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PUC/SP
São Paulo
2020
Cícero Renato Feitosa Duarte
São Paulo
2020
Cícero Renato Feitosa Duarte
Aprovado em:____/____/_______
BANCA EXAMINADORA
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DEDICATÓRIA
In memoriam:
Jéssica Rayane e Joana Soares Feitosa
AGRADECIMENTOS
Quero agradecer à minha orientadora, Prof.ª Dr.ª Mary Jane Spink, pela
generosidade e sensibilidade ao acompanhar meu processo de escrita. Obrigada pelas
palavras e pelos ensinamentos. À querida Mariana Priole, pelas pontuações que
fortaleceram minha pesquisa e à professora Maria da Graça, pelas importantes
contribuições.
A Malu, minha amiga e companheira. Por me apoiar nos momentos mais difíceis;
que alegra te encontra nessa vida linda e cheia de amor. A Sueli, por acreditar mais em
mim do que eu mesmo, você foi um conforto para os dias mais difíceis. Ao grande amigo
Hercílio, pelo seu carinho e apoio desde os primeiros dias em São Paulo. A Maurício,
obrigado por me acolher em sua casa. A Taffarel, amigo querido, obrigado por todo apoio.
Aos colegas do Escritório, Sil, Priscila k., Priscila H., Alê, Flávia, Mari, Bea,
Sara, Karina e tantos outros, obrigado por deixar meus dias na PUC tão felizes. A todos
meus colegas do NUPRAD/PUC-SP, certamente eu não poderia estar em outro lugar, que
não ao lado de vocês!
A Marlene, por seu apoio constante e as nossas conversas na sala do programa.
A meus amigos Pedro e Cris, sem vocês certamente não teria chegado até aqui;
foi uma alegria ter encontrado com vocês pelo caminho. Encontrar com vocês me trouxe
afeto, força e potência, mais que amigos verdadeiros irmãos que a vida me deu. A outros
amigos que foi encontrando no caminho Alê, Lucas, Kell, Clau, Cris, obrigado por cada
encontro, por cada afeto.
A meu querido Professor Leconte, aquele que me ajudou a sonhar tudo isso,
obrigado!
Por fim, Obrigado Mãe e Pai, por me fazer chegar até aqui. Obrigado a minha
irmã Renata, meu orgulho de profissional, meu verdadeiro espelho de ética e
competência.
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento
88887.204697/2018-00
Resumo
This research focuses on removals of people due to urban interventions. The main
objective is to describe the heterogeneous networks present in the issue of removal of
people due to urban interventions in the region of M'boi Mirim, in the city of São
Paulo/SP. For this, we anchor ourselves on the assumptions of the Actor-Network Theory,
with emphasis on the heterogeneous networks that perform removals as a fractal object
composed of materialities and sociabilities. We used as a case study the removals that
occurred in the Guarapiranga building, in Jardim São Luís, a district that integrates the
mentioned Subprefecture. The information was produced from four conversations in daily
life and an interview with our main interlocutor, Dona Maria.
LISTA DE FIGURAS
Capítulo 1: Procedimentos 14
1.1.1 Redes-heterogêneas 15
1.2 Objetivos 19
1.3. Procedimentos 20
3.2 O alojamento 41
Capítulo 4: 46
desabamento 54
Referencias 64
11
Introdução
Peter Spink (2003) fala sobre o campo-tema e seu valor no processo de pesquisa.
O autor explica que estamos em campo desde o momento em que nos comprometemos a
pesquisar determinado tema. Estamos pesquisando durante as conversas, quando
procuramos mais detalhes, quando nos comprometemos moralmente e entendemos de
que maneira podemos colaborar e qual a relevância para a psicologia “fazemos parte do
campo; parte do processo e de seus eventos no tempo” (P. SPINK, 2003, p. 25).
Como de costume, um pouco antes da reunião começar, o Padre Jaime falou um pouco,
sobre os temas do dia e sobre a presença de alguns representantes dos moradores, do
lado do hospital do M’boi mirim, que foram removidos no último fim de semana.
A reunião começou e depois de um pequeno intervalo duas mulheres e um homem que
eram os representantes dos moradores, falaram sobre o processo de remoção. Algumas
famílias, segundo eles, tinham sido avisadas de suas remoções, mas outra pequena parte
só ficou sabendo no dia em questão. O olhar de tristeza era evidente, a cabeça baixa, a
própria voz, que trazia consigo um misto de tristeza e raiva com o que tinha acontecido.
O processo, segundo eles, foi acompanhado por técnicos da prefeitura, assistentes
sociais, policiais assim como máquinas para derrubar algumas casas. As famílias
tiveram que tirar as coisas às pressas, correndo. Com a ajuda da polícia, os técnicos iam
anunciando as desapropriações. Mas, o que me chamava atenção era o sofrimento
daquelas pessoas, sem saber direito o que ia acontecer com suas casas, seus lares, seus
pertences. (Caderno de campo, dia 03 de maio de 2019).
Nesse primeiro encontro com a temática das remoções de famílias, fiquei tocado
pela forma como Estado tem agido frente às famílias que são atingidas por tal questão. E
com essa inquietação, comecei a me questionar sobre como era vivenciado o processo de
remoção: Como as famílias vivenciam essa realidade no cotidiano? Como o Estado tem
trabalhado tal questão? Quais os sofrimentos? Atores? Materialidades e sociabilidades
que performam a remoção de famílias em decorrência de obras públicas?
Em seguida dividimos nossa descrição em duas partes, tendo em vista que nossa
interlocutora passou por duas remoções, uma por questão de obras públicas e outra por
questão de risco. Cada parte tem uma descrição inicial situando seus capítulos e sobre o
que falamos.
1
Terreno alagadiço.
2
Cordeiro, Mariana Prioli, ; Spink, Mary Jane Paris. (2013). Por uma Psicologia Social não perspectivista:
contribuições de Annemarie MolPor una Psicología Social no perspectivista: contribuciones de Annemarie
Mol. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 65(3), 338-356. Recuperado em 26 de novembro de 2019, de
http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext;pid=S1809-52672013000300003;lng=pt;tlng=pt.
