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CAPA

Aline Gomes Martins


Jéssica Bruna Santana Silva
Michelle Morelo Pereira (Orgs.)

Psicologia e sociedade:
ampliando laços em tempos
de pandemia

DIVINÓPOLIS
2022
UEMG
Reitora: profa. Lavínia Rosa Rodrigues
Vice-reitor: prof. Thiago Torres Costa Pereira
Chefe de gabinete: Raoni Bonato da Rocha
Pró-reitora de Graduação: profa. Michelle Gonçalves Rodrigues
Pró-reitor de Extensão: prof. Moacyr Laterza Filho
Pró-reitora de Pesquisa e Pós-Graduação: profa. Vanesca Korasaki
Pró-reitora de Planejamento, Gestão e Finanças: Silvia Cunha
Capanema

UEMG Unidade Divinópolis


Diretora: profa. Ana Paula Martins Fonseca
Vice-diretor: prof. André Amorim Martins
Coordenadora de Extensão: profa. Janaina Visibeli Barros
Coordenador de Pesquisa e Pós-Graduação: prof. Michael Jackson
Oliveira de Andrade

Projeto gráfico e diagramação: Isabella Marques


Capa: Diêgo Garcia
Revisão: Elvis Gomes

Apoio: Assessoria de Comunicação da UEMG Divinópolis

FICHA CATALOGRÁFICA
“Se a educação sozinha, não transforma a
sociedade, sem ela tampouco a
sociedade muda.” (FREIRE, 2000, p.67)
Apresentação

Essa obra é composta por um conjunto de capítulos que re-


fletem os saberes e práticas de docentes e discentes vincula-
dos, sobretudo, ao curso de Psicologia da Universidade Esta-
dual de Minas Gerais (UEMG), unidade Divinópolis. Ademais,
possui como expoente central o debate entorno das estratégias
adotadas pela psicologia no campo da pesquisa, ensino e ex-
tensão em tempos de pandemia, na qual a universidade esteve
submetida ao ensino remoto emergencial, no período entre
2020 e 2022. Tal contexto exigiu que os docentes e discentes
reformulassem práticas e pensassem sobre novos fazeres da
Psicologia, em uma demonstração que a universidade pública
esteve presente, ativa e colaborativa.
O livro busca, portanto, registrar as boas práticas durante a
pandemia e está dividido em duas partes. A primeira é nome-
ada como Possibilidades de ensino e extensão em Psi-
cologia, que tem como objetivo expor atividades de estágio e
projetos de extensão realizados por professores e estudantes
do curso de psicologia, de diferentes períodos, durante a pan-
demia. Trata-se de atividades voltadas para a comunidade,
com o objetivo de ofertar acolhimento e cuidado a diferentes
sujeitos, diante dos atravessamentos provocados pela pande-
mia, pelo isolamento, ou mesmo pelo uso excessivo das tecno-
logias na saúde mental das pessoas. Desse modo, por meio das
mídias digitais, a psicologia enquanto uma ciência e profissão
encontrou meios para ocupar diferentes espaços na sociedade
e cuidar das pessoas em suas diversidades.
A segunda parte, nomeada como Pesquisas e inovações
em Psicologia apresenta pesquisas desenvolvidas pelos
estudantes do curso, em parceria com docentes, que abordam,
a partir de temas e objetos de pesquisas diversificados, a pos-
sibilidade de manter formas de produção de conhecimento
mediadas pelas tecnologias, assim como, observar os impac-
tos dela na saúde mental dos indivíduos. A partir de diferentes
metodologias de trabalho as pesquisas possibilitaram verificar
que a psicologia e a ciência estiveram ativos durante o período
pandêmico e permitiu o acesso a diferentes campos de estudo
e aos sujeitos que os compõem.
Cabe destacar que nem todas as atividades foram desenvol-
vidas em plenas condições de execução. A realidade univer-
sitária, em tempos pandêmicos, remotos e virtuais geraram
limitações e dificuldades de práticas e de contato social, sendo
descritas e refletidas ao longo dos capítulos.
A parte final do texto apresenta as considerações finais das
organizadoras sobre a obra. Os laços que percorrem as dife-
rentes temáticas e propostas deste material, destacam os atra-
vessamentos sociais presentes no ensino, pesquisa e extensão
universitária.
Dessa forma, esta obra busca construir um entrelaçamento
do tripé universitário a partir das experiências vividas e cons-
truídas conjuntamente entre discentes, docentes e comunida-
de. Outrossim, os textos fornecem um marco regional, colo-
cando Minas Gerais e a UEMG, como um importante campo
de desenvolvimento de uma psicologia contemporânea, social
e atenta aos temas emergentes da Psicologia. Destarte, acredi-
tamos que a presente obra intitulada “Psicologia e Sociedade:
Ampliando laços em tempos de Pandemia” gere discussões,
ideias e sentimentos aos leitores, a fim de construirmos coleti-
vamente conhecimentos e saberes.
Por fim, desejamos aos leitores uma excelente leitura.
Sumário

Apresentação 4
Introdução 11

Parte I - Possibilidades de ensino e extensão


em Psicologia 16

1 (Des)encontros entre telas: O Setting "On-line" 17


1.1 Os avatares do ciberespaço 18
1.2 A Pandemia e o novo normal: A virtualidade
compulsória 24
1.3 A psicanálise em tempos de pandemia 27
1.4 Grupo de Conversação e o Setting "On-line" 32
Considerações Finais 38
Referências 39

2 Os ditos de dor e a escuta do sofrimento 44


2.1 Psicanálise connection 48
2.2 Desamparo, trauma, traumatismo e catástrofes 54
2.3 A transitoriedade da vida e as considerações de um
final... ainda a ser construído 64
Considerações Finais
Referências 69

3 Tecnologias da informação e comunicação e formação


do psicólogo: uma experiência de plantão psicológico
na abordagem cognitivo-comportamental 75
3.1 Plantão psicológico 78
3.2 A Terapia Cognitiva-comportamental:
Aspectos conceituais, princípios e técnicas 82
3.2.1 Técnicas da TCC 85
3.3 Relatos de experiência de estágio 90
3.3.1 Caso Natália 91
3.3.2 Caso Joaquina 93
3.3.3 Caso Tiago 95
3.3.4 Caso Caio 97
3.3.5 Caso Laís 99
Considerações finais 103
Referências 104

4 Buscando caminhos para a pesquisa e extensão


em tempos de pandemia 110
4.1 Reflexões éticas 113
4.2 Reflexões epistemológicas 117
4.3 Reflexões metodológicas 120
Considerações finais 124
Referências 124

5 O adolescente e a conversação "on-line":


desafios e possibilidades 129
5.1 A vivência adolescente e a pandemia 133
5.2 A conversação como dispositivo clínico 139
5.3 A experiência de estágio na conversação "on-line" 144
Considerações finais 149
Referências 151

Parte II - Pesquisas e inovações


em Psicologia 154

6 Notas da subjetividade na infância em tempos


hi-tech: entretenimento digital para e contra crianças 155
6.1 Notas iniciais sobre a subjetividade na infância 155
6.1.1 Infância e o entretenimento tecnológico 159
6.1.2 Alguns dados sobre a plataforma YouTube 162
6.2 Aspectos teórico-metodológicos 164
6.3 Análises dos resultados ou reflexões sobre os achados no
tubo digital 167
6.3.1 Sobre as categorias de análises 169
6.3.1.1 As relações familiares 169
6.3.1.2 Educação para o trabalho e o consumo 172
6.3.1.3 Desigualdades de gêneros 176
6.3.1.4 Imaginação 178
Considerações Finais 181
Referências 183

7 Problemas de sono em adultos jovens: exposição


a luz azul e o uso de aparelhos eletrônicos como
fatores perturbadores 188
7.1 Qualidade de sono em jovens adultos 190
7.2 Sistema visual e Sono normal 194
7.3 Tipologia circadiana e Cognição: O papel da luz 196
7.3.1 Tipologia circadiana 196
7.3.2 Luz e processos cognitivos 198
7.4 Luz azul e aparelhos eletrônicos 199
7.5 Maneiras de gerenciar a luz azul 202
Considerações Finais 204
Referências 204

8 Ser mãe e professora: A dupla jornada do


trabalho remoto 212
8.1 O trabalho remoto: dificuldades e possibilidades 215
8.2 Ser professora e o ato de cuidar 216
8.3 A dupla jornada: Ser mãe e professora 218
8.4 Relato de uma pesquisa 219
Discussão 223
Considerações finais 227
Referências 229

9 Homossexualidade e Catolicismo: a via-sacra


da autoaceitação 236
9.1 Método 243
9.2 Resultados e Discussão 245
9.2.1 A Igreja Católica e Homossexualidade: Contradições
e o (não) acolhimento 246
9.2.2 A igreja como espaço de “fuga” da homossexualidade 250
9.2.3 O processo de autoaceitação frente a realidade social 254
Considerações Finais 260
Referências 262

Considerações Finais 266


Sobre os autores 268
Introdução

Aline Gomes Martins


Jéssica Bruna Santana Silva
Michelle Morelo Pereira

A grave crise sanitária instalada no mundo a partir da pan-


demia do COVID-19 tem produzido diversas modificações no
estilo de vida das pessoas, seja na forma de se relacionar, co-
municar, trabalhar, estudar. A pandemia nos convida a repen-
sar o conceito de saúde, entendendo que estamos conectados
em todas as esferas que compõem a vida, visto que um vírus
que ataca o corpo também ressoa de forma grave na vida so-
cial, econômica, política, cultural. Ela escancara aos nossos
olhos o quanto que o homem depende de múltiplas condições
para estar saudável, nos convida a pensar sobre desigualdade,
sobre equidade, sobre lutas por direitos, sobre o Sistema Úni-
co de Saúde e a compreender que o sujeito existe para além do
corpo e carece de uma rede de cuidados para viver com quali-
dade de vida e saúde mental.
No que se refere ao setor educacional, aliado fundamental
na produção de conhecimento, sobretudo no que se refere a
saúde, os impactos não foram diferentes. Com o isolamento
social fez-se necessário reinventar formas de continuar com
o tripé educacional: ensino, pesquisa e extensão. O conheci-
mento nunca foi tão fundamental para se transpor as barrei-
ras, como as que o coronavírus nos impôs.
Em virtude desta realidade crítica, uma das diversas me-
didas adotadas pelas autoridades competentes para conter a
11
disseminação da doença, especialmente no que tange ao setor
educacional, foi a autorização da realização de ensino remoto.
Esta modalidade de estudo foi regulamentada pela Portaria
544 de 16 de julho de 2020 do Ministério da Educação (MEC)1
e trata do Ensino Emergencial Remoto, autorizando a realiza-
ção de aulas "on-line" e demais atividades, como estágio, pes-
quisa e extensão. A referida Portaria destaca ainda a diferença
desta modalidade emergencial para a Educação à distância,
que não é prevista como formação pelo marco regulatório dos
cursos de graduação em Psicologia.
Umas das medidas, tomada pelo Conselho Federal de Psi-
cologia (CFP) e a Associação Brasileira de Ensino de Psicolo-
gia (ABEP), foi lançar a publicação “Práticas de estágios re-
motos em Psicologia no contexto da pandemia da Covid-19”2,
documento direcionado a coordenadoras(es) de curso, orien-
tadoras(es), supervisoras(es), docentes e estudantes de Psico-
logia, o material apresenta orientações e regramentos legais
sobre atividades práticas e estágio emergencial remoto para o
período da pandemia.
A publicação é fruto da sistematização de uma série de diá-
logos regionais acerca do tema, realizados pelo CFP e a ABEP
em todos os estados brasileiros com o apoio dos Conselhos Re-
gionais de Psicologia (CRPs) e dos núcleos regionais da ABEP.

1 Disponível em https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-
-n-544-de-16-de-junho-de-2020-261924872
2 Disponível em: https://site.cfp.org.br/publicacao/praticas-e-es-
tagios-remotos-em-psicologia-no-contexto-da-pandemia-da-covid-19-re-
comendacoes/
12
Surgiu da necessidade em discutir amplamente sobre o ensino
remoto com o objetivo de ouvir as experiências e anseios, bem
como as recomendações dos diversos atores envolvidos, para
que fossem construídas de forma colaborativa possíveis alter-
nativas direcionadas a adaptação de estratégias de ensino sem
renunciar aos princípios éticos, para que não se fortalecesse a
precarização do trabalho docente e da formação superior.
Tal panorama de promoção de aulas remotas e atividades
à distância trouxe uma série de preocupações, entre as quais
a utilização das tecnologias digitais de informação (TICs) e
comunicação de forma excessiva, reduzindo a expansão das
possibilidades de aprendizagem. Por outro lado, se bem inte-
gradas ao planejamento pedagógico, as TICs podem ser inte-
ressantes recursos de trabalho com método adequado, inten-
cionalidade, complementaridade e estrutura para que estas
sejam utilizadas por todos e todas. Aliás, esta é uma das prin-
cipais preocupações que o uso desmedido dos recursos de en-
sino à distância tem causado, a falta de estrutura e condições
de acesso às atividades remotas por parte de estudantes em
diferentes contextos sociais, provocando um aprofundamento
das desigualdades de condições. Isso aliado a falta de habili-
dade das instituições de ensino de acompanhar as diferentes
necessidades educacionais das(os) estudantes; inclusive a fal-
ta de condições de interação com o público da educação espe-
cial na perspectiva da educação inclusiva.
Nesse contexto, observa-se uma enorme exigência impos-
ta às(aos) profissionais da educação, no que diz respeito às
habilidades para promoção de aulas online, estrutura física,
material, tecnológica, rede de internet, preparação de conte-
13
údo para uso remoto e que sejam atrativos aos diversos perfis
e necessidades dos estudantes, além das diferentes demandas
apresentadas pelos alunos em suas peculiaridades. Esse qua-
dro tem levado a sobrecarga e danos emocionais que atingem
a todos os sujeitos envolvidos, docentes e discentes, potencia-
lizando sentimentos como a angústia, a ansiedade, a sensação
de pressão, de cobrança constante, de estafa, desisteresse/
desmotivação por parte dos alunos. Destaca-se ainda a fragili-
dade nas relações interpessoais professor-aluno que tanto au-
xiliam no processo ensino-aprendizagem. Dessa forma, esse
cenário deve ser visto como uma questão de saúde pública.
Principalmente, neste contexto pandêmico, é necessário en-
tender que a problemática relacionada à saúde mental não é
exclusivamente pessoal, mas sim um problema social que de-
manda ações coletivas. Enfim, a educação também vive uma
mudança, que determinará os novos processos de ensino e
aprendizagem.
Diante das condições impostas pela pandemia a Psicologia,
enquanto ciência e profissão, tem se tornado uma importante
aliada, seja no acolhimento e cuidado para com a saúde men-
tal da população, o que tem acontecido principalmente por
meio da psicoterapia online, grupos de acolhimento, rodas de
conversas, seja por meio de estudos teóricos e práticos com o
objetivo de compreender os impactos da pandemia e elaborar
estratégias interventivas para diferentes públicos e suas pe-
culiaridades. É possível afirmar que a psicologia tem se des-
tacado no ranking das profissões mais acionadas no contexto
vigente, o que exige dos profissionais se reinventarem cotidia-
namente em prol da qualidade de vida da população. A crise
14
instalada pela pandemia provocou atravessamentos significa-
tivos nas formas de organização e gestão de múltiplas profis-
sões, que se viram diante de um novo panorama, sendo fun-
damental construir pontes diante do caos. A psicologia, que se
trata de uma profissão que recorre a “relação”, ao “encontro”,
a “troca”, “a palavra” e a “presença” como importantes aliados
no processo de cuidado, precisou ressignificar seus saberes e
práticas para tornar possível ir de encontro aos muitos outros
que a demanda.
Dessa forma, acendeu múltiplas propostas de trabalho por
meios online, seja pelas plataformas digitais, mídias sociais
e demais recursos tecnológicos. Desde a resolução número
011/2018 do Conselho Federal de Psicologia (CFP) o aten-
dimento psicoterapêutico online era uma realidade, que se
acentuou grandemente no período pandêmico, possibilitan-
do novos formatos de trabalho, de acesso e de cuidado ofer-
tado pela psicologia. Tornam-se, portanto, fundamentais os
registros, trocas e possibilidades a partir das transformações
vivenciadas pelo Psicologia ao longo dos últimos anos, como
estratégias possíveis de atuação e de construção de saberes.

15
PARTE I

Possibilidades de ensino e extensão


em Psicologia
1 (Des) encontros entre telas:
O Setting "On-line"

Vanessa Guimarães da Silva

A pandemia da Covid-19 se apresenta como um dos maio-


res problemas de saúde pública dos últimos tempos. A ame-
aça invisível desconstrói o império de cartas, expondo o mito
do domínio humano sobre a natureza. Diante do novo vírus
as fragilidades são expostas e o sentimento de desamparo é
atualizado pela experiência de desconstrução dos modos de
existência, seja no âmbito individual ou social. O sujeito é
confrontado com sua imagem virtualizada e passa a vivenciar
o sentimento de estranheza. Tal experiência é descrita por
Freud em seu texto O Infamiliar (Das Unheimliche), como
aquilo que se apresenta como um enigma para o sujeito. De
acordo com o pai da psicanálise, o Infamiliar “relaciona-se in-
dubitavelmente com o que é assustador – com o que provoca
medo e horror” (FREUD, 1919, p. 237). Dessa forma, o vírus
surge como esse estrangeiro, desconstruindo a realidade co-
nhecida, dando lugar ao caótico e ao insuportável para o ser.
Nesse cenário, envolto de incertezas e angústias, a huma-
nidade é colocada diante das três fontes de sofrimento descri-
tas por Freud em o Mal-Estar da Civilização, sendo elas: "o
poder superior da natureza, a fragilidade de nossos próprios
corpos e a inadequação das regras que procuram ajustar os
relacionamentos mútuos dos seres humanos na família, no
Estado e na sociedade" (FREUD, 1930/1974, p. 105). A pan-
demia desvela tais impossíveis, assim, o sujeito tenta desespe-
17
radamente construir arranjos provisórios que lhe forneça uma
sustentação.
Neste contexto de urgência subjetiva, é necessário que os
psicanalistas se posicionem e construam novas possibilidades
de escuta e acolhimento. Dessa forma, através de um retor-
no à Freud e Lacan, busca-se pensar sobre as transformações
impostas pela pandemia sobre o fazer do psicanalista, anali-
sando os desafios da psicanálise diante do setting virtual. Para
tanto, será apresentado uma discussão inicial sobre o cibe-
respaço e o estreitamento da relação entre sujeito e o virtual,
posteriormente será analisado a relação entre a pandemia e o
dito “novo normal”. Por fim, será discutido às vicissitudes do
setting on-line, apresentando, para tanto, uma experiência de
ensino elaborada na Universidade do Estado de Minas Gerais.

1.1 Os avatares do ciberespaço

Desde a modernidade o homem busca novas maneiras de


aprimorar as formas de comunicação. A partir da concepção
“tempo é dinheiro”, observa-se uma crescente necessidade da
elaboração de mecanismos que possibilitem a troca de infor-
mação, o que faz dos mecanismos de comunicação centrais
para a quebra dos limites entre tempo e espaço. Na contem-
poraneidade, o desenvolvimento tecnológico e científico tem
proporcionado avanços importantes nos processos comuni-
cacionais. A partir do toque na tela dos celulares os sujeitos
recebem e compartilham informações. Assim, o ambiente
virtual surge como uma promessa de uma nova construção
do laço social, e, como será apresentado, tais transformações
18
invadem as paredes clássicas do setting analítico.
Freud, em seu célebre texto O Mal-Estar da Civilização
(1930/1974), faz importantes apontamentos sobre a relação
entre o sujeito e a tecnologia. Ele apresenta que o homem,
através dos aparatos tecnológicos, tenta se aproximar de um
ideal outrora depositado sobre a figura do divino. Assim, a
busca desse ideal surge no contemporâneo a partir das pro-
messas de completude e de realização de fantasias narcisícas,
fazendo com que a ciência e a tecnologia se apresentem como
um novo deus sacralizado. Através de sua união surge um novo
discurso, o tecnocientífico, que demarca novas formas de exis-
tência. De acordo com Pinheiro e Carneiro (2013, p. 426), “o
discurso tecnocientífico como discurso do Mestre contempo-
râneo configura-se um reforço eminente do imaginário”. Des-
sa forma, para os autores, esse discurso busca diluir a ideia
do impossível no imaginário. Tudo aquilo que é visto como
conflituoso e que se revela ao sujeito como estranho deve ser
descartado, seja através das manipulações corporais ou das
técnicas de representação, em uma tentativa de supressão do
mal-estar estrutural do sujeito. Assim, a tecnociência busca
“a universalização das formas de gozar deixando o desejo a
serviço das produções do mercado e das verdades da ciência”
(PINHEIRO; CARNEIRO, 2013, p. 427).
O sujeito contemporâneo encontra-se fascinado com as no-
vas possibilidades proporcionadas pelo avanço tecnocientífi-
co. Donna Haraway, em seu Manifesto do Ciborgue (2000),
aponta que, na contemporaneidade, as barreiras entre o na-
tural e o artificial foram quebradas, o que traz consigo novas
formas de relação, agora mediadas pelo aparato da internet.
19
Indo mais além, talvez mais do que quebras entre o natural
e o artificial, hoje foram desconstruídas as fronteiras entre o
analógico e o virtual. Assim, o ciberespaço se torna uma nova
roupagem para as fantasias narcísicas, basta você escolher o
seu avatar e começar a jogar, tudo a um clique na tela. Nessa
direção, Paula Síbilia em o Show do eu: A intimidade como
espetáculo (2016) apresenta que esse novo cenário traz mu-
danças fulcrais nos processos de construção identitárias e na
subjetividade. Através de uma análise histórica e sociológica,
a autora busca discutir sobre tais transformações, questionan-
do sobre aquilo que se intenta nas redes, como a criação de
modos de ser e a performatividade do eu. Em sua argumen-
tação, Síbilia (2016) aponta que o advento da modernidade
é marcado pelas transformações no campo do público e do
privado, momento onde há a construção de um ambiente ínti-
mo que separa o indivíduo do espaço público. Esse período é
marcado pela produção de uma escrita de si. Na era da inter-
net, há uma nova configuração nas dimensões de tais esferas.
Há um distanciamento do espaço interno e uma ostentação do
externo. De acordo com a autora, a partir da dinâmica das re-
des, o íntimo se torna êxtimo, pois na sociedade marcada pelo
imperativo do gozo é preciso se mostrar, passa-se da escrita de
diários para as postagens de stories.
Através dos apontamentos de Síbilia (2016), observa-se
que hoje há um deslocamento do campo da interioridade para
a exterioridade. A noção de um eu passa a ser construída a
partir daquilo que é visto pelo outro. Assim, no ciberespaço o
sujeito se coloca simultaneamente em uma relação de voyeu-
rismo e exibicionismo. Como aponta a autora, “abandonando
20
o espaço interior dos abismos da alma ou dos sombrios con-
flitos psíquicos, o eu passa a se estruturar em torno do corpo.
Ou mais precisamente, da imagem visível do que cada um é”
(SIBÍLIA, 2016, p.111). Dessa forma, na dinâmica das redes
há uma flexibilidade nas performances do eu, assim, o sujeito
pode assumir novas configurações identitárias. Nessa direção,
Stuart Hall (2015), apresenta que as fronteiras da identida-
de não são fixas, podendo ser reconstruídas e reformuladas,
pois “as identidades não são coisas com as quais nós nasce-
mos, mas são formadas e transformadas no interior da repre-
sentação” (HALL, 2015, p. 30). O autor ainda demarca que os
novos processos de conexão podem levar a um descentramen-
to do ser, podendo resultar em uma perda de estabilidade de
um sentido de si. Assim, diante do mundo virtual, o sujeito se
torna fragmentado. Sobre tal questão, Paula Síbilia (2016) sa-
lienta que o ciberespaço causa uma transferência entre o que
outrora se apresentava como uma ficção da realidade para
uma realidade ficcional. De acordo com a autora, “espetacula-
rizar o eu consiste precisamente nisso: transformar as nossas
personalidades e vidas (já nem tão) privadas em realidades
ficcionalizadas com recursos midiáticos. É isso que se procu-
ra fazer ao performar a própria extimidade nas telas cada vez
mais onipresentes e interconectadas” (SIBÍLIA, 2016, p. 249).
Assim, como enfatiza a autora, o virtual marca uma nova for-
ma do eu estar no mundo, espaço onde a lógica passa do “ser”
para o “parecer”. Dessa forma, como Narciso diante de sua
imagem refletida, o sujeito contemporâneo encontra-se fas-
cinado pela miragem de sua imagem nas telas virtuais. De
acordo com Alves e Lazzarini (2020, p. 136), “em frente ao
21
espelho, é nas imagens virtuais que o eu revisita sua alienação
primordial, o que faz ressoar seu passado inconsciente nas re-
lações estabelecidas em seu presente”.
Para além, o ciberespaço apresenta uma territorialidade
própria bem como uma cultura singular. Dessa forma, ele
pode ser entendido como um espaço multifacetado que per-
mite os indivíduos navegarem pela rede de forma diversa. A
primeira utilização do termo foi realizada por William Gibson
em sua obra Neuromancer. Neste trabalho, o autor faz uma
alusão à internet descrevendo o ciberespaço de uma forma
abstrata, pois seu trabalho se desenvolve em um período em
que a rede não possuía o mesmo alcance que hoje. Para Gib-
son o ciberespaço seria

uma alucinação consensual vivenciada diariamen-


te por bilhões de operadores autorizados, em todas
as nações, por crianças que estão aprendendo con-
ceitos matemáticos [...] uma representação gráfica
de dados abstraídos dos bancos de todos os com-
putadores do sistema humano. Uma complexidade
impensável. Linhas de luz alinhadas no não espa-
ço da mente, aglomerados e constelações de da-
dos. Como luzes da cidade, se afastando (GIBSON,
2013, p. 113).

Posteriormente, com o desenvolvimento das pesquisas no


campo das tecnologias de informação, a noção do ciberespa-
ço foi se transformando. Nessa direção, é possível citar o tra-
balho de Pierre Lévy que busca compreender o ciberespaço a
22
partir de uma problematização sobre o virtual. Para o autor,
o virtual não se apresenta como aquilo que se antagoniza ao
real, mas como algo que existe enquanto potência. Dessa for-
ma, ele aponta que o ciberespaço “especifica não apenas a in-
fraestrutura material da comunicação digital, mas também o
universo oceânico de informações que ela abriga, assim como
os seres humanos que navegam e alimentam esse universo”
(LÉVY, 1999, p. 17).
O ambiente virtual marca uma nova forma de construção
do laço social, onde sujeito precisa lidar com as constantes
mudanças e a efemeridade das relações. Entretanto, no ano
de 2020 a pandemia da Covid-19 traz um cenário de obriga-
toriedade da utilização desse espaço. Agora o virtual não se
apresenta apenas como o lugar da performatividade do eu,
mas como uma saída diante do sofrimento. Devido às restri-
ções impostas pela impossibilidade do contato social há uma
intensificação da relação entre sujeito e a virtualidade. En-
tretanto, como um ser social, o ser humano necessita da di-
mensão do corpo, pois “tocar, compartilhar, faz parte do que
significa ser humano e isso vem sendo cerceado pela possibi-
lidade de contágio do novo vírus” (MOREIRA; RODRIGUES;
PEREIRA, 2021, p.194). Nesse sentido, observa-se um cresci-
mento do adoecimento mental e, como em outros campos, a
psicanálise é convocada a repensar a sua prática a partir da re-
alidade do setting online. Devido a importância de tal questão,
nesse momento será apresentado um breve panorama sobre a
pandemia da Covid-19, buscando-se pensar sobre seus impac-
tos na subjetividade da época.

