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Psicologia e sociedade:
ampliando laços em tempos
de pandemia
DIVINÓPOLIS
2022
UEMG
Reitora: profa. Lavínia Rosa Rodrigues
Vice-reitor: prof. Thiago Torres Costa Pereira
Chefe de gabinete: Raoni Bonato da Rocha
Pró-reitora de Graduação: profa. Michelle Gonçalves Rodrigues
Pró-reitor de Extensão: prof. Moacyr Laterza Filho
Pró-reitora de Pesquisa e Pós-Graduação: profa. Vanesca Korasaki
Pró-reitora de Planejamento, Gestão e Finanças: Silvia Cunha
Capanema
FICHA CATALOGRÁFICA
“Se a educação sozinha, não transforma a
sociedade, sem ela tampouco a
sociedade muda.” (FREIRE, 2000, p.67)
Apresentação
Apresentação 4
Introdução 11
1 Disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-
-n-544-de-16-de-junho-de-2020-261924872
2 Disponível em: https://site.cfp.org.br/publicacao/praticas-e-es-
tagios-remotos-em-psicologia-no-contexto-da-pandemia-da-covid-19-re-
comendacoes/
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Surgiu da necessidade em discutir amplamente sobre o ensino
remoto com o objetivo de ouvir as experiências e anseios, bem
como as recomendações dos diversos atores envolvidos, para
que fossem construídas de forma colaborativa possíveis alter-
nativas direcionadas a adaptação de estratégias de ensino sem
renunciar aos princípios éticos, para que não se fortalecesse a
precarização do trabalho docente e da formação superior.
Tal panorama de promoção de aulas remotas e atividades
à distância trouxe uma série de preocupações, entre as quais
a utilização das tecnologias digitais de informação (TICs) e
comunicação de forma excessiva, reduzindo a expansão das
possibilidades de aprendizagem. Por outro lado, se bem inte-
gradas ao planejamento pedagógico, as TICs podem ser inte-
ressantes recursos de trabalho com método adequado, inten-
cionalidade, complementaridade e estrutura para que estas
sejam utilizadas por todos e todas. Aliás, esta é uma das prin-
cipais preocupações que o uso desmedido dos recursos de en-
sino à distância tem causado, a falta de estrutura e condições
de acesso às atividades remotas por parte de estudantes em
diferentes contextos sociais, provocando um aprofundamento
das desigualdades de condições. Isso aliado a falta de habili-
dade das instituições de ensino de acompanhar as diferentes
necessidades educacionais das(os) estudantes; inclusive a fal-
ta de condições de interação com o público da educação espe-
cial na perspectiva da educação inclusiva.
Nesse contexto, observa-se uma enorme exigência impos-
ta às(aos) profissionais da educação, no que diz respeito às
habilidades para promoção de aulas online, estrutura física,
material, tecnológica, rede de internet, preparação de conte-
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údo para uso remoto e que sejam atrativos aos diversos perfis
e necessidades dos estudantes, além das diferentes demandas
apresentadas pelos alunos em suas peculiaridades. Esse qua-
dro tem levado a sobrecarga e danos emocionais que atingem
a todos os sujeitos envolvidos, docentes e discentes, potencia-
lizando sentimentos como a angústia, a ansiedade, a sensação
de pressão, de cobrança constante, de estafa, desisteresse/
desmotivação por parte dos alunos. Destaca-se ainda a fragili-
dade nas relações interpessoais professor-aluno que tanto au-
xiliam no processo ensino-aprendizagem. Dessa forma, esse
cenário deve ser visto como uma questão de saúde pública.
Principalmente, neste contexto pandêmico, é necessário en-
tender que a problemática relacionada à saúde mental não é
exclusivamente pessoal, mas sim um problema social que de-
manda ações coletivas. Enfim, a educação também vive uma
mudança, que determinará os novos processos de ensino e
aprendizagem.
Diante das condições impostas pela pandemia a Psicologia,
enquanto ciência e profissão, tem se tornado uma importante
aliada, seja no acolhimento e cuidado para com a saúde men-
tal da população, o que tem acontecido principalmente por
meio da psicoterapia online, grupos de acolhimento, rodas de
conversas, seja por meio de estudos teóricos e práticos com o
objetivo de compreender os impactos da pandemia e elaborar
estratégias interventivas para diferentes públicos e suas pe-
culiaridades. É possível afirmar que a psicologia tem se des-
tacado no ranking das profissões mais acionadas no contexto
vigente, o que exige dos profissionais se reinventarem cotidia-
namente em prol da qualidade de vida da população. A crise
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instalada pela pandemia provocou atravessamentos significa-
tivos nas formas de organização e gestão de múltiplas profis-
sões, que se viram diante de um novo panorama, sendo fun-
damental construir pontes diante do caos. A psicologia, que se
trata de uma profissão que recorre a “relação”, ao “encontro”,
a “troca”, “a palavra” e a “presença” como importantes aliados
no processo de cuidado, precisou ressignificar seus saberes e
práticas para tornar possível ir de encontro aos muitos outros
que a demanda.
Dessa forma, acendeu múltiplas propostas de trabalho por
meios online, seja pelas plataformas digitais, mídias sociais
e demais recursos tecnológicos. Desde a resolução número
011/2018 do Conselho Federal de Psicologia (CFP) o aten-
dimento psicoterapêutico online era uma realidade, que se
acentuou grandemente no período pandêmico, possibilitan-
do novos formatos de trabalho, de acesso e de cuidado ofer-
tado pela psicologia. Tornam-se, portanto, fundamentais os
registros, trocas e possibilidades a partir das transformações
vivenciadas pelo Psicologia ao longo dos últimos anos, como
estratégias possíveis de atuação e de construção de saberes.
15
PARTE I
23
1.2 A Pandemia e o novo normal: A virtualidade
compulsória
Considerações Finais
Referências
40
Sigmund Freud, (J. Salomão, Trad, Vol. 14, pp 311-341). Rio
de Janeiro: Imago (Originalmente publicado em 1916).
43
2 Os ditos de dor e a escuta do sofrimento
46
contribui1 para amenizar as urgências subjetivas daqueles que
apresentam demandas de apoio psicossocial, colaborando
para a ampla rede de enfrentamento ao contexto pandêmico.
Testemunhamos que a pandemia repercutiu significativa-
mente na saúde mental, especialmente em razão do temor
pela exposição ao contágio, ao adoecimento e à morte e pe-
las situações de isolamento social. Esses aspectos intensifica-
ram o sofrimento mental e produziram alterações subclínicas,
principalmente em pessoas com histórico de somatizações ou
aqueles profissionais que estão na linha de frente na atenção
à saúde da população. No período de quarentena e situação
pandêmica ampliada, cresceram as dificuldades de enfren-
tamento das situações vividas, muitas reforçadas pelo isola-
mento e dificuldades de manutenção dos vínculos de suporte
financeiros e afetivos, indicando para a premência de ações
de apoio psicossocial, tais como implementamos com o pro-
jeto de extensão. Na análise da dimensão psíquica do sujeito
face ao acontecimento da pandemia evidenciaremos a dimen-
são do trauma e do real prescrutando o lugar e a função do
psicanalista nos atendimentos on-line que fazem parte de um
contexto mais amplo que podemos chamar de clínica e virtu-
alidades.
