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Cosmonópolis.

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Marilene Vieira

nasceu em 23 de fevereiro de 1967,


na cidade de Caxias do Sul (RS), ra-
dicada no Rio de Janeiro (RJ).
Formou–se em Enfermagem e Obs-
tetrícia e em Artes Visuais. Atua
como professora de Artes no muni-
cípio e estado do Rio de Janeiro.
Publicou dois livros de poemas,
independentes, A Poesia Perdida
(1997) e Dados de Identificação
(1996).
Estudou teatro em Porto Alegre e
no Rio de Janeiro. Participou do
grupo Verso e Companhia, de 1999
a 2003, e do grupo de performances
Estudos de Concertos Para Corpo e
Alma, de 2002 a 2005, no Rio de Ja-
neiro.
Apresenta–se esporadicamente in-
terpretando e performando seus
poemas no evento CEP 20.000, co-
mandado pelo poeta Chacal, no Rio
de Janeiro.

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Cosmonópolis:
O que sabemos nós
das histórias dos outros?

Marilene Vieira

Primavera 2016
Editora Urutau
1ª edição

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editora urutau ltda
rua inocêncio de oliveira, 411
jardim do lago 12.914-570
bragança paulista-sp

Tel. [ 55 11] 94859 2426


contato@editoraurutau.com.br

www.editoraurutau.com.br

editores
ana elisa de arruda penteado
tiago fabris rendelli
wladimir vaz

revisão \\ beatriz regina guimarães barboza


capa \\ wladimir vaz

© Marilene Vieira, 2016.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)


Vagner Rodolfo crb-8/9410
Dados Internacionais de Catalogação na
Vieira, Marilene
Publicação (CIP)19
V657c Cosmonópolis: o que sabemos nós das histórias
dos outros? / Marilene Vieira— Bragança Paulista-
Guimarães, Beatriz, 1994-
SP: Editora Urutau, 2016. 58 p.; 14x19,5 cm
G963q Quartos esvaziados / Beatriz Guimarães. —
Bragança Paulista-SP : Editora Urutau, 2015. 66 p.;
ISBN: 978-85-69433-26-2
14x19,5 cm
1. Literatura brasileira. 2. Poesia. 3. Poema. I. Título
ISBN: 978-85-69433-02-6
CDD: B869.1
1. Poesia brasileira. 2. Poesia contemporânea. 3.
CDU: 82-1
Literatura brasileira. I. Guimarães, Beatriz. 1994-.
2016-332
II. Titulo.
Índice para catálogo sistemático:
CDD: B869.1
1. Literatura brasileira : Poema 869.1
CDU: 82-1/9
2. Literatura : Poesia, Poemas 82-1

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sumário

[7] Prefácio por Chacal

[9] Sobre o amor


[12] Sobre os outros
[13] O que sinto hoje 29.04.2015
[15] Sara
[18] Sobre a rua
[21] Sobre o socorro
[24] Marinho
[26] Vergonha
[28] Cosmonópolis
[30] Sobre a vida
[31] Dinorah
[32] Marias sem graças a deus
[34] O sinal e as calçadas
[36] Ternura
[37] Tempo
[38] Ária Maria Bethânia
[40] O que sabemos nós das histórias dos outros?,
[42] Luta coletiva
[43] Nomes
[44] Sobre a vida
[47] Lis! Quero viver
[48] São Paulo acordou sem horário
[50] O amor mudou–se
[51] Cruz e Souza, do Desterro a Encantado uma alma
sonar
[53] Cai e mata dois
[54] Vaginava nas ruas de Copacabana,
[55] Galerias de Copacabana
[56] A criança luz néon

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“...pensar em voz alta na plena solidão à beira da loucura, ser
de uma cidade, de uma grande cidade, ser do último momento
de tempo na maior cidade do mundo e não sentir-se parte dela,
é tornar-se em si próprio uma cidade, um mundo de pedra
morta, de luz estéril, de movimento ininteligível, de impon-
deráveis e incalculáveis, da secreta perfeição de tudo quanto
é menos. Andar com dinheiro através da multidão noturna,
protegido pelo dinheiro, tranquilizado pelo dinheiro, entorpe-
cido pelo dinheiro, sendo a própria multidão dinheiro, o hálito
dinheiro, sem que haja em parte alguma objeto que não seja
dinheiro, dinheiro, dinheiro em toda parte e ainda assim in-
suficiente, e depois nada de dinheiro, pouco dinheiro, menos
dinheiro ou mais dinheiro, mas dinheiro, sempre dinheiro, e
se você tem dinheiro ou se você não tem dinheiro é o dinheiro
que importa e dinheiro faz dinheiro, mas que faz o dinheiro
fazer dinheiro?”

— Henry Miller [Trópico de Capricórnio]

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Prefácio

Marilene Vieira é um ser possuído pela palavra. Ela enga-


ta, pega o fluxo e vai por labirintos que só ela sabe. Marile-
ne, quando entra no palco de CEP 20.000, é o bicho. Tem
uma performance muito própria, com seu fraseado livre,
sem freio, sem controle. Ela tem o domínio e vai, fazendo
estrago nas hostes da sensatez e do bom senso.
Não sei exatamente quando ela irrompeu pela primeira
vez. Mas ela veio em uma segunda, em uma terceira e con-
quistou a galera.
Agora suas palavras viajam pelo espaço da página em
Cosmonópolis. Seu olhar para um mundo torto, um mun-
do agônico. O prazer de ler sua sintaxe desaforada, suas
sinapses improváveis, agora você tem ao alcance da mão
e do olho. Marilene é das raras. Aproveite. Leia Marilene
sem moderação.

