ênfase posta sobre outras partes de seu sistema filosófico,
especialmente sua metafísica (MULLAHY, 1946, p. 83). A abordagem
sistemática e formal que encontramos no seu comentário ao De
Trinitate 2 e na Expositio Super Physicam, faz com que essas obras sejam

1
Doutor em filosofia (UFPE). E-mail: rodrigocfch@gmail.com
2
Obra doravante mencionada por DT,as menções ao texto da mesma obra disponibilizada no corpus
thomisticum serão indicadas por In BDT.
210 • Com Agostinho, e além dele

para nós fonte primordiais para compreendermos o seu entendimento


quanto ao procedimento metodológico das ciências e os respectivos
objetos. Da primeira obra, consideraremos as quaestiones5 e 6, dado que
aí encontramos uma análise mais pormenorizada do objeto da Ciência
Natural; da Expositio priorizaremos a Lectio3.
Inicialmente, devemos constatar que a delimitação do objeto da
Ciência Natural, nos termos que o Aquinate formula no DT, é um tema
circunscrito num contexto mais amplo de investigação, a saber, se a
ciência especulativa é dividida apropriadamente em Ciência Natural,
Matemática e Metafísica. Assim, é como etapa resolutiva desta questão
que o estudo sobre o objeto da Ciência Natural aparece inicialmente em
sua obra. Já quando o tema é tratado na perspectiva da Sententia, isto se
dá naturalmente na medida em que o texto comentado lida com o
assunto, sendo então necessário comentá-lo.
Em resumo, o tema de nossa discussão aqui não constituiu uma
preocupação per se para o Aquinate, ao menos não no DT, tem um
contexto mais amplo no qual encontra sua razão de ser. Desta maneira,
havemos de entender em que medida as formulações encontradas no DT
e na Sententia manifestam concordância ou divergência, e, sendo elas
diferentes, poderíamos em alguma medida julgar que isto ocorreu
devido a influência do texto da Física de Aristóteles. Busquemos em
seguida reconstruir a temática na abordagem de Tomás a partir do DT.
Rodrigo José de Lima • 211

9.1 DESENVOLVIMENTO

As ciências especulativas, segundo São Tomás não constituem um


aglomerado de corpo teórico sem qualquer nexo entre si, ao contrário,
é sustentado um princípio intrínseco que garante uma unidade entre
elas, a saber, elas estão orientadas ao conhecimento da verdade. Nisto,
distinguem-se das ciências práticas que, estando inseridas no campo de
possibilidade das ações dos homens, são direcionadas para um fim de
caráter prático. Em síntese, as especulativas possuem como fim a
verdade e, as práticas, encaminham-se para a ação. Após delimitar o
telos do procedimento investigativo, ele expõe a razão da divisão das
ciências especulativas; o critério, por conseguinte, consiste na relação
mantida entre o objeto especulável e a sua separação, ou aplicação, à
matéria e ao movimento. Segundo seu juízo “Sic ergo speculabili, quod est
obiectum scientiae speculativae, per se competit separatio a materia et motu
vel applicatio ad ea. Et ideo secundum ordinem remotionis a materia et motu
scientiae speculativae distinguuntur” (AQUINAS, In BDT, 3 q. 5 a. 1 co. 2).
Podemos tomar a resposta oferecida e perguntar se o especulável
mantém esta relação de aplicação ou remoção per se ou pro intellectu; no
primeiro caso, estamos no âmbito ontológico e a divisão indica o modo
próprio das coisas serem no mundo; no segundo caso, ficamos na
perspectiva da epistemologia, visto que o intelecto através de operação
abstrativa estabelece os objetos das ciências pela consideração de
determinados aspectos inteligíveis.
Verdadeiramente, a resposta oferecida retoma as duas
possibilidades: há alguns especuláveis que dependem da matéria
212 • Com Agostinho, e além dele

sensível no que se refere ao ser (naturais) e quanto à intelecção, visto


que não podem ser, exceto na matéria; e, há outros entes (matemáticos)
que, embora sejam tão somente na matéria, contudo sua intelecção não
depende dela; por fim, há outros entes (metafísicos) que não dependem
da matéria quanto ao ser. Segundo sua elaboração:

“Quaedam ergo speculabilium sunt, quae dependent a materia secundum esse,


quia non nisi in materia esse possunt. Et haec distinguuntur, quia quaedam
dependent a materia secundum esse et intellectum, sicut illa, in quorum
diffinitione ponitur materia sensibilis; unde sine materia sensibili intelligi non
possunt, ut in diffinitione hominis oportet accipere carnem et ossa. Et de his est
physica sive scientia naturalis” (AQUINAS, In BDT, 3 q. 5 a. 1 co. 3).

A dependência estabelecida entre o ser e o inteligir orienta o


conhecimento humano como sendo essencialmente abstrativo. A partir
disto, alguns tomaram como simbióticos os princípios formulados no
DT sobre a dependência ao modo de ser e ser inteligido (MULLAHY, 1946,
p.71). Sem dúvida faz sentido esta maneira de pensar, a questão que
permanece para nós é que não parece ser o caso a intenção do Aquinate
reduzir um princípio ao outro. Ora, ao inserir os objetos no campo da
física ele considera dois aspectos: o modo de ser deles mesmos, que não
podem prescindir da matéria quanto à existência, e também o modo de
os apreender intelectualmente. Lembremos que um ponto fortemente
estabelecido no aristotelismo, e também no pensamento de São Tomás,
consiste na primazia da definição que, sendo a expressão dos aspectos
inteligíveis da quididade 3 apreendida, possui aspecto de universalidade

3
Quidditas, termo introduzido pelas traduções latinas feitas no séc. XII das obras de Aristóteles a partir
do árabe, corresponde à expressão aristotélica (quod quid erat esse). Exprime a essência ou definição de
uma coisa, denota o elemento formal constitutivo dela, aquilo pelo qual lhe é atribuída determinada
Rodrigo José de Lima • 213

enquanto princípio de apreensão do que a coisa é. Por isso, ele diz que
“a coisa não é inteligível senão pela sua definição” (AQUINO, 2010, p.16);
em outras palavras, “a essência é aquilo que é significado pela definição”
(AQUINO, 2010, p. 17).
Pretende-se destacar a relação entre a definição de um ente e sua
intelecção: os entes que pertencem à ciência natural são aqueles em cuja
definição é posta a matéria sensível. Cabe aqui relembrarmos a
conhecida distinção tomista entre materia communisetsignata; a
primeira, compreende o elemento concreto considerado em seu aspecto
genérico, ou seja, indiscriminadamente, tal noção subjaz à ideia de
carne ou ossos; a segunda, por sua vez, refere-se as dimensões restritas
enquanto determinações do particular, esta consideração constitui as
noções de “esta carne”, “estes ossos”. Afirma Tomás:

A definição, homem faz uso da matéria não assinalada. Matéria assinalada


é aquela que é tomada sob dimensões determinadas. De fato, não se põe na
definição do homem esta carne e este osso, mas carne e osso de maneira
absoluta, os quais são a matéria não assinalada do homem (AQUINO, 2010,
p. 18).

Encontramos a mesma compreensão anos mais tarde na Sententia


libri De anima. Afirma Tomás:

O que não está separado da matéria sensível no ser, mas apenas no


pensamento, pode ser percebido na abstração da matéria sensível, mas não
da matéria inteligível. Os objetos físicos, no entanto, embora sejam

espécie e, ao mesmo tempo, a separa de todas as outras espécies. A quidditas responde a questão quid
sit, o que é? Consequentemente expressa aquilo pelo qual uma coisa é tal, e, se distingue das outras
coisas. Tomando a Metafísica, afirma-se que “é a essência considerada enquanto expressada pela
definição”.
214 • Com Agostinho, e além dele

intelectualmente discernidos em abstração da matéria individual, não


podem ser completamente abstraídos da matéria sensível; porque 'homem'
é entendido como incluindo carne e ossos; embora na abstração dessa carne
e desses ossos. Mas o indivíduo singular não é diretamente conhecido pelo
intelecto, mas pelos sentidos ou imaginação (AQUINAS, 1965, p.267).

Como a definição de qualquer forma existente em determinada


matéria deve levá-la em consideração, ou seja, deve declarar que esta
coisa, i.e., a forma, tem o ser neste tipo particular de matéria, então os
especuláveis que dependem da matéria quanto ao ser, exigem em sua
definição a menção à matéria sensível, e são postos como objetos da
Ciência Natural.
No segundo artigo da quaestio V, que indaga sobre a ciência natural
tratar daquilo que é no movimento e na matéria, encontramos o
tratamento mais demorado daquilo que foi apresentado no artigo
anterior, ou seja, a dependência dos entes naturais da matéria quanto
ao ser inteligido. Mas a primeira preocupação de Tomás consistiu em
afirmar a própria possibilidade do conhecimento sobre o mundo, visto
que a tradição tinha legado duas teses aparentemente antagônicas: o
ente móvel devido sua mutabilidade não pode ser objeto de
conhecimento e o conhecimento científico deve ser universal. Na
tentativa de resolução da aporia ele recorreu a distinção entre aquilo
que é por si do que é de acordo com o acidente (quod est per se ab eo quod
est secundum accidens). Afirma Tomás:

Unumquodque autem potest considerari sine omnibus his quae ei non per se
comparantur. Et ideo formae et rationes rerum quamvis in motu exsistentium,
prout in se considerantur, absque motu sunt. Et sic de eis sunt scientiae et
Rodrigo José de Lima • 215

diffinitiones, ut ibidem philosophus dicit (AQUINAS, In BDT, pars 3 q. 5 a. 2 co.


1).

O modo de considerar as formas e as definições, princípios do


conhecimento na medida em que manifestam os constituintes
inteligíveis dos entes ao intelecto, mesmo sendo de coisas existentes no
movimento, quando são consideradas, contudo, não o incluem e, desta
maneira, elas possibilitam o caráter de universalidade necessário ao
conhecimento científico. Ora, retirado o movimento em sua
consideração, deixa-se de lado concomitantemente aquilo de acordo
com o que cabe o movimento às coisas móveis, isto é, a matéria signata
que os singulares incluem em sua definição. As noções através das quais
as ciências lidam com os entes móveis, ao serem consideradas sem a
matéria indicada e tudo o que se segue à matéria, encontram sua razão
na operação intelectual denominada por ele de abstração do universal
em relação ao particular (abstractio universalis a particulari). Assim, há
um duplo esforço: fundamentar a possibilidade de conhecimento
científico sobre os entes naturais, na medida em que se pode considerar
apenas as noções universais obtidas por abstração intelectual e
estabelecer, portanto, que o que é conhecido são os entes mesmos
porque aquelas noções obtidas se referem às próprias coisas das quais
são noções (AQUINAS, In BDT, pars 3 q. 5, a. 2 co. 3).
Tomás apresenta a ciência tratando de algo de dois modos: em
primeiro lugar, trata das noções universais sobre as quais se baseia. Tal
consideração se dá sem movimento e materia signata, mas isto ocorre
apenas pelo modo de consideração; em segundo lugar, trata
reflexivamente enquanto aplica aquelas noções aos entes (AQUINAS, In
216 • Com Agostinho, e além dele

BDT, pars 3 q. 5 a. 2 ad 4). É este segundo modo de consideração que


pertence à Ciência Natural.
Dado esse esquema prévio, nos parece que o texto de Tomás é mais
enfático em relacionar o objeto da Ciência Natural com a categoria de
movimento do que a formulação de Boécio. Segundo este último:

Três são as partes do saber especulativo: a parte natural, circunscrita ao


domínio do movimento e não-abstrata, (άνυπεξαίρετος) (considera, então,
as formas dos corpos com a matéria, as quais não podem ser separadas, em
ato, dos corpos: esses corpos estão em movimento, como quando a terra é
impelida para baixo e o fogo para cima, e a forma, unida à matéria, tem
movimento) (BOÉCIO, 2005, p. 200) 4.

A caracterização da Ciência Natural apresentada por Boécio no


texto acima, segue o mesmo teor da divisão aristotélica e, mesmo se
aceitarmos ou não, a exegese do texto proposta pelo Dr. Juvenal Savian
Filho, segundo o qual, “seria possível traduzir essa expressão ‘e a forma
unida à matéria, tem movimento’ como ‘a forma, em conjunto com a
matéria, tem movimento’, para lembrar que, na verdade, não é a forma
nem a matéria que tem movimento, mas o composto de ambas”
(BOÉCIO, 2005, p. 256)”, fica patente o vínculo estabelecido entre a
materialidade e o movimento para especificar os objetos da física. Tal
associação é expressa no modo de consideração dos entes naturais, os
quais não são concebidos como destituídos das determinações, daí as
formas serem consideradas com a matéria, o que implica dizer que é o

4 A razão de Boécio considerar a divisão da especulativa em um texto que versa inicialmente sobre um
artigo de fé, encontra sua razão de ser no discurso sobre Deus pressupor a compreensão das condições
de possibilidade e limites do conhecimento humano, no interior deste conhecimento especulativo que
Aristóteles lidou, Boécio julgou a fundamentação prévia de sua análise.
Rodrigo José de Lima • 217

sinolon o objeto da Ciência natural. Com razão, o ente natural possui em


si, segundo sua própria natureza, a razão de seu movimento, para
comprovar isso ele recorre à física aristotélica, e indicando que mesmo
os elementos básicos constituintes dos seres naturais mantêm em si a
causa do movimento.
A razão de ser da amplitude da ciência natural na concepção
Tomasiana, se dá como sabemos pela ausência de demarcação entre a
filosofia e as ciências positivas. Daí, quando lemos a exposição de Tomás
nos deparamos com um “saber híbrido” – nas palavras de Van Steenberg
- que mantém reunidos princípios e demonstrações filosóficas com
dados da experiência (STEENBERGHEN1990, p. 79).
Do que temos considerado até então, nos parece que a exposição de
Tomás no DT busca especificar os entes pelo aspecto ontológico
(existência) e o cognitivo (intelecção). Tais horizontes compreensivos
estão presentes na caracterização dos entes naturais, que se encontram
agregados à matéria sensível e ao movimento (AQUINAS, In BDT, pars 3 q.
6 a. 2 co. 2), porém ele não discorre mais extensamente sobre isso. Não há
maiores preocupações do que momentaneamente afirmar que “o
estudioso da natureza e o filósofo primeiro consideram as essências na
medida em que têm ser nas coisas” (AQUINAS, In BDT, pars 2 q. 4 a. 2 co. 5).
Cabe aqui termos em mente a advertência que Armand Maurer fez
sobre tomarmos o posicionamento de Tomás no DT como palavra final
sobre o tema. Se por um lado ele nunca mais tomou a questão da divisão
das ciências e dos seus métodos tão detalhadamente como fez nesta obra,
por isso ela é um texto privilegiado para extrairmos seu entendimento
sobre o assunto. Contudo, devemos reconhecer o caráter juvenil do texto
218 • Com Agostinho, e além dele

e não tomá-lo como palavra definitiva sobre o assunto, devendo então ser
estudado juntamente com outras obras (AQUINAS, 1986, p.3).
Antes de considerarmos a maneira como Tomás tratou o problema
na Sententia super Physicam, cabe relembrarmos a abordagem
aristotélica presente no segundo livro da Física, particularmente no
capítulo II. A necessidade da distinção decorre da aparente
comunicabilidade dos objetos da física e da matemática: “pois também
os corpos naturais têm superfícies e sólidos, bem como comprimentos
e pontos, a respeito dos quais o matemático faz seu estudo” 5
(ARISTÓTELES, 2009, p. 46) e “os que estudam a natureza
manifestamente se pronunciam também sobre a figura da lua e do sol”
(ARISTÓTELES, 2009, p. 46).
Ele procura delimitar cada uma das ciências ao estabelecer seus
objetos que, respeitando o princípio metodológico, exigem
procedimento heterogêneo por causa das especificidades de cada um
dos entes de estudo. Isto se coaduna ainda com o pressuposto do
proceder em alguma ciência ser antecedido pelo entendimento do seu
modo de operar; para esclarecer, portanto, o que é a aduncidade, deve
ser tratado como se procede na Física (ARISTÓTELES, 2009, p. 46).
A oposição estabelecida entre os entes naturais e os matemáticos
julga a concomitância das propriedades que se seguem aos entes
naturais e que os matemáticos consideram apenas isolando-as. Em
outras palavras, o filósofo natural toma o composto de forma e matéria,
isto é, o ente enquanto efetivado pela forma, ao passo que o matemático

5
Como bem observou o Dr. Lucas Angioni: “é a crítica à separação platônica que parece levar Aristóteles
ao problema do método da ciência na natureza” (ARISTÓTELES, 2009, p. 221).
Rodrigo José de Lima • 219

toma as propriedades, que consideradas em si não existem


independentemente dos entes dos quais são propriedades, e são
estudadas como objetos per se. Nas definições dos entes naturais, assim
como de seus concomitantes, é esclarecido como o objeto da física que é
tomado com movimento, e isto porquanto a matéria, que subjaz na
definição deles, é assimilada como constituinte dos referidos seres na
medida em que ela é um princípio passivo que é atualizado pela forma.
Consideremos em seguida como São Tomás compreendeu esta
ideia expressa na Física e, particularmente, se podemos considerá-la
uma modificação daquela encontrada no DT, o que poderia ser
decorrente da influência do texto aristotélico.
Diversos filósofos medievais, dentre eles também o Aquinate,
julgavam que várias obras de Aristóteles eram especificações no âmbito
da ciência natural. Como ele menciona:

Seguem se, no entanto, a este livro os outros livros de ciência da natureza


nos quais é tratado das espécies de móveis, a saber, no livro Sobre o Céu
sobre o móvel de acordo com o movimento local, que é a primeira espécie
de movimento; no livro Sobre a Geração, porém, sobre o movimento para a
forma e sobre os primeiros móveis, isto é, os elementos, quanto às suas
transmutações em geral; quanto, porém, às suas transmutações
particulares no livro dos Meteoros; sobre os móveis mistos inanimados,
porém, no livro Sobre os Minerais; sobre os animados, no entanto, no livro
Sobre a Alma e nos que se seguem ao mesmo (AQUINAS, 1963, p.22).

Segundo Tomás, a Física divide-se em dois segmentos: o estudo do


ente móvel (livros I-II) e o estudo do movimento (livros III-VIII). Na
Lectio I, ele começa por delimitar o campo e o sujeito da física a partir
de duas instâncias diferentes: a maneira como os entes se relacionam à
220 • Com Agostinho, e além dele

matéria e os diferentes modos das ciências definirem os seus objetos. A


argumentação desenvolvida remete ao status ontológico (existência) e
epistemológico dos seres (definição). Neste aspecto, não visualizamos
diferença substantiva entre o texto da Expositio e aquele da DT, o
corolário que ele admite afirma:

[...] because everything which has matter is mobile, it follows that mobile
being is the subject of natural philosophy. For natural philosophy is about
natural things, and natural things are those whose principle is nature. But
nature is a principle of motion and rest inthat in which it is. Therefore
natural science deals with those things which have in them a principle of
motion (AQUINAS, 1963, p. 21).

Há um contraste entre natureza e arte consideradas enquanto


causas do movimento: a natureza é admitida como existindo
imediatamente e a título de atributo essencial nos seres naturais; e, a
arte é tomada como proveniente de um agente externo e de natureza
acidental nos seres. Em outras palavras, a natureza é concebida como
princípio interno, no sentido de que é engendrado por ela própria,
enquanto os entes frutos da arte têm o sentido do seu movimento na
causa eficiente do seu existir. Sumariamente, “a natureza é princípio
interno específico das atividades do ser que ela constitui (GARDEIL,
2013, p. 330), nas palavras de Tomás “A natureza não é nada além de um
princípio de movimento e repouso naquilo no qual ela é primariamente
per se e não per accidens” (AQUINAS, 1963, p. 79). Na Lectio 3, quando
Tomás lista uma série de entes que vão desde os seres vivos e corpos
naturais, até os elementos básicos da natureza,ele justifica sua relação
por conta de todos estes seres possuírem per seum princípio interno de
Rodrigo José de Lima • 221

movimento, que está em conexão com o amplo sentido da ideia de


movimento da física aristotélica. Logo, “não a multiplicidade, que
caracteriza propriamente o ente de natureza, porque apenas este ente é
sujeito ao movimento, enquanto a multiplicidade se encontra
igualmente entre as substâncias imateriais” (GARDEIL, 2013, p. 309).
Nos parece correto o juízo de Mullahy, segundo o qual a
qualificação que Tomás atribui ao objeto da física não reúne dois
princípios formais diferentes, pelo contrário, o destaque sobre a ideia
de ens mobile é devido a caracterização de como conhecemos as coisas e
apenas a mobilidade. Afirma Mullahy:

A expressão ‘Ser sensível’, que alguns tomistas modernos tentaram


substituir, não traz à tona a verdadeira formalidade objetiva em termos da
qual a natureza deve ser estudada. Pois as coisas na natureza não são
sensíveis às substâncias separadas, mas apenas para nós. Portanto,
‘sensível’ não explica diretamente o que as coisas são em si mesmas, mas
apenas como elas são conhecidas por nós. É claro que todo ser móvel é ao
mesmo tempo um ser sensível, pois há uma conexão analítica entre o
movimento e a matéria sensível em que ambos envolvem potência material.
Mas a sensibilidade não explica a natureza objetiva das coisas; apenas
explica como nós a conhecemos. A mobilidade, por outro lado, é algo
objetivo. Mesmo as substâncias separadas conhecendo as coisas naturais
como seres móveis, na verdade, não como nós fazemos, apenas em termos
da formalidade geral da mobilidade, mas em termos do tipo específico de
mobilidade própria a cada espécie ontológica (MULLAHY, 1946, p. 87).

Não há dificuldade em aceitarmos que a exposição acima apreende o


conceito de ens mobile em sua essência: não há no texto de Tomás duas
conceituações formais, ou seja, a formalidade de ser e a formalidade da
mobilidade. Tal composição é tão somente verbal (MULLAHY, 1946, p. 88).
222 • Com Agostinho, e além dele

Verdadeiramente, segundo nossa leitura esta interpretação está


em harmonia com aquela sucinta mente formulada no proêmio do
Cursus philosophicus Thomisticus, por João de São Tomás, onde ele afirma
que a Física “cujus objectum comprehendit omne ens naturale, id est omne
ens mobile secundum aliquem motum corporeum, seu extensum” (THOMAS,
1862, p.1). Mesmo interpretações mais recentes como a de Gredt, não nos
parece se afastar da identificação de vários princípios formais do ens
mobile. Nas palavras de Gredt:

Quia ens mobile est corpus naturale – nam solum corpus naturale est mobile
motu physico seu senbili -, corpus naturale est Philosophiae naturalis obiectum
materiale; obiectum autem formale <<quod>> est ens mobile seu mobile ut sic.
Totum enim ordinem corporeum sub ratione mobilitatis sensilis considerat
Philosophia naturalis (GREDT, 1961, p. 217).

Se estamos corretos nesta interpretação, então a distinção proposta


por John Kelly decorrente da confrontação de textos, que julga ser preciso
distinguir o ser móvel enquanto sujeito da ciência natural e o ser móvel
como sujeito da física. No primeiro caso, o ser móvel considerado como
sujeito à universalidade, ou seja, como possuindo uma extensão e como
tal, constitui um gênero que inclui sobre ele todas as coisas sensitivas ao
sujeito. Em suma, é o genus subiectum da filosofia natural. No segundo
caso, ele é considerado somente em termos dele mesmo sem referência a
possível extensão e, assim tomado, constitui o assunto do primeiro
tratado em filosofia natural (KELLY, 1963, p.27). Tal posicionamento, nos
parece possuir um caráter muito amplo e não restringe a conceituação
Tomasiana da ciência natural. Assim, nos parece pouco precisa na medida
Rodrigo José de Lima • 223

em que não estabelece a razão formal, ao menos não em princípio e per se,
para os objetos da física (KELLY, 1963, p. 19).
Ora, ao considerar o corolário de que “tudo que tem matéria é
móvel” e que “o Ser móvel é objeto da Filosofia Natural”, ele está
tomando um aspecto formal na sua análise: o ens mobile enquanto tal é
o objeto da física.
Se o fato de ter matéria e, consequentemente ser móvel, é a razão
de estabelecer o escopo da Ciência Natural, devemos lembrar que ele
não concebe que os entes matemáticos existam independentemente dos
entes naturais dos quais eles propriedades. Em outras palavras, o
argumento considerado tão somente por si, caracterizaria os entes
naturais, mas não faria menção aos matemáticos, ao menos não pelo
mesmo critério adotado. Por isso, é necessário incluir o argumento dos
modos de definição, pois aí os entes matemáticos são considerados
separados das coisas materiais das quais são propriedades.

CONCLUSÃO

Daquilo que temos considerado até então, nos parece seguro


concluir que as caracterizações do objeto da Ciência Natural encontrada
no DT e na Sententia não são contrárias. Mesmo que ambos os textos
sejam de períodos distante da produção intelectual do Aquinate, ou seja,
um texto juvenil e outro da fase madura do seu pensamento, eles não
são antagônicos. Contudo, uma ênfase pode ser percebida em cada uma
das abordagens: o DT não se desvincula totalmente de sua abordagem
no plano de fundo do procedimento metodológico das ciências e a
224 • Com Agostinho, e além dele

Expositio depende estritamente de uma concepção formal para


caracterizar o seu objeto.
A vinculação entre movimento e matéria, que no texto não é
exaurida além da ideia que Boécio transmite, expressa tão somente que
o sinolon é móvel, estando assim aberta para interpretações distintas de
como há de ser entendida a vinculação feita entre mobilidade e
materialidade; enquanto na Sententia busca-se mais detidamente
mostrar como tal compreensão é fruto de um corolário que implica no
estabelecimento do ens mobile com objeto da física.
Poderíamos então falar de um amadurecimento da questão para
Tomás de Aquino, na medida em que a proposta boeciana já manifestava
traços daquela formulação aristotélica encontrada na física, e o contato
com esta obra trouxe a oportunidade de tratar mais detidamente com do
assunto. Cabe também notarmos que apesar do DT não mencionar
diretamente o texto aristotélico, ele encontra-se no mesmo teor
conceitual.
Por fim, julgamos que Tomás nunca se afastou daquela
compreensão encontrada no texto da juventude, e tão importante
quanto estabelecer o que caracteriza os entes da física está a questão de
proceder adequadamente neste campo de investigação de modo que seja
respeitado sempre o princípio do procedimento investigativo respeitar
o que a coisa é, buscando salvaguardar a legitimidade das conclusões.

REFERÊNCIAS

Aristóteles. Física: livros I-II. Prefácio, introdução, tradução e comentários de Lucas


Angioni. Campinas: Unicamp, 2009.
Rodrigo José de Lima • 225

Aristóteles. Comentário ao Tratado da Trindade de Boécio: Questões 5 e 6. São Paulo:


UNESP, 1999.

AQUINAS, Thomas. Commentary on Aristotle’s physics. New Haven: Yale University


Press,1963.

AQUINAS, Thomas. Commentary on Aristotle’s De anima. New Haven: Yale University


Press,1965.

AQUINAS, Thomas. Super De Trinitate. Disponível em: https://www.corpust


homisticum.org/cbt.html

AQUINAS, Thomas. Faith, reason and theology: Questions I-IV of his commentary on
the De Trinitate of Boethius. Ontario: Pontifical Institute of Medieval Studies, 1987.

AQUINO, Tomás de. Comentário sobre os oito livros da Audição Física ou Física de
Aristóteles. In: NASCIMENTO, Carlos Arthur Ribeiro do PICH, Roberto Hofmeister
(Orgs). As ciências intermediárias (I): algumas abordagens históricas. Porto Alegre:
Edipucrs, 2013, p. 288-294.

AQUINO, Tomás de. O ente e a essência. 6 Ed. Tradução de Carlos Arthur Ribeiro do
Nascimento. Petrópolis: Vozes, 2010.

Boécio. Escritos (Opuscula Sacra). Tradução, estudos introdutórios e notas de Juvenal


Savian Filho. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

GARDEIL, Henri-Dominique. Iniciação à filosofia de São Tomás de Aquino: Introdução,


Lógica, Cosmologia. São Paulo: Paulus, 2013. (Coleção Filosofia Medieval).

GREDT, Josephus. Elementa philosophiae Aristotelico-Thomisticae. Ed. 13. Roma:


Editorial Herder, 1961, Vol I.

STEENBERGHEN, Ferdinand Van. O Tomismo. Coimbra: Gradiva, 1990.

THOMAS, John of St. Cursus philosophicus Thomisticus: Philosophia naturalis. Tomus


secundus. Paris:[s.n.],1883.

KELLY, Matthew John. The interpretation of St. Thomas Aquinas of Aristotle, Physics
191a 7-8: The underlying nature is known by analogy. Dissertation (Doctorate in
philosophy) – University of Notre Dame, Department Philosophy, Michigan, 1963.
O CONCEITO DE MAL NO MANIQUEÍSMO: UMA
10
RELAÇÃO ENTRE O LIVRE-ARBÍTRIO E A SOBERBA 1
Marcone Felipe Bezerra de Lima 2

Em Cartago, quando Agostinho iniciou seus estudos filosóficos,


deparou-se com questionamentos sobre diversos conceitos: O que é o
mal? Como surgiu? Qual sua natureza? ou seja, havia uma inquietação
na busca pelas respostas. Não as encontrou, inicialmente, nas
Escrituras 3, pois as achou muito simples – uma vez que sua estrutura
funda-se na vertente descritivo-narrativa e não na dissertativo-
argumentativa. Foi então que tentou encontrá-las no maniqueísmo –
ramificação gnóstica religiosa fundada e ensinada pelo monge asceta
Mani ou Manés no século III, na Ásia (cf. COSTA, 2002, p. 52). Sua

1
Esse texto foi desenvolvido a fim de homenagear o professor Marcos Roberto Nunes Costa (UFPE).
Agradecemos a Deus pela vida do professor Marcos, pois todos que o conhecem ratificam sua
generosidade, principalmente, seu incentivo à pesquisa. Ter conhecido o senhor, professor Marcos,
parafraseando Agostinho, é um dos bens de Deus em nossas vidas. Um forte abraço! Deus o abençoe
sempre em Cristo Jesus!
2
Mestre em Filosofia pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP – Bolsista da CAPES). É
Especialista no Ensino da Filosofia e Docência no Ensino de Letras-Português. Graduado em Letras-
Inglês. Graduando em Teologia e Especializando em Ciências da Religião (FATIN). Participa, desde 2018,
do grupo de Estudos em Filosofia Medieval com ênfase em Agostinho sob organização do professor
Marcos Roberto Nunes Costa (UFPE). E-mail: marconefelipe25@hotmail.com.
3
A esse respeito, diz nas Confissões: “Resolvi por isso dedicar-me ao estudo das Sagradas Escrituras, para
conhecê-las. E encontrei um livro que não se abre aos soberbos e, que também não se revela às crianças;
humilde no começo, mas que nos leva aos píncaros e está envolto em mistério, à medida que se vai à
frente. Eu era incapaz de nele penetrar ou de baixar a cabeça à sua entrada. O que senti nessa época,
diante das Escrituras, foi bem diferente do que agora afirmo. Tive a impressão de uma obra indigna de
ser comparada à majestade de Cícero. Meu orgulho não podia suportar aquela simplicidade de estilo. Por
outro lado, a agudeza de minha inteligência não conseguia penetrar-lhe o íntimo. Tal obra foi feita para
acompanhar o crescimento dos pequenos, mas eu desdenhava fazer-me pequeno, e, no meu orgulho,
sentia-me grande” (Conf., III, 5, 9, grifo nosso).
Marcone Felipe Bezerra de Lima • 227

principal característica é a doutrina dualista de seres coeternos que


representam respectivamente o bem e o mal. Segundo Marcos Costa
(2014, p. 33-34):

Para explicar a origem do universo o maniqueísmo criou um sistema


dualista, no qual aparecem dois princípios ontológicos originantes do
cosmo: a Luz (o Bem) e as trevas ou a matéria (o Mal), ambos de naturezas
corpóreas, incriadas ou coeternas, com iguais poderes de criação, ou
melhor, de emanações. Da mistura e luta entre esses dois reinos surgiram
os diversos seres no universo, sendo o segundo princípio – a matéria – o
responsável pelos males no mundo. A partir desse dualismo ontológico,
deduzia uma moral, na qual explicava a origem do mal no homem, por ser
o homem uma mescla de corpo e alma, ou melhor, uma mistura das duas
substâncias originárias, corpo – matéria ou o Mal – e a alma – Luz ou Bem.

