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Marilene Vieira
Primavera 2016
Editora Urutau
1ª edição
www.editoraurutau.com.br
editores
ana elisa de arruda penteado
tiago fabris rendelli
wladimir vaz
— Chacal
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Se eu pudesse te dizer
Havia um homem, uma mulher e um cachorro
No outro dia, um homem, uma mulher e um cachorro
No outro, um homem, uma mulher e um cachorro
Em outra manhã, o homem e o cachorro
Em outra, o homem e o cachorro
Em outra, o homem e o cachorro
Procurei pela mulher e me disseram que ela tinha falecido e
ia ser celebrada a missa de sétimo dia, o aviso estava fixado no
elevador, morava no primeiro andar e nunca pegava elevador.
Não conhecia a mulher
Todos os dias lhe avistava e dava–lhe os cumprimentos de bom
dia, e não a avistar mais provocou em mim uma curiosidade que
eu jamais tive, nunca falei com aquela mulher.
Aquela mulher provocou em mim uma tristeza imensa
Senti a perda existencial dela
Hoje só cumprimento o homem e o cachorro
Na madrugada em que ela morreu, encontrava–me dormindo
a cinco andares abaixo, iria com o maior prazer socorrê–la, eu
gostaria de salvar aquela mulher se assim qualquer manipulação
possível me emprestasse o poder da salvação.
O que me resta é ouvir o latido do cachorro
e saber da falta da mulher
Senti a perda existencial dela
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No fim da estrada
Uma hora falha
Uma hora morta
Um dia sem gestos
As pessoas sem gestos
Tudo pálido
Tudo na escada rolante
Meu caminhar obscurece a sombra
Tudo escuro na escada rolante
Aqui na eternidade tudo é chato
Disse o meu amigo Saroldi
Aqui na Cosmonópolis tudo dois, dói amigo!
A vida está mais curta ainda
Meu amigo!
E eu arregalo os meus olhos
E ainda brigo com minha mãe
Ela me dá sugestões de cabelos, de cremes para o corpo,
para a face
Ela nem percebe
Que meu joelho direito foi amputado
E meu nariz forjado
As mães realmente esquecem da gente
É no cálice humano que me satisfaço
Mas como explicar isso para uma mãe?
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A Ponte
Aqui calo–me como um passarinho com dor
Calo–me como um cachorro que já não vê mais jeito para sua
vida
Perambulando nestas estradas úmidas e não sabendo que sinal
seguir
Afinal em que justo é o mundo?
Não é!
Lá de cima gostaria só de festejar com minhas amigas, vestir
roxo e beber um bom vinho nos próximos dias que se sucedem
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Um sopro me termina
Preciso pôr ternura
Encontros ternura
Esfrio minha mente no mar
Já não sou mais carne, ossos, obstáculos
A víspora suplantou as costeiras
Não quero separar a ternura
Se indiano, peruano, brasileiro, angolano
Que vos amo
Lenços vermelhos
Face de Oxóssi
Coração peralta
Criança vermelha pálida
As bachianas de Villa–Lobos
A abstração
Desejo no futuro
Produzir minhas abstrações diz Julieny
É poesia menina!
É tempo de rasgar os jornais
Já não dizem mais
Um tiro na mochila do menino de oito anos
Cobriu–o de sangue de Bangu, Bangladesch, Osasco
A poesia é para dizer
Procurar ternura
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Beleza
Schumann nesta noite de natal
Querelle para satisfazer algo que ainda não sou
Fassbinder é o homem que inspirou–me nesse mar
Corri de encontro a tudo no mar do Arpoador
Sangrei tive náusea dos tempos
Todo o poeta escreve sangue
Não escreve se termina
Aos sessenta eu deitarei numa cama e ainda gritarei foda–se
essa porra que a pariu
Secou a ferida e a casca eu tiro a cada tempo
Quero vida!
Aos sessenta direi meus versos e suarei frio como quem se
apaixona
Cuidado rapaz!
Tenho uma tradição e pacto com a vida
Os andarilhos que me levaram até o altar da santíssima trindade
e circunscreveram neste peito amargo
Onde o sol não gerou mais filho
Onde o sol secou as vestes
Onde o sol secou o ar
Circunscreveram o amor
Circunscreveram no peito do mundo, os serenos, os rios
que desembocam nas cordilheiras, as palavras boas e ruins,
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Querida!
Minha Gavita, dei–te os dias cegos
De uma fonte seca
Mas te dei o amor de um homem teu
Os semblantes azuis dos nossos sonhos
Da nossa cama
Do frescor do passeio
O mestre Valentim nos sorrindo até a Guanabara
De mãos dadas minha Gavita
Eu ainda te amo
As mazelas que plantaram em nossos cânticos
Não acobertou nossos dias
E vivemos no sangue da miséria
Mas descobrimos o amor
A febre castrou meus pensamentos
E pedi socorro aos pedestres
E a voz anulou–se
E o dragão do mar me socorreu e eu pude
Dizer meus versos na Praça da República
E hoje, querida, quando ainda vago por lá
Vejo você de branco, sorrindo–me como quem me ama
Gavita!
Minha querida!
Fomos empalhados e amarrados nas estacas deste mundo tosco
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Copacabana
A morte da menina foi estranha
Desde o início ela vaginava nas ruas de Copacabana
Para fazer de elástica a vida
Ela resolveu ser girl machine
De um camicase ao norte sul de Copacabana
Supurar em pêssegos maduros ao invés de ouvir conversas de
vizinhos chatos
Abortou um saco de pancadas da terra natal
E dizia eu sou girl
Eu sou girl
Virgem de um marido vazio
Vago pelo destino
Um corpo foi encontrado à beira–mar
Ela sempre sonhou em morrer no mar
Mas antes queria ser o mar
E quando ela conquistasse o mar
Ele a levaria numa manhã de quarta–feira
Sob um sótão de arapucas
Com o recado do mar de Lanes
Terra à vista!
Terra à vista!
Meu bem
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