— Chacal

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Cosmonópolis

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Sobre o amor

A tua voz naquele dia parecia trêmula


Mas eu nunca imaginei que não pudesse mais te dar um abraço
Enquanto ainda respiravas, enquanto ainda me contavas do leve
engasgo, da leve tosse
Tudo era leve para ti
Tu eras bonito como os peixes de São Pedro que colocavas na
mesa da tua família
Eu não era da tua família, me disseste que queria ter–me como
filha além dos teus
Pensei! A existência se completa com os amigos e com os
animais
Mas aí esse roubo que nos esfacela a alma, acontece nos dias
nublados, nos dias de sol, nos dias de tempestades
Esse roubo de ti da gente
Essa marca registrada de mar que tu deixaste no coração de
cada amigo seu
Faz com que esse teu amigo as vezes já querendo partir, viva
novamente, pois se lembra de tão boa que foi a vida ao teu lado,
quantas palavras de um homem sábio, um homem sem cor, que
chovia por todos os lados, que dançava tango com sua querida
mulher, e ela aparecia em todos os ensaios e lançava seu rosto
meigo de quem amava todas as pessoas que estivessem próximas
a ti
Meu sapato descolou até a ribanceira
E a luz esclareceu toda a névoa que cobria os próximos anos

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Lavar teu corpo era um ritual de sol na mente, porque o sol é a
coisa mais linda que acho, a segunda coisa mais linda que acho é
o mar, lavar teu corpo era deitar no mar e respirar, a terceira coisa
mais linda que acho são os animais, lavar teu corpo era dançar
junto com os animais
Caramba! Querido amigo,
Tu praticavas a procedência das palavras, para ti o humano era a
tarefa do dia–a–dia
Para ti a palavra viva a vida
Arthur Bispo do Rosário marcou o vínculo que nunca se apagará
Mesmo que em moradas diferentes, passamos por aqui
Pelo sentir da terra
Pela justaposição de quem pratica o que ama
Pelos semblantes dos que nos visitaram
Pelo disco torto e as palavras de encanto que se diziam nos
ensaios
Ensaiar com amigos é perceber que existe deus
Pela justaposição de algo transformado
Nunca mais sairíamos de lá como entramos
Aconteceu que nossa mente era visitada todos os dias pela poesia
E a embarcação estava pronta para o novo
Iríamos recomeçar
A decisão de sermos para sempre poetas
E sem passaporte para documento nenhum
Seríamos nada menos do que flores que se lançam seja a hora
que for de madrugada
Na espera do seu filho
No beijo do seu amante
No beijo do seu amigo

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Era clara a busca do homem corpo presente, num mundo
desolado pela miséria
Por que fazer poesia quando já se matava tanta gente?
Viva a poesia de rua, dos encontros da vida
Mesmo quem morre no instante já é poesia
Afogado nas suas histórias
Poeta para a morte
Sobre o amor
Te digo
que te amo
sobre o amor te digo que te amo
Sobre o amor________________________________________
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Sobre os outros

E que seja ele forte no amanhecer daquele dia


Várias vezes ao passear na praia de Copacabana
Eu indaguei que não sabia da sua história
O que sabemos nós das histórias dos outros?
O que os outros sabem de nossas histórias?
O que sabemos nós dos corpos falecidos daquelas crianças
Que nem puderam pedir socorro
Porque dormindo estavam
Se deus existe
Eu faleço
A vértebra desse mar está me sufocando, eu não conheço as
coisas assim como não conheço a deus
Talvez eu possa fazer arte no coração de uma criança
É engraçado que na minha infância sempre aparecia um
cachorro louco
Hoje não há mais cachorros loucos
O que será que aconteceu com os cachorros loucos?
O que será que aconteceu com esta cidade?

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O que sinto hoje 29.04.2015

Sob meu silêncio, a bomba


Os pedaços de Tiradentes soltos no espaço
A Celta esbelta com dor nas entranhas
Os homens a seduzem
Tudo se distrai
A casa cai
O lume cega a terra
Adstringi o ar e o bem
A casa cai
Os pássaros atravessam o mundo
A escolta não é de ninguém
É necessário ser pássaro
Não quero me distrair
Relíquias do espaço e tempo
Os pássaros abrem suas asas também na escuridão
O corvo atravessa a cândida cena
Do disfarce
Da fúria dos que possuem o poder
Talvez os cachorros já estejam mortos
E eu apodrecida num canto
A geladeira aberta
Escorrendo a última substância líquida
O sinal fechado

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As bestas adestrando as palavras
Espancando os homens que não as concordarem
Ouve–se detrás da porta
Que não há mais onde pisar
Cai–se no vazio
As trevas
Blake subiu até o mais alto cume para dizer
Que o inferno é aqui
Sob a escuridão, a bomba