23
1.2 A Pandemia e o novo normal: A virtualidade
compulsória

Em março de 2020 a Organização Mundial da Saúde


anunciou a existência do processo pandêmico da Covid-19.
O aumento de números de casos em todo mundo provocou
um choque do sujeito com o real de impossível apreensão, a
morte. As nações se viram diante de um não-saber e do medo
do fim dos recursos materiais e humanos. O agente invisível
fez desmoronar a pretensão humana de domínio da nature-
za, como aponta Birman (2020, p. 63), “um minúsculo agente
biológico invisível que destruiu de modo desnorteante nossa
forma de vida, individual e coletiva, e nossos laços sociais”.
Nesse momento, significantes como angústia, morte, catástro-
fe, tragédia, calamidade, entre outros, tomam as notícias de
todos os meios de comunicação. O homem é confrontado com
sua impotência frente a ameaça do vírus, trazendo um cenário
marcado pelo desamparo. De acordo com Birman (2020),

os efeitos catastróficos da pandemia da Covid-19,


pelas múltiplas desconstruções que promoveu
nas formas de existência individuais e coletivas de
modo sistemático, implicaram a emergência histó-
rica de um limite ostensivo e flagrante na onipotên-
cia humana de se acreditar no Deus secularizado.
A peste levou assim à efetiva humilhação da pre-
tensão do homem do domínio absoluto do mun-
do, com efeitos ainda impossíveis de serem com-
pletamente calculados, em toda a sua extensão e
24
profundidade, no tempo futuro (BIRMAN, 2020,
p. 65).

Apesar da incerteza sobre os efeitos do processo pandêmico


para a humanidade, observa-se que o isolamento social trou-
xe como consequência o aumento de quadros ansiosos, crises
de pânico, depressão, além de ideação de autoextermínio, o
que aponta para uma emergência no campo da saúde mental.
A realidade como conhecida outrora parece se dissipar, evo-
cando o discurso de uma nova construção, o chamado “novo
normal”. Buscando-se pensar sobre o que seria essa nova rea-
lidade, Rocha (2020) aponta que

o desprazer gerado pela pandemia e suas implica-


ções engendra certa infelicidade, que varia de pes-
soa para pessoa, e que pode tanto deflagrar dife-
rentes patologias psíquicas quanto prover aquele
grau necessário de insatisfação que nos coloca de
novo em ação, levando-nos a empreender mudan-
ças no mundo e em nós mesmos no intuito de re-
tomar a nossa incessante busca de bem-estar (RO-
CHA, 2020, p. 60).

Nessa tentativa de reconstrução dos modos de existência,


o cenário virtual surge como uma saída, como uma tentativa
de se transferir a realidade do “mundo analógico” para o ci-
berespaço. Entretanto, Lemma (2015) adverte que as leis da
realidade não se aplicam da mesma maneira no mundo onde
existe uma alternância entre on-line e off-line. Conforme sa-
25
lienta, “discrepâncias muito grandes entre a imagem corporal
offline e o personagem podem levar alguns indivíduos a pre-
ferirem ou até se fixarem no próprio avatar, resultando numa
dominância psíquica do virtual sobre o não-virtual” (LEMMA,
2015, p. 577). Através dessa percepção, é preciso se compre-
ender o que de fato se trata dizer sobre um “novo normal”,
pensando sobre às consequências do laço produzido pelo en-
contro entre telas. Como apresenta Ribeiro et al (2020),

com o isolamento social em decorrên-


cia à pandemia da Covid-19, claramente
observa-se um aumento no manuseio e/ou uso dos
mais variados veículos de comunicações tecnológi-
cas de acesso à internet, no intuito de não perder
e/ou manter os vínculos sociais. Com isso, muitos
indivíduos das várias faixas etárias de idades, es-
tão rendendo-se ao chamado “vicio digital”, pois,
tornou-se uma ferramenta essencial de suporte ao
isolamento, com o objetivo de levar informações,
facilitar as compras, consultas com especialistas
e levar comunicação segura em tempo real, entre
várias outras utilidades e é uma forma também se-
gura de evitar o contágio da Covid-19. Tal situação
atualmente, levanta um olhar atento de vários pro-
fissionais em saúde mental para os possíveis danos
do uso excessivo destas tecnologias (RIBEIRO et
al, 2020, p. 51).

A pandemia da Covid-19 faz com o ciberespaço emerja


26
como o novo lugar de construção das relações, produzindo
histórias sem a presença dos corpos. Entretanto, o mundo go-
vernado pelo virtual, se apresenta como um desafio para os
psicanalistas que trabalham a partir dessa presença. Assim,
nesse novo processo histórico, há o aparecimento de um novo
setting, o que torna necessária a construção de dispositivos
clínicos capazes de oferecer o acolhimento aos sujeitos. Dessa
forma, surge a seguinte questão, qual o lugar da psicanálise
em tempos de pandemia? Para se pensar nessa questão, é pre-
ciso se analisar a clínica do setting "on-line".

1.3 A psicanálise em tempos de pandemia

Para se pensar sobre o papel da psicanálise em tempos de


pandemia e as vicissitudes do setting virtual, é preciso se com-
preender sobre os descompassos que se colocam entre sujeito
e social frente a um cenário traumático e devastador. Nesse
sentido, antes de se adentrar nos desafios da clínica online, é
preciso se pensar sobre a radicalidade da proposta freudiana
em tempos de urgência subjetiva.
Freud (1915), no período da Primeira Guerra Mundial, es-
creveu o texto Reflexões para os tempos de Guerra e Mor-
te, neste trabalho o pai da psicanálise traz discussões sobre
esse período mortífero de ruptura social, salientando que a
desilusão do período de guerra provocou uma transformação
da relação entre o sujeito e a morte. Dessa forma, ele desta-
ca que o sujeito tem a tendência de colocar a morte de lado,
em uma tentativa de a eliminar da vida, ressaltando que no
inconsciente, não há uma representação da morte, pois “no
27
fundo ninguém crê em sua própria morte, ou, dizendo a mes-
ma coisa de outra maneira, que no inconsciente cada um de
nós está convencido de sua própria imortalidade” (FREUD,
1915/1996, p. 327). Entretanto, com a realidade da guerra se
torna uma impossibilidade negar a morte. O sujeito precisa
encontrar uma nova atitude diante do insuportável, pois “so-
mos forçados a creditar nela. As pessoas realmente morrem, e
não mais uma a uma, porém muitas, frequentemente dezenas
de milhares, num único dia” (FREUD, 1915/1996, p. 329).
É possível fazer uma relação entre os escritos sobre os tem-
pos de guerra de Freud com o desamparo vivenciado no pro-
cesso pandêmico. Assim como na guerra, na atual pandemia
os sujeitos são obrigados a construírem uma nova relação com
a morte, pois vivenciam um cenário composto pelo horror e
pelo desvelar de suas fragilidades. Há, portanto, uma pertur-
bação na relação do sujeito com a morte, pois agora, torna-se
impossível negá-la, ou retirá-la da cena. Nessa direção, Freud
(1930/1974) salienta sobre a importância dos processos ri-
tualísticos na organização da experiência de morte, pois eles
trazem um recobrimento do real insuportável pelos recursos
simbólicos. Na pandemia, muitos desses rituais foram impos-
sibilitados. Como aponta Lacan (1962), sem uma mediação
simbólica, há uma emergência da angústia e com ela respostas
que se apresentam sob a forma do acting out1 ou da passagem

1 “O acting out é, em essência, a mostração, a mostragem, velada, sem


dúvida, mas não velada em si. Ela só é velada para nós, sujeito do acting
out, na medida em que isso fala, na medida em que poderia ser verdade”
(Lacan,1963, p. 138)
28
ao ato2, marcas de um cenário caracterizado pelo adoecimen-
to mental. Dessa forma, passam a surgir novas demandas de
atendimento. Nesse sentido, como apresenta Rocha (2020), a
psicanálise precisa apostar em um “fazer diferente”. Tal apos-
ta pode ser pensada a partir de Freud que, em 1920, ao ser
questionado sobre o os sujeitos acometidos pela neurose de
guerra, apresenta que o tratamento de tais casos seria pela
fala e pela escuta. Assim, a aposta continua na potencialidade
da palavra, entretanto, com a pandemia há uma transforma-
ção do setting que exige a inventividade do psicanalista.
No livro Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921),
Freud demarca que a distinção entre a psicologia individual
e a psicologia social seria meramente didática, pois não have-
ria como pensar o sujeito sem o outro, apontando que toda a
psicologia seria social. Na mesma direção, Lacan, em sua pro-
posta de retorno à Freud, fala sobre a importância da relação
entre eu e o Outro, demarcando o ponto de intersecção entre
sujeito e sociedade. A partir dessas noções, é possível compre-
ender que a psicanálise, como uma práxis, ocorre através de
múltiplos contextos e espaços, não se prendendo apenas às
paredes dos consultórios tradicionais. Como aponta Lazzarini
e Alves (2020),

diante de situações cotidianas que reportam ao

2 “O momento da passagem ao ato é o do embaraço maior do sujeito, com


o acréscimo comportamental da emoção como distúrbio do movimento.
É então que, do lugar em que se encontra (...), ele se precipita e despenca
fora da cena.” (Lacan, 1963, p. 129).
29
sujeito sua condição inerente de desamparo,
bem como de cenários extremos, como uma
guerra ou uma pandemia, a constituição do eu
em torno de uma estrutura narcísica pode revelar
a urgência da participação e reconhecimento do
outro como indispensável para a experiência
subjetiva no confronto com as exigências da
realidade. No cenário contemporâneo, o uso de
recursos virtuais, a depender de sua qualidade,
pode se apresentar como complemento ao
enfrentamento de situações que demandam ao
sujeito o trabalho psíquico de gerenciamento
do sentimento de si, sobretudo quando sozinho
(LAZZARINI; ALVES, 2020, p. 135).

O setting "on-line" não é algo criado pela pandemia, os


atendimentos a distância já existiam em situações pontuais,
como em momentos em que os analisandos precisavam se
ausentar dos atendimentos presenciais. Tal prática já era re-
gulamentada pelo Conselho Federal de Psicologia através da
Resolução CFP n° 11/2018 que revogou a resolução anterior
CFP n° 11/2012. Entretanto, com a pandemia, a próprio Con-
selho precisou construir uma nova normativa que orientasse
os profissionais da psicologia acerca da atuação online. Neste
sentido, diante da obrigatoriedade de afastamento social, foi
elaborada a Resolução CFP n° 04/2020 que buscou ampliar e
flexibilizar as possibilidades de atendimentos psicológicos. A
formulação da nova resolução sinaliza algumas das transfor-
mações impostas pela pandemia, pois situações esporádicas
30
não traziam a necessidade de se repensar a prática da psico-
logia. Indo mais além, na ausência do corpo, é necessário se
analisar sobre o que possibilita a existência da situação ana-
lítica. Dessa forma, a medida que o novo cenário vai se cons-
truindo, o olhar, a voz e a escuta parecem ganhar um lugar
diferente, a presença do corpóreo parece se confirmar através
da tela. Nessa direção, Birman (2020) aponta que

é possível dizer que o corpo se faz efetivamente


presente nas práticas psicanalíticas virtuais pela
incidência dos registros da imagem da voz, da
pulsão escópica e da pulsão invocante, respectiva-
mente. Pela voz e pela imagem especular, o corpo
pulsional se faz presente no virtual, de forma que
podemos caracterizar essas práticas clínicas como
oriundas da experiência psicanalítica propriamen-
te dita (BIRMAN, 2020, p. 150).

Pensar sobre a prática psicanalítica virtual não significa


dizer sobre um processo de substituição das práticas presen-
ciais. Entretanto, é central problematizar sobre a viabilidade
do setting online, pois a virtualidade surge como um ponto
intermediário entre a realidade e a fantasia e se apresenta
como mais um caminho de expressão da condição humana.
Dessa forma, como aponta Lazzarini e Alves (2020), o virtual
pode se mostrar como um lugar onde o sujeito pode enfren-
tar sua experiência de desamparo e criar novas condições de
existência. É preciso que o psicanalista se coloque frente às
transformações do seu tempo, como aponta Lacan (1953, p.
31
321), “deve renunciar à prática da psicanálise todo analista
que não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade
de sua época”. Tomando para si o desafio proposto por La-
can, será apresentado um breve relato sobre um projeto de
estágio Grupo de Conversação: A Saúde Mental em Tempos
de Pandemia desenvolvido na Universidade do Estado de Mi-
nas Gerais que buscou, através do aparato virtual, apostar em
uma possibilidade de acolhimento e escuta. Essa experiência,
mostra-se como um passo singelo para a compreensão do que
pode a psicanálise diante da catástrofe.

1.4 Grupo de Conversação e o Setting "On-line"

O cenário de calamidade que deflagrou no mundo no ano


de 2020 acabou por criar novas demandas de atendimento
psicológico. A experiência de dor e luto trouxe um quadro de
urgência no campo da saúde mental. Devido a esse panorama
de crise foi criado no ano de 2020 o projeto Grupo de Conver-
sação: A Saúde Mental em Tempos de Pandemia. Este projeto
foi vinculado ao Serviço Escola de Psicologia da Universidade
do Estado de Minas Gerais – Campus Divinópolis e teve como
objetivo, através do ambiente virtual, construir um espaço de
escuta e acolhimento à comunidade acadêmica da universi-
dade. Antes de realizar um relato dessa experiência, é preci-
so trazer uma breve contextualização sobre a metodologia de
conversação em psicanálise e como tal método se apresenta
como uma ferramenta de promoção à saúde mental.
A conversação é um dispositivo que foi criado pelo psica-
nalista Jacques Alain Miller que apresenta a psicanálise para
32
além do espaço tradicional, podendo ser aplicada em diver-
sos contextos e instituições. De acordo com Lacadée (2009),
o principal objetivo da conversação é possibilitar que o sujeito
entre no discurso, dessa forma, através dos descompassos exis-
tentes na fala, o sujeito do inconsciente pode emergir. Lacan
(1953) apresenta que a fala tem um lugar central para o pro-
cesso psicanalítico, advertindo que "quer se pretenda agente
de cura, de formação ou de sondagem, a psicanálise dispõe de
apenas um meio: a fala do paciente. A evidência desse fato não
se justifica que se o negligencie" (LACAN, 1953, p. 248). Dessa
forma, na conversação é através da palavra que certezas são
questionadas e novos caminhos podem ser elaborados.
A fala tem um papel fundamental no processo comunica-
cional, Lacan (1953) aponta para seu papel transformador,
pois é ela que possibilita uma ligação entre emissor e receptor.
Porém, o processo de comunicação possui limitações, pois a
linguagem não é capaz de tudo abarcar. Como aponta San-
tiago e Miranda (2011, p. 4) “a ‘linguagem-signo’ mostra, en-
tretanto, sua insuficiência por querermos dizer sempre mais,
ou menos, do que a palavra alcança”. As autoras demarcam
que a linguagem humana é composta por uma relação entre
os signos, não se produzindo um sentido fixo. Dessa forma, na
conversação “o que um diz pode ressoar no outro participan-
te, evocando o seu ser e convocando sua subjetividade. Nos
interstícios, o sujeito poderá fazer sua enunciação, e surgir o
novo imantado pelo desejo” (Santiago; Miranda, 2011, p. 4).
Assim, conforme apresenta Laurent (2004), o analista deve
estar atento ao alcance da palavra, possibilitando a abertura
e o fechamento das falas. É através de um processo de asso-
33
ciação livre em conjunto que os sujeitos se esbarram com seus
desencontros, permitindo que algo do mal-estar apareça.
Indo mais além, ao se questionar sobre qual seria o tem-
po da conversação, Santiago e Miranda (2011), destacam três
momentos, sendo estes: o momento da denegação, da subjeti-
vação e da reconciliação. O primeiro se apresenta como o ins-
tante de olhar, onde ainda não há uma implicação do sujeito
diante do seu sofrimento; o segundo tempo, a subjetivação, é
o momento onde o sujeito passa a perceber e a compreender
aquilo que lhe causa sofrimento; e o último, a reconciliação,
diz do tempo de concluir, da construção de novas saídas. Des-
sa forma, para além da produção de um bem-estar, a conver-
sação com base psicanalítica, permite a produção de desloca-
mentos, o que faz os sujeitos darem um passo a mais para se
interrogarem sobre seus próprios sintomas.
Partindo do método da conversação em psicanálise, o pro-
jeto Grupo de Conversação: A Saúde Mental em Tempos de
Pandemia buscou proporcionar um espaço de livre circulação
das falas. O projeto foi desenvolvido com a colaboração de um
grupo de estagiários de psicologia que, junto com a profes-
sora supervisora, o conduziu durante o primeiro e o segundo
semestre de 2020. Este trabalho foi desenvolvido em três eta-
pas, sendo elas: pesquisa, divulgação do projeto e realização
dos grupos. Dessa forma, a primeira etapa aconteceu nos dois
primeiros meses do projeto. Nesse momento, foram discutidos
textos sobre a metodologia de conversação e clínica psicanalí-
tica e foi elaborado um questionário online que buscou identi-
ficar os principais sofrimentos vivenciados pelos estudantes da
Universidade do Estado de Minas Gerais durante o processo
34
pandêmico. Para tanto, foram desenvolvidas quatro questões,
sendo estas: 1) A pandemia trouxe mudanças para a sua vida?;
2) Em caso positivo, como você está lidando com tais mudan-
ças?; 3) O que você acha do ensino remoto?; 4) Como você tem
se sentido neste período pandêmico? Como resultado, vinte e
sete estudantes responderam o questionário. Todos disseram
que sofreram algum tipo de transformação em sua rotina e,
entre as principais mudanças vivenciadas, apontaram para o
afastamento social, sobre a impossibilidade de encontro com
amigos e convivência em outros espaços para além do fami-
liar, além desta, falaram sobre a dificuldade de aprendizado
com o ensino remoto, sobre a impossibilidade de limites entre
o local de ensino e o local de descanso; estreitamento ou afas-
tamento entre familiares devido a impossibilidade de outros
espaços de convivência; retorno para a cidade natal e sauda-
de das relações em sala de aula; problemas financeiros, en-
tre outros. Três estudantes disseram preferir o ensino remoto
devido à dificuldade que encontravam no deslocamento para
a universidade. Com a última questão foi possível identificar
os seguintes sentimentos: tristeza, solidão, ansiedade, tédio,
raiva, medo do futuro, falta de desejo em relação a universida-
de, entre outros. Tal questionário foi central para organização
do grupo, pois com a identificação dos principais problemas
vivenciados, ele se apresentou como uma bússola para a ela-
boração dos encontros.
A segunda etapa do projeto contou com a organização e di-
vulgação do grupo. Para tanto, os estagiários se organizaram
para elaboração do folder com as principais informações do
grupo, formulário de inscrição e utilizaram a rede por inter-
35
médio dos grupos de whatsapp, facebook e instagram como
principais formas de divulgação. Como resultado, 18 estu-
dantes se inscreveram para participar do projeto. Entretan-
to, os grupos contaram com uma média de participação de 5
estudantes por encontro. A última etapa foi a realização dos
grupos. No total foram 8 encontros virtuais por semestre com
duração média de uma hora, realizados pela plataforma do
google meet. Tais grupos buscavam proporcionar um espaço
de escuta e acolhimento do sofrimento produzido pela pan-
demia. Os participantes eram convidados abrir as câmeras,
entretanto, mesmo com o acesso, alguns tinham dificuldade
de se mostrar e preferiam manter o vídeo desligado. Tal situ-
ação parece salientar que, apesar da fascinação pela imagem e
das diversas possibilidades de performatividade, os excessos
produzidos pelo encontro entre telas trazem o insuportável
para a cena, o momento em que o olhar desmantela as ima-
gens, assim, o estrangeiro familiar se apresenta causado medo
e horror, o que impossibilita um olhar para si mesmo através
do ligar das câmeras. Neste momento, a voz se torna o único
objeto de presentificação dos corpos. A partir do convite à as-
sociação livre foi possível observar os desencontros nas falas e
os processos identificatórios de sujeitos que compartilhavam
um sofrimento em comum, porém com vivências singulares
de suas dores.
Com o desenvolvimento do grupo foi possível observar os
três tempos exposto por Santiago e Miranda (2011). Assim,
em um primeiro momento os participantes traziam falas mais
tímidas, apontando para os culpados da pandemia, relatos so-
bre os acontecimentos externos, mas sem uma narrativa de
36
si. Em um segundo momento, a partir do estabelecimento do
laço transferencial, há uma mudança de posicionamento, a
história ganha rosto, passa-se a construção de interrogações
e a percepção de sua impotência diante do caos. Por fim, per-
cebe-se que os participantes, principalmente aqueles que inte-
graram todo o período do grupo, começaram a elaborar saídas
para suas dores. Através de suas falas, os participantes foram
convidados a pensar sobre aquilo que se poderia cultivar e
plantar, buscando-se assim, um olhar para um futuro e para a
vida, uma saída para além da dor.
Os estagiários do projeto foram os responsáveis pela con-
dução do grupo. Eles se dividiram em duplas e, em cada en-
contro, cada dupla se encarregava de conduzir a conversação,
a professora supervisora se fez presente em todos os dias, en-
tretanto, permitir que os alunos se colocassem em uma posi-
ção ativa de intervenção, possibilitou o desenvolvimento de
uma escuta cuidadosa que é central para o fazer do psicólo-
go. Através dos desafios desse projeto, os alunos conseguiram
entender um pouco mais sobre o tempo de intervir e sobre o
fazer do psicanalista para além das paredes clássicas do con-
sultório.
Observa-se com a experiência desse projeto que a psica-
nálise pode ser exercida no ambiente virtual, pois, conforme
aponta discursos dos participantes, é possível a construção de
um laço transferencial entre telas. Entretanto, isso não signi-
fica que o virtual venha substituir o presencial, pois há algo
da presença do corpo que parece escapar ao ciberespaço. Tal
problemática se apresenta como uma opacidade para o pre-
sente trabalho e, portanto, necessita de um olhar cuidadoso e
37
maiores investigações.

Considerações Finais

A aposta em um projeto de conversação clínica em tem-


pos de calamidade traz a memória o escrito de Freud Sobre
a Transitoriedade. Neste trabalho, o pai da psicanálise relata
sobre uma conversa com um jovem poeta que acreditava que
toda beleza estaria fadada a extinção. Nas palavras de Freud,

o poeta admirava a beleza do cenário à nossa volta,


mas não extraía disso qualquer alegria. Perturba-
va-o o pensamento de que toda aquela beleza esta-
va fadada à extinção, de que desapareceria quando
sobreviesse o inverno, como toda a beleza humana
e toda a beleza e esplendor que os homens criaram
ou poderão criar. Tudo aquilo que, em outra cir-
cunstância, ele teria amado e admirado, pareceu-
-lhe despojado de seu valor por estar fadado à tran-
sitoriedade (Freud, 1916, p. 345).

Em resposta ao poeta, Freud afirma que seria a efemeri-


dade que traria um valor a própria vida. Assim, em meio à
destruição, o sujeito, marcado pela transitoriedade do tempo,
persisti. O efêmero traz para a cena a beleza no horror, fa-
zendo com que a vida caminhe mesmo em seus momentos de
maiores impossibilidades. Isto significa que a beleza sobrevive
enquanto significação, se sustentando sobre o tempo e sobre a
destruição. Nesse sentido, estar atento a seu tempo, significa,
38
entre outras leituras, apostar na capacidade da transitorieda-
de e na inventividade da própria psicanálise.
A pandemia da Covid-19 devastou a crença da possiblida-
de de ressignificação. Ela se apresenta como um desafio para
todo o social, e isso inclui a psicanálise que precisa se posi-
cionar diante de um tempo de urgência. Este trabalho, não se
ancora em uma proposta de apresentar respostas, mas de pos-
sibilitar que questionamentos sejam abertos para que novos
horizontes possam ser analisados. Dessa forma, através do
projeto aqui apresentado, é possível perceber que a psicaná-
lise pode se mostrar através de diversos cenários, sendo, por-
tanto, variadas formas de atuação do psicanalista, e o setting
online surge como uma delas. Entretanto, o estreitamento das
relações do sujeito com o virtual traz à tona diversas ques-
tões, entre as quais pode-se citar: O que resta ao corpo no ci-
berespaço? Qual o preço a se pagar no ambiente virtual? Tais
questões ainda necessitam serem melhores exploradas, pois
é preciso se analisar sobre o que resta da realidade do sujeito
diante dos (des) encontros entre telas.

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aplicada à educação: um estudo do mal-estar do professor e o
aluno considerado problema. Lepsi. São Paulo. 2011.

SIBILIA, P. O show do eu: a intimidade como espetáculo. 2.


ed. Rio de Janeiro:

43
2 Os ditos de dor e a escuta do sofrimento

Gesianni Amaral Gonçalves


Alexandre Simões
André Vitor Oliveira Dantas

A psicanálise só tem um meio:


a palavra do paciente (LACAN, 1953)

O acontecimento advindo com o surto da doença causada


pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2) acarretou uma emer-
gência de saúde pública de importância mundial, gerando o
mais alto nível de alerta conforme previsto no Regulamento
Sanitário Internacional declarado pela Organização Mundial
da Saúde (OMS) em 30 de janeiro de 2020, sendo que em 11
de março de 2020, a COVID-19 foi caracterizada como uma
pandemia (OPAS, 2020). Este termo tem sua origem etimoló-
gica derivada do grego pandemías, representado pela junção
dos elementos pan (todo) e demos (povo), ou seja, todo o povo
sendo afetado. Pandemia é a disseminação continental ou glo-
bal de uma doença através de uma contaminação sustenta-
da, em que o principal determinante é o poder de contágio e
proliferação geográfica. Frente a esse contexto mundial de
emergência de saúde pública, o isolamento social foi prescrito
como medida sanitária de contenção da pandemia, passando
a figurar como a estratégia mais apropriada para o atraso e/ou
mitigação da velocidade de difusão da doença e como medida
de prevenção à contaminação (BRASIL, 2020).
Estações e aeroportos foram fechados, ruas esvaziadas,
o burburinho das escolas silenciado, a alegria cotidiana de
44
crianças brincando em praças públicas cedeu lugar ao silên-
cio das coisas caladas. A ágora, esvaziada dos cidadãos, dei-
xou de ser um espaço livre tornando o público um destino a
ser evitado e o privado o cárcere necessário à manutenção da
vida. Nesse cenário pandêmico, diversos aspectos tangentes à
COVID-19 merecem ser problematizados em suas dimensões
biológicas, médicas, sociais, econômicas, políticas, ecológicas
e culturais, tal como Birman (2021) não se furtou em fazer.
Todavia, centraremos nossa atenção aos efeitos causados pelo
vírus à dimensão psíquica a partir da narrativa de fatos, senti-
mentos, lutos, emoções, medos, sofrimentos e angústias pro-
duzidos pela peste ao longo dos anos de 2020 e 2021. Ditos
de dor trazidos por diversos sujeitos que foram acolhidos em
seu sofrimento no Plantão Psicológico on-line: acolhimento e
prevenção (PPOLAP), realizado por graduandos em psicolo-
gia da Universidade do Estado de Minas Gerais/UEMG, sob a
supervisão dos professores autores deste texto e implementa-
dores do projeto.
A proposta deste projeto de extensão surge do impacto ca-
tastrófico qe a crise sanitária provocou nos confrontando com
o adoecimento e a morte. O objetivo geral do projeto é ofertar
uma escuta psicanalítica gratuita, no formato de plantão psi-
cológico on-line, ou seja, atendimentos realizados à distância,
em tempo real (síncrono), por meio de Tecnologias da Infor-
mação e Comunicação (TIC’s) através do uso de aplicativos
específicos. Mediante um acolhimento focal e emergencial é
possível compreender a demanda de cada sujeito, destacan-
do a dimensão subjetiva presente no conflito a fim de utilizar
esse momento para construção da transferência que permitirá
45
breves intervenções, ou o desdobramento para um acompa-
nhamento psicológico durante a crise. Sublinhamos o acom-
panhamento como uma intervenção longitudinal, mesmo que
por curto período de tempo, momento este que a escuta é ofer-
tada ao longo do período em que o paciente esteja em acompa-
nhamento no projeto.
Dentre os desdobramentos da experiência formativa propi-
ciada pelo projeto aos alunos do curso de psicologia da UEMG
unidade Divinópolis, destacamos a possibilidade de compre-
ender o plantão como prática psicológica e como serviço de
prevenção e promoção da saúde mental, possibilitando con-
duzir intervenções terapêuticas breves condizentes com o
projeto clínico de cada situação, levando em conta as especi-
ficidades do manejo técnico do atendimento. Além de poten-
cializar a prática de atendimento psicológico on-line em situa-
ções emergenciais de sofrimento, como por exemplo, aquelas
oriundas do impacto psicológico causado pela pandemia do
COVID-19, o PPOLAP possibilita capacitar os discentes para
realizar intervenções terapêuticas condizentes com o projeto
clínico de cada situação, levando em conta as especificidades
do manejo técnico do atendimento on-line e instrumentali-
zando-os para o exercício da prática clínica e promovendo o
aprimoramento técnico-científico.
Destarte, o acolhimento on-line aos sujeitos que este-
jam em situações emergenciais de sofrimento oriundas do
impacto psicológico causado pela pandemia do COVID-19,

46
contribui1 para amenizar as urgências subjetivas daqueles que
apresentam demandas de apoio psicossocial, colaborando
para a ampla rede de enfrentamento ao contexto pandêmico.
Testemunhamos que a pandemia repercutiu significativa-
mente na saúde mental, especialmente em razão do temor
pela exposição ao contágio, ao adoecimento e à morte e pe-
las situações de isolamento social. Esses aspectos intensifica-
ram o sofrimento mental e produziram alterações subclínicas,
principalmente em pessoas com histórico de somatizações ou
aqueles profissionais que estão na linha de frente na atenção
à saúde da população. No período de quarentena e situação
pandêmica ampliada, cresceram as dificuldades de enfren-
tamento das situações vividas, muitas reforçadas pelo isola-
mento e dificuldades de manutenção dos vínculos de suporte
financeiros e afetivos, indicando para a premência de ações
de apoio psicossocial, tais como implementamos com o pro-
jeto de extensão. Na análise da dimensão psíquica do sujeito
face ao acontecimento da pandemia evidenciaremos a dimen-
são do trauma e do real prescrutando o lugar e a função do
psicanalista nos atendimentos on-line que fazem parte de um
contexto mais amplo que podemos chamar de clínica e virtu-
alidades.