14
Capítulo 1: Procedimentos
Para sintetizar o argumento [que realidade não é destino], podemos dizer que a ANT é
muito sensível à diferença entre o verdadeiro Napoleão, por um lado, e, por ouro lado,
aquelas pobres almas que proclamam ser Napoleão e acabam sendo tratadas [como
portadores de] desordem psiquiátrica. O primeiro era real porque era geralmente
"performado" como sendo Napoleão por milhões de outras pessoas. Os outros não o
foram, precisamente porque não foram assim performados. (LAW ; SINGLETON, 2014,
p. 21)
Para Francisco Tirado e Daniel Gómez (2012), a Teoria Ator-Rede tem uma
prática especulativa de criação conceitual. Os autores afirmam que uma investigação não
pode finalizar seu perambular sem a luz de um conceito. Portanto, a TAR se caracteriza
por um crescimento contínuo de conceitos. Porém, John Law e Vicky Singleton (2014),
afirmam que, apesar do seu nome, a TAR não é uma teoria: não é preditiva e não oferece
leis sociais. Ela seria mais bem entendida como um kit de ferramentas para pensar e
cartografar as práticas heterogêneas de associação que compõem o social. Pensando nesse
kit de ferramentas, apresentamos a seguir o conceito de redes-heterogêneas, do qual
partimos para pensar os actantes, associações e práticas que envolvem as remoções
forçadas.
15
1.1.1 Redes-heterogêneas
Para Johw Law (2012, 2007), o social é composto de uma rede complexa de
materialidades e sociabilidades, e é aí que as correntes tradicionais da sociologia têm
errado. Para o autor em vez de tentarmos purificar essas confusões através de métodos e
conceitos, deveríamos construir ferramentas que dessem conta de acompanhar as
questões que nos instigam a pesquisar suas formas turbulentas e múltiplas. Materialidades
são também socialidades, um efeito relacional, uma consequência da interação. Isso
ocorre porque os materiais não são fornecidos previamente, mas são formados nas redes
que compõe os mundos, com maior ou menor durabilidade, com suas diferentes
tatilidades ou texturas: lisas, ásperas, doces, nocivas, ilusórias ou obsoletas (LAW; LIEN
2013, citado por LAW; SINGLETON, 2014 )
um e menos que muitos; isso é mais do que um, mas não é apenas um monte de pedaços
e desligados e peças” (LAW, 2007, p. 3, tradução nossa).
Law (2007), afirma que devemos sair de enquadres onde a realidade é dada a
priori, única e simplista; temos que partir de realidades singulares que passa pelo
entendimento de diversos universos que o autor vem chamar de fracteversos, que
envolvem diferentes práticas e actantes. Ou seja, as práticas são produtivas e fazem
coisas, tem ação, que ao mesmo tempo que performam o mundo e são re-performadas de
volta. A materialidade então é um efeito relacional, uma consequência da interação.
Ocorre porque as matérias não são dadas, mas são desenvolvidos nas redes que compõem
os mundos, com menor ou maior durabilidade (LAW ; SINGLETON, 2014).
Law e Singleton (2014), afirmam que o ponto crucial para entender o argumento
de um fracteverso é que como existem muitas práticas, existem também múltiplas
realidades. As práticas estão em diferentes lugares, e o que se torna realmente importante
(além das próprias práticas) é como as diferentes realidades se relacionam.
Annemarie Mol (1999), usa o exemplo da anemia para explicar como uma
ontologia pode ser múltipla. Para a autora, em seu texto, a noção de ontologia política é
um termo composto que fala sobre como o real é implicado na política assim como o
contrário. Dessa forma uma ontologia é política porque envolve escolhas, sendo essas
moldadas por diferentes atores e interesses, sendo assim a realidade é feita/performada
(Mol, 1999).
Mol (2002), em seu livro, The Body Multiple: ontology in medical practice,
utiliza o exemplo da aterosclerose para desenvolver o argumento que, mesmo a
aterosclerose sendo múltipla ela não é plural. Ou seja, não são várias ateroscleroses que
aparecem, mas sim verões diferentes que circulam no hospital por ela estudado. Partindo
desse argumento, Mariana Cordeiro e Mary Jane Spink (2013), explicam que:
A questão das remoções será tratada nesta dissertação a partir do conceito de redes
heterogêneas com ênfase em suas materialidades e sociabilidades, seus actantes e as
práticas aí desenvolvidas. Nosso intuito é fugir de posturas perspectivistas sobre a
remoção de modo a entender os elementos de compõem essas redes heterogêneas. A
proposta é descrever a rede heterogênea e entender como ela é moldada ou
melhor performada (enact) no cotidiano. Nas palavras da Mol: “É isto. É possível abster-
se de compreender os objetos como os pontos centrais das perspectivas das diferentes
pessoas. É possível compreendê-los, em vez disso, como coisas manipuladas nas práticas"
(tradução nossa) (2002, p. 4).
Vale apontar que não existem regras determinadas a priori para o trabalho com
redes heterogêneas. Mas, existem quatros movimentos que, segundo Maria Trannin e
Rosa Pedro (2007), podem ser uteis, no processo de seguir actantes e cartografar seus
actantes e práticas.
Por exemplo, Leticia Freire (2010) descreve sua pesquisa que tinha como objetivo
descrever o processo de implantação de uma política urbana numa região de favela no
Rio de Janeiro. Freire já conhecia a região por sua inserção em um projeto de pesquisa
anterior e isso facilitou começar a frequentar semanalmente a região. Por meio de um
caderno de campo, ela começou a mapear os actantes que, direta ou indiretamente,
passavam a fazer parte do processo.
Em suas idas semanais à Favela Acari, foco de sua pesquisa, Freire teve diversas
conversas com moradores e líderes locais que a conduziram a representantes da prefeitura
que costumavam se encontrar em uma sala na sede de uma associação de moradores.