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Sara

Abri–me como em um salão


Coloquei lenços vermelhos atados ao meu coração
E quis dançar nua com as palmas em rotação
Choveu recados em meu coração
Na hora da partida eu recolhi minha pele espalhada pelo chão
Já não existia
O que existia em mim
Não era firme
Nunca fui como as estrelas e os animais que se cumprem e se
bastam
Que procuram o silêncio
Que entendem os ruídos
Que vagueiam na perfeição
Sim! Sou pústula de um céu sem fim
A pedra é falsa
O soldado é armado na encruzilhada
A prisão é à vista
Sem desconto de mercadoria humana
Com direito a selfie de embaixadinhas
Essa coisa chata destes dias
O olho esquerdo fecha para a vida
A testa é pálida
E as vertigens são intensas
Outro dia era Gaza

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Agora já não existe mais
Tudo se esquece no cartão postal
Aquela moça me fez chorar
Facas foram encravadas na língua de seu corpo
Ela desmaiou e voltou e o mundo a escolheu
O choro dela foi por resistência
Resistência ao ser divino que entorpece
Pediu clemência
O coração exaltou essa menina tórrida e elevou–a à terra das
margens da criação
Porque lá se fazem deuses e tem sopa na comunhão
A falácia dos povos ela conheceu
Ela ingeriu dúzias de perfumes macabros feitos pelos homens
que disseram ter cuidado da lavoura
Chamou os orixás
Foram devastados os povos
Essa Sara não é da Bíblia
Mas dos tempos modernos
Onde se vê que o homem fracassou
Que se dá valor para casas, para títulos, que se tem depressão
à beça, que se coloca prótese peniana, que se masturba na veia,
que se reúne e se simula acontecimentos
Essa Sara se despe para a vida
Ela é raio e cicatriz
Seu corpo é vulto e devoção
Nesse pedaço de mundo todo erradão
Essa menina me fez chorar
Com seus piercings, suas asas, sua dor
Senti o espaço etéreo, a mancha, a serpente da humanidade

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Agora talvez eu não tenha mais condições de ter amigos
Um dia se basta ao nada, e se esquece que se fala, e a cabeça faz
um refrão, de como conseguir uma casa financiada para a minha
mãe, e a velha parte, e eu parto a velha, se eu repartir tudo o
que sobrou de mim velha e minha mãe velha, não dá nem para
comprar uma pá de cozinha
Não sei por que eu parti da Sara que me fez chorar
Para a casa financiada e a pá de cozinha
Isso não é poesia
É poesia!
Já se faz poesia, a Sara, a casa financiada, a pá de cozinha
Aquela menina me fez chorar
Sara Panamby

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Sobre a rua

A orelha decepada num orelhão no Leblon


A escuridão da atmosfera
A estátua com óculos escuros
Às cinco e trinta da manhã e caí no mirante sem vida
Eu queria fugir para qualquer canto que me desse liberdade
Porque me determinaram escravo da minha própria vida
E nem me perguntaram se eu queria fígado, carne de segunda
ou bucho
Determinaram a suculência
Nem me deixaram ir ao mar
Ir à feira
Para conhecer as virtudes da cidade maravilhosa
De manhã cedo avistei um amigo do meu amigo
E não quis chamá-lo, ele era o amigo do meu amigo e não
amigo meu
Eu me encostei no paralelepípedo da alma e não quis calar
Mãe! Nessas horas não se tem!
Mãe! Só o quer bonito, criando arte, criando filhos e produzindo
bens
Eu vim para essa cidade com dedos a crescer
Só possuía metade de tudo
Do coração faltava o restante das artérias e o mecanismo que
bombeia o sangue para a grande circulação não era inteiro
Do tórax a respiração era fanhosa e discutia toda a besteira, era

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adiantada para ignorâncias, os brônquios transmitiam ficção, e
não sabiam o que era exposição e realidade
Se pode ser a cada tempo vivendo em cidades de cimento bélico
na corda do enforcado
Toda a criança à meia–noite recebe o enforcado, ela tem medo e
talvez nem queira ir para a escola amanhã, a professora lembra o
enforcado
Não existe mais educação neste país! Diz a professora enforcada
Toda a alma não se arrepende de graças e nem de graça
Toda a alma quer o abate
Como se explica?
O homicídio doloso e a absolvição do réu anos depois como
ídolo nacional
Por que é humano matar?
Não matarás nem que penses nisso, sanguinária já é tua
existência
O abate é de graça
O abate são dos que não tem valor nenhum para a sociedade
O abate do extermínio
Todos de uma só cor, de um só cabelo, de um só pensamento
Abater significa desfazer o humano que eles acham que não é
humano
É confuso descer o morro
Meu amigo técnico de enfermagem, diz não querer mais morar
aqui
Quer ver seu filho crescer
Quer viajar até o Maranhão
E não quer mais viver aqui
Tem fogo cortando os sonhos e a alma da gente

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Tem fogo serrado no café da manhã
E na noite de amor
Aqui não dá mais
O cabo de polícia me disse: por que sobe correndo? Se não deve
nada, por que sobe correndo?
Eu comecei a subir devagar
Entende agora? Querida

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Sobre o socorro

Se eu pudesse te dizer
Havia um homem, uma mulher e um cachorro
No outro dia, um homem, uma mulher e um cachorro
No outro, um homem, uma mulher e um cachorro
Em outra manhã, o homem e o cachorro
Em outra, o homem e o cachorro
Em outra, o homem e o cachorro
Procurei pela mulher e me disseram que ela tinha falecido e
ia ser celebrada a missa de sétimo dia, o aviso estava fixado no
elevador, morava no primeiro andar e nunca pegava elevador.
Não conhecia a mulher
Todos os dias lhe avistava e dava–lhe os cumprimentos de bom
dia, e não a avistar mais provocou em mim uma curiosidade que
eu jamais tive, nunca falei com aquela mulher.
Aquela mulher provocou em mim uma tristeza imensa
Senti a perda existencial dela
Hoje só cumprimento o homem e o cachorro
Na madrugada em que ela morreu, encontrava–me dormindo
a cinco andares abaixo, iria com o maior prazer socorrê–la, eu
gostaria de salvar aquela mulher se assim qualquer manipulação
possível me emprestasse o poder da salvação.
O que me resta é ouvir o latido do cachorro
e saber da falta da mulher
Senti a perda existencial dela