¹ Dado que o projeto continua ativo, exercendo suas ações, optamos por
manter o tempo verbal no presente.
47
2.1 Psicanálise connection

[...] mais cedo ou mais tarde [...] defrontar-nos-emos, então, com a


tarefa de adaptar a nossa técnica às novas condições
(FREUD, 1919, p. 181).

O desenrolar da clínica virtual assegura que o psiquismo


humano não é definido pelo espaço/tempo, não sendo o setting
ou um enquadre tipificado que define um ato analítico, mas a
transferência e a associação livre possibilitadas pela presença
do analista, subentendida por sua escuta e pela condição da
fala daquele que sofre. A pandemia em curso potencializou
o uso de novas tecnologias alavancando expressivamente o
atendimento on-line e sustentando que o espaço da escuta
analítica e, sobretudo, do trabalho psíquico não é o espaço
físico do consultório, mas antes, o espaço psíquico formado
pelos três registros entrelaçados pelo nó borromeano e
indicados por Lacan (1953): Real, Simbólico e Imaginário.
Referimos ao imaginário como a dimensão das imagens e
fenômenos identificatórios ligados à construção do eu, ao
simbólico como o campo da linguagem, do reconhecimento
e das estruturas sociais e ao real como aquilo que não pode
ser nem diretamente vivenciado nem simbolizado, como um
encontro traumático que desestabiliza inteiramente o universo
de significado do sujeito, enfim, a radical inexorabilidade do
pathos.
Este espaço psíquico está presentificado na análise que se
desdobra no ambiente on-line, assim como sempre esteve
presente na análise presencial. Portanto, qualquer que seja
o meio utilizado, as condições do fazer analítico são dadas
48
por pontos norteadores da clínica psicanalítica, a saber: pelo
estatuto do inconsciente e o lugar e especificidade do sujeito
que aí se produz, pela associação livre e pela transferência.
Trata-se de se discernir nesta estrutura a posição subjetiva
que torna possível, a cada encontro, a associação-livre e
o destinatário da mesma, que vem a ser o psicanalista e
sua função. É o que o sujeito diz, e como diz, que importa,
reiterando a máxima lacaniana de que o essencial é a escuta.
A esse respeito, sigamos sua orientação:

Pode-se contestar que o analista concede sua pre-


sença, mas eu acredito que sua presença inicial-
mente é subentendida por sua escuta, e que sua
escuta é simplesmente a condição da fala. Por que
a técnica analítica deveria solicitar que ele faça sua
presença tão discreta se esse não fosse, de fato, o
caso? (LACAN, 1958, p. 594, grifo nosso).

É este o lugar do analista onde a questão do desejo se


coloca para o sujeito. Foi esse lugar que nós psicanalistas
ocupamos desde março de 2020 e continuamos ocupando ao
realizar nossos atendimentos on-line e ao não recuar diante
o traumático e inassimilável da pandemia de COVID-19.
Trata-se de apostar na psicanálise mesmo nas condições mais
adversas, não recuando diante dos impasses apresentados
pelo real e que conclamam à simbolização. Tais impasses, as
mortes, a incerteza, o medo e a angústia demandaram dos
analistas a superação do isolamento social criando alternativas
para uma escuta clínica qualificada que foi e continua sendo
49
possibilitada por diversos recursos tecnológicos.
Cumpre destacar que a Resolução CFP nº 011/2018 entende
como meios tecnológicos de informação e comunicação todas
as mediações informacionais e comunicativas com acesso
à Internet, por meio de televisão, aparelhos telefônicos,
aparelhos conjugados ou híbridos, websites, aplicativos,
plataformas digitais ou qualquer outro modo de interação
que venha a ser implementado e que atenda aos objetivos dos
serviços prestados. Ao não definir uma ferramenta específica,
a Resolução busca abranger a intensa transformação das
tecnologias de comunicação à distância e a possibilidade de
desenvolvimento de novas tecnologias mais apropriadas ao
trabalho das(os) psicólogas(os) nessa modalidade.
Sabemos da dificuldade que o sujeito vive de articular sua
cadeia simbólica aos acontecimentos traumáticos, trazidos
pelo real, tais como a doença, a dor e a morte. Resta saber
o que cabe ao psicanalista em sua função frente a este
acontecimento traumático COVID-19, que tornou a morte
presente cotidianamente, exterminando com mais de 7
milhões2 de vidas no mundo (OXFORD, 2021). A respeito do
real da morte, Lacan faz uma advertência: “[...] para serem
psicanalistas conviria, no entanto que vocês meditassem de
vez em quando num tema como este, se bem que nem o sol,
nem a morte, possam ser olhados de frente” (1955-1956/2002,
p. 361). O autor, convoca os analistas, face ao perigo trazido

2 Dados atualizados em 26/11/2021. Disponível em: https://ourworldindata.org/


coronavirus-data

50
com situações de crise, em conduzir o tratamento pela via do
significante, alertando que: “Após o encontro, a colisão, com
o significante inassimilável, trata-se de reconstituí-lo[...]”
(LACAN, 1955-1956/2002, p.360). Esse impacto trazido
pelo que não tem nome, reitera a noção de real como o resto
impossível de simbolizar e como obstáculo ao princípio
do prazer, atualizando a advertência lacaniana de que “só
podemos chegar a pedaços de real” (LACAN, 1975-1976/2007,
p. 119). Todavia, apesar do real ser o inassimilável, aquilo que
não se pode simbolizar, Lacan salienta que a linguagem faz
furo no real: “É por essa função de furo que a linguagem opera
seu domínio sobre o real” (1975-1976/2007, p. 31). Ele chega
mesmo a afirmar que “a linguagem come o real” (p.31). Ao
atestar a eficácia da linguagem, sustentando sua função de
furo no real, o psicanalista sinaliza para aquilo que sempre
fora a operação primordial da práxis psicanalítica: operar com
palavras e seus efeitos.
Desta feita, compreendemos que o reconhecimento das
fontes de sofrimento que nos submete ao inevitável, também
direciona nossa atividade nos mobilizando na busca de
alternativas. Não seria este também um direcionamento para
os analistas em tempos de pandemia? “Se não podemos afastar
todo o sofrimento, podemos afastar um pouco dele e mitigar
outro tanto” (FREUD, 1929/1980, p. 105). Não vemos outra
saída para amenizar o mal-estar daqueles que nos procuram,
frente ao real avassalador da pulsão de morte, que não seja
pela fala: “Nada há de criado que não apareça na urgência, e
nada na urgência que não gere sua superação na fala” (LACAN,
1953/1988, p.242).
51
Tomamos a urgência subjetiva como um dispositivo de
acolhimento aos sujeitos em crise, que procuram apoio
psicológico a partir de demandas variadas, com o pedido de
acolhimento emergencial do sofrimento psíquico (CALAZANS;
BASTOS, 2008). Este dispositivo, tal como desenvolvido
nos atendimentos do PPOLAP, consiste em acolher a pessoa
e extrair, através de uma escuta diferenciada, aquilo que
permaneceu em estado de intenso embaraço ou esmagamento
do sujeito ou, em alguns casos, o que foi transformado em puro
ato com a subtração da palavra. Na urgência subjetiva, diante
do imprevisível que irrompe sobre o sujeito seja na forma do
diagnóstico de uma doença grave, da iminência da morte, da
morte de um ente querido ou mesmo da ruptura de um modo
de vida, o sujeito perde acesso à palavra.
A irrupção do real do psiquismo rompe, de forma radical,
com a cadeia das construções simbólicas que sustentam o
sujeito em seu lugar. Por isso é tão importante que o analista
possibilite a escuta porque ao fazê-lo ele está criando condições
para que o sujeito fale. Sustentar a fala e a escuta tem efeito,
uma vez que possibilita que o sujeito se posicione e possa advir,
mesmo que em um vislumbre. Somente ao escutar algo do
complexo fantasmático do sujeito é que o analista pode intervir
com vistas ao ato analítico, ou seja, a uma intervenção capaz
de possuir efeito terapêutico. Em outros termos, trata-se de
se abrir possibilidades de falas, de elaborações psíquicas face
àquilo que, do contrário, permaneceria na ecoante estática do
encontro maciço com o real que produz um efeito bem preciso:
o “desvanecimento do sujeito” (LACAN, 1960/1988, p. 831).
Clinicamente, é perceptível a condição específica em que o
52
ato de desvanecimento do sujeito se instaura: exatamente
ali, sob diversas roupagens circunstanciais, em que o sujeito
vem a ocupar a posição de objeto face a uma voracidade que
o devora.
O analista possibilita uma pausa na pressa para escutar o que
ali se passa e para que o sujeito possa elaborar o acontecimento
que toca o real tornando-o parte de sua história. O impacto do
real, no momento de urgência subjetiva colapsa o instante de
ver com o tempo de compreender. Por isso, o analista precisa
suportar a repetição, a recusa, a lágrima, o desespero, para
que o paciente construa o sentido através de sua fala, de seus
significantes, atando-se ao fio do simbólico. Do instante de
ver, propiciamos um tempo para compreender, antes que se
efetue o momento de concluir. Na ampliação deste tempo a
psicanálise opera, em seus procedimentos metodológicos
e clínicos, sustentada pela linguagem e pelo campo da fala,
tomando o sujeito na sua dimensão radical de sujeito do
inconsciente.
A escuta e a intervenção do analista em um plantão
psicológico visam propiciar uma abertura, um espaço para
a subjetividade e não propriamente a construção de uma
relação analítica conforme ocorre nas sessões de uma análise.
O plantão psicológico, enquanto uma modalidade clínica
contemporânea, apresenta-se como uma prática preocupada
com o modo como as novas demandas psíquicas se configuram
e está voltada ao respeito do horizonte histórico de sentido em
que aquele que endereça o seu pedido de ajuda encontra-se
inserido.
As situações de emergência de saúde pública mundial podem
53
causar crises e traumas exigindo dos profissionais propostas
de intervenção apropriada para este tipo de situação. O
termo crise, em grego Krisis, designa ‘ação ou faculdade de
distinguir, decisão, momento decisivo’; em Latim Crisis,
‘momento de decisão, de mudança súbita’. Na medicina,
‘momento que define a evolução de uma doença para a cura
ou para a morte’ (HOUAISS, 2001)3. O processo de crise
pode advir de eventos diversos, mas em todos os casos marca
um período de desequilíbrio psicológico, resultante de um
acontecimento que se configura insolúvel para o sujeito
a partir das estratégias de enfrentamento que ele possui.
Portanto, a intervenção em crise propicia o enfrentamento de
um evento traumático, amenizando os efeitos negativos, tais
como danos físicos e psíquicos, incrementando a possibilidade
de novas habilidades de enfretamento e reforçando a busca
de alternativas e novas perspectivas. Nessas considerações,
noções como trauma, traumatismo e catástrofe, parecem
ser tomadas como sinônimos, todavia a diferenciação destes
conceitos possibilita elucidar o campo teórico com vistas a
ampliar as intervenções clínicas pertinentes a cada situação.

2.2 Desamparo, trauma, traumatismo e catástrofes

Se para Freud o viver em sociedade limita nossas satis-


fações, Lacan, por sua vez, alude que a perda de gozo não
se deve à sociedade, mas ao fato de sermos seres falantes,

³ https://www.dicio.com.br/crise/

54
sinalizando para um encontro traumático com a linguagem.
Todavia, esse mesmo discurso que é fonte de sofrimento é
também de tratamento para as dores da existência. Como bem
sinaliza Soler: “[...]maldição que o discurso, antes, modera”
(2021, p. 25). Se a palavra (mal)dita pode adoecer é também
a palavra que pode libertar, reiterando que o método psica-
nalítico é um tratamento baseado na fala. É a partir da escuta
de muitas falas, prenhes de sofrimento durante esse período
pandêmico, que extraímos da experiência clínica a presença
da dimensão do trauma como um dos efeitos da pandemia nas
subjetividades.
Um acontecimento decisivo e traumático como este trazido
com a peste, por sua potência em modificar radicalmente o
sentido da história, resumiu simbolicamente a pandemia da
COVID-19 como evento decisivo na aurora do século XXI. É
preciso atentar para os desdobramentos psíquicos desse acon-
tecimento que deve ser analisado, de modo singular, a par-
tir dos efeitos desencadeados em cada sujeito. Como destaca
Birman (2021), o terror da morte se impõe em larga escala
no psiquismo reativando intensamente o que Freud (1929)
chamou de desamparo originário do ser, indicando que a con-
dição de existência do sujeito na civilização é apoiada numa
condição de desalento do psiquismo.
Acerca dos efeitos do trauma, Freud (1920) se refere à
energia pulsional que é transferida para o corpo como último
recurso capaz de conter o transbordamento de excitações no
psiquismo. Neste momento de sua obra, ele examinara a ques-
tão relativa à transferência da energia pulsional para o corpo a
partir da distinção entre dor física e o trauma. A dor seria uma
55
efração do escudo protetor em área limitada e o trauma, uma
efração em grande extensão. A respeito desse último, Freud
comenta: “descrevemos como traumáticas quaisquer excita-
ções provindas de fora que sejam suficientemente poderosas
para atravessar o escudo protetor” (FREUD, 1920/1980, p.
45). O analista está em busca de compreender o que ocorre
nos casos que contradizem a dominância do princípio de pra-
zer e o trauma parece ser o fator capaz de lançar luz à questão.
Nas situações traumáticas, o princípio de prazer é posto fora
de ação, assim o conceito de trauma conduz a uma ruptura da
barreira contra os estímulos.
Vemos, nesses casos de ruptura da barreira defensiva, mo-
dos de gozo envolvidos na constituição dos sintomas que afe-
tam o corpo evidenciando um excesso pulsional desvinculado
de uma representação. Muitos sujeitos ouvidos no PPOLAP
narraram sofrimentos subjetivos, condizentes com sintomas
de depressão, ansiedade, luto, sentimentos de angústia, impo-
tência e tristeza, assim como o medo da própria morte ou da
morte de amigos e familiares. Assim, conjecturamos que devi-
do à angústia experimentada, o recalque pode ser convertido
em sintoma físico promovendo o desaparecimento da angús-
tia. Deste modo, o sintoma é a resposta para a angústia que
emerge do encontro com o inassimilável do real traumático.
Trata-se de uma forma de tentar solucionar o conflito atra-
vés do recalque da ideia que representa o impulso libidinal
e, simultaneamente, de converter o afeto correspondente em
sintomas no corpo (GONÇALVES, 2022). Estes, por seu tur-
no, possuem vasta sintomatologia, desde crises de angústia
com distúrbios cardíacos até alterações do sono e dos hábitos
56
alimentares e ainda quadros de dermatites tópicas dentre ou-
tros.
De volta a teoria psicanalítica, sabemos que Freud substi-
tui a neurótica pela teoria da fantasia traumática de sedução
quando a ideia de realidade psíquica e o papel desempenhado
pelas fantasias inconscientes passam a ser mais valorizados
em sua escrita. Contudo, na base do traumático a sexualidade
continua presente, não mais assentada na ideia de que uma
sedução de fato ocorrera, mas embasada na noção de reali-
dade psíquica, ou seja, do efeito da fantasia na constituição
do sintoma. A teoria do trauma concebida em dois tempos
permanece, mas com uma diferenciação no material em que
os tempos incidem. Esse material refere-se à experiência de
coisas que são escutadas e que a princípio não se ligam a sen-
tido nenhum, este só chega mais tarde (aprés coup), produ-
zindo as fantasias. Assim, vemos que o fator traumático nun-
ca fora abandonado por Freud, passando a ter uma noção
mais abrangente e incluindo outros aspectos. A prova disso
é que em um dos seus últimos textos, ele retoma o assunto,
demonstrando que nunca renunciou ao caráter traumático na
etiologia das neuroses. Retomemos sua pena: “Denominamos
traumas aquelas impressões, cedo experimentadas e mais tar-
de esquecidas, a que concedemos tão grande importância na
etiologia das neuroses” (FREUD, 1939/1980, p. 91). O autor
enfatiza que a gênese da neurose invariavelmente remonta a
impressões primitivas da infância e reitera: “Nossas pesquisas
demonstraram que aquilo que chamamos de fenômenos (sin-
tomas) de uma neurose são o resultado de certas experiências
e impressões que, por essa mesma razão, encaramos como
57
traumas etiológicos” (1939/1980, p. 92).
Freud sempre se interessou mais pelo trauma sexual, ou
seja, aqueles ligados às formações inconscientes, contudo, no
cenário pandêmico atual, o interesse se volta aos traumas da
civilização. Soler (2021) destaca que a diferença fundamen-
tal entre eles é que um trauma (originário), por se inscrever
no inconsciente, pode ser esquecido, ele retorna na repetição,
mas de maneira mascarada, condicionando “o esquecimento
necessário para viver. O esquecimento é precisamente que o
trauma tenha se inscrito” (SOLER, 2021, p. 64). O mesmo não
ocorre com os traumatismos, uma vez não inscritos no saber
inconsciente se tornam um problema. Temos assim, dois tipos
de traumatizados: os sujeitos que por serem traumatizados de
origem se esqueceram (sendo que a análise talvez possibilite
reconstruir algo, trazendo de volta e propiciando um sentido
a posteriori) e os traumatizados da civilização que segundo
Freud (1920), se caracterizam pelo esquecimento impossível.
Não é nosso interesse, nesse momento, percorrer os des-
dobramentos teóricos do trauma à fantasia fundamental, mas
afirmar a tese definitiva de Freud, segundo a qual toda neuro-
se tem origem traumática e efetuar a distinção entre o trau-
ma original e os traumas da civilização. Quanto a este último,
Soler (2021) usa a expressão traumatismo referindo-se a aci-
dentes da história que podem ser coletivos ou individuais, mas
sempre eventuais: “[...]marcas subjetivas ou rupturas produ-
zidas pela irrupção do infortúnio ou de um excesso vindos de
fora, que assolam o sujeito ou o seu corpo repentinamente,
sem que possamos atribuir isso àquele que sofre as consequ-
ências com terror” (SOLER, 2021, p. 22). Trata-se de um real
58
que exclui o sujeito, sem relação com o inconsciente ou com o
desejo próprio de cada um, diante do qual nada pode ser feito
exceto sofrer as consequências, como tantos acontecimentos
inesquecíveis.
Na perspectiva freudiana, a teoria do trauma está entrela-
çada tanto ao desamparo quanto à angústia que responde a
uma situação de perigo real, mas também de perigo subjeti-
vo. Este último se refere a um aumento de excitação corporal
ou psíquica, impossível de ser dominada já que o sujeito não
pode controlar nem regular. A angústia surge como efeito do
afeto liberado do confronto com esse perigo que, em muitos
casos, remete o sujeito ao desamparo. Portanto, como lembra
Birman (2021), a angústia e o trauma consolidam metapsico-
logicamente o desamparo e o desalento no sujeito.
Sobre o desamparo, Freud (1926) define: “Denominemos
uma situação de desamparo dessa espécie, que ele realmen-
te tenha experimentado, de situação traumática” (FREUD,
1926/1980, p.191). Ao evidenciar a articulação entre trau-
ma e desamparo, o psicanalista não esclarece sobre o tipo de
trauma capaz de lançar o sujeito ao desalento. Contudo, ao
destacar que “a angústia é a reação original ao desamparo no
trauma, sendo reproduzida depois da situação de perigo como
um sinal em busca de ajuda” (1926, p.192), Freud fornece uma
definição que pode ser aplicada tanto ao trauma sexual (origi-
nal) e constitutivo do sujeito, quanto ao trauma da civilização
(atual), pois ambos clamam pela busca de ajuda. Impõem-se
assim, uma dupla atualização com relação à natureza e à fun-
ção do trauma na subjetividade. Vejamos como esses traumas
se distinguem e/ou se articulam.
59
Inicialmente Freud delimita o trauma na origem da vida in-
fantil, com efeito de sintoma para o neurótico, generalizando,
posteriormente, para o civilizado ou, para o ser falante, diria
Lacan. O trauma é universal, próprio do humano e, em todo
caso, se refere ao sexual. Contudo, se o trauma sexual é co-
mum a todo falante, suas sequelas de sintoma são singulares,
específicas em cada um, em função da posição fantasmática de
cada sujeito. Sua aparição data de fins do século XIX, momen-
to em que Freud, ao deparar-se com os sintomas histéricos,
propõe o trauma sexual como cerne do inconsciente, portan-
do o segredo do sintoma. Algum tempo depois, ao constatar
a inscrição de marcas subjetivas produzidas pela irrupção de
um infortúnio vindo do exterior, o analista demarca os trau-
mas da civilização, mencionando os acidentes ferroviários e
as guerras A estes, contemporaneamente, acrescentamos as
catástrofes4, a violência dos grandes centros urbanos, o ter-
rorismo, os atentados sexuais, os refugiados por segregações
raciais, étnicas, políticas e/ou religiosas e muitas outras con-
junturas traumáticas que se apresentam no cenário atual.
Birman (2021) destaca que a experiência psíquica do su-
jeito na pandemia é caracterizada primordialmente pelo
trauma, dado que o sujeito não pode reconhecer a antecipa-
ção do perigo sendo, assim, abalado pela surpresa do acon-
tecimento trágico, acarretando a angústia real e o trauma
como seu correlato. Para o autor: “Seria, então, a partir dessa

4 Acidentes de grandes proporções provocados pelo homem ou causados


pela natureza.

60
infraestrutura traumática que as diferentes formações sinto-
máticas se ordenariam no sujeito como linhas de fuga e esta-
beleceriam sua cartografia psíquica na recepção da experiên-
cia do trauma em curso com a pandemia do novo coronavírus”
(BIRMAN, 2021, p. 139).
As apropriações do autor à teoria freudiana do trauma são
úteis ao aproximar a questão do trauma à pandemia em curso.
Lembremos com Freud (1926) que a angústia real diz respeito
a um perigo que é conhecido, enquanto a angústia neurótica
remete a um perigo desconhecido, que ainda precisa ser des-
coberto. Freud esclarece: “a análise revela que ao perigo real
conhecido se acha ligado um perigo pulsional desconhecido”
(1926, p.191). Assim, vemos que a angústia diante de um trau-
ma atual, não se difere daquela presente face a um trauma se-
xual, de modo que o manejo clínico é o mesmo, desde que seja
seguida a orientação do autor: “Levando esse perigo que não
é conhecido do ego até a consciência, o analista faz com que a
angústia neurótica não seja diferente da angústia realística, de
modo que com ela se pode lidar da mesma maneira” (FREUD,
1926, p. 190).
Não satisfeito em distinguir os tipos de angústia prove-
nientes de situações traumáticas, Freud avança em suas ela-
borações indagando a essência e o sentido de uma situação de
perigo. Indagação útil também nos dias que correm ao ques-
tionarmos, no um a um dos sujeitos acolhidos em seu sofri-
mento face a pandemia: qual a essência da angústia em jogo?
O alerta freudiano indica que devemos estar atentos à força
do sujeito em comparação com o tipo de desamparo envolvi-
do em cada situação: “desamparo físico se o perigo for real e
61
desamparo psíquico se for pulsional” (FREUD, 1926, p. 191). O
que percebemos é que em muitos casos, ambos estão presen-
tes, um traumatismo atualizando um trauma original, ou dito
de outro modo, o vírus, em sua invisibilidade, tem provocado
tanto situações de desamparo físico, quanto psíquico. Obser-
vamos a angústia, como reação ao desamparo proveniente do
trauma, sendo reproduzida por meio de sonhos, lembranças,
atuações e sintomas somáticos, reiterando o dizer freudiano:
“O ego que experimentou o trauma passivamente agora o re-
pete ativamente, em versão enfraquecida, na esperança de ser
ele próprio capaz de dirigir seu curso” (1926, p. 192). Agindo
assim, passando da passividade à atividade buscam dominar
psiquicamente suas experiências dolorosas.
Na cartografia psíquica, extraída da experiencia do trauma,
é possível localizar diferentes formações sintomáticas, esbo-
çadas a partir das produções psíquicas extraídas do registro
simbólico daquilo que porta uma dizibilidade possível. A escu-
ta psicanalítica dos ditos de dor daquilo que, não sem esforço,
foi transformado do indizível ao dizível nos acolhimentos do
PPOLAP, evidencia que uma destas formações sintomáticas,
já fora evidenciada por Freud, no final do século XIX, quando
denominou de neurose de angústia e que atualmente o dis-
curso psiquiátrico chama de Síndrome do Pânico. Ele assim
descreve a sintomatologia clínica da neurose de angústia:

Ataques de angústia acompanhados por distúrbios


da atividade cardíaca, tais como palpitação, seja
com arritmia transitória ou com taquicardia de
duração mais longa, que pode terminar num grave
62
enfraquecimento do coração e que nem sempre é
facilmente diferenciável da afecção cardíaca orgâ-
nica; e ainda a pseudo-angina do peito – um assun-
to delicado em termos de diagnóstico! (FREUD,
1895/1980, p. 94-95).

Casos como estes continuam sendo um assunto delicado


em termos de diagnóstico convocando a Psicanálise a uma in-
terlocução cuidadosa com outras práticas e campos do saber.
Não nos ocuparemos das hipóteses diagnósticas, mas de uma
apreensão geral dos registros do PPOLAP que quantificam,
como os principais motivos da procura pelo projeto, ou seja,
como principais demandas: a ansiedade, a depressão e o luto.
Vemos assim, que na base da experiência traumática estão
consolidadas formações sintomáticas tangentes às crises de
angústia, às alterações do humor e aos rituais obsessivo-com-
pulsivos em função da sensação de fragilidade, impotência e
temor da morte. Esses dados nos levam a crer que o que está
em pauta nessas circunstâncias psíquicas específicas, delinea-
das pela pandemia e registradas em nosso projeto, é a presen-
ça de uma grande vulnerabilidade psíquica nos sujeitos, rea-
tivando traumas e o desamparo originário de modo patente e
avassalador.
Birman (2021), destaca que “a dor e o sofrimento, como
dobras ruidosas, modulam efetivamente os interstícios da
experiência traumática, que incide de maneira singular so-
bre os indivíduos concretos” (BIRMAN, 2021, p. 13). Para o
autor, o incremento das mortes pelo vírus provoca nos sujei-
tos uma série de efeitos psíquicos envolvidos na realização do
63
trabalho de luto. Soma-se ao aumento vertiginoso do núme-
ro de mortes o fato lastimável de que os enterros dos mortos
ocorreram de forma indigna, sem os ritos funerários tão caros
à elaboração do luto. Os amontoados de cadáveres fartamente
expostos nas mídias, empacotados em câmaras frigoríficas ou
encaixotados em valas coletivas, exibiram cotidianamente a
efemeridade da vida, equivalendo a pandemia às catástrofes
promovidas em grandes guerras.