Com esse conceito, notam-se dois seres divinos e coeternos,


entretanto distintos em essência, pois um é espírito e outro, matéria.
Mas qual a finalidade de separar essas naturezas ontológicas? Ainda
conforme Marcos Costa:

E assim como no universo a matéria é a responsável pelos males físicos, no


homem, o corpo é a causa dos males, inclusive os morais. Melhor dito, os
males no homem também são de natureza física, fruto da parte má de sua
natureza, o que significa dizer que o mal moral propriamente dito não
existe no maniqueísmo, ou que não há o princípio da culpa ou
responsabilidade. Com isso, os maniqueus pensavam isentar Deus de toda
responsabilidade pelos males existentes no universo e o homem pelas
maldades praticadas individualmente (2014, p. 34).

Por conseguinte, a intenção do argumento maniqueísta era


mostrar a origem do mal no derivador (o Mal – matéria) e, portanto, no
derivado (natureza humana), definindo, assim, a ausência de culpa do
228 • Com Agostinho, e além dele

homem, haja vista ter sido criado com a natureza má. Se o homem não
tem culpa, logo não precisa de arrependimento, ou seja, anula-se a
Graça de Cristo.
Na obra Confissões, Agostinho mostra o porquê do pecado:

Existe certo atrativo num corpo belo, no ouro, na prata, e em todas as coisas;
entre o tato e os objetos existe uma sorte de harmonia de grande
importância; e os outros sentidos encontram também nos corpos um
estímulo adequado. As honras do mundo, o poder de comandar e dominar
têm sedução, e deles nasce o desejo de vingança. Todavia, para conseguir
tais bens, não deve o homem afastar-se de ti, Senhor, nem desviar-se de tua
lei. A vida neste mundo seduz por sua própria beleza e pela harmonia que
mantém com todos as pequenas coisas belas que nos cercam. Também a
amizade entre os homens torna-se querida pelo vínculo suave que une
muitas almas numa só. Mas se desejamos todos esses bens
imoderadamente e por eles mesmos, bens inferiores que são, e
abandonamos os bens superiores como és tu, Senhor nosso Deus, a tua
verdade e a tua lei, então cometemos pecado. Na verdade, esses bens
inferiores também satisfazem, mas não como satisfaz o meu Deus, que tudo
criou, pois nele o justo encontra a sua alegria, e ele é a alegria dos homens
de coração reto (Conf., II, 5, 10, grifo nosso).

Por consequência da sedução (lat. seductione, ato ou efeito de ser


atraído) e desejos imoderados, troca-se o superior (bem maior – vontade
de Deus) pelo inferior (bens inferiores), desse modo, resultando em
pecado. Agostinho deixa claro que o pecado não está no desejado, mas
na ordem dos desejos, visto que o “coração reto” e “justo” prioriza o
Criador em detrimento de suas criações, e assim, o homem encontra a
verdadeira felicidade.
No contexto do livro II da supracitada obra, o Hiponense revela
outro significado para a causa do pecado que vai além da sedução:
Marcone Felipe Bezerra de Lima • 229

Eu, miserável, o que foi que amei em ti, furto meu, noturno delito dos meus
dezesseis anos? Não eras belo, pois eras roubo! Mas, realmente és alguma
coisa, para que eu possa dirigir-me a ti? As peras que roubamos, sim, eram
belas, por serem criaturas tuas, ó Deus bom, criador de toda beleza, sumo
bem e meu verdadeiro bem. Sim, eram belas aquelas frutas, mas não era a
elas que minha alma infeliz cobiçava, eu as possuía em abundância e
melhores. Eu as colhi somente para roubar, e uma vez colhidas atirei-as
fora saciar-me apenas com a minha maldade, saboreada com alegria. Se
alguma tocou meus lábios, foi o meu crime que me deu sabor. E agora,
Senhor meu Deus, procuro o que me seduziu nesse furto. Não possui beleza
alguma. E não falo da beleza que reside na justiça ou na sabedoria, nem da
beleza da inteligência humana, da memória, dos sentidos e de toda a vida
vegetativa, nem da beleza das estrelas na harmonia do firmamento, nem da
beleza da terra e do mar, cheios de vidas que nascendo tomam o lugar dos
mortos. E tampouco falo da beleza limitada e ilusória dos vícios sedutores.
A soberba quer imitar a grandeza, enquanto somente tu és o Deus altíssimo
que estás sobre todas as coisas (Conf., II, 6, 12, grifo nosso).

Nesse trecho, Agostinho narra o roubo das peras aos dezesseis


anos, porém revela que agora não o fez pela beleza (sedução) e nem por
necessidade, pois diz: “Eu as possuía em abundância e melhores”, logo
pergunta-se: o que o motivou, então? Ele responde: “a soberba”. Essa
palavra provém do latim superbia, que significa elevar-se, presunção,
manifestação de orgulho, de pretensão, de superioridade de uma pessoa
sobre as outras,altivez, arrogância ou autoconfiança exagerada – um
antônimo de humildade. Sendo assim, não só a sedução pode causar o
pecado, mas, principalmente, a soberba humana.
Na obra Comentário ao Gênesis, contra ao maniqueus, Agostinho
relaciona o pecado com a soberba da seguinte forma:
230 • Com Agostinho, e além dele

Com razão, a Escritura fixou a soberba como o início de todo pecado, ao


dizer: A soberba é o início de todo pecado. Ajusta-se adequadamente a este
testemunho o que o Apóstolo diz: A raiz de todos os males é a avareza, se
entendermos avareza em geral, pela qual se apetece algo mais do que
convém, em razão de sua excelência, e um certo amor do que lhe é próprio,
ao qual a língua latina aplicou com sabedoria um termo, denominando-o
‘próprio’ (privatum), o qual aparece mais no sentido de detrimento que de
crescimento. Com efeito, toda privação implica diminuição. Daí que a
soberba quer destacar-se, daí é empurrada para a angústia e a indigência,
quando se volta do comum para o próprio pelo amor funesto de si mesmo.
Mas é especial a avareza que é denominada mais comumente amor ao
dinheiro. Por esse termo o Apóstolo, significando o gênero pela espécie,
queria que se entendesse a avareza em geral, ao dizer: A raiz de todos os
males é a avareza. Com efeito, por esta avareza caiu o diabo, o qual
certamente não amava o dinheiro, mas o seu poder. Portanto, o amor
perverso de si mesmo priva da santa companhia o espírito inflado, e a
miséria coarcta aquele que já deseja saciar-se mediante a iniquidade. Daí
que, depois de ter dito em outra passagem: Os homens serão amantes de si
mesmos, acrescentou em seguida: amantes do dinheiro, descendo da avareza
geral, da qual a soberba é o princípio, para esta especial que é própria dos
homens. Pois os homens não seriam mais excelentes quanto mais ricos. A
caridade, contrária a esta enfermidade, não procura seu próprio interesse,
ou seja, alegra-se pela excelência não a própria e, portanto, com razão,
também não se incha de orgulho (De Gen. contra man., XV, 19).

Vejam-se as três explicações segundo W. J. Vargas da compreensão


de soberba em Agostinho:

Seguindo o esquema da tripartição da filosofia em três áreas, que Agostinho


utilizou em diálogo com a filosofia neoplatônica, a soberba deve ser
entendida, com referência ao primeiro elemento das tríades, o ser, como
uma usurpação. Para o desenvolvimento deste tema Agostinho encontrou
no texto de Filipenses 2,6-11, como já vimos, um referencial bíblico
fundamental: assim como Cristo não se apegou ao seu ser Deus, que ele
possuía por ter a mesma natureza de Deus, enquanto Verbo, Adão, ao
Marcone Felipe Bezerra de Lima • 231

contrário, quis usurpar o ser de Deus, que não lhe pertencia por natureza.
A usurpação significa, portanto, um ato de roubo, um querer extorquir o
que pertence a outro, um apropriar-se de algo que não lhe é próprio. Em sua
origem, com efeito, no pecado de Adão, a soberba é apresentada como um
‘apetecer, como algo devido, e reivindicar para si o que propriamente se deve
unicamente a Deus’. Adão, sendo homem, não se contenta com aquilo que
lhe é próprio e pretende extorquir o que é alheio, que pertence a outro, a
divindade. Confirmando essa imagem do roubo, Agostinho fala, no De
Sancta Virginitate, do ‘ladrão da soberba’, que pretende arrombar a casa da
virgem para roubar-lhe o precioso dom da virgindade, que, por sua vez, só
pode ser custodiado pela caridade, por meio do dom da humildade. Da
mesma forma, no livro II das Confessionum apresenta o relato do roubo de
algumas peras em sua própria experiência de adolescente como uma
metáfora do pecado original (2014, p. 128-129).

Conforme W. J. Vargas menciona, o primeiro dos significados de


soberba em Agostinho 4 seria roubo, usurpação, ou seja, apossar-se de
algo que não é lícito, não pertencente. Isso é representado em Adão que
deseja algo não permitido por Deus, diferentemente de Jesus que deixou
tudo o que era seu por meio da subserviência conforme a carta de Paulo
(Filipenses); depois pelo ladrão que tenta roubar o dom virginal e,

4
No tratado Sobre a Natureza e a Graça, diz: “Não se deve dizer ao ser humano: “É necessário pecar para
não pecar’. Diga-se, no entanto: ‘Deus às vezes teabandona no que te provoca a soberba, para te
convenceres de que não és autônomo, mas dele dependente, e assim aprenderes a vencer a soberba’.
Não se há de acreditar no que conta o Apóstolo a seu respeito, seja o que for, e não é admirável e não
se acreditaria, se não no-lo referisse ele mesmo, o qual não é lícito contradizer, pois diz a verdade? Qual
é o cristão ignorante de que a primeira sedução para o pecado veio de Satanás (Gn 3,1-6), e que ele é o
primeiro causador de todos os pecados? No entanto, conforme diz o Apóstolo: Os quais (Himeneu e
Alexandre) entreguei a Satanás, a fim de que aprendam a não mais blasfemar (1Tm 1,20). A obra de Satanás
pode ser desfeita por obra de Satanás?Que Pelágio examine estas e outras passagens e considere
demasiado engenhosas certas afirmações suas, tão-só aparentemente engenhosas, mas uma vez
examinadas mostram que são infundadas. E por que quer ilustrar seu pensamento com comparações
que mais nos facilitam a resposta? Ele assim discorre: ‘O que mais direi? Se se acredita que o fogo pode
extinguir o fogo, então se há de acreditar que o pecado é remédio para o pecado’. Se não se pode
apagar o fogo com o fogo, pode-se — como provei — curar a dor com a dor. Com o veneno pode-se
anular também a força do veneno, como ele pode averiguar e assim aprender. E se tiver em conta que
às vezes o ardor da febre se atenua com o calor medicinal, talvez concorde que se pode apagar o fogo
com o fogo” (De nat. et grat. XXVIII, 32).
232 • Com Agostinho, e além dele

posteriormente, destaca o furto das peras, confirmando, assim, esse


sentido de soberba. A semântica do termo não se estanca:

Indo além do conceito de roubo, Agostinho refere-se ainda à soberba como


um assassinato, pois, segundo ele, por meio da soberba, se não de maneira
explícita e formal, pelo menos por meio das intenções e da prática, a
vontade e os interesses de Deus são eliminados, para que os interesses
próprios da pessoa tomada de soberba os substituam. Agostinho interpreta,
por exemplo, no relato do dilúvio e da arca de Noé, o corvo e a pomba que
saem da arca à procura de algum sinal de fim do dilúvio (cf. Gn 8,6-12) como
expressão da soberba e da humildade, respectivamente. O corvo representa
aqueles que buscam os próprios interesses, pois, além de não voltar à arca
com algum sinal de vida, alimenta-se da morte de outros animais,
expressando assim a situação daqueles que matam os interesses de Deus em
nome dos próprios. A pomba, por outro lado, representa os que
humildemente renunciam aos próprios interesses em vista dos interesses
de Deus: ela volta à arca trazendo um sinal de vida e, mais que isso,
alimenta-se dos frutos da terra, e não da morte dos outros. Conclui
Agostinho: ‘como se mostrou a humildade senão por meio da ave simples e
gemente, e não pela ave soberba, que se exalta como o corvo?’ (VARGAS,
2014, p.129-130).

O segundo significado para soberba é “assassinato” que vem do


verbo italiano assassiner, matar, destruir a vida de outro. Na conotação,
quando se tira os desejos da pessoa, tira-se a vida, uma vez que só pode
desejar quem está com vida. Assim, a soberba 5 humana mata o desejo

5
Ainda no tratado Sobre a Natureza e a Graça, diz: “Pelágio pergunta: ‘Como se há de separar do pecado
a própria soberba?’ Por que esta preocupação, se está claro que a soberba é pecado? Mas ele continua:
‘O ato de pecar implica um ato de soberba, como o ato de soberba implica o de pecado. Examina o que
é cada pecado e vê se deparas algum que não envolva o apelo da soberba’. Ele desenvolve esta sentença
e tenta prová-la com as seguintes palavras: ‘Todo pecado, se não me engano, é desprezo de Deus e
todo desprezo de Deus é soberba. Que maior ato de soberba do que desprezar a Deus? Portanto, todo
pecado é soberba e o confirma a Escritura, que diz: O início de todo o pecado é a soberba’. Examine Pelágio
com toda a atenção e encontrará na Lei profunda diferença entre o pecado de soberba e os outros
pecados. Cometem-se, é verdade, muitos pecados por soberba, mas nem toda má ação é fruto da
soberba, como os pecados por ignorância ou por fraqueza ou os que se cometem entre choros e
Marcone Felipe Bezerra de Lima • 233

divino “a vontade e os interesses de Deus são eliminados, para que os


interesses próprios da pessoa tomada de soberba os substituam”. A
figura do corvo também assemelha-se ao assassinato por ser uma ave
que se nutre pela morte de seres; no entanto a pomba representa o
oposto ao voltar, representando, assim, preocupação – humildade –
com os demais, avisando-os da situação exterior. Agora, W. J. Vargas
mostra o terceiro sentido:

Agostinho refere-se ainda à soberba como ‘imitação’. A soberba tem uma


pretensão de imitação de Deus naquilo que lhe é mais próprio, o bastar-se
a si mesmo, de maneira autônoma e independente. ‘A soberba imita a altura’,
pretende ocupar o lugar mais alto na ordem dos seres, o lugar de Deus.
Especificamente, ela imita o Pai, na busca de autonomia e independência,
no possuir um poder absoluto, não originado; imita o Filho, na busca de
semelhança total com o Pai, no ser reflexo perfeito dele e na pretensão de
ser a fonte de justiça; imita o Espírito, na pretensão de direcionamento
autônomo do desejo. É importante lembrar que, como foi dito no capítulo
anterior, a soberba é a única entre as três concupiscências descritas em 1
João 2,16 (voluptas, curiositas e superbia) a ter como característica própria
uma busca de imitação de Deus, o que lhe dá um lugar de preeminência
entre elas por seu caráter de raiz e causa das outras. Seja qual for a imagem
utilizada, roubo, assassinato ou imitação, o que é comum à dinâmica própria
da soberba é uma substituição de Deus pelo homem, um amor do homem
por si mesmo ‘em vez’ do amor a Deus (2014, p. 130-131).

gemidos. De fato, a soberba, sendo por si um grande pecado, de tal modo pode existir sem os outros,
que, como antes disse, muitas vezes se imiscui e se introduz com mais rapidez não nas más, e sim nas
boas ações. Por isso, está escrito com muita verdade o que Pelágio entendeu de modo diferente: O início
de todo o pecado é a soberba. Ela lançou por terra o diabo, do qual se origina o pecado, e o qual, por
inveja posterior, derrubou o homem, que estava em pé, da mesma posição de onde ele caiu. E a serpente
procurou a porta do orgulho para entrar, quando disse: Sereis como deuses (Gn 3,5). Por esta razão está
escrito: O início de todo o pecado é a soberba, e: O princípio da soberba do homem é afastar-se de Deus (Eclo
10,15.14)” (De nat. et grat., XXIX, 33).
234 • Com Agostinho, e além dele

O vocábulo imitar vem do latim imitari, que significa copiar ou


reproduzir alguma coisa. Refere-se à criação de alguma coisa na
semelhança de outra; copiar no sentido pejorativo. Esse termo vincula-
se a outro latino – imago (imagem) que significa literalmente copiar ou
reproduzir a imagem de alguma coisa. Consoante à definição de imitar,
W. J. Vargas explica a soberba como a tentativa de copiar Deus no
pensamento de autossuficiência. Se somente Deus possui esse atributo,
a soberba caracteriza-se como uma substituição por meio da imitação.
Em referência à “raiz” do roubo das peras, o Mestre do Ocidente
declara:

Eu, miserável, que frutos colhi das ações que cometi então e que agora
recordo envergonhado, especialmente daquele furto que me satisfez pelo
furto em si e nada mais? De fato, ele em si nada valia, e por isso me tornei
ainda mais miserável! No entanto, eu não o teria praticado, se estivesse
sozinho. Lembro-me bem do meu estado de alma: sozinho não o teria feito
absolutamente. Portanto, amei também no furto a companhia daqueles com
quem o cometi; daí não ser verdade ter amado apenas o furto em si. Não,
não amei mais nada, pois a cumplicidade não é mais um nada. O que será
ela na realidade? Quem me pode responder senão aquele que me ilumina o
coração e lhe dissipa as trevas? Por que me ocorreu indagar, discutir,
analisar estes fatos? Se eu tivesse na ocasião desejado de fato aqueles frutos
que roubei, e com eles me tivesse regalado, poderia tê-los roubado sozinho.
Poderia ter cometido a iniquidade, satisfazendo o meu desejo, sem
necessidade de estimular, por outras companhias, o prurido de minha
cobiça. O fato é que não eram os frutos que me atraíam, mas a ação má que
eu cometia em companhia de amigos que comigo pecavam (Conf., II, 8, 16,
grifo nosso).

O Hiponense explica que ao lembrar desse furto, surge a vergonha:


“Eu, miserável, que frutos colhi das ações que cometi então e que agora
Marcone Felipe Bezerra de Lima • 235

recordo envergonhado”, do latim verecundia sentimento de humilhação


pelo fato de cometer, racionalmente, alguma falta – o pecado. É racional
por ser uma ação responsiva do próprio homem 6. Pela constituição do
homem, antropologia, entende-se as funções ou faculdades da parte
imaterial – a alma.
Assim define Antônio Pereira Júnior (2018, p. 18):

A separação destas duas substâncias (corpo/alma), implica a


descaracterização conceitual da estrutura ontológica que qualifica o Ser-
Homem. Dessa forma, a matéria separada da alma assume o status de corpo
sem vida, cadáver e, portanto, não mais caracterizado como homem, uma
vez que este só pode ser concebido como tal, se estiver composto por estas
duas partes juntas. Tal concepção, faz do homem um ser composto
(conjunctum), formado por dois elementos distintos – o corpo, a substância
material e a alma, substância espiritual – porém, ambas unidas e
completando-se mutuamente, numa relação em que o corpo serve de
habitação para a alma e esta, por sua vez, lhes concede a vida, daí a ideia de
que o homem nada mais é que uma ‘alma racional que habita em um corpo
material’.

O trecho acima contraria o princípio maniqueísta que afirma a


presença do mal no homem ter sido um ato de um ser ontológico de
natureza má e eterna, uma vez que a alma é racional e por isso pode ser
responsabilizada. Não se coaduna com o pensamento filosófico-cristão
do Bispo de Hipona a ausência de culpa do homem, pois se há vergonha,

6
No tratado Sobre a Natureza e a Graça: “O que querem dizer as palavras de Pelágio: ‘Como o homem
pode se responsabilizar perante Deus pelo resto de pecado, que não reconhece como seu? Se é pecado
necessário, não é seu. Ou se é seu, é voluntário; e se é voluntário, podia ser evitado’. Respondemos: ‘É
totalmente seu, mas a culpa com que é cometido ainda não foi sanada totalmente. O mau uso da saúde
motivou seu enraizamento no homem, o qual, seja por fraqueza, seja por cegueira, se entregou a muitos
pecados, uma vez debilitado. É necessária a súplica para se curar e viver depois com saúde perene. Não
se dê lugar à soberba, como se ao homem devolvesse a saúde a mesma força que o levou ao pecado”
(De nat. et grat., XXX, 34).
236 • Com Agostinho, e além dele

a razão assim lhe fez compreender o seu estado de culpa diante de Deus.
Esse problema conceitual do mal está intrínseco à compreensão da
criação, visto que o entendimento da origem justifica a natureza da
fonte e, assim, sua vontade:

Eu procurava descobrir as outras verdades, assim como já tinha descoberto


que ser incorruptível é melhor que ser corruptível. Por isso eu confessava
que tu, o que quer que fosses, devias ser incorruptível. De fato, nenhum
espírito pôde ou poderá jamais imaginar algo melhor que tu — supremo e
perfeito bem. Sendo absolutamente certo e verdadeiro que o incorruptível
é preferível ao corruptível (como eu já admitia), eu poderia, caso não fosses
incorruptível, atingir com o pensamento algo mais perfeito do que o meu
Deus. Portanto, logo que percebi que o incorruptível é preferível ao
corruptível, eu deveria ter buscado a ti imediatamente e, daí, partir para ver
onde está o mal, isto é, de onde provém a própria corrupção, que de modo
algum pode afetar tua substância. De modo algum pode a corrupção afetar
o nosso Deus, seja por uma vontade, seja por qualquer necessidade ou seja
por qualquer acontecimento imprevisto, porque ele é o próprio Deus, e tudo
o que quer para si é bom, e ele próprio é o bem; porém estar sujeito à
corrupção não é um bem. Tu não podes ser obrigado a alguma coisa contra
a tua vontade, pois tua vontade não é maior que o teu poder; e somente seria
maior, se fosses maior que tu mesmo. O poder e a vontade de Deus são o
próprio Deus. Para ti, que tudo conheces, existe acaso algo imprevisto?
Enfim, nenhum ser existe, senão enquanto o conheces. Mas por que gastar
tantas palavras para demonstrar que Deus não é substância corruptível,
quando, se o fosse, já não seria Deus? (Conf. VII, 4, 6).

Para Agostinho, Deus é o criador do universo e por ser perfeito em


tudo, e o mal ser uma imperfeição, descarta-se a autoria divina do mal.
Sua concepção é que o mal não é natural na criação, mas resultado da
Marcone Felipe Bezerra de Lima • 237

decisão do primeiro homem pelo uso errôneo do livre-arbítrio 7. Em seu


Comentário ao Gênesis, contra os Maniqueus, Agostinho interpreta que o
Deus uno e trino criou os seres de uma forma perfeita, ou seja, ausência
de mal em sua criação:

O que diremos? Ao se dizer: ‘Faça-se a luz’, por acaso o que se entende no


som da voz, não é a voz de Deus que se percebe e não o som corporal? E essa
voz pertenceria à natureza do Verbo do qual se diz: No princípio era o Verbo
e o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus? Uma vez que dele se diz: Tudo foi
feito por ele, é manifesto que também a luz foi feita por ele, quando Deus
disse: ‘Faça-se a luz’. Se assim é, embora tenha sido feita uma criatura
temporal pela palavra divina emitida no Verbo eterno, é eterno o que Deus
disse: ‘Faça-se a luz’, porque o Verbo de Deus é Deus com Deus, o Filho único
de Deus, coeterno com o Pai. Quando dizemos: ‘quando’ e ‘algumas vezes’,
as palavras são pronunciadas no tempo; no Verbo de Deus, porém, a palavra
é eterna quando se deve fazer algo; e se faz quando está determinado no
Verbo que devia ser feito; nele não há ‘quando’ ou ‘algumas vezes’, porque
todo ele é Verbo eterno (De Gên. contra man., II, 6).

Agostinho além de declarar a criação como autoria divina,


identifica Jesus, o Verbo de Deus, como coautor com o Deus Pai, uma vez
que cita o texto do Evangelho de João 1.1 como estando no princípio com
Deus. Dessa forma, o Filho é eterno com o Pai.
O Hiponense continua explicando sobre a criação:

Quando primeiramente era feita a informidade da matéria, seja espiritual,


seja corporal, não se deveria dizer: Deus disse: Faça-se? Com efeito, a
imperfeição, sendo dessemelhante daquele que é o mais sublime e o
primeiro, pois, por sua informidade tende para o nada, não imita a forma

7
COSTA, 2002, p. 100-101, comenta que, no maniqueísmo, Agostinho pensava ter encontrado a
verdadeira resposta ao problema do mal moral no homem, pois como o mal estava na natureza humana
pelo ato de um ser eterno de essência má, não haveria responsabilidade, e sim resultado.
238 • Com Agostinho, e além dele

do Verbo, sempre unido ao Pai, pelo qual Deus diz tudo eternamente, não
pelo som da voz, nem por pensamentos que envolvem o tempo, mas pela luz
coeterna da sabedoria que ele gerou. Mas imita a forma do Verbo, sempre e
de modo imutável unido ao Pai, quando de acordo com a conversão ao que
sempre e verdadeiramente existe, ou seja, ao criador de sua substância, ela
toma sua forma e se torna criatura perfeita segundo a sua espécie. De modo
que no que a Escritura narra: Deus disse: ‘Faça-se’, entendamos a palavra
incorpórea de Deus na natureza de seu Verbo coeterno que chama a si a
imperfeição da criatura para que não seja informe, mas receba sua forma
de acordo com que cada uma é feita seguindo uma ordem. Nesta conversão
e formação, a seu modo imita o Deus Verbo, ou seja, o Filho de Deus, sempre
igual ao Pai com total semelhança e igual essência, pela qual ele e o Pai são
um. Não imita, entretanto, esta forma do Verbo se, afastada do Criador,
mantém-se informe e imperfeita; por isso, não se faz menção do Filho,
porque é Verbo, mas somente porque é princípio, quando se diz: No
princípio, Deus fez o céu e a terra. O começo da criatura se insinua ainda na
informidade da imperfeição; mas se faz menção do Filho, que é também o
Verbo, pelo fato de estar escrito: Deus disse: ‘Faça-se’, e, assim, pelo fato de
ser o princípio, insinua o começo da criatura por ele existente ainda
imperfeita. Mas pelo fato de ser Verbo, insinua a perfeição da criatura, que
chamou a si, para se revestir de forma aderindo ao Criador, e, imitando,
segundo a sua espécie, a forma inerente eternamente e de modo imutável
ao Pai, por quem de modo permanente o Verbo é o que é o Pai (Ibid., IV, 9).

Agora, Agostinho menciona a pessoa do Espírito Santo:

O Verbo Filho não tem uma vida informe. Para ele o ser é viver, mas também
viver é o mesmo que viver sábia e bem-aventuradamente. Mas a criatura,
ainda que espiritual e intelectual ou racional, a qual parece ser a mais
próxima do Verbo, pode ter uma vida informe, pois se para ela ser é o
mesmo que viver, não é o mesmo viver que viver sábia e bem-
aventuradamente. Pois, afastada da Sabedoria incomutável, vive néscia e
miseravelmente, o que representa sua informidade. Reveste-se de forma,
porém, quando se converte para a incomutável luz da Sabedoria, o Verbo de
Deus. Por ele, pois, subsiste de qualquer modo que exista e viva, converte-
Marcone Felipe Bezerra de Lima • 239

se para ele para viver sábia e bem-aventuradamente. O princípio, pois, da


criatura intelectual é a eterna Sabedoria; este princípio, permanecendo em
si de modo incomutável, de forma alguma, por uma oculta inspiração da
vocação, cessa de falar à criatura de quem é princípio, para que se converta
àquele do qual procede, porque não pode se formar e aperfeiçoar de outro
modo. Por isso, interrogado sobre quem era, respondeu: ‘O princípio, eu que
vos falo’ (Ibid., V, 10).

Assim, o Doutor da Trindade faz a junção das três pessoas divinas:

O que o Filho fala, o Pai fala, porque o que o Pai fala denomina-se Verbo, e
este é o Filho; o que Deus fala de maneira eterna, se é lícito empregar essa
maneira, é o Verbo coeterno. Pois é inerente a Deus a maior benignidade,
também santa e justa; é na verdade um amor que se volta para suas obras,
não por necessidade, mas por munificência. Por isso, antes que se
escrevesse: Deus disse: ‘Faça-se a luz’, a Escritura fez preceder: E o Espírito
de Deus pairava sobre as águas, ou porque quis denominar pelo nome ‘água’
toda a matéria corporal, para assim insinuar de onde foram feitas e
formadas todas as coisas, as quais já podemos reconhecer cada uma em sua
espécie, ou ainda denominou água porque vemos que todas as coisas na
terra são formadas e crescem em variadas espécies a partir de uma natureza
úmida; ou porque quis designar a vida espiritual como flutuante antes da
forma da conversão. O Espírito de Deus pairava certamente, pois o que quer
que fosse que ele começara a formar e a acabar estava sujeito à boa vontade
do Criador, de modo que, falando Deus em seu Verbo: ‘Faça-se a luz’, em sua
bondade, ou seja, em seu beneplácito permanecesse o que foi feito segundo
a sua espécie. Portanto, é justo que agradasse a Deus, conforme diz a
Escritura: E foi feita a luz; e Deus viu a luz porque era boa (Ibid., V, 11).

Portanto, Agostinho revela tanto o autor da criação, como sua


perfeição, desfazendo o conceito maniqueísta da matéria como essência
má e a causadora do mal. Para tanto, na obra De libero arbítrio, a fim do
entendimento lógico-semântico do argumento do mal como resultado
240 • Com Agostinho, e além dele

da ação errônea do livre-arbítrio, Agostinho argumenta sobre a sua


autoria com seu interlocutor Evódio:

Ev. Peço-te que me digas, será Deus o autor do mal?


Ag. Dir-te-ei, se antes me explicares a que mal te referes. Pois,
habitualmente, tomamos o termo ‘mal’ em dois sentidos: um, ao dizer que
alguém praticou o mal; outro, ao dizer que sofreu algum mal.
Ev. Quero saber a respeito de um e de outro.
Ag. Pois bem, se sabes ou acreditas que Deus é bom – e não nos é permitido
pensar de outro modo –, Deus não pode praticar o mal. Por outro lado, se
proclamamos ser ele justo – e negá-lo seria blasfêmia –, Deus deve
distribuir recompensas aos bons, assim como castigos aos maus. E por
certo, tais castigos parecem males àqueles que os padecem. É porque, visto
ninguém ser punido injustamente – como devemos acreditar, já que, de
acordo com a nossa fé, é a divina Providência que dirige o universo —, Deus
de modo algum será o autor daquele primeiro género de males a que nos
referimos, só do segundo.
Ev. Haverá então algum outro autor do primeiro género de mal, uma vez
estar claro não ser Deus?
Ag. Certamente, pois o mal não poderia ser cometido sem ter algum autor.
Mas caso me perguntes quem sejao autor, não o poderia dizer. Com efeito,
não existe um só e único autor. Pois cada pessoa ao cometê-lo é o autor de sua
má ação. Se duvidas, reflete no que já dissemos acima: as más ações são
punidas pela justiça de Deus. Ora, elas não seriam punidas com justiça,
senão tivessem sido praticadas de modo voluntário (De lib. arb. I, 1, 1, grifo
nosso).