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Hoje estou com quarenta e tantos anos,
quase cinquentona e meu sexo não faliu,
como é ruim o meu francês.
Foda–se
É importante teres um idioma que domines!
Digo que é mesmo!
Em mil novecentos e oitenta e quatro estudava no colégio Fayal
em Itajaí, Santa Catarina
Em um determinado dia chegou um senhor na sala de aula para
oferecer um curso de agulhas mágicas
Quadros que bordava com as agulhas mágicas
Não achei bonito, mas fiz o curso
A professora de biologia, depois que o senhor saiu da sala, disse
que um dia poderíamos precisar viver desta função
Já me imaginava vendendo quadros de agulhas mágicas nas
praças, para poder sobreviver
Dez anos depois encontro a professora de biologia firme na
ideologia do medo
Fiz amizade com Aurora, a mineira, ela namorava três rapazes
ao mesmo tempo, lia Drummond, Cecília Meireles
Meus escritos e Aurora
Nunca ouvi a maioria dos meus professores, a maioria dos dias
não gesticulava uma palavra durante as horas escolares
O Opus 57, quando meu professor de física falava de sua banda
eu era toda ouvidos
Quinze anos atrás soube que ele faleceu em uma viagem a
caminho de São Paulo, onde iria receber um prêmio referente ao
seu trabalho artístico
Carlinhos!

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A lembrança dele e de sua mulher, minha teacher de inglês
As pedras rolam e rolam
Também adoro Rolling Stones me dizia a teacher
Hoje não tenho pedras no caminho
Tenho caminho a percorrer fazendo
Abril aos deuses
Setembro para viver
Outubro para o amor
Logo mais forte e pronta para tudo o que vier
Logo mais te aviso da minha vida
E te espero na minha vida

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Marinho

Falou com a sua mãe como se fosse a última vez


Ela também não sabia
Ela achava que nem valia
A última refeição foi carne seca
Tempero rosa flor
Inscrição do amor a toalha de mesa
Pratos verde musgo e garfos da bisavó
Achou a mãe bonito flores brancas, num dia de chuva marinho
Não existe mar aqui e nem chuva
Existe seca e hoje chove
Vez ou outra a mãe dizia: vamos ainda morar no pontal
Abrir a porta da casa na areia
E aí a gente corre para secar as banhas
E bebe água para lavar a alma e a íris
Falou com sua mãe como se fosse a última vez
Não queria mais resposta para nada
Tudo avesso num espelho marinho
O amor é marinho
As luzes da cidade são marinho
Ao acordar eu quero o vento sul cobrindo meus músculos
marinho
O olho do boi é luz marinho
Minha mãe é marinho
As patas da minha gata preta são marinho

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Os dentes são marinho
A última refeição foi carne seca
O livro do Graciliano na ponta direita da mesa
Minha mãe nunca mais o tirou de lá
Só pensou que quando morasse no pontal
Ao lado direito da mesa grande, uma mesinha só de livros para
se olhar
Só de livros marinho
O nome do coração é marinho
O nome da minha mãe é marinho

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Vergonha

As manhãs justificam a ida


As madrugadas tempestuosas com anseios de maresia
Os poemas abertos na ligeira emancipação daquela criança
Chorando à luz de vela num dia frio
Meu coração sepultou a alegria
Nos próximos meses sentimentos de sangue
Sangue nas mechas dos cabelinhos ainda brilhosos,
fizeram redutos de uma solidão que jamais se apagará
Mesmo que as janelas sejam abertas
Mesmo que eu venha a ter sete filhos adotados
E uma cabra bonita! bonita! Para as crianças olharem e se
alimentarem
O fato é
Não se pode esquecer o que aconteceu
Não se deve esquecer o que aconteceu
Não esqueceremos o que aconteceu
Meu querido!
Se o mundo não foi para ti justo
Desculpas pelo mundo
Querido! Ainda nem sabias quem seriam tuas futuras
professoras
Teu futuro bichano de estimação
Tua futura cárie e tua futura náusea
E surge a guerra alentada no vazio destas nações e te extirpam

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como se fosses um pedaço de carne para ser vendida
Um monte de entulhos e cisco pelas estradas
O punhal com teu sangue sagrado
Adiante as falas inóspitas desses canalhas de Troia
Destroem todo o bem–querer
Ah! Quantas vezes eu quis da terra fugir
E gritar para todos ouvirem
Que as vozes pudessem ser estrelas caindo
Mas agora, meu menino, já perdi todo o meu ser
Sou vergonha
Já perdi todo o querer
Sou vergonha
Não lutei para te ter

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Cosmonópolis

No fim da estrada
Uma hora falha
Uma hora morta
Um dia sem gestos
As pessoas sem gestos
Tudo pálido
Tudo na escada rolante
Meu caminhar obscurece a sombra
Tudo escuro na escada rolante
Aqui na eternidade tudo é chato
Disse o meu amigo Saroldi
Aqui na Cosmonópolis tudo dois, dói amigo!
A vida está mais curta ainda
Meu amigo!
E eu arregalo os meus olhos
E ainda brigo com minha mãe
Ela me dá sugestões de cabelos, de cremes para o corpo,
para a face
Ela nem percebe
Que meu joelho direito foi amputado
E meu nariz forjado
As mães realmente esquecem da gente
É no cálice humano que me satisfaço
Mas como explicar isso para uma mãe?