2.3 A transitoriedade da vida e as considerações de


um final... ainda a ser construído

[...] nosso inconsciente tem tão pouco uso hoje, como sempre teve,
para a ideia de sua própria mortalidade (FREUD, 1919, p.302).

Ainda não acabou! A pandemia continua mostrando sua


face mórbida e funesta. O fim desse momento difícil da histó-
ria precisa ainda ser construído. Freud (1915a/1980), em um
importante artigo escrito meses depois do início da Primei-
ra Guerra Mundial, faz algumas reflexões sobre os tempos de
guerra e de morte que são bastante atuais neste momento de
pandemia. Ele afirma não ser incomum em situações de ca-
tástrofes que envolvem grande número de mortes, sermos to-
mados por uma espécie de distanciamento que ele relaciona a
duas questões principais: a desilusão e a nossa atitude frente à
morte. Com relação ao primeiro ponto, considera que somen-
te quando somos atingidos diretamente por tais situações, o
que inclui nosso círculo de familiares e amigos, é que nos de-
paramos de fato com a realidade trágica, pois tentamos, fre-
quentemente, manter a ilusão de que estaremos protegidos.
64
Sobre o segundo ponto, como ensina a psicanálise, devido
às determinações do funcionamento inconsciente, não acredi-
tamos em nossa morte. O mais comum é colocarmos a morte
de lado, tentando eliminá-la da vida evitando, inclusive, fa-
lar a respeito desse assunto nas situações cotidianas. Freud
(1915a/1980) ressalta, no entanto, que tal atitude produz um
empobrecimento da vida que nos impede de vivê-la plena-
mente. As guerras, os grandes desastres quando atravessam
as nossas vidas, restringem esse tratamento da morte, que ele
chama de convencional, nos forçando a encará-la efetivamen-
te de frente.
No texto Sobre a transitoriedade, Freud (1915b/1980)
avança na questão da morte afirmando que apesar da exigên-
cia de imortalidade, ser um produto dos nossos desejos, não
podemos reivindicar seu direito à realidade, devemos sim, ex-
trair daquilo que é penoso - a condição da transitoriedade da
vida - sua beleza. Colhendo um exemplo da natureza, o psica-
nalista diz: “Uma flor que dura apenas uma noite nem por isso
nos parece menos bela” (FREUD,1915b/1980, p.124). Extraí-
mos dessa elegante passagem, que ter ciência da finitude não
deve ser capaz de destituir a beleza da vida. Como argumenta
Freud: “Pelo contrário, implica um aumento! O valor da tran-
sitoriedade é o valor da escassez no tempo. A limitação da pos-
sibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição” (FREU-
D,1915b/1980, p.125). O analista defende que o pensamento
sobre a transitoriedade da beleza da flor não deve interferir
na alegria e admiração que dela derivam. E nós, transplanta-
mos o exemplo da flor à vida. Saber da finitude da vida cau-
sa sofrimento, mas não devemos permitir que produza uma
65
antecipação de luto impedindo a fruição da beleza de viver.
Em O mal-estar na civilização, em sua indelével atualida-
de, Freud (1929/1980) já indicava o antagonismo irremediá-
vel entre as exigências pulsionais e as restrições da civilização.
Aquilo que está no cerne da elaboração freudiana nesta obra é
a constatação de que a vida em sociedade é marcada pelo so-
frimento. O autor salienta que a infelicidade é mais fácil de ex-
perimentar e com muita clareza delimita três direções a partir
das quais o sofrimento nos ameaça: o corpo,"[...] o mundo ex-
terno que pode voltar-se contra nós com forças de destruição
esmagadoras e impiedosas e nossos relacionamentos com os
outros homens” (FREUD, 1929/1980, p. 95). A vida é frágil e
ter ciência de sua finitude é fonte de mal-estar para os seres
de linguagem, contudo o peso da existência conclama a um
propósito da vida.
A pandemia que se atravessa, insiste em atualizar, diaria-
mente, à sociedade contemporânea que a vida pode estar por
um fio. Portanto, é necessário ponderar sobre os desdobra-
mentos psíquicos desse complexo processo marcado pela in-
visibilidade do vírus, que como toda doença virótica ou bac-
teriana, se apresenta como um inimigo impalpável. É preciso
resistir e confiar que Freud estava certo: “Quando o luto tiver
terminado, verificar-se-á que o alto conceito em que tínhamos
as riquezas da civilização nada perdeu com a descoberta de sua
fragilidade. Reconstruiremos tudo o que a guerra destruiu, e
talvez em terreno mais firme e de forma mais duradoura do
que antes” (FREUD, 1915b/1980).
É preciso investir em nossa capacidade de reinvestir na vida,
fazendo furo no real. Não cabe ao analista fazer promessas de
66
sucesso absoluto sobre o mal-estar humano. Não trabalhamos
com a exclusão do sofrimento e muito menos, tamponando a
falta, mas trabalhamos com a realidade psíquica, apostando
que através da fala, é possível bordejar algo do real.
Concordamos com Soler (2021) que para a psicanálise, o
trauma inclui a responsabilidade do sujeito na questão que
possa formular diante do acontecimento contingente. A ana-
lista adverte quanto à tendência do discurso contemporâneo
que inverte a questão do trauma separando o acidente do su-
jeito e remetendo este, à condição de vítima, logo, isento de
qualquer implicação subjetiva. As consequências dessa pre-
disposição são desastrosas e contrárias à orientação de Lacan
(1973-1974/2018) que ao cunhar o neologismo troumatisme
articula as palavras, traumatismo e furo (trou), para associar
o trauma e o furo do real. Com esse termo o analista renova
a noção de trauma, enfatizando menos a noção de recalque
e mais a dimensão do furo, de um encontro com o real sem
correspondência no simbólico. Momento de pura angústia,
diante do qual o sujeito se sente sem recursos, em completo
desamparo, sendo a construção simbólica, o recurso capaz de
restituir o sujeito que fora foracluído. Assim sendo, é a fala, a
condição de possibilidade para que algo do traumático pos-
sa ser ressignificado pelo sujeito. Cabe ao analista deslocá-lo
deste lugar de desamparo, uma vez que ele já fora destituído
pela doença, pela dor, pela internação, pelo luto e que essa
destituição o coloca no lugar de objeto. Busca-se tirá-lo do lu-
gar de objeto e inseri-lo no simbólico a fim de que possa vis-
lumbrar o sujeito (o desejo).
Tal como Freud (1914/1980) nos alertou, a transferência
67
(Übertragung) implica, necessariamente, em uma travessia
(Übergang): “A transferência (Übertragung) cria, assim, uma
região intermediária entre a doença e a vida real, através da
qual a travessia (Übergang) de uma para outra é efetuada”
(FREUD, 1914/1980, p. 201). Esta é a estrutura de uma aná-
lise que, por sua vez, é homóloga à estrutura subjetiva. Em
tempos atuais, não há como deixarmos de evocar a advertên-
cia freudiana no que tange às travessias, sejam as vinculadas
à transferência, sejam vinculadas à vida: elas sempre devem
considerar a estreita via que se dá entre a materialização de
dois perigos extremos, a saber, Cila e Caribidis. Temos aqui
uma importante referência que Freud (1923/1980) realiza ao
recorrer a uma notória passagem do Canto XII da Odisséia,
na qual Circe, a feiticeira, antecipa a Ulisses, em seu intenso
anseio de retorno à sua morada, os dois grandes perigos que
necessariamente lhe aguardavam em sua travessia pelo estrei-
to de Messina. Khárybdis, o abismo que engole vorazmente e
Skýlla o monstro fabuloso que destruía os navios. Já não terí-
amos aqui, sob as formas de Cila e Caribidis, a maneira freu-
diana de se colocar, avant la lettre, as problematizações laca-
nianas do encontro com o real? Ou melhor, o encontro com
o real não é, genuinamente, uma problematização freudiana?
Incontornavelmente, temos nestas extremidades do monstro
que devora e o abismo que dizima o âmago do encontro com
o traumático que produz desvanecimento caso a travessia, a
despeito delas, não se dê. Ora na condição de Cila, ora no sta-
tus de Caribidis, temos o vírus e aquilo que nele há de mons-
truoso; o monstruoso que mostra, para fazermos jus à origem
etimológica que aproxima o monstro do mostrar. Mostrar o
68
caminho, a travessia. Este é o efeito da palavra que, a cada
caso, há de nomear a Cila e o Caribidis de cada um, face ao
inexorável trazido pelo vírus.
Os efeitos terapêuticos da escuta analítica podem ser reto-
mados pela ótica lacaniana quando ele permite definir o que
estamos designando como terapêutica: “A cura é uma deman-
da que parte da voz do sofredor, de alguém que sofre de seu
corpo ou de seu pensamento” (LACAN, 1974/1993, p. 19-20).
Cabe aqui considerar a terapêutica como algo que não impli-
ca, automaticamente, à restituição de um estado anterior, a
um anseio simplista de uma vida sem desassossegos ou es-
torvos. Mantendo-se esta advertência, a psicanálise pode ser
apresentada como uma terapêutica, ou seja, como um trata-
mento, desde que haja uma demanda a partir da fala de um
sujeito que sofre. Desta feita, a terapêutica psicanalítica pres-
supõe que o sujeito fale, que fale a um analista, podendo ser
essa fala presencial ou on-line. A escuta psicanalítica coloca
em movimento o sujeito, fazendo-o falar e deparar-se com o
seu não saber, com suas dúvidas sobre si e sobre o mundo,
provocando o sujeito a se colocar diante de suas próprias pa-
lavras, levando-o a examinar e se dar conta de sua própria sin-
gularidade se implicando com ela.
Ainda não acabou! A pandemia continua, mas nós também
continuamos resistindo e abrindo espaço para os ditos de dor
e para a escuta do sofrimento, que almejamos sejam, em bre-
ve, ditos de desejos.

69
Referências

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suas dimensões políticas, sociais, econômicas,
ecológicas, culturais, éticas e científicas. Rio de Janeiro:
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74
3 Tecnologias da informação e comunicação
e formação do psicólogo: uma experiência de
plantão psicológico na abordagem
cognitivo-comportamental

Maria Cecíllia Resende Silva


Aryadne Santos Branquinho
Bruna Mariana de Freitas Camargos
Gabriela Carolina de Lima Silva
Ana Cláudia Soares Silva
Jéssica Bruna Santana Silva

As TICs – Tecnologias da Informação e Comunicação – atu-


almente, têm se destacado na sociedade, por facilitarem a co-
municação entre as pessoas e proporcionarem a transmissão
de informações de forma rápida e sem barreiras geográficas.
Esses recursos tecnológicos, extensivamente utilizados du-
rante a pandemia de COVID-19, também têm oferecido novas
possibilidades de atuação para profissionais de diversas áreas,
entre os quais se destaca a prática psicológica (STOQUE et al.,
2016). Segundo Santana et al. (2020), os psicólogos utilizam
essas ferramentas de trabalho há algum tempo e apesar de
consistir em um instrumento que enfrentou diversos obstácu-
los para se consolidar no campo, no contexto atual se tornou
imprescindível para essa classe de trabalhadores.
Antes da popularização das TIC, há aproximadamente 50
anos, o aconselhamento psicológico encontrava na tecnolo-
gia (gravações telefônicas e áudio, entre outras) uma gran-
de aliada. Mas, é a partir da década de 1990 que ocorre o

75
interesse crescente da utilização das TIC’s na psicologia clí-
nica. No Brasil, os primeiros atendimentos foram oferecidos
em 1995 pelos endereços eletrônicos: Help on-line e Psicólo-
gos on-line, ainda sem o respaldo da American Psychological
Association (APA) e do Conselho Federal de Psicologia (CFP)
(CAMARGO, 1999).
Com a chegada do novo Coronavírus e com as mudanças
e adaptações necessárias para que a atuação dos psicólogos
e psicólogas continuassem, foi necessário encontrar novas
maneiras de trabalho que possibilitassem o prosseguimen-
to dos atendimentos clínicos e que respeitassem as medidas
sanitárias. Essa iniciativa se configurou como fundamental,
pois, segundo pesquisas realizadas pelo Ministério da Saúde
(2020), quase 30% do número de entrevistados afirma ter
buscado atendimento especializado para questões que envol-
vem a saúde mental durante o momento crítico de isolamento
social vivenciado durante a pandemia, o que corrobora com
a emergência de uma remodelação para esses atendimentos
psicológicos.
Diante disso, o Conselho Federal de Psicologia (BRASIL,
2020) emitiu a resolução 04/2021 em que amplia e flexibiliza
o trabalho da categoria, no que se refere ao uso das TICs du-
rante a pandemia. Além disso, diversos documentos, vídeos e
podcasts foram criados com o intuito de ajudar os psicólogos e
psicólogas a continuarem os atendimentos utilizando esse re-
curso. Como exemplo, recentemente a Revista Diálogos (CFP,
2021) publicou uma edição nomeada “A Prática Psicológica
Na Pandemia: de norte a sul histórias de profissionais que
precisaram encontrar alternativas em meio à crise”, em que
76
trabalha diferentes temáticas que se ligam a esse momento.
Em uma das entrevistas realizadas, o psicólogo André Neves
afirma que diante do atendimento online:
Primeiro, é importante compreender que essa modalidade
ampliou o acesso à psicologia, mas ainda apresenta muitas li-
mitações, especialmente no que se refere à rede disponível e
de boa qualidade. Também ajudou na rapidez e na facilidade
(pelo menos para quem domina o uso de celular e/ou compu-
tadores) para acessar o serviço psicológico, pois permite que
a pessoa nem precise sair de casa, além de incluir pessoas que
tinham alguma resistência em procurar uma psicóloga [...]
(CFP, 2021, p. 30)
Perante o exposto, é válido apontar também que todas es-
sas transformações refletiram nas práticas inerentes à forma-
ção do psicólogo, suscitando a necessidade de modificação dos
atendimentos, acolhimentos e plantões psicológicos realiza-
dos pelos estágios curriculares nas universidades. Para isso,
o CFP e a ABEP – Associação Brasileira de Ensino em Psi-
cologia – (2020), desenvolveram um material que orienta e
faz recomendações sobre as “Práticas e Estágios Remotos em
Psicologia no Contexto da Pandemia da Covid-19”, que, entre
outros aspectos, aponta para a possibilidade do uso das TICs
em todos os contextos mencionados no título.
Em vista disso, os acolhimentos e plantões psicológicos
desempenhados pelos estagiários podem seguir por diversos
caminhos, uma vez que a Psicologia está em constante cons-
trução e abarca diversas áreas, assim como, múltiplas abor-
dagens teóricas. Nesse sentido, o presente capítulo tem como
principal enfoque apresentar as práticas de estágio no formato
77
plantão psicológico, na abordagem Cognitivo-Comportamen-
tal, destacando as possibilidades e desafios do uso das TICs.
Especificamente, o capítulo aborda as possibilidades de con-
dução e técnicas a partir da exposição das experiências com o
Plantão Psicológico online conduzido por um grupo de estagi-
árias de Minas Gerais, e como a TCC foi eficaz como suporte
nos atendimentos relacionados a casos de Transtornos de An-
siedade, Autoestima e Luto.

3.1 Plantão psicológico

Na primeira década do século XX, nos EUA, surgiu o


aconselhamento psicológico como área de especialização,
modalidade essa que, mais tarde, serviria como base para o
desenvolvimento do plantão psicológico. Inicialmente, essa
modalidade dava ênfase ao ajustamento psicológico dos in-
divíduos e, como a Psicologia ainda não era reconhecida
como profissão naquele país, Carl Rogers iniciou sua prática
em aconselhamento psicológico antes mesmo de desenvol-
ver seu modelo terapêutico, a Terapia Centrada no Cliente
(MOZENA, 2009).
Com a grande expansão das ideias de Rogers nos EUA e
na Europa, o aconselhamento psicológico surge também no
Brasil, na década de 1960. Isso ocorreu coincidentemente no
contexto da luta pelo reconhecimento da psicologia como pro-
fissão no Brasil, sendo o Instituto de Pesquisa da Universida-
de de São Paulo (IPUSP) uma das primeiras instituições a im-
plantar o modelo (REBOUÇAS; DUTRA, 2010). Dentro deste
instituto, em 1969, foi criado o Serviço de Aconselhamento
78
Psicológico (SAP) sob a coordenação de Oswaldo Barros de
Santos e por iniciativa de sua ex-aluna Rachel Rosemberg.
O SAP possuía como objetivos fornecer atendimento aces-
sível à comunidade e também proporcionar prática de está-
gio aos alunos. Apresentava uma proposta diferenciada dos
demais serviços oferecidos na época, sem intuito de oferecer
diagnóstico ou tratamento aprofundado, se baseava na oferta
de escuta empática. Dentro do SAP, em meados do final da
década de 1970 e inspirada nas walk-in clinics norte-ameri-
canas, Rachel Rosenberg propôs a ideia do plantão psicoló-
gico como uma modalidade de aconselhamento psicológico
(MOZENA, 2009).
Apenas a partir dos anos de 1990, o Plantão foi distinguido
da Psicoterapia, como um serviço de atenção psicológica e tec-
nológica de promoção da saúde. Consiste em um serviço que
flexibiliza os atendimentos, acolhendo o sujeito na sua urgên-
cia, isto é, que prioriza a demanda pontual do usuário, sendo
uma oportunidade de acolhimento por meio da escuta qua-
lificada, tendo por finalidade não somente a resolução, mas
uma maior compreensão do seu sofrimento (BARCELLOS;
FERREIRA; SANTOS; ROTTA JÚNIOR, 2020). Além disso,
é importante que o plantão psicológico tenha mobilidade,
podendo acontecer em qualquer lugar, desde um local mais
específico, como uma sala já preparada, até o pátio de uma
instituição de ensino, pois, o foco principal desse serviço é a
escuta (MAHFOUD et al., 2012).
No contexto da pandemia, tem sido utilizada a modalidade
remota nos atendimentos. Entende-se que, mesmo não tendo
um contato presencial com o paciente, esse modelo permite
79
um atendimento breve e focado na urgência daquele que bus-
ca por essa opção. Além disso, o atendimento remoto, assim
como o presencial, possibilita o auxílio no manuseio dos con-
flitos do sujeito e o acolhimento, bem como o contato entre
cliente e terapeuta em qualquer localidade, o que também
possibilita mais segurança nos atendimentos, pensando na
perspectiva dos quesitos sanitários.
O conjunto destas características possibilita, então, realizar
um plantão psicológico, onde o trabalho do conselheiro-psi-
cólogo é no sentido de facilitar ao psicólogo uma visão mais
clara de si mesmo e de sua perspectiva ante a problemática
que vive e gera um pedido de ajuda. Nisso, a forma de enfren-
tar a problemática se definirá no próprio processo de plan-
tão e com participação efetiva de ambos, cliente e conselheiro
(MAHFOUD et al., 2012, p.19).
Assim, entende-se que o plantão psicológico é desafiador e
por isso, o enfoque assumido no estágio é o de contribuir para
o enfrentamento do problema do paciente de maneira asserti-
va por meio do acolhimento, pautando-se pelo o compromisso
social e ético às demandas sociais e emocionais de quem se
encontra em situação de vulnerabilidade emocional.
No contexto de estágio para a formação em Psicologia, o
plantão psicológico tem se mostrado como oportunidade para
praticar o contato com os pacientes e aplicação de estratégias
e técnicas psicológicas contribuindo para o desenvolvimento,
por parte dos estudantes, de habilidades terapêuticas essen-
ciais na prática clínica. O estudo de revisão de Borges (2020)
destaca o plantão realizado em instituições de ensino superior
como modalidade que torna o atendimento psicológico acessí-
80
vel para pessoas que não possuem condições financeiras para
realizar tratamento em instituições privadas e também como
prática que provoca discussões sobre novas formas de exercer
o cuidado psicológico.
Apesar de o enfoque assumido pelo plantonista ser a expe-
riência do sujeito e não o referencial epistemológico seguido
pelo profissional, é possível notar que o plantão psicológico,
por se constituir como modalidade focal, mostra-se conso-
nante com os pilares da TCC, no que diz respeito à objetivi-
dade, estruturação, treinamento de habilidades e resolução
de problemas (NEUFELD et al., 2022). Assim, destaca-se o
estudo de relato de experiência de de-Medeiros et al. (2021),
no qual foi aplicado um protocolo de atendimento online ba-
seado na TCC em atendimento de plantão psicológico condu-
zido por estudantes de Psicologia. No trabalho foi destacada a
importância da contextualização com a demanda do paciente
na hora de selecionar as técnicas a serem aplicadas e também
a importância das supervisões como forma de auxílio aos psi-
cólogos ainda em formação. A realização de psicoeducação foi
considerada pelos autores como crucial nos atendimentos in-
dependentemente da queixa apresentada e os pacientes aten-
didos demonstraram satisfação com os atendimentos ao pre-
encherem um formulário pós-atendimento.
Nessa perspectiva, a abordagem cognitiva-comportamental
demonstra potencial para o atendimento em plantão psicoló-
gico tendo em vista os resultados positivos do relato de expe-
riência supracitado e se apresenta como referência base para
as práticas que serão descritas neste capítulo mais à frente.

81
3.2 A Terapia Cognitiva-comportamental: Aspectos
conceituais, princípios e técnicas

A terapia cognitiva comportamental (TCC) é uma forma de


psicoterapia focal e foi desenvolvida por Aaron Beck no ano
de 1960- período em que uma “revolução cognitiva” começou
a emergir– conhecida como somente terapia cognitiva (TC) e
desde então, Beck e outros autores continuaram estudando e
desenvolvendo a teoria e tiveram sucesso na adaptação com
uma ampla abrangência de problemas e transtornos (BECK,
2022).
Atualmente os termos terapia cognitiva e terapia cognitiva-
-comportamental abrangem psicoterapias que utilizam uma
abordagem que prioriza os conteúdos cognitivos associados
a um conjunto de procedimentos comportamentais. A TCC é
usada como um termo mais amplo que inclui tanto a TC pa-
drão quanto combinações ateóricas de estratégias cognitivas e
comportamentais. Apesar de todas as adaptações que a teoria
sofreu ao longo dos anos, a sua base sempre continuou a mes-
ma, tendo como foco o modelo cognitivo proposto, em que
pensamentos automáticos distorcidos influenciam as emo-
ções e comportamentos do indivíduo (KNAPP; BECK, 2008).
Sabe-se que a estrutura inicial da TC de Beck teve grande
influência de outras escolas da psicologia, como da psicaná-
lise, por ter um foco maior na cognição do que no comporta-
mento observável. Outras escolas de grande influência foram
a abordagem fenomenológica-existencial e principalmente a
humanista, de Carl Rogers, inspirando o terapeuta a adotar
uma postura gentil e centrada no paciente (KNAPP; BECK,
2008).
82
Aaron Beck, durante a proposição de seu modelo cognitivo,
tentava explicar os processos psicológicos na depressão, em
uma tentativa de provar a teoria freudiana de depressão como
hostilidade retrofletida reprimida. No entanto, Beck conse-
guiu identificar e relacionar a depressão com cognições distor-
cidas e negativas, principalmente no tocante aos pensamentos
e crenças direcionadas a si mesmo, ao mundo pessoal e ao fu-
turo (a tríade cognitiva), configurando futuramente uma das
bases da terapia cognitiva-comportamental (BECK, 2022).
Importante mencionar que ao começar a desenvolver a Te-
rapia Cognitiva-Comportamental, Beck utilizou de outras fon-
tes, incluindo filósofos e teóricos como Epiteto e Bandura, e
esse trabalho inicial foi sendo ampliado por diversos outros
pesquisadores e teóricos. Mas foi por volta de 1970 que de fato
os primeiros textos acerca da modificação cognitiva começa-
ram a aparecer e terapeutas passaram a se identificar como
“cognitivos-comportamentais” (KNAPP; BECK, 2008).
Nesse contexto, outras terapias cognitivas-comportamen-
tais foram surgindo, sendo que todas compartilham das ca-
racterísticas e bases principais da terapia de Aaron Beck e
possuem como objetivo principal a reestruturação cognitiva
de pensamentos e do sistema de crenças do paciente, utili-
zando de estratégias e técnicas para produzir, principalmen-
te, uma mudança emocional e comportamental duradoura
(HAYES, 2020). Além disso, existem três premissas básicas
que são partilhadas entre elas. A primeira é que a cognição
afeta o comportamento. A segunda traz que a atividade cog-
nitiva pode ser monitorada e alterada. E a última aduz que a
mudança de comportamento almejada pode ser afetada pela
83
mudança cognitiva (DOBSON, 2011).
Além disso, existem três importantes proposições que tam-
bém estão presentes na em todas as TCCs, que dizem respeito
às hipóteses de acesso, mediação e mudança. Para a hipóte-
se de acesso, todos os nossos pensamentos são possíveis de
serem acessados com treino e habilidades, ou seja, eles não
são inconscientes. Para a hipótese de mediação, são os nossos
pensamentos que fazem a mediação entre as nossas respostas
emocionais e nossos comportamentos. E por fim, para a hipó-
tese de mudança, através da consciência de nossos pensamen-
tos, podemos modificá-los e, consequentemente, modificar a
forma que respondemos aos acontecimentos na nossa vida
(DOBSON, 2011).
Apesar da terapia cognitiva-comportamental ser aplicada
de forma individual e de acordo com a conceituação cognitiva
de cada paciente, é importante ressaltar que as várias abor-
dagens derivadas da TCC possuem uma base em comum, le-
vando em consideração os princípios, metodologias e técnicas
(KNAPP; BECK, 2008). Os princípios da Terapia Cognitiva,
com base em BECK (2022), são mencionados a seguir: (1) A
TCC se baseia em desenvolvimento contínuo dos problemas
dos pacientes e em uma conceituação individual de cada pa-
ciente em termos cognitivos, em que consta o funcionamento
cognitivo, as hipóteses diagnósticas e o plano de tratamento;
(2) frisa a importância de uma aliança terapêutica sólida, em
que afeto, empatia, atenção, interesse genuíno e competên-
cia estejam presentes; (3) enfatiza a colaboração entre tera-
peuta e paciente e a participação ativa de ambos no processo
psicoterápico;(4) é orientada para os objetivos e focada nos
84
problemas, no qual são estabelecidas metas e objetivos espe-
cíficos que irão orientar a elaboração do plano de tratamento.
Além dos princípios: (5) a TCC enfatiza inicialmente os
problemas específicos do presente com foco no aqui e agora,
sem desconsiderar o passado do paciente, imprescindível para
a compreensão da demanda do sujeito e construção da concei-
tuação cognitiva; (6) é educativa, tendo como
objetivo ensinar o paciente a ser seu próprio terapeuta e en-
fatiza a prevenção de recaídas; (7) visa ser limitada no tempo,
apesar de não haver um tempo certo previamente definido; (8)
com sessões estruturadas (sem desconsiderar a subjetividade
do paciente e o caso em si, as sessões respeitam uma certa
estrutura); (9) ensina os pacientes a identificar, avaliar e res-
ponder aos seus pensamentos e crenças disfuncionais, pontos
basilares na reestruturação cognitiva; e (10) faz uso de uma
variedade de técnicas para mudar o pensamento, o humor e o
comportamento. No tratamento, são utilizadas tanto técnicas
cognitivas, para ajudar o paciente a identificar, responder e
modificar seus pensamentos e crenças, quanto técnicas com-
portamentais. Tais técnicas são essenciais no processo, e algu-
mas delas serão brevemente apresentadas a seguir.