¹ Dado que o projeto continua ativo, exercendo suas ações, optamos por
manter o tempo verbal no presente.
47
2.1 Psicanálise connection
50
com situações de crise, em conduzir o tratamento pela via do
significante, alertando que: “Após o encontro, a colisão, com
o significante inassimilável, trata-se de reconstituí-lo[...]”
(LACAN, 1955-1956/2002, p.360). Esse impacto trazido
pelo que não tem nome, reitera a noção de real como o resto
impossível de simbolizar e como obstáculo ao princípio
do prazer, atualizando a advertência lacaniana de que “só
podemos chegar a pedaços de real” (LACAN, 1975-1976/2007,
p. 119). Todavia, apesar do real ser o inassimilável, aquilo que
não se pode simbolizar, Lacan salienta que a linguagem faz
furo no real: “É por essa função de furo que a linguagem opera
seu domínio sobre o real” (1975-1976/2007, p. 31). Ele chega
mesmo a afirmar que “a linguagem come o real” (p.31). Ao
atestar a eficácia da linguagem, sustentando sua função de
furo no real, o psicanalista sinaliza para aquilo que sempre
fora a operação primordial da práxis psicanalítica: operar com
palavras e seus efeitos.
Desta feita, compreendemos que o reconhecimento das
fontes de sofrimento que nos submete ao inevitável, também
direciona nossa atividade nos mobilizando na busca de
alternativas. Não seria este também um direcionamento para
os analistas em tempos de pandemia? “Se não podemos afastar
todo o sofrimento, podemos afastar um pouco dele e mitigar
outro tanto” (FREUD, 1929/1980, p. 105). Não vemos outra
saída para amenizar o mal-estar daqueles que nos procuram,
frente ao real avassalador da pulsão de morte, que não seja
pela fala: “Nada há de criado que não apareça na urgência, e
nada na urgência que não gere sua superação na fala” (LACAN,
1953/1988, p.242).
51
Tomamos a urgência subjetiva como um dispositivo de
acolhimento aos sujeitos em crise, que procuram apoio
psicológico a partir de demandas variadas, com o pedido de
acolhimento emergencial do sofrimento psíquico (CALAZANS;
BASTOS, 2008). Este dispositivo, tal como desenvolvido
nos atendimentos do PPOLAP, consiste em acolher a pessoa
e extrair, através de uma escuta diferenciada, aquilo que
permaneceu em estado de intenso embaraço ou esmagamento
do sujeito ou, em alguns casos, o que foi transformado em puro
ato com a subtração da palavra. Na urgência subjetiva, diante
do imprevisível que irrompe sobre o sujeito seja na forma do
diagnóstico de uma doença grave, da iminência da morte, da
morte de um ente querido ou mesmo da ruptura de um modo
de vida, o sujeito perde acesso à palavra.
A irrupção do real do psiquismo rompe, de forma radical,
com a cadeia das construções simbólicas que sustentam o
sujeito em seu lugar. Por isso é tão importante que o analista
possibilite a escuta porque ao fazê-lo ele está criando condições
para que o sujeito fale. Sustentar a fala e a escuta tem efeito,
uma vez que possibilita que o sujeito se posicione e possa advir,
mesmo que em um vislumbre. Somente ao escutar algo do
complexo fantasmático do sujeito é que o analista pode intervir
com vistas ao ato analítico, ou seja, a uma intervenção capaz
de possuir efeito terapêutico. Em outros termos, trata-se de
se abrir possibilidades de falas, de elaborações psíquicas face
àquilo que, do contrário, permaneceria na ecoante estática do
encontro maciço com o real que produz um efeito bem preciso:
o “desvanecimento do sujeito” (LACAN, 1960/1988, p. 831).
Clinicamente, é perceptível a condição específica em que o
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ato de desvanecimento do sujeito se instaura: exatamente
ali, sob diversas roupagens circunstanciais, em que o sujeito
vem a ocupar a posição de objeto face a uma voracidade que
o devora.
O analista possibilita uma pausa na pressa para escutar o que
ali se passa e para que o sujeito possa elaborar o acontecimento
que toca o real tornando-o parte de sua história. O impacto do
real, no momento de urgência subjetiva colapsa o instante de
ver com o tempo de compreender. Por isso, o analista precisa
suportar a repetição, a recusa, a lágrima, o desespero, para
que o paciente construa o sentido através de sua fala, de seus
significantes, atando-se ao fio do simbólico. Do instante de
ver, propiciamos um tempo para compreender, antes que se
efetue o momento de concluir. Na ampliação deste tempo a
psicanálise opera, em seus procedimentos metodológicos
e clínicos, sustentada pela linguagem e pelo campo da fala,
tomando o sujeito na sua dimensão radical de sujeito do
inconsciente.
A escuta e a intervenção do analista em um plantão
psicológico visam propiciar uma abertura, um espaço para
a subjetividade e não propriamente a construção de uma
relação analítica conforme ocorre nas sessões de uma análise.
O plantão psicológico, enquanto uma modalidade clínica
contemporânea, apresenta-se como uma prática preocupada
com o modo como as novas demandas psíquicas se configuram
e está voltada ao respeito do horizonte histórico de sentido em
que aquele que endereça o seu pedido de ajuda encontra-se
inserido.
As situações de emergência de saúde pública mundial podem
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causar crises e traumas exigindo dos profissionais propostas
de intervenção apropriada para este tipo de situação. O
termo crise, em grego Krisis, designa ‘ação ou faculdade de
distinguir, decisão, momento decisivo’; em Latim Crisis,
‘momento de decisão, de mudança súbita’. Na medicina,
‘momento que define a evolução de uma doença para a cura
ou para a morte’ (HOUAISS, 2001)3. O processo de crise
pode advir de eventos diversos, mas em todos os casos marca
um período de desequilíbrio psicológico, resultante de um
acontecimento que se configura insolúvel para o sujeito
a partir das estratégias de enfrentamento que ele possui.
Portanto, a intervenção em crise propicia o enfrentamento de
um evento traumático, amenizando os efeitos negativos, tais
como danos físicos e psíquicos, incrementando a possibilidade
de novas habilidades de enfretamento e reforçando a busca
de alternativas e novas perspectivas. Nessas considerações,
noções como trauma, traumatismo e catástrofe, parecem
ser tomadas como sinônimos, todavia a diferenciação destes
conceitos possibilita elucidar o campo teórico com vistas a
ampliar as intervenções clínicas pertinentes a cada situação.
³ https://www.dicio.com.br/crise/
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sinalizando para um encontro traumático com a linguagem.
Todavia, esse mesmo discurso que é fonte de sofrimento é
também de tratamento para as dores da existência. Como bem
sinaliza Soler: “[...]maldição que o discurso, antes, modera”
(2021, p. 25). Se a palavra (mal)dita pode adoecer é também
a palavra que pode libertar, reiterando que o método psica-
nalítico é um tratamento baseado na fala. É a partir da escuta
de muitas falas, prenhes de sofrimento durante esse período
pandêmico, que extraímos da experiência clínica a presença
da dimensão do trauma como um dos efeitos da pandemia nas
subjetividades.