Quando Agostinho diz que “cada pessoa ao cometê-lo é o autor de


sua má ação”, deixa nítido de quem seria a responsabilidade dessa ação
– o homem. Continuando seu argumento, mostra o princípio da justiça
divina “Ora, elas não seriam punidas com justiça, se não tivessem sido
praticadas de modo voluntário”. A faculdade da razão é a distinção entre
Marcone Felipe Bezerra de Lima • 241

o homem e os animais, fazendo dele um ser responsável, portanto, se


houve punição, há evidência de culpa. Na continuação desse diálogo,
Evódio questiona Agostinho sobre quem ensinou o homem a pecar, uma
vez que não conhecia o mal:

Ev. Ignoro se existe alguém que chegue a pecar, sem antes o ter aprendido.
Mas caso isso seja verdade, pergunto: De quem aprendemos a pecar?
Ag. Julgas a instrução (disciplinam) ser algo de bom?
Ev. Quem se atreveria a dizer que a instrução é um mal?
Ag. E caso não for nem um bem nem um mal?
Ev. A mim, parece-me que é um bem.
Ag. Por certo! Com efeito, a instrução comunica-nos ou desperta em nós a
ciência, e ninguém aprende algo se não for por meio da instrução. Acaso
tens outra opinião?
Ev.Penso que por meio da instrução não se pode aprender a não ser coisas
boas.
Ag. Vês, então, que as coisas más não se aprendem, posto que o termo
‘instrução’ deriva precisamente do fato de alguém se instruir.
Ev. De onde hão de vir, então, as más ações praticadas pelos homens, se elas
não são aprendidas?
Ag.Talvez, porque as pessoas se desinteressam e se afastam do verdadeiro
ensino, isto é, dos meios de instrução. Mas isso vem a ser outra questão. O
que, porém, mostra-se evidente é que a instrução sempre é um bem, visto
que tal termo deriva do verbo ‘instruir’. Assim, será impossível o mal ser
objeto de instrução. Caso fosse ensinado, estaria contido no ensino e, desse
modo, a instrução não seria um bem. Ora, a instrução é um bem, como tu
mesmo já o reconheceste. Logo, o mal não se aprende. E em vão que
procuras quem nos teria ensinado a praticá-lo. Logo, se a instrução falar
sobre o mal, será paia nos ensinar a evitá-lo e não para nos levar a cometê-
lo. De onde se segue que, fazer o mal, não seria outra coisa do que renunciar
à instrução. (Pois a verdadeira instrução só pode ser para o bem)(Ibid., I, 1,
2, grifo nosso).
242 • Com Agostinho, e além dele

Evódio pergunta a Agostinho: “De quem aprendemos a pecar?” e a


explicação é que por ser o ensino algo verdadeiro para o bem, o pecado
não pode ser ensinado, Deus não ensinou a pecar, mas como não pecar:
“Talvez, porque as pessoas se desinteressam e se afastam do verdadeiro
ensino, isto é, dos meios de instrução”, ou seja, deixar de conhecer o
bem constitui-se pecado.
W. J. Vargas concorda que é errado, ou seja, pecado, a rejeição do
conhecimento de Deus:

Em primeiro lugar, a presunção a respeito de si mesmo leva a um erro no


conhecimento de Deus. Mais que um problema de incapacidade de
conhecimento dele ou de erro nesse conhecimento, o que acontece
realmente é uma má vontade em conhecê-lo, um não querer livremente re-
conhecê-lo. Tratando do conhecimento que os filósofos pagãos puderam ter
de Deus, Agostinho volta continuamente ao texto de Romanos 1,21.25
(‘tendo conhecido a Deus, não o glorificaram nem lhe renderam graças; [...]
adoraram e serviram à criatura em lugar do criador’), e diz que a verdade
sobre Deus, mais que desconhecida pelos filósofos pagãos, foi oprimida de
maneira iníqua, uma vez que esses filósofos não foram capazes de
reconhecer a Deus e de lhe prestar culto; mais que um problema de
incapacidade da razão para conhecê-lo, o que havia neles era uma má
disposição da vontade em acolhê-lo, ou uma injustiça, uma impiedade, uma
vez que a vontade não quis ceder pela fé ao conhecimento que alcançara. De
fato, a raiz do equívoco dos filósofos pagãos estava na substituição do
criador pela criatura, que se expressa no amor exclusivo da ciência e na
consequente exclusão da busca da sabedoria (2014, p. 161).

O Doutor da Graça utiliza a epístola de Paulo aos Romanos para


mostrar qual o real desejo do homem após o pecado: rejeitar o
conhecimento de Deus por meio da adoração à criação, ou seja, troca-se
o Bem superior pelos bens inferiores.
Marcone Felipe Bezerra de Lima • 243

Outra pergunta de Evódio ajuda na construção argumentativa de


Agostinho:

Ev. Seja como dizes, já que tão fortemente me obrigas a reconhecer que não
aprendemos a fazer o mal. Dize-me, entretanto, qual a causa de
praticarmos o mal?
Ag. Ah! Suscitas precisamente uma questão que me atormentou por demais,
desde quando era ainda muito jovem. Após ter-me cansado inutilmente de
resolvê-la, levou a precipitar-me na heresia (dos maniqueus), com tal
violência que fiquei prostrado. Tão ferido, sob o peso de tamanhas e tão
inconsistentes fábulas, que se não fosse meu ardente desejo de encontrar a
verdade, e se não tivesse conseguido o auxílio divino, não teria podido
emergir de lá nem aspirar à primeira das liberdades — a de poder buscar a
verdade. Visto que a ordem seguida, então, atuou em mim com tanta
eficácia para resolver satisfatoriamente essa questão, seguirei igualmente
contigo aquela mesma ordem pela qual fui libertado. Seja-nos, pois, Deus
propício e faça-nos chegar a entender aquilo em que acreditamos. Estamos,
assim, bem certos de estar seguindo o caminho traçado pelo profeta que diz:
‘Se não acreditardes não entendereis’. Ora, nós cremos em um só Deus, de
quem procede tudo aquilo que existe. Não obstante, Deus não é o autor do
pecado. Todavia, perturba-nos o espírito uma consideração: se o pecado
procede dos seres criados por Deus, como não atribuir a Deus os pecados,
sendo tão imediata a relação entre ambos? (De lib. arb., I, 2, 4, grifo nosso).

A resposta que Agostinho dá a Evódio, inicialmente, é que por Deus


não ser o autor do mal, só pode estar no homem a causa:“o pecado
procede dos seres criados”. Segundo o Hiponense, o maniqueísmo o
aprisionou, e só a verdadeira filosofia promove o entendimento da causa
do pecado e consequentemente sua libertação pela fé. Nas Confissões,
Agostinho confirma a causa do mal:

Por experiência compreendi que não é de admirar se o pão, que é tão


agradável ao paladar do homem sadio, parece tão detestável ao enfermo, e
244 • Com Agostinho, e além dele

que a luz, tão cara aos olhos límpidos, seja desagradável aos olhos irritados.
Tua justiça desagrada aos homens maus, e com maior razão lhes
desagradam as víboras e vermes que criaste bons e de acordo com a parte
inferior da criação. Com esta parte também os malvados estão de acordo, e
tanto mais quanto mais diferem de ti. Por outro lado, os justos são tanto
mais parecidos com os elementos superiores da criação, quanto mais se
tornam semelhantes a ti. E procurando o que era a iniquidade compreendi
que ela não é uma substância existente em si, mas a perversão da vontade
que, ao afastar-se do Ser supremo, que és tu, ó Deus, se volta para as
criaturas inferiores; e, esvaziando-se por dentro, pavoneia-se
exteriormente (Conf., VII, 16, 22, grifo nosso).

Segundo Marcos Costa (cf. 2002, p. 277), após a leitura e


entendimento dos conceitos neoplatônicos, Agostinho formalizou um
argumento ontológico-estético-filosófico-teológico que caracteriza o
mal não como substância, essência ou natureza, mas como privação da
corrupção – ausência de pecado. Ainda nas Confissões, Agostinho expõe
os principais erros do Maniqueísmo:

Escutei, Senhor meu Deus, e consegui recolher uma doce gota da tua
verdade. Compreendi que a alguns desagradam as tuas obras. Sustentam
que muitas delas criaste impelido pela necessidade; assim, por exemplo, a
estrutura dos céus e o sistema dos astros. Dizem que essas não foram
criadas por ti, mas que já existiam, provindas de outra fonte. Tu as terias
apenas reunido, compondo-as e coordenando-as, quando edificaste as
muralhas do mundo, depois de teres vencido os teus inimigos, para que,
cativos nessa construção, não pudessem de novo rebelar-se contra ti.
Quanto aos outros seres, não os terias criado nem ao menos ordenado;
assim, por exemplo, os corpos carnais, os animais menores e tudo o que se
radica na terra; teria sido um espírito hostil e uma natureza não criada por
ti e oposta à tua, quem teria gerado e formado tais seres nas regiões
inferiores do universo. São loucos os que assim falam, porque não vêem as
Marcone Felipe Bezerra de Lima • 245

tuas obras através do teu espírito, nem nelas te reconhecem (Conf., XIII, 30,
45).

Portanto, três princípios maniqueístas são descartados por


Agostinho:

a) um ser ontológico corpóreo de natureza má criou o mal – ‘Escutei, Senhor meu


Deus, e consegui recolher uma doce gota da tua verdade’ – após o conhecimento
da verdade, Agostinho entende que, pela natureza espiritual benéfica, Deus não
poderia gerar o mal, por ser perfeito e incorruptível;
b) a matéria é eterna e má – ‘Dizem que essas não foram criadas por ti, mas que já
existiam, provindas de outra fonte’ – o argumento agostiniano defende o único
ser eterno, Deus, que criou todas as coisas, ou seja, não houve nada antes da
divindade;
c) o homem não precisa arrepender-se, pois não é responsável por nascer com uma
substância má – ‘São loucos os que assim falam, porque não veem as tuas obras
através do teu espírito, nem nelas te reconhecem’ – aqui há a evidência da
imperfeição originada pelo pecado – loucura e o não reconhecimento de Deus,
pois o resultado do pecado é o distanciamento do entendimento espiritual 8.

Conforme Joel Gracioso, Agostinho elucida o que é o mal e sua


causa:

Agostinho descreve o encontro com a tradição platônica, que, em seu


entendimento, será a filosofia mais próxima do pensamento cristão. Esta

8
A esse respeito, cf. MONDIM, 1981, p. 156-157, que diz: “A causa do mal não é Deus. Sendo o mal a
privação de perfeição devida, Deus não pode ser seu autor, porque, fazendo as coisas, Deus lhes dá tudo
o que lhes é necessário, todo o ser que lhes compete. ‘Como poderia, com efeito, aquele que é a causa
do ser de todas as coisas ser a causa do não ser?’ Logo, a causa do mal não é Deus. Resta que a causa
do mal seja a criatura. Esta conclusão se tira também do exame das duas formas principais sob as quais
o mal se manifesta: o sofrimento e a culpa. Ora, o responsável pela culpa é o homem. O mal tem, pois,
como causa última o homem. Em que consiste a culpa? Em submeter-se a razão humana à paixão, em
desobedecer às leis divinas, em afastar-se do bem supremo. Quando um homem se afasta do bem
imutável e se volta para um bem particular, inferior, peca, e nisto consiste o mal”.
246 • Com Agostinho, e além dele

lhe apontará a importância de se investigar o homem interior dando a


Agostinho um novo referencial que o ajudará a superar seu materialismo. O
contato coma tradição platônica, portanto, foi essencial para a conversão
de sua mente e para o conhecimento de uma nova metafísica, ou seja, de
uma forma diferente de conceber o ser, modificando sua maneira de
conceber Deus e permitindo entender a existência do mal no mundo de
outra forma. O mal passa a ser visto como privação, corrupção de um bem,
tendo como origem uma causa deficiente, isto é, a corrupção de um dado
por Deus aos homens, o livre-arbítrio (2010, p. 26, grifo nosso).

Quando fazia parte do maniqueísmo, Agostinho acreditava que a


matéria era a causa do comportamento mal do homem, entretanto a
partir do platonismo, e principalmente das pregações de Ambrósio,
passa a perceber o mal como consequência do erro no uso da liberdade
da razão – o livre-arbítrio. Assim, o pensamento ambrosiano foi de
suma importância para a posterior conversão de Agostinho.
Nota-se a continuidade dos relatos do Mestre do Ocidente:

Eu ignorava a outra realidade, a verdadeira, e era levado a aceitar o que me


parecia o penetrante raciocínio de estúpidos impostores, quando me faziam
perguntas sobre a origem do mal, se Deus se circunscreve a uma forma
corpórea, se tem unhas e cabelos, se se devia considerar honesto quem
tivesse ao mesmo tempo várias mulheres, quem assassinasse homens e
quem sacrificasse animais. Na minha ignorância, ficava perturbado com
tais perguntas, afastando-me da verdade enquanto acreditava aproximar-
me dela. Pois eu não sabia que o mal é apenas privação do bem, privação
esta que chega ao nada absoluto. Mas teria podido conhecer a verdade, se
meus olhos só atingiam o corpo e meu espírito não via mais do que
fantasias? Não sabia que Deus é espírito e que não possui membros com
medidas de comprimento e largura; nem é matéria, porque a matéria é
menor em sua parte que no seu todo. Ainda que a matéria fosse infinita,
seria menor em alguma de suas partes, limitada por certo espaço, do que na
sua infinitude; nem se concentra toda inteira em qualquer parte, como o
Marcone Felipe Bezerra de Lima • 247

espírito, como Deus. Ignorava totalmente que princípio havia em nós,


segundo o qual existimos, e porque se diz na Sagrada Escritura que fomos
feitos à imagem de Deus (Conf., III, 7, 12, grifo nosso).

As diversas perguntas feitas no maniqueísmo fizeram com que


Agostinho não saísse de lá, pois não havia encontrado outra linha de
pensamento que se harmonizar-se com o problema do mal: “quando me
faziam perguntas sobre a origem do mal, se Deus se circunscreve a uma
forma corpórea”, todavia o conceito de substância trazido por Ambrósio
relacionado à imago Dei trouxe paz à alma do Hiponense, pois definia a
substância de Deus como sendo espiritual: “Não sabia que Deus é
espírito e que não possui membros com medidas de comprimento e
largura; nem é matéria, porque a matéria é menor em sua parte que no
seu todo”.
Um outro fator que contribuiu para a compreensão dos erros no
maniqueísmo foi o encontro com o Bispo Aurélio Ambrósio que nasceu
entre334-340, provavelmente em Tréveris (antiga Augusta Treuerorum),
e faleceu em Milão, em 397, época em que ainda ocupava a cátedra da
cidade (cf. COSTA, 2002, p. 140-141). Filho de Aurélio Ambrósio, prefeito
do pretório das Gálias, com residência em Tréveris, de onde governava
quatro dioceses proeminentes e vinte províncias, entre elas a da
Mauritânia Tingitana, Hispânia, Bélgica, Germânia e Britânia (cf. DIAS,
2018, p. 58). Em um dos trechos das Confissões, há a menção desse
encontro:

Quando o prefeito de Roma recebeu de Milão o pedido de um professor de


retórica para esta cidade, com a oferta de transporte público, eu mesmo
solicitei o emprego através de amigos embriagados de ideias maniqueístas,
248 • Com Agostinho, e além dele

sem saber que minha ida deveria separar-nos para sempre. O prefeito
Símaco, após submeter-me à prova de um discurso, me fez partir. Assim
que cheguei a Milão, encontrei o bispo Ambrósio, conhecido no mundo
inteiro como um dos melhores, e teu fiel servidor. Suas palavras
ministravam constantemente ao povo a substância do teu trigo, a alegria
do teu óleo e a embriaguez sóbria do teu vinho. Tu me conduzias a ele sem
que eu o soubesse, para que eu fosse por ele conduzido conscientemente a
ti. Esse homem de Deus acolheu-me paternamente e ficou feliz com a minha
chegada, na bondade digna de um bispo. Comecei a estimá-lo, a princípio
não como mestre da verdade, pois não tinha esperança de encontrá-la em
tua Igreja, mas como homem bondoso para comigo. Acompanhava
assiduamente suas conversas com o povo, não com a intenção que deveria
ter, mas para averiguar se sua eloquência merecia a fama de que gozava, se
era superior ou inferior à sua reputação. Suas palavras me prendiam a
atenção. Mas, o conteúdo não me preocupava, até o desprezava. Eu me
encantava com a suavidade de seu modo de discursar; era mais profundo,
embora menos jocoso e agradável que o de Fausto quanto à forma. A
respeito do conteúdo, porém, não era possível qualquer comparação:
perdia-se este último entre as falsidades dos maniqueus, ao passo que o
outro ensinava a doutrina mais sadia da salvação. Mas, a salvação está longe
dos ímpios. Eu era um deles, ainda que estivesse me aproximando dela
paulatinamente e sem o perceber (Conf. V, 13, 23, grifo nosso).

Para Agostinho, os ensinos de Ambrósio traziam sustentabilidade


e felicidade, visto que eram verdades espirituais: “Suas palavras
ministravam constantemente ao povo a substância do teu trigo, a
alegria do teu óleo e a embriaguez sóbria do teu vinho”, e possuíam uma
rica estrutura filosófica: “Eu me encantava com a suavidade de seu
modo de discursar; era mais profundo, embora menos jocoso e
agradável que o de Fausto quanto à forma”. Com esses novos ensinos, a
rejeição ao maniqueísmo foi assegurada: “A respeito do conteúdo,
porém, não era possível qualquer comparação: perdia-se este último
Marcone Felipe Bezerra de Lima • 249

entre as falsidades dos maniqueus, ao passo que o outro ensinava a


doutrina mais sadia da salvação”.
Em sua obra Examerão, que trata dos seis dias da criação, o Bispo
Ambrósio demonstra as verdades, absorvidas por Agostinho 9, de forma
profunda e lógica:

1. (1) Tantas têm sido as controvérsias entre os homens, que alguns deles,
como Platão e seus discípulos, estabeleceram três princípios para todas as
coisas: Deus, o modelo e a matéria. Afirmaram que estes princípios são
incorruptíveis, incriados e sem início; que Deus não é propriamente o
criador da matéria, mas o artífice em vista de um modelo. Quer dizer:
atentando para a ideia, Deus fez o mundo da matéria que eles chamam υλη,
a qual deu a todas as coisas as condições de gerar. Eles julgam também que
o mundo em si mesmo é incorruptível, nem criado nem feito. Outros ainda,
como pensava Aristóteles ao debater com seus discípulos, estabeleceram
dois princípios: matéria e forma, e com estes um terceiro, chamado
princípio eficiente, ao qual competia produzir convenientemente o que
julgasse necessário. (2) Ora, o que pode ser tão inadequado como ligar a
eternidade da obra com a eternidade do Deus onipotente, ou então dizer que
a obra em si mesma é deus, e envolver céu, terra e mar com honras divinas?
Daí resultou acreditarem que partes do mundo fossem deuses, embora o
mundo em si mesmo não seja entre eles uma questão de pouca monta. (3)
Com efeito, Pitágoras propõe um único mundo. Outros dizem que existem
mundos inumeráveis, como escreve Demócrito, cujo antigo prestígio
influenciou a maior parte dos filósofos naturalistas. Aristóteles chega a
dizer que o mundo em si mesmo sempre existiu e existirá. Em
contrapartida, Platão ousa afirmar que o mundo não existiu sempre, mas
sempre existirá, embora muitos provem, com os escritos dele, que o mundo
não existiu sempre, nem sempre existirá. (4) Em meio às dissensões destes
filósofos, como se pode reconhecer a verdade? Pois uns dizem que o mundo
é Deus, porque a seu ver a mente divina parece ser-lhe imanente; outros,

9
Se Ambrósio escreveu o Examerão em 387 ou 388, Agostinho quando se batizou aos 33 anos em 387,
ou teve acesso à obra ou às homilias do Bispo.
250 • Com Agostinho, e além dele

que partes do mundo são deuses, outros, tanto uma coisa como outra. E a
propósito: não se pode compreender a forma dos deuses, nem seu número,
nem lugar, vida ou cuidados. Pois em verdade, entendido como mundo,
deve-se conceber um deus redondo, incandescente, a girar, impulsionado
como que por movimentos sem sentido, impelido por movimento alheio,
não próprio (AMBRÓSIO, 2009, p. 17-18).

Nesse trecho inicial de sua obra, Ambrósio faz grandes defesas


acerca da origem da matéria e do verdadeiro significado da essência de
Deus, mostrando os equívocos dos filósofos. Inicia mencionando a
filosofia de Platão (428-347 a.C.), discípulo de Sócrates, que defendia o
Demiurgo como modelador do mundo, pois achou a matéria pré-
existente, assim, operou com ela: “Afirmaram que estes princípios são
incorruptíveis, incriados e sem início; que Deus não é propriamente o
criador da matéria, mas o artífice em vista de um modelo”, ou seja, o
mundo sempre existiu, uma vez que não é criado: “Eles julgam também
que o mundo em si mesmo é incorruptível, nem criado nem feito.
Também aborda o conceito de Demócrito, considerado o principal
representante da escola atomista, nasceu por volta de 460 a.C. na cidade
de Abdera, região da Trácia, que defendia uma explicação totalmente
material e mecanicista do mundo. Como o mesmo pensamento de
mundo incriado: “Aristóteles chega a dizer que o mundo em si mesmo
sempre existiu e existirá”, já “Platão ousa afirmar que o mundo não
existiu sempre, mas sempre existirá, embora muitos provem, com os
escritos dele, que o mundo não existiu sempre, nem sempre existirá”.
Fundamentando sua argumentação, o Bispo Ambrósio menciona as
Escrituras mostrado que, diferentemente dos escritos filosóficos, não
há incoerência na narração da criação divina feita por Moisés:
Marcone Felipe Bezerra de Lima • 251

Por tudo isso, prevendo pelo Espírito divino que surgiriam estes erros dos
homens, e talvez já tivessem começado a surgir, o santo Moisés assim diz
no início de suas palavras: No princípio Deus fez o céu e a terra. Uniu o início
das coisas, o autor do mundo e a criação da matéria, para compreenderes o
seguinte: primeiro, que Deus existia antes do início do mundo, ou melhor,
que Ele é o início de todas as coisas (assim, como no Evangelho, àqueles que
diziam: Tu, quem és? – o Filho de Deus respondeu: o princípio, e que vos falo);
segundo, que Deus deu o início à geração das coisas; terceiro, que Deus é o
Criador do mundo – e não um imitador da matéria, comandado por uma
certa ideia, e que da matéria tivesse formado suas obras não por seu próprio
arbítrio, mas pela contemplação de um modelo. E Moisés diz muito bem: No
princípio fez. Expressou desta forma a incompreensível rapidez da obra,
apresentando o resultado da ação realizada, de preferência à indicação do
seu começo. (6) Vejamos quem é a pessoa que diz isso. Moisés era em
verdade um erudito, versado em todo o conhecimento dos egípcios. Tirado
do rio, a filha de Faraó o amou como a um filho; sustentado com recursos
reais, ela quis que ele fosse formado e instruído em todas as disciplinas da
sabedoria do seu tempo. Este Moisés, embora tivesse recebido seu nome da
água, não pensou que devia dizer que todas as coisas são constituídas de
água, como diz Tales; embora tivesse sido educado no palácio real, preferiu
sofrer um exílio voluntário, por amor da justiça, a permanecer no auge do
poder e acrescentar aos prazeres a prática do pecado. Finalmente, antes de
ser chamado à missão de libertar o povo, impelido de inato zelo pela justiça,
vingou a injúria sofrida por um de seus compatriotas; atraiu sobre si a
inveja e apartou-se dos prazeres. Quando arrefeceu completamente o
tumulto na casa real, dirigiu-se a um lugar distante na Etiópia; lá, afastado
das demais ocupações, orientou todo o seu espírito para o conhecimento
divino e assim viu a glória de Deus face a face. A Escritura atesta que não
surgiu em Israel nenhum profeta maior do que Moisés, que conheceu o Senhor
face a face. Não falou com o sumo Deus nem em visão, nem em sonho – mas
boca a boca; não foi agraciado em figura nem por alegorias –, mas com a
honra clara e evidente da presença divina. (7) Assim este Moisés abriu sua
boca e extravasou aquilo que o Senhor falava nele, conforme o que lhe
dissera, quando o enviou a Faraó, rei do Egito: Vai, que eu abrirei tua boca e
te ensinarei o que deves falar. Ora, se o que ele devia dizer a respeito do povo
252 • Com Agostinho, e além dele

que ia libertar, ele o recebera de Deus, quanto mais o que devia dizer a
respeito do céu. Portanto, não foi em argumentação de sabedoria humana,
nem em disputas artificiosas de filosofia, mas sim numa demonstração de
espírito e virtude, como testemunha da obra divina, que ele ousou dizer: No
princípio Deus fez o céu e a terra. Não, ele não ficou assistindo a um processo
lento e desnecessário, até que o mundo se formasse por uma aglomeração
de átomos. Também não julgou que Deus devia ser entendido como um
simples aprendiz da matéria, a qual contemplasse para poder plasmar o
mundo, mas devia ser entendido como Criador. Com efeito, homem cheio
de sabedoria, ele adverte que só a mente divina contém a substância e as
causas das coisas visíveis e invisíveis – e não, como discutem os filósofos,
que uma aglomeração mais densa de átomos é responsável pela constância
dos ajuntamentos. Moisés julgou que aqueles que estabelecem princípios
tão diminutos e insubstanciais para o céu e para a terra, tecem uma teia de
aranha. Pois estes princípios, assim como fortuitamente se agregam, assim
também fortuita e casualmente se desagregam – a não ser que subsistissem
pela Divina Virtude de seu Timoneiro. Mas não é à toa que eles desconhecem
o Timoneiro, pois que não conheceram a Deus, por quem todas as coisas são
regidas e guiadas. Portanto, sigamos aquele que conheceu o Criador e o
Timoneiro – e não nos deixemos levar por vãs conjecturas (AMBRÓSIO,
2009, p. 18-21).

A partir desses argumentos, confirma-se a declaração de


Agostinho acerca da importância de Ambrósio para sua conversão. O
Doutor da Graça, devido aos conceitos materialistas desses filósofos e
seu desconhecimento ontológico de Deus, desprovia-se de uma
racionalidade discursiva que alcançasse uma logicidade da realidade
metafísica. Entretanto, dentre os sentidos interpretativos de Ambrósio,
o de essência espiritual favoreceu para uma nova compreensão e assim
sua saída do maniqueísmo:

Não me esforçava em aprender os temas que ele expunha, mas somente em


ouvir como ele os dizia. Permanecera em mim esse fútil interesse, perdidas
Marcone Felipe Bezerra de Lima • 253

as esperanças de que se patenteasse ao homem um caminho para chegar a


ti. No entanto, junto com as palavras que me agradavam, chegavam-me
também ao espírito os ensinamentos que eu desprezava. Não me era
possível separar as duas coisas: enquanto abria o coração às palavras
eloquentes, entrava também, pouco a pouco, a verdade que ele pregava.
Comecei então a notar que eram defensáveis suas teses, e logo vim a
perceber não ser temerário defender a fé que eu supunha impossível opor
aos ataques dos maniqueus. E isto sobretudo porque via resolverem-se uma
a uma as dificuldades de várias passagens do Antigo Testamento que,
tomadas ao pé da letra, me tiravam a vida. Ouvindo agora a explicação
espiritual de tais passagens, eu me reprovava a mim mesmo por ter
acreditado que a Lei e os Profetas não pudessem resistir aos ataques e
insultos de seus inimigos. Todavia, não me sentia no dever de abraçar a fé
católica, só pelo fato de que ela podia contar com doutos defensores, capazes
de refutar as objeções dos adversários com argumentos sérios. Por outro
lado, não me pareciam condenáveis as doutrinas que abraçara: os
argumentos de defesa das duas partes equivaliam-se. A fé católica não me
parecia vencida, mas para mim ainda não se afigurava vencedora. Foi então
que comecei a empenhar todas as forças do espírito na busca de um
argumento decisivo para demonstrar a falsidade dos maniqueus: se me
fosse possível conceber uma substância espiritual, todos os obstáculos
teriam sido superados e afastados do meu espírito. Mas não podia. Contudo,
em relação à própria estrutura do mundo e à natureza inteira perceptível a
nossos sentidos físicos, minhas reflexões e comparações me convenciam
cada vez mais de que a maior parte dos filósofos tinha opiniões bem
aceitáveis. Assim, duvidando de tudo, à maneira dos acadêmicos — como se
imagina comumente — flutuando entre todas as doutrinas, resolvi
abandonar os maniqueus. Parecia-me, nesse momento de dúvida, que não
devia permanecer nessa seita, que eu colocava em plano inferior a alguns
filósofos, se bem que recusasse terminantemente confiar a seus cuidados a
fraqueza de minha alma, por ignorarem eles o nome de Cristo. Resolvi então
permanecer como catecúmeno na Igreja católica, conforme o desejo de
254 • Com Agostinho, e além dele

meus pais, até que alguma certeza viesse apontar-me o caminho a seguir
(Conf., V, 14, 24, grifo nosso) 10.