Nesse local a pesquisadora entrou em contato com o presidente da associação e enquanto
falava sobre seu interesse sobre o projeto, duas Agentes Comunitárias de Habitação que
18
estavam por perto se aproximaram alegando que elas poderiam ajudar em relação às
informações que Freire buscava.
Alexandra Tsallis e Gabriela Rizo (2010, p. 230) indicam outros elementos que
podem ser úteis na descrição de redes heterogêneas que as autoras chamam de pistas de
um percurso de formiga:
● Identificar os actantes;
● Mapear os vínculos existentes entre eles, definir coletivos;
● Acompanhar os vínculos em ação, cenarizar;
● Submeter os passos anteriores aos testes de torção disponíveis no
laboratório/texto;
● Construir uma “boa descrição” de todo esse processo;
● Finalmente, deixar essa descrição se articular ao mundo e produzir efeitos.
1.2 Objetivos
1.3. Procedimentos
Como afirmam Alexandra Tsallis e Gabriela Rizo (2010), deixar com que os
traços produzidos pelos acontecimentos apareçam no texto. Os acontecimentos devem
ser descritos para que se forme um panorama do que está sendo acompanhado, uma
cenarização, tendo como característica a provisoriedade (Tsallis e Rizo, 2010). A seguir
será apresentado o caminho percorrido para construção de nossa descrição.
Para descrever a rede heterogênea das remoções forçadas foi preciso percorrer
diversos caminhos. Segundo a proposta de Trannin e Pedro (2007), o primeiro momento
concerne a entrada na rede e isso se deu pelas aproximações com o campo-tema por meio
de leituras e conversas cotidianas com amigos e moradores da região do M’Boi Mirim,
sempre apoiado por um caderno de campo. Segundo Peter Spink (2017), as conversas no
cotidiano são algo que acontece na casualidade do cotidiano, nos encontros diários, em
micro lugares. O uso do caderno de campo foi fundamental durante esse processo pois
possibilitou não só os registros das observações no campo, como as reflexões sobre as
leituras que vinham sendo realizadas. Desse modo, o caderno de campo foi também um
actante durante toda a pesquisa.
O primeiro encontro com Maria foi marcado via aplicativo de troca de mensagens
por celular, agendado para uma manhã de domingo logo após a missa da manhã na
Paróquia. Cheguei logo cedo à paróquia e esperei a missa acabar para conversar com
Maria. Fomos então para uma sala do salão paroquial, e nossa conversa foi acompanhada
por um café e alguns pães de queijo providenciados pela paróquia.
Nessa conversa, Maria trouxe seu depoimento sobre todo seu processo de dupla
remoção forçada e como tinha sido para ela passar por eles. Pedi para gravar a conversa
logo depois de explicar o objetivo da pesquisa. A conversa então foi transcrita e usamos
a estratégia de transcrição sequencial (NASCIMENTO; TAVANTII; PEREIRA, 2014)
para identificar os principais temas e actantes presentes nesse relato. Ao fazer esse
trabalho percebi como Maria me pegava pela mão e me levava a transitar por sua história,
por diferentes momentos, actantes e práticas. Foi por meio da história contada por ela que
pudemos adentrar em uma rede que tem quase 20 anos de história.
A escolha metodológica, portanto, foi de seguir a história narrada por Maria, como
um fio condutor da rede heterogênea das remoções forçadas. Foi possível, assim,
identificar vários dispositivos de inscrição (leis, fotografias, matérias de jornal, etc.) que
constituem o terceiro movimento na proposta de Trannin e Pedro (2007). Cada momento
descrito por ela nesse longo processo que envolveu duas remoções, nos levou a actantes,
práticas e lugares nessa rede. Como afirmam Tsallis e Rizo (2010), “tudo é histórico e
pleno de actantes”.
A organização de nossa descrição foi dívida em duas partes, cada uma sobre uma
das remoções pelas quais Maria passou, tendo como disparador uma anotação da conversa
com Maria que fala sobre essa remoção. Cada parte constitui, portanto, uma aproximação
às associações entre esses diversos actantes. Sendo a rede complexa e o período de tempo
envolvido longo, a estratégia utilizada na construção desses capítulos foi de focalizar
“acontecimentos” marcantes nessa longa experiência de remoções forçadas: (1) remoções
no contexto de obras urbanas; (2) deslocamento para regiões pouco familiares para Maria;
(3) políticas de remoção no caso de riscos estruturais.
Esta primeira parte diz respeito à primeira remoção pela qual passou nossa
interlocutora, Maria. Como pode ser visto nas anotações sobre a entrevista com ela, o
processo de remoções envolve diferentes actantes que se associam para criar a rede
heterogênea das políticas públicas de remoção: a prefeita, funcionários da Secretaria de
Habitação, assistentes sociais, documentos; caminhões. Esse actantes seguem normativas
e orientações tanto de nível internacional como nacional para a realização de processos
de remoções. Para entender como essa política acontece, a descrição da primeira remoção
compreende dois capítulos.
● Segurança de posse: a moradia não se torna adequada quando os seus moradores não
têm um grau de segurança de posse que garanta a proteção legal contra remoções
forçadas, perseguição e outras ameaças.
● Disponibilidade de serviços, materiais, instalações e infraestrutura: a moradia não é
adequada, se os moradores não têm acesso a serviços básicos de água potável,
saneamento básico, energia, aquecimento, armazenamento de alimento e coleta de
lixo.
● Economicidade: a moradia não é adequada, se o seu custo compromete o exercício
de outros direitos humanos como por exemplo, alimentação.
● Habitabilidade: a moradia não é adequada se não garante a segurança estrutural e
física proporcionando um espaço adequado, como também proteção contra umidade,
frio, calor, chuva, vento e outras ameaças à saúde.
● Acessibilidade: a moradia não é adequada se as necessidades específicas dos grupos
desfavorecidos e marginalizados não são levadas em conta.
24
O direito à moradia não deve ser visto de forma restritiva, mas como direito de
viver em um lugar com segurança, paz e dignidade. Segundo o documento sobre moradia
adequada da Secretaria de Direitos Humanos, a melhor forma de entender o direito à
moradia adequada é a partir de três elementos: liberdades, garantias e proteções (Brasil,
2013).