Um acontecimento decisivo e traumático como este trazido
com a peste, por sua potência em modificar radicalmente o
sentido da história, resumiu simbolicamente a pandemia da
COVID-19 como evento decisivo na aurora do século XXI. É
preciso atentar para os desdobramentos psíquicos desse acon-
tecimento que deve ser analisado, de modo singular, a par-
tir dos efeitos desencadeados em cada sujeito. Como destaca
Birman (2021), o terror da morte se impõe em larga escala
no psiquismo reativando intensamente o que Freud (1929)
chamou de desamparo originário do ser, indicando que a con-
dição de existência do sujeito na civilização é apoiada numa
condição de desalento do psiquismo.
Acerca dos efeitos do trauma, Freud (1920) se refere à
energia pulsional que é transferida para o corpo como último
recurso capaz de conter o transbordamento de excitações no
psiquismo. Neste momento de sua obra, ele examinara a ques-
tão relativa à transferência da energia pulsional para o corpo a
partir da distinção entre dor física e o trauma. A dor seria uma
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efração do escudo protetor em área limitada e o trauma, uma
efração em grande extensão. A respeito desse último, Freud
comenta: “descrevemos como traumáticas quaisquer excita-
ções provindas de fora que sejam suficientemente poderosas
para atravessar o escudo protetor” (FREUD, 1920/1980, p.
45). O analista está em busca de compreender o que ocorre
nos casos que contradizem a dominância do princípio de pra-
zer e o trauma parece ser o fator capaz de lançar luz à questão.
Nas situações traumáticas, o princípio de prazer é posto fora
de ação, assim o conceito de trauma conduz a uma ruptura da
barreira contra os estímulos.
Vemos, nesses casos de ruptura da barreira defensiva, mo-
dos de gozo envolvidos na constituição dos sintomas que afe-
tam o corpo evidenciando um excesso pulsional desvinculado
de uma representação. Muitos sujeitos ouvidos no PPOLAP
narraram sofrimentos subjetivos, condizentes com sintomas
de depressão, ansiedade, luto, sentimentos de angústia, impo-
tência e tristeza, assim como o medo da própria morte ou da
morte de amigos e familiares. Assim, conjecturamos que devi-
do à angústia experimentada, o recalque pode ser convertido
em sintoma físico promovendo o desaparecimento da angús-
tia. Deste modo, o sintoma é a resposta para a angústia que
emerge do encontro com o inassimilável do real traumático.
Trata-se de uma forma de tentar solucionar o conflito atra-
vés do recalque da ideia que representa o impulso libidinal
e, simultaneamente, de converter o afeto correspondente em
sintomas no corpo (GONÇALVES, 2022). Estes, por seu tur-
no, possuem vasta sintomatologia, desde crises de angústia
com distúrbios cardíacos até alterações do sono e dos hábitos
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alimentares e ainda quadros de dermatites tópicas dentre ou-
tros.
De volta a teoria psicanalítica, sabemos que Freud substi-
tui a neurótica pela teoria da fantasia traumática de sedução
quando a ideia de realidade psíquica e o papel desempenhado
pelas fantasias inconscientes passam a ser mais valorizados
em sua escrita. Contudo, na base do traumático a sexualidade
continua presente, não mais assentada na ideia de que uma
sedução de fato ocorrera, mas embasada na noção de reali-
dade psíquica, ou seja, do efeito da fantasia na constituição
do sintoma. A teoria do trauma concebida em dois tempos
permanece, mas com uma diferenciação no material em que
os tempos incidem. Esse material refere-se à experiência de
coisas que são escutadas e que a princípio não se ligam a sen-
tido nenhum, este só chega mais tarde (aprés coup), produ-
zindo as fantasias. Assim, vemos que o fator traumático nun-
ca fora abandonado por Freud, passando a ter uma noção
mais abrangente e incluindo outros aspectos. A prova disso
é que em um dos seus últimos textos, ele retoma o assunto,
demonstrando que nunca renunciou ao caráter traumático na
etiologia das neuroses. Retomemos sua pena: “Denominamos
traumas aquelas impressões, cedo experimentadas e mais tar-
de esquecidas, a que concedemos tão grande importância na
etiologia das neuroses” (FREUD, 1939/1980, p. 91). O autor
enfatiza que a gênese da neurose invariavelmente remonta a
impressões primitivas da infância e reitera: “Nossas pesquisas
demonstraram que aquilo que chamamos de fenômenos (sin-
tomas) de uma neurose são o resultado de certas experiências
e impressões que, por essa mesma razão, encaramos como
57
traumas etiológicos” (1939/1980, p. 92).
Freud sempre se interessou mais pelo trauma sexual, ou
seja, aqueles ligados às formações inconscientes, contudo, no
cenário pandêmico atual, o interesse se volta aos traumas da
civilização. Soler (2021) destaca que a diferença fundamen-
tal entre eles é que um trauma (originário), por se inscrever
no inconsciente, pode ser esquecido, ele retorna na repetição,
mas de maneira mascarada, condicionando “o esquecimento
necessário para viver. O esquecimento é precisamente que o
trauma tenha se inscrito” (SOLER, 2021, p. 64). O mesmo não
ocorre com os traumatismos, uma vez não inscritos no saber
inconsciente se tornam um problema. Temos assim, dois tipos
de traumatizados: os sujeitos que por serem traumatizados de
origem se esqueceram (sendo que a análise talvez possibilite
reconstruir algo, trazendo de volta e propiciando um sentido
a posteriori) e os traumatizados da civilização que segundo
Freud (1920), se caracterizam pelo esquecimento impossível.
Não é nosso interesse, nesse momento, percorrer os des-
dobramentos teóricos do trauma à fantasia fundamental, mas
afirmar a tese definitiva de Freud, segundo a qual toda neuro-
se tem origem traumática e efetuar a distinção entre o trau-
ma original e os traumas da civilização. Quanto a este último,
Soler (2021) usa a expressão traumatismo referindo-se a aci-
dentes da história que podem ser coletivos ou individuais, mas
sempre eventuais: “[...]marcas subjetivas ou rupturas produ-
zidas pela irrupção do infortúnio ou de um excesso vindos de
fora, que assolam o sujeito ou o seu corpo repentinamente,
sem que possamos atribuir isso àquele que sofre as consequ-
ências com terror” (SOLER, 2021, p. 22). Trata-se de um real
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que exclui o sujeito, sem relação com o inconsciente ou com o
desejo próprio de cada um, diante do qual nada pode ser feito
exceto sofrer as consequências, como tantos acontecimentos
inesquecíveis.
Na perspectiva freudiana, a teoria do trauma está entrela-
çada tanto ao desamparo quanto à angústia que responde a
uma situação de perigo real, mas também de perigo subjeti-
vo. Este último se refere a um aumento de excitação corporal
ou psíquica, impossível de ser dominada já que o sujeito não
pode controlar nem regular. A angústia surge como efeito do
afeto liberado do confronto com esse perigo que, em muitos
casos, remete o sujeito ao desamparo. Portanto, como lembra
Birman (2021), a angústia e o trauma consolidam metapsico-
logicamente o desamparo e o desalento no sujeito.