O que fez com que Agostinho demorasse a entender essa as


verdades, rapidamente, foi seu desinteresse inicial: “Não me esforçava
em aprender os temas que ele expunha, mas somente em ouvir como ele
os dizia”. Porém, após a argumentação de Ambrósio, afirma: “comecei
então a notar que eram defensáveis suas teses, e logo vim a perceber
não ser temerário defender a fé que eu supunha impossível opor aos
ataques dos maniqueus”, além disso, houve um melhor esclarecimento
interpretativo e uma noção de substância espiritual distinta do
maniqueísmo: “E isto sobretudo porque via resolverem-se uma a uma
as dificuldades de várias passagens do Antigo Testamento que, tomadas
ao pé da letra, me tiravam a vida. Ouvindo agora a explicação espiritual
de tais passagens, eu me reprovava a mim mesmo por ter acreditado que
a Lei e os Profetas não pudessem resistir aos ataques e insultos de seus
inimigos”. Isso, porque, no maniqueísmo, o mal era conceituado como

10
Cf. Conf., XIII, 28,43; 33,48: “Ó Deus, viste finalmente que todas as coisas que tinhas criado eram ‘muito
boas’. Também nós as vemos, e observamos que são todas muito boas. Depois de dizeres a cada uma
das espécies das tuas obras que fossem criadas, e depois de elas o serem, viste que eram boas. Contei
que sete vezes está escrito que tu julgaste boa a obra que criaste. A oitava vez foi quando, completadas
todas as tuas obras, tu as julgaste não somente boas, mas ótimas, quando tomadas em conjunto. Cada
uma das criaturas em particular era boa, mas, tomadas em conjunto, eram muito boas. O mesmo se diz
da beleza dos corpos, porque o corpo, que é composto de membros belos, é bem mais belo que os
membros separadamente, cujo conjunto harmonioso compõe o todo, embora os membros
considerados separadamente sejam belos também. Tuas obras te louvam para que te amemos. E nós te
amamos, para que tuas obras te louvem, elas que tiveram início e fim no tempo, nascimento e morte,
progresso e regresso, beleza e imperfeição. Todas elas têm sucessivamente manhã e tarde, ora oculta
ora manifestamente. Do nada foram criadas por ti, não da tua substância; não de alguma matéria não
tua que existisse antes de ti, mas de matéria concreta, criada por ti ao mesmo tempo que lhe deste uma
forma sem nenhum intervalo de tempo. Uma coisa é a matéria do céu e da terra, outra é a aparência do
céu e da terra. Essa matéria foi criada do nada, e essa forma do mundo foi tirada da matéria informe,
mas essas duas operações foram simultâneas, de modo que entre a forma e a matéria não houve
intervalo de tempo”.
Marcone Felipe Bezerra de Lima • 255

sendo de natureza material, e como Agostinho passou um bom tempo


nele, entre oito a nove anos, não teria ouvido uma explicação tão
racional como a de Ambrósio. Portanto, todo o conceito criacionista foi
desenvolvido harmonicamente na mente do Mestre da Interioridade, ou
seja, chegou a luz que clareou sua mente e, assim, a conversão, pois Deus
criou todas as coisas e as fez boas.
Dessa forma, o conceito de mal/pecado difundido pelo
maniqueísmo foi isentado da razão agostiniana. Destaca-se que o mal
não é um produto de uma divindade, mas resultado do mau uso do livre-
arbítrio dado ao homem por Deus. Segundo Severino da Silva, o pecado
opera em todas as esferas da vida humana (moral, santidade, verdade,
conduta fraternal, sabedoria, julgamento, mental):

Na esfera moral. Quando Deus criou o homem, criou-o com um senso de


responsabilidade. Jamais iria dizer a um ser irresponsável: ‘Você será como
um de nós’, como disse ao homem, dando-lhe instruções para sua vida e
para sua prole. A responsabilidade imposta por Deus no homem envolve
vários aspectos de sua vida e para que ele se conserve puro, é necessário não
transgredir. A transgressão pode aparecer, em primeiro lugar, abrindo
caminho nos atos ilícitos – nos crimes e contravenções. Todos estes atos e
coisas semelhantes são condenados, tanto do ponto de vista religiosos,
como do social. Crime é a violação de uma norma de conduta imposta pela
lei soba sanção da pena. O crime pode ser cometido por um ato ou por
omissão e pode ser de dois tipos: doloso – quando se trata de intenção pré-
concebida de causar dano a alguém. Culposo – quando se trata da violação
da lei sem premeditação, mas com imprudência, negligência ou imperícia.
Mais ou menos como se fala que a pessoa humana pode pecar de duas
maneiras: por omissão – quando sabe fazer o bem e não o faz. ‘Aquele pois
que sabe fazer o bem e o não faz, comete pecado’ (Tg 4.17), – e por comissão
(Lc 3.19,20) (SILVA, 2013, p. 18-19).
256 • Com Agostinho, e além dele

Conforme Severino Silva, ao criar o homem à sua imagem, Deus


implantou a responsabilidade: “A responsabilidade imposta por Deus no
homem envolve vários aspectos de sua vida e para que ele se conserve
puro, é necessário não transgredir”; assim, responsabilidade,
substantivo feminino, significa o ato de responsabilizar-se pelo próprio
comportamento ou pelas ações de outrem; obrigação; qualidade de
quem presta contas as autoridades; no âmbito jurídico, obrigação
jurídica que resulta do desrespeito de algum direito, através de uma
ação contrária ao ordenamento jurídico. Portanto, o homem é
responsabilizado por suas ações; se transgredir a ordenança de Deus,
pecará – nisso constitui-se a origem do pecado, e não em Deus. Ainda,
segundo Severino Silva, o pecado atinge a santidade:

Na esfera da santidade. A santidade é a regra geral de Deus em ambos os


Testamentos. No Antigo, Ele disse: ‘Fala a toda a congregação dos filhos de
Israel, e dize-lhes: ‘Santo sereis, porque eu, o Senhor vosso Deus, sou santo’
(Lv 19.2). Em o Novo, Paulo diz: ‘... esta é a vontade de Deus, a vossa
santificação’ (1Ts 4.3), e acrescenta: ‘... o mesmo Deus de paz vos santifique
em tudo’ (1 Ts 5.23). Assim, tudo que pertence a Deus, ou com Ele se
relacionar, deve ser santo. Primeiro: a Trindade – Deus (Lv 19.2); Jesus (Lc
1.35); o Espírito Santo (Rm 1.4). Segundo: as coisas e os seres – a terra (Êx
3.5); o sábado (GN 2.3; Êx 20.8; 31.14; Ne13.22); as sobras dos sacrifícios (Êx
29.34); o óleo da santa unção (Êx 37.29); as festas (Lv 23.2); o monte do Senhor
(Sl 15.1); a aliança (Dn 11.30); a comida (1Tm 4.3-5); os dízimos (Lv 27.32); a
oferta (Mt 23.19); o sangue (Hb 10.29); os anjos (Mt 25.31); os apóstolos e os
profetas (Ap 18.20); os crentes (At 20.32; 26.18); os vasos (2Tm 2.21); o altar
(Êx 40.10); o caminho (Is 35.8); a cidade (Mt 4.5); o jejum (Jl 1.14; 2.15); os
sacrifícios (Rm 12.1) os primogênitos dos filhos de Israel e dos seres (Êx 13.2;
Dt 15.19). Este é motivo porque o Diabo detesta e não quer santidade –
porque do lado de Deus, tudo é santo e santificado (SILVA, 2013, p.19).
Marcone Felipe Bezerra de Lima • 257

Nesse trecho, vê-se o caráter de Deus pelo atributo da santidade.


Se Deus é santo, como poderia Ele determinar o ser humano para pecar,
uma vez que o pecado é uma ação contra a vontade dEle? O fato de Deus
saber que o homem pecaria não significa determiná-lo para tal fim, isso
seria incoerente com sua natureza.

CONCLUSÃO

A faculdade de decisão e determinação da vontade é direcionada


pelo livre-arbítrio da vontade em segunda ordem. Agostinho explica a
diferença entre voluntas (inclinação para realização ou disposição para)
e o livre-arbítrio da vontade (liberum arbitrium voluntatis), pois a
vontade relaciona-se às inclinações, desejos, já o livre-arbítrio
conserva-se e pode consentir ou recusar-se às inclinações. Portanto, o
homem foi criado perfeito por ser a semelhança da Imagem de Deus –
Imago Dei, ou seja, estruturado com potências: intelecto, memória,
vontade, livre-arbítrio. Porém, com a Queda, essa Imagem foi afetada,
fazendo com que houvesse a necessidade da atuação da Graça no
intelecto para a restauração do arbítrio. A Graça, em Agostinho, é a
oportunidade dada por Deus ao homem para restauração dessa Imagem,
isto é, a Graça é o remédio oferecido por Jesus Cristo, remédio esse que
é aplicado na ferida da alma, restaurando-a pela fé.

REFERÊNCIAS

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Oliveira São Paulo: Paulus, 1995, 296 p. [Coleção Patrística, n. 08].
258 • Com Agostinho, e além dele

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Amarante São Paulo: Paulus, 1997, 450 p. [Coleção Patrística, n. 10].

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Cristo e o pecado original. Tradução, introdução e notas de Agustinho Belmonte.
São Paulo: Paulus, 1998, 317 p. [Coleção Patrística, n. 12].

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Ambrósio e a formação de uma hierarquia feminina na congregação milanesa (Séc.
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GRACIOSO, Joel. Interioridade e filosofia do espírito nas Confissões de Santo


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PEREIRA JÚNIOR, Antônio. A superação da superação: propriação/superação da dúvida


acadêmica na busca da verdade na filosofia da interioridade de Santo Agostinho.
Recife: UFPE, 2018, 206 p. Tese (Doutorado em Filosofia).
11
CONCEITO DE LIBERTAS E SUA RELAÇÃO COM A
GRAÇA NAS CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO
Claubervan Lincow Silva 1

“Concede-me o que me ordenas, e ordena o que quiseres.”


(Confessiones, X, 29,40).

INTRODUÇÃO

Tomar o conceito de “libertas” é um desafio para todo estudante de


Filosofia Medieval, porém conceituá-la dentro da filosofia agostiniana
ganha desdobramentos e dificuldades ainda maiores, seja pelo seu
radicalismo com a graça, seja por seus escritos não-tardios que dão
ênfase maior a perspectiva do livre-arbítrio humano ou pelo capricho
semântico-retórico do Bispo de Hipona. O presente artigo tem como
princípio, fundamentar aquilo que o Bispo de Hipona define como
liberdade e sua relação com a graça dentro da obra Confessiones. Pode-
se então, num primeiro momento estabelecer que Agostinho se recusa
tomar este paradoxo de liberdade e graça como princípios antagônicos,
mas o problema cerne na perspectiva de “aparentes tensões” entre o a
aplicação da graça na liberdade humana. Analisando mais
detalhadamente os escritos agostinianos, principalmente as Confissões
e os escritos de sua maturidade, observa-se que estes dois princípios (a

1
Bacharel em Teologia pela Faculdade Teológica Integrada – FATIN (2013); Licenciado em Filosofia pela
Universidade Federal de Pernambuco – UFPE (2016); Mestre em Filosofia pela Universidade Federal de
Pernambuco – UFPE (2019). E-mail: lincow_cbj@hotmail.com
260 • Com Agostinho, e além dele

saber graça e liberdade) devem ser tomados como princípios


complementares e indissociáveis. Deste modo, o presente artigo visa
mostrar breves conceitos de Libertas e Gratia na sua aplicação relacional
dentro da obra Confessiones.

11.1 BREVE CONCEITO DE LIBERTAS EM SANTO AGOSTINHO

O conceito de libertas 2é amplo e extenso 3 no decorrer do


pensamento agostiniano, caracterizado pela “riqueza” de sinônimos e
vocábulos latinos que constroem o que verdadeiramente o africano
entendia como liberdade 4. Tomemos pois, dois importantes

2
Tomando por exemplo a palavra “libertas”, percebe-se que nem sempre há uma distinção da
terminologia latina de Agostinho para “liber”, devido a língua latina apresentar um único adjetivo qual
significa o gozo do livre-arbítrio e o gozo da liberdade, para esta dificuldade que abrange outras obras
mais extensas de Agostinho, Cf. GILSON,2010,309-310; Cf. ROLAND J. TESKE in: FITZGERALD, 2001, p. 931-
936.
3
ROLAND J. TESKE in: FITZGERALD, 2001, p.931-936, conceitua múltiplas definições que Agostinho toma
por libertas, tendo sido utilizado significado desta palavra no sentido político (Cf. Civ. Dei 1.4; 3.21; 6.10;
18.26; Ep. 204) e sentindo religioso (Cf. Grat. et Pecc. or. 1.18.19–1.21.22). Em seu sentido religioso,
Agostinho define subcategorias de libertas, como por exemplo ao falar da liberdade pré-lapsariana (Cf.
Corrept. 10.26–12.37; C. Jul. imp. 1.94; Persev. 7.13) e liberdade pós-lapsariana (Cf. Trin. 11.5.8), bem como
a verdadeira liberdade e falsa liberdade que merecem definições para uma boa compreensão da obra
Confessiones. Ainda acerca das definições sobre a liberdade, há as definições de libertas maior e libertas
minor, por isso diz PEGUEROLES in COSTA, 2012, p.51: “Santo Agostinho às vezes distingue dois graus de
liberdade, que chama de menor e maior, liberum arbitrium e libertas. Outras vezes, distingue três graus
de liberdade: liberum arbitrium, libertas minor e libertas maior. No primeiro caso, liberum arbitrium é a
possibilidade do bem, libertas é a necessidade do bem. No segundo caso, liberum arbitrium é o mesmo
que voluntário, libertas minor é a possibilidade do bem e libertas maior é a necessidade do bem”. Cf.
SILVA, 2019, p.26-40; SPROUL, 2012, p.57; Para uma expansão conceitual mais moderna e ampla, Cf.
MORELAND e CRAIG, 2005, p.334.
4
Não há um consenso se houve um radicalismo ou mudança de posicionamento de Agostinho frente a
concepção da relação entre graça e livre-arbítrio. De acordo com GILSON, 2010, p.300 os entraves de
Agostinho contra os pelagianos levaram o Bispo de Hipona a duras consequências e má interpretação
do significado de libertas por parte de seus leitores, já STUMP, 2016, p.2010-2011, ao falar sobre o De
Libero arbítrio, mostra que o posicionamento de Agostinho se preserva o mesmo ao longo de sua vida,
tendo apenas o destinatário diferente, ou seja, quando em tratativa contra o maniqueísmo era
necessário maior ênfase no livre-arbítrio e quando contra os pelagianos, maior ênfase na graça. Ainda
sobre esta temática, STEAD, 1999, 212-215, afirma um posicionamento mais radical de Agostinho no
que tange o conceito de liberdade e graça, principalmente quando se comparam as obras da
maturidade e a obra De Liberum Arbitrium. Cf. COSTA, 2002, p.357
Claubervan Lincow Silva • 261

significados: o de Verdadeira e Falsa libertas (SPROUL,2012, p.58), que


aparecerão por todo corpo deste texto.
Iniciemos então pela vera libertas, onde o Bispo de Hipona atrela a
vontade com a retidão (De Lib. Arb. 1.15.32; Civ. Dei 2.29), não sendo um
modo de agir que parte da ação causal 5 primária do homem, mas a
verdadeira liberdade sempre será um dom de Deus, concedido como
remédio para fazer com que o livre-arbítrio da vontade queira aquilo que
Deus quer, ou seja, as beatitudes. Esta veras libertas sempre estará
concomitantemente em ação com a gratia, pois além de funcionar como
agente causal da ação para o bem, também é responsável por fazer os
eleitos serem firmes e fiéis até o fim (Corrept. 12.38). Por tratar-se de uma
liberdade genuinamente cristã, sendo impossível alguém sem o auxílio da
graça desfrutá-la, Agostinho a denomina de Christiana libertad (Pecc. Mer.
2.3; 16.28; Nat. et Gr. 57.67.), por compreender que “a liberdade cristã atua
dentro da vontade, fortalecendo 6 a bondade de tal maneira que esta se
deleita verdadeiramente na realização dos bons atos” 7.

5
O efeito causal ou causação, pode ser definido como: “relação entre duas coisas, isto é, a causa e o
efeito. Para o compatibilista, o único tipo de causação é aquela chamada de causação evento-evento
(também denominada situação-situação). O único tipo de entidade que pode ser colocada na relação
causal é o evento.” Cf. MORELAND e CRAIG, 2005, p.346.
6
O autor dá uma ênfase na ação da graça no sentido volitivo do homem, de modo que, a atuação da mesma
(graça) é aplicada sem ser sentida e de modo incitativo, tornando o homem verdadeiramente livre, fazendo
com que sua livre vontade se direcione para onde a graça assim o quer, dessa forma Agostinho afirma não
apenas a graça como causa primeira da boa ação do homem, mas também como socorro e misericórdia
perante uma vontade que por si só, só quer o mal. Conf. VII. 8.12: “Com um aguilhão secreto provocavas em
mim a inquietude, para que eu me mantivesse insatisfeito, até que te tornasses uma certeza ao meu olhar
interior. Meu tumor diminuía ao contato misterioso de tua mão benfazeja. A vista perturbada e obscurecida
de minha inteligência melhorava dia a dia, graças ao colírio de dores curativas”
7
Portanto a vera libertas possui um valor tanto antropológico como soteriológico dentro do pensamento
agostiniano, pois com a ação da vontade de acordo com as leis divinas, o homem não mais é escravizado
pelos malefícios oriundos de uma vontade caída, atingida pelo pecado original que é dividida por sua
própria concupiscência (Conf. VII.5.10; VII.11.25), mas a vontade passa a querer (amar) o bem. Cf. Conf.
IV.4.7. ROLAND J. TESKE in: FITZGERALD, 2001, p.934: “(...) o prazer espontâneo da vontade no bem
liberta-a dos constrangimentos do temor e da concupiscência associados com os hábitos carnais que
262 • Com Agostinho, e além dele

Entendida a maneira que Agostinho predispõe da verdadeira


liberdade, conceituar-se-á a respeito da falsa liberdade, qual recebe
várias nomenclaturas, como por exemplo: “manca libertas” 8, por se
tratar do deleite da vontade em cometer atos maus achando-se livres,
ao enganar-se, o homem age por amor ao pecado pensando ser livre em
suas ações, desse modo, ele age com uma fugitiva libertas 9, configurando
um segundo sinônimo para falsa liberdade (GILSON, 2010. p.304). O
Bispo de Hipona elenca um terceiro sinônimo para esta falsa liberdade,
que se estabelece quando a vontade do homem se entrega
deliberadamente a libertinagem, sem quaisquer temor ou devoção as
leis de Deus, sendo a servilis libertad (Conf. III.8.15)
Portanto, todas as definições da falsa liberdade condizem com uma
subserviência da vontade perante o pecado, “a perda sofrida por Adão
da liberdade de fazer o bem, origina então a aquisição de uma
necessidade habitual (consuetudo) que impulsiona a vontade caída a
passar de um ato mau para outro ato mau, seguindo assim para o
caminho de condenação” (ROLAND J. TESKE in FITZGERALD,2001,
p.934). Desse modo, “vemos nas Confissões que Agostinho encontra em
sua própria vida, antes de sua conversão, o exemplo clássico de vontade

ditam uma dura servidão ao mal (...). Ao contrário da lei do pecado, que liga a vontade ao mal, a lei da
liberdade liberta a vontade da necessidade de pecar.”
8
Como veremos mais adiante ao retratar a relação de Graça e liberdade na obra Confessiones. Cf. Conf.
II.6.12.
9
Tratando dos pecados cometidos e das culpas que lhe atingira (Conf.III.3.5), o Bispo de Hipona faz mais
uma distinção salutar para a sua concepção de liberdade. Ao utilizar do artifício da retórica, citando o
que “não é” para explicar “o que é”, Agostinho cita a liberdade de um fugitivo, qual retrata uma
“liberdade” condicionada ao pecado. Cf. Conf. III. 3.5: “Por isso me puniste com graves castigos; mas estes
eram nada diante das minhas culpas, ó Deus meu, ó misericórdia infinita, que és o meu refúgio contra
esses males terríveis, entre os quais presunçoso divaguei, de cabeça erguida, afastando-me de ti cada
vez mais, ao amar os meus, e não os teus caminhos, ao amar a liberdade de um fugitivo.”
Claubervan Lincow Silva • 263

errante agindo sob o pretexto de uma falsa liberdade” (ROLAND J.


TESKE in FITZGERALD, 2001, p.934).

11.2 BREVE CONCEITO DE GRATIA EM SANTO AGOSTINHO

A concepção de gratia em Agostinho, apesar de ser oriunda de uma


temática puramente teológica, abarca em si também soluções e
disposições filosóficas quais sem elas toda a filosofia agostiniana cai em
derrocada 10. O Bispo de Hipona torna-se tão persuasivo neste tema de
graça que o leva a ser chamado de Doutor da Graça. A graça não era
compreendida apenas como uma dádiva por Agostinho, mas por
influência do neoplatonismo e sua teoria da emanação 11, o Bispo de
Hipona tinha na graça a significação do Supremo Ser e sua relação com
as coisas criadas, de modo que, o poder e a forma de ação de Deus são
manifestos de forma hierárquica e ordenada. 12

10
SPROUL, 2012, p.44 afirma acerca da importância da graça na teologia agostiniana: “‘A grande
contribuição que Agostinho deu à vida e ao pensamento do mundo’, diz B. B. Warfield, ‘é a
personificação na teologia da graça, que ele apresentou com notável clareza e força, vitalmente em suas
Confessions, e dogmaticamente nos seus tratados antipelagianos’. De acordo com Warfield, Agostinho
estabeleceu a graça como algo indispensável à vida cristã: ‘Essa doutrina da graça veio das mãos de
Agostinho com seu esboço positivo e completamente reformulado: o homem pecador depende
inteiramente, para a sua recuperação para o bem e para Deus, da graça livre de Deus; essa graça é, por
essa razão, indispensável, preveniente, irresistível, infalível; e sendo assim a livre graça de Deus deve ter
consistido, em todos os detalhes da sua conferência e obra, na intenção de Deus desde toda a
eternidade’. Warfield apreendeu a essência do foco central de Agostinho na graça.” Segundo STEAD,
1999, p.2016: “a doutrina de Agostinho sobre a necessidade vital da graça divina foi geralmente aceita
como uma contribuição decisiva para teologia cristã (...)”.
11
Segundo Stead (199, p.213), não só o conceito de gratia tem a influência do neoplatonismo, mas o
próprio de libertas teve sua ressignificação a partir do neoplatonismo. Deste modo, Stead compreende
que Agostinho influenciado por Plotino, elabora um novo significado para liberdade (mais amplo do
que o utilizado no De Liberum arbitrium) absorvendo o conceito non posse peccare: “Essa paradoxal
definição (non posse peccare) sugere que o homem realmente bom perde sua liberdade de escolha; uma
fórmula melhor indicaria que ele escolhe livremente, mas todas as suas escolhas são boas”.
12
Para uma abordagem mais pormenorizada acerca da influência do Neoplatonismo na filosofia
agostiniana, Cf. COSTA, 2002, 152-195.
264 • Com Agostinho, e além dele

Esta postulação agostiniana mostra que Deus controla e governa


todas as coisas a partir de seu poder e querer, sendo fonte primária de
toda boa volição do homem (Gen. Litt. II.8.16-19). Então, a graça pode ser
definida 13 como a “presença e o poder divino que agem e estão presentes
no mundo, do qual as criaturas dependem totalmente para as suas
próprias operações” (E. ANN MATTER in: FITZGERALD, 2001, p.734).
Portanto, a graça tende a agir14 na vontade volitiva do homem
“consertando” aquilo que fora destruído pelo pecado de Adão,
capacitando-o a escolher não pelos próprios méritos, mas por força e
razão da graça, “Assim, a graça pode ser definida: o que confere à vontade
seja a força para o querer o bem (De grat. Chri. et. Pecc. Orig. 1.25), seja para

13
Agostinho utiliza a graça em quatro grandes definições, sendo a primeira definição: 1) graça praeveniet,
encontrada nos Salmos 59:10 e é por esta graça que Deus age na volição de primeira e segunda ordem
do homem, ou seja, a graça praeveniet é a ação primária de Deus no intelecto do homem, em sua
imaginação e em seus desejos. Cf. KELLY,1994, p.278; De nat. et. Grat.35. 2) Há a graça que auxilia a
vontade do homem após ser despertada pela graça praeveniet atuando nas volições de segunda ordem,
por isso, Agostinho atribui a ela o nome de graça cooperante, Cf. De nat. et. Grat.33. Outra definição, 3)
A graça adiuntorium sine quo, graça esta possuída por Adão, qual tinha a finalidade de estabelecer nele
o posse non peccare (pode não pecar) encontrada em De nat. et. Grat.29-34. Cf. KELLY, 1994, p.273; SILVA,
2019, p.41; COSTA, 2002, p.357; SPROUL, 2012, p.46. E por fim, 4) Agostinho toma como definição de
graça, a graça adiuntorium quo, possuindo por definição, ser uma graça concedida aos eleitos e
predestinados, que tem à vontade em total acordo com aquilo que Deus quer, ou seja, uma vida em
plena retidão. Cf. COSTA, 2002, p.364.
14
A ação da graça na liberdade humana age por meio da presciência divina, onde Deus conhece os
acontecimentos que sucederão, de modo compatibilista, Conf. VII.4.6: “De modo algum pode a corrupção
afetar o nosso Deus, seja por uma vontade, seja por qualquer necessidade ou seja por qualquer
acontecimento imprevisto, porque ele é o próprio Deus, e tudo o que quer para si é bom, e ele próprio é o
bem; porém estar sujeito à corrupção não é um bem. Tu não podes ser obrigado a alguma coisa contra a
tua vontade, pois tua vontade não é maior que o teu poder; e somente seria maior, se fosses maior que tu
mesmo. O poder e a vontade de Deus são o próprio Deus. Para ti, que tudo conheces, existe acaso algo
imprevisto? Enfim, nenhum ser existe, senão enquanto o conheces”. Cf. MORELAND e CRAIG, 2005,p.335-
337.Isso garante ao homem uma ação verdadeiramente livre, pois mesmo que em última instância essa
proposição requeira um domínio soberano de Deus, Deus por seu conhecimento sabe de todas as escolhas
“livres” qual o homem fará, e fazendo as escolhas para o bem, há a concretização da verdadeira liberdade.
Esta teoria não é de todo inovadora e própria do pensamento de Agostinho, Orígenes por exemplo em
Princ. 3.12-13 sugere um pensamento muito semelhante. Deste modo, Agostinho insere a causalidade nas
ações fortuitas do homem, sendo regidas por Deus que controla deterministicamente por meio da graça,
mas não viola o arbítrio humano. Cf. STEAD, 1999, p.215
Claubervan Lincow Silva • 265

realizá-lo. Ora, esta força dupla é a própria definição de liberdade”


(GILSON, 2010, p.303), de modo que para Agostinho: “a graça era uma
necessidade absoluta: ‘Sem a ajuda de Deus é impossível, pelo livre-
arbítrio, vencer as tentações da vida’” (KELLY,1994, p.277) 15. É neste
aspecto que Agostinho se utiliza de uma concepção joanina presente no
Evangelho de João 1.16 (graça sobre graça) para mostrar que toda a ação
volitiva do homem parte de Deus para Deus, sendo Deus o objeto primeiro
e último gozo das ações do homem (De grat. et lib. arb., IX, 21).

11.3 RELAÇÃO DE GRAÇA E LIBERDADE NA OBRA CONFESSIONES

Ao iniciar as Confissões 16, Agostinho mostra a força da graça


utilizando-se do poder da retórica quando descreve: “...tu excitas, ut
laudare te delectet...” (Conf. I.1.1) 17, ressaltando a atuação da graça na

15
Esse mesmo comentarista (KELLY, 1994, p.277) ao falar da graça e predestinação acentua o significado
de graça afirmando: “E não se pode limitar a graça apenas às ajudas externas que os pelagianos estavam
dispostos a aceitar. Antes mesmo de começarmos a desejar o que é bom, a graça de Deus precisa estar
em operação dentro de nós. Ela é, portanto, ‘um poder interno e secreto, maravilhoso e inefável’,
mediante o qual Deus opera nos corações dos homens.”.
16
As Confissões de Agostinho, escrita em 397-400 podem ser caracterizadas como um desnudo da alma
do autor, tendo como temática aquilo mesmo que seu título propõe, confessar uma alma que de modo
simultâneo escancara seus pecados, mostra quem é o verdadeiro “eu” e enaltece o Criador de todas as
coisas, atribuindo-lhe todo bem e toda dádiva. Esta Obra não apenas demonstra conotações literárias
de testemunhos pessoais, com uma exímia habilidade da língua e domínio da retórica, mas assim como
grande parte dos escritos de Agostinho, ela contém reflexões filosóficas que auxiliaram a construção de
todo um legado posterior. Cf. Clássicos da literatura cristã, 2015, p.213: “O bispo Agostinho de Hipona
(354-430) é uma das figuras exponenciais da história da Igreja e da tradição cultural do Ocidente. Um
dos teólogos e filósofos mais destacados do cristianismo, ele influenciou poderosamente não só o
pensamento católico, mas também a Reforma protestante. Confissões é considerada uma de suas obras
principais, ao lado de A cidade de Deus e A Trindade. Ela foi a primeira obra a explorar amplamente os
estados interiores da mente humana e o relacionamento mútuo entre graça e livre-arbítrio”.
17
De acordo com Amarante (in. Conf., 1997, p.9), a tradução desta frase dá-se de seguinte modo: “Tu o
incitas para que sinta prazer em louvar-te”, também segue uma tradução semelhante OLIVEIRA e DE
PINA in Conf., 2014, p.27, qual diz: “Vós o incitais a que se deleite nos vossos louvores”, já PISETTA in
Conf., 2015, p.219, traduz: “Tu nos despertaste para o prazer em te louvar”. Em ambas as traduções, a
força verbal em “tu excitas” demonstra a ação do agente sobre o locutor, isto é, a ação primeira de Deus
no homem.
266 • Com Agostinho, e além dele

volição humana, agindo de tal forma que o homem é inclinado para o


prazer em louvar a Deus. Ainda nessa passagem (Conf. I.1.1), o autor
mostra a relação mútua e harmoniosa do que propõe a verdadeira
libertas cristã, isto é, a relação da liberdade e graça 18, afirmando: “a
minha fé (...)” (Conf. I.1.1, grifo nosso) como sendo uma fé pertencente
ou oriunda do próprio Agostinho, porém a informação logo é
complementada, quando o autor escreve: “(...) que me deste, que me
inspiraste” (Conf. I.1.1,grifo nosso), como tendo Deus por autor e
inspirador da fé, em outras palavras, o homem só pode obter a fé se Deus
o assim inspirar e conceder.
A ação do homem quando faz “o bem” e procura a justa ordem, em
si já é uma ação fruto de uma relação causal 19, cujo Supremo Bem é a
primeira potência para que toda a causalidade seja transcorrida, pois
segundo Agostinho, nada que fazemos de bom pode ter origem no
próprio homem, mas “porque de ti, ó Deus me vêm todos os bens, e do
meu Deus toda a minha salvação!” (Conf. I.6.7). Deste modo, se tomamos
a liberdade como um bem (e de fato ela é), não pode ter outro sentido,
origem ou uso senão em/para Deus.