● No campo das liberdades inclui, mas não se limita: “a) proteção a remoções forçadas;
b) O direito a ser livre de interferências na sua casa, à privacidade e à família; C) O
direito a própria residência, de determinar onde viver e de ter liberdade de
movimento.”
● Assim como as seguintes garantias: “A) segurança de posse; B) Restituição da
moradia, da terra e da propriedade; C) acesso igualitário e não discriminação à
moradia adequada; D) Participação em nível internacional e comunitário, na tomada
de decisões referentes a moradia”.
● Também inclui proteções: A) proteção contra remoções forçadas é um elemento-
chave do direito à habitação adequada e está intimamente ligado a segurança de
posse”. (Brasil, 2013, p.14 ).
Ainda antes das remoções acontecerem, toda a comunidade deve ser avisada com
antecedência, por escrito, a data de sua remoção. Acesso à assessoria jurídica e técnica
26
deve ser disponibilizado para que todos os atingidos possam compreender e proteger os
seus direitos. O local de reassentamento deve estar pronto, atendendo todos os critérios
de moradia adequada, para que assim as pessoas sejam removidas sem que sofram uma
nova violação de direitos (ONU, 2007).
Durante a remoção não pode haver uso de violência ou força contra a população
removida, nem deve ser realizada de forma discriminatória ou replicar padrões de
discriminação. O uso de demolição de casas não pode ser feito na forma de ameaça contra
a população. Também não se pode ignorar a situação específica de mulheres e grupos em
condição de vulnerabilidade.
Nabil Bonduki (1998), afirma que as primeiras remoções na cidade de São Paulo
são datadas de 1946, quando o então prefeito, Abrão Ribeiro, removeu favelas existentes
e implementou os primeiros alojamentos provisórios. Como afirma Bruna Sato (2013, p.
25), ‘’O Poder Público visava a remoção das favelas como único meio de eliminar o
quadro de precariedade, foco de contaminação e proliferação de doenças.”
Na gestão de Paulo Maluf (1993-1997) também optou-se por não acabar com as
Operações Interligadas, porém modificar o texto legal dando origem a um novo
programa: “Direito à Moradia”. Frente a essa iniciativa foi possível utilizar o instrumento
para financiar outros projetos da política habitacional, como no carro-chefe das políticas
sociais de Maluf, o programa Cingapura, “Que tinha como objetivo a urbanização de
favelas por meio da estratégia de verticalização.” (SARUE; PAGIN, 2018, p. 321).
Em ambos os casos de OUC, a negociação deixa de ser por meio de lote a lote, e
passa a ser por meio de Cepac’s4 e os valores arrecadados seriam responsáveis por cobrir
os custos das remoções em decorrências das Operações Urbanas Consorciadas. O texto
de Sarue e Pagin (2018) não traz detalhes de como ocorreram as remoções de famílias
frente as OUC tanto da Faria Lima como da Água Espraiada.
3
Para mais informação sobre a CPI Consultar: RELATÓRIO FINAL DA COMISSÃO
PARLAMENTAR DE INQUÉRITO PARA APURAR AS OPERAÇÕES INTERLIGADAS (LEIS Nº
10.209/86 E Nº 11.426/93) REALIZADAS NO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO DESDE A
PROMULGAÇÃO DA LEI Nº 10.209/86. Acesso em:
http://documentacao.saopaulo.sp.leg.br/iah/fulltext/relatoriocomis/RELFINRDP08-0111-2001.pdf.
4
Para mais informações ver Mariana Fix (2001), Parcerias da exclusão. São Paulo: Boitempo, 2001.
31
Quando perguntei a Maria onde ela morava logo ela me falou, com uma expressão triste
e de saudade: “Era ali na Ferreira Viana que é o largo do Ferreira Viana, aí foi quando
eles falaram que iam fazer um corredor de ônibus, né?!” (Anotação da entrevista com
Maria)
Nessa fala de Maria, podemos ver referência a dois actantes: o corredor de ônibus
e o “eles” aqueles que são responsáveis pela remoção. As orientações sobre remoções
deixam claro que elas devem ocorrer apenas em situações excepcionais, como nos casos
de obras e urbanização (ONU, 2017). No caso da primeira remoção que Maria vivenciou,
a obra em questão foi a construção de um corredor de ônibus5.
A construção do corredor de ônibus, é então o actante que move essa rede e faz
com que a remoção de 40 famílias seja necessária. O corredor em questão é a ligação
entre o Jardim Ângela/ Guarapiranga/ Santo Amaro com 7,5 km de extensão. O percurso
deste corredor pode ser visualizado na Figura 2. Foi inaugurado em 2004 ainda na gestão
de Martha Suplicy na prefeitura de São Paulo.
5
Pode ser definido como “vias de ônibus segregados ou faixas exclusivas” (Brasil, 2008, p. 13).
32
[...] que implantou um rearranjo técnico e institucional para a operação das linhas de
ônibus, assim como a construção de corredores de ônibus em eixos viários com alta
demanda, com terminais e estações de transferência que possibilitam a ampliação das
viagens integradas (ROLNIK ; KLINTOW, 2011, p.101).
6
Disponível em: https://busnews.webnode.com.br/corredores/jardim%20%C3%A2ngela-guarapiranga-
santo%20amaro/ Acesso em: 28 fev. 2021
33
Maria chorou muito, ficou com muito medo. Ouvia falar muito sobre o Jardim Ângela e
sua fama de ser perigoso. Se agarrou com sua amiga e marido, usando de estratégias para
superar o medo, como a companhia dos mesmos a levando até o ponto de ônibus. “Mas
lá nunca aconteceu nada, um lugar muito bom as pessoas respeitavam, não tenho o que
dizer de lá não.”