3.2.1 Técnicas da TCC


A TCC apresenta técnicas variadas que auxiliam o psicote-
rapeuta e o paciente no processo de terapia. Elas devem ser
empregadas de forma adequada a cada indivíduo e cada de-
manda. Antes de apresentar algumas técnicas em si, é impor-
tante considerar as dimensões das técnicas cognitivo-compor-
tamentais que se referem à profundidade do processamento
85
racional envolvido em estratégias psicoterápicas. Assim, as
técnicas podem ser classificadas em: “Não refinadas”, isto é,
técnicas que se centram na mudança do conteúdo do pensa-
mento mediante intervenções auto instrutivas. São indicadas
no início do plano de tratamento, pois frequentemente fun-
cionam melhor para indivíduos altamente angustiados e em
crise imediata, para crianças pequenas, crianças com menor
desempenho verbal e cognitivamente menos desenvolvidas
(FRIEDBERG; MCCLURE, 2007).
Por outro lado, as técnicas classificadas como “Refinadas”
introduzem e necessitam de processos de raciocínio mais so-
fisticados para mudar o conteúdo, o processo e a estrutura do
pensamento mediante uma análise racional profunda. Devem
ser subsequentes ao sucesso da aplicação de estratégias não-
-refinadas, e uma vez que as estratégias refinadas requerem
processamento cognitivo-emocional mais trabalhoso, não se
deveria cogitá-las em tempos de crise ou intenso sofrimen-
to emocional, sendo indicadas a pacientes com maior de-
senvoltura verbal, além de crianças mais velhas, capazes de
adquirir e aplicar habilidades mais abstratas (FRIEDBERG;
MCCLURE, 2007, BECK, 2022).
Uma das técnicas comportamentais mais utilizadas são os
treinos de relaxamento, aplicados a uma variedade de proble-
mas, como o enfrentamento de ansiedade, stress e de raiva.
Um dos exercícios de relaxamento mais conhecidos é o rela-
xamento muscular progressivo de Jacobson (1938) e envolve
tensionar e relaxar alternadamente grupos musculares espe-
cíficos, com base na interação entre processos fisiológicos e
psicológicos.
86
O Treinamento de Habilidades Sociais, também têm sido
um importante recurso de intervenção psicoterápica. Ba-
seia-se no ensino de habilidades sociais que acompanha um
processo cognitivo-comportamental característico, no qual
primeiro, a habilidade é ensinada mediante instrução direta.
Frequentemente, algum material psicoeducativo é apresenta-
do junto com a modelagem da habilidade particular (p. ex.,
empatia). A prática gradual segue a aquisição de habilidade,
pois o ensaio facilita a aplicação das habilidades sociais em
contextos do mundo real. Várias áreas de conteúdo podem ser
abrangidas pelo guarda-chuva do treinamento de habilidades
sociais, como manejo da agressividade, aquisição de habili-
dades de resolução de problema para situações interpessoais,
assertividade, entre outras (FRIEDBERG; MCCLURE, 2007;
HAYES, 2020).
As estratégias de ativação comportamental, que podem en-
volver programação de eventos prazerosos/programação de
atividades a realizar, são geralmente aplicadas com pacientes
deprimidos, e se mostram eficientes em indivíduos que não
encontram mais prazer nas atividades que realizavam e tam-
bém para aqueles que passaram a ocupar uma posição maior
de procrastinação (HAYES, 2020). Alternativas como elabo-
rar agendas, propor pequenas atividades ao ar livre e recupe-
rar afazeres que davam satisfação a esses pacientes, são estra-
tégias que compõem o grande leque dessa técnica.
Quanto às estratégias que dependem de processos de racio-
nalização mais sofisticados, uma das mais utilizadas é o Regis-
tro de Pensamentos Disfuncionais - RPD - que, de acordo com
Wright, Basco e Thase (2008), são fundamentais para que o
87
paciente compreenda quais são os pensamentos automáticos
desadaptativos que costumeiramente possui diante de certas
situações, bem como auxilia no entendimento dos possíveis
erros cognitivos e como eles podem ser modificados. Também
pode ser muito importante para ajudar o paciente a compre-
ender as próprias emoções.
Destaca-se também a técnica dos cartões de enfrentamen-
to. Segundo Leahy (2019), essa estratégia é fundamental para
auxiliar na reflexão de esquemas desadaptativos, pois “[...] o
cliente escreve os pensamentos negativos mais comuns de um
lado e as melhores respostas racionais do outro.” (LEAHY,
2019, p. 377). Assim, será possível analisar como o paciente
possui pensamentos automáticos que não condizem com a re-
alidade e a partir daí, entender quais os pensamentos podem
substituí-los.
Por sua vez, a técnica de descatastrofização descrita por
Wright, Basco & Thase (2008) tem como primeira etapa a re-
alização de uma estimativa probabilística, feita pelo paciente,
acerca da possibilidade de ocorrência dos eventos catastrófi-
cos que ele teme que aconteçam. Em conjunto com o terapeu-
ta, são analisadas as evidências de que esses eventos possam
ocorrer e também o quanto o paciente tem controle sobre o
acontecimento desses eventos. Além disso, são estabelecidos
um plano de ação para diminuir as chances de ocorrência dos
eventos temidos e um plano de enfrentamento para preparar
o indivíduo caso a catástrofe realmente venha a acontecer.
Uma das principais estratégias usadas em TCC é a técnica
de questionamento socrático, que busca conduzir o sujeito a
modificação de pensamentos automáticos e se caracteriza por
88
uma atitude interrogativa, de forma gentil e respeitosa, por
parte do terapeuta, visando orientar o paciente na compreen-
são de seu problema e na exploração por soluções (SANTOS;
MEDEIROS, 2017). Em consonância com o questionamento
socrático, evidencia-se outras duas técnicas importantes para
acessar os pensamentos automáticos e questionar sua reali-
dade: a seta descendente e o exame de evidências. A seta des-
cendente tem o intuito de auxiliar o terapeuta na busca das
crenças nucleares enraizadas de cada paciente, por meio do
questionamento sobre o significado do Pensamento Automá-
tico (P.A) e a representação do significado do P.A. Já no que
tange o exame de evidências, o terapeuta avalia em conjunto
com o paciente, as evidências contra e a favor das suas crenças
e pensamentos automáticos disfuncionais (LEAHY, 2018).
Vale ressaltar ainda a utilização da técnica “Tomada de De-
cisões”, direcionada a pacientes com dificuldades em tomar
decisões específicas e, em companhia do terapeuta, o clien-
te analisa as vantagens e desvantagens de cada decisão, uma
vez que, diante de uma situação de sofrimento psíquico, ra-
ramente a consciência total das coisas está em foco (BECK;
DAVIS; FREEMAN, 2017). No mesmo contexto, têm-se a
técnica do continuum cognitivo e a técnica da torta. Ambas
possuem o objetivo de colocar as coisas em perspectiva. O
exercício do continuum, auxilia na avaliação dos pensamen-
tos dicotômicos de cada paciente, fazendo com que o mesmo,
coloque em uma reta de 0% a 100%, variações de eventos, se-
jam eles negativos ou não. No que diz respeito ao gráfico em
forma de torta, o indivíduo analisa o evento conflitante, consi-
derando todas as variáveis possíveis para o seu acontecimen-
89
to, desconsiderando o pensamento dicotômico de tudo-nada
(LEAHY, 2018).
É importante salientar que não se considera as técnicas re-
finadas superiores às não-refinadas. Ambas são intervenções
funcionais, com uma hora e um lugar no processo de terapia
tanto para estratégias refinadas quanto para não-refinadas.
Os procedimentos refinados provavelmente servem ao pro-
cesso de generalização, uma vez que focalizam a mudança do
processo de pensamento, bem como de seu conteúdo.

3.3 Relatos de experiência de estágio

As experiências de estágio aqui relatadas consistem em


atendimentos no formato plantão psicológico "on-line", rea-
lizado por intermédio do Serviço Escola de Psicologia de uma
das unidades da Universidade do Estado de Minas Gerais.
Inicialmente, os alunos voluntários do referido serviço enca-
minhavam os prontuários com dados preenchidos por pre-
tendentes ao serviço (localizados em diversas áreas do Brasil)
para aqueles estagiários que fariam os atendimentos. As fichas
eram enviadas a partir da disponibilidade e compatibilidade
de horários entre o estagiário e o paciente.
Diante disso, uma das informações contidas nas fichas in-
cluía o contato do paciente, e após o recebimento destas, era
possível contatá-lo. As orientações gerais para o início da
conversa eram: identificar o nome do estagiário; mencionar
o serviço; buscar a compatibilidade de horários; escolher a
plataforma para os encontros. Os aplicativos utilizados para
os atendimentos foram o Google Meet, Whatsapp e Whereby.
90
Os encontros duravam cerca de 50 minutos cada e ocorriam
semanalmente. As orientações de estágio com a professora
orientadora também ocorriam na mesma frequência. Todos
os nomes dos pacientes mencionados a seguir são fictícios.

3.3.1 Caso Natália


Um dos casos atendidos aconteceu com uma paciente de 18
anos, estudante, negra e com a queixa inicial de ter sentimen-
tos muito ambíguos. Ela relatava estar vivenciando um
processo de luto pelo pai, que tinha falecido há um mês por
complicação da COVID-19. Paralelamente, a paciente também
traz demandas relacionadas à procrastinação na faculdade e
uma autoimagem distorcida. Menciona ter sido diagnostica-
da com compulsão alimentar, caspa e gastrite nervosa por um
psiquiatra há um ano, e que esses sintomas estavam mais in-
tensos após o falecimento do pai, já que eram de origem emo-
cional.
Nesse sentido, foi possível atuar em três frentes com a pa-
ciente, a partir das demandas que ela trazia. Inicialmente,
para entender os sentimentos ambíguos que ela se queixava e
também quais os pensamentos se relacionavam a eles, foi in-
dicado que a paciente instalasse o aplicativo Cogni, como uma
alternativa de RPD (THASE; BASCO; WRIGHT, 2008), mais
interativa e que se adequa ao momento ao contexto online.
O uso dessa ferramenta se configurou como fundamental no
processo, pois foi possível compreender diversos pensamen-
tos automáticos disfuncionais da paciente, além de oferecer a
possibilidade de um comparativo das emoções que ela inseriu,
compreendendo em que momentos ela sentia determinada
91
emoção e que evento determinava isso.
É importante destacar que a queixa inicial da paciente era
voltada para o luto, entretanto, ela apareceu de uma forma
transversal nos encontros. Quando era proposto a definição
dos objetivos de cada encontro, o luto raramente aparecia e o
que predominava nos discursos da paciente eram a procras-
tinação e a autoestima. Diante disso, foi possível elencar dois
momentos: o primeiro se referia a criação de uma agenda,
com vistas a ativação comportamental (BECK, 2022), em que
foi possível a paciente descrever os horários de estudo, pausa,
de comer, tomar banho e inclusive de entretenimento, já que
ela não se permitia distrair nos dias que tinha procrastinado.
Já no segundo momento, foi proposto a criação de cartões de
enfrentamento (LEAHY, 2018) com o objetivo de transformar
os pensamentos automáticos disfuncionais em pensamentos
adaptativos. Todos foram feitos em empirismo colaborativo,
porém, com as limitações do online, era preciso contar com a
implicação da paciente no processo.
Conjuntamente a essas técnicas, também foi proposto que
a paciente utilizasse passos do pote de autocuidado, no inte-
resse de trabalhar a autoestima. Um dos passos se referia a
paciente assistir um filme, e como indicação, ela assistiu “Fe-
licidade por um Fio”. Esse passo foi fundamental para que ela
compreendesse como os padrões impostos pela sociedade, re-
lacionados à valorização da magreza, de cabelos lisos e de pele
clara, influenciavam diretamente sua vida. Também, foi pedi-
do que a paciente destacasse 14 coisas em que se considerava
boa, com o intuito de proporcionar uma visão mais adaptativa
sobre suas ações (NEPOMUCENO; CONCEIÇÃO, 2020).
92
Perante o exposto, foi possível apresentar o quadro de con-
ceituação cognitiva à ela (BECK; DAVIS, FREEMAN, 2017),
com o destaque para pensamentos automáticos sobre ser idio-
ta e crença central voltada para o desamparo. Entretanto, pelo
pouco número de encontros, essas colocações se configuraram
como hipóteses.
Como finalização do processo, foi possível perceber que
apesar de o luto não aparecer mais como demanda central, ele
foi trabalhado enquanto se discutia sobre os outros elemen-
tos que compunham as queixas da paciente. A avaliação de
humor durante cada semana também se estabilizou, em que
a paciente começou a sentir menos raiva de si e se permitiu
vivenciar os momentos atuais na própria vida. Muitas deman-
das precisaram ser deixadas de lado, como as crenças enrai-
zadas sobre o corpo e o cabelo e o desejo de mudar de curso,
pois o tipo de serviço ofertado é limitado, breve e focado nas
demandas emergentes. Porém, a TCC foi fundamental nesse
processo, já que as técnicas permaneceram com a paciente, o
que a deu autonomia para prosseguir com a utilização delas,
mesmo após o término dos atendimentos.

3.3.2 Caso Joaquina


No plantão psicológico, também foi atendida uma paciente
acima de 50 anos cujo objetivo era lidar melhor com o térmi-
no de seu relacionamento que havia durado cinco anos. Ela
se considera ciumenta, insegura e controladora, ao ponto de
querer tomar todas as decisões relacionadas a vida do seu par-
ceiro. A paciente sempre abordava que o relacionamento em
questão não estava bom, porém, não queria que acabasse, pois
93
tinha muita dificuldade em terminar qualquer tipo de relação
afetiva, principalmente as amorosas por não se sentir capaz de
encontrar uma outra pessoa.
É interessante mencionar que esse relacionamento também
existiu no passado quando ambos eram mais jovens, mais es-
pecificamente, quando ela tinha 17 anos. Eles se relacionaram
por um curto período e depois cada um seguiu a sua vida. O
ex-parceiro da paciente se casou e teve filhas e ela não se casou
com ninguém, apenas teve alguns namoros curtos e casuais no
decorrer desse tempo.
Nesse contexto, ao mesmo tempo que ela queria terminar,
não conseguia se distanciar. Mesmo separados, eles sempre
se ligam para resolver questões do dia a dia e, inclusive, pe-
dir algum tipo de ajuda como, por exemplo, pedir carona ou
marcar algum exame. A paciente relata que “cuidar” é uma de
suas principais características, ela cuida do pai, do irmão e,
também sente a necessidade de cuidar desse ex-parceiro. Ain-
da quando uma outra pessoa assumia esse papel de cuidado
na vida dele, ela se sentia bastante ofendida e sempre trazia à
tona a questão dos ciúmes e da insegurança.
Foi percebido que normalmente a paciente não confiava em
si, no sentido do seu potencial em relação a se sentir segura
na manutenção dos relacionamentos, pois se sentia inferior.
Nesse caso, foi proposto a estratégia do RPD (colocar referên-
cia), para entender o funcionamento dos seus pensamentos e
fosse possível o estabelecimento de pensamentos funcionais,
uma vez que, durante as sessões foi percebido que ela possuía
muitos pensamentos distorcidos da realidade que a fazem se
sentir sem valor.
No processo de encerramento dos atendimentos foi
94
trabalhado com a paciente a sua visão em relação a si. Pois, o
fato de sempre fazer algo pelo outro e quase nunca para ela,
faz com que as suas questões sejam deixadas de lado e os sen-
timentos de insegurança e consequentemente os ciúmes virem
à tona, por normalmente se sentir útil somente quando pode
fazer algo por alguém. Assim, foi proposto que ela dedicasse
mais tempo pensando em seu bem-estar de modo geral, com
o objetivo que ela se dedique em seus sonhos e metas para o
aumento da sua autoestima.

3.3.3 Caso Tiago


Outro dos casos atendidos por uma das estagiárias do SEPSI
foi de uma demanda relacionada a catastrofização em um pa-
ciente de 24 anos, solteiro e engenheiro civil. O paciente pos-
sui histórico familiar de Síndrome do Pânico e nunca havia re-
alizado tratamento psicológico ou psiquiátrico anteriormente.
Chegou ao primeiro atendimento com queixa de preocupação
em excesso, relatava ser “inundado” por pensamentos negati-
vos e ficar ruminando esses pensamentos durante o dia todo.
Muitas vezes, esses pensamentos eram altamente improváveis
e, apesar de saber disso, não conseguia deixar de sentir medo
ou pensar sobre eles. Esses temores estavam relacionados
principalmente ao trabalho e algumas vezes apareciam rela-
cionados à saúde e bem-estar da família.
O primeiro passo foi a psicoeducação acerca do modelo
cognitivo e como funcionavam os pensamentos automáticos
e catastróficos. O paciente foi instruído a realizar o Regis-
tro de Pensamentos Disfuncionais (THASE; BASCO; WRI-
GHT, 2008) utilizando o aplicativo “Cogni”. O registro dos
95
pensamentos se mostrou de suma importância para a com-
preensão da situação do paciente e estabelecimento das me-
lhores estratégias e técnicas. Foi possível identificar uma
crença intermediária de pensar sempre no pior desfecho para
estar preparado caso as coisas realmente dessem errado, essa
crença funcionava como uma estratégia para escapar da frus-
tração. O paciente relatava que tal estratégia havia sido eficaz
no passado, mas no momento dos atendimentos gerava mais
sofrimento do que efeitos positivos.
O inventário de ansiedade de Beck foi aplicado no intuito
de testar a possibilidade de Transtorno de Ansiedade já que,
a catastrofização é um erro cognitivo comum nos transtornos
de ansiedade (WRIGHT; BASCO; THASE, 2008). Essa pos-
sibilidade foi descartada devido ao baixo escore apresenta-
do pelo paciente no inventário. Foram aplicadas também as
técnicas de questionamento socrático e de descatastrofização
com o intuito de modificar os pensamentos automáticos dis-
funcionais do paciente para um padrão mais realista e focado
na resolução de problemas, consequentemente, levando à di-
minuição do nível de ansiedade que constituía grande fonte de
sofrimento.
Ao final do processo o paciente relatou sentir-se melhor do
que no primeiro encontro e demonstrou, através do RPD e dos
relatos em sessão, ter aprendido formas mais funcionais de
lidar com sua ansiedade e seus pensamentos disfuncionais.
Passou a ter um pensamento menos negativo e mais realista
acerca das situações e melhorou suas perspectivas em relação
ao futuro que, inicialmente se tratavam apenas de finalizar os
projetos no trabalho para “se livrar” da responsabilidade e do
96
medo de tudo que poderia acontecer de ruim. Passou a acre-
ditar bem menos na sua crença intermediária disfuncional e
muito mais na crença reformulada de ser mais realista.

3.3.4 Caso Caio


Outro caso importante para a experiência das estagiárias
no Plantão Psicológico em TCC foi de um paciente com ida-
de de 18 anos, homossexual e que reside com os pai e do seu
irmão gêmeo. Atualmente, cursa Direito em uma faculdade
privada e Gestão Pública em uma universidade pública. Como
meta inicial dos atendimentos, Caio trouxe que tem o desejo
de se sentir melhor consigo mesmo.
Inicialmente, apesar de sua meta inicial estar relacionada
à sua autoestima, foram identificadas três queixas principais.
Sua queixa inicial é não estar bem consigo mesmo em rela-
ção ao âmbito físico e de sua visão em relação a isso, que por
diversas vezes, lhe causa ansiedade quando se vê no espelho.
Posteriormente, sua segunda queixa é em relação aos seus
pais, devido ao fato de ter contado para eles sobre a sua sexu-
alidade e não ter sido aprovado. Atualmente, ele evita falar so-
bre essas questões, mas ainda assim, tem a crença de desamor
relacionado à rejeição. Como sua última queixa identificada,
o paciente sente orgulho de fazer duas faculdades, entretanto
não está satisfeito com o curso de Gestão Pública.
Analisando as queixas do paciente, faz-se necessário elu-
cidar as técnicas e procedimentos utilizados, que tinham o
intuito de abarcar a subjetividade de Caio. Na primeira ses-
são, foi feita a psicoeducação do modelo cognitivo de pensa-
mento, emoção e comportamento e, para que seja possível
97
evidenciar de forma prática como essas três esferas se rela-
cionam, o Registro de Pensamentos Disfuncionais é utiliza-
do (THASE; BASCO; WRIGHT, 2008). Porém, por se tratar
do plantão psicológico, o aplicativo Cogni foi aplicado como
substituição. Em consonância com a psicoeducação do mo-
delo cognitivo, a compreensão da autoestima aconteceu por
meio dos quatro conceitos propostos por Walter Riso (2012),
autoimagem, autoconceito, auto reforço e autoeficácia. A par-
tir da psicoeducação da autoestima e a aplicação do pote do
autocuidado, que possui o intuito de incluir em sua rotina
ações práticas de cuidado, Caio começou a desenvolver os pi-
lares de forma mais efetiva.
Contudo, o paciente ainda encontrava dificuldades em re-
lação ao seu âmbito físico e por isso, o processo de constru-
ção da autoestima aconteceu pela reestruturação cognitiva de
seus pensamentos por intermédio do questionamento socráti-
co proposto por Beck (2022). Outrossim, duas técnicas foram
adicionadas para as trabalhar as demandas que surgiram no
decorrer das sessões. A primeira, foi a técnica Grão de Areia,
que propõe a reflexão analisando que em alguns momentos,
ele deve agir como um único grão de areia em um vasto ocea-
no cheio de outros grãos, na qual a opinião do outro não im-
porta tanto assim (LEAHY, 2018). Para trabalhar a demanda
sobre suas faculdades, foi proposta a Técnica de Tomada de
Decisões (BECK, 2022), para que ele conseguisse visualizar de
forma mais clara qual o motivo de não estar satisfeito no curso
de Gestão Pública e com isso, ele teve consciência de que está
no comodismo por saber que é suficiente fazendo duas facul-
dades e caso ele tranque, ele será insuficiente para os pais e si
mesmo.
98
No final dos atendimentos, o paciente trouxe que já per-
cebe grandes evoluções em seu modo de ser, principalmen-
te relacionado ao ânimo e um desejo maior em frequentar a
academia buscando qualidade de vida. Caio consegue se ver
no espelho de uma forma melhor, se olhando com mais ca-
rinho e sabendo que está na construção de ser uma pessoa
melhor consigo mesmo todos os dias. Atualmente, o paciente
tem consciência de seus pensamentos automáticos disfuncio-
nais e principalmente, consegue identificar quando a auto sa-
botagem acontece. Ele começou o processo de entender que
os pensamentos sempre virão, porém o que muda é a forma
como você vai lidar com eles, visto que, como sabemos, a iden-
tificação e modificação dos pensamentos é um processo diário
de reestruturação cognitiva.

3.3.5 Caso Laís


Também foi atendida uma paciente adolescente, 14 anos,
de São Paulo (SP). A mãe procurou o Serviço Escola de Psi-
cologia da UEMG para a filha, alegando que a mesma tinha
“ansiedade, estava se isolando no quarto, se retraindo e as-
sistindo filmes e desenhos muito violentos”. Além disso, foi
informado por ela também que há algum tempo a filha tinha o
“hábito de ficar arrancando o cabelo, mas já não estava fazen-
do isso mais”.
Em um primeiro momento, entrou-se em contato com
a mãe para saber se a filha e paciente estava ciente sobre a
procura pelo serviço e a mesma disse que sim. Feito isso, e
verificado o interesse da paciente em dar início ao plantão, foi
agendada a primeira sessão com ela.
99
Foram realizadas ao todo cinco sessões com a paciente. No
primeiro encontro, foi feito um acolhimento inicial, e a psico-
educação a respeito de como funciona o plantão psicológico,
número de sessões e contrato terapêutico de uma forma geral.
Em seguida, deu-se início a anamnese e investigação da de-
manda. Ao contrário do motivo pelo qual a mãe procurou o ser-
viço, a paciente disse que gostaria de realizar os atendimentos
para obter um autoconhecimento e conseguir se expressar e se
comunicar melhor, pois tem muita dificuldade. Sendo assim, e
tomando como base a estrutura da terapia cognitiva-compor-
tamental, foi estabelecida como meta específica: conseguir se
comunicar e expressar de forma mais assertiva.
Após a sessão de anamnese, no segundo encontro realizou-
-se a psicoeducação do modelo cognitivo e deu-se início a téc-
nica de questionamento socrático, em que se pôde observar
alguns pensamentos automáticos como “se eu falar vão me
achar estranha e ridícula” e “se eu desagradar meus amigos
vou ficar sozinha”.
Na terceira e quarta sessão foi constatado que a paciente
também possuía uma baixa autoestima, principalmente com
relação à sua imagem pois ela dizia se achar feia e que não
gostava do que via no espelho e isso afetava também a falta de
confiança em si e a dificuldade de se impor e de se expressar.
Diante do exposto, foram feitas algumas intervenções como
RPD, aplicativo Cogni, questionamento socrático, exame de
evidências, psicoeducação, cartões de enfrentamento para
trabalhar a autoestima, treino de respiração diafragmática e
uma parte do treino de habilidades sociais para trabalhar a
assertividade (FRIEDBERG, 2011).
100
Por fim, na última sessão, foi apresentado à paciente uma
breve conceituação cognitiva do caso, com os principais pen-
samentos distorcidos que apareceram ao longo das sessões,
a relação entre sua autoestima e dificuldade em se expressar,
etc. Além disso, foi feito também um breve resumo, juntamen-
te com a paciente, sobre tudo o que foi trabalhado nas sessões,
como foi a experiência para ela, o que construíram, as habili-
dades que aprendeu, etc. E foi explicado para a mesma que o
plantão psicológico seria como o início da psicoterapia e que
seria muito válido para ela procurar um profissional da psico-
logia para dar continuidade ao processo.
A partir dos casos relatados observa-se que a TCC, além
de estruturação, proporciona um rico acervo de técnicas in-
terventivas. Entretanto, vale reforçar que seu uso deve estar
contextualizado ao que é demandado pelo indivíduo. Nessa
direção, destaca-se o processo psicoeducativo, este é parte
integrante da prática cognitivo-comportamental e foi crucial
nos protocolos de atendimento, principalmente no formato
plantão psicológico. A psicoeducação ocorreu independente-
mente da queixa, seguindo viés informativo sobre métodos de
proteção, higiene e sintomas, atuando como potencializadora
não só com apresentação de construtos, mas também na ins-
trução de técnicas e reflexões condizentes ao que foi deman-
dado (DE-MEDEIROS et al., 2021, BECK, 2022).
Outro ponto de importante destaque, diz respeito às técni-
cas aplicadas durante os encontros. Foi possível perceber que
algumas delas foram de fácil adaptação ao contexto remoto,
a exemplo da possibilidade de utilizar aplicativos que cor-
respondem ao RPD. Porém, foi percebido que algumas delas
101
podem ter melhor aplicação na clínica presencial, como a ela-
boração de agendas e de cartões de enfrentamento, pois além
de o paciente poder compreender melhor como elaborá-los,
o empirismo colaborativo também seria facilitado. Não obs-
tante, todas as técnicas foram executadas de forma sigilosa,
baseada em ética, respeito e empatia pelo paciente. Assim, os
resultados obtidos foram positivos, elucidando reflexões so-
bre a inovação e a construção de intervenções que devem estar
ancoradas em adaptações culturais, sociais e históricas diante
da diversidade (NEUFELD et al. 2022, DE-MEDEIROS et al.,
2021).
É necessário mencionar a dificuldade encontrada devido ao
curto período de tempo que o plantão psicológico oferece, tal
como as múltiplas demandas que se apresentaram, muitas ve-
zes complexas e delicadas. Assim, era necessário acessar o que
é mais urgente e, a partir disso, dispensar escuta e cuidado
qualificados a fim de proporcionar um contexto efetivo de en-
frentamento e aquisição de habilidades considerando o tempo
restrito. Tal prerrogativa corrobora os pilares da TCC, como
objetividade, estruturação e treinamento de habilidades. As
fases predeterminadas com objetivos específicos e tempo esti-
mado auxiliou a evocar o que era importante a ser discutido e
a alcançar a efetividade esperada por cliente e terapeuta
(SAMPAIO et al. 2021, NEUFELD et al. 2022). Portanto, os
resultados alcançados são encorajadores em termos da efeti-
vidade do plantão psicológico "on-line" a partir da abordad-
gem cognitiva-comportamental para usuários de serviços de
saúde mental.