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Com programas de TV querendo que apareçam os ossos
Com dez moças expondo seus seios para que o rapaz adivinhe
quais possuem silicone
A tarefa está sendo cumprida
De São Paulo a Santa Rosa do Sul
Assassinatos
Carros que você não sabe as marcas
Você recebe a Zuleide e de repente percebe que é o Mario
Sem olhos nas Cosmonópolis
Mas ainda quero as areias das Cosmonópolis
O dia e a noite no aire das Cosmonópolis
O saxofonista de joelhos na uruguaiana da Cosmonópolis
A vela roxa das Cosmonópolis
O pai nosso de cada dia nas Cosmonópolis
O ventre que te dou agora não é feito de respostas
Oh! Ébrio meu cão vesgo tão arrasado nestas Cosmonópolis
Ébrio para falar de amor e versos que se foram
Graças a deus eu conheci alguns poetas
Uns já caminham na eternidade
Outros fazem fala aqui nas Cosmonópolis
Esses poetas fazem a marcha nas calçadas do pensamento

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Sobre a vida

Ilha do Governador, Manguinhos, Riachuelo


Encosto minhas mãos nas pedras dos edifícios
Elas me redimem
Não sou cristã
Sou pista aberta das rodovias de esmalte roxo
Em minha alma de fundo roto
Disparam luzes de andorinhas
É bolhoso o mundo ao tocá–lo
As pedras voltaram ríspidas
O som das coisas vão longe do que sou
Flutuo
A menina doente
Dez anos e uma leucemia no coração
Uma camisa branca sem cor
Cabelos pretos
E Jesus que tirou seu colo
Não sei! Eu não entendo nada de deus, de pedra, de passagem,
de menina, de filho, de amor, de sonho
“Como ainda penso em ti e teu pai querido
Só cuidei de ti alguns dias
Linda! Criança
Teu chinelinho de dedo, tua trouxinha
e teu pai querido
Ao teu lado na alta hospitalar
Espero que estejas bem”

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Dinorah

Rios que socorrem


As praias que encostam umas nas outras
Os abraços que se formam nas encostas
A bela margem do refúgio logo mais adiante no final de cada
praia
O corpo do mar divagando na galáxia que deus dá
A senhora verde com pernas reluzentes é Dinorah
Quem é Dinorah?
A mulher executada no paredão
A mulher que enterraram nas pedras da cidade
Com um fuzil debandaram as vísceras de Dinorah
E Dinorah foi arrastada até o final da praia de Copacabana
E a praia se encheu das vísceras de Dinorah
E na manhã seguinte um repórter diz:
Quem foi Dinorah? Aquela mulher estranha e verde
Que resolveu deixar suas vísceras na praia mais conhecida da
cidade maravilhosa
Talvez deus tenha defecado aqui um dia
É bem possível!
É bem possível! Ter sido no mesmo dia das vísceras de Dinorah
O repórter que não é Esso foi assassinado no dia seguinte com
uma inscrição plantada na testa
“aqui jaz um homem que plantou”
O fedor da praia mais conhecida da cidade maravilhosa ficou
para sempre

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Marias sem graças a deus

Quando as horas vagam meu corpo é esfinge


A chuva ostenta as saudades
Os dedos lambem as vestes dos dias
As casas são réstias para a emancipação
E onde fica a rua mais próxima para o amor
Onde ficam os solos mais próximos para o amor
Que eu fale reticências, asneiras, onde fica a invasão mais
próxima para o amor
Onde ficam as camas, as vagas, as chupadas deliciosas
Só falo é de amor!
Então! Onde fica a voz mais fulgurante para o amor
Onde leva as ideias para o amor
Onde chama o teu amor

A Ponte
Aqui calo–me como um passarinho com dor
Calo–me como um cachorro que já não vê mais jeito para sua
vida
Perambulando nestas estradas úmidas e não sabendo que sinal
seguir
Afinal em que justo é o mundo?
Não é!
Lá de cima gostaria só de festejar com minhas amigas, vestir
roxo e beber um bom vinho nos próximos dias que se sucedem

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Daqui a pouco se rasgam as plumas
E a voz ficará a estupor nesta latitude
As lambidas de sangue
Serão os clowns destas noites frias
As mulheres rasparão as cabeças
E os cílios verterão em Marias sem graças a deus
Raspo e me dispo como ser quem sou e não quero saber dessa
tua repressão me talhando os olhos
Não quero saber se antes não entendia o que é ser mulher
Hoje entendo
E sei aos versos que físico é o espírito que amplia
As costelas dessa bela Maria sem graças a deus
E que aqui neste terraço imenso de dispersão
Quando até marimbondos fazem morada em nossos mamilos
O casulo sai para a liberdade
E o cordão que de mais virtude é
Cresceu e virou mulher
Marias sem graças a deus