O alojamento como explica Maria ficava ali, descendo na Marabraz (Loja de móveis
conhecida na região). Só tinha que descer a rua à direita, andava um pouquinho e
chegava lá. Maria tem uma boa recordação do alojamento, fala sempre que lá era bom,
que não tinha o que reclamar, chega a falar que antes se eu soubesse que ia dar o problema
assim que deu a gente tivesse ficado lá. Foram dois anos morando nesse alojamento no
Jardim Ângela.
Nessa fala, Maria se refere à época em que a violência nesse distrito da zona sul
do Município de São Paulo era afamada. Padre Jaime Crowe, importante porta-voz da
região sobre a luta contra a violência, deixa isso claro ao afirmar que, em maio de 1996,
o Jardim Ângela ganhou as manchetes sendo considerado pela ONU o núcleo urbano
mais violento do mundo, com estatísticas de 120 assassinatos/ano para cada 100 mil
habitantes (CROWE et al. 2013).
A violência no distrito era constante. Padre Jaime relata que era comum encontrar
jovens mortos nas calçadas. Mas, além de ser destaque pela violência na região o Jardim
Ângela também ficou conhecido por ser palco do protagonismo da comunidade local na
luta pela vida e pela paz. A industrialização da região fez com o que bairro crescesse
desordenadamente no início dos anos 1970, com ocupações, favelas, loteamentos
regulares e irregulares (CROWE; FERREIRA, 2006).
Como afirmam Jaime Crowe e Sergio Ferreira (2006), até meados da década de
1980, a região era responsável pela mão-de-obra barata das grandes indústrias e das
fábricas nas imediações da marginal do rio Pinheiros, na cidade de São Paulo. Foi nessa
época que se iniciou a informatização e a automatização nas indústrias que geraram
índices elevados de desemprego na zona sul.
A falta de emprego na região, considerada uma região periférica, levou “cada um
a se virar como podia, empenhando-se numa luta pela sobrevivência, se protegendo da
violência que ocorria por conta do tráfico, da competição e da sociedade de consumo.”
Foi nessa época que a opção pelo tráfico como trabalho tinha se instalado (CROWE;
FERREIRA, 2006, p. 86). Segundo eles, a interrogação que era feita na época era que
35
“não basta a gente ficar enterrando os corpos, nós temos que fazer alguma coisa, pois não
podemos aceitar a morte de toda essa juventude” (2013, p.6).
A organização popular no Jardim. Ângela já era conhecida há muito tempo. Na
década de 1970 as Comunidades Eclesiais de Base (CEB) da Igreja Católica e os Clubes
de Mães, já se articulavam na luta por direitos na região. Segundo Hercílio Oliveira
(2015), a história dos clubes de mães na Zona Sul da cidade de São Paulo evidencia que
fizeram e fazem diferença na luta por direitos em lugares abandonados pelo Estado. Em
1978 os movimentos da região conseguiram eleger dois candidatos populares como o
deputado federal Aurélio Peres e a deputada estadual Irma Passoni (CROWE;
FERREIRA, 2006).
Nesse período a região era conhecida como um celeiro de diversos movimentos
sociais, como a Oposição Sindical Metalúrgica de São Paulo, contando com nomes como
Santos Dias, que também era membro da pastoral operaria e foi morto pela polícia militar
com um tiro a queima roupa, durante uma greve, em 1979 (CROWE et al, 2013; SPINK,
2018). O Movimento de Moradia, liderado por Maria Felipe e Ivo, já lutava pela
urbanização das favelas do Jardim Ângela. Uma de suas conquistas foi a criação do
Parque Europa I e II, com mais de 1200 apartamentos construídos, uma parte por uma
empreiteira contratada pela prefeitura e outra por mutirão.
Na década de 1990 acirrou-se o questionamento feito pelos movimentos sociais
da região sobre a morte de jovens e sobre a violência chegando à conclusão de que algo
precisava ser feito. Foi nesses debates sobre o que precisava ser feito que surgiu a ideia
de uma caminhada pela vida e pela paz. A primeira caminhada foi realizada em 02 de
novembro de 1996, dia de finados. Partiu de três pontos diferentes, em direção ao
cemitério São Luís, onde a maioria das vítimas de assassinato eram enterradas, e contou
com 5 mil participantes (CROWE, et al., 2013).
Ainda como movimento de resistência foi criado o Fórum em Defesa da Vida pela
Superação da Violência, para o qual, além da comunidade local, foram chamados a
participar também atores políticos envolvidos com os temas em questão, como segurança
pública, saúde, justiça, educação, direitos humanos.
7
A epistemologia periférica se constitui por meio de uma vivência que produz identificação com os
sujeitos e as sujeitas da pesquisa, oriundos da mesma classe social e com códigos compartilháveis. O
cientista, quando lastreado por essa vivência compartilhada com sujeitos e sujeitas da pesquisa, há de
compreender escolhas (D’Andreia, 2020, p.34).
37
8
Essa expressão é utilizada para marcar a vida do outro lado das pontes tanto do socorro, como a João
Dias.
38
9
Disponível em:
https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/subprefeituras/subprefeituras/mapa/index.php?p=148
94 Acesso em: 28 fev. 2021
39
Figura 4: Projeção da População por faixas etárias quinquenais, em primeiro de julho – Distrito
de Jardim Ângela - 2020
O Jardim Ângela está localizado na zona sul da cidade de São Paulo, tem 37,40
km de extensão. Parte do distrito está nas margens da represa Guarapiranga, que integra
o sistema hidrográfico responsável pelo abastecimento de água da Região Metropolitana
de São Paulo.
10
Disponível em: https://produtos.seade.gov.br/produtos/projpop/ Acesso em: 28 fev. 2021
40
Passo a apresentar alguns dados sobre o distrito do Jardim Ângela que constam
do Mapa da Desigualdade na versão 2020. Trata-se de levantamento de uma série de
indicadores de cada distrito da cidade de São Paulo, podendo assim comparar dados e
verificar os locais mais desprovidos de serviços e equipamentos públicos. Sendo assim,
o mapa preenche uma lacuna na difusão das informações públicas (Mapa da desigualdade,
2020).