Sobre o desamparo, Freud (1926) define: “Denominemos
uma situação de desamparo dessa espécie, que ele realmen-
te tenha experimentado, de situação traumática” (FREUD,
1926/1980, p.191). Ao evidenciar a articulação entre trau-
ma e desamparo, o psicanalista não esclarece sobre o tipo de
trauma capaz de lançar o sujeito ao desalento. Contudo, ao
destacar que “a angústia é a reação original ao desamparo no
trauma, sendo reproduzida depois da situação de perigo como
um sinal em busca de ajuda” (1926, p.192), Freud fornece uma
definição que pode ser aplicada tanto ao trauma sexual (origi-
nal) e constitutivo do sujeito, quanto ao trauma da civilização
(atual), pois ambos clamam pela busca de ajuda. Impõem-se
assim, uma dupla atualização com relação à natureza e à fun-
ção do trauma na subjetividade. Vejamos como esses traumas
se distinguem e/ou se articulam.
59
Inicialmente Freud delimita o trauma na origem da vida in-
fantil, com efeito de sintoma para o neurótico, generalizando,
posteriormente, para o civilizado ou, para o ser falante, diria
Lacan. O trauma é universal, próprio do humano e, em todo
caso, se refere ao sexual. Contudo, se o trauma sexual é co-
mum a todo falante, suas sequelas de sintoma são singulares,
específicas em cada um, em função da posição fantasmática de
cada sujeito. Sua aparição data de fins do século XIX, momen-
to em que Freud, ao deparar-se com os sintomas histéricos,
propõe o trauma sexual como cerne do inconsciente, portan-
do o segredo do sintoma. Algum tempo depois, ao constatar
a inscrição de marcas subjetivas produzidas pela irrupção de
um infortúnio vindo do exterior, o analista demarca os trau-
mas da civilização, mencionando os acidentes ferroviários e
as guerras A estes, contemporaneamente, acrescentamos as
catástrofes4, a violência dos grandes centros urbanos, o ter-
rorismo, os atentados sexuais, os refugiados por segregações
raciais, étnicas, políticas e/ou religiosas e muitas outras con-
junturas traumáticas que se apresentam no cenário atual.
Birman (2021) destaca que a experiência psíquica do su-
jeito na pandemia é caracterizada primordialmente pelo
trauma, dado que o sujeito não pode reconhecer a antecipa-
ção do perigo sendo, assim, abalado pela surpresa do acon-
tecimento trágico, acarretando a angústia real e o trauma
como seu correlato. Para o autor: “Seria, então, a partir dessa
60
infraestrutura traumática que as diferentes formações sinto-
máticas se ordenariam no sujeito como linhas de fuga e esta-
beleceriam sua cartografia psíquica na recepção da experiên-
cia do trauma em curso com a pandemia do novo coronavírus”
(BIRMAN, 2021, p. 139).
As apropriações do autor à teoria freudiana do trauma são
úteis ao aproximar a questão do trauma à pandemia em curso.
Lembremos com Freud (1926) que a angústia real diz respeito
a um perigo que é conhecido, enquanto a angústia neurótica
remete a um perigo desconhecido, que ainda precisa ser des-
coberto. Freud esclarece: “a análise revela que ao perigo real
conhecido se acha ligado um perigo pulsional desconhecido”
(1926, p.191). Assim, vemos que a angústia diante de um trau-
ma atual, não se difere daquela presente face a um trauma se-
xual, de modo que o manejo clínico é o mesmo, desde que seja
seguida a orientação do autor: “Levando esse perigo que não
é conhecido do ego até a consciência, o analista faz com que a
angústia neurótica não seja diferente da angústia realística, de
modo que com ela se pode lidar da mesma maneira” (FREUD,
1926, p. 190).
Não satisfeito em distinguir os tipos de angústia prove-
nientes de situações traumáticas, Freud avança em suas ela-
borações indagando a essência e o sentido de uma situação de
perigo. Indagação útil também nos dias que correm ao ques-
tionarmos, no um a um dos sujeitos acolhidos em seu sofri-
mento face a pandemia: qual a essência da angústia em jogo?
O alerta freudiano indica que devemos estar atentos à força
do sujeito em comparação com o tipo de desamparo envolvi-
do em cada situação: “desamparo físico se o perigo for real e
61
desamparo psíquico se for pulsional” (FREUD, 1926, p. 191). O
que percebemos é que em muitos casos, ambos estão presen-
tes, um traumatismo atualizando um trauma original, ou dito
de outro modo, o vírus, em sua invisibilidade, tem provocado
tanto situações de desamparo físico, quanto psíquico. Obser-
vamos a angústia, como reação ao desamparo proveniente do
trauma, sendo reproduzida por meio de sonhos, lembranças,
atuações e sintomas somáticos, reiterando o dizer freudiano:
“O ego que experimentou o trauma passivamente agora o re-
pete ativamente, em versão enfraquecida, na esperança de ser
ele próprio capaz de dirigir seu curso” (1926, p. 192). Agindo
assim, passando da passividade à atividade buscam dominar
psiquicamente suas experiências dolorosas.
Na cartografia psíquica, extraída da experiencia do trauma,
é possível localizar diferentes formações sintomáticas, esbo-
çadas a partir das produções psíquicas extraídas do registro
simbólico daquilo que porta uma dizibilidade possível. A escu-
ta psicanalítica dos ditos de dor daquilo que, não sem esforço,
foi transformado do indizível ao dizível nos acolhimentos do
PPOLAP, evidencia que uma destas formações sintomáticas,
já fora evidenciada por Freud, no final do século XIX, quando
denominou de neurose de angústia e que atualmente o dis-
curso psiquiátrico chama de Síndrome do Pânico. Ele assim
descreve a sintomatologia clínica da neurose de angústia:
[...] nosso inconsciente tem tão pouco uso hoje, como sempre teve,
para a ideia de sua própria mortalidade (FREUD, 1919, p.302).
69
Referências
74
3 Tecnologias da informação e comunicação
e formação do psicólogo: uma experiência de
plantão psicológico na abordagem
cognitivo-comportamental
75
interesse crescente da utilização das TIC’s na psicologia clí-
nica. No Brasil, os primeiros atendimentos foram oferecidos
em 1995 pelos endereços eletrônicos: Help on-line e Psicólo-
gos on-line, ainda sem o respaldo da American Psychological
Association (APA) e do Conselho Federal de Psicologia (CFP)
(CAMARGO, 1999).
Com a chegada do novo Coronavírus e com as mudanças
e adaptações necessárias para que a atuação dos psicólogos
e psicólogas continuassem, foi necessário encontrar novas
maneiras de trabalho que possibilitassem o prosseguimen-
to dos atendimentos clínicos e que respeitassem as medidas
sanitárias. Essa iniciativa se configurou como fundamental,
pois, segundo pesquisas realizadas pelo Ministério da Saúde
(2020), quase 30% do número de entrevistados afirma ter
buscado atendimento especializado para questões que envol-
vem a saúde mental durante o momento crítico de isolamento
social vivenciado durante a pandemia, o que corrobora com
a emergência de uma remodelação para esses atendimentos
psicológicos.