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O sinal e as calçadas

Orixás nas vigas de concretos


Se religam até o coração do mendigo rouco da Lapa
Aquelas mãos fazendo luz de um som fictício
Arma de fogo sendo disparada sob o chapéu dos Beatles e ver o
belo desvio do chafariz rodando o próprio corpo
O chafariz é o Sávio, o mendigo rouco da Lapa
Por que em cada esquina
se tiram vidas?
Ainda não! O sinal e as calçadas
Ainda não! As tuas mãos
Os olhos olhando para o céu da terra
E cantando Sinatra como um minotauro no dia de caça aos
humanos
E ainda sorridente com o espírito de um rei falante, e com
histórias de solidão, de amor, de guerra e vitória para contar
Não é a cidade que o quer
Você que quer a cidade
E a música para
E agora subir as escadas é mais sacrificado
O cantor perdeu a fala
Ele vem alertar que o viés é ao montes na terra do desmonte
E que talvez se juntássemos todos os dias e noites na fúria para
o reconhecimento
De quem perdeu a fala

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Pudéssemos reconhecer a vida
Pudéssemos criar, ter encontros, amar com os olhos voltados
para o céu, nas ruas, nas calçadas e saborear o sol pela manhã
E ver as crianças indo para a escola, e ter ar para respirar
Sambar sem tanta dor
Na cidade que escolhi como refúgio para meus dias inquietos
Uma voz
A vida
______________________o amor
______________a rua

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Ternura

Um sopro me termina
Preciso pôr ternura
Encontros ternura
Esfrio minha mente no mar
Já não sou mais carne, ossos, obstáculos
A víspora suplantou as costeiras
Não quero separar a ternura
Se indiano, peruano, brasileiro, angolano
Que vos amo
Lenços vermelhos
Face de Oxóssi
Coração peralta
Criança vermelha pálida
As bachianas de Villa–Lobos
A abstração
Desejo no futuro
Produzir minhas abstrações diz Julieny
É poesia menina!
É tempo de rasgar os jornais
Já não dizem mais
Um tiro na mochila do menino de oito anos
Cobriu–o de sangue de Bangu, Bangladesch, Osasco
A poesia é para dizer
Procurar ternura

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Tempo

O massacre é aos olhos


A fome às avessas
A polícia rouba a alma da zebra
Chamada Antonia dos Montes
O vento me devora
A lua verde acalma meus estrondos
O mar é lança e histórias
A casa se fechou para os que possuem coração
O tempo que não encontro mais em mim
Há tempo que não encontro mais a mim
Há tempo que não olho o meu corpo
Há tempo que te quero
Tenho dois lados um de dor outro de amor
Tenho um zíper no coração
Às vezes ele abre e é pura emoção
Às vezes ele fecha e é pura observação
Tenho dois lados
Um de dor
Outro de amor

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Ária Maria Bethânia

Ária Maria Bethânia!


Ária Maria Bethânia!
Eu nasci sob o sol de fevereiro
E ainda pretendo ver o sol brilhar
Seja na criança que se faz em mim
Seja no dia que ouço Bethânia
Meus dedos teclam meu espírito
E vago como Swedenborg
Na cobertura desses edifícios se vestem de madrigais esses
pimpolhos
Que recado viestes me trazer? Tão jovem e belo cavalheiro
Achaste difícil entrar aqui?
Senhora, eu não sei onde estou!
Só preciso te dizer e partir
As vigas dos edifícios estão fracas
Não há como consertá–las a tempo
Lá fora chove o tempo todo
Mesmo que eu chame todos os anjos do mundo
Não haverá tempo
Meu jovem cavalheiro
Segue por de onde viestes!
Que já entendi o teu recado
O que não posso agora, que vi meu irmão Daniel crescer
E os deveres escolares que fiz para meu outro irmão!

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E a viagem até a fronteira!
A foto com os coletes que meu pai comprou no Uruguai
O que não posso agora!
É desistir de banhar meu filho
Todos os filhos deveriam ser banhados ao som de Bethânia
Todos os filhos deveriam ser gerados ao som de Bethânia
Todos os filhos procuram uma mãe
E todas as mães procuram um filho

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O que sabemos nós das histórias dos outros?

Existe uma luz salpicando as travessas do seu corpo


Me guarda nesta solidão, me põe em figuração de arcos
Que possa me aproximar dos outros e quem sabe ter a dádiva de
beijar–lhes os rostos
Essas ruas, esses restaurantes vazios, esses dentes vazios
O que diriam eles quando me vissem assim? Quem são eles?
Tu achas que ela cuidava dela por amor?
Era para ter onde morar e um prato de comida
Ela não era grande coisa por isso foi parar no IML
Se ela fosse direto para o cemitério São João Batista ela seria
grande coisa?
O que sabemos nós das histórias dos outros?
O que os outros sabem sobre nossas histórias?
O que se constata no IML ou no São João Batista é mais um
corpo que perdeu a sua função prática de estar vivo aos olhos
dos outros
O que sabemos nós desta retirada?
Ela possuía muitos produtos da Natura
Dois crachás falsos, umas roupas compradas na Renner
E o telefone da filha que morava na Austrália
O filho da velha que ela cuidava
Um jovem senhor formado em teologia que trabalhava como
taxista no Largo do Machado
E fazedor de outras cositas más

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Disse que ela não prestava
E saiu com sua moto mais trezentos quilos que o seguiam
O que sabem esses formados em teologia? O que sabem esses
formados em...
A partir de hoje necessito ser benzida todos os dias
Necessito de deus
Necessito de uma alegoria maior
De um fantasma criador
Adquirindo minha vida
Dou–me em carne e algum resquício de sobrevivência
O que sabem os outros sobre nossas histórias?
O que sabemos nós das histórias dos outros?