18
É importante ressaltar que os Pais da Igreja, principalmente os Padres gregos, já se debruçavam acerca
da: antropologia, influência da queda de Adão, suas consequências (Hamartologia) e da relação da graça
e livre-arbítrio (mesmo que lhes faltassem a potência e notoriedade qual o Bispo de Hipona deu a este
assunto). Cf. KELLY, 1994, p.262-266; Cf. Gregório de Nazianzo, 37,21; Cf. Gregório de Nissa, or.cat.30s. O
pai grego Gregório de Nazianzo afirmava por exemplo, que havia uma cooperação entre graça e livre
arbítrio, donde em Or.37.13-15, ele mostra haver uma relação sinergística na salvação, isto é, o homem
tem participação ativa no querer e fazer o bem. O padre Crisóstomo, afirmava de modo semelhante em
In Gen. Hom. 25.7, onde segundo ele, Deus fortalece o desejo do homem, cooperando então com a
atuação do livre-arbítrio.
19
De acordo com GILSON (2010, p.298), deve ser observado que a escolha voluntária nunca ocorre de
maneira casual, mas há sempre causalidade na voluntariedade desta escolha, GILSON, 2010, p.298:
“Certamente, a escolha voluntária nunca ocorre sem motivos, e alguns motivos podem pesar sobre ela
com uma força irresistível; o livre-arbítrio é precisamente uma escolha que se exerce em virtude de
motivos.”
Claubervan Lincow Silva • 267

O Bispo de Hipona ao remeter o seu período infante, relata que não


gostava de estudar e por isso “era obrigado para seu bem” (Conf. I.12.19),
mostrando ainda que, “contra a vontade, ninguém procede bem, ainda
que a ação em si mesma seja boa”(Conf. I.12.19), isso ressalta que a
verdadeira liberdade não pode ser tomada como uma ação forçosa da
graça sobre um ser qual reluta em fazer diferente, mas a graça age de
tal modo na volição do homem que o faz querer aquilo que Deus quer de
modo sutil e natural, sendo uma condução doce e meiga para a
consumação da justa ordem, pois diferentemente dos professores de
Agostinho que “o obrigavam não agindo corretamente” (Conf. I.12.19),
Deus não age de modo “tirânico” no coração do homem, mas o conduz,
o incita e o capacita (Conf. I.1.1)a querer aquilo que Ele quer, “somente
de ti vinha o bem, meu Deus” (Conf. I.12.19) 20.
Doravante, Agostinho utiliza a escravidão do pecado 21 como
sinônimo da falsa liberdade, ao citar o fato ocorrido em sua
adolescência, quando furtou peras apenas para o desfrute do pecado
(Conf. II. 4. 9), o autor mostra que ali ao cometer tal ato satisfazendo sua
vontade pecaminosa, ele não desfrutava de uma verdadeira liberdade,

20
Agostinho encerra o livro I demonstrando que todo o bem é advindo de Deus, sendo impossível o
homem fazer ou querer qualquer bem se de Deus não for doado gratuitamente. Cf. Conf. I.20.31:
“Portanto, bom é aquele que me criou. Ele é o meu bem, e eu exulto em sua honra por todos os bens
que constituem a minha existência desde a infância. Meu pecado era não procurar nele, e sim nas suas
criaturas — isto é, em mim mesmo e nos outros — os prazeres, as honras e a verdade. Eu me precipitava
assim na dor, na confusão e no erro. Graças a ti, ó minha doçura, minha glória, minha confiança, meu
Deus, pelos dons que me deste. Conserva-os, pois. E assim me conservarás. Então crescerá e se
aperfeiçoará tudo o que me deste. E eu mesmo viverei contigo, porque foste tu que me deste a
possibilidade de existir”.
21
Um dos pontos da Hamartiologia agostiniana consiste quando o homem se acha autossuficiente a
ponto de querer encontrar ou desfrutar dos bens que só podem ser obtidos em Deus, Cf. Conf.II.6.14: “É
assim que o homem peca, quando se afasta de ti e busca fora de ti a pureza e a limpidez, que ele não
pode encontrar senão voltando para ti”
268 • Com Agostinho, e além dele

mas de uma falsa liberdade (manca libertas) que estava escravizada pelo
pecado. 22
Agostinho mostra que a liberdade além de libertar do julgo da
escravidão do pecado em um sentido regenerador (regenerationem a
reatu peccati), também preserva na prática da bondade 23 aquele qual
desfruta deste dom 24, sendo aí o ponto sine qua non para afirmar-se que
é impossível atrelar liberdade ao pecado.
Concomitantemente ao falar dos fundamentos naturais da moral,
elencando as três principais fontes da iniquidade: paixões do poder,
paixões da curiosidade e paixões da satisfação dos sentidos
(Conf.III.8.16); Agostinho retoma a partir da reflexão antimaniquéia o
que seria o pecar, isto é, ir contra a justa ordem, reverberando a
perversão da própria natureza, ficando o homem cativo ao pecado não
obtendo liberdade, sendo engodado por uma pseudoliberdade 25.

22
Agostinho revela acerca desse fato, Conf. II.6.14: “Mas o que foi que achei naquele roubo, em que foi
que imitei o meu Senhor, ainda que mal e pervertidamente? Talvez eu tenha sentido prazer em agir
contra a lei pela fraude, já que não o podia fazer pela força, para imitar, escravo que era, uma falsa
liberdade, praticando impunemente o que não me era lícito, mediante uma tenebrosa paródia de tua
onipotência. Eis-me aqui, escravo que foge do seu senhor, à procura da escuridão. Oh, podridão! Oh,
vida monstruosa! Oh, abismo da morte! Como pude achar prazer no ilícito somente por ser ilícito?”
23
Nesta questão da perseverança dos santos, o conceito de libertas de Agostinho carrega uma
similaridade com o pensamento de Orígenes contido em sua obra Orig. Princ. 1.4.1. Orígenes sustenta
que o homem que é verdadeiramente bom, não cometerá pecados graves e os pecados de menor
potencial serão logo corrigidos. Cf. STEAD,1999, p.213.
24
Agostinho afirma neste ponto Cf. Conf.II.7.15: “Que esse alguém apenas te ame meu Deus, ainda mais,
reconhecendo que aquele que me libertou da exaustão do pecado, o preservou também da mesma
funesta debilidade.” Entre outros assuntos a preservação da graça seria um preâmbulo para dois futuros
livros que Agostinho escreveria no combate contra os pelagianos, o primeiro sob o título: “De
praedestinatione sanctorum”, escrito em 429, sendo um dos últimos livros escritos por Agostinho
(posterior a obra Retractione), qual defende seu posicionamento acerca da predestinação e graça. A
segunda obra é “De Dono Perseverantiae”, escrito também em 429, cuja função seria dirimir os
questionamentos levantados pelos monges e clérigos da Gália, a respeito da predestinação. Cf. SILVA,
2019, pp.131-155.
25
É possível perceber nesse trecho qual Agostinho diz, Conf. III.8.16, grifo nosso.: “Por orgulho individual
ama-se uma parte de ti, falsamente tomada pelo todo. E assim retornamos a ti com humilde piedade, e
tu nos purificas dos maus hábitos, e te mostras indulgente para com quem se reconhece pecador,
Claubervan Lincow Silva • 269

Ao testemunhar seu período de envolvimento dentro da astrologia


o autor define o seu conceito antropológico: “(...) o homem, que é carne,
sangue e orgulhosa podridão” (Conf. IV.3.4). Essas afirmações
corroboram com a relação de compatibilismo 26 entre a graça e sua
atuação na vontade do homem, qual nunca poderá afirmar ser livre, se
suas ações e volições não estiverem sob a “vontade” do Sumo Bem, por
isso ao iniciar o livro V, Agostinho enaltece as misericórdias de Deus. 27
Em outra passagem, já no livro VI, o Bispo de Hipona parece
mostrar que em toda a condução do seu processo de conversão, Deus

“ouves os lamentos dos cativos”, e nos libertas daqueles grilhões que nós mesmos preparamos, contanto
que jamais nos ergamos contra ti em atitude de falsa liberdade, cobiçosos de possuir mais, com o risco
de tudo perder, dando mais preferência ao nosso bem particular do que a ti, que és o bem universal.”Cf.
Conf.II.4.9; Cf. SILVA,2019, p.35
26
O debate entre a relação da graça (determinismo) e liberdade humana, transcendeu o período de vida
de Agostinho, ultrapassando épocas (com mais ou menos ênfases na persona divina) mas com uma
objetivação de tentar entender a relação metafísica e ontológica do tema. Deste modo podemos tomar
algumas definições de compatibilismo: “como posição de que um ato está sendo causalmente
determinado é compatível com o fato de ser um ato pelo qual um agente é moralmente responsável
ou um ato que um agente fez de vontade livre (...)”, STUMP, 2016, p.209. Ao expor este embate paradoxal
entre determinismo e liberdade, os autores MORELAND e CRAIG, 2005, p.335, definem como
compatibilismo a forma filosófica qual “defende que a liberdade e o determinismo são compatíveis
entre si; portanto, a verdade do determinismo não anula a liberdade.” Outra definição importante de
Compatibilismo, desta vez não de modo abrangente, mas aplicado à filosofia agostiniana, é a de
STEAD,1999, p.215: “Observa que todas as nossas decisões devem ser tomadas levando em consideração
os impulsos que nos acometem em grande parte ao acaso. Ora, por exemplo, ouvimos cantar um hino,
ora topamos com uma prostituta provocante, e de imediato há uma resposta involuntária, a que os
estóicos chamam de propatheia, antes que possamos identificar e controlar nossos pensamentos.
Agostinho sustenta que Deus pode tramar quais impulsos acometerão um homem a cada momento,
sabendo como ele responderá, e assim pode levá-lo à ação que está preestabelecida, sem violar seu
livre-arbítrio. Deus não interfere em nenhum movimento de vontade que controlamos
conscientemente; ele simplesmente controla aquilo que a nossos olhos parece serem fortuitos. Essa
teoria tem um interesse filosófico já que Agostinho adota aquilo que alguns filósofos chamaram de
posição “compatibilista”: a liberdade humana, em certo sentido, é compatível com um curso dos
acontecimentos completamente determinado. E sua repercussão teológica é que o futuro, inclusive
nosso próprio destino pessoal, é não só previamente conhecido, mas predeterminado.” Cf.
INCANDELA,1994, pp.148-153; Cf. SILVA,2019, pp.169.
27
No trecho em seu livro, Agostinho relata, Conf. V.1.1: “Quem a ti se confessa, nada de novo te informa
de quanto lhe vai na alma, pois nem o coração mais fechado pode subtrair-se ao teu olhar, nem a dureza
dos homens pode afastar a tua mão: tu a tornas branda de acordo com o teu querer, seja perdoando,
seja punindo. Ninguém pode fugir ao teu calor”
270 • Com Agostinho, e além dele

por meio da sua graça agia em seu coração, “(...) enquanto a tua mão
suave e misericordiosa plasmava e formava pouco a pouco o meu
coração, eu refletia na infinidade de fatos em que acreditava, sem tê-los
visto ou deles ter sido testemunha” (Conf. VI.5.7), sendo uma ação ativa
da vontade de Deus na volição de Agostinho, efetivando uma condução
doce que culmina na verdadeira liberdade cristã, desarmando uma
vontade que antes era conduzida pelo pecado e agora é proveniente de
uma graça libertadora. Ainda nesta perspectiva, quando Agostinho
relata da sua amizade com Alípio, o autor ressalta a ação da graça qual
inclina o homem suavemente, fazendo com que este queira aquilo que a
graça concede, sendo aí o modus operandi da graça, isto é, a graça age na
vontade do homem de tal modo que o homem passa a agir e querer de
tal forma que sua vontade e finalidade tornam-se uma só coisa, eis aí o
que compõe na prática a verdadeira liberdade. 28
Em seu livro VII, ao tratar acerca de suas inquietações e dúvidas
que lhe afligiam na constante busca pela verdade, Agostinho é
impactado pelas objeções feitas por seu amigo Nebrídio (Conf. VII.2.3),
que atingiram o espírito inquietante de Agostinho concernente às
doutrinas que os maniqueus defendiam (COSTA,2003, pp.176). Ao
referir-se diretamente acerca do problema do mal (Conf. VII. 3.4),
tomando como ponto inicial a origem do mal moral no homem, o autor
diz: “Esforçava-me por compreender o significado do que ouvia dizer

28
Agostinho ainda vai além neste exemplo, mostrando que a ação divina no homem é de tal forma tão
graciosa que age de forma imperceptível, Cf. Conf. VI. 7.11: “Mas tu, Senhor, que governas a sorte de tuas
criaturas, não te esquecias de quem havia de ser, entre teus filhos, ministro dos teus sagrados mistérios.
E para que a reabilitação fosse claramente reconhecida como obra tua, usaste de mim como
instrumento, sem que eu o percebesse”.
Claubervan Lincow Silva • 271

sobre a livre determinação da vontade, como causa do mal que


praticamos, e o teu reto juízo. Mas era incapaz de ver isso claramente.
como motivo de sofrermos esse mal” (Conf. VII.3.5). Nesse trecho
Agostinho ressalta a “liberum voluntatis arbitrium” como causa do fazer
e querer o mal, essa é uma das passagens que o autor utiliza como sendo
“livre” ou estabelecendo certa equivalência do estado volitivo de querer
e praticar o mal.
Sendo assim, a que o Bispo de Hipona realmente se refere como
uma volição livre? Pois em grande parte de sua obra Confessiones há uma
clara evidência de que todo o conceito de liberdade plena e verdadeira
deve ser atrelada a graça, mas eis que nesta passagem supracitada
aparece um sentido mais generalizado abarcando tanto um poder fazer
o bem, quanto o poder fazer o mal 29, ou seja, uma liberdade mais
libertária.Como dirimir este aparente choque de definições? O próprio
autor tem uma resposta quanto a isso no decorrer das Confessiones, pois
quando em continuidade a sua narração da inquietude a respeito de
“Unde male faciamus?” (eis aí um problema da Teodiceia), Agostinho

29
Agostinho em sua obra De Libero arbitrium, tratava desta temática, onde tentava responder
questionamentos como: Quid sit malum? - o que é o mal?” e Unde male faciamus? - de onde vem o
praticarmos o mal?”,estas perguntas compõe todo o desenrolar da temática do Livro, tendo como
Evódio como interlocutor. Cf. De lib. arb. I,1,1. Nesta obra de sua não-maturidade, vê-se ainda resquícios
do neoplatonismo e a luta constante contra as doutrinas maniquéias, tanto uma luta interna quanto
externa no Bispo de Hipona, não tendo um pensamento ainda totalmente definido acerca do tema da
relação da graça e liberdade como vê-se nas obras contra os pelagianos. Ainda assim, nesta obra,
podem-se observar detalhes que serviriam de coluna para seu pensamento maduro, mesmo que ainda
não se encontre a definição de distinção tão clara da verdadeira liberdade e da falsa liberdade,
passagens como a De lib. arb. III,17,47, Agostinho é enfático em dizer que sem liberdade não há pecado,
sendo discordante da maioria de suas obras contra os pelagianos e das Confessiones se vista sem o
devido cuidado semântico e conceitual do emprego da palavra “liberdade”.Outras passagens ajudam a
mostrar que a “guerra” do homem está em sua própria vontade. Cf. De lib. arb. III,17,48. Cf. MECONI e
STUMP, 2016, pp.454; Cf. COSTA, 2002, pp.429; Cf. SILVA, 2008, pp.109; Cf. GILSON, 2010, pp.542; Cf.
EVANS, 2006, pp.270.
272 • Com Agostinho, e além dele

relata: “Como explicar que a minha vontade tenda para o mal e não
para o bem? Será isso talvez uma punição justa? Quem plantou em mim
esses germes de sofrimento e os alimentou, uma vez que sou criatura do
meu Deus que é cheio de amor?” (Conf. VII.3.5, grifo nosso). Aqui o autor
cita a frase “unde igitur mihi male velle et bene nolle?” como forma de
demonstrar suas antigas dúvidas de onde vinha este querer 30 o mal e
não o bem, mostrando toda a influência paulina 31 em sua antropologia,
bem como ressaltando que há uma “tendência” ou “inclinação” para o
mal, que nada mais é do que a ingerência do pecado original.
Portanto, a utilização do termo “livre determinação da vontade”
neste contexto (Conf. VII. 3.5), deve ser compreendida não com o sentido
de uma agência “livre libertária”, ou de uma vontade que goza
verdadeiramente de uma liberdade, mas deve ser tomada como sentido
de que o homem não pode ser coagido (sentido de ir contra a sua própria
vontade) para fazer ou conceber o mal, sem que ele mesmo queira.
No decorrer do livro, Agostinho relata o seu encontro com o Bispo
Simpliciano (Conf. VIII, 1.1) 32 que lhe discorre acerca da conversão de

30
AMARANTE in AGOSTINHO, 1997, p.177, traduz utilizando-se do verbo “tender”, ou seja, “(...) que minha
vontade tenda para o mal”, dando um sentido ainda mais contundente a ação condicionada que se
“tendência” tanto para o bem quanto para o mal.
31
Tendo como base em Rm 7:19-20,é notório que o apóstolo Paulo influencia Agostinho de modo
profundo, conduzindo-o a um pessimismo antropológico, revelando a Lei do pecado, qual amarra e
subordina o homem em contraponto com a influência da graça que liberta e faz o homem ser livre. Cf.
Conf. II.21.27.
32
Sucessor de Santo Ambrósio, Bispo Simpliciano foi ordenado Bispo de Milão em 397, tendo um
importante papel na conversão de Agostinho, relatando-lhe o fato da conversão de Mário Vitorino,
importante professor de retórica que se abstém do seu sucesso acadêmico em prol do cristianismo, haja
vista que o Imperador romano Juliano (331-363) baixou um édito expulsando os cristãos de seus cargos
de docente de retórica e oratória, Cf. Conf. VIII, 5. 10: “Acrescentou em seguida que, no tempo do
imperador Juliano, uma lei proibia aos cristãos de ensinar literatura e oratória. Vitorino aceitou a
imposição e preferiu renunciar à escola de parolagem em favor da tua Palavra, que torna eloquente
língua das crianças.”
Claubervan Lincow Silva • 273

Vitorino grande retórico e responsável pela tradução de algumas obras


neoplatônicas. Após esta passagem, Agostinho faz uma introspecção do
seu “eu”, revelando a guerra entre “as duas vontades” 33, qual pode ser
tomada como demonstração prática da ação da liberdade e da falsa
liberdade no arbítrio do homem, decorrentes da luta entre a carne e o
espírito 34. O autor encaminha uma passagem difícil de compreensão
dentro da obra, qual aborda a questão da vontade dividida, sendo um
dos pontos preponderantes para compreender o estágio antropológico
e seus impactos sofridos diante do pecado original. No momento em que
Agostinho ouve os testemunhos dos amigos de Ponticiano, que
abandonaram tudo e foram viver de uma maneira monástica (Conf. VIII.
7.16), esse testemunho impacta o futuro Bispo de Hipona, porém ainda
dentro dele havia uma guerra declarada entre duas vontades, onde uma
estava propensa a seguir tal caminho e outra relutava para prosseguir
em busca dos bens ínfimos e sucesso.
Neste paradigma da vontade, qual luta contra si mesma, Agostinho
mostra na ação do exercício da vontade, a aplicação do conceito da falsa
liberdade: “Eu fremia de violenta indignação contra mim mesmo, por
não ceder à tua vontade e à aliança contigo, meu Deus, pela qual todos
os meus ossos clamavam, elevando louvores ao céu” (Conf. VIII. 8.19),

33
Agostinho ressalta no trecho de sua obra, Conf. VIII. 5.10: “Também eu queria fazer o mesmo, porém
era impedido, não por grilhões alheios, mas por minha própria vontade férrea. O inimigo dominava-me
o querer e forjava uma cadeia que me mantinha preso. Da vontade pervertida nasce a paixão; servindo
à paixão, adquire-se o hábito, e, não resistindo ao hábito, cria-se a necessidade. Com essa espécie de
anéis entrelaçados (por isso falei de cadeia), mantinha-me ligado à dura escravidão. A nova vontade
apenas despontava; a vontade de servir-te e de gozar-te, ó meu Deus, única felicidade segura, ainda não
era capaz de vencer a vontade anterior, fortalecida pelo tempo. Desse modo, tinha duas vontades, uma
antiga, outra nova; uma carnal, outra espiritual, que se combatiam mutuamente; e essa rivalidade me
dilacerava o espírito”.
34
Tema também influenciado pelas epístolas paulinas. Cf. Gl 5: 17-25.
274 • Com Agostinho, e além dele

neste aspecto da luta das “vontades” 35, “com efeito, ir ou chegar junto a
ti não é senão um ato de querer ir, mas com vontade forte e plena, e não
titubeante e ferida, numa luta da parte que se ergue contra a parte que
fraqueja” (Conf. VIII.8.19).
Deste modo, chega-se a ação do “querer/poder” (GILSON, 2010,
p.252-253), onde o querer se desdobra em uma ação de poder ir até onde
se ama 36, fato este, qual mostra que por mais impactado que estivesse
Agostinho por todo o testemunho da vida monástica relatado pelos
amigos de Ponticiano, o autor não a queria verdadeiramente devido a
estar utilizando-se de uma manca libertas, preferindo bens menores ao
gozo do Sumo Bem. 37

35
O conceito de voluntas é extremamente amplo e por vezes pode relatar um paradoxo formal de uma
vontade dividida, porém é no sentido de vontade que Agostinho insere a perspectiva do mal moral em
sua antropologia. No De Lib. Arb. III, 1,3, o autor trata a vontade como ação do poder/querer: “Quanto ao
movimento pelo qual a vontade se inclina de um lado e de outro, se não fosse voluntário e posto em
nosso poder, o homem não seria digno de ser louvado quando sua vontade se orienta para os bens
superiores, tampouco ser inculpado quando, girando, por assim dizer, sobre si mesmo, inclina-se para
os bens inferiores”. Para GILSON é na vontade que o amor eclode, fazendo com que o homem passe a
efetivar a sua ação, seja quando ele age de modo a ser influenciado pela graça ou não, “[...] o homem
conhece a regra; a questão é se ele a quer” (Cf. GILSON, 2010, 252). Então pode-se entender a
importância da vontade pois, a “força de que uma decisão tão importante depende tão somente a
vontade” Cf.GILSON, 2010, p. 252. Deste modo, entende-se que não há duas vontades se digladiando
entre si em um sentido ipsis litteris, mas um querer moral ora influenciado pela graça, ora influenciado
pelas coisas carnais. Para maior abrangência acerca da Voluntas e sua ação Cf. GILSON, 2010, pp.252-
262; SILVA, 2019, pp.19-26; STREFLING, 2015, pp.65-81.
36
No livro XIII, 9,10, da Conf. Agostinho vai falar sobre o amor (“pondus meum amor meus; e o feror
quocumque feror”) como sendo o peso, o local natural de repouso da vontade, sendo a primeira causa
da cadeia causal da vontade do homem e sem ele não há ação, portanto pode-se afirmar que a relação
querer/poder dá-se primeiro pelo amor. Cf. GILSON, 2010, 257; Cf. De Trinit. XV,41.
37
Ainda acerca do fato testemunhal dos amigos de Ponticiano, Agostinho relata que Deus usou aquilo
para o fazer refletir, onde mesmo o autor não querendo ouvir, Deus com sua graça confrontava-o
constantemente com as narrativas de modo que toda a iniquidade de Agostinho fosse perante ele
ressurtido. Cf. Conf. VIII. 7.16: “Foi isso que nos contou Ponticiano. E tu, Senhor, enquanto ele falava, me
fazias refletir sobre mim mesmo, tirando-me da posição de costas, em que eu me havia colocado para
não me enxergar a mim mesmo, e me colocavas diante de minha própria face, para que eu visse quanto
era indigno, disforme e sórdido, coberto de manchas e de chagas. E eu via, e me horrorizava, e não tinha
como fugir de mim mesmo. Se tentava desviar o olhar de mim mesmo, lá estava Ponticiano continuando
o seu relato, e tu me colocavas diante de mim mesmo e me impelias, por assim dizer, para diante de
Claubervan Lincow Silva • 275

Então pode-se perceber que para Agostinho, é perfeitamente


possível uma divisão no “querer”, pois quando a alma não faz o que quer,
é porque ela não quer totalmente e não quer totalmente pois a sua
vontade está dividida em si mesma, fruto da condição que o pecado
original deixou no homem 38.
No livro IX da Confessiones, qual trata dos episódios do seu batismo
(Conf. IX.5.13-14), seu retorno para a África (Conf.IX.8.17) e a morte de sua
mãe Mônica (Conf.IX.11.27-28), este livro se inicia de igual modo da
maioria dos livros anteriores: com um louvor e exaltação. Nesse introito
Agostinho elenca uma clara posição da compreensão da verdadeira
liberdade: “Isso aconteceu no momento em que eu não queria mais
aquilo que antes desejava, e queria aquilo que tu querias (...)” (Conf.
IX.1.1, grifo nosso.) De igual modo, ainda continua Agostinho: “Meu
espírito libertava-se agora das preocupações torturantes da ambição e
da avareza, dos pruridos da sarna das paixões. Só me entretinha agora
contigo, ó minha glória, riqueza e salvação, Senhor meu Deus”(Conf.
IX.1.1). Essa passagem expressa como a vontade de Agostinho passou a
querer ou se inclinar naquilo que o Supremo Bem queria, havendo aí
uma demonstração da natureza do arbítrio gozando a verdadeira
liberdade através do dom gracioso de seu Criador.

meus próprios olhos, a fim de que eu descobrisse a minha iniquidade e a detestasse. Eu a conhecia, mas
fingia não percebê-la, e tentava afastá-la, e a esquecia.”
38
No trecho em Conf. VIII. 9.22, diz Agostinho: “Quando deliberava servir desde logo ao Senhor meu
Deus, como há muito tempo já pretendia, era eu quem o queria, e ao mesmo tempo era eu quem não
o queria: sempre eu. Não tinha uma vontade plena, nem decidida falta de vontade; daí a luta comigo
mesmo, deixando-me dilacerado. Essa divisão se produzia contra a minha vontade, embora isso não
demonstrasse a existência em mim de outra alma, e sim o castigo da minha própria alma. Não era eu
que praticava a ação, mas o pecado que habitava em mim, punição de um pecado livremente cometido
enquanto filho de Adão.”
276 • Com Agostinho, e além dele

A partir daí Agostinho elenca sua máxima: “da quod iubes et iube quod
vis” (Conf. X.29.40), traduzido por: “Concede-me o que me ordenas, e
ordena o que quiseres” 39. Esta máxima aparece quatro vezes consecutivas
no livro X, é a partir dela que Agostinho demonstra toda a sua visão da
relação entre graça e liberdade. Essa máxima aparece três vezes para falar
a respeito do auxílio da graça na vontade humana concernente a
continência e moderação 40 e aparece uma única vez 41 para falar do
comedimento frente aos apetites dos homens e orgulho, mas em ambos
os casos, Agostinho demonstra que essa máxima é concernente a ação
livre do homem e fruto da ação primária da graça, não apenas no fato de
agir sobre algo, mas também pelo fato do sentimento posterior desta ação
livre ser visto como uma ação primária da graça, de modo que tanto a
causa como consequência são frutos de graça, “Daí se conclui claramente,
ó Deus Santo, que és tu quem concede a graça quando fazemos o que
mandas” (Conf. X. 31.45). Por isso diz Agostinho: “Muitas graças nos
concedes quando te invocamos. E todas as que recebemos, antes de pedi-
las, foi de ti que as recebemos. E reconhecê-las, depois de recebidas, é
também uma graça tua” (Conf. X. 31.45).
Conclui-se que ao elencar “Concede-me aquilo que ordenas, e
ordena o que quiseres”, Agostinho demonstra o pleno gozo da liberdade

39
Eis aí a plena potencialização da liberdade humana efetivada no único modo cabível segundo
Agostinho, que é a partir daquilo que Deus quer, o homem passa a realizar/efetivar. Cf. Conf. X. 29.40;
X.31.45; X.37.60; Cf. Retrac. I. 9.6.
40
Tal máxima aparece duas vezes em Conf. X. 29.40: “da quod iubes et iube quod vis... continentiam iubes:
da quod iubes et iube quod vis” e Conf. X.37.60: “imperas nobis et in hoc genere continentiam: da quod
iubes et iube quod vis.” Esta última citação fala sobre a continência a respeito das tentações e
pestinências das más línguas.
41
Aparece em Conf. X. 31.45: “conforta me, ut possim, da quod iubes et iube quod vis.”
Claubervan Lincow Silva • 277

que só é encontrada quando a graça age no homem, passando a fazer


aquilo que Deus assim o quer. Portanto ao falar acerca de uma ação livre,
Agostinho sempre irá incidir sobre os méritos da graça de Deus na
vontade do homem. 42 Portanto a conclusão chegada por Agostinho na
obra Confessiones, parece ter sido a mesma que levou o Bispo de Hipona
a escrever posteriormente as obras antipelagianas 43, que a graça está de
comum acordo com a liberdade e sem graça não há liberdade.

REFERÊNCIAS

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Petrópolis: Vozes, 2014, 426 p.

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Paulus, 1997. – Coleção Patrística. 450 p. (Coleção Patrística, n. 10).

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Bento e Maria Cristina de Castro-Maia de Sousa Pimentel. Introdução de Manuel
Barbosa Costa Freitas, notas de âmbito filosófico de Manuel Barbosa da Costa

42
Agostinho sempre colocará Deus como agente causador da Liberdade e é Nele que a Liberdade
sempre estará de modo verdadeiro e único. Pode-se tomar por exemplo, quando o Bispo de Hipona fala
das amarras das tentações que são presentes nos órgãos sensoriais e em especial no ouvido qual ele
mostra Deus como o libertador e aquele que solta o homem das amarras do pecado (de uma falsa
liberdade) Cf. Conf. X.33.49: “Os prazeres do ouvido me prendem e escravizam com mais tenacidade,
mas tu me soltaste e me livraste deles.”
43
Comentando acerca disso diz GILSON,2010, p.301: “Posto que a vontade deseja o bem, então ela é por
essência destinada a realizá-lo; não obstante, posto que ela é incapaz de realizar o bem que ela deseja,
então há nela algo corrompido; nomeemos como causa dessa corrupção o pecado, e prescrevamos o
remédio para ele, a Redenção do homem por Deus, desenvolvida com a graça de Jesus Cristo. (...) por
mais tempo que uma vontade contar apenas consigo mesma para fazer o bem, ela permanece
impotente. A solução do enigma, aqui como alhures, é que é necessário receber o que se quer ter
quando se é incapaz de dá-lo a si mesmo. Graças ao sacrifício do Cristo, a partir de então, há um socorro
divino sobrenatural pelo qual a lei se torna realizável pela vontade humana, e da qual a essência mesma
do pelagianismo é desconhecer a necessidade.”
278 • Com Agostinho, e além dele

Freitas e José Maria Silva Rosa. Centro de Literatura e Cultura Portuguesa e


Brasileira Impressa Nacional - Casa da Moeda. Lisboa, 2001. 312 p.

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Leme. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Federação Agostiniana Brasileira, 1991. v. I, 414;
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Oliveira. São Paulo: Paulus, 1997. 296 p. (Coleção Patrística, n. 8).

AGOSTINHO, Santo. A graça (I): O espírito e a letra - A natureza e a graça - A graça de


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1998. 317 p. (Coleção Patrística, n. 12).

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predestinação dos santos - O dom da perseverança. Tradução de Agustinho
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matrimonio e la concupiscencia - Réplica a Juliano. In: Obras completas de san
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Claubervan Lincow Silva • 279

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280 • Com Agostinho, e além dele

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Inverno de 2015.; pp.65-81.
12
O CONHECIMENTO EM DUAS REALIDADES
DISTINTAS, MAS NÃO SEPARADAS:
QUANDO AGOSTINHO ILUMINOU O
INTELECTO DE TOMÁS DE AQUINO
Edson Gonçalves da Silva 1

“Consideramos ainda a autossuficiência um grande bem; não que devamos


nos satisfazer com esse pouco caso não tenhamos o muito, honestamente
convencidos de que desfrutam melhor a abundância os que menos
dependem dela; tudo que é natural é fácil de conseguir; difícil é tudo o que
é inútil” (Epicuro).

INTRODUÇÃO

Podemos afirmar que Tomás de Aquino, de fato, leu Agostinho e


não há nada de errado. No entanto, pensar que ele enxergou o
conhecimento a partir da iluminação agostiniana pode ser um divisor
de águas ou uma heresia, para Aristóteles. Isso nos leva a ter duas
possibilidades: a primeira – que Tomás era um neoplatônico e vestia a
capa aristotélica em respeito ao seu mestre Alberto Magno, ou, a
segunda – ele era um aristotélico e vestia a capa agostiniana para
proteger-se da inquisição. Como veremos, no decorrer desta leitura, a
situação para os sacerdotes mendicantes não foi fácil e com muitas
polêmicas.