Diante disso, o Conselho Federal de Psicologia (BRASIL,
2020) emitiu a resolução 04/2021 em que amplia e flexibiliza
o trabalho da categoria, no que se refere ao uso das TICs du-
rante a pandemia. Além disso, diversos documentos, vídeos e
podcasts foram criados com o intuito de ajudar os psicólogos e
psicólogas a continuarem os atendimentos utilizando esse re-
curso. Como exemplo, recentemente a Revista Diálogos (CFP,
2021) publicou uma edição nomeada “A Prática Psicológica
Na Pandemia: de norte a sul histórias de profissionais que
precisaram encontrar alternativas em meio à crise”, em que
76
trabalha diferentes temáticas que se ligam a esse momento.
Em uma das entrevistas realizadas, o psicólogo André Neves
afirma que diante do atendimento online:
Primeiro, é importante compreender que essa modalidade
ampliou o acesso à psicologia, mas ainda apresenta muitas li-
mitações, especialmente no que se refere à rede disponível e
de boa qualidade. Também ajudou na rapidez e na facilidade
(pelo menos para quem domina o uso de celular e/ou compu-
tadores) para acessar o serviço psicológico, pois permite que
a pessoa nem precise sair de casa, além de incluir pessoas que
tinham alguma resistência em procurar uma psicóloga [...]
(CFP, 2021, p. 30)
Perante o exposto, é válido apontar também que todas es-
sas transformações refletiram nas práticas inerentes à forma-
ção do psicólogo, suscitando a necessidade de modificação dos
atendimentos, acolhimentos e plantões psicológicos realiza-
dos pelos estágios curriculares nas universidades. Para isso,
o CFP e a ABEP – Associação Brasileira de Ensino em Psi-
cologia – (2020), desenvolveram um material que orienta e
faz recomendações sobre as “Práticas e Estágios Remotos em
Psicologia no Contexto da Pandemia da Covid-19”, que, entre
outros aspectos, aponta para a possibilidade do uso das TICs
em todos os contextos mencionados no título.
Em vista disso, os acolhimentos e plantões psicológicos
desempenhados pelos estagiários podem seguir por diversos
caminhos, uma vez que a Psicologia está em constante cons-
trução e abarca diversas áreas, assim como, múltiplas abor-
dagens teóricas. Nesse sentido, o presente capítulo tem como
principal enfoque apresentar as práticas de estágio no formato
77
plantão psicológico, na abordagem Cognitivo-Comportamen-
tal, destacando as possibilidades e desafios do uso das TICs.
Especificamente, o capítulo aborda as possibilidades de con-
dução e técnicas a partir da exposição das experiências com o
Plantão Psicológico online conduzido por um grupo de estagi-
árias de Minas Gerais, e como a TCC foi eficaz como suporte
nos atendimentos relacionados a casos de Transtornos de An-
siedade, Autoestima e Luto.
81
3.2 A Terapia Cognitiva-comportamental: Aspectos
conceituais, princípios e técnicas
102
Considerações finais
103
Referências
106
LEAHY, Robert L. Técnicas da terapia cognitiva: manual
do terapeuta. Trad: Sandra Maria Mallmann da Rosa. 2° edi-
ção. Porto Alegre: Artmed, 2018, 506 p.
107
RISO, Walter. Apaixone-se por si mesmo: O valor impres-
cindível da autoestima. São Paulo: Planeta, 2012.
109
4 Buscando caminhos para a pesquisa e ex-
tensão em tempos de pandemia
Considerações finais
Referências
128
5 O adolescente e a conversação "on-line":
desafios e possibilidades
148
Considerações finais
Referências
Mara Salgado
Ana Luiza Martins
Tatiana Fonseca Linhares
158
paz de brincar com a realidade. Contudo, essa outra forma de
operar com o pensamento não está isenta dos condicionamen-
tos das forças históricas que constituem o processo de subje-
tivação. Ao contrário, por sua intimidade com uma natureza
em transformação (filogenética e ontogenética), a criança tira
proveito dessa outra razão para mobilizar os condicionamen-
tos sociais em favor de sua adaptação e resistência à realidade
(SALGADO, 2019).
Nesse sentido, refletir acerca da subjetividade na infância
requer reconsiderar, a cada tempo histórico, que a comple-
xa atividade no desenvolvimento biológico e psicossocial da
criança se assenta num tempo-espaço de continuidades e rup-
turas culturais, revelando nas crianças vulnerabilidades, im-
permanências, afetos, aprendizagens e (re)criações que dizem
respeito quantitativa e qualitativamente aos estímulos inter-
nos e externos que a cultura produz.
159
fortemente relacionado aos sintomas manifestos do Transtor-
no de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), a saber, de
comportamento inquieto, incapaz de concentração nas ativi-
dades e na interação social, em que a criança busca constante-
mente novos estímulos nos objetos e espaços sem, contudo, se
satisfazer com nada. Em última instância, uma decorrência de
um específico e refinado entretenimento tecnológico que afeta
a atenção voluntária e a memória e produz comportamentos
opostos à experiência temporal e espacial que a infância pode-
ria resguardar (TÜRCKE, 2016).
A produção de conteúdo midiático para crianças constitui
a materialidade de entretenimentos culturais que serviram de
suporte para a construção da infância como categoria social
desde a modernidade, bem como para delinear uma formação
de mentalidade coletiva compatível com as regras morais e
políticas, que a partir de meados do século XIX e, mais nitida-
mente, após a revolução industrial passam a serem difundidas
por um tipo de imprensa pedagogizante da educação familiar
e escolar dos sujeitos modernos. Desde a invenção do rádio e
sua difusão na esfera doméstica, a dinâmica familiar se reor-
ganizou contando com os programas radiofônicos de notícias,
musicais, narrativas de folhetins e, também, programas de
histórias para crianças (CAMBI, 1999).
Se programas de narrativas radiofônicas para crianças pos-
sibilitaram a criação de conteúdos de alto nível intelectual,
como as histórias de Walter Benjamin apresentadas na série
de programas nomeada A hora das crianças (BENJAMIN,
2015), na Alemanha do início do século XX, seus impactos no
aparelho sensório dos ouvintes e quanto ao distanciamento
160
afetivo entre os membros familiares dentro da mesma sala
da casa, já naquela época, eram considerados, por pensado-
res críticos da modernidade, como produtores de uma frie-
za específica nas subjetividades em formação (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985)2.
Nesse sentido, não é novidade que as crianças consomem
conteúdo midiático eletrônico, sofrem os impactos sensoriais
modificados a cada tempo histórico e que as dinâmicas fami-
liares contem com tais programações para o entretenimento
infantil. Entretanto, do rádio, passando para a televisão até
o smartphone, e dos programas de contação de histórias de
Walter Benjamin ao Xou da Xuxa3 e, atualmente, aos canais
virtuais do YouTube, há diferenças importantes quanto à me-
diação tecnológica, à qualidade intelectual e sensível dos con-
teúdos produzidos e, consequentemente, quanto aos impactos
na subjetividade das crianças.