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Luta coletiva

Caminhávamos pelo vermelho da rua com elástico de exaustão


Tu de escorpião
E eu de peixes
Caminhávamos lado a lado
Mas não nos víamos
Lado a lado para que conseguíssemos sobreviver ao nosso
trabalho
Talvez a gente até se gostasse muito
Mas não nos conhecíamos
O que conhecíamos era nosso sofrimento
Era nossa luta para que não nos massacrassem
Tínhamos que nos manter unidas
Esses foram nossos momentos sublimes
A luta coletiva
A marca das mãos, da voz, as manchas no corpo
E o outro dia continuar
Mesmo sem coração
E achavam que nós adquiríamos em suaves prestações a garantia
de nosso trabalho
A gente caminhava lado a lado

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Nomes

Riscos lentos se fazem necessários


Nas fraudes dos meus olhos
Lista com os dedos já feridos
As feridas que te cobrem
Agulhas encravadas em minha íris
Fermentam lágrimas de amônia
Longe de serem anônimas
Nomes

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Sobre a vida

Beleza
Schumann nesta noite de natal
Querelle para satisfazer algo que ainda não sou
Fassbinder é o homem que inspirou–me nesse mar
Corri de encontro a tudo no mar do Arpoador
Sangrei tive náusea dos tempos
Todo o poeta escreve sangue
Não escreve se termina
Aos sessenta eu deitarei numa cama e ainda gritarei foda–se
essa porra que a pariu
Secou a ferida e a casca eu tiro a cada tempo
Quero vida!
Aos sessenta direi meus versos e suarei frio como quem se
apaixona
Cuidado rapaz!
Tenho uma tradição e pacto com a vida
Os andarilhos que me levaram até o altar da santíssima trindade
e circunscreveram neste peito amargo
Onde o sol não gerou mais filho
Onde o sol secou as vestes
Onde o sol secou o ar
Circunscreveram o amor
Circunscreveram no peito do mundo, os serenos, os rios
que desembocam nas cordilheiras, as palavras boas e ruins,

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os sentidos, o vento que perturba e faz pungente a alma, os
gânglios tão expostos dos apaixonados, as paixões dos animais,
as cartas
Circunscreveram no peito do asno o caule de ervas famintas
com peixes e sementes e um girassol másculo e peludo
Como cavaleiros subiram o Olimpo e suplantaram as fronteiras
das nações
Circunscreveram Pasolini para todos os homens de divinas
vontades
Subiram o horizonte com malas prontas e cajazeiros falantes
Falavam de anjos e serpentes
De mães e amigos
Falavam da criação
E o antídoto para as dores
E a descoberta da cura da Aids e a extinção do vírus do poder
Falavam do movimento e como seria lindo o gesto repetido
e que se pudesse palpar a força que eles giram. Falavam das
guerras, das mortes de crianças e que as cobras não entendiam
por que crianças morrem, eu também não entendo
Levantou da mesa com o rosto pálido
E soube que a tua criança tinha partido
Não desiste
Resiste!
Que a estrada que leva até Batatais até Petrópolis também te
leva até o amor
E que comer sopa quente com teus amigos já te fez tão bem um
dia
Sim! E ele perguntou: você não tem vontade de casar?
Talvez com um homem espanhol

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Por quê?
Só para te ouvir hablar, adoro o som desses queridos
A sopa estava boa!
As amizades eram boas
Vinte reais para a passagem, uma noite incrível com amigos
A apresentação da performance com textos meus, de Rimbaud
e Poe
E amanheci nua
Sem recados, com uma boca na alma, um trigo quente e difícil
de ser digerido
Fui novamente pelo caminho a calça jeans cheia de esperança
É arte minha filha! Que não disse minha mãe
Petrópolis
Botafogo, Rio de Janeiro
E uma serpente submarina
Pedindo que eu acabasse minha história ali
Vai... acaba aqui!
Acaba!
Eu! Como adoro cachorros, mar, e gosto das gentes olhando
os jornais na banca de manhã cedo, café e pão na chapa, de
pegar um ônibus e correr à cidade, e andar ao contrário, perder
documentos e ir sempre pelo caminho mais longo
Não quis acabar!
Vai!
Começa tua história aqui!
Circunscreveram que era de peixes com ascendente em vida
Schumann nesta noite de natal

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Lis! Quero viver

Lastras nos meus dentes empoeirados


A superfície em que tosses
Manipulas com a carne que te cobres
Nova lua à minguante
Lava meus dedos
Lava meu corpo
Faz dele um redemoinho de dúvidas, de histórias, de amigos e
sarjetas
Faz dele pedra sepultada como quem já sabe a sua sina
Me põe deitada já transfundida
Lis! Quero viver

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São Paulo acordou sem horário