3.2 O alojamento
gratuita de um serviço muito útil, com o qual grande parte daquela população
não pode arcar11.
O caminho até esta praça é de certamente conhecido de muitos que se dirigem ao
Jardim Ângela. Quando comecei a ir as reuniões do Fórum em Defesa da Vida, em 2018,
o ponto de ônibus mais próximo ficava exatamente nessa praça. Ao descer nela parecia
que estava chegando ao centro de uma pequena cidade do interior até porque as lojas
grandes, como as Casas Bahias e a Marabraz, estão ao lado de pequenos estabelecimentos
que vendem produtos nordestinos.
O alojamento a que Maria se refere era provisório e, segundo Bruna Sato (2013),
esses geralmente têm infraestruturas inadequadas, como tendas ou galpões para receber
os moradores, onde as famílias deveriam ficar por um período curto, mas a situação acaba
se estendendo um tempo indeterminado. Como as orientações da ONU (2007) deixam
claro, o local de reassentamento deveria estar pronto quando as remoções ocorram, mas
em alguns casos isso não é possível, sendo necessários alojamentos provisórios como no
caso de Maria.
11
Isabel Sollero Lemos. Apropriações Públicas de Sistemas de Espaços Livres em Latinoamérica.
Memorial de Qualificação de Doutorado, FAUUSP, agosto de 2020.
43
trabalhava na região do Brooklin, teve que percorrer agora 14km diários de transporte
público para chegar ao seu trabalho.
que rebocar, colocar piso, era tudo grosso”. Ela gastou quase R$ 15 mil na
Maria não sabe explicar muito bem, mas eles pagavam uma prestação de R$ 60
mensais à prefeitura, diz que “era como se fosse do terreno e a gente tivesse
pagando”.
que, com um sorriso no rosto, Maria repete que foi bom, alguns problemas
Por exemplo, uma irmã da Maria que residia no prédio, teve que passar três meses
Alguns consertos foram realizados, mas elas sempre voltaram a aparecer. Maria
45
conta que depois continuou, continuou a aparecer, e ficavam mais feias, dando
nele. Durante esse tempo os moradores nunca tiveram uma explicação sobre o
porquê das rachaduras. Maria ouvia histórias sobre o porquê, falavam que existia
um poço no local que tinha água. Diziam que era cheio de água aquilo ali. Ela
acredita que o prédio deve ter sido mal feito, e repete que deve ter sido muito mal
feito aquilo ali. Quando tiveram que tomar uma decisão sobre o que iria acontecer
com eles, os moradores escolheram por ser indenizados. Maria acha que porque
Capítulo 4:
Quando escolhi que trabalharia com o tema das remoções forçadas na região,
minha orientadora sugeriu que eu fizesse um estudo de caso sobre esse prédio, tendo em
vista a história de dupla remoção de seus moradores.
47
Ao tomar o prédio como foco do estudo um importante actante logo entra em cena,
tanto na fala de Maria, como em algumas reportagens sobre a situação do prédio: as
rachaduras. O prédio ficou conhecido, por seus problemas estruturais e o dilema da
remoção de seus moradores, pela segunda vez, desta vez por questões de risco. A história
dos problemas do prédio foi bastante noticiada em 2015, ano em que o prédio foi
interditado pela Defesa Civil por problemas estruturais.
Na reportagem exibida no dia 21 de maio de 2015, no SP1 da Rede Globo de
Televisão, a situação do prédio foi apresentada a partir de um pedido de socorro dos
moradores, que haviam colocado uma placa com os seguintes dizeres: em uma atitude de
desespero os 150 moradores deste prédio pedem ajuda!! Este prédio está caindo e a
prefeitura não faz nada. Não queremos morrer soterrados. SOCORRO!!!.
Nesta reportagem, os moradores relataram que as rachaduras começaram a
aparecer há oito anos, um ano depois que se mudaram para o prédio. Nessa época, há oito
anos, a Defesa Civil fez uma vistoria e um engenheiro da subprefeitura do M’Boi Mirim
chegou a interditar o prédio, mas os moradores não saíram e aguardaram o novo processo
de interdição realizado em 2015. Outras reportagens, como a da Jovem Pan, do dia 22 e
maio de 2015, denunciaram a situação dos moradores e a demora do Estado em dar uma
resposta. Mesmo com todos os problemas visíveis, o relatório da situação do prédio só
iria ficar pronto em julho de 2015.
A reportagem do Portal de Notícias do G1, em 17 do junho e 2015, três meses
depois das primeiras reportagens sobre o problema, a justiça considerou que o prédio não
era seguro e os moradores teriam que sair do prédio em apenas cinco dias. A opção para
os moradores, conforme relatado na reportagem, foi a de aluguel de R$ 1.200 pago pela
prefeitura, mas que só começaria a ser pago no mês de julho e um abrigo temporário foi
improvisado em um ginásio da região. No final da reportagem o repórter comenta que o
prédio havia sido construído para aliviar a situação os moradores que haviam sido
removidos por ocasião da construção do corredor de ônibus no bairro do Socorro.
Relatou, também, que o prédio havia sido construído pela construtora OAS, por meio de
licitação, e que a prefeitura havia contratado uma outra empresa para fazer um laudo sobre
a situação atual do prédio, para então avaliar que providencias deveriam ser tomadas.
em uma página do Facebook que serve como portal de notícias da região o M’Boi Mirim,
o Piraporinha News. Esse post, datado de 19 de fevereiro de 2016, descreve “um jogo de
Empurra-Empurra” em relação ao prédio e que, mesmo depois de quase um ano da
remoção dos moradores, eles ainda não tinham respostas sobre o que ia ser feito com ele.
A moradora Joseane faz uma descrição de todo o processo:
Como aponta Julia Moretti (2013), o texto da lei deixa claro que as remoções
devem acontecer apenas como última opção. A autora explica que apenas em casos nos
quais não sejam possíveis a aplicação de outras medidas para redução do risco é que as
famílias das ditas “áreas de risco” devem ser removidas. Cleso Carvalho et al. (2013),
também apontam que as ações de remoção em áreas de risco devem ser tratadas como
ações de “manejo de risco”, sendo as remoções a última medida a ser tomada, e apenas
quando seja impossível medidas alternativas. Os autores ainda ressalvam a importância
de perícias mais detalhadas nos processos de remoção por questão de risco.