102
Considerações finais

A partir das experiências com os casos mencionados, a TCC


se mostrou uma abordagem com potencial para aplicação em
modalidade de plantão psicológico tendo em vista que, na
maioria dos casos, foram alcançadas as metas estabelecidas
no início do estágio, ou seja, os casos apresentados permitem
observar importantes ganhos terapêuticos, mesmo com o nú-
mero limitado de encontros. Entretanto, é válido destacar que
a experiência dos estagiários no plantão psicológico "on-line"
foi desafiadora, considerando o cenário social e econômico
novo e instável que emergiu, a pouca experiência com aten-
dimentos remotos proporcionada pelas instituições de ensino
em geral e as intercorrências técnicas que contribuíram para
um sentimento de insegurança em determinados momentos.
Isso reforça a importância do trabalho realizado e denota a
necessidade de capacitação dos psicólogos para atuação em
telessaúde. Ademais, conclui-se que as TICs podem contribuir
para o desenvolvimento de habilidades terapêuticas na abor-
dagem cognitiva-comportamental ao psicólogo em formação,
além de viabilizar e ampliar as possibilidades de atuação e
acolhimento a demandas vindas de diversas partes do Brasil,
podendo ser visto como uma experiência valorosa e fértil, que
em meio a um cenário social e econômico instável, possibilita
uma escuta atenta e empática, contribuindo com ações de res-
ponsabilidade social.

103
Referências

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109
4 Buscando caminhos para a pesquisa e ex-
tensão em tempos de pandemia

Reinaldo da Silva Júnior

Tenho como prática atrelar meus campos de estágio a pro-


jetos de extensão e pesquisa por entender que o tripé da edu-
cação superior precisa se materializar numa articulação que
faça ensino, pesquisa e extensão uma única ação pedagógica.
Esta interação para mim tem tamanha intimidade que os pró-
prios projetos mesclam componentes de extensão e pesquisa
não podendo serem definidos especificamente como apenas
de extensão ou apenas de pesquisa, o que devo confessar me
causa alguns problemas para apresenta-los nos editais e ca-
taloga-los no sistema da universidade; isto porque tenho o
hábito de trabalhar com os métodos de pesquisa ação e pes-
quisa participante, além de utilizar de estratégias da etnogra-
fia e de observação fenomenológica; todos estes modelos que
procuram construir um processo de interação, aproximando
o pesquisador de seu objeto de maneira mais imediata. Não
trazemos nosso objeto de investigação para um laboratório,
mergulhamos em seu território e vivemos junto com ele a re-
alidade no que chamamos campo de pesquisa. Este processo
faz com que precisemos fazer intervenções no campo e nos
obrigada a uma ação onde nossa presença faça parte do pró-
prio campo pesquisado, construindo uma intimidade que nos
tira do lugar de isenção e mera observação tradicionalmente
reservado ao cientista.
Os trabalhos que desenvolvemos – eu e meus alunos – é
110
essencialmente de imersão no campo, procuramos nos mistu-
rar à realidade que pesquisamos, fazer parte daquele univer-
so para compreendê-lo de dentro, o que faz de nosso método
de pesquisa práticas de extensão. Atendemos diversos grupos
sociais: população em situação de rua, escolas públicas, co-
munidades, idosos, pessoas em uso abusivo de substâncias,
trabalhadores de diversos setores (comerciários, empregadas
domésticas, trabalhadores rurais), todos trabalhos desenvol-
vidos nos territórios onde estes grupos sociais vivem.
Por todas estas particularidades fica nítido entender o im-
pacto que a pandemia da COVID-19 produziu no meu traba-
lho. A impossibilidade de levar meus alunos a campo, num
primeiro momento, impossibilitou o andamento dos projetos
paralisando toda nossa prática. Ficamos um semestre assimi-
lando o golpe e pensando alternativas que nos permitisse, de
alguma forma, retomar as atividades; afinal o mundo não para
mesmo em situação de isolamento social. Devo confessar aqui
que a princípio não via saída para meu dilema, foi a disposição
e criatividade de minha amiga Márcia Mansur1 que me trouxe
algum alento para pensar meus próprios caminhos.
Meus campos de estágio, onde desenvolvo meus projetos,
são muito complexos, envolvem um público em situação de
grande vulnerabilidade econômica, social, emocional como é
o caso das populações em situação de rua ou que trabalham
nas ruas (pessoas que trabalham com a sexualidade, pessoas

1 Márcia Mansur Saadallah é psicóloga, mestra em Ciências sociais,


professora da PUCMG, com vasto trabalho na Psicologia Social e politicas
públicas de assistência social.
111
que vendem seus produtos nos sinais, artesão de rua, pessoas
em situação rua que vivem de esmolas), comunidades peri-
féricas onde os dispositivos públicos de atenção (UBS, esco-
las, CRAS...) não chegam, escolas públicas; ou seja, são cida-
dãos e espaços sociais onde o acesso à tecnologia, quando elas
existem, são muito precários e insuficientes para a demanda,
principalmente em tempos de isolamento social, quando esta
demanda tecnológica ganha dimensão de necessidade básica,
mais uma que este população não tem acesso. Pensar alterna-
tivas de trabalho com este público exclusivamente por meio de
TICs (tecnologias de informação e comunicação) exige mais
do que criatividade, precisamos estar cheios de esperança, é
como ensinar alta gastronomia para quem está na fila do osso
neste país de disparates injustificáveis.
O que pretendo trazer para vocês neste texto é um pouco
deste percurso, dividido em três partes: reflexões éticas, refle-
xões epistemológicas, reflexões metodológicas. Os projetos e
intervenções desenvolvidas aparecem no texto como a mate-
rialização destas reflexões, se apresentando como modelo vivo
desta práxis contemporânea que a realidade pandêmica nos
impôs.
Estamos ainda no meio da turbulenta transição, onde ve-
lhos problemas atravessam a construção do novo mundo, fa-
zendo com que o novo normal nos apresente as mesmas desi-
gualdades, que produzem as mesmas injustiças onde poucos
valem mais. Neste velho novo mundo as diferenças continuam
produzindo desigualdades de direitos e privilégios, aumentan-
do a distância que separa aquele que detém o poder daquele
que é oprimido por este poder.
112
É neste ambiente inóspito que procuramos encontrar cami-
nhos de superação e resistência, caminhos que
possam nos conduzir para uma realidade mais digna e justa,
onde a inclusão e os direitos sejam respeitados e resguarda-
dos por todos e para todos. A universidade pública tem papel
fundamental neste processo; espero que este texto contribua
com este propósito ajudando a apresentar para a sociedade
como atuamos na construção desta sociedade utópica que ha-
bita nosso horizonte ético de sentido.
Se pudermos, com isso, ajudar a desconstruir a falsa ideia
que vem sendo sutilmente implementada de desqualificação
das universidades públicas na evidente intensão de criar as
condições para a privatização do ensino superior em nosso
país já teremos feito um importante serviço na garantia do di-
reito básico à educação de qualidade para nossos jovens.

4.1 Reflexões éticas

Quando nos vimos obrigados ao distanciamento social em


decorrência da pandemia de COVID-19 o primeiro dilema éti-
co que me surgiu foi: como continuar a vida nesta situação
de isolamento? Quais as prioridades devem ser consideradas
para definir entre o isolamento e o contato? Como encontrar
sentido nesta total desconstrução? Os valores que regem o
modelo social capitalista em que vivemos gritaram com maior
força suas urgências: a economia não pode parar, não pode-
mos atrasar os estudos, as pessoas precisam trabalhar para
pagar as contas; foram alguns dos argumentos utilizados em
defesa de uma flexibilização dos cuidados sanitários necessá-
113
rios para diminuir a proliferação do vírus e as mortes de mi-
lhares de
brasileiros2 ainda num momento onde a vacina não estava
disponível.
Outro forte apelo foi a necessidade dos vínculos, do con-
tato, da presença física, como uma condição para a sanidade
mental; as pessoas queriam sair às ruas apenas para se encon-
trar, os idosos viveram este drama de forma ainda mais acen-
tuada, na educação esta condição também foi sentida com
peso e a ideia de educação à distância perdeu completamente
sua força. A urgência do contato e da presencialidade nunca
foi tão defendida e ansiada pelas pessoas. Importante ouvir
esta angústia não apenas com a visão crítica das imposições
do mercado ou de posições negacionistas, que aqui nem vou
considerar, mas também como um reconhecimento de uma
condição ontológica que nos define, a condição de ser no mun-
do, uma condição que faz de nós, humanos, seres de relação,
precisamos do outro para nos completar, para que vida possa
ter sentido.
Estas questões atravessadas pelo compromisso ético de
uma profissão comprometida com os direitos humanos e que
traz em seus princípios fundamentais:

I. O psicólogo baseará o seu trabalho no respei-


to e na promoção da liberdade, da dignidade, da

2 Não custa recordar que a primeira morte confirmada no país foi em


março de 2020, uma mulher de 57 anos em São Paulo. Os mais de seis-
centos mil mortos não podem ser lembrados apenas como um número.
114
igualdade e da integridade do ser humano, apoiado
nos valores que embasam a Declaração Universal
dos Direitos Humanos. II. O psicólogo trabalhará
visando promover a saúde e a qualidade de vida
das pessoas e das coletividades e contribuirá para
a eliminação de quaisquer formas de negligência,
discriminação, exploração, violência, crueldade e
opressão. III. O psicólogo atuará com responsabi-
lidade social, analisando crítica e historicamente a
realidade política, econômica, social e cultural. IV.
O psicólogo atuará com responsabilidade, por meio
do contínuo aprimoramento profissional, contri-
buindo para o desenvolvimento da Psicologia como
campo científico de conhecimento e de prática. V.
O psicólogo contribuirá para promover a universa-
lização do acesso da população às informações, ao
conhecimento da ciência psicológica, aos serviços e
aos padrões éticos da profissão.3

Conduziram o olhar cuidadoso que precise ter na imple-


mentação de projetos que pudessem atender à realidade pan-
dêmica e os princípios éticos que tanto preso e defendo, afinal
fiz parte da construção deste código de ética profissional como

³ CFP. Código de ética profissional. Brasília: CFP, 2005.


115
delegado no congresso que definiu suas bases em 20044.
A cada ação pensada e planejada procurei reafirmar a com-
preensão de que a ética é um dever e não uma opção para o ser
humano5, pois a consciência nos impõe esta reflexão. Somos
seres de consciência e por isso não podemos fugir da reflexão
ética, quando tentamos burlá-la a consciência nos cobra e o
inconsciente nos assombra. A reflexão ética é a reflexão sobe o
bem, já nos alertava Aristóteles:

Toda arte e toda indagação, assim como toda ação


e todo propósito, visam a algum bem, por isso foi
dito acertadamente que o bem é aquilo a que todas
as coisas visam...Não terá então uma grande influ-
ência sobre a vida o conhecimento deste bem? Não
devemos, como arqueiros que visam a um alvo,
termos maior probabilidade de atingir assim o que
nos é mais conveniente? Sendo assim, cumpre-nos
tentar determinar, mesmo sumariamente, o que é

4 Para que entendam meu compromisso com a Psicologia brasileira é pre-


ciso registrar que além de participar do congresso nacional que definiu as
diretrizes do código de ética, participei também como delegado nas eta-
pas regionais e nacional da construção das diretrizes curriculares nacio-
nais da Psicologia, tendo contribuição ativa nos documentos que regem a
nossa profissão e a nossa formação.
5 SILVA JR., Reinaldo da. Porque devemos agir eticamente? In. SILVA
JR., Reinaldo da. Nos passos de um buscador. Rio de Janeiro: Multifoco,
2011. p. 53-68.
116
este bem, e de que ciência ou atividade ele é objeto.6

É com esta compreensão sobre a necessidade de delimitar


nossas ações pela régua deste bem maior que procuramos cos-
turar nossa teoria e nossa técnica. E quando vamos lapidando
esta reflexão conceitos como justiça, liberdade, direitos, vão
ganhando forma e apontando para a direção de um compro-
misso com aqueles que são historicamente explorados, estru-
turalmente marginalizados, politicamente rejeitados.
É por isso que precisamos pensar uma Psicologia que saiba
fazer esta leitura e possa, a partir dela, construir conceitos e
teorias que deem conta de explicar esta realidade desigual e
nos permitam pensar estratégias e ferramentas para vencer
esta desigualdade que martiriza grande parte de nosso povo.
Com este espírito passamos agora para a segunda reflexão.

4.2 Reflexões epistemológicas

Uma primeira pergunta que foi preciso ser feita quando me


deparei com a necessidade de desenvolver trabalhos por meio
de TICs foi: estamos diante de uma prática que exige um novo
conhecimento sobre o ser humano? A Psicologia que produzi-
mos até aqui está ultrapassada diante desta nova realidade?
Na procura desta resposta me debrucei sobre alguns con-
ceitos que entendo serem importantes para a compreensão do
que chamamos de espírito humano, que é o objeto de estudo

6 ARISTÓTLES. Ética a Nicômaco (coleção os pensadores). São Paulo:


Nova Cultural, 1996. p. 118.
117
da Psicologia e onde atuamos como profissionais. O primeiro
conceito é exatamente o de espírito; afinal, se afirmo que a Psi-
cologia é a ciência do espírito, ou mais literalmente da alma,
precisamos saber do que estou falando, ainda mais quando se
trata de um termo tão abrangente. Como afirma Comte: “Não
se conhece completamente uma ciência enquanto não se sou-
ber de sua história”.7 No caso da Psicologia a história passa
por como fomos entendendo isto que chamamos espírito e
como fomos nos relacionando com ele.
Venho desenvolvendo o conceito de espiritualidade como
dimensão humana, desapegado das visões teológicas sobre o
termo, desde meu mestrado; seu acabamento mais atual está
colocado nos seguintes termos:

Espiritualidade não é outra coisa senão esta con-


dição ontológica do ser humano, uma dimensão
constitutiva de sua manifestação fenomenológica
neste mundo, esta abertura radical que lhe permi-
te vivenciar a experiência de transcendência e re-
conhecer no outro aquilo que lhe falta, reconhecer
que o outro lhe completa e que, por isso, somos se-
res intersubjetivos.8

7 COMTE, Auguste. Op. Cit. BRAGA, Antonelli de Alvim. Alma e psicolo-


gia pré científica: uma reflexão histórico-epistemológica. Curitiba: Appis,
2018.
8 CRP04. Psicologia, laicidade, espiritualidade, religião e outras tradi-
ções: encontrando caminhos para o diálogo. Belo Horizonte: CRP04,
2019. p. 19.
118
O papel do Psicólogo é proporcionar condições para que
esta espiritualidade humana possa ser exercitada e possamos
vivenciar estes encontros que nos permitem produzir senti-
do. Em tempos de pandemia esta necessidade se torna ainda
mais premente por conta do isolamento social que precisamos
garantir como profilaxia do contágio. Vemos demandas por
psicólogos brotarem em todos os lugares, como se a psicologia
tivesse algum poder mágico para nos proteger dos medos e
angústias que este momento vem provocando.
Esta concepção da Psicologia como uma profissão que tem
como objetivos promove encontros é desenvolvida com maior
cuidado no meu segundo livro9, mas o paradigma que a sus-
tenta é a condição do ser-com, que Heidegger define como Da-
sein (ser-aí), numa ousadia epistemológica podemos entender
que estamos falando de um paradigma holístico, mais difícil
de ser assimilado por um modelo epistemológico regido pela
fragmentação do dualismo que orienta a ciência moderna.
Observamos que estes conceitos e paradigmas não perdem
seu valor no mundo virtual, na verdade eles são fortalecidos,
pois a virtualidade e o isolamento físico, a saída do mundo
real e a entrado no mundo virtual só acentuaram a necessida-
de humana de se relacionar com o mundo e com as pessoas.
Sabemos que a virtualidade abre novas perspectivas para en-
tendermos o que seja relação e, consequentemente, nossa pró-
pria condição existencial; inclusive quando pensamos na ex-

⁹ SILVA JR., Reinaldo da. A Psicologia no Brasil contemporâneo: leitu-


ras de um aventureiro do fazer e do pensar psicológico. Rio de Janeiro:
Multifoco, 2013.
119
periência de transcendência que ganha outra conotação, pois
o mundo físico não é mais um limite, assim como as barreiras
do tempo e do espaço. Todas estas condições já bem compre-
endidas por teorias como a psicologia analítica de Jung com
seu inconsciente coletivo e os arquétipos ou a teoria do campo
de Lewin.
Diante desta constatação entendi que o desafio não era o
de reinventar uma nova Psicologia e sim o de aplicar o co-
nhecimento que temos do ser humano nesta nova realidade
para conseguir ler este momento e interpretá-lo numa visão
humanista e com a audácia fenomenológica de ir ao encontro
da verdade, ou seja, da coisa mesma, da experiência como ela
se dá, permitindo assim que este mundo se mostre em sua es-
sência. O que precisamos, então, era de um método que nos
permitisse promover estes encontros tão importantes para o
espírito humano, reconhecendo que os mesmos podem ser
neste novo espaço da virtualidade.10
A releitura epistemológica nos levou a um resgate de nos-
sos modelos metodológicos na intenção de repensar a própria
ciência, é este o nosso próximo exercício, que tem uma íntima
relação com nossa função de professor e cientista.

4.3 Reflexões metodológicas

Sempre entendi que pesquisa e extensão são dois lados de

10 Não é assunto para este texto, mas me parece muito pertinente um


estudo mais apurado do metaverso, o universo virtual que está sendo a
grande aposta para o futuro da rede.
120
uma mesma moeda, que na verdade tem três lados se conside-
rarmos também o ensino; este tripé de sustentação do ensino
superior não pode ser pensado de forma fragmentada. Esta
posição é decorrente de um modelo metodológico que parte
do princípio axiomático da epoché, como a definiu Husserl:

O procedimento suspensivo da epoché implica a re-


dução fenomenológica – algo bastante semelhante
ao que o romancista fez quando reduziu o mundo
visível a um mundo cego. Pela redução, deixamos
de dirigir nosso olhar para os objetos tomados em
si mesmo em seu ser inacessível (a mesa, a árvo-
re, a cidade) para dirigir a atenção para os atos da
consciência que nos permite chegar até eles (nossa
visão da mesa, nossa lembrança da árvore, nossa
imaginação da cidade). Enfatiza-se a perspectiva,
da mesma forma que a literatura perspectiviza o
mundo para nós. A redução fenomenológica é uma
conversão do olhar que nos permite chegar ao obje-
to vivendo-o segundo seu sentido para nós, segun-
do o valor que lhe atribuímos e sobre o qual não
negamos nossa responsabilidade.11

Portanto nossa maneira de colher dados para análise é


mergulhando nos campos pesquisados, nos envolvendo com a

11 BERNARDO, Gustavo. Epoché. In. Dicionário de termos literários.


Disponível em https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/epoche/ acessado
em 3 de novembro de 2021.
121
realidade que queremos entender e intervindo de forma parti-
cipativa nas realidades. Para isso utilizamos de diversas ferra-
mentas como a etnografia antropológica, a entrevista fenome-
nológica, grupos operativos, grupos focais, grupos rogerianos,
esquizoanálise, psicodrama, somaterapia, rodas de conversa
e outras dinâmicas de grupo, além de estratégicas artísticas
como música, técnicas teatrais, poesia, pintura e escultura.
Muitas destas ferramentas precisam ser adaptadas quando
utilizadas de forma virtual e outras se apresentam como pos-
siblidades como os formulários eletrônicos e os programas de
produção de texto coletivo, os podcasts e outros elementos de
comunicação das redes.
Todas estas ferramentas e outras que surgem pela necessi-
dade e criatividade são utilizadas com o objetivo de nos con-
duzir a uma compreensão da realidade estudada e de produzir
um movimento no território no sentido de que esta compreen-
são não se dê apenas para os pesquisadores mas também para
as pessoas que vivem no território pesquisado, se tornando
ela, compreensão, um instrumento de libertação, uma possi-
bilidade de consciência da nossa condição existencial, aquilo
que nos permita exercer a liberdade que é o sentido maior de
nossa existência e, com isso, nos permita lutar pelos direitos
que garantam a qualidade de vida que todos os seres humanos
merecem.
Quando entramos numa escola, numa casa de abrigamen-
to de pessoas em situação de rua, em centros comunitários e
outros dispositivos onde realizamos nossos projetos, procu-
ramos sempre construir o planejamento do trabalho consi-
derando nossas possibilidades, as necessidades do território
122
e nosso propósito de fazer da Psicologia uma ferramenta de
promoção da consciência e das condições de autonomia das
pessoas.
Nas ciências humanas temos as metodologias de pesquisa
ação e pesquisa participante12, que dialogam em grande sinto-
nia com a minha proposta de trabalho, são também modelos
metodológicos que fazem a mesma articulação que defendo
entre pesquisa, extensão e ensino, fazendo das três uma única
ação a serviço desta práxis do ensino superior que vai funda-
mentar uma Psicologia comprometida eticamente com a de-
fesa dos direitos humanos e com a consequente promoção da
vida e da liberdade, ou seja, uma Psicologia que nos coloque
no caminho do bem maior para toda a humanidade e não para
um pequeno e seleto grupo social.
Estamos desenvolvendo ações em escolas (no total cinco
escolas em três cidades da região centro oeste de Minas), na
casa de acolhimento à população em situação de rua de Di-
vinópolis (Sacramento de Amor), em comunidades (estamos
em dois bairros de Divinópolis) e com grupos de categorias
profissionais (comerciários, trabalhadores rurais e emprega-
das domésticas); em todos estes espaços e com todos estes
grupos procuramos criar condições para que as pessoas pos-
sam pensar e discutir sua realidade, suas relações, seus afe-
tos; com isso vamos somando informações que nos auxiliam
a entender o universo dos brasileiros e como os mesmos vão
formando e reformando suas identidades e suas subjetivida-

12 SILVA JR., Reinaldo da. Projeto aconchego: descrevendo os caminhos


de um mapeamento psicossocial. Divinópolis: Gulliver, 2015.
123
des, para que possamos construir uma Psicologia que dê conta
desta realidade existencial, a realidade vivida pelo nosso povo,
em nosso tempo e no nosso território, uma Psicologia verda-
deiramente brasileira que entenda nossa complexidade e que
consiga mergulhar em nossa essência.
Nas escolas trabalhamos em duas frentes: o projeto sobre
educação emocional com alunos do ensino médio e o projeto
sobre funções executivas na alfabetização; na casa de acolhi-
mento procuramos atender tanto a população abrigada quan-
to os funcionários; nas comunidades desenvolvemos projetos
direcionados a grupos específicos como idosos, mães e ado-
lescentes e com as categorias profissionais atendemos às de-
mandas específicas dos trabalhadores. Em todos estes espaços
a dinâmica sempre segue a lógica participativa e construção
coletiva de estratégias.
Não temos respostas para todas as situações, alguns traba-
lhos andaram, outros naufragaram, mas com certeza estamos
conseguindo chegar até as pessoas e contribuir com a cons-
trução de melhores condições, entendendo nossos limites que
não são apenas tecnológicos ou de contato, mas também polí-
ticos e estruturais.

Considerações finais

A pandemia trouxe desafios, produziu uma realidade que


não conhecíamos e nos forçou a repensar práticas, valores e
convicções. Para nós, psicólogos, a equação foi: como cons-
truir na virtualidade as condições de contato tão importantes
para a nossa atuação profissional?
124
O exercício, como procurei demonstrar neste texto, foi mais
existencial do que teórico ou metodológico, pois as pessoas
não se transformaram em outros seres, continuaram huma-
nos, pelo menos por enquanto, e, como tais, vivemos as mes-
mas angústias existenciais de outros tempos; as mudanças vi-
vidas pela humanidade em sua história não fizeram com que
sumisse de nossa consciência estas angústias. O que precisa-
mos assimilar desta nova realidade foi a tecnologia que inva-
diu nossa vida, mas as perguntas de fundo de nossa existência
permaneceram aí: quem somos, o que estamos fazendo aqui,
qual o sentido de nossa existência.
Reorganizar os fluxos, inserir novas dinâmicas de vida, dis-
cutir a inclusão e os direitos em um mundo onde a tecnolo-
gia não está à disposição de todos foram e são os verdadeiros
problemas que precisamos resolver em nosso país. Para uma
Psicologia dedicada a servir o povo, priorizando as populações
mais vulneráveis, esta tarefa sempre esteve posta. Como levar
a Psicologia até os espaços segregados e às populações excluí-
das é uma pergunta que já se colocava antes da pandemia, por
isso não me assustei com mais esta barreira pandêmica.
O que trago como reflexão mais aguda sobre o que desen-
volvemos neste período é o cuidado que precisamos ter para
não confundir a utilização das TICs em nosso cotidiano de
trabalho enquanto docentes e psicólogos, com a migração de
uma existência no mundo real para uma existência virtualiza-
da tanto na prática psicológica quanto na formação. Quando
pensamos na implementação de atividades remotas na exten-
são e pesquisa e mesmo no ensino o maior cuidado foi esta-
belecer a ideia de que não estávamos substituindo o ensino
125
presencial pela modalidade a distância; as TICs são novas fer-
ramentas mas não uma nova metodologia ou uma nova ciên-
cia.
Uma reflexão paralela que precisa ser feita neste novo mo-
mento é como vamos nos apropriando destas ferramentas de
comunicação para que o mundo do trabalho não invada a pri-
vacidade de nosso descanso, se tornando mais um elemento
de escravização, mas este seria assunto para um novo texto.
Voltando ao nosso tema principal, o que fizemos até aqui
não resolve a angústia proveniente do distanciamento, ape-
nas nos apresenta alternativas para que possamos lidar com
esta angústia sem que ela nos adoeça e possamos continuar
produzindo sentido para nossa existência tão frágil e efêmera.
Mas a própria dinâmica do mundo produz angústias que se
renovam a cada novo rearranjo; nem bem aprendemos a lidar
com a realidade pandêmica e já estamos precisando assimilar
uma retomada das relações presenciais agora nesta realidade
de incertezas e medo do contágio.
Como aprendizado ganhamos a capacidade de trazer o
saber psicológico para novas condições e ambientes, enten-
dendo que o rigor metodológico que caracteriza a ciência não
pode ser negligenciado neste processo; entendemos também
a importância de incorporar as novas tecnologias à prática da
Psicologia. Constatamos ainda que a existência é mesmo mar-
cada pelo imprevisto, pelo inusitado, o que podemos definir
como mistério e esta contingência existencial precisa ser con-
siderada quando pensamos as relações e as subjetividades que
a vivenciam.
A pesquisa e a extensão são condições fundamentais para o
126
processo de formação, neste momento se mostram imprescin-
díveis para a própria sociedade na garantia de nossa sobrevi-
vência, é através delas que desenvolvemos as vacinas, garan-
timos sua distribuição e aplicação. Desenvolvemos também
as estratégias psicológicas para lidar com o isolamento e suas
consequências como a ansiedade, o medo, a falta de esperança
e a incerteza.
Por tudo isso tenho a convicção de que nosso esforço aca-
dêmico é válido e necessário, por isso continuamos nossa ta-
refa buscando aprimorar a cada dia nosso fazer, nossos ins-
trumentos e, principalmente, nossa ética que nos aponta para
o compromisso com a justiça, a vida e a liberdade de todas as
pessoas, em todos os lugares e em todas as condições.

Referências

ARISTÓTLES. Ética a Nicômaco (coleção os pensadores).


São Paulo: Nova Cultural, 1996.

BRAGA, Antonelli de Alvim. Alma e psicologia pré cientí-


fica: uma reflexão histórico-epistemológica. Curitiba:
Appis, 2018.

BERNARDO, Gustavo. Dicionário de termos literários.


Disponível em https://edtl.fcsh.unl.pt/encyclopedia/epoche/
acessado em 3 de novembro de 2021.

CFP. Código de ética profissional. Brasília: CFP, 2005.

CRP04. Psicologia, laicidade, espiritualidade, religião


127
e outras tradições: encontrando caminhos para o di-
álogo. Belo Horizonte: CRP04, 2019.

SILVA JR., Reinaldo da. Nos passos de um buscador. Rio


de Janeiro: Multifoco, 2011.