A tecnologia e os produtos midiáticos mudaram, assim
como os contextos sociais e as subjetividades daqueles que
os produzem e os consomem, configurando novos rearranjos
subjetivos no desenvolvimento das crianças, que podem indi-
car algo sobre os rumos psicossociais que estamos tomando.
163
Nesse sentido, interessa ao campo da Psicologia do Desen-
volvimento a compreensão das atualizações da materialidade
da vida, que constituem os processos psicossociais e indicam
os meios dos quais se utilizam os humanos para se apropri-
arem da cultura e, se possível, transformá-la em prol de to-
dos. Esse entendimento exige que as mudanças culturais que
operam formas qualitativamente diferentes, daquelas ante-
riormente analisadas nas dinâmicas sensoriais, cognitivas
e afetivas da criança, sejam constantemente reconsideradas
pelos estudos da Psicologia do Desenvolvimento, que buscam
interlocuções com outras áreas parcelares do conhecimento,
para a compreensão das potencialidades dos indivíduos e das
experiências que compõem a subjetividade na infância. Há de
se considerar que na atualidade as experiências estão, de so-
bremaneira, operacionalizadas pela alta tecnologia – hi-tech
–, indicando que desde muito cedo a subjetividade infantil
está entretida pela excessiva estimulação audiovisual e for-
jada pelos valores e significados que constituem sua forma e
conteúdo virtuais
166
6.3 Análises dos resultados ou reflexões sobre os
achados no tubo digital
167
Tabela1: Quantitativo de inscritos e visualizações dos canais selecionados
168
6.3.1 Sobre as categorias de análises
6.3.1.1 As relações familiares
171
6.3.1.2 Educação para o trabalho e o consumo
12 É recorrente nos vídeos a temática ser a ida às lojas para comprar brin-
quedos. Em um dos vídeos Diana e seu pai fazem uma festa para come-
morar a chegada dos produtos de sua marca, I love Diana, nos supermer-
cados Walmart nos Estados Unidos.
174
desejo pelo consumo de objetos, que tem menos a ver com o
brincar e mais com a padronização de desejos, objetos e sta-
tus social, facilitando, assim, a ideologia da correspondência
entre forma de trabalho, desejos particulares e circulação de
mercadorias.
A produção de correspondências entre meios de trabalho
(atuação das crianças), desejos e consumo, mediada pela tec-
nologia de alcance global, intensifica um tipo de educação
para um estado de subjetividade indiferenciada, difundida
pela ideologia do capitalismo.
Nos termos dos autores da Teoria Crítica da Sociedade, tal
processo se refere aos sistemas de valores da indústria cul-
tural13, que se constitui em técnicas de produção e veiculação
de uma lógica de despersonalização dos indivíduos. Por meio
da mesmice da produção e difusão de produtos padronizados,
a indústria cultural opera um esquema de interiorização da
dominação social na consciência, ao exigir uma regressão psí-
quica dos consumidores na adequação à falsa ideia de que os
produtos existem para atender às necessidades humanas em
privilégio das econômicas. Ou seja, no capitalismo, a indústria
cultural produz junto às mercadorias corpos e espíritos dis-
postos não só ao consumo irrefletido, mas a se tornarem in-
dústrias culturais de si mesmos (ADORNO; HORKHEIMER,
1985).
175
6.3.1.3 Desigualdades de gêneros
6.3.1.4 Imaginação
178
produção profissional de edições tecnológicas, que a partir da
junção do áudio, da imagem e dos efeitos especiais colocam
uma cena em ação. Tais produtos culturais (comerciais) reali-
zam, em parte, via tecnologia, um processo similar à complexa
atividade da mente de composição de diferentes elementos da
realidade em novas combinações que interessam à satisfação
particular criativa (VYGOTSKY, 2014).
Desse modo, a produção audiovisual imagina pelo especta-
dor porque foi imaginada por alguém, porque houve intenso
trabalho de transfiguração de conteúdo na forma reificada de
música, desenho e animação, do qual o espectador tirará pro-
veito para se distrair, mas também para ampliar seu repertó-
rio de imagens, discursos e informações.
As consequências da recepção excessiva dessa imagina-
ção pronta para as subjetividades infantis é o que Türcke
(2016) considerou que está nas bases da cultura do déficit de
atenção. Cuja excessiva estimulação audiovisual acarreta um
tipo específico de dependência em sensações que não podem
ser satisfeitas, já que são representantes de uma insatisfação
anterior e primária no psiquismo, mas, compulsivamente, de-
mandam novas sensações, num estado constante de dispersão
concentrada. Ou seja, crianças determinadas a se distraírem,
a não lembrarem e sem força psíquica o suficiente para ima-
ginarem.
Já do ponto de vista das crianças youtubers, ao menos no
momento que preparam e gravam os vídeos, as crianças se-
guem um roteiro coordenado pelos pais ou brincam mediadas
pela filmagem. Dessa forma, a brincadeira é permeada por as-
pectos do mundo do trabalho que concorrem com elementos
179
primordiais do brincar, que são o divertimento voluntário e a
imaginação (SALGADO, 2019).
Nesse sentido, a brincadeira, que é atividade integrante
do desenvolvimento da criança, num primeiro momento por
meio de operações motoras e depois imaginativas, fica limita-
da ao campo de alcance da câmera e ao roteiro que atraia mais
interações virtuais. Foi comum observar roteiros cujos temas
eram crianças jogando gameplays e usando efeitos especiais.
No primeiro caso, as crianças espectadoras têm acesso à tela
do game na tela de seu dispositivo digital e, no segundo, as
crianças youtubers somente têm acesso à brincadeira com-
pleta depois que ela é editada, como espectadoras da própria
imagem.
Ressalta-se que os recursos tecnológicos de efeitos espe-
ciais, utilizados em produções profissionais, estão disponíveis
em versões simplificadas e limitadas para serem utilizadas em
dispositivos móveis, acessíveis a muitas pessoas, atualmen-
te. Nos canais com crianças youtubers analisados, o mesmo
efeito especial foi utilizado por todos em situações diferentes,
indicando que a própria tecnologia virtual passa a fazer par-
te da suposta brincadeira, que só estará terminada depois da
edição, sem as crianças, portanto.
O efeito especial é o que determina o roteiro da brincadeira,
que já foi vista em outro canal, e, nesse sentido, talvez possa
ser dito que ele ocupa o lugar da imaginação. Contudo, uma
imaginação que nada cria de novo.
A imaginação, junto com a mimese, aparece nos escritos
de Walter Benjamin como matéria-prima da brincadeira, as-
sim como a memória é a matéria-prima da experiência (BEN-
180
JAMIN, 2002). Juntas, estas faculdades do pensamento, mi-
mese, imaginação e memória, mobilizam uma experiência na
infância capaz de perceber, de forma apaziguada, a novidade
das interações que a criança realiza a cada descoberta com o
mundo. Dito de outro modo, o medo diante do novo e, nisso,
o impulso para dominá-lo cresce na vida psíquica das crian-
ças ao passo que as mediações culturais exigem o controle e o
esquecimento da mimese, da imaginação e da memória – da
experiência com a novidade.