Segundo a PNPDEC, cabe aos municípios “promover, quando for o caso, a
intervenção preventiva e a evacuação da população das áreas de alto risco ou das
edificações vulneráveis” (Brasil, 2012), assim como promover o processo de vistoria de
edificações em áreas de risco (Brasil, 2017).
Nas apostilhas do curso sobre Noções Básicas em Proteção e Defesa Civil e em
Gestão de Riscos de 2017, da Secretária Nacional de Proteção e Defesa Civil há
informações sobre o processo de vistoria de edificações e áreas de risco. Segundo os
autores, esse processo deve ser realizado obedecendo a estrutura dos órgãos de defesa
51
civil, e estas variam de município para município. Mas as vistorias não são
necessariamente conduzidas por agentes de proteção e defesa civil, tendo em vista que
exigem uma formação técnica bastante especifica. Porém, existem casos que os órgãos
de proteção e defesa civil possuem corpo técnico capaz de conduzir essa atividade, de
modo que é necessário conhecer a estrutura de cada município (Brasil, 2017). Por
exemplo, a Defesa Civil do Espírito Santo tem uma pequena apostila chamada Noções de
Avaliação de Risco Estrutural onde os aspectos técnicos são descritos.
Segundo os autores do curso sobre noções básicas em proteção e Defesa Civil e
em gestão de riscos de 2017, na vistoria de edificações e áreas de risco é indicada uma
articulação das áreas de engenharia da prefeitura, de corpos de bombeiro, ou mesmo o
estabelecimento de parcerias com universidades e órgãos de classe, como o CREA
(Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura). Alguns desses órgãos podem auxiliar
também em intervenções preventivas. Mas se a opção for de remoção, o processo deve
ser feito por meio da participação popular, com o apoio de áreas da assistência social e
habitação, e de representantes do poder público (BRASIL, 2017).
Segundo a Ordem Interna (OI), a análise da situação de risco deve ser feita por
um geólogo ou engenheiro da subprefeitura, com devida capacitação. O resultado dessa
análise deve ser apresentado por meio de um parecer fundamentado, relatando a
probabilidade de ocorrência de desastre, seguindo a classificação definida pelo
mapeamento de riscos no município, avaliando a possibilidade de restabelecimento das
condições de segurança no local e sugerindo providências necessárias (São Paulo, 2013).
O subprefeito deve encaminhar cópia do parecer para o Coordenador Geral de Defesa
Civil e ao Secretário Municipal de Coordenação das Subprefeituras - SMSP, para os
encaminhamentos necessários, devendo ser elaborado plano detalhado de intervenção
para a eliminação do risco, seja com obras de recuperação das condições de segurança do
local, seja mediante o isolamento da área, segundo a ordem de prioridades que for
estabelecida em planejamento (SÃO PAULO, 2013).
Moretti (2013) aponta que a Ordem interna difere da lei federal, pois restringe o
atendimento a casos de áreas públicas de risco e por risco determinado judicialmente.
Segundo ela, a OI faz restrições que a lei não faz, violando o princípio constitucional da
igualdade, e procura eximir da sua responsabilidade o dever de assegurar direito à
moradia.
a remoção seja efetivada, cabe aos órgãos da administração municipal e aos agentes
fiscalizadores adotar procedimentos necessários para o controle de ocupações irregulares.
Maria conta que no apartamento dela, que ficava na parte de trás do prédio, as
rachaduras nunca apareceram, mas no apartamento das irmãs dela que ficava na parte da
frente, as rachaduras e outros problemas apareceram. A prefeitura foi avisada e os
moradores, dos apartamentos com problemas, foram encaminhados para aluguel por três
meses, para serem realizadas reformas. Porém mesmo com as reformas as rachaduras
continuaram a aparecer e a Defesa Civil foi notificada e realizou o processo de avaliação
do prédio e as medidas de mitigação do risco foram tomadas - as reformas sobre as quais
Maria nos contou.
As fotos anexadas no processo por sua vez podem ser consideras dispositivos de
inscrição por permitirem a visualização das rachaduras e outros problemas estruturais que
confirmam o risco de os moradores permanecerem no prédio. Bruno Latour (2011), define
dispositivos de inscrição como qualquer estrutura, seja qual for sua natureza, tamanho e
custo, que possibilite uma exposição visual de qualquer tipo. Neste caso, as fotos
permitiram a constatação do risco eminente de desabamento do prédio, auxiliando o juiz
do caso na decisão de remoção imediata.
Foi prometido aos moradores um auxílio aluguel de R$ 1200, mas o valor real foi
de R$ 400, com esse valor não dá nem para alugar um barraco na favela, segundo Maria.
Primeiro ela foi morar em uma casa para a qual o aluguel era R$ 800 e quando eu vinha
pagar aluguel, água e luz dava R$ 1300. Eu morava perto da minha filha. Aí minha filha
mudou, pra outra casa grande, porque eles alugavam a garagem pra pôr o carro, aí
aluguei a outra casa, aí eu fui pra casa que ela morava. Essa casa que a filha morava
tinha um valor menor, R$ 600, que tinha um impacto menor no orçamento de Maria, que
é empregada doméstica.
Maria demostra um pouco de preocupação, ao falar do valor da indenização; diz
que, como não foi corrigido, ela não conseguiria comprar um apartamento se não tivesse
guardado um dinheiro, se não tivesse uma reserva. Falamos sobre um rapaz que tinha
uma deficiência e que ele conseguiu um apartamento logo em decorrência disso. Maria
não sabe explicar se foi um apartamento que saiu para ele ou se foi a indenização; mas
sabe que ele conseguiu algo logo e, que mora ali por perto.
