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(Mia Couto)
PUBLISHED ON : FEVEREIRO 25, 2013 BY LUCAS DESCHAIN
Conforme Mia Couto nos esclarece ao início do livro, a história foi inspirada
numa viagem que ele empreendeu a uma região que estava sendo assolada por
ataques de leões. Por conta disso é que, também na trama, o palco dos
acontecimentos é a aldeia Kulumani, numa região do Moçambique que sofre do
mesmo mal. E, tendo em vista a preocupação do autor em retratar esses
eventos, é que a narração cabe a dois personagens: Arcanjo Baleiro, o caçador
contratado para dar cabo dos leões; e Mariamar, uma moça da aldeia.
Curiosamente, Mia Couto pouca participação concede ao personagem escritor,
Gustavo Regalo, cujo papel é brevíssimo e totalmente coadjuvante.
O título do livro não é A confissão da leoa à toa: trata-se da fêmea e não do
célebre “rei dos animais”. Mia Couto dá voz às mulheres de Kulumani para contar
a história de suas vidas de um ponto de vista não tão comum: o delas próprias. O
autor faz isso com uma prosa sensível, que valoriza o potencial simbólico das
cenas e da utilização dos personagens e das situações. Podemos aludir, por
exemplo, ao sonho de Mariamar, no qual ela tenta fugir da aldeia – e da tirania
masculina – por meio do rio, encontrando a leoa a beber na sua margem. A água
se mancha de vermelho, sangue cuja procedência é propositalmente
desconhecida: trata-se do sangue das vítimas da leoa que bebe ou da
transformação de Mariamar em mulher? Ou ambas? A rica confluência de mitos,
sonhos e realidade é o recurso de uma expressividade tão política quanto
literária.
Pela epígrafe, percebemos o compromisso de Mia Couto em recriar uma prosa poética que
estabeleça elos com a vivência de seu país. Em diferentes entrevistas, o escritor reafirma a
necessidade de materializar, nas páginas dos seus livros, as histórias individuais e coletivas,
que ecoam por suas andanças em Moçambique. Tal fato é percebido, na explicação inicial, em
A confissão da leoa:
Em 2008, a empresa em que trabalho enviou quinze jovens para atuaremcomo oficiais
ambientais de campo durante a abertura de linhas de prospeçãosísmica em Cabo Delgado, no
Norte de Moçambique. Na mesma altura e namesma região, começaram a ocorrer ataques de
leões a pessoas. Em poucas semanas, o número de ataques fatais atingiu mais de uma dezena.
(...)Sugerimos à companhia petrolífera que tomasse em suas mãos a superaçãodefinitiva dessa
ameaça: a liquidação dos leões comedores de pessoas. Doiscaçadores experientes foram
contratados e deslocaram-se de Maputo para aVila de Palma, povoação onde se centravam os
ataques de leões. (...)Vivi esta situação muito de perto. Frequentes visitas que fiz ao local onde
decorria este drama sugeriam-me a história que aqui relato, inspirada emfactos e personagens
reais.
(COUTO, 2012, p. 7- 8
O romance A Confissão da leoa (2012), de Mia Couto, discorre sobre ataques de leões
que aterrorizam Kulumani, uma aldeia moçambicana, os quais têm vitimado,
principalmente, mulheres. No entanto, a narrativa não é uma história de caçadas, uma vez
que o autor utiliza os leões como metáfora para denunciar os discursos de poder que
regem aquela sociedade e que se refletem, sobretudo, na vida das mulheres. Violência,
amor, silêncio, resistência, submissão, luta, invisibilidade, subversão são alguns dos
elementos que constituem as personagens femininas desta obra, personagens que nos
levam a refletir sobre a realidade de muitas mulheres africanas. Muitas delas têm suas
vidas marcadas pela opressão, pela violência inerente ao sistema patriarcal, responsável
por uma série de mecanismos que inferiorizam as mulheres e violentam seus corpos. A
partir dos pressupostos da crítica feminista e de obras como Dicionário de Crítica
Feminista (2005), de Ana Gabriela Macedo e Ana Luísa Amaral, Um amor conquistado: o
mito do amor materno (1984), de Elizabeth Badinter, Eu, mulher (2013), de Paulina
Chiziane, Teoria Feminista e as Filosofias do Homem (1995), de Andrea Nye entre outros,
este trabalho discute o patriarcalismo e a construção das personagens do romance e
também como se configuram dentro desse sistema. A leitura, a partir de pressupostos
teóricos da crítica literária feminista, possibilita a análise e a investigação do discurso
patriarcal, cuja universalidade e perpetuação através dos tempos fazem com que este se
imponha como natural. O romance de Mia Couto utiliza a história da caçada aos leões
como alegoria para denunciar o verdadeiro assassino das mulheres de Kulumani: o
patriarcalismo.