Vale dizer que nessa perspectiva, a experiência na infância
conta com a corporalidade da criança para se embrenhar nos
objetos e relações com o mundo.
Walter Benjamin, há tempos, diagnosticou o empobreci-
mento da experiência decorrente do ritmo imposto pela mo-
dernidade industrial capitalista (BENJAMIN, 1994). Desse
modo, a falta de interação social na infância e o empobreci-
mento das atividades imaginativas não podem ser atribuídas
unicamente aos fenômenos digitais, mas certamente, eles
contribuem para assegurar interações à distância e um tipo de
imaginação que, já na infância, age contra o sujeito em cons-
trução, no sentido contrário ao apaziguamento dos conflitos
que o medo suscita.
Considerações Finais
Referências
183
ASSEMANY, Nancy Mendonça. Superestimulação na infân-
cia: uma questão contemporânea. Cadernos de psicanáli-
se, Rio de Janeiro, v. 38, n. 34, p. 231-243, 2016.
187
7 Problemas de sono em adultos jovens: ex-
posição a luz azul e o uso de aparelhos ele-
trônicos como fatores perturbadores
189
7.1 Qualidade de sono em jovens adultos
196
Nesse sentido, a depender da fase do ritmo de atividade, ou
seja, as preferências pelo tempo de vigília e sono, horário do
dia para realizar tarefas intelectuais e físicas, os indivíduos
podem ser classificados em diferentes cronotipos (ou tipolo-
gias circadianas), que tendem a permanecer estáveis no indi-
víduo. São eles: matutino, intermediário e vespertino. Sabe-se
que essa distribuição é influenciada por fatores individuais,
como idade e sexo, fatores ambientais, fotoperíodo perinatal e
a exposição a luz (ADAN et. al, 2012). Essa tipologia circadia-
na pode ser medida de forma confiável e demonstra ter uma
base biológica (DEYOUNG et. al, 2007) com variação do gene
PER3, apresentando um PER35/5 para preferências matutinas
e PER34/4 indicando preferências noturnas. Além disso, as di-
ferenças na expressão rítmica entre matutinos e vespertinos
podem ser encontradas em traços de personalidade, hábitos e
estilos de vida. Lembrem-se que bastonetes e cones inervam
ipRGCs e, por consequência, comportamentos circadianos
podem estar associados a estes mecanismos.
A descrição tipológica do ritmo circadiano é um importante
fenótipo relacionado aos componentes cognitivos. As influ-
ências das variações do tempo do dia no desempenho cogni-
tivo se diferem entre os indivíduos, especialmente durante
a noite biológica, o que sugere diferenças na interação entre
processos circadianos e homeostáticos. Essa interação não só
determina os níveis de sonolência e alerta, mas também afe-
ta funções cognitivas de ordem mais elevada (DIJK; DUFFY,
1992; GAGGIONI et. al, 2014). Deste modo, a luz pode afetar
processos do sono, da vigília e da cognição, por meio de efei-
tos de sincronização e mudança de fase no relógio circadiano
197
(CAJOCHEN et al., 2005; RAHMAN et al., 2014).
203
Considerações Finais
Referências
205
CAJOCHEN, C., et al. High sensitivity of human melatonin,
alertness, thermoregulation and heart rate to short wavelength
light. J. Clin. Endocrinol. Metab. v.90, p.1311–1316, 2005.
209
SCHMIDT, C.; MAQUET, P.; PHILLIPS, C. Responses to
comment on “Homeostatic sleep pressure and responses to
sustained attention in the Suprachiasmatic area”. Science,
v.328, p. 309, 2010.
210
VAN DER LELYS, S., et al. Blue blocker glasses as a counter-
measure for alerting effects of evening light-emitting diode
screen exposure in male teenagers. J Adolesc Health. v.56,
n.1, p.113–119, 2015.
211
8 Ser mãe e professora: A dupla jornada do
trabalho remoto
214
8.1 O trabalho remoto: dificuldades e possibilidades
218
um trabalho excessivo que não condiz com a remuneração. No
caso das mulheres professoras, essas tarefas ainda se somam
os afazeres domésticos, podendo agravar de forma negativa
a qualidade de vida do profissional. É importante ressaltar
como em nosso país a docência da educação infantil e anos
iniciais do ensino fundamental é composta majoritariamente
por mulheres. Assim, as profissionais se veem divididas entre
o trabalho formal, as tarefas domésticas e, ainda, a família.
Todos esses fatores supracitados podem impulsionar situa-
ções de sobrecarga psicológica, fadiga física ou Burnout, falta
de tempo para lazer, descanso e saúde (ZIBETTI; PEREIRA,
2009).
Com o horário de trabalho não sendo mais tão bem deli-
mitado devido ao isolamento social, a jornada de trabalho da
mulher, que já era dupla ou tripla, ficou ainda mais exaustiva.
De acordo com a pesquisa de Borsoi e Pereira (apud Mace-
do, 2020), ao se comparar as mulheres e homens docentes,
as primeiras estão mais suscetíveis a jornadas mais longas de
trabalho, a dividirem necessidades profissionais com as do-
mésticas, a flexibilizarem o uso do tempo privado e a adoece-
rem psiquicamente. Ainda, é importante ressaltar a pesquisa
de Zibetti e Pereira (2009) trazem dados para demonstrar que
em casos de mulheres que possuem auxiliares para as tarefas
e para cuidar dos filhos, geralmente esse papel também é des-
tinado à outra mulher.
Discussão
Considerações finais
9.1 Método
246
Papa, doutrinas e regras eclesiásticas; e a “igreja do dia a dia”
(M), representada pelas vivências pessoais e pela relação com
as suas comunidades e as pessoas que fazem parte dela. Essa
diferenciação aparece como uma maneira de tentar amenizar
a discussão sobre o não acolhimento dentro da religião, apre-
sentando que, apesar da instituição mostrar uma visão pre-
conceituosa e condenatória sobre a homossexualidade, para
estes participantes, existe uma outra realidade que vai além
dessa percepção e que pode ser vivenciada na prática cotidia-
na:
247
o tema: “Eu só discordo um pouco porque eu penso que não
há como fazer uma diferenciação muito grande: há um ilu-
são de diferenciação. [...] Até que ponto é possível diferenciar
uma igreja instituição dessa outra igreja acolhedora?” (B)
Esses questionamentos trazem à tona como o discurso
ambivalente da igreja se apresenta na realidade dos sujeitos,
fazendo com que estes indivíduos se sintam muitas vezes de-
sorientados, buscando estratégias para conseguir ocupar um
espaço na vida da igreja, mesmo diante da falta de acolhimen-
to (PEIXOTO, 2020). Para os integrantes que ainda possuíam
uma vivência ativa na religião católica, uma estratégia obser-
vada foi o exercício de relativização de muitos aspectos e posi-
cionamentos da igreja que tenham um cunho preconceituoso
e excludente: “Relativizei tudo, ou a grande parte de tudo.