1
Doutorando em Filosofia pela UFC; Mestre em Filosofia pela UFPE; Especialista em Educação e Professor
com licenciatura em Filosofia. E-mail: edsonsilva.filo@gmail.com
282 • Com Agostinho, e além dele

A composição de um corpo docente com a participação de


sacerdotes não era bem vista no início do medievo. Em Paris,
Universidade de Paris, Tomás de Aquino encontra com os denominados
agostinianistas – acadêmicos que defendiam, a ferro e fogo, as ideias
platônicas pela via neoplatônica da doutrina de Santo Agostinho –,
assim, vê-se no meio dessa guerra e procura defender os dominicanos e
a ordem dos mendicantes, travando uma batalha.
O princípio da doutrina agostiniana fundamenta-se na alma com
um intelecto iluminado pelo lume divino para ter acesso à verdade
evidente 2. Isto só era possível a partir da união da alma com o corpo e
da sobreposição da vontade antes da razão. Na contramão deste
pensamento, Tomás de Aquino sugere que primeiro se conhece para
depois desejar o conhecido. Explica, ele, que isso só é possível por tratar-
se de uma relação em que o intelecto, ao operar pelos sentidos, abstrai
o inteligível do objeto material.
Enquanto isso, Alberto Magno, também conhecido como Doctor
Universalis, está em outra cidade com a Cúria papal para fazer a mesma
defesa que seu aluno Tomás de Aquino. Na lista, estavam alguns pontos
das ideias averroístas a serem combatidas, entre estas, a do intelecto
único para todos. Para defender o princípio da doutrina cristã, Magno
fazia uso do argumento que o “[...] princípio vegetativo e o princípio
sensitivo são enumerados segundo o número dos homens nos quais
estão, também o princípio racional será enumerado segundo o número
dos mesmos” (cf. MAGNO, 2022, p. 137) contra aqueles que defendiam o

2
Segundo Elcias Costa, teria Santo Anselmo proclamado o lema: “credo ut intellegam”, ou seja, “eu creio
para poder compreender” (2010, p. 46).
Edson Gonçalves da Silva • 283

pensamento árabe averroísta. Mais tarde, essa defesa ganha corpo nos
escritos do seu aluno quando este se pronuncia no seu tratado contra a
unidade do intelecto único, que era defendido nos textos de Averróis.
Inspirado pela publicação do “Tratado sobre unidade do intelecto”
do seu mestre Alberto Magno, o Aquinate toma a dianteira em defesa de
uma alma intelectiva individual. No entanto, as polêmicas das doutrinas
árabes e as interpretações confusas, nas quais seu mestre encontrava-
se envolvido, colaboraram para que Tomás de Aquino adequasse o
pensamento aristotélico aos estudos escolásticos, além de promover um
sistema harmonioso, preciso e claro a respeito do conhecimento.
Segundo Roberto Castro (2016, p. 73), Tomás de Aquino colocava as
ideias do estagirita no crivo da razão. Mesmo que usufruísse da
expressão “como disse o filósofo3” que apontava para a fala de
Aristóteles, não significava afirmar uma verdade absoluta, mas a
presença de evidências válidas. Conforme Pieper (apud CASTRO, 2016, p.
73) “Tomás nunca supôs que a doutrina de Aristóteles fosse sempre de
acordo com a doutrina cristã, ainda que certamente houvesse tais
opiniões entre os aristotélicos medievais”.
A exposição desta teoria aristotélico-tomista é vista pelos
seguidores neoplatônicos [agostinianistas] como forte indício para
causar uma ruptura na doutrina vigente por tratar-se do conhecimento,
tido como dogma, e do conceito de Homem. Sobretudo, é importante
ressaltar a observação de Marcos Costa quanto à intencionalidade dos
textos escritos por Agostinho de Hipona, segundo ele,

3
“Sicut patet per Philosophum”.
284 • Com Agostinho, e além dele

Seus escritos, com raras exceções, são respostas a problemas reais, fruto do
envolvimento com as grandes questões doutrinais de seu tempo,
especialmente os embates com as principais heresias que ameaçavam a
doutrina da Igreja (Maniqueísmo, Donatismo, Arianismo e Pelagianismo);
ou são respostas às mais variadas questões (político-sociais, espirituais,
domésticas, etc), que lhes eram solicitadas, em cartas, por seus diocesanos
(COSTA, 1998, p. 483-496).

Como fica subentendido, a presença da doutrina agostiniana tornou-


se muito importante como referência para os estudos a respeito da fé e da
razão, sem que estivesse fechada para novos pensamentos. Releitura que
fez, respeitosamente, Tomás de Aquino. A doutrina da iluminação chega
até o intelecto tomasiano como uma luz que expande as oportunidades de
pesquisas e aprimora o caminho que leva a criatura humana a conhecer as
razões eternas, sem que, para isso, haja o entendimento da teologia como
aquela que tudo resolve em nome de Deus.
Devemos concluir que qualquer que tenha sido a possibilidade
escolhida pelo Aquinate para sua condição de sobrevivência sacerdotal,
como inicialmente colocamos, é indubitável a forma inteligente como
apontou soluções para desfazer os nós polêmicos do século XIII e como
direcionou suas diferenças com respeito e dignidade aos seus alunos.
Sobretudo, pretendemos demonstrar que o pensamento tomasiano atua
como apaziguador entre a doutrina cristã agostiniana e os textos de
Aristóteles, ressignificados para a igreja católica.

12.1 NOÇÃO DA TEORIA DO CONHECIMENTO DE AGOSTINHO DE HIPONA

A teoria do conhecimento de Agostinho de Hipona está construída a


partir das experiências de sua vida mundana e da Sagrada Escritura, a
Edson Gonçalves da Silva • 285

qual solidifica sua fé e seu pensamento. Segundo afirma Costa (1998, p.


483-496) “O centro de sua especulação filosófica coincide
verdadeiramente com sua personalidade. Sua filosofia é uma
interpretação da própria vida”. Reflexão de vida que Agostinho relata em
seu livro Confissões, diz ele: “Tinha-me transformado num grande
problema. Interrogava minha alma por que andava triste e se perturbava
tanto, e nada me sabia responder” (AGOSTINHO, 1999, p. 104).
Dentre tais experiências, podemos destacar dois caminhos
seguidos por ele: (i) as leituras das obras latinas como as de Cícero [em
especial Hortensius], as de Aristóteles [Categorias] e as de Plotino
[Enéadas] e (ii) seu encontro em Milão com o bispo Ambrósio, do qual
pode apreciar vários discursos platônicos.
A patrística trazia, como ponto central, as discussões religiosas,
embora que as questões sociais e políticas estivessem presentes de
maneira simples, não havia, no momento, espaço para a filosofia
natural. O principal foco era a salvação dos seguidores cristãos e o
combate à heresia e às denominações não cristãs. Sendo assim, as razões
lógicas e as ideias fora do contexto bíblico não eram bem vistas. No
entanto, os embates com a cultura romana levaram os padres da
doutrina cristã a procurarem novas formas de combater seus
opressores. As investidas dos sacerdotes da igreja, nos textos dos
filósofos gregos, viabilizaram a formação de um pensamento “pseudo-
helenístico” ou da filosofia patrística que teria como objetivo afastar a
ideia de um cristianismo contrário à razão. Com tais intenções, agora
voltadas para um novo posicionamento, duas correntes opostas de
pensamentos aparecem: a primeira, os que sustentam a fé como
286 • Com Agostinho, e além dele

fundamento da revelação divina e a segunda, os que procuram a


racionalidade pela filosofia grega. Dessa maneira, a patrística
consolidou a serventia da filosofia pela teologia.
A dificuldade com a literatura estrangeira, ou seja, os pensamentos
contidos nos livros da filosofia grega, fez com que Agostinho viesse a ter
uma interpretação a partir dos textos traduzidos para o latim, idioma o
qual dominava, como já demonstrado. Isso exige do Bispo de Hipona um
esforço para que tais pensamentos pudessem ser coerentes com a
prática filosófico-religiosa da igreja. Agostinho, a partir desse
entendimento, torna a filosofia patrística em uma filosofia cristã que
tem, como núcleo, o problema da felicidade [beatitude], como afirma
Costa (1998, p. 483-496): “É interessante como Agostinho vincula
sabedoria, posse do conhecimento ou da verdade, com a felicidade. Para
ele não é possível a felicidade sem a verdade e vice-versa.”, e, com isso,
coloca a questão da fé e da razão como uma convicção interior
[iluminação] e a outra como teoria racional [filosofia pagã].
Embora não negue a importância da razão, deixa claro que esta está
intrinsecamente relacionada com a fé e é preciso que se creia para que
se compreenda 4, conforme afirma em seu diálogo com Evódio no livro
“O livre arbítrio 5”:

Com efeito, se crer não fosse uma coisa e compreender outra, e se não
devêssemos, primeiramente, crer nas sublimes e divinas verdades que
desejamos compreender, seria em vão que o profeta teria dito “Se não o
crerdes não entendereis”. [...] Pois não se pode considerar como encontrado

4
“Intellige ut credas, crede ut intelligas”.
5
Doravante citado como “De lib. arb.”
Edson Gonçalves da Silva • 287

aquilo em que se acredita sem entender. E ninguém se torna capaz de


encontrar a Deus se antes não crer no que há de compreender (De lib. arb.,
II, 2, 6).

Uma vez constituída uma filosofia religiosa, o Bispo de Hipona


pôde formular conceitos a respeito do homem, do mundo e de Deus.
Sobretudo, mais tarde na idade média, Tomás de Aquino faz uma
releitura nos dois primeiros conceitos agostinianos [homem e mundo]
e apresenta, nas duas sumas, a teológica e a contra os gentios, um
pensamento significativo e ampliado.

12.1.1 A TEORIA DO CONHECIMENTO COMO DOGMA E UMA NOVA


CONCEPÇÃO DE HOMEM EM AGOSTINHO

Havia certo ceticismo em aceitar o conhecimento como algo obtido


pelos sentidos. Ficava difícil em colocar os sentidos acima do critério da
evidência, uma vez que estes são imprecisos e variáveis. Com certa
habilidade retórica, Agostinho demonstra a importância dos sentidos
enquanto sensação para configurar uma verdade perceptiva e não como
uma expressão da verdade contida neles que se manteria no engano. Em
determinado momento do diálogo com Evódio (De lib. arb., II, 3, 7), o
Bispo de Hipona propõe-lhe questões que são evidentes e não passam
pelos sentidos físicos, por exemplo a existência de Deus. No decorrer
das considerações, demonstra a presença de três realidades evidentes
(Ibidem): (i) existir; (ii) viver e (iii) entender, e, ao questionar o seu amigo
sobre qual lhe é mais “excelente”, obteve a seguinte resposta:

Por serem três as realidades: o ser, o viver e o entender. É verdade que a pedra
existe e o animal vive. Contudo, ao que me parece, a pedra não vive. Nem o
288 • Com Agostinho, e além dele

animal entende. Entretanto, estou certíssimo de que o ser que entende possui
também a existência e a vida. É porque não hesito em dizer: o ser que possui
senão uma ou duas delas. Porque, com efeito, o ser vivo por certo também
existe, mas não se segue daí que entenda. Tal é, como penso, a vida dos
animais. Por outro lado, o que existe não possui necessariamente a vida e a
inteligência. Posso afirmar, por exemplo, que um cadáver existe. Ninguém,
porém, dirá que vive. Ora, o que não vive, muito menos entende (Ibidem).

Ao qual conclui Agostinho: “E admitimos, igualmente, que a


melhor das três é a que só o homem possui, juntamente com as duas
outras, isto é, a inteligência, que supõe nele o existir e o viver” (Ibidem
– destaque nosso).
Embora que toda sua literatura fosse uma busca incessante da
felicidade humana, esta, a seu ver, encontrava-se em Deus (cf. COSTA,
1998, p. 483-496). Mas não apenas isso, parece que, também, o intuito
era de afirmar a dualidade do homem. Demonstrava a diferença do
homem que pensa daquele que possui um corpo com sentidos. Um
entendimento que provinha das suas leituras neoplatônicas, em
particular de Plotino. Segundo o qual, pelos estudos de Platão, o corpo
está a serviço da alma. Agostinho absorve esse pensamento de uma alma
que comanda o corpo e é capaz de operar uma relação com o mundo
material; de captar as sensações [as imagens] que estariam ora
presentes ora não presentes nos sentidos. Com essa instabilidade, fica
impossível uma condição afirmativa e permanente para o cognoscível.
Fica clara a importância de haver uma intervenção divina para firmar a
verdade do conhecimento, pois, como demonstrado, a impermanência
das imagens não permite à alma obter uma realidade pelos sentidos,
uma vez que ela está voltada às coisas imutáveis.
Edson Gonçalves da Silva • 289

Estão postos, acima, dois caminhos para o conhecimento: o


primeiro aponta uma região em que as imagens percebidas pelos
sentidos são instáveis quanto à sua permanência e o segundo caminho,
uma verdade que está na sabedoria e em leis imutáveis, por exemplo: os
números, a física, a arte. Como visto, o homem, enquanto corpo, está em
uma condição de mudanças constantes, logo, ele não pode ser objeto do
conhecimento verdadeiro, por isso, precisa de algo estável e que
mantenha a alma com acesso a uma verdade imutável. Platão já havia
citado, no mito da caverna, a existência de uma luz condizente a um
farol, que aponta a saída da ignorância à sabedoria.
Agostinho apropria-se desta metáfora para formar a doutrina da
iluminação. A alma estaria imbuída de uma luz capaz de iluminar o
mundo inteligível, assim, resume-se seu pensamento. Contudo, na
afirmativa de Platão, a qual o homem, naturalmente, tem em si a
predisposição para conhecer a verdade pela via da reminiscência, há um
certo afastamento da doutrina agostiniana quanto ao conteúdo
existente na alma, pois, em Agostinho, não há um registro do passado,
tão pouco um pretérito vivido, mas uma constante irradiação eterna do
lume incriado sobre a alma. Dito isto, a doutrina da iluminação
estabelece que o corpo recepciona o mundo material pelos sentidos e a
alma abstrai, pelo intelecto, as coisas inteligíveis que são iluminadas,
isto é, o homem participa da luz da sabedoria por uma ordenação
natural das leis imutáveis.
Como exposto acima, o bispo de Hipona demonstra que do mesmo
modo que a luz favorece para o objeto ser visto, a verdade precisa de
certa iluminação para ser inteligível. E, com isto, distingue e norteia o
290 • Com Agostinho, e além dele

conhecimento adquirido do conhecimento participativo pela luz divina


e procura adequar o pensamento platônico à fé cristã. Costa considera
que “Ao transformar o princípio filosófico-natural em princípio
filosófico-religioso, introduz um importante elemento para a
compreensão de sua especulação filosófica racional: a fé revelada, que
daria um caráter original ao seu pensamento filosófico, que se
caracterizaria por uma ‘Filosofia Cristã’” (1998, p. 483-486).
Agostinho faz uma releitura do pensamento defendido por Platão
a respeito da subsistência das formas separadas da matéria [ideias]
como também da participação do intelecto em conhecer os inteligíveis
e ressignifica a teoria platônica do conhecimento. Portanto, refuta as
ideias separadas [defendidas por Platão] e propõe, em seu lugar, a mente
divina como local onde as noções das coisas [contidas na alma humana]
são formadas e subsistem, ou seja, a verdade está nas razões eternas
sustentadas pela fé em Deus.

12.2 ALBERTO MAGNO LEITOR DE AGOSTINHO E MESTRE DE TOMÁS DE


AQUINO

Entre tantas polêmicas e querelas nas universidades do século XIII,


o relato de Matteo Raschietti 6 fornece-nos uma ideia de como a situação
no campus acadêmico era de conflitos. Por exemplo, a greve dos mestres
seculares [diretores da Faculdade de Teologia], liderados por Guilherme
de Saint-Amour, relata o porquê do repúdio dos sacerdotes no quadro
de docentes e porque condenaram vários artigos dos padres na segunda

6
Professor da UFABC.
Edson Gonçalves da Silva • 291

metade deste século. Diz o professor que “Naqueles anos, a cultura


europeia da Idade Média confronta-se, pela primeira vez, com um
sistema físico e metafísico totalmente novo para a tradição cristã, e é
necessário escolher ideias e doutrinas que não entrem em contradição
com a fé cristã” (cf. MAGNO, 2022, p. 19).
Partia do próprio Alberto Magno, o apoio às ideias aristotélicas
serem acessíveis a todos. Elabora o Physicorum libri formado pelas
disciplinas de Física, Metafísica e Matemática e a inserção do Corpus
aristotelicum nos ensinos universitários (ibidem). Com o passar do
tempo, a partir dos estudos tomistas, alguns pontos dos textos
aristotélicos e platônicos tiveram importantes melhorias. Dentre estes
pontos, estão os que tratam do conhecimento, da vontade e da alma
como substância formal do corpo.
Por outro lado, a forte influência nos estudos dos escritos de
Agostinho no pensamento de Alberto Magno permitiu que as obras que
tratavam da ordem teológica tivessem uma posição bem definida
quanto ao embate da Filosofia com a Teologia, assim, considera que esta
tem seu espaço para discussões fora daquela. Para Magnus, uma ação
por meio do silogismo permite melhor aplicação em demonstrar a coisa
que devemos aceitar ou defender, isto é, o caminho da Filosofia segue
entre a razão e o silogismo, enquanto o da Teologia, pelo caminho da fé.
Quanto à importância de as duas ciências caminharem juntas, ele
assenta em Anselmo de Cantuária o mesmo pensamento que a teologia
é aquela que busca na razão suas evidências, contudo, há dúvidas acerca
das questões da fé que o intelecto possa compreender.
292 • Com Agostinho, e além dele

Ao fundamentar sua posição, Alberto Magno apropria-se da


linguagem agostiniana para afirmar que Deus revela-se ao homem em
duas formas iluminativas 7. Uma é a revelação que abarca todos os
homens sem distinção, a contemplação é geral. A segunda forma de
iluminação é a intuição que tem, como a priori, o que está fora das
causas naturais, ou seja, ato intuitivo restrito a poucos. Por esses
caminhos, chega à conclusão que a verdade pode ser conhecida ou
revelada. A partir desta compreensão, considera de suma importância a
prática investigativa como uma “conditio sine qua non 8” para uma
experiência, conforme afirma: “Pois, a experiência só certifica os casos,
na medida em que nenhum silogismo pode ser obtido de naturezas tão
particulares” 9 (MAGNI, 1867, p. 340).
O pensamento de Alberto Magno ecoou e isso lhe trouxe tempos de
muita polêmica. No que diz respeito a esta, por exemplo, usufruía do
pensamento de Agostinho para corrigir pontos aristotélicos. Polêmicas
que foram solucionadas graças à interferência do seu fiel discípulo,
Tomás de Aquino, que, pela via da lógica, contorna e dá um sentido mais
acessível às obras de Aristóteles, bem como facilita o acesso à leitura
deste.
Portanto, a participação de Tomás começa a ser decisiva na leitura
de um novo pensamento, o aristotélico. As precipitações do seu mestre

7
Comenta Marcos Costa (2000, p. 10), “[...] Agostinho fala da existência de duas luzes no homem: uma
corporal, própria dos sentidos externos, e outra espiritual, própria do sentido interno, ou da alma, que
capacita a corporal a ver os objetos”.
8
“Condição indispensável”.
9
“Experimentum enim solum certificat in talibus, eo quod de tam particularibus naturis syllogismus haberi
non potest.” (Tradução própria).
Edson Gonçalves da Silva • 293

em pontos polêmicos, dentre eles a questão dos universais, servem


como um incentivo para fortalecer a entrada das obras do estagirita nas
universidades e, principalmente, na mudança ideológica da cultura
sacerdotal, isto é, um pensamento que existia há séculos como
incontestável e, agora, estava a ponto de ser alterada em seus conceitos
filosófico-religiosos.

12.3 TOMÁS DE AQUINO E SUA RELAÇÃO COM AGOSTINHO E ARISTÓTELES

Como visto, até o século V, predominava-se o pensamento


agostiniano. Para Costa (1998, p. 483-486): “Agostinho constrói uma
‘teoria do conhecimento’ humano apresentando três níveis,
organizados hierarquicamente, correspondentes às três verdades
primárias: conhecimento sensível (existir); sensação (viver) e ciência ou
razão (pensar)”. O formato de uma filosofia cristã, construída pelo
grande sábio da igreja antiga, tem, no medievo, uma releitura
tomasiana. Para muitos, foi o início da crítica feita por Tomás de Aquino
ao bispo de Hipona.
Há, sem dúvidas, uma nova perspectiva a respeito de determinados
pontos de vista expostos pelos agostinianistas que conflitavam com as
ideias da escolástica tomista. A teoria do conhecimento de Tomás de
Aquino rompe com a tradição da escolástica antiga marcada somente
pelos textos de Agostinho. É possível deduzir que este distanciamento
parte dos diferentes conceitos propostos a respeito do conhecimento e
como eles influenciaram os estudiosos da época, como comenta E.
Gilson: “Se fosse possível indicar o ponto crítico em que se efetua a
294 • Com Agostinho, e além dele

dissociação entre a antiga escolástica e a nova, é sem dúvida a teoria do


conhecimento que conviria melhor” (apud SOLER, 2015, p. 77).
Na doutrina da iluminação, passível de muitas interpretações, o
intelecto divino possui o exemplar [universais] de cada coisa em sua
mente [intelecto agente] capaz de criar, a partir daí, as formas
singulares. O realismo exemplarista e a concepção agostiniana de
Homem são questões que viajam pelo tempo sem uma definição própria
que possa agradar a todos. Esta concepção tem como conceito que o
corpo não causa imagem na alma.
O século XIII define melhor o conceito de alma e corpo e apresenta
o intelecto agente como uma potência capaz de inteligir pelos sentidos
as coisas materiais e as imateriais, conforme trata o estagirita em sua
metafísica. Em uma visão tomasiana, as propostas da filosofia cristã de
Agostinho tomam outro rumo a partir da ressignificação dos universais
e do intelecto na nova escolástica. O Aquinate não refuta a teoria da
iluminação, mas agrega proposições nascentes das literaturas
aristotélicas que irão auxiliar na construção de uma outra teoria do
conhecimento e da verdade. Reestrutura que teve início com o
amadurecimento dos estudos árabe-aristotélicos a respeito do intelecto
agente tratado por Avicena e Averróis. Este refutado por Tomás 10.
O impacto destes pensamentos, na então doutrina vigente por
séculos, a patrística, provoca não só as querelas acadêmicas como muda
o pensamento de um dos mais respeitados estudiosos em Agostinho, o
franciscano João Duns Scot. Defensor da tradição agostiniana, torna-se

10
Ver livro “A unidade do intelecto contra os averroístas”, Tomás de Aquino, editora Paulus.
Edson Gonçalves da Silva • 295

crítico dela a ponto de declarar, frente à questão, que a verdade poder


ser conhecida de forma natural pelo intelecto humano sem uma luz
divina, responder que os que pensam ao contrário estariam estes a
seguir a mesma opinião dos céticos (cf. SCOT, 1973, p. 237).
No decorrer dos séculos, os estudos dos textos do Pseudo-Dionísio
e da tradução dos estudos de Avicena e Averróis, a respeito da alma e do
intelecto agente, tiveram forte influência no medievo e na doutrina
cristã, como foi a influência de Cícero, Platão e Plotino na patrística. A
partir daí, formam-se duas escolas que estão separadas por realidades
distintas quanto ao conceito de obter o conhecimento, mas não
separadas quanto a causa prima.

12.4 COMO AGOSTINHO DE HIPONA ILUMINOU O INTELECTO DE TOMÁS DE


AQUINO

Até o momento, demonstramos que não se trata de uma oposição


ou de refutar a doutrina secular da patrística. Como visto, Tomás teve
forte influência de Alberto Magno, que era um defensor da doutrina
agostiniana. Era uma questão de separar o joio do trigo, ou seja, a
associação do pensamento de Agostinho com as ideias dos filósofos
árabes, em particular, a aproximação com os textos de Avicena. Mas
como fazer esta separação sem criticar a doutrina do Bispo de Hipona?
Para responder, Tomás elabora uma didática que fica conhecida como
Disputatio 11 a qual está difundida em sua literatura acadêmica, em
especial, a respeito do intelecto agente.

11
Disputas pedagógicas aplicadas nas universidades em formato de debates para revelar verdades
teológicas e científicas.
296 • Com Agostinho, e além dele

As duas escolas concordam com o princípio de uma causa primeira


que ordena todas as coisas. Contudo, a primeira escola, a agostiniana,
tinha o intelecto agente em Deus do qual a criatura participava pela
iluminação e esta fomentava o conhecimento por ser uma via de
proximidade com o divino. Conhecimento este que se inicia com a
percepção das coisas pelos sentidos do corpo [comum as duas escolas] e
manifesta-se como coisa conhecida a partir da luz divina que lhe é inata.
Por outro lado, a segunda escola, tomista-aristotélica, apresenta uma
criatura detentora dos intelectos possível e agente com operações
próprias, e sua ligação com o lume incriado dá-se com a participação do
intelecto nas razões eternas que, segundo afirma Tomás, o lume
intelectual é uma semelhança participada do lume incriado (cf. AQUINO,
STh., q.84, a.5).
Assim é possível deduzir que a primeira escola possui uma
participação natural de Deus na alma, enquanto que, na segunda escola,
Deus está como causa remota. Nas duas escolas, a causa primeira é
imanente a elas. Uma, Deus está como intelecto agente [a alma é
formada da substância divina eterna (cf. SOLER, 2015, p. 84)] e, na outra,
o intelecto é o agente [que não é Deus]. Esta última coloca a ação no
indivíduo, isto é, a operação é realizada por ele mesmo. Isso leva a
condicionar um intelecto agente particular. Assim, o Aquinate corrige o
pensamento de um intelecto único ensinado pela filosofia árabe
avicenizante e propõe uma possível participação da alma intelectiva por
uma via neoplatônica da iluminação.
Fica evidente que o conflito de pensamentos filosóficos foi
ajustado, adequadamente, por Tomás de Aquino aos princípios cristãos.
Edson Gonçalves da Silva • 297

Como visto, em nenhum momento as questões sacerdotais entraram em


pauta dessas diferenças. Ademais, a formação de Tomás de Aquino foi
sob a influência da doutrina de Agostinho, logo, as divergências
estavam, como afirmado acima, em suas concepções referentes ao
conhecimento adquirido pela alma intelectiva.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O Aquinate, de certa maneira, distancia-se da doutrina agostiniana


por motivo das ideias árabes que tiveram forte influência no ensino
cristão. Outro motivo, que podemos aventurar, foi a dúvida quanto à
criação substancial da alma que Agostinho não esclareceu. Entre outras
questões existentes, esta merece maior atenção. Vejamos! Se Deus é o
intelecto agente da alma, isso nos leva a deduzir que sua substância
eterna e atemporal agora é parte de uma substância temporal. Isto
coloca a alma humana como ato em si, uma vez que lhe é inerente a
quididade divina. Sobretudo, parece ser racionalmente estranho essa
compreensão a respeito das potencialidades da alma serem atos, uma
vez que foi demonstrado que a alma não pode ser ato em si, mas do
corpo. Por outro lado, não se pode negar que a alma possua a presença
do seu criador. Como analogia, citamos um quadro que foi pintado e tem
a assinatura do seu pintor, mas não é o pintor. Esta é uma névoa
agostiniana que Tomás afasta com a presença do Estagirita.
É inconteste que a doutrina da iluminação é o corpo da teoria do
conhecimento de Agostinho. Por muitos séculos, foi a nau da doutrina
cristã, onde, em um de seus mastros, estava definida a concepção de
298 • Com Agostinho, e além dele

homem como criatura de Deus e sua busca pela felicidade. Embora essa
doutrina não fosse sistemática, teve como ponto principal a ligação, sem
intermediários, do lume incriado com o contingente humano e falível a
respeito do conhecimento da verdade infalível. Quando a alma elabora
um juízo das razões eternas, está usufruindo do intelecto divino sem
que, para isto, o intelecto humano precise ter alguma participação
própria nesta operação. Certamente, essa relação não está isenta de leis
e elas irão coordenar o acesso às razões eternas, pois são as regras que
darão o fundamento da certeza evidente.
Por outro lado, para Tomás de Aquino, Aristóteles é o
esclarecimento racional necessário para o pensamento humano, para
além dele, apenas a fé cristã conduziria o homem à beatitude. Sua tarefa
foi difícil ao buscar uma justaposição integrativa entre o pensamento
da patrística neoplatônica avicenizante e o pensamento filosófico
metafísico do Estagirita. Sua brilhante genialidade não excluiu os
ensinos do seu mestre Alberto Magno que o auxiliou na dicotomia entre
a filosofia e a teologia. Tampouco o separou da doutrina agostiniana,
mas aproveitou esta para retirar “as ervas daninhas”, se assim podemos
afirmar, que causaram confusões nela.
Diferente de Duns Scot, Tomás não critica Agostinho, mas volta-se
para aqueles que, pela via dos textos traduzidos do grego para o latim,
contaminara-os com suas interpretações filosóficas e buscaram afirmar
uma teoria distante da qual a doutrina cristã ensinava.
O pensamento aristotélico, mesmo nascido em uma doutrina pagã,
trazia, em seu centro, uma sistemática racional quanto à relação do
divino com a alma intelectiva. Tomás observa, na leitura de alguns
Edson Gonçalves da Silva • 299

textos, como os de Aristóteles e os do Pseudo-Dionísio, esclarecimentos


mais coerentes com a doutrina da criação humana. Como, por exemplo,
uma alma ser capaz de conhecer algo por uma operação intelectiva
própria sem estar distante do seu criador. Neste sentido, ele consegue
realizar uma correção quanto à compreensão do intelecto agente.
Como toda ciência requer um objeto de estudo, sua teoria do
conhecimento precisava encontrar quais seriam os objetos de
investigação e, a partir daí, defini-los e separá-los. Objetos que ficaram
claros em seu pensamento, ou seja, de um lado, estava a natureza divina
e, do outro, a natureza humana. De um lado, a fé e do outro, a razão.
Portanto, consideramos que a literatura tomasiana é apaziguadora
e condizente com a filosofia cristã construída por Santo Agostinho na
era patrística. Bem como não há uma cristianização de Aristóteles, mas
uma adequação dos seus pensamentos filosóficos com a proposta
formulada por Santo Tomás para a correção de uma doutrina secular
vigente. Por isso, sem dúvida alguma, é fato afirmar que a doutrina da
iluminação chega ao intelecto aristotélico como uma luz que amplia o
entendimento da alma racional, como bem tratou Santo Agostinho. E
que Santo Tomás, qualquer que tenha sido a capa que vestiu, foi para
um bem maior.

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. História da filosofia. Volume 4. Tradução de José Garcia Abreu.


Lisboa: Editorial Presença, 1970.

AGOSTINHO, Santo. Sobre a potencialidade da alma (De quantitate animae). Tradução de


Aloysio Jansen de Faria. Petrópolis: Vozes, 1997. 187 p.
300 • Com Agostinho, e além dele

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução J. Oliveira dos Santos. S.J., e A. Ambrósio de


Pina, S.J. São Paulo: ed. Nova Cultural, 1999. 416 p. (Coleção Os Pensadores)

AGOSTINHO, Santo. O livre arbítrio. 2. edição. Editora Paulus. Editoração digitalizada


por HIZRAEUDJS. 206 p. Coleção Patrística

AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Tradução Alexandre Correia. São Paulo:
Permanência (Ecclesiae), 2020. vol. I, parte I, 768 pp.

CASTRO, Roberto C. G. Tomás de Aquino leitor do Dionísio Areopagita. Revista


Internacional d´Humanitats, v. 37, mai-ago 2016, CEMOrOc-Feusp / Univ.
Autônoma de Barcelona. Disponível em: http://www.hottopos.com/rih37/73-
82RCastro.pdf. Acesso em: 12 dez 2018.

COSTA, Elcias Ferreira da. Tomás de Aquino: um presente à inteligência. 2. edição


(corrigida). Recife: Ed. Do autor, 2010. 202 p.

COSTA, Marcos R. Nunes. Conhecimento, ciência e verdade em Santo Agostinho.