SILVA JR., Reinaldo da. A Psicologia no Brasil contem-


porâneo: leituras de um aventureiro do fazer e do
pensar psicológico. Rio de Janeiro: Multifoco, 2013.

SILVA JR., Reinaldo da. Projeto aconchego: descreven-


do os caminhos de um mapeamento psicossocial. Di-
vinópolis: Gulliver, 2015.

LONGO, Walter e TAVARES, Flavio. Metaverso: onde você


vai viver e trabalhar em

128
5 O adolescente e a conversação "on-line":
desafios e possibilidades

Cláudia Aparecida de Oliveira Leite


Luiza Andrade Pereira Ferrer Silva
Thayná Millene da Silva Simões

No final de 2019, a comunidade mundial recebeu o anún-


cio da descoberta de um vírus, denominado SARS-CoV-2, que
provocava sintomas respiratórios e apresentava um alto nível
de contágio. Os primeiros casos foram detectados na China,
na cidade de Wuhan. Entretanto, não demorou para que o ví-
rus se incluísse em outros territórios. O aumento do núme-
ro de casos na China e em outros países, levou a Organização
Mundial da Saúde (OMS) a declarar estado de emergência
de saúde pública internacional, no dia 30 de janeiro de 2020
(OPAS, 2020).
Por esse risco evidente, ainda em janeiro de 2020, tivemos
o primeiro estudo que demonstrou as manifestações desse ví-
rus em humanos e com isso, a comunidade científica se em-
penhou em diversas pesquisas e tentativas de entendimento
para conter o avanço do vírus, evitar o contágio e construir
tratamentos possíveis para o adoecimento. Conforme nos in-
dica Souza et al, a OMS, em 11 de fevereiro de 2020, esta-
beleceu a nomenclatura oficial, quando o vírus foi denomi-
nado coronavírus-2 da síndrome respiratória aguda grave
(SARS-CoV-2) e a doença infecciosa do coronavírus-19
(COVID-19) (SOUZA et al, 2021, p. 548).
129
O avanço da doença fez com que, no dia 11 de março de
2020, fosse decretado estado de pandemia (SOUZA et al,
2021). Dentre as variáveis que interferem na propagação do
vírus, encontramos as medidas de enfrentamento que perpas-
sam pela agilidade diagnóstica (eficiência na testagem), pelo
isolamento e distanciamento social da população, pelo nível
de condições de saúde, moradia e educação e pelas medidas
governamentais. Esses elementos interferem de forma radical
na propagação do vírus e provocaram uma mudança nos hábi-
tos de toda população mundial. Essas medidas são fundamen-
tais para o estabelecimento do prognóstico da doença, ou seja,

O prognóstico da COVID-19 é variável e depen-


dente de vários fatores. Embora a maioria das
pessoas com a COVID-19 desenvolva doença leve
(40%) ou moderada (40%), aproximadamente
15% desenvolvem doença grave, com complica-
ções como insuficiência respiratória, SRAG, sepse
e choque séptico, tromboembolismo e falência
de múltiplos órgãos, incluindo renal e cardíaca.
(SOUZA et al, 2021, p.560).

Até o presente momento1, mesmo considerando todas as


medidas de contenção da propagação do SARS-CoV-2, sua ca-
pacidade altamente transmissível levou a mais de 5 milhões

1 Esses dados foram recuperados em 14/12/2021, pela plataforma Coro-


navirus Pandemic (COVID-19) – the data - Statistics and Research - Our
World in Data
130
de óbitos no mundo. No Brasil, até esse momento, perdemos
616,457 mil pessoas em decorrência da Covid-19. Em razão
dessa devastação humanitária, a pandemia da Covid-19 pro-
vocou uma grave crise que reconfigurou as relações sociais e
laborais.
No âmbito das Universidades, respeitando as exigências da
OMS e da comunidade científica mundial, as atividades de en-
sino, pesquisa e extensão foram reconfiguradas para o forma-
to online. Dentro da Universidade do Estado de Minas Gerais
(UEMG), orientamos nossas ações educativas contando com
as tecnologias digitais. O uso de ferramentas tecnológicas e os
meios digitais disponíveis em nossa sociedade foram funda-
mentais para que pudéssemos sustentar o esforço coletivo de
manutenção da vida. O laço com os outros, tão caro ao proces-
so educativo, se tornou fonte de resistência e superação nesse
tempo que impôs severos desafios.
Nessa perspectiva, o Curso de Psicologia da Unidade Divi-
nópolis acompanhou as diretivas da Comissão Especial para
Acompanhamento das Ações de Prevenção e Enfrentamento
ao COVID-19 na Universidade do Estado de Minas Gerais e
seguiu as recomendações referentes às Práticas e Estágios Re-
motos em Psicologia no contexto da pandemia da Covid-19,
documento produzido pelo Conselho Federal de Psicologia
(CFP) e pela Associação Brasileira de Ensino de Psicologia
(ABEP), em 25 de agosto de 2020. A partir do estabelecimen-
to desse documento, a realização de estágios foi homologada e
as práticas virtuais no âmbito dos Cursos de Psicologia no país
foram orientadas por esses documentos. Assim, com base nes-
se contexto, as práticas de estágio e cuidado, que são fazeres
131
fundamentais da Psicologia, foram restabelecidas no formato
"on-line".
A convivência humana com a COVID-19 passou a ocupar
um espaço de investimento social, emocional e psíquico. Exi-
giu-se a invenção de novas formas de convívio, de linguagem
e de trabalho. Para cada sujeito, os efeitos desse novo mode-
lo de vida foram sentidos de forma singular dependendo das
condições biopsicossociais. Nesse sentido, inferimos que as
condições adversas impostas pela pandemia provocam efei-
tos radicais na saúde mental dos adolescentes. Esses efeitos
podem ser observados tanto na evolução de quadros clínicos
nesse grupo, tais como estresse pós-traumático, depressão e
ansiedade, quanto no desconforto e ampliação do isolamen-
to social, conforme nos indica os estudos de Oliveira et al
(2020). Conforme descreveremos em seguida, a adolescência
requer uma intervenção atenta, pois se configura como uma
fase complexa marcada por muitos desafios. Dessa forma, o
isolamento, o afastamento do convívio com os pares, o medo
da morte, as novas incertezas advindas da pandemia podem
acentuar conflitos que já estavam ali e ampliar a vivência de
desamparo dos adolescentes.
Assim, orientados pela diretiva do CFP, discentes do Cur-
so de Psicologia da UEMG, unidade Divinópolis, juntamen-
te com a professora orientadora de estágio propuseram uma
conversação clínica online dirigida a adolescentes entre 13 e
18 anos. O objetivo foi oferecer um espaço de palavra para que
os adolescentes pudessem falar e simbolizar sobre as profun-
das mudanças que se delineavam em seus corpos, em suas re-
lações, em suas famílias e em seus laços sociais.
132
A intervenção com os adolescentes foi planejada mediante
os questionamentos advindos do ensino remoto e da ruptura
dos laços e contatos grupais exigidos pelas medidas de dis-
tanciamento e isolamento social. Partimos da premissa que
a adolescência se estabelece no contato com os iguais e que,
portanto, esse distanciamento traria muitos desafios para esse
público. Desse modo, recuperamos alguns elementos concei-
tuais para delinear nosso espaço de intervenção, dentre eles
a especificidade desse tempo-espaço chamado adolescência.

5.1 A vivência adolescente e a pandemia

A adolescência, tal qual nós a conhecemos hoje, definida


no campo sociológico, médico, psicológico e educacional, têm
um nascimento muito preciso na história ocidental. Conforme
nos ensina Phillipe Ariès (1981 [1960]), autor da História So-
cial da Criança e da Família e A Infância e a Família no An-
tigo Regime, até o século XVIII a adolescência era confundida
com a infância: ou era criança ou era adulto – e a infância era
definitivamente reservada ao infans, aquele que não fala, uma
vez que a criança na idade média era retratada como um adul-
to em miniatura. Desse modo, o espaço intermediário entre
criança-adulto não era reconhecido.
No fim do século XVIII, os historiadores situam o nasci-
mento da família moderna, dentro de um modelo que conhe-
cemos até os dias de hoje, dando um sentido à demarcação
geracional, apresentando um modelo patriarcal e demarcan-
do uma preocupação com a infância. O livro chamado Emílio,
ou Da Educação escrito em 1765, pelo filósofo Jean-Jacques
133
Rousseau (1712-1778), marca esse novo lugar para o desenvol-
vimento humano que incluía a puberdade. Segundo Rousseau:

Nascemos por assim dizer duas vezes - escreve ele


- Uma para existir e outra para viver; uma para a
espécie e outra para o sexo (...) Até a idade adulta,
as crianças dos dois sexos não tem nada aparente
que os distinga: mesmo rosto, mesma figura, mes-
ma tez, mesma voz, tudo é igual: as meninas são
crianças, os meninos são crianças, o mesmo nome
é suficiente para os seres dissimilares (...) À medi-
da que o rugido do mar precede de longe a tem-
pestade, esta revolução tempestuosa anuncia-se
pelo murmúrio das paixões nascentes: uma fer-
mentação surda alerta para a aproximação do pe-
rigo. Uma mudança no humor, frequentes explo-
sões, agitação contínua da mente tornam a criança
às vezes indisciplinada. Ele se torna surdo à voz
que lhe era dócil: é um leão com febre, ele desco-
nhece seu guia, ele não quer mais ser governado.
(ROUSSEAU, [1979] 1765, p. 173)

Em pleno século XVIII, Rousseau põe em relevo um aconte-


cimento que marca de maneira inédita a vivência de um sujei-
to e que trazia, inclusive, uma variação no contorno do corpo.
Muitos pensadores, desde o momento em que a adolescência /
puberdade passou a ser delineada, abriram uma trilha que de-
marcava a diferença entre os diversos momentos da vivência
humana. No século seguinte, XIX, impulsionado pelo campo
134
da educação e medicina e apoiados no recurso à razão, a ideia
de uma diferenciação entre os momentos da vida humana re-
cebeu apoio inclusive político. Essa premissa se estendeu pelo
século XX e chegou ao nosso século XXI como um fator de
relevância primordial (CURI, 1999).
Nesse contexto, nós encontramos a obra de Sigmund Freud
(1856-1939) que, em 1905, escreveu Os Três Ensaios sobre a
teoria da Sexualidade. Nesse trabalho, Freud dedica o terceiro
ensaio para elaborar sobre As transformações da puberdade.
Notem que o termo que Freud utiliza no texto é puberdade.
Nesse tempo, o termo adolescência não havia se consolidado.
No terceiro ensaio, Freud apresenta argumentos para susten-
tar os processos peculiares que se estabelecem nesse processo
da puberdade e para isso, ele estabelece duas teorias:
1) A primeira é a teoria química. Com ela, Freud antecipa
e antevê a importância dos hormônios sexuais2 que só serão
isolados décadas depois.
2) A segunda é a teoria da libido, sobre a qual, consideran-
do o campo sobre o qual a psicanálise se debruça, Freud tece
suas conclusões.
Segundo Freud (1905), a libido, energia da pulsão sexual,
deve ser considerada uma força quantitativamente variável
que poderia medir os processos e transformações ocorrentes
no âmbito da excitação sexual. Nesse sentido, podemos reto-

2 Os hormônios sexuais são substâncias produzidas nas gônadas, testosterona


nos testículos e progesterona e estrógeno nos ovários. Durante a infância esses hormônios
são inibidos, tendo sua produção iniciada durante a puberdade. Eles são responsáveis
pelo aparecimento das características sexuais secundárias. O estradiol (estrogênio) foi
descoberto em 1929 pelo alemão Adolf Butenandt, e pelo estadunidense Edward Doisy. A
testosterona foi descoberta alguns anos depois, em 1935, pelo holandês Ernst Laqueur.
135
mar o conceito de pulsão proposto por Freud em 1915, no tex-
to As pulsões e suas vicissitudes, em que ele estabelece que a
pulsão é a medida de exigência feita a mente pela sua relação
com o corpo. Desse modo, Freud nos ensina a reconhecer o
trabalho pulsional que a puberdade impõe ao sujeito, uma vez
que pode-se reconhecer forças incomensuráveis que o inva-
dem e o obrigam a dar conta de sustentar o próprio corpo e o
reconhecimento de outros corpos.
Paulatinamente, o século XX começou a dar um lugar dis-
cursivo a todo cenário que compõe a emergência desse aconte-
cimento no corpo e o termo adolescência ganhou uma abran-
gência e, em muitos campos, substituiu o termo puberdade
(CURI, 1999). Tomando a ampliação do termo adolescência,
nós entramos em um terreno em que as fronteiras são frágeis,
finas e pouco nítidas. Os limites claros que demarcam a en-
trada e saída da adolescência, esse tempo de espera, também
nomeados como pré-adolescência e pós-adolescência, não são
claramente estabelecidos, o que denuncia a complexidade em
demarcar esse tempo que se embaraça com as exigências sócio
históricas no alcance de uma definição.
A adolescência, tão indefinível, tão indatável, tão embara-
çada entre tempo-espaço, é um passo. Se formos recorrer ao
Dicionário Michaelis encontraremos muitas acepções para a
palavra passo. Um passo significa um deslocamento do ponto
de apoio do corpo de um pé a outro durante uma caminhada,
mas também se refere ao espaço que se percorre com esses
movimentos. O passo também denota o modo de andar. No
dicionário, encontramos também uma denominação geográfi-
ca para a palavra passo, referindo-se ao canal de comunicação
136
entre dois mares ou duas seções do mar ou mesmo a uma pas-
sagem estreita entre as partes laterais de montanhas e desfi-
ladeiro. Ainda na perspectiva geográfica, passo representa o
ponto de passagem habitual, num rio ou num arroio. No que
tange ao corpo, o passo se articula ao conjunto de movimentos
característicos de uma dança, feitos com o pé e com o corpo
e pode, ainda, denominar o ruído dos movimentos dos pés ou
o sinal ou marca de pé no chão, na areia. E temos, ainda, dois
significados de passo que são interessantes, quais sejam, o
que se refere ao fruto que secou e ao que se refere a cada uma
das cenas da Paixão de Cristo.
Nossa proposta de intervenção foi construída considerando
a possibilidade de reconhecer que a adolescência é um passo,
dentro das várias acepções que esse termo contempla. Enten-
demos que a adolescência reedita as vivências fundamentais
do humano: o desamparo fundamental (ordenado pelas per-
das constituintes do corpo da infância e dos papéis infantis), o
Complexo de Édipo (na reedição do amor e ódio aos cuidado-
res e que inclui a perda dos pais da infância) e a autenticação
da separação (realizado no corte com o Outro: cultura, lingua-
gem, autoridade).
Nesse passo chamado adolescência nada fica no lugar. O
primeiro a ser desalojado é o corpo. O corpo infantil, que era
tomado como corpo próprio, resta perdido e no lugar desse
surge “um não sei o quê”. Esse “não sei o quê” tem a ver com
a sexualidade. Rousseau e Freud tinham razão, um passo per-
turbador se estabelece no campo da sexualidade que é uma
intrusa, uma estranha, uma incômoda companhia. Cada ado-
lescente tenta se livrar desse embaraço, desse “intruso cor-
137
po impróprio”, recorrendo a saídas singulares e coletivas. A
coletividade é fundamental, mas também arriscada, pois, é o
lugar em que esse corpo impróprio esbarra em outros corpos
também estranhos. Por essa passagem, Ana Costa nos indica
que
A puberdade é muda por excelência, na medi-
da em que as modificações corporais acontecidas
nesse tempo ainda não têm registro discursivo.
Ali se situa um gap, na passagem do assexuado a
uma posição sexuada. Esse gap é transposto pelos
artifícios construídos pela passagem adolescente.
(COSTA, 2002)

Diante dessa complexa vivência, atravessada por lutos


e perdas, percebemos a importância dos laços coletivos na
constituição subjetiva dos adolescentes. De acordo com Maria
Rita Kehl, 2000, a função fraterna diz respeito à entrada de
um outro semelhante na esfera narcísica da criança, evento
que influencia a estruturação de seu Eu. Esse primeiro con-
tato pode ocorrer com a chegada de um irmão, e é diante da
intrusão desse semelhante que o sujeito se confronta com a
“máxima semelhança e a inevitável diferença” (KEHL, 2000,
p. 36). Logo, ele é retirado da ilusão alienada que poderia ser
exatamente igual ao seu ideal, isto é, desloca-o do ideal pater-
no, abrindo as portas para novas alternativas identificatórias.
A autora supracitada infere que o período da adolescência
é o melhor para estabelecer as formações fraternas, visto que
os vínculos com as amizades, a formação de grupos e o com-
panheirismo formados propiciam que os jovens troquem ex-
138
periências que colocam em xeque as verdades absolutas tidas
por eles até então. Desse modo, o poder da palavra paterna e
das regras culturais consideradas como inquestionáveis são,
assim, questionadas e enfraquecidas, possibilitando novas
formas de se colocar em sociedade e perante ao outro.
Nesse sentido, verifica-se a importância da presença de um
outro semelhante para a formação psíquica do adolescente. Os
grupos, a fratria3, a coletividade colaboram para que o adoles-
cente suporte as perdas e os lutos. Esse movimento viabiliza
novos processos identificatórios e assegura ao sujeito assumir
o próprio desejo e modificar a realidade ao seu redor. A partir
desses encontros com os outros, principalmente com os pares,
o adolescente começa a dar contorno a esse corpo estranho e
a construir suas referências. Assim, através das identificações
estabelecidas por ele, algo começa a ser tecido via organização
de si (ALBERTI, 2010). A fratria na adolescência permite que
o sujeito se aproprie do seu passo.

5.2 A conversação como dispositivo clínico

Quando consideramos a importância dos grupos na cons-


tituição do adolescente, construímos um projeto de conversa-
ção clínica online que pudesse permitir um espaço de escuta
daquilo que insurge das falas de cada um deles. A Conversação
é um dispositivo da psicanálise clínica aplicada a grupos, que
tem se estendido como intervenção nos espaços institucionais

3 Para a Psicanálise, a fratria é o laço de pertencimento que o sujeito


constrói e mantém com determinado grupo. (Ver: ALBERTI, 2010).
139
e, de forma privilegiada, no campo da Educação. A produção
do inédito, da surpresa, daquilo que escapa ao previsível são
os objetivos da Conversação. Nesse sentido, a Conversação se
fia na regra fundamental da Psicanálise, a “associação livre”,
considerando essa associação construída coletivamente, no
“entre fala” dos participantes. Miller (2005) define a conver-
sação como

[...] uma situação de associação livre, se ela é exi-


tosa. A associação livre pode ser coletivizada na
medida em que não somos donos dos significantes.
Um significante chama outro significante, não sen-
do tão importante quem o produz em um momento
dado. Se confiamos na cadeia de significantes, vá-
rios participam do mesmo. Pelo menos é a ficção
da conversação: produzir — não uma enunciação
coletiva — senão uma associação livre coletiva, da
qual esperamos um certo efeito de saber. Quando
as coisas me tocam, os significantes de outros me
dão ideias, me ajudam e, finalmente, resulta — às
vezes — algo novo, um ângulo novo, perspectivas
inédita. (MILLER, 2005, p. 15-16 apud MIRANDA,
VASCONCELOS e SANTIAGO, 2006)

Nesse sentido, a Conversação preserva a dimensão da ética


da Psicanálise, a ética do bem-dizer, estabelecendo as articu-
lações tecidas sob transferência. O bem-dizer articula aquilo
que se pode construir a partir do corte, do silêncio, dos equí-
vocos, modos privilegiados de aparição do sujeito. A Conver-
140
sação demarca, portanto, uma oferta da palavra para que cada
um se aproprie da sua enunciação.
A Conversação se instituiu como dispositivo de investigação
psicanalítica, em 1996, pela equipe interdisciplinar do CIEN
(Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Infância), França,
a fim de estabelecer as especificidades do trabalho realizado
com as crianças e adolescentes nas escolas. O efeito favorável
dessa proposta alcançou seu desdobramento nas intervenções
junto aos docentes das instituições de ensino. Lacadée (2003),
ao apresentar o dispositivo da Conversação como intervenção,
nos lembra que o CIEN não intervém nas instituições escola-
res visando o bem-estar, ou seja, não se trata da implantação
de um projeto terapêutico. Dessa maneira, o que se estabele-
ceu pela conversação foi uma “oferta da palavra que traz con-
sequências”, pois “a aposta é aquela de poder sustentar uma
posição de não-saber no quadro de uma conversação e per-
mitir operar uma mudança graças a qual a instituição pode se
transformar em um lugar que sabe acolher o ‘fora da norma’.”
(LACADÉE, 2003) (tradução nossa).
No Brasil, muitos grupos de intervenção e pesquisa passa-
ram a utilizar a Conversação como metodologia de interven-
ção, produzindo, assim, um extenso material sobre o tema e
apresentando os resultados favoráveis advindos dessa apos-
ta. Como exemplo, podemos apresenta as experiências do
NIPSE-FAE/UFMG (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisa em
Psicanálise e Educação) que, conforme nos indica Miranda,
Vasconcelos e Santiago (2006), privilegiaram a Conversação
como metodologia de pesquisa em psicanálise e educação es-
tabelecendo-a como uma aposta que considera as particulares
141
dos sujeitos.
A proposta da Conversação não constitui um argumento
prévio, ou seja, não se estabelece a priori o tema do encontro
ou mesmo os “objetivos” a serem alcançados durante o traba-
lho. A construção é partilhada pelo acontecimento do dizer,
tal como podemos circunscrever no campo clínico. A fala de
um participante interfere na fala do outro, sem, no entanto,
se confundir com o outro. O laço social se estabelece pelo dis-
curso. Cada um sustenta seu lugar de enunciação e constrói
as associações no enlaçamento da fala sustentada pelo outro.

Por isso a diferença é um princípio que orienta a


conversação. Diferença na medida em que para
cada um existe um real que faz sentido singular,
e não pode ser recoberto com o sentido pleno, co-
mum e consensual, pois este real opera em cada
um dando lugar a distintas respostas do sujeito.
(MIRANDA, VASCONCELOS e SANTIAGO, 2006,
s/p)

O manejo da fala, a temporalidade, a estrutura do encontro


fazem com que a conversação não seja confundida com uma
psicoterapia. O encontro pontual, delimitado, poderá servir
de balizas para que o sujeito decida procurar um espaço de
palavra singular e proponha novos rumos para seus conflitos.
O desejo de falar deve ser o principal requisito para participar
da Conversação, não cabendo a obrigatoriedade nesse proces-
so. Como nos lembra Lacadée (2003), ao propor a entrada da
conversação no interior das escolas, pela "oferta de palavra",
142
se estabelece um espaço fundamental em que se pode falar.
Perante isso que se constrói pela via da palavra, da associa-
ção livre, é possível redesenhar alguns contornos dos adoles-
centes perante tantas mudanças, tais como os efeitos gerados
ou acentuados pela pandemia. O contato, que passa a ser on-
line, impõe o virtual e uma quebra na imagem e move esses
adolescentes a outros lugares, outros formatos e passos a ca-
minhar nesse adolescer que não para diante de uma pandemia
tão avassaladora.
Nesse sentido, o objetivo do projeto foi implantar essa ex-
periência da palavra com adolescentes, favorecendo um espa-
ço para a emergência do sujeito e para a construção de novas
formas de se posicionar frente ao inédito, às dificuldades e ao
não-saber. Devido à pandemia Covid-19 e todas as consequ-
ências que apresentamos no início desse artigo, a Conversação
com os adolescentes se deu em formato online, através de pla-
taformas digitais, tais como ZOOM, Google Meet e WhatsApp.
Esse novo modo de comunicação tornou-se parte do cotidiano
de muitas pessoas. Para os adolescentes, tão conectados ao
mundo virtual, essa prática passou a configurar o modo de re-
lação social obrigatória e possível para a manutenção de suas
atividades.
Esse foi o primeiro desafio que nos propusemos, pois, po-
de-se perceber que os adolescentes estabeleceram uma re-
lação ambígua com as atividades obrigatórias online: aulas,
cursos, reuniões. A conectividade tão naturalizada entre os
adolescentes, excessivamente presente em suas experiências,
passou a se situar como o espaço de trabalho e seriedade.
Logo, diante desse novo cenário desconhecido, o projeto de
143
conversação online com adolescentes enfrentou desafios, vis-
to que o tempo da adolescência contrasta, muitas vezes, com o
tempo da tecnologia. Assim como recebíamos dos relatos das
escolas sobre a baixa adesão dos alunos às aulas e conteúdos
digitais disponibilizados, nossa proposta de conversação onli-
ne também encontrou um número limitado de interessados,
conforme apresentaremos a seguir.