Sentiu partir as asas do vento


Não ligou para os vexames
Para o tênis velho e as calças de nylon furadas, com a inserção
da Times Square no cu
Credo! Só possuía amigos de credo
A fé se mascara nestes tempos falsos
Ficar bem na fotografia e enlouquecer nos seus 19 metros
quadrados de pura concordância
A víbora já não acredita mais nela e perde–se o futuro
Uma foda que tem que ter 10 bytes sem coração
E dez monitores líquidos plasmáticos ligados num quarto bem
forrado rosa choque
E a cueca e calcinha mais nova da cidade
Só para dizer que tudo deu errado
O medo tomou de assalto a mudança
Cruzou e perdeu a chance
Ondas eletromagnéticas e descargas elétricas
Partiram o coração
E São Paulo acordou sem horário
Quando tinha dezenove anos espantava–me e causava–me
tristeza aos estudar em umas das cadeiras da universidade que
crianças morriam sob os efeitos do ar tóxico
Hoje também estou contaminada
Sou uma mulher de plástico

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Olho as janelas da cidade de plástico
Coloquei plásticos nos meus cabelos
Seios de plástico
São Paulo parece um grande plástico
Com a imagem da Times Square no rabo
São Paulo acordou sem horário

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O amor mudou–se

Agora possuo uma mancha escura


As praças já não possuem os portões abertos de quando cheguei
aqui
O amor mudou–se
A estrada de ferro eu abandonei
As fotografias que tirei da Central do Brasil
Foram arquivadas para chorar depois
Eu vesti a roupa devida
Mas não disse a palavra certa

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Cruz e Souza, do Desterro a Encantado uma alma sonar

Querida!
Minha Gavita, dei–te os dias cegos
De uma fonte seca
Mas te dei o amor de um homem teu
Os semblantes azuis dos nossos sonhos
Da nossa cama
Do frescor do passeio
O mestre Valentim nos sorrindo até a Guanabara
De mãos dadas minha Gavita
Eu ainda te amo
As mazelas que plantaram em nossos cânticos
Não acobertou nossos dias
E vivemos no sangue da miséria
Mas descobrimos o amor
A febre castrou meus pensamentos
E pedi socorro aos pedestres
E a voz anulou–se
E o dragão do mar me socorreu e eu pude
Dizer meus versos na Praça da República
E hoje, querida, quando ainda vago por lá
Vejo você de branco, sorrindo–me como quem me ama
Gavita!
Minha querida!
Fomos empalhados e amarrados nas estacas deste mundo tosco

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Sem ética
Eu falhei até o ponto que um homem pode fracassar na vida
de arquivista, e vomitei no púlpito no domingo de manhã,
esclareci que eu creio é na voz do homem que lute contra as
desigualdades
Não falhei no meu amor
E nem na guerra da poesia
A poesia foi guerra para mim
Fui armado, fui bem e me saí bem
Ouço tua voz nos meus ombros e tremo de paixão e poesia
Gavita, tu foste minha poesia
Tu és minha poesia!

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Cai e mata dois

Na fachada das casas


Na fachada do jornal O Dia
Está o feito pelo que não deveria ter sido feito
É como se ato fosse ação de rato
De manhã cedo os monges limpam os rostos dos mendigos na
Praça da Cruz Vermelha
De manhã cedo o revólver penal armado corre atrás da armação
E sem querer cai e mata dois
Morre na Henrique Valadares
A moça vesga com o cu florido em cor
Que penas foram impostas nesse jogo estúpido
Para que ela não descobrisse que dançar na Mangueira era
sempre bem–vinda
Ralha com a vida estúpida menina
Ralha nessas agonias
Ralha no barulho do mar
Quebra fogo
Ralha deus

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Vaginava nas ruas de Copacabana

Copacabana
A morte da menina foi estranha
Desde o início ela vaginava nas ruas de Copacabana
Para fazer de elástica a vida
Ela resolveu ser girl machine
De um camicase ao norte sul de Copacabana
Supurar em pêssegos maduros ao invés de ouvir conversas de
vizinhos chatos
Abortou um saco de pancadas da terra natal
E dizia eu sou girl
Eu sou girl
Virgem de um marido vazio
Vago pelo destino
Um corpo foi encontrado à beira–mar
Ela sempre sonhou em morrer no mar
Mas antes queria ser o mar
E quando ela conquistasse o mar
Ele a levaria numa manhã de quarta–feira
Sob um sótão de arapucas
Com o recado do mar de Lanes
Terra à vista!
Terra à vista!
Meu bem

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Galerias de Copacabana

Rio das galerias de Copacabana


Aceita mais um copo?
Aceita mais uma vida?
Onde estão as minhas duas amigas que não as encontro mais
Que me mostraram Santa Tereza
Marina da Glória
Foram dias de amigos
Amigos por todos os lados
Fogos de artifício
Dias de carnaval
E o anjo morto vestindo–se em casa
Marina acusticamente
E os ventos cobrindo o santo matrimônio na Glória

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A criança luz néon

A fécula se alastra na temperatura de Copacabana


Lady!
Transpira com o cobertor amassado na garganta
Cheiro de sêmen
Ônibus
Bílis nas entranhas
Uma luz marrom
E uma criança néon
Acende a vela da limusine
Ela entrou no jato do esperma desse homem
Fosco labirinto de luz néon
A criança luz néon agoniza no firmamento
Jatos de almavelozes
Jatos de almacalúnias
Almadenúncias
Almadanados
A criança luz néon come o pênis no reino encantado de
Copacabana
Terra encantada pós–fécula de néon

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_ 1ª edição
_ Novembro de 2016
_ 70 cópias
_ papel pólen 80 g/m2

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