A remoção dos moradores aconteceu no gradativamente entre os dias 18 a 21 de
junho de 2015, por decisão judicial (Processo nº 1019813-12.2015.8.26.0053). O juiz do
caso deixa claro a preocupação pela segurança dos moradores e por isso que eles devem
ser removidos em cinco dias. Decide que a municipalidade é responsável por providência,
visando a garantia do direito dos moradores, local adequado com condições de
habitabilidade mínimas para que os moradores pudessem residir até achar nova moradia.
Assim como o necessário para a mudança acontecer.
Nas normativas que orientam as remoções por questão de risco como Política
Nacional de Proteção e Defesa Civil (Lei 12.608/12), Ordem Interna nº 01/2013 da
prefeitura municipal de São Paulo não deixam claro os procedimentos adotados durante
o ato da remoção dos moradores, mas outro documento citado no capítulo 3, os princípios
básicos e orientações em para Remoções e despejos causados por projetos de
desenvolvimento (2007), elaborado pela relatoria especial de direito à moradia adequada
da Comissão de Direitos Humanos da ONU, mesmo que seja direcionado para questões
de infraestrutura e urbanização traz importantes orientações de como as remoções devem
ser conduzidas, como já descrito.
As orientações da ONU (2007), deixam claro que não pode haver uso de violência
ou força contra a população que será removida, mas é interessante notar nos autos do
processo que o Juiz deixa autorizado o uso da força policial caso necessário. Isso deixa
claro a preocupação do documento da ONU com a necessidade de as organizações da
sociedade civil acompanharem a remoção para que nenhuma violação de direitos
aconteça.
A situação é clara: trata-se de prédio “condenado” por vistoria feita por equipe
técnica e avalizado por processo judicial. Já haviam sido tomadas medidas para minimizar
o risco, com reformas estruturais que não sanaram os problemas. Usei a palavra
“condenado” para propor que, quando alguém, ou no caso, algo (o prédio) é condenado
impõe ou medidas extremas, como a condenação à morte; ou o confinamento por tempo
determinado. No caso desse nosso condenado, não há definição e é justamente essa
indefinição que torna a situação tão difícil para Maria e para os demais moradores.
dificuldades. Fica, então a pergunta: por que a empreiteira OAS, responsável pela
construção do prédio, não tomou tais providências necessárias, quando da construção do
prédio?
Porém, o prédio continua lá, com os mesmos riscos, e... agora reocupado.
Inclusive falar sobre essa ocupação gera tensão. Tanto Maria, quanto uma agente de
educação ambiental e assistente social (que trabalham nas proximidades) que conversei
sentem receio em falar sobre essa ocupação. O que elas falam é que não se trata de um
movimento organizado que ocupa o prédio, mas um grupo de moradores independentes.
Hoje o prédio tem inclusive empreendimentos comerciais dentro como, por exemplo, um
lava-rápido.
No caso de Maria a decisão judicial em primeiro momento foi por um aluguel que
como visto, foi definido no valor de R$ 1.200,00, para apartamentos de dois quartos e R$
1.100,00 para apartamentos de um quarto. O juiz da causa entendeu que os moradores do
prédio Guarapiranga eram proprietários de seus apartamentos e por isso não se
encaixavam no perfil para o aluguel social, mas na mudança do Juiz da causa o
entendimento mudou e os moradores passaram a receber o aluguel social.
decorrência de obras públicas; 2) Remoção em áreas que são objeto de intervenções dos
programas de urbanização de favelas; 3) Atendimento emergencial em decorrência de
desastres; 4) Remoção de moradores de áreas de risco; 5) Casos de extrema
vulnerabilidade.
Como é possível notar existem três casos que tem relação direta com remoções
que são passiveis de planejamento e uma tem a ver com situações de desastres.
Como Maria descreve, ela morou em uma casa que o aluguel custava R$ 800,00
com todas as despesas ficava um total de R$ 1.300,00, depois foi para uma casa de R$
600,00, mesmo assim, pensando que o valor do aluguel social é de R$ 400,00, ela ainda
teria como tirar do seu orçamento mensal R$ 200,00, enquanto espera pela sua
indenização.
Faz mais de cinco anos que Maria saiu do prédio Guarapiranga, e até agora a
indenização não saiu. O documento da ONU (2007), deixa claro que todos os removidos
precisam receber indenização justa, acomodações alternativas adequadas, acesso seguro
a alimentação, água potável e outros direitos básicos. Desse modo como nas outras etapas
60
os direitos humanos devem ser respeitados. Porém, no caso de Maria o processo pela
indenização está correndo até hoje.
Hoje o prédio se encontra ocupado e não sabem quem ocupa o prédio, muito se
fala sobre. Maria me fala que tem raiva de ver seu apartamentozinho ocupado, eu deixei
ele tão bonitinho. O prédio tem alguns comércios dentro, um lava-rápido, manicure dentre
outros. Um tempo atrás, um amigo de Maria, que também morou no prédio, usou a
desculpa de ir lavar seu carro para poder entrar lá. Me conta que ele conseguiu tirar
algumas fotos e nessas fotos dava para ver que estava piorando as rachaduras. O chão
estava mais solto, rachaduras maiores estavam bem visíveis, segundo ela. Essa história
continua, a indenização de Maria ainda não saiu, as rachaduras ainda estão lá, e pessoas
estão vivendo nesse prédio...
Ao longo dessa dissertação procuramos descrever a rede heterogênea das
remoções forçadas tendo como fio condutor o relato de Maria que passou por um processo
de dupla remoção. Partimos dos acontecimentos que foram aparecendo na fala de Maria
e em cada capítulo fomos conhecendo uma parte dessa rede heterogênea.
Na última conversa que tive com Maria no início de 2021, ela ainda estava
esperando pela indenização. Continuava preocupada como será para comprar uma nova
casa com o valor da indenização. O prédio está lá ocupado, pessoas ainda estão vivendo
lá, e o Estado ainda não os removeu. Maria não sabe ao certo o que virá, nem se as pessoas
irão sair e nem quando sua indenização sairá. Então, terminando com incertezas, sem
saber ao certo o que o futuro nos reserva.
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