Revista Veritas - PUCRS. Porto Alegre, vol. 43, n. 171, p. 483-496, jul/set, 1998.
Trimestral. ISSN 0042-3955

COSTA, Marcos R. Nunes. Conhecimento, ciência e verdade em santo Agostinho. In: DE


BONI, Luís Alberto (Org). A ciência e a organização dos saberes na Idade Média.
Porto Alegre: Edipucrs, 2000, p.39-56. (Coleção Filosofia, n.112).

MAGNI, Alberti. De vegetabilibus libri VII: historiae naturalis pars XVIII. Editione
Carolus Jessen, Berolini, 1867. 754 p.

MAGNO, Alberto. Tratado sobre a unidade do intelecto. Edição Bilíngue. Trad. Matteo
Raschietti. São Paulo: ed. Madamu, 2022, 1. edição. 235 p.

SCOT, John Duns. Opus Oxoniense (I, d.3, parte 1, q.4). São Paulo: ed. Abril, 1973, 1. edição.
Trad. Coleção Os pensadores.

SOLER, Adriano Martins. Agostinho e Aristóteles na teoria do conhecimento de Tomás


de Aquino. São Paulo: Fonte Editorial, 2015, 18. edição. 140 p.
13
CARATERIZAÇÃO WITTGENSTEINIANA DO
“CONCEITO FILOSÓFICO DE SIGNIFICAÇÃO”
QUE SUBJAZ À “CONCEPÇÃO
AGOSTINIANA DA LINGUAGEM”
Gerson Francisco de Arruda Júnior 1

“Os filósofos são levados à confusão por estarem antecedentemente


dispostos a ver vários usos da linguagem de modos a eles inapropriados
[pois possuem] uma tendência para ver a linguagem a partir de uma
perspectiva equivocada ou desorientada”.
(Robert Fogelin, Wittgenstein’s critique of philosophy, p. 34).

INTRODUÇÃO

As Muitas são as controvérsias sobre a crítica que Wittgenstein faz


ao chamado “conceito filosófico de significação”, após sua volta à
filosofia, em 1929. Grande parte dessas polêmicas gira em torno do
modelo de significação linguística que subjaz à “concepção agostiniana
da linguagem”. Basicamente, a disputa travada doz respeito à
pertinência ou não das críticas de Wittgenstein. Eis o objetivo principal
deste texto: fazer uma caracterização das considerações de
Wittgenstein ao “conceito filosófico de significação” que, num certo
sentido, fundamenta a natureza e estrutura da linguagem tal como esta
supostamente foi admitida por Agostinho. Objetiva, também, que essa

1
Doutor em Filosofia. Professor de Filosofia na UNICAP, FATIN e SPN. E-mail: gerson.arruda@unicap.br
302 • Com Agostinho, e além dele

caracterização sirva de parâmetro para considerar os elementos mais


importantes das controvérsias acerca desse tema.

13.1 A “CONCEPÇÃO AGOSTINIANA DA LINGUAGEM”

Como é sabido, as Investigações Filosóficas começam com a citação


de um relato autobiográfico extraído das Confissões de Santo Agostinho
que, segundo Wittgenstein, nos dá uma “determinada imagem da
essência da linguagem humana” (IF, § 1) 2.
Apesar de todas as controvérsias existentes sobre os reais motivos
pelos quais Wittgenstein optou por utilizar essa passagem 3, é-nos
possível identificar – considerando o próprio texto citado e as
apreciações de Wittgenstein feitas a seu respeito – pelo menos uma
razão fundamental pela qual tal escolha pode ser justificada.
Trata-se do fato de que, neste excerto, a descrição do modo como
o Bispo de Hipona imagina ter aprendido a falar expressa uma
determinada concepção do funcionamento da linguagem que, embora
equivocada, interessa ser evidenciada pelo autor das Investigações
Filosóficas porque seus pressupostos estão subjacentes a importantes
teorias filosóficas da tradição ocidental que serão severamente
criticadas por ele.

2
Neste texto, as Investigações Filosóficas de Wittgenstein serão referenciadas da seguinte maneira: a sigla
IF, seguida do número do(s) respectivo(s) parágrafo(s).
3
É de grande proveito ler a esclarecedora exposição de David Stern sobre este assunto (Cf. STERN, David.
G. Wittgenstein’s Philosophical Investigations: an introduction. Cambridge: Cambridge University
Press, 2004, p. 72 – 87. (Cambridge Introductions to key philosophical texts). ISBN 0-521.89132-9. E ainda:
PICHLER, Alois. Wittgensteins Philosophische Untersuchungen: zurtextgenese von §§ 1 – 4. Bergen,
1997, p. 38 – 69; 107 – 115).
Gerson Francisco de Arruda Júnior • 303

Eis a citação de Wittgenstein, no parágrafo 1 das Investigações


Filosóficas:

1. Santo Agostinho diz nas Confissões (1/8):cum ipsi (majores homines)


appellabant rem aliquam, et cum secundum eam vocem corpus ad aliquid
movebant, videbam, et tenebam hoc ab eis vocari rem illam, quod sonabant,
cum eam vellent ostendere. Hoc autem eos velle ex motu corporis
aperiebatur: tamquam verbis naturalibus omnium gentium quae fiunt
vultu et nutu oculorum, ceterorumque membrorum actu, et sonitu vocis
indícante affectionem animi in petendis, habendis, rejiciendis, fugiendisve
rebus. Ita verba in variissententiis locissuis posita, et crebro audita, quarum
rerum signa essent, paulatim colligebam, measque iam voluntates, edomito
in eis signis ore, per haec enuntiabam.
[Quando os adultos nomeavam um objeto qualquer voltando-se para ele, eu
o percebia e compreendia que o objeto era designado pelos sons que
proferiam, uma vez que queriam chamar a atenção para ele. Deduzia isto,
porém, de seus gestos, linguagem natural de todos os povos, linguagem que
através da mímica e dos movimentos dos olhos, dos movimentos dos
membros e do som da voz anuncia os sentimentos da alma, quando esta
anseia por alguma coisa, ou segura, ou repele, ou foge. Assim, pouco a pouco
eu aprendia a compreender o que designam as palavras que eu sempre de
novo ouvia proferir nos seus devidos lugares, em diferentes sentenças. Por
meio delas eu expressava os meus desejos, assim que minha boca se
habituara a esses signos.].

Convém notar, inicialmente, que, num certo sentido a pretensa


crítica de Wittgenstein à concepção agostiniana da linguagem não é
tanto uma referência ao que de fato Agostinho pensava sobre a
linguagem, mas alude diretamente a um paradigma teórico que subjaz
a um conjunto de teorias acerca do fenômeno da linguagem que foram
propostas por pensadores na história da filosofia ocidental.
304 • Com Agostinho, e além dele

De fato, que a crítica não é diretamente à Agostinho fica evidente


porque, como se sabe – e provavelmente Wittgenstein sabia – a teoria
agostiniana da linguagem é muito mais ampla e complexa do que está
expresso nesse pequeno excerto das Confissões acima citado. Aliás,
muito mais aspectos da teoria poderiam ser encontrados no De Magistro
e em outros livros de Agostinho, nos quais ele explora mais
pontualmente a questão da linguagem 4.
Para Wittgenstein, essa “imagem da essência da linguagem
humana”não é uma teoria completa da linguagem, mas pode (e deve) ser
considerada como sendo uma concepção primitiva acerca do modo
como a linguagem funciona.
Ela consiste, fundamentalmente, no fato de que “as palavras da
linguagem denominam objetos” e, por isso mesmo, nela estão presentes
as “raízes” da ideia segundo a qual “toda palavra tem um significado”,
que é o “objeto que ela designa” (IF, §§ 1-3).
Por detrás dessa “imagem”, encontra-se, assim, a ideia de que
todas as palavras que constituem a linguagem são nomes que substituem
objetos, e as proposições que compõem a linguagem nada mais são do
que combinações de tais denominações. Nela, portanto, os nomes
referem, as proposições descrevem, e a única função da linguagem é
representar a realidade.
Dessa perspectiva, a relação entre a linguagem e a realidade
fundamenta-se num pressuposto que historicamente predominou na
tradição filosófica ocidental. Tal pressuposto não somente subjaz a essa

4
Sobre isso, Cf. HUBER, Carlo. ... e la parola si fece carne. Roma: EPUG, 2001.
Gerson Francisco de Arruda Júnior • 305

“concepção agostiniana de linguagem”, mas também está presente em


qualquer teoria referencial do significado.
Trata-se da ideia segundo a qual a significação das palavras supõe
e incorpora uma ontologia de cariz essencialista, fortemente marcada
pela ideia de que a realidade possui uma essência por detrás de todos os
fenômenos.
A consequência necessária desse pressuposto é, do ponto de vista
semântico, o estabelecimento de uma teoria do sentido assente no
paradigma da relação “objeto-designação”. Nesse caso, pensa-se no
significado como sendo algo do mesmo género que o da palavra, apesar
de bem diferente dela (IF, §§ 293;120).
Ao encerrar em si mesma a ideia de que há para cada palavra uma
determinada referência (objeto) na realidade, este modo de conceber a
linguagem circunscreve toda a realidade numa ontologia essencialista,
considerada a partir do modelo de objetos físicos. Com isso, a satisfação
de um requisito imprescindível (mas, controverso) é imediatamente
exigida: os objetos, concebidos como os elementos últimos que
constituem a essência da realidade 5, devem existir, necessariamente. Este
requisito deve ser satisfeito porque, do contrário, não haveria nada que
correspondesse às palavras e, portanto, nenhum significado seria
possível (Cf. IF, § 40).

5
No § 46 das Investigações Filosóficas, Wittgenstein identifica esses elementos originários como os
“Individuls”, de Russell, e os “Objetos”, do Tractatus. Quanto a estes últimos, Cf. TLP, 2.01 – 2.032; e ainda:
CUNHA, Rui Daniel. A dedução dos objetos no Tractatus. Revista Portuguesa de Filosofia. Braga, Tomo
XLV, fasc. 2, p. 225 – 246, abril/jun. 1989. Trimestral; LOMBARDI, Olímpia. Que son los objetos del
Tractatus? Revista de Filosofia. Madrid, vol. XII, n. 21, p. 55 - 76. 1999; HINTIKKA, Merrill B. The objets of
Wittgenstein`s Tractatus. In: LEINFELLNER, Werner; KRAEMER, Eric; SCHANK, Jeffrey (Eds.). Language and
ontology: proceedings of the 6º international Wittgenstein Symposium. Vienna: Hölder-Pichler-
Tempsky, 1982. p. 429 – 434).
306 • Com Agostinho, e além dele

O que suporta tudo isto é a ideia de que existe um isomorfismo


perfeito entre a linguagem e a realidade, e que tal isomorfismo é capaz
de assegurar uma determinada estrutura ontológico-linguística, na
qual a cada uma das palavras existentes no domínio da linguagem
corresponda um (e único) objeto específico no domínio da realidade.
Sendo assim, à linguagem é imposta a tarefa instrumental de
reproduzir, como um espelho, a ordem (ontológica) estável dessa
realidade por ela reflectida.
Quanto a isso, porém, convém notar que, devido a essa estabilidade
ontológica pressuposta e assumida por tal teoria, a linguagem que ela
requer e que é referida aqui não é, obviamente, a linguagem corrente do
nosso dia-a-dia. Porque considerada semanticamente instável, este tipo
de linguagem não é capaz de satisfazer os requisitos exigidos por essa
concepção referencial do significado.
Com efeito, a linguagem que se reivindica é, antes, uma linguagem
ideal, caraterizada por consistir num sistema de cálculo efetuado com
regras fixas, e cujas significações seriam absoluta e inequivocamente
determinadas (Cf. IF, §§ 79;81). Para se chegar a esta alegada linguagem,
deve-se descobrir, então, na prática efetiva da linguagem quotidiana,
“aquilo que seja comum a tudo o que chamamos linguagem”.
Deve-se, assim, descobrir a sua “oculta” e “incomparável essência”
(IF, §§ 92;97). Nesse caso, procurar o significado de uma palavra equivale
a procurar pela essência comum às múltiplas instâncias de designações
realizadas por ela, e que é, por isso mesmo, responsável pela
determinação absoluta do seu significado. Repare-se que, deste ponto
Gerson Francisco de Arruda Júnior • 307

de vista, compreender uma palavra é precisamente saber o que ela


designa; é capturar a essência do objeto por ela designado 6.

13.2 CARACTERIZAÇÃO WITTGENSTEINIANA DO “CONCEITO FILOSÓFICO


DE SIGNIFICADO”

Posto que, nessa perspetiva, a essência da realidade é


completamente independente dos modos como referimos ou falamos
dela, segue-se que os significados das palavras (que existem algures) são
totalmente independentes da linguagem.
Quer isto dizer que, embora a existência de objetos seja uma
condição necessária para o estabelecimento do significado das palavras,
ela não é uma condição suficiente para que o processo de significação
desse modelo conceitual se instaure. E não é simplesmente porque tais
objetos não estão necessariamente ligados às palavras que os nomeiam.
Para que tal correspondência entre os domínios independentes das
palavras e dos objetos seja estabelecida, esse modelo semântico recorre
às chamadas definições ostensivas. Recorre, assim, àquele tipo de
definição através da qual os nomes são “afixados como etiquetas” (IF, §§
15, 26) aos seus respectivos objetos.
O que está pressuposto para que tais atos de nomeação tornem-se
o paradigma de toda a significação é a ideia de que existe um “puro ser
intermediário” entre o “nome e o nomeado”, e que este mediador é, de
fato, o único responsável pela efetivação da relação unívoca entre a
linguagem e a realidade.

6
Sobre a questão da essência da linguagem nas Investigações Filosóficas, Cf. ARRUDA JÚNIOR, Gerson
Francisco de. 10 Lições sobre Wittgenstein. Petrópolis: Vozes, 2017. p. 73-81.
308 • Com Agostinho, e além dele

O processo pelo qual tudo isto ocorre é “um processo, por assim
dizer, oculto”, e não é descabido afirmar que o ato de nomear que o
constitui realmente “aparece como uma estranha ligação de uma
palavra com um objeto” (IF, §§ 37, 38, 94).
É, pois, ao assegurar tal paradigma de nomeação que este
paradigma de significação” – que, segundo Wittgenstein, “é comum a
toda representação primitiva do modo como a linguagem funciona” (IF,
§ 2), e que talvez por isso mesmo tendemos a considerar quase como
natural – privilegia certo grupo de palavras – os nomes próprios – e
ignora as outras classes de palavras que compõem a linguagem, “como
se houvesse apenas uma coisa que se chamasse: ‘falar das coisas’”(IF, §
27).
Sem dúvida alguma, nele se pensa, “primeiramente, em
substantivos como «mesa», «cadeira», «pão» e em nomes de pessoas”,
e só depois, em “nomes de certas atividades e qualidades, e todas as
restantes espécies de palavras”, que, nas palavras de Wittgenstein, são
consideradas apenas em “segundo plano” e “como algo que se irá
encontrar”(IF, § 1).
Para este modelo de significação não existem, portanto,
“diferentes espécies de palavras”(IF, § 2). Ao ignorar completamente
esse fato e, por conseguinte, admitir que a única tarefa da linguagem é
“falar das coisas” (que, na verdade, é uma outra maneira de ressaltar a
ideia de que a sua única função é a de representar a realidade), este modo
de conceber a linguagem encerra o fenômeno linguístico num “domínio
estritamente circunscrito” daquilo que de fato chamamos «linguagem».
Neste sentido, não há nenhum erro em concebê-la – como fez
Gerson Francisco de Arruda Júnior • 309

Wittgenstein – como sendo apenas um “sistema de comunicação”, “uma


linguagem mais primitiva do que a nossa”(IF, § 3).
Diante dessa caracterização, convém notar que, para Wittgenstein,
este modo “unilateral” de conceber a linguagem (que, no fundo, é “uma
causa principal das doenças filosóficas”(IF, § 593)) é, ainda assim, “útil”.
Todavia, tal utilidade está restrita ao âmbito de descrição de um
determinado sistema ou de uma teoria de comunicação(IF, § 3), no qual
estejam obliteradas três caraterísticas essencialmente constitutivas do
complexo fenômeno da linguagem amplamente considerada por ele em
sua Spätphilosophie.
Estas são precisamente aquelas caraterísticas que constituirão o
núcleo da sua concepção de linguagem como jogo, a saber:

(a) a diversidade das palavras;


(b) o fato de que a linguagem possui outras funções tão e às vezes até mais
relevantes do que a estrita função de representar; e
(c) a pluralidade de significações que uma mesma palavra pode possuir.

O ponto de partida desta perspectiva é o de conceber a linguagem


como inserida em uma prática social. Assim, ela enfatiza a linguagem
corrente e o seu uso quotidiano. O seu objetivo último é entender
aspectos importantes do fenômeno linguístico a partir da interação dos
falantes em práticas linguísticas concretas, levando em consideração o
contexto de uso da linguagem e dos elementos socioculturais
310 • Com Agostinho, e além dele

pressupostos por ele. Nesse novo expediente, a noção de jogos de


linguagem 7 é fundamental.
Uma das ideias que caracterizam esta nova perspectiva é a de que
o uso que fazemos da linguagem é muito variado e amplo 8. Tal variedade
deve-se ao fato de que, ao usarem a linguagem, os falantes servem-se
de um conjunto de elementos e recursos linguísticos e não linguísticos
que fazem com que tais usos envolvam vários aspectos do contexto no
qual eles são realizados. Fazem parte deste contexto aspectos sociais,
situacionais e culturais que, de um modo geral, contribuem para definir
a significação das expressões utilizadas.
Uma segunda característica importante resultante da crítica de
Wittgenstein é a ideia de que, quando se usa a linguagem, há muito mais
coisas sendo ditas por meio das expressões linguísticas utilizadas do que
aquilo que está dito de acordo com sua gramática. Ou seja, uma coisa é
o que é dito gramaticalmente (levando em conta a sequência e o
significado standard das palavras pronunciadas), outra coisa, muito
distinta, é o que, de fato, se quer dizer por meio de uma expressão
gramaticalmente correta. Isto ocorre porque, numa situação de fala, o
falante tem sempre uma intenção determinada (intenção
comunicacional) cujo significado depende, também, das circunstâncias
sob as quais tal ato é realizado.

7
Sobre o conceito wittgensteiniano de jogos de linguagem, Cf. ARRUDA JÚNIOR, Gerson Francisco de.
Linguagem e jogo: aspectos fundamentais do conceito wittgensteiniano de «Sprachspiele».
Perspectiva Filosófica, vol. 41, n. 1, 2014, p. 13-29. ISSN 23579986.
8
Quanto à essa multiplicidade de significado em relação ao uso, Cf. ARRUDA JÚNIOR, G. F. de; LUNA, J.
M. G. de. Wittgenstein e a distinção entre sentido e significado: uma proposta de leitura do § 556 das
Investigações Filosóficas. Veritas (Porto Alegre), 2022, 67(1), e40079. https://doi.org/10.15448/1984-
6746.2022.1.40079
Gerson Francisco de Arruda Júnior • 311

O abismo que muitas vezes se configura entre o que está expresso


gramaticalmente e o que realmente se tenciona dizer é um fenômeno
que escapa a uma caracterização precisa em termos estritamente
sintáticos e semânticos. Desse modo, discorrer sobre tal fenômeno é
buscar saber como é que se dá a adequação das sequências gramaticais
de uma expressão ao contexto e à situação na qual ela é pronunciada.
Nesta busca, várias questões se colocam. As principais são as
seguintes: (1) como pode não coincidir o que de fato dizemos e o que
queremos dizer?; (2) como, apesar disto, é possível que consigamos dizer
algo com significado ou mesmo nos entendermos?; (3) que parte do que
compreendemos depende da estrutura gramatical da expressão
linguística e do significado das palavras que a compõem, e que parte
depende dos aspectos extralinguísticos envolvidos? Todas estas
indagações constituem objetos de investigação da pragmática
linguística que, segundo os pressupostos de Wittgenstein, é o correto
modo de entender a linguagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com efeito, é a consideração do conjunto dessas caraterísticas


ignoradas pelo paradigma agostiniano que constitui o motor principal
da mudança de perspetiva que se verifica da primeira para a segunda
fase do pensamento wittgensteiniano. De fato, ignorar tais
caraterísticas é o mesmo que ignorar importantes dimensões da
linguagem humana. Ignora-se, sobretudo, o fato de que as práticas
linguísticas não só estão intrinsecamente envolvidas com as ações
312 • Com Agostinho, e além dele

humanas, como também desempenham importantes papéis nessas


atividades. Disto, podemos concluir que o objetivo de Wittgenstein em
realizar inicialmente uma caraterização da “imagem agostiniana da
linguagem” foi o de evidenciar os limites de tal paradigma de
significação para que, no contraste com eles, os aspetos pragmáticos da
linguagem pudessem ser melhor evidenciados. Isto talvez seja o único
fato que justifique não só se interessar por tais «sistemas de
comunicação», como também os utilizar como pano de fundo para a
exposição de sua concepção pragmática de linguagem.

REFERÊNCIAS

ARRUDA JÚNIOR, G. F. de; LUNA, J. M. G. de. Wittgenstein e a distinção entre sentido e


significado: uma proposta de leitura do § 556 das Investigações Filosóficas. Veritas
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2017. p. 73-81.

ARRUDA JÚNIOR, Gerson Francisco de. Forma lógica e subjetividade: o Tractatus e a


inexistência de um ‘eu’ empírico capaz de representar. Ágora Filosófica, [S. l.], ano
14, n. 1, p. 103-122, jan./jun., 2014. Semestral. DOI: https://doi.org/10.25247/P1982-
999X.2014.v1n1.p103-122

ARRUDA JÚNIOR, Gerson Francisco de. Linguagem e jogo: aspectos fundamentais do


conceito wittgensteiniano de «Sprachspiele». Perspectiva Filosófica, vol. 41, n. 1,
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ARRUDA JÚNIOR, Gerson Francisco de. Uso e Significado: a compreensão de uma


palavra na pragmática wittgensteiniana da linguagem. In: COSTA, Danilo Vaz-
Curado R. M.; EFKEN, Karl-Heinz (org.). Normas, Máximas & Ação. Porto Alegre:
Editora Fi, 2015. p. 115-132.

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Filosofia. Braga, Tomo XLV, fasc. 2, p. 225 – 246, abril/jun. 1989. Trimestral
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GRAYLING, A. C. Wittgenstein. Tradução de Milton Camargo Mota; rev. de Adriana


Cristina Bairrada. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

HINTIKKA, Merrill B. The objects of Wittgenstein`s Tractatus. In: LEINFELLNER,


Werner; KRAEMER, Eric; SCHANK, Jeffrey (Eds.). Language and ontology:
proceedings of the 6º international Wittgenstein Symposium. Vienna: Hölder-
Pichler-Tempsky, 1982. p. 429 – 434).

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HUBER, Carlo. ... e la parola si fece carne. Roma: EPUG, 2001.

LOMBARDI, Olímpia. Que sonlos objetos del Tractatus? Revista de Filosofia, Madrid, v.
XII, n. 21, p. 55-76, 1999.

MORENO, Arley. Os labirintos da Linguagem: ensaio introdutório. São Paulo: Moderna;


Campinas: Editora Universidade de Campinas, 2000. (Coleção Logos).

PICHLER, Alois. WittgensteinsPhilosophischeUntersuchungen:zurtextgenese von §§ 1


– 4. Bergen, 1997, p. 38 – 69; 107 – 115).

PINTO, Paulo Roberto Margutti. Iniciação ao silêncio: análise do Tractatus. São Paulo:
Loyola, 1998.

STERN, David. G. Wittgenstein’s Philosophical Investigations: an introduction.


Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 72 – 87. (Cambridge Introductions
to key philosophical texts). ISBN 0-521.89132-9.

TEJEDOR, Chon. Wittgenstein. London: Continuum, 2011.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Investigações Filosóficas. 4. ed. Tradução de Marcos


Montagnoli; rev. de Emmanuel Carneiro Leão. Bragança Paulista: Editora
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Universitária São Francisco; Petrópolis: Vozes, 2005. (Coleção pensamento


humano).

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. Tradução, apresentação e


estudo introdutório de Luiz Henrique Lopes dos Santos; [Introdução de Bertand
Russell]. 3. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
SOBRE O HOMENAGEADO

Marcos Roberto Nunes Costa, filho de Tiago Nunes da Costa e Raimunda Nunes limeira,
nascido na cidade de Itapetim – PE, fez o Primário no Grupo Escolar Tereza Torres e o
Ginásio e 2º Grau no Colégio Municipal de Itapetim. Concluiu a Graduação em Filosofia,
pela UNICAP, em 1989, e o Mestrado em Filosofia, pela UFPE, em 1996. Em 2000, concluiu
o Doutorado em Filosofia, pela PUCRS, com um período de pesquisa na Università delli
Studi di Parma – Itália, tendo como área de pesquisa a Filosofia Medieval, mais
especificamente o pensamento de Santo Agostinho, e em 2016 fez um Pós-doutorado em
Filosofia pela Universidade do Porto – Portugal. É autor de diversos livros,
principalmente na área de filosofia medieval, dentre os quais destacam-se: “Santo
Agostinho: um gênio intelectual a serviço da fé”, pela Edipucrs – Porto Alegre (1999); “O
Problema do Mal na Polêmica Antimaniquéia de Santo Agostinho”, pela
Edipucrs/Unicap – Porto Alegre/Recife (2002), que foi sua tese de doutoramento;
“Maniqueísmo: história, filosofia e religião”, pela Vozes – Petrópolis (2003); “Origens
Medievais do Estado Moderno: contribuições da filosofia política medieval para
construção do conceito de soberania popular na modernidade”, em conjunto com
Raimundo Antônio Marinho Patriota, pela Printer/INSAF – Recife (2004); “Temas
Tomistas em Debate”, em conjunto com o Prof. Dr. Elcias Ferreira da Costa, pelo
Instituto de Pesquisas Filosóficas Santo Tomás de Aquino – Recife (2003); “A Ética
Medieval face aos Desafios da Contemporaneidade”, em conjunto com o Prof. Dr. Luis
Alberto De Boni, pela Edipucrs/Unicap/INSAF/ Instituto de Pesquisas Filosóficas Santo
Tomás de Aquino (2004); “A Filosofia Medieval no Brasil: persistência e resistência”, pela
Printer – Recife (2006); “Tempo de Eternidade na Filosofia Medieval”, em conjunto com
o Prof. Dr. Luis Alberto De Boni e Prof. Jan G.J. ter Reegen, pela EST Edições- Porto
Alegre (2007); “Introdução ao Pensamento Ético-Político de Santo Agostinho”, pela
Loyola – São Paulo (2009); 10 Lições sobre Santo Agostinho”, pela Editora Vozes, com 4
edições – Petrópolis (2012 a 2022), e “Mulheres intelectuais na Idade Média: entre a
316 • Com Agostinho, e além dele

medicina, a história, a poesia, a dramaturgia, a filosofia, a teologia e a mística”, em


conjunto com Rafael Ferreira Costa, pela Editora FI – Porto Alegre (2019). Além disso,
traduziu a obra “Entre a História e o Imaginário: o passado da filosofia na Idade Média”,
do italiano Gregorio Piaia, que foi publicada pela EDIPUCRS – Porto Alegre (2006) e
“Santo Agostinho: o homem, o pastor e o místico”, do italiano Agostino Trapé, pela
Cultor de Livros/Scripta Publicações – Curitiba (2017). É autor, também, de mais de uma
centena de artigos de Revistas, e Livros Coletâneas sobre o pensamento Antigo-Tardio
e Medieval. Foi Presidente, por oito anos, da Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval
– SBFM, e foi organizador de diversos eventos (Congressos, Simpósios, Colóquios) na
área de filosofia medieval. Atualmente é professor (Associado 3) de História da Filosofia
Medieval no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco –
UFPE, bem como leciona, desde 2010, na Pós-graduação em Filosofia (Mestrados
Acadêmico, Mestrado Profissional e do Doutorado) pela UFPE, onde já orientou diversas
dissertações e teses, sem conta as muitas orientações de Trabalhos de Conclusão de
Curso na graduação.
PUBLICAÇÕES DO
PROF. MARCOS ROBERTO NUNES COSTA

1 LIVROS COMPLETOS

COSTA, Marcos Roberto Nunes. Santo Agostinho: um gênio intelectual a serviço da fé.
Porto Alegre: Edipucrs, 1999. 215 p. (Coleção Filosofia, n. 91). ISBN 978-85-7430-042-
X.

______. O problema do mal na polêmica antimaniquéia de santo Agostinho. Porto


Alegre: Edipucrs ; Recife: UNICAP, 2002. 429 p. (Coleção Filosofia, n. 139). ISBN 978-
85-7430-281-3.

______. Maniqueísmo: história, filosofia e religião. Petrópolis: Vozes, 2003. 175 p.


ISBN 85.326.2829-X.

______. Como normatizar trabalhos acadêmicos: projetos, monografias e artigos.


(com 10 edições) Recife: Ed. do Autor, 2003-2019. 130 p. ISBN 978-857084219-8.

______.; PATRIOTA, Raimundo Antônio Marinho. Origens medievais do Estado


moderno: contribuições da filosofia política medieval para construção do conceito
de Soberania popular. Recife: INSAF, 2004. 132 p. ISBN 978-85-98538-22-1.

______. Itapetim: cidade das pedras soltas. Recife: CEHM/FIDEM/CONDEPE, 2007.


378 p. (Coleção Biblioteca Pernambucana de História Municipal, n, 32). ISBN 978-85-
98538-08-2.

______. Itapetim: ventre imortal da poesia: antologia de poetas, repentistas,


compositores e músicos itapetinenses. (com 2 edições). Recife: CEHM/FIDEM/
CONDEPE, 2008-2013. 536 p. (Coleção Tempo Municipal, n, 27). ISBN 85-9853-895-7

______. Introdução ao pensamento ético-político de santo Agostinho. São Paulo:


Loyola ; Recife: UNICAP, 2009. 214 p. ISBN 978-85-15-03548-9.

______. Dicionário de matutês. Recife: FASA, 2011. 148 p. ISBN 978-857084217-1.


318 • Com Agostinho, e além dele

______. 10 Lições sobre Santo Agostinho. (com 4 edições) Petrópolis: Vozes, 2012-
2022. 85 p. ISBN 978-85-326-4322-3

______.; MARINHO, Maria Helena; PATRIOTA, Raimundo. O rei me disse fica, eu


disse não: 100 repentes de Lourival Batista. Recife: Bagaço, 2015. 88 p. ISBN 978-85-
8165-418-8

_______. ; COSTA, Rafael Ferreira. Mulheres intelectuais na Idade Média: entre a


medicina, a história, a poesia, a dramaturgia, a filosofia, a teologia e a mística. Porto
Alegre: Editora Fi, 2019. E-book. 296 p. ISBN - 978-85-5696-599-8

_______; PATRIOTA, Raimundo. O aventureiro e o boêmio: Pinto e Louro a maior


dupla de poetas repentistas. Recife: CEPE Editora, 2021, 278 p. ISBN 978-85-7858-
905-9.

______. Santo agostinho: da concordância entre a livre vontade humana, a


presciência, a graça e a predestinação divinas, em diálogo com a Modernidade (no
prelo, a sair em breve pelas Edições Loyola)

______. Santo Agostinho, frente ao espiritismo kardeciano (no prelo, a sair em


breve)

______. Santo Agostinho, “de corpo e alma”: um estudo acerca da relação corpo-alma
na filosofia-teologia agostiniana (no prelo, a sair em breve)

2 ORGANIZAÇÃO DE LIVROS COLETÂNEAS

COSTA, Marcos Roberto Nunes ; COSTA, Elcias Ferreira da. (orgs.). Temas tomistas em
debate. Recife: Instituto de Pesquisa Filosóficas Santo Tomás de Aquino/Círculo
católico de Pernambuco, 2003. 147 p. (Série Estudos, n. II). ISBN 978-85-89762-01-7.