"Escrever é perigosa vaidade. Dá medo aos outros".
(A Confissão da Leoa, de Mia Couto, página 88)
Certa vez ouvi um crítico literário dizendo que a África de Mia Couto é inventada e
quem vai a sua procura se frusta por não encontrá-la. Se ele estava certo, não sei;
contudo, ao ler A Confissão da Leoa, percebi que existe uma África cheia de mistério e
magia dentro de todos nós, basta que queiramos descobri-la.
A narrativa em primeira pessoa é alternada entre dois personagens: Baleiro, que tem
uma perspectiva do homem que veio da cidade, ainda que preserve de uma forma ou
de outra suas origens, e Mariamar, uma das residentes da aldeia. É justamente nesta
alternância de falas e pontos de vista que os leitores são conduzidos pelos fatos e, ao
mesmo tempo, levados a sérias provocações relativas ao direito de voz, ao papel das
tradições e das mulheres na sociedade.
Embora os assuntos intrínsecos sejam fortes e duros, Mia Couto mantém sua forma
doce, poética e carregada de um realismo fantástico que nos acalenta o coração. A
metalinguagem também é um dos recursos extremamente bem empregado que dá
um toque de encantamento à obra.
BIOGRAFIA DO AUTOR
António Emílio Leite Couto, conhecido como Mia Couto, nasceu em 5 de julho de 1955 na
cidade de Beira, província de Sofala, em Moçambique. Em 1971, ao mudar-se para a cidade
Lourenço Marques, o então estudante de medicina entra em contato com a ideologia da
FRELIMO, que passa a seguir até o período pós-independência. Abandona o curso e começa a
escrever em jornais. Seu primeiro livro, Raiz de orvalho, data de 1983. Forma-se em biologia.
Trabalha como biólogo e escritor. Tem diversas obras publicadas de poesia, contos, crônicas,
romances, ensaios. Seus livros foram publicados em mais de 20 países, sendo traduzidos para
várias 9 línguas. O romance Terra Sonâmbula é considerado um dos dez melhores livros
africanos do século XX. É ganhador de diversos prêmios literários, entre eles o Prêmio Camões
2013, o mais prestigioso da língua portuguesa. É membro correspondente da Academia
Brasileira de Letras. De maneira geral, o autor retrata em sua obra Moçambique, buscando
uma identidade ainda em construção. É recorrente a representação da história e da realidade
do país, com seus mitos, lendas, a criatividade no uso da linguagem, no uso de uma prosa
poética. A situação da mulher na África é fortemente relacionada à cultura, que
tradicionalmente trata-a como inferior, deixando-a subjugada. Por isso, para entender melhor
sua posição, é imprescindível perceber seu papel ao longo da história, para ver como o
presente se relaciona com o passado.
https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/95001
Na sua mais recente obra, o escritor moçambicano Mia Couto parte de uma história real e com
consequências dramáticas, levando-nos numa viagem de reflexão e observação sobre as
condições extremas em que estas pessoas vivem no seu quotidiano, o impacto que a guerra
colonial teve e os efeitos que continua a exercer, a forma como a cultura e tradição deste
povo, marcadas por um carácter supersticioso, condiciona as suas decisões e acções,
dominando a forma como interpretam o que os rodeia.
Em «A Confissão da Leoa» temos acesso a dois pontos de vista: Mariamar e Baleiro, que se
revezam e complementam no relato da história central, acrescentando os seus receios
pessoais, motivos e angústias, dando-nos também a conhecer episódios do seu passado.
Tudo isto é realizado com e manobrado de forma magnífica e muito inteligente por Mia Couto,
traduzindo-se num livro bonito e simples que, embora por vezes confuso, pouco óbvio e
surrealista, guarda em si muita sabedoria camuflada.
Todo o livro segue de forma muito intrigante, prendendo o interesse do leitor. Penso, contudo,
que o fim está fracamente consolidado e ligeiramente apressado. Também a linguagem de Mia
nos troca por vezes o passo, quebrando o ritmo da leitura, mas nenhum destes pontos menos
positivos chega para tirar as mais do que merecidas cinco estrelas a este livro.