[...] para mim, a minha relação é com o Cristo e a igreja é só
um meio que está aí.” (M)
Há, principalmente, uma relativização ao que a igreja traz
de negativo em relação a homossexualidade. Por outro lado,
há uma valorização de aspectos e/ou posicionamentos que se
mostrem mais inclusivos e acolhedores, especialmente quan-
do estes são expressos por pessoas que representam a insti-
tuição, como padres e bispos: “Dois grandes exemplos, que é
o padre Júlio Lancelotti e também o padre Luiz Correia que
é jesuíta: realmente eles nos representam, é essa igreja que
eu acredito, que está ali em função de quem tá excluído.” (T).
Novamente, a relação de ambiguidade pôde ser observada
a partir da fala desses sujeitos, pois ao mesmo tempo que re-
lativizam a instituição, ainda estão intimamente ligados a ela,
deixando claro que estão em um processo de luta contra esse
248
controle interno que a igreja os impõe. Assim, dentro desse
processo, há uma busca em priorizar as experiências positivas
em relação às experiências negativas, ideia que corrobora com
a pesquisa de Ribeiro e Scorsolini-Comin (2017) que aponta
que até mesmo diante das restrições colocadas a algumas pes-
soas em suas comunidades, é possível observar a importância
de fazer parte delas. Dessa maneira, verifica-se que viver atu-
ante na igreja e se mostrar útil, pode se apresentar como uma
forma de amenizar os sentimentos de culpa e se sentir acolhi-
do por quem o pune.
Ainda dentro da discussão sobre o acolhimento na igreja
católica, foi apresentado ao grupo o trecho do Catecismo da
Igreja Católica que fala sobre a homossexualidade, exposto na
introdução. Diante deste texto, os integrantes expressaram
oposição e aversão, afirmando não se sentirem representados:
“O meu sentimento quando eu leio hoje esse trecho do cate-
cismo é repugnância. Por que? Porque é como eu disse antes:
quando se condena o ato, condena a mim mesmo.” (H)
Para uma das participantes, de maneira mais significativa,
foi observado o controle sob o qual a mesma se encontrava
diante desse posicionamento: “Hoje em dia esse trecho me
machuca muito. Já foi um refúgio, já foi algo que mostrava
que eu estava na igreja obedecendo os mandamentos dela,
mas hoje eu vejo como uma prisão, da qual eu tenho tentado
me libertar” (Z).
A partir dessas falas, observa-se o quanto o controle dos
corpos e da sexualidade exercido pela instituição católica ain-
da “aprisiona” os sujeitos homossexuais, de modo a refletir
na maneira como estes se veem e se definem. Os mecanismos
249
disciplinares acabam regulando os desejos e castrando a sexu-
alidade. Uma vez que os atos homossexuais são condenados
pela igreja, muitos sujeitos formados dentro dessa realidade,
introjetam a crença de que é errado viver sua (homo)sexuali-
dade. (FOUCAULT, 1976/2020; BUSIN, 2008).
Por fim, observou-se que outro fenômeno que reflete dire-
tamente na discussão da falta de acolhimento no espaço reli-
gioso, é fato da igreja católica se permanecer omissa e não ofe-
recer espaço para dialogar com a diversidade: “Aqui na minha
cidade eu nunca escutei ninguém falar sobre esse assunto,
nenhum padre, ninguém que está no meio da igreja, não se
fala!” (R).
Atualmente, mesmo que a igreja católica tenha suaviza-
do seu discurso excludente e homofóbico, percebe-se que se
mantêm muitas dificuldades para que ela possa ter um diá-
logo mais aberto com a comunidade LGBTQUIA+, fato que,
segundo Peixoto (2021) pode ser uma das principais causas
para se explicar a crescente perda de fiéis católicos. Assim,
enquanto se insistir em esquivar dessas questões, “a falta de
acolhida e reconhecimento continuará gerando intolerância,
ódio e violência” (PEIXOTO, 2021, p. 176).
250
destes, revelando-se de maneira mais expressiva no período
entre a adolescência a juventude. De acordo com o Ministério
da Saúde (2017), é nesse mesmo período que os questiona-
mentos e vivências sobre a sexualidade aparecem de manei-
ra significativa, juntamente com as mudanças corporais. Tais
questões podem ser provocadoras de angústias, que se tornam
ainda mais intensas para aqueles que se percebem diante de
desejos homoafetivos, ou seja, que experimentam uma sexu-
alidade diversa daquela considerada “normal” na sociedade.
Muitos integrantes do grupo, portanto, apresentaram uma
aproximação da igreja católica justamente nesta época, onde
os questionamentos sobre sua homossexualidade passavam
se tornar mais presentes e, de certa forma, mais incômodos.
Quatro participantes explicitaram que a aproximação deles
com a religião serviu como uma “fuga” ou negação da própria
homossexualidade, como elucidado por uma das integrantes:
“E aí na igreja eu acabei encontrando um ponto de fuga.” (Z)
Observa-se, ainda, que quatro dos participantes do grupo
eram ex-seminaristas, enquanto um deles se encontrava no
processo formativo em um seminário religioso. O seminário,
aparece como uma experiência concreta dessa “fuga” da ho-
mossexualidade:
Considerações Finais
Referências
265
Considerações Finais
Alexandre Simões
Graduado em Psicologia/UFMG, Mestrado e Doutorado nas
interfaces da Filosofia com a Psicanálise-FAFICH/UFMG.
Professor da Universidade do Estado de Minas Gerais/UEMG.
Líder do grupo de pesquisa Plataforma de Estudo e Pesquisa
da Subjetividade na Contemporaneidade/PESC.
Contato: alexandresimoes@terra.com.br
268
Ana Luiza Martins
Graduanda em Psicologia na Universidade do Estado de Mi-
nas Gerais / Unidade Divinópolis (UEMG).
Contato: ana.1692501@discente.uemg.br
269
Bruna Mariana de Freitas Camargos
Graduanda em Psicologia pela Universidade do Estado de Mi-
nas Gerais - UEMG/Divinópolis.
270
Giovanna de Almeida dos Santos
Graduanda em Psicologia pela Universidade do Estado de Mi-
nas Gerais – Unidade Divinópolis. Integrante do Núcleo de
Estudos em Avaliação Psicológica e Saúde (NEAPS).
Contato: giovanna.1692301@discente.uemg.br
271
Mara Salgado
Formação em Psicologia pela Universidade Federal de São
João del Rei (UFSJ). Mestre e Doutora em Educação pela Uni-
versidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora efeti-
va no curso de Psicologia da Universidade do Estado de Minas
Gerais / Unidade Divinópolis (UEMG).
Contato: mara.salgado@uemg.br
272
Pricila Scalioni Moreira
Graduanda em Psicologia pela Universidade do Estado de Mi-
nas Gerais – Unidade Divinópolis. Integrante do Núcleo de
Estudos em Avaliação Psicológica e Saúde (NEAPS).
Contato: pricila.1692511@discente.uemg.br
273
Este e-book foi composto na tipologia Georgia,
em corpos 9/10/11/12/14/18. A diagramação foi
realizada em fevereiro de 2023 pela Assessoria
de Comunicação da UEMG Divinópolis.