______. ; CORREIA JUNIOR, João Luiz (orgs.). Os mistérios do corpo: uma leitura
multidisciplinar. Recife: INSAF, 2004. 201 p. ISBN 978-85-89935-03-5.

______. ; DE BONI, Luis A. (orgs). A ética medieval face aos desafios da


contemporaneidade. Porto Alegre/Recife: Edipucrs, Unicap, Insaf, Círculo Católico
de Pernambuco, 2004. 768 p. ISBN 978-85-7430-496-4.
Publicações • 319

______. (org.). A filosofia medieval no Brasil: persistência e resistência: homenagem


dos orientandos e ex-orientandos ao mestre Dr. Luis Alberto De Boni. Recife:
Printer, 2006. 193 p. ISBN 978-85-9853-805-1.

______. ; REEGEN, Jan G. J. ter ; DE BONI, Luis Alberto (orgs.). Tempo e eternidade na
Idade Média. Porto Alegre: EST Edições, 2007. 151 p. ISBN 978-85-7517-025-0.

______. ; MATOS, Junot Cornélio (orgs.). Filosofia: caminhos do ensinar e aprender.


Recife: Editora da UFPE, 2013. 222 p. ISBN 978-85-0341-9.

______. ; MATOS, Junot Cornélio (oergs.). Ensino de filosofia: questões fundamentais.


Recife: Editora da UFPE, 2014. 267 p. ISBN 978-85-0395-5. (Livro e PDF)

______. ; BEZERRA, Cícero Cunha (orgs.). Reflexões sobre éticas gregas e filosofia
contemporânea. Recife: Editora da UFPE, 2014. 182 p. ISBN 978-85-415-0475-1

______. ; MARQUES, Érico Andrade ; BENVINDA, Nalfran Modesto (orgs). Liberdade,


lógica e ação. Recife: Editora da UFPE, 2017, 502 p. (e-book) ISBN 978-85-415-0920-
6.

______. ; PEREIRA JÚNIOR, Antônio ; FREITAS, Charles Lamartine de Souza ; SILVA,


Nilo César Batista da (orgs.). As Confissões de Santo Agostinho: entre o humano e o
divino. Mossoró: FCRN, 2021. 135 p. ISBN: 978-65-992159-2-6.

3 TRADUÇÕES DE LIVROS E/OU ARTIGOS

AGOSTINHO, Santo. Sobre a continência. Tradução, introdução e notas de Marcos


Roberto Nunes Costa e Gerson F. de Arruda Júnior. São Paulo: Paulus, 2013, p. 179-
236 (Coleção Patrística n. 32). ISBN 978-85-349-3643-9

AGOSTINO, Trapè. Agostinho: o homem, o pastor e o místico. Tradução de Francisco


Evaristo Marcos e Marcos Roberto Nunes Costa. Curitiba: Cultor de Livros/Scripta
Publicações, 2017, 536 p. ISBN 978-85-66613-03-2

AGOSTINHO, Santo. A mentira. Tradução, introdução e notas de Marcos Roberto Nunes


Costa e Antônio Pereira Júnior. São Paulo: Paulus, 2019, p. 31-96 (Coleção Patrística
n. 32). ISBN 978-85-349-4963-7.
320 • Com Agostinho, e além dele

AGOSTINHO, Santo. Contra a mentira. Tradução, introdução e notas de Marcos Roberto


Nunes Costa e Antônio Pereira Júnior. São Paulo: Paulus, 2019, p. 97-162 (Coleção
Patrística n. 32). ISBN 978-85-349-4963-7.

BOTTIN, Francesco. Sobre a natureza da linguagem: Agostinho e Wittgenstein.


Tradução de Marcos Roberto Nunes Costa e Jorge Cândido de Lima. Revista Ágora
Filosófica –UNICAP. Recife, ano 7, n.1, p. 79-98, jan./jun. 2007. Semestral. ISSN 1679-
5385

AGOSTINHO, Santo. Sobre a imortalidade da alma. Tradução, introdução e notas de


Marcos Roberto Nunes Costa e Antônio Pereira Júnior. São Paulo: Paulus (no prelo,
a sair em breve pela Editora Paulus)

4 CAPÍTULOS DE LIVROS COLETÂNEAS

COSTA, Marcos Roberto Nunes. Conhecimento, ciência e verdade em Santo Agostinho.


In: DE BONI, Luis Alberto (org.). A ciência e a organização dos saberes na Idade Média.
Porto Alegre: Edipucrs, 2000, p. 39-56. (Coleção Filosofia, n. 112). ISBN 85-7430-133-
7.

______. O problema do mal em Santo Agostinho: apropriações e superação do


neoplatonismo. In: BAUCHWITZ, Oscar Federico (org.). Neoplatonismo. Natal:
Editora Argos, 2001. p. 39 – 46. ISBN 85-88302-04-7.

______. O processo do conhecimento humano em Santo Agostino e Tomás de


Aquino: convergências e divergências. In: COSTA, Marcos Roberto Nunes ; COSTA,
Elcias Ferreira da. (orgs.). Temas tomistas em debate. Recife: Instituto de Pesquisa
Filosóficas Santo Tomás de Aquino/Círculo católico de Pernambuco, 2003. p. 106-118
(Série Estudos, n. II). ISBN 85-89762-01-7.

______. O problema do corpo na filosofia-teologia patrístico-agostiniana. In:


COSTA, Marcos Roberto Nunes ; CORREIA JUNIOR, João Luiz (orgs.). Os mistérios do
corpo: uma leitura multidisciplinar. Recife: INSAF, 2004. p. 105-128. ISBN 85-89935-
03-5.

______. A dialética das “Duas Cidades” em “A Cidade de Deus” de Santo Agostinho:


dualismo ontológico-cosmológico maniqueísta ou ético-moral-escatológico? In:
COSTA, Marcos roberto Nunes ; DE BONI, Luis A. (orgs). A ética medieval face aos
desafios da contemporaneidade. Porto Alegre/Recife: Edipucrs,Unicap, Insaf, Círculo
Católico de Pernambuco, 2004. p. 39-52. . ISBN 85-7430-496-4.
Publicações • 321

______. O lugar da Justiça na Doutrina Ético-Política de Santo Agostinho. In: STEIN,


Ernildo (org). A cidade de Deus e a cidade dos homens de Agostinho a Vico. Festschrift
para Luis Alberto De Boni. Porto Alegre: Edipucrs, 2004. vol. I. p. 117-131. ISBN 85-
7430-485-9

______. A teologia/filosofia da história de Santo Agostinho. In: GUIDO, Humberto ;


SAHD, Luiz F. N. de Andrade e Silva (orgs.). Tempo e história no pensamento ocidental.
Ijuí: Editora da Unijuí, 2006. p. 203-218. (Coleção Filosofia, n. 18). ISBN: 85-742949-
2-6.

______. O problema do mal em santo Agostinho. In: COSTA, Marcos Roberto Nunes
(org). A filosofia medieval no Brasil: persistência e resistência: homenagem dos
orientandos e ex-orientandos ao mestre Dr. Luis Alberto De Boni. Recife: Printer,
2006. p. 161-175. ISBN 85-9853-805-1.

______. Teocracismo na doutrina ético-política de santo Agostinho? In: SOUZA, José


Antônio de C.R. de (org.). Idade Média: tempo do mundo, tempo dos homens, tempo
de Deus. Porto Alegre: Éster, 2006. p.399-410. ISBN 85-7517-165-8

______. Apropriação e superação agostiniana do neoplatonismo na luta contra a


visão negativo-maniqueísta de corpo. In: MACEDO, Monalisa Carrilho de ;
BAUCHWITZ, Oscar Federico (orgs). Estudos de neoplatonismo. Natal: EDUFRN, 2006.
p. 39-60. ISBN 85-7273-326-4.

______. A questão do agir humano em Santo Agostinho. In: SEVERO NETO, Manoel
(org.). Direito, cidadania e processo. Recife: FASA, 2006. v. 3, p. 57-78. ISBN 85-70841-
08-6.

______. Ordem, justiça e lei: tripé indissolúvel na doutrina ético-jurídico-político


de Santo Agostinho In: SEVERO NETO, Manoel (org.). Direito, cidadania e processo.
Recife: FASA, 2006. v. 3, p. 275-310. ISBN 85-70841-08-6.

______. Tempo e eternidade em Agostinho de Hipona. In: COSTA, Marcos Roberto


Nunes ; REEGEN, Jan G.J. ter ; DE BONI, Luis Alberto (orgs.). Tempo e eternidade na
Idade Média. Porto Alegre: EST Edições, 2007. p. 21-29 p. ISBN 978-85-7517-025-0.

______. Santo Agostinho. In: PECORARO, Rossano (org.). Os filósofos: clássicos da


filosofia (I): de Sócrates a Rousseau. Petrópolis: Vozes ; Rio de Janeiro: Editora da
PUC-Rio, 2008. vol. I, p. 105-138. ISBN 978-85-326-3653-9.
322 • Com Agostinho, e além dele

______. O problema de Deus na filosofia/teologia agostiniana. In: XAVIER, Maria


Leonor L. O. (coord.). A questão de Deus na história da filosofia. Lisboa: Zéfiro, 2008.
vol I, p. 217-228. ISBN 978-972-8958-70-1.

______. Amor ou paixões desordenadas como causa do mal na doutrina ético-moral


de santo Agostinho. In: BURLANDO, Giannina (org.). De las pasiones en la filosofía
medieval. Santiago de Chile: Pontifícia Universidad Católica de Chile, 2009. p. 69-80.
ISBN 978-95-6319-851-5.

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In: SEVERO NETO, Manoel (org.). Direito, cidadania & processo. Recife: FASA, 2009. v.
4, p. 11-23. ISBN 85-7084- 134-6.

______. FERREIRA, Anderson Darc. O papel dos sentidos no processo do


conhecimento, segundo Agostinho e Guilherme de Ockham. In: BAUCHWITZ,
Oscar Federico et al. (orgs.). Metafísica: ontologia e história. Natal: UDUFRN, 2009.
p. 71-84. ISBN 978-85-7273-502-5.

______. A influência do neoplatonismo na solução agostiniana do mal. In: CUNHA,


Cícero Bezerra ; BAUCHWITZ, Oscar Federico (org.). Neoplatinismo: tradição e
contemporaneidade. São Paulo: Hedras, 2013. p. 25-36. ISBN 978-85-7715-312-1.

______. Livre arbítrio e liberdade em Santo Agostinho. In: CARVALHO, Marcelo ;


FIGUEIREDO, Vinicius (orgs). Filosofia antiga e medieval. Curitiba: ANPOF, 2013. p.
377-388. ISBN 978-85-88072-16-9.

______. As contribuições de Santo Agostinho para o conceito de liberdade


individual na história da filosofia medieval. In: NOGUEIRA, Maria Simone Marinho
(org.). Contemplatio: ensaios de filosofia medieval. Campina Grande: Editora da
Universidade Estadual da Paraíba, 2013. p. 73-94. ISBN 978-85-7879-173-5.

______. A cosmologia ético-holística de santo Agostinho e seus reflexos na ética


ecológico-holística [ecotelogia] contemporânea. In: COSTA, Marcos Roberto Nunes
; BEZERRA, Cícero Cunha (orgs.). Reflexões sobre éticas gregas e filosofia
contemporânea. Recife: Editora da UFPE, 2014. 119-140 p. ISBN 978-85-415-0475-1.

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ISBN 978-85-7430-496-4.

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Brasil: persistência e resistência: homenagem dos orientandos e ex-orientandos ao
mestre Dr. Luis Alberto De Boni. Recife: Printer, 2006. p. 7-10. ISBN 978-85-9853-
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Vicente – Itapetim/PE. Recife: CEHM/FIDEM/CONDEPE, 2008. p. 7-8. ISBN 978-85-
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______. Prefácio. In: RÊGO, Paulo Romero Batista. História, igreja e poder: o papel da
religião no processo histórico de formação/sustentação do poder político-
econômico-ideológico temporal da civilização ocidental cristã [1559-1978]. Porto
Alegre: Editora Fi, 2020, p. 9-16. ISBN 978-85-5696-786-2.

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do constitutivo formal do suposto. Tradução de Elcias Ferreira da Costa. Porto Alegre:
Editora Fi, 2020, p. 11-16. ISBN - 978-65-87340-61-6.

______. Prefácio. In: PEREIRA JÚNIOR, Antônio. Santo Agostinho: sobre a verdade,
contra os céticos. Mossoró: UERN, 2021, p. 19-25. ISSN – 978-85-7621-277-5.

______. Dados biográficos de Pinto – O cascavel do repente. In: COSTA, Marcos


Nunes ; PATRIOTA, Raimundo. O aventureiro e o boêmio: Pinto e Louro a maior dupla
de poetas repentistas. Recife: CEPE Editora, 2021, p. 23-30. ISBN 978-85-7858-905-
9.

______. Dados biográficos de Louro do Pajeú – O rei dos trocadilhos. In: COSTA,
Marcos Nunes ; PATRIOTA, Raimundo. O aventureiro e o boêmio: Pinto e Louro a
maior dupla de poetas repentistas. Recife: CEPE Editora, 2021, p. 33-36. ISBN 978-
85-7858-905-9.

______. Dados sobre o autor. In: AMORIM, Pedro. O poeta dos vaqueiros. Recife: CEPE
Editora, 2021, p. 9-19. ISBN 978-85-7858-906-6.

______. Dados sobre o autor. In: BATISTA, Dimas. Obras poéticas. Recife: CEPE
Editora, 2021, p. 3-7. ISBN 978-85-7858-907-3.
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______. Prefácio. In: LIMA, Marcone Felipe Bezerra de. O evangelho da graça e a graça
do evangelho: o Sola Gratia a partir do imago Dei em Santo Agostinho. Moreno: IGP
Editora, 2022, p. 13-25. ISBN 978-65-86822-26-7.

______. Prefácio. In: COUTINHO, Gracielle Nascimento. O convergir da vontade


humana a Deus: sujeito ético e alteridade em Santo Agostinho. Porto Alegre: Editora
Fi, 2021. p. 15-21. ISBN 978-65-5917-401-0.

______. Prefácio. In: BRANDÃO, Ricardo Evangelista. O belo, o que ele é? investigações
sobre os fundamentos da beleza na natureza em Agostinho de Hipona. São Paulo:
Editora Dialética, 2022, p. p. 7-10 INBN 978-65-252-2434-3.

______. Prefácio. In: TEIXEIRA NETO, José. O De libero arbítrio de Santo Agostinho e o
problema do mal. Porto Alegre: Editora Fi, 2022, p. 13-24 INBN 978-65-5917-494-2.

6 ARTIGOS COMPLETOS EM ANAIS DE EVENTOS

COSTA, Marcos Roberto Nunes. Reflexões acerca da contradição entre a livre vontade
humana e a providência divina. Anais da 3a Mostra de Pesquisa, Pós-Graduação e
Extensão e IV Jornada de Iniciação Científica – UNICAP. Recife: FASA, 2002. Tomo I,
p. 82-83.

______. ; SILVA, José Ailton da. O problema da felicidade humana em santo


Agostinho. Anais da 3a Mostra de Pesquisa, Pós-Graduação e Extensão e 4a Jornada de
Iniciação Científica – UNICAP. Recife: FASA, 2002. Tomo II, vol. 1, p. 317-318.

______. ; SILVA, José Rinaldo da. Livre-arbítrio e liberdade em santo Agostinho.


Anais da 3a Mostra de Pesquisa, Pós-Graduação e Extensão e 4a Jornada deIniciação
Científica – UNICAP. Recife: FASA, 2002. Tomo II, vol. 1, p. 320-321.

______.; SILVA, José Ailton da. A moral como pressuposto para se alcançar a
“verdadeira felicidade” em santo Agostinho. Anais da V Jornada de Iniciação
Científica – UNICAP. Recife: FASA, 2003. I CD-ROM. Windows 3.1.

______.; SILVA, José Rinaldo da. A vida ético-moral em santo Agostinho: uma
aplicação do livre-arbítrio à vida prática. Anais da V Jornada de Iniciação Científica
– UNICAP. Recife: FASA, 2003. I CD-ROM. Windows 3.1.
Publicações • 327

______.; BEZERRA, Fabiano Teixeira. A evolução da solução agostiniana do mal: do


mal físico ao mal moral. Anais da V Jornada de Iniciação Científica – UNICAP. Recife:
FASA, 2003. I CD-ROM. Windows 3.1

______. O Poder Enquanto Força Coercitiva, Segundo santo Agostinho. In:


MAGALHÃES, Fernando (org.). Anais do III Encontro Interrestitucional de Filosofia
(UFPE-UFPB-UFRN). Recife: Livro Rápido, 2005. p. 177-193. ISBN 85-7716-089-0.

______.; BEZERRA, Fabiano Teixeira. O mal moral: definitiva e genuína solução


agostiniana do mal. Anais da VI Jornada de Iniciação Científica – UNICAP. Recife:
FASA, 2004. p. 758-761. I CD-ROM. Windows 3.1. . ISBN 85-7084-042-X.

______. Extra Ecclesiam Nula Salus: semelhanças e diferenças entre a Cidade de


Deus e a Igreja [Católica] na obra A Cidade de Deus de Santo Agostinho. Anais da
Sessão de Comunicação de Pesquisa da II Semana de Integração Universidade-Sociedade
– UNICAP. Recife: FASA, 2004. p. 307-323. I CD-ROM. Windows 3.1. ISBN 85-7084-
043-X.

______. Santo Agostinho e sua Concubina da Juventude. Anais do V Encontro


Internacional de Estudos Medievais – ABREM. Salvador: Quarteto Editora, 2005. p.
284-288.

______. ; MAIA, Tiago Macedo Bezerra. Os fundamentos ontológicos da justiça e do


direito no pensamento filosófico-religioso de santo Agostinho. Anais da 7a Jornada
de Iniciação Científica – UNICAP. Recife: FASA, 2005. p. 475-480. I CD-ROM. Windows
3.1. . ISBN 85-7084-091-8.

______. Crítica á retórica como instrumento de dominação na doutrina ético-


política de santo Agostinho. Anais da Sessão de Comunicação de Pesquisa da III
Semana de Integração Universidade-Sociedade – UNICAP. Recife: FASA, 2005. p. 361-
374. I CD-ROM. Windows 3.1. ISBN 85-7084-089-6.

______.; MAIA, Tiago Macedo Bezerra. A ontologia da justiça, da lei e do direito na


jusfilosofia patrístico-agostiniana. Anais da 8a Jornada de Iniciação Científica –
Católica. Recife: FASA, 2005. p. 279-285. I CD-ROM. Windows 3.1. . ISBN 85-7084-100-
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Encontro Nacional de estudos Neoplatônicos: ontologia e liberdade. Aracaju:
Universidade federal de Sergipe, 2006. p. 103-123. ISSN 1809-8452.
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______. ; REGO, Marlesson Castelo Branco do. Santo Agostinho e a interioridade


metafísica do ser humano. Anais da Sessão de Comunicação de Pesquisa da 4a Semana
de Integração Católica-Sociedade – Católica. Recife: FASA, 2006. p. 329-337. I CD-
ROM. Windows 3.1. ISBN 85-7084-099-3.

______.; MAIA, Tiago Macedo Bezerra. Ética e justiça social em Basílio Magno e João
Crisóstomo. Anais da Sessão de Comunicação de Pesquisa da 4a Semana de Integração
Católica-Sociedade – Católica. Recife: FASA, 2006. p. 455-462. I CD-ROM. Windows
3.1. ISBN 85-7084-099-3.

______. ; VIEIRA, Carlos Alberto Pinheiro. O declínio moral humano e suas


conseqüências existenciais: por uma análise existencial agostiniana. Anais
Eletrônicos das Sessões de Comunicações do II Simpósio Internacional de Teologia e
Ciências da Religião - UNICAP. Recife: FASA, 2007. p. 196-205. I CD-ROM. Windows
3.1. ISBN 85-78412-23-0.

______.; MOURA, Ocilaine Silva de. O eudemonismo agostinianao: uma reflexão para
o resgate de nossa espiritualidade. Anais Eletrônicos das Sessões de Comunicações do
II Simpósio Internacional de Teologia e Ciências da Religião - UNICAP. Recife: FASA,
2007. p. 674-684. I CD-ROM. Windows 3.1. ISBN 85-78412-23-0.

______.; BRANDÃO, Ricardo Evangelista. Bondade ontológica da natureza: a


concepção de bondade do cosmos em Santo Agostinho. Anais Eletrônicos das Sessões
de Comunicações do II Simpósio Internacional de Teologia e Ciências da Religião -
UNICAP. Recife: FASA, 2007. p. 713-726. I CD-ROM. Windows 3.1. ISBN 85-78412-23-
0.

______.; MOURA, Ocilaine Silva de. Levantar o véu, mais uma vez, da nossa
consciência: um estudo do pensamento ético-político de santo Agostinho e suas
possíveis contribuições para a contemporaneidade. Anais Eletrônicos da 9a Jornada
de Iniciação Científica da UNICAP. Recife: FASA, 2007. p. 656-661. I CD-ROM.
Windows 3.1. ISBN 85-70841-18-3.

______. ; BRANDÃO, Ricardo Evangelista. Ordem e perfeição: a filosofia da natureza


em Santo Agostinho. Anais Eletrônicos da 9a Jornada de Iniciação Científica da
UNICAP. Recife: FASA, 2007. p. 674-684. I CD-ROM. Windows 3.1. ISBN 85-70841-18-
3.

______. ; SANTOS, Jair Lima dos. A argumentação de Marsílio de Pádua contra a


Teoria da Plenitudo Potestatis na Idade Média. Anais Eletrônicos do XII Congreso de
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Filosofia Medieval Juan Duns Sscoto Buenos Aires: FEPAI, 2008. p. 166-177. I CD-ROM.
Windows 3.1. ISBN 978-950-9262-00-3.

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Agostinho. Anais Eletrônicos do XI Congreso Latino Americano de Filosofia Medieval.
Buenos Aires: FEPAI, 2008. p. 1-6. I CD-ROM. Windows 3.1. ISBN 978-950-9262-00-
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mal físico ao mal moral Anais Eletrônicos da 11a Jornada de Iniciação Científica da
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______. SANTOS, Jair Lima dos. A Formação do Conceito de Lei no Pensamento


Filosófico-Jurídico de Marsílio de Pádua. Anais Eletrônicos da 11a Jornada de
Iniciação Científica da UNICAP. Recife: FASA, 2009. p. 84. I CD-ROM. Windows 3.1.
ISSN 2175-4764

______. Dom Helder Câmara e o simbolismo sacerdotal: uma aproximação com os


Santos Padres da Igreja. Anais Eletrônicos do 2o Congresso ANPTECRE. Belo
Horizonte: PUC Minas, 2009. p. 13-26. I CD-ROM. Windows 3.1. ISSN 2175-9685.

______. Por uma estética em Santo Agostinho: apropriação e superação do


neoplatonismo. Anais Eletrônico – Resumos - do I Simpósio Ibero-Americano de Estudos
Neoplatônicos – Imagem e Silêncio. Natal: UFRN/Sociedade Ibero-Americana de
Estudos Medievais, 2009. p. 190-197. ISBN 978-85-7273-503-2.

______. O sacerdócio: uma aproximação entre Dom Helder Câmara e Santo


Agostinho. Anais Eletrônicos do III Simpósio Internacional de Teologia e Ciências da
Religião – UNICAP: Religiosidades populares e multiculturalismo: intolerâncias,
diálogos, interpretações. Recife: Universidade Católica de Pernambuco, 2010. p. 45-
56. ISSN 2178-0862.

______. O posicionamento de Santo Agostinho frente à máxima “extra Ecclesiam


nulla salus”. Anais Eletrônicos do III Simpósio Internacional de Teologia e Ciências da
Religião – UNICAP: Religiosidades populares e multiculturalismo: intolerâncias,
diálogos, interpretações. Recife: Universidade Católica de Pernambuco, 2010. p. 170-
179. ISSN 2178-0862.

______. SILVA, Leila Rúbia da Costa. O mal ético-moral: último e genuíno estágio da
resposta agostiniana do mal. Anais Eletrônicos da 12a Jornada de Iniciação Científica
da UNICAP. Recife: FASA, 2010. p. 37. I CD-ROM. Windows 3.1. ISSN 2175-4764
330 • Com Agostinho, e além dele

______. SANTOS, Jair Lima dos. A influência de Marsílio de Pádua na Formação do


Conceito de Soberania Popular na Modernidade. Anais Eletrônicos da 12a Jornada de
Iniciação Científica da UNICAP. Recife: FASA, 2010. p. 29. I CD-ROM. Windows 3.1.
ISSN 2175-4764

______. Diferença entre livre-arbítrio e liberdade em Santo Agostinho. Jornadas de


Filosofia Medieval – Ciclo 2012/Nacional - maio a novembro de 2012. Campina
Grande. Jornadas de Filosofia Medieval – Anais Eletrônicos - UEPB e Principium, CD-
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______. O papel psico-pedagógico da arte nas obras da teatróloga medieval Rosvita


de Gandershein. Jornadas de Filosofia Medieval – Ciclo 2012/Nacional – maio a
novembro de 2012. Campina Grande. Jornadas de Filosofia Medieval – Anais
Eletrônicos - UEPB e Principium, CD-ROM. v. 1, n. 1, 2012. p. 311-317. ISSN 2238-7889.

______.; MUNIZ, Luis Gustavo das Mercês. Evolução histórico-doutrinal do


problema do mal em Santo Agostinho. In: Jornadas de Filosofia Medieval – Ciclo
2012/Nacional – maio a novembro de 2012. Campina Grande. Jornadas de Filosofia
Medieval – Anais Eletrônicos - UEPB e Principium, CD-ROM. v. 1, n. 1, 2012. p. 148-157.
ISSN 2238-7889.

______. ; VIEIRA, Rosinaldo Ernesto. Santo Agostinho: a busca da interioridade pelos


caminhos da linguagem. In: Jornadas de Filosofia Medieval – Ciclo 2012/Nacional –
maio a novembro de 2012. Campina Grande. Jornadas de Filosofia Medieval – Anais
Eletrônicos - UEPB e Principium, CD-ROM. v. 1, n. 1, 2012. p. 158-168. ISSN 2238-7889.

______. ; SILVA FILHO, Paulo Vicente Gomes. Indivíduo, determinação e


indeterminação em Santo Tomás de Aquino. In: Jornadas de Filosofia Medieval –
Ciclo 2012/Nacional – maio a novembro de 2012. Campina Grande. Jornadas de
Filosofia Medieval – Anais Eletrônicos - UEPB e Principium, CD-ROM. v. 1, n. 1, 2012. p.
195-207. ISSN 2238-7889.

______. ; LIMA, Rodrigo José de. O conhecimento dos primeiros princípios da ciência
natural segundo Tomás de Aquino. In: Jornadas de Filosofia Medieval – Ciclo
2012/Nacional – maio a novembro de 2012. Campina Grande. Jornadas de Filosofia
Medieval – Anais Eletrônicos - UEPB e Principium, CD-ROM. v. 1, n. 1, 2012. p. 208-217.
ISSN 2238-7889.

______. Filosofia e felicidade - apropriação e superação agostiniana do


eudaimonismo grego-romano. In: SANTOS, Jorge Augusto da Silva ; COSTA, Ricardo
da Costa (orgs.). Anais do XIII Congresso da Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval:
Publicações • 331

Metafísica, Arte e Religião na Idade Média. Vitória: DLL/UFES, 2013, p. 391-406. ISBN:
978-85-61857-13-4.

______. BRANDÃO, Ricardo Evangelista. O número na ordem cósmica de santo


Agostinho. In: SANTOS, Jorge Augusto da Silva ; COSTA, Ricardo da Costa (orgs.).
Anais do XIII Congresso da Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval:
Metafísica, Arte e Religião na Idade Média. Vitória: DLL/UFES, 2013, p. 595-614. ISBN:
978-85-61857-13-4.

______. A criação e suas formas arquétipas eternas na cosmogênesis agostiniana.


In: LÉRTORA MENDOZA, Celina A. ; JAKUBECKI, Natalia ; FERNÁNDEZ WALKER,
Gustavo (orgs.). Filosofía medieval: continuidad y rupturas: XIV Congreso
Latinoamericano de Filosofía Medieval - Actas I. Buenos Aires : FEPAI, 2013, p. 421-
430 ISBN 978-950-9262-66-9 (Actas em PDF)

______. Diferença entre livre-arbítrio e liberdade em Santo Agostinho. In: Jornadas


de Filosofia Medieval – Ciclo 2012/Nacional - maio a novembro de 2012. Campina
Grande. Jornadas de Filosofia Medieval – Anais Eletrônicos - UEPB e Principium, CD-
ROM. v. 1, n. 1, 2012. p. 6-15. ISSN 2238-7889. (Anais em PDF).

______.; MUNIZ, Luis Gustavo das Mercês. Evolução histórico-doutrinal do


problema do mal em Santo Agostinho. In: Jornadas de Filosofia Medieval – Ciclo
2012/Nacional – maio a novembro de 2012. Campina Grande. Jornadas de Filosofia
Medieval – Anais Eletrônicos - UEPB e Principium, CD-ROM. v. 1, n. 1, 2012. p. 148-157.
ISSN 2238-7889. (Anais em PDF).

______. ; VIEIRA, Rosinaldo Ernesto. Santo Agostinho: a busca da interioridade pelos


caminhos da linguagem. In: Jornadas de Filosofia Medieval – Ciclo 2012/Nacional –
maio a novembro de 2012. Campina Grande. Jornadas de Filosofia Medieval – Anais
Eletrônicos - UEPB e Principium, CD-ROM. v. 1, n. 1, 2012. p. 158-168. ISSN 2238-7889.
(Anais em PDF).

______. Livre-arbítrio e liberdade em Santo Agostinho. In: CARVALHO, Marcelo ;


FIGUEIREDO, Vinicius (orgs). Filosofia antiga e medieval. Curitiba: ANPOF, 2013, p.
377-388 (Livro em PDF)

______. Filosofia e felicidade: apropriação e superação agostiniana do


eudaimonismo grego-romano. In: SANTOS, Jorge Augusto da Silva ; COSTA, Ricardo
da (orgs.). Anais do XIII Congresso da Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval:
Metafísica, Arte e Religião na Idade Média. Vitória: DLL/UFES, 2013, p. 391-406 (Anais
em PDF).
332 • Com Agostinho, e além dele

______. BRANDÃO, Ricardo Evangelista. O número da ordem cósmica em Santo


Agostinho. In: SANTOS, Jorge Augusto da Silva ; COSTA, Ricardo da (orgs.). Anais do
XIII Congresso da Sociedade Brasileira de Filosofia Medieval: Metafísica, Arte e Religião
na Idade Média. Vitória: DLL/UFES, 2013, p. 595-614 (Anais em PDF).

7 ARTIGOS EM REVISTAS E/OU JORNAIS

COSTA. Marcos Roberto Nunes. Pressupostos filosófico-epistemológicos da avaliação


educacional. Cadernos do CTCH - UNICAP. Recife, n. 1, p. 21-34.1993. Anual.

______. O amor, princípio da moral interior em Santo Agostinho. Perspectiva


Filosófica - UFPE, Recife, vol. IV, n. 9, p.117-128, jul./dez, 1996. Semestral. ISSN 0104-
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