5.3 A experiência de estágio na conversação


"on-line"

Inicialmente, o projeto buscou alcançar os adolescentes a


partir de uma escola de ensino médio específica. Entretanto,
em função da organização dos estagiários em duplas, passa-
mos a acolher uma demanda universal, ou seja, não limitamos
o lugar de onde esse público viria. Nesse segundo modelo, o
projeto foi divulgado pelas redes sociais através de um folder
explicativo que continha as informações sobre os encontros, e
um link, o qual abria para uma ficha de inscrição no Formu-
lário do Google. Essa ficha, ao ser preenchida pelos adoles-
centes interessados, era encaminhada por uma estagiária para
um dos coordenadores do grupo de conversação escolhido por
eles.
Os grupos, que ocorrem de acordo com os dias e horários
disponíveis dos discentes, deveriam receber, no máximo, 10
participantes. Ao todo se formaram 5 grupos que mantiveram
um número de participantes variado. Os encontros foram fei-
tos semanalmente, através de plataformas digitais, com uma
média de 50 minutos de duração.
144
Inicialmente, apesar da divulgação em diversos perfis e pla-
taformas, notamos uma baixa adesão. Recebemos a inscrição
de 26 adolescentes. Os estagiários e estagiárias responsáveis
pelo grupo escolhido pelo adolescente faziam contato4 direta-
mente com o mesmo. Nessa organização dos grupos, encon-
tramos outra queda dos números de participantes efetivos que
giraram em torno de 2 ou 3 adolescentes. Frente a essa con-
juntura, foram levantadas algumas inferências sobre os moti-
vos que provocaram a baixa adesão.
A primeira observação que fizemos foi sobre os efeitos dos
trâmites burocráticos das instituições escolares, fato que in-
clusive, provocou a mudança do caráter do projeto que seria
ofertado a uma escola e foi levado para atingir uma perspecti-
va universal. A segunda observação que pode ter influenciado
nesse resultado, diz respeito ao longo tempo entre o período
de inscrição e o primeiro contato com os grupos. E, por fim,
a terceira observação se desenvolveu ao constatarmos que os
grupos que obtiveram êxito em produzir uma conversação
online partilhavam de um ponto em comum anteriormente,
ou seja, os adolescentes já mantinham algum vínculo prévio,
participavam de uma fratria, ou seja, tinham algum laço de
pertencimento em um espaço ou grupo.
Contudo, se ressaltamos esses entraves e desafios, gostarí-
amos de salientar que, apesar da baixa adesão, os adolescen-

4 Nesse contato, os estagiários se apresentavam para


o adolescente, informavam sobre o projeto e solicitavam o
preenchimento do termo de consentimento livre e esclarecido
(TCLE) por parte dos responsáveis.
145
tes que participaram da conversação online se engajaram na
possibilidade de partilhar de uma associação livre coletiviza-
da e com eles, construímos alguns efeitos de trabalho. Pelas
falas que acolhemos, percebemos a elaboração de algumas
temáticas caras aos adolescentes que, por meio da dimensão
simbólica desfaziam os nós que sufocavam, aliviavam o aper-
to no peito atravessado pelo real. Com essa aposta na pala-
vra, alguns adolescentes nos deixaram verdadeiros poemas
em forma de relatos de suas angústias cotidianas que eram
cristalizadas pelo horror da pandemia e das esperanças que se
desenrolavam quando eles fiavam em novas tessituras.
Nesse sentido, vale destacar um fragmento de conversação
em que consideramos que esse efeito foi alcançado. No pri-
meiro encontro, apesar de 5 adolescentes terem se inscrito,
apenas uma entrou na sala no horário acordado. A única par-
ticipante ficou durante todo o tempo proposto de conversa-
ção, das 10h40 às 11h30 e a conversa fluiu, sob a condução de
duas estagiárias. A temática circulou sobre a história de sua
família e sobre as dificuldades financeiras e sociais advindas
da adaptação às limitações impostas pela pandemia da Co-
vid-19. A adolescente também falou da sua convivência com a
mãe, com quem divide a casa e é seu único contato presencial
fora das redes digitais. Ela formula uma reflexão sobre o modo
como o período de isolamento a afetou, principalmente no de-
senvolvimento das relações interpessoais com os amigos. Um
ponto importante trazido pela adolescente foi sobre a escola e
o ensino remoto em tempos de pandemia. Nesse quesito, ela
fez críticas ao sistema de ensino proposto pelo governo para
as escolas públicas, da qual ela faz parte. Segundo ela, apenas
146
as tarefas finais valiam nota, o que ocasionou uma falta de in-
teresse e engajamento conjunto por parte dos estudantes.
No segundo encontro dessa conversação, outra adolescen-
te compareceu. O tema que elas trazem é a transição capilar.
Cada uma delineia esse tema considerando as próprias vivên-
cias e particularidades e, apresentando em suas falas, as saídas
e construções de cada uma para assumir os cabelos crespos. A
associação que se instaurou nessa conversação foi a situação
política do país e as poucas expectativas de vida digna que a
sociedade brasileira constrói para os negros. As adolescentes
expressaram uma posição crítica e sem esperança na política
brasileira. Elas não apostam em uma mudança das condições
do país e dizem que gostariam de sair do Brasil diante das di-
ficuldades políticas, econômicas e sociais.
Consideramos que esse encontro inédito e surpreendente
foi carregado de múltiplos afetos: ódio, angústia, medo. Nele,
foi possível escutar a temática do racismo e das questões so-
ciais de forma clara. Também foi possível abrir uma fresta de
enigma sobre as possibilidades de construção e identificação
nesse território brasileiro. Nossa aposta é que, nesse encon-
tro sucedeu uma conversação. Nos dois encontros seguintes,
planejados pelas estagiárias, nenhum adolescente compare-
ceu. No contato que as estagiárias fizeram com eles, alguns
disseram sobre a incompatibilidade dos horários que estavam
coincidindo com as atividades escolares. Uma das participan-
tes do segundo encontro manifestou o interesse de se inscre-
ver no Serviço Escola de Psicologia (SEPSI) para ser atendida
em outras modalidades.
Exatamente por permitir a surpresa e o surgimento de algo
147
novo que a conversação se estabelece como uma prática pos-
sível para o contexto online. Naquele breve encontro, elas pu-
deram falar de si, dos seus conflitos, do racismo e das inquie-
tações políticas e sociais.
Em outras vivências de conversação, além desses tópicos
relatados acima, os adolescentes dos outros grupos compar-
tilharam diferentes questões que lhes causavam sofrimento.
Podemos citar o medo sobre o futuro, as dúvidas quanto à
profissão a ser escolhida, o receio da educação ter sido pre-
judicada pelo formato online e o temor de não passarem no
Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) como as principais
temáticas que pautaram as conversações. Outro ponto que
veio à tona foi a dificuldade que sentem de socializarem pre-
sencialmente com os pares, além do receio de se contamina-
rem com o vírus, ficarem doentes e morrerem.
Em outros encontros de conversação, os adolescentes fala-
ram sobre a família, principalmente sobre os conflitos advin-
dos da ambivalência em gostar de estarem mais próximos dos
cuidadores (mãe/pai) e a falta de privacidade para fazerem
suas coisas. Ademais, narravam as brigas que tinham com
os adultos devido à diferença de concepções de mundo. Es-
sas falas dos adolescentes são relevantes para entendermos os
efeitos desse tempo pandêmico nas suas relações com o corpo
próprio, com os adultos (mães, pais, cuidadores) e com os ou-
tros semelhantes. Elas permitem ainda que reconheçamos a
pandemia como um elemento que intensifica o desafio impos-
to pela vivência adolescente.

148
Considerações finais

Nesses encontros pontuais, sem um tema pré-determina-


do, aberto ao inconsciente e à associação livre, floresceram
diferentes tópicos que angustiavam ou embaraçavam os ado-
lescentes. Tais temas foram articulados na fala, foram sim-
bolizados pelo movimento da palavra. Dessa forma, pela via
do discurso, os adolescentes puderam começar a dar novos
contornos a isso que apresentava-se a eles como estranho
(ALBERTI, 2010). Pode-se observar, entretanto, que apesar
de possível, o online se tornou, em muitos momentos, uma
barreira. Alguns adolescentes se queixavam da falta de pri-
vacidade para realizarem os encontros de conversação, pois
estavam confinados com os cuidadores, irmãos e outros pa-
rentes. Outros, não possuíam “pacotes de dados” suficientes
para atender às exigências escolares e outros compromissos,
tais como a conversação.
Assim, apesar do formato online possibilitar que a conver-
sação aconteça de modo mais ampliado, sem a exigência de
um espaço físico pré-determinado e enlaçando adolescentes
que se sentem mais confortáveis em se manifestarem median-
te as telas, ele também promove barreiras. Outrossim, perante
o online, a palavra pode ser perdida, cortada, interrompida,
ou escondida por trás de tal imagem fragmentada de um Eu
que, por motivos heterogêneos, não consegue se expressar.
Mesmo considerando essa lógica, contamos com o dispositivo
psicanalítico da conversação, pois através dele há a produção
do inédito, que se fia diante da “associação livre” construída
coletivamente na “entre fala” dos participantes. Diante dis-
149
so, ofertou-se um espaço para que a palavra circulasse e para
que cada um se apropriasse da sua enunciação. Nos encontros
pontuais que ocorreram, os adolescentes conseguiram dar um
contorno simbólico àquilo que lhes causavam sofrimento.
Quanto à vivência da fratria, do pertencimento, dos pa-
res, notamos que a instauração da pandemia isolou o encon-
tro físico, presencial, ou seja, essa fratria não aconteceria nos
mesmos moldes de antes. Durante um tempo indeterminado
a tela era o modo de conexão com o outro. Essa tela possibi-
lita o uso de um filtro que permite revelar apenas aquilo que
seja conveniente. Nessa imagem construída pelo adolescente
pode-se evitar o diferente, se esquivar do enfrentamento de
seus medos e daquilo que o angustiava diante da presença dos
pares. Aqueles que se sentiam vinculados afetivamente aos
grupos de pertença relatavam a intensa solidão e sentimento
de desamparo durante o isolamento. Nesse sentido, ao consi-
derarmos a importância do convívio com os pares para a es-
truturação subjetiva do adolescente e a perda expressiva desse
convívio no contexto pandêmico mundial, reconhecemos o lu-
gar interventivo que uma escuta atenta pode proporcionar ao
sujeito que sustenta esse passo.
Como destacamos em nosso relato de experiência, muitos
elementos dificultaram o alcance de um número maior de ado-
lescentes. Consideramos, entretanto, que a construção de es-
tratégias para cuidar da saúde mental desse público é urgente
e continuamos na busca de novas perspectivas de intervenção
que aprimorem o projeto em curso.
O projeto Conversação online com adolescentes, ainda em
construção, mantém o compromisso de se reinventar e contar
150
com o inédito e o novo. Ele propiciou um espaço de escuta
para os adolescentes que se autorizaram a falar, favorecendo
a elaboração de seus conflitos e sofrimentos. Salientamos que
a escolha dessa faixa-etária como público-alvo do atendimen-
to se deu diante da constatação do período já conflituoso que
perpassam, repleto de lutos e perdas. Reconhecemos que se
separar do Outro parental, e de suas idealizações, pode ser um
processo doloroso e constatamos que houve uma ampliação
desse embaraço quando incluímos a conjuntura pandêmica.
Essa, por sua vez, gerou novos modos de viver, estabeleceu
diferentes regras sociais e impôs exigências de socialização
virtual. Dessa forma, diante desses desafios, nas práticas de
cuidado e atenção à saúde, que são fazeres primordiais da Psi-
cologia, somos convocados a invenção.

Referências

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153
PARTE II
Pesquisas e inovações em Psicologia
6 Notas da subjetividade na infância em
tempos hi-tech: entretenimento digital para
e contra crianças

Mara Salgado
Ana Luiza Martins
Tatiana Fonseca Linhares

6.1 Notas iniciais sobre a subjetividade na infância

Este texto apresenta os resultados da pesquisa intitulada


Análises de conteúdos audiovisuais: o que tem no tubo do
YouTube para crianças? aprovada no edital 01/2021 do Pro-
grama de incentivo à pesquisa e extensão da Universidade do
Estado de Minas Gerais Unidade Divinópolis e realizada pelas
autoras vinculadas ao curso de Psicologia. A pesquisa objeti-
vou levantar e compreender possíveis elementos que impac-
tam as subjetividades na infância, presentes nos conteúdos de
seis canais virtuais para crianças, veiculados pela plataforma
de compartilhamento de vídeos digitais YouTube.
Os aspectos teórico-metodológicos fundamentam-se na
pesquisa qualitativa documental e de revisão bibliográfica de
autores que contribuem para a área da Psicologia do Desen-
volvimento da criança, em especial Lev S. Vygotsky, além de
autores do marco temático das relações entre infância e con-
dições tecnológicas, em especial autores fundamentados na
Teoria Crítica da Sociedade.
O conceito de infância é inseparável do contexto sociocul-
tural, que varia ao longo da história, tornando sua concepção
155
dependente da sociedade e do tempo (ARIÈS, 1981). Pode-se
dizer que a infância, como categoria social, é de responsabi-
lidade dos adultos, uma vez que depende de uma decisão e
investimento da sociedade para garantir que crianças sejam
cuidadas e respeitadas em seus interesses distintos do mundo
dos adultos, mas dos quais os adultos dependem para vislum-
brarem uma vida melhor.
Se por um lado a infância é um conceito definido por adul-
tos, para que adultos saibam como educar crianças e discipli-
nada por instituições também adultas (ASSEMANY, 2016),
por outro é na realização do cuidado e do respeito pelas novas
gerações humanas que a infância pode amparar a criança no
desenvolvimento de suas potencialidades para a subjetivação.
Com base em Vygotsky (1984), entende-se por subjetivação
o processo particular de apropriação da cultura, em outras pa-
lavras, a dinâmica de transformação dos afetos e do intelecto
– consciência – pelas interações orgânicas e sociais que cada
indivíduo sofre desde seu nascimento.
Na infância há uma maior plasticidade orgânica, que con-
siste na capacidade cognitiva, afetiva e motora para organizar
e reorganizar o psiquismo de acordo com as experiências que
a criança realiza na exploração das relações interpessoais e
dos objetos do mundo a sua volta. Portanto, essa plasticida-
de para o desenvolvimento depende da mediação cultural. É
a mediação da cultura que ao logo do tempo ocupa o papel de
motor do processo do desenvolvimento da subjetividade.
Os estudos sobre a interação do corpo orgânico-psicomo-
tor, da cognição-afetividade e do meio social, em especial na
infância, ocupam a centralidade das teorias interacionistas e
156
psicogenéticas da Psicologia do Desenvolvimento, com desta-
que para autores como Jean Piaget, Lev S. Vygotsky e Henri
Wallon (NUNES; SILVEIRA, 2011, LA TAILLE; OLIVEIRA;
DANTAS, 1992). Estes autores interacionistas não podem ter
suas diferenças epistemológicas diminuídas, mas pode-se di-
zer que tais teorias compartilham o entendimento de que as
funções elementares sensoriais, cognitivas e perceptivas dos
humanos são transformadas em funções superiores da inte-
ligência, afetividade, memória, criatividade, discernimento e
moral, inexoravelmente, pelas interações com as condições
materiais e imateriais que a cultura oferece à criança, des-
de seu nascimento até os estágios subsequentes da vida (LA
TAILLE; OLIVEIRA; DANTAS, 1992).
Vale dizer que, anteriormente às teorias psicogenéticas,
os estudos da Psicologia sobre as experiências que marcam
o desenvolvimento da criança ganharam contornos revolu-
cionários a partir das formulações teóricas da psicanálise de
Sigmund Freud (1905/1976). A teoria psicanalítica, de modo
inaugural na produção do conhecimento sobre o aparelho psí-
quico, considerava que uma parte dos acontecimentos viven-
ciados no avançar das fases psicossexuais da vida da criança,
além de serem responsáveis por distúrbios e sofrimentos psí-
quicos na personalidade dos adultos, ocorrem por processos
inconscientes, ou seja, não acessíveis diretamente à memória
voluntária, e que são reveladores de conflitos e inadaptações
em relação às normas morais culturais transmitidas, primei-
ramente, nas dinâmicas familiares de educação das crianças
(GOULART, 2015).
Em parte, foi em interlocução com essas formulações da
157
metapsicologia1 freudiana, mas também e, principalmente,
com o materialismo dialético marxista, tal como as teorias de
Lev S. Vygotsky e Henri Wallon, que os autores frankfurtianos
da primeira geração da Teoria Crítica da Sociedade, em es-
pecial Theodor Adorno (2015) e Herbert Marcuse (1981), en-
contraram fundamentos para tratar a formação do indivíduo
– sua diferenciação – como processo subjetivo de apropriação
da objetividade. A apropriação ocorre por meio das transfor-
mações dos mecanismos internos primitivos (natureza) em
mecanismos racionais engendrados culturalmente. Pode-se
dizer que, na perspectiva da Teoria Crítica da Sociedade, a
qualidade da razão (intelecto e sensibilidade) alcançada pelos
indivíduos, ao longo da vida, tanto está condicionada pela ob-
jetividade da vida em sociedade – seus valores, significados,
instrumentos e tecnologias – quanto condiciona a subjetivida-
de e a objetividade (ADORNO; HORKHEIMER, 1985).
De modo específico na infância, com base em Adorno (1992)
e Walter Benjamin (2002) (1994) – autor também importante
para a Teoria Crítica da Sociedade –, entende-se que a subjeti-
vidade se expressa num jogo entre corpo e pensamento, sonho
e realidade, em uma outra ordem racional, mais mimética e
imaginativa, que alimenta a memória do ser humano e é ca-

1 Em seu texto Além do princípio de prazer, Freud (1920/1976) cria o


termo metapsicologia para distinguir suas formulações teóricas, que con-
tam com a apresentação de conceitos para descrever os eventos mentais
nas dimensões topográficas, dinâmicas e econômicas, dos seus estudos
fundamentados, mais especificamente, nas experiências analíticas de
seus pacientes.

158
paz de brincar com a realidade. Contudo, essa outra forma de
operar com o pensamento não está isenta dos condicionamen-
tos das forças históricas que constituem o processo de subje-
tivação. Ao contrário, por sua intimidade com uma natureza
em transformação (filogenética e ontogenética), a criança tira
proveito dessa outra razão para mobilizar os condicionamen-
tos sociais em favor de sua adaptação e resistência à realidade
(SALGADO, 2019).
Nesse sentido, refletir acerca da subjetividade na infância
requer reconsiderar, a cada tempo histórico, que a comple-
xa atividade no desenvolvimento biológico e psicossocial da
criança se assenta num tempo-espaço de continuidades e rup-
turas culturais, revelando nas crianças vulnerabilidades, im-
permanências, afetos, aprendizagens e (re)criações que dizem
respeito quantitativa e qualitativamente aos estímulos inter-
nos e externos que a cultura produz.

6.1.1 Infância e o entretenimento tecnológico

O acesso precoce de crianças a aparelhos eletrônicos, tais


como tabletes, smartphones, notebooks e televisores digitais,
tanto em casa quanto em creches e escolas, tem sido cada
vez mais comum e muitas vezes incentivado pelos pais para
mantê-las quietas, entretidas com corpos e pensamentos dis-
traídos (EISENSTEIN et. al, 2021), e num estado de disper-
são concentrada, conforme analisa Türcke (2016) sobre a
consequência da hiperestimulação do aparelho sensorial, por
meio da recepção do excesso de imagens audiovisuais.
Para Türcke (2016), o estado de dispersão concentrada está

159
fortemente relacionado aos sintomas manifestos do Transtor-
no de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), a saber, de
comportamento inquieto, incapaz de concentração nas ativi-
dades e na interação social, em que a criança busca constante-
mente novos estímulos nos objetos e espaços sem, contudo, se
satisfazer com nada. Em última instância, uma decorrência de
um específico e refinado entretenimento tecnológico que afeta
a atenção voluntária e a memória e produz comportamentos
opostos à experiência temporal e espacial que a infância pode-
ria resguardar (TÜRCKE, 2016).
A produção de conteúdo midiático para crianças constitui
a materialidade de entretenimentos culturais que serviram de
suporte para a construção da infância como categoria social
desde a modernidade, bem como para delinear uma formação
de mentalidade coletiva compatível com as regras morais e
políticas, que a partir de meados do século XIX e, mais nitida-
mente, após a revolução industrial passam a serem difundidas
por um tipo de imprensa pedagogizante da educação familiar
e escolar dos sujeitos modernos. Desde a invenção do rádio e
sua difusão na esfera doméstica, a dinâmica familiar se reor-
ganizou contando com os programas radiofônicos de notícias,
musicais, narrativas de folhetins e, também, programas de
histórias para crianças (CAMBI, 1999).
Se programas de narrativas radiofônicas para crianças pos-
sibilitaram a criação de conteúdos de alto nível intelectual,
como as histórias de Walter Benjamin apresentadas na série
de programas nomeada A hora das crianças (BENJAMIN,
2015), na Alemanha do início do século XX, seus impactos no
aparelho sensório dos ouvintes e quanto ao distanciamento
160
afetivo entre os membros familiares dentro da mesma sala
da casa, já naquela época, eram considerados, por pensado-
res críticos da modernidade, como produtores de uma frie-
za específica nas subjetividades em formação (ADORNO;
HORKHEIMER, 1985)2.
Nesse sentido, não é novidade que as crianças consomem
conteúdo midiático eletrônico, sofrem os impactos sensoriais
modificados a cada tempo histórico e que as dinâmicas fami-
liares contem com tais programações para o entretenimento
infantil. Entretanto, do rádio, passando para a televisão até
o smartphone, e dos programas de contação de histórias de
Walter Benjamin ao Xou da Xuxa3 e, atualmente, aos canais
virtuais do YouTube, há diferenças importantes quanto à me-
diação tecnológica, à qualidade intelectual e sensível dos con-
teúdos produzidos e, consequentemente, quanto aos impactos
na subjetividade das crianças.
A tecnologia e os produtos midiáticos mudaram, assim
como os contextos sociais e as subjetividades daqueles que
os produzem e os consomem, configurando novos rearranjos
subjetivos no desenvolvimento das crianças, que podem indi-
car algo sobre os rumos psicossociais que estamos tomando.

2 Vale a leitura do fragmento filosófico Isolamento pelos meios de comu-


nicação (ADORNO; HORKHEIMER, 1985).
3 O Xou da Xuxa foi um programa da televisão aberta brasileira, Rede
Globo, exibido entre 1986 e 1992, de grande sucesso de audiência e que
mobilizou diversos produtos culturais e audiovisuais, como shows musi-
cais, videoclipes e DVDs infantis, filmes e uma enorme variedade de pro-
dutos voltados ao consumo das crianças, ao longo dos anos 90 e 2000.
161
6.1.2 Alguns dados sobre a plataforma YouTube

O YouTube é uma das maiores plataformas de vídeos na


atualidade. Sua diversidade de conteúdo, em grande parte,
está disponível gratuitamente para dois bilhões de usuários
espalhados em mais de 100 países, sendo disponibilizado em
80 línguas diferentes4. Este sítio digital apresenta a média de
um bilhão de horas assistidas por dia e, segundo pesquisa fei-
ta pelo site americano We are social, ele foi o segundo site
mais pesquisado, mundialmente, em janeiro de 2019. No site
de divulgação de dados do YouTube, consta que a faixa etária
dos usuários da plataforma é acima de dezoito anos, porém a
empresa já passou por problemas judiciais nos Estados Uni-
dos (EUA), local da sua origem, devido à falta de controle do
acesso e da utilização de seus conteúdos por crianças5.
Em 2015 foi criado o aplicativo YouTube Kids, como forma
de viabilizar aos responsáveis o controle do acesso aos con-
teúdos indicados para crianças, facilitando a escolha e filtra-
gem da programação disponível na plataforma6. Desde 2019
o site do aplicativo pode ser acessado por meio de uma conta
criada por responsáveis de crianças, com opções de configura-
ções de segurança quanto à escolha da programação e contra

4 Informações disponíveis em: https://www.youtube.com/. Acesso em


20/05/2021.
5 Informações disponíveis em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/
noticia/2019-09/brasil-tem-243-milhoes-de-criancas-e-adolescentes-uti-
lizando-internet. Acesso em 15/05/2021.
6 Informações disponíveis em: https://www.youtubekids.com/?sour-
ce=youtube_web. Acesso em 10/12/2021.
162
publicidades inapropriadas para crianças com menos de doze
anos. No entanto, o aplicativo ainda é desconhecido por gran-
de parte dos responsáveis de crianças, tanto pela novidade do
serviço da empresa, quanto porque demanda certa habilidade
para operar com as configurações dos dispositivos virtuais.
Diante das desigualdades sociais, educacionais, econômicas e
tecnológicas de um país como o Brasil, é preciso considerar
os impedimentos para que muitas famílias brasileiras tenham
acesso a este serviço de melhor qualidade para as crianças.
Correa (2016, p. 13) afirma que “é possível identificar en-
tre os 100 canais de maior audiência no YouTube Brasil 48
canais que abordam conteúdo direcionado ou consumido por
crianças de 0 a 12 anos.” Além disso, as crianças não são so-
mente espectadoras da plataforma, elas também se tornaram
produtoras de vídeos e, em alguns casos, desde muito cedo se
tornam milionárias pelo faturamento com seus canais7.
Como relatado por Correa (2016), o crescimento do núme-
ro de canais cujas crianças são protagonistas foi de 550% em
um ano, indicando a relevância de um fenômeno midiático
de grande adesão entre crianças. Por certo, seus responsáveis
não apenas permitem, incentivam e participam da produção
de conteúdo, mas, em muitos casos, veem na participação das
crianças a possibilidade de rentabilidade econômica.

7 Um exemplo dos altos faturamentos de canais infantis é o caso de Ryan,


um menino que aos sete anos recebeu mais de vinte e dois milhões de
dólares por seu canal no YouTube, segundo matéria da BBC. Matéria
disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/salasocial-46435004.
Acesso em 15/05/2021.

163
Nesse sentido, interessa ao campo da Psicologia do Desen-
volvimento a compreensão das atualizações da materialidade
da vida, que constituem os processos psicossociais e indicam
os meios dos quais se utilizam os humanos para se apropri-
arem da cultura e, se possível, transformá-la em prol de to-
dos. Esse entendimento exige que as mudanças culturais que
operam formas qualitativamente diferentes, daquelas ante-
riormente analisadas nas dinâmicas sensoriais, cognitivas
e afetivas da criança, sejam constantemente reconsideradas
pelos estudos da Psicologia do Desenvolvimento, que buscam
interlocuções com outras áreas parcelares do conhecimento,
para a compreensão das potencialidades dos indivíduos e das
experiências que compõem a subjetividade na infância. Há de
se considerar que na atualidade as experiências estão, de so-
bremaneira, operacionalizadas pela alta tecnologia – hi-tech
–, indicando que desde muito cedo a subjetividade infantil
está entretida pela excessiva estimulação audiovisual e for-
jada pelos valores e significados que constituem sua forma e
conteúdo virtuais

6.2 Aspectos teórico-metodológicos

O percurso teórico-metodológico apoia-se nos procedimen-


tos qualitativos da pesquisa documental e de revisão biblio-
gráfica de autores que dialogam com a perspectiva interacio-
nista da Psicologia do Desenvolvimento, em especial com Lev.
S. Vygotsky, além de autores da Teoria Crítica da Sociedade,
que contribuem com a temática das relações entre infân-
cia e condições tecnológicas, mais especificamente, Theodor
164
Adorno, Max Horkheimer e Walter Benjamin, e outros por
eles fundamentados.
Entende-se que a pesquisa bibliográfica lança mão da siste-
matização dos critérios de forma flexível ao movimento do ob-
jeto, ou seja, as análises referem-se às relações entre os dados
coletados e a realidade histórica. Desse modo, a leitura da bib-
liografia selecionada ampara as análises de acordo com etapas
investigativas intercruzadas e não lineares que se norteiam
pelos seguintes momentos: leitura de reconhecimento do ma-
terial bibliográfico, leitura exploratória, leitura seletiva, leitu-
ra reflexiva ou crítica e leitura interpretativa (LIMA; MIOTO,
2007).
Sobre a pesquisa documental, tanto Sá-Almeida, Almeida
e Guindani (2009) como Appolinário (2009) consideram do-
cumento de modo amplo e de diferentes naturezas materiais.
Nas palavras de Appolinário (2009), pode ser considerado em
uma pesquisa documental: “qualquer suporte que contenha
informação registrada, formando uma unidade, que possa
servir para consulta, estudo ou prova. Incluem-se nesse uni-
verso os impressos, os manuscritos, os registros audiovisuais
e sonoros, as imagens, entre outros” (APPOLINÁRIO, 2009,
p. 67).
Nesse sentido, os vídeos e canais analisados do YouTube
são considerados como os documentos audiovisuais da
pesquisa, em que buscamos compreender o entrelaçamento
da forma e conteúdo. Destaca-se que nesta perspectiva, inter-
essam menos os dados numéricos, que indicam estimativas
da frequência em que ocorrem os fatos, e mais a compreensão
sobre possíveis elementos que indiquem valores, significados
165
e signos culturais, aparentes ou ocultos, presentes na men-
sagem dos vídeos nos canais analisados (SÁ-SILVA; ALMEI-
DA; GUINDANI, 2009).
As etapas das análises dos conteúdos audiovisuais foram
sistematizadas, segundo proposta de Bardin (2016), em três
fases: 1) pré-análise; 2) exploração do material e 3) tratamen-
to dos resultados, inferência e interpretação.
Para a pré-análise dos vídeos disponibilizados nos canais
da plataforma digital foram considerados os seguintes critéri-
os de seleção: acesso gratuito; estar especificado no canal
que é voltado para o público infantil; se protagonizado por
crianças, que elas tenham até onze anos de idade no ano da
postagem; postar vídeos regularmente nos últimos dois anos;
possuir mais de dez vídeos no canal, ter um número superior
a um milhão de visualizações (na soma dos vídeos) e a cem
mil inscritos no canal e ter o idioma em português (ou estar
dublado). Também optamos por canais que não fossem res-
tritos ao aplicativo YouTube Kids, já que este recurso ainda
é desconhecido e/ou pouco utilizado por grande parcela das
crianças brasileiras.
Não é demais mencionar que o universo de produções di-
sponíveis no YouTube exigiu que fosse realizado um recorte
compatível com a natureza de pesquisa de iniciação científica.
Desse modo, os vídeos selecionados serviram como modelos
exemplares de análises, que de modo algum representam a
variedade disponível na plataforma, mas que informam sobre
os conteúdos largamente e facilmente difundidos entre as cri-
anças.

166
6.3 Análises dos resultados ou reflexões sobre os
achados no tubo digital

Diante da variedade de materiais encontrados na pré-análi-


se e seguindo os critérios definidos, optou-se por uma seleção
de canais que representassem os seguintes tipos: protagoni-
zado por meninas; protagonizado por menino; protagoniza-
do por menina e menino; protagonizado por bonecos (fanto-
ches); animação musical e animação brasileira.
Os canais selecionados foram divididos em duas categorias
iniciais: 1) canais em que os vídeos são protagonizados por
crianças de até onze anos de idade; 2) canais que possuem ví-
deos com animações (contação de histórias e músicas) dire-
cionados a crianças de zero a onze anos de idade.
Os canais selecionados na primeira categoria foram: Fran,
Bel e Nina Kids, Canal do Gu! e Diana and Roma PRT. Já
na segunda categoria estão os canais: Graça Kids, Ticolicos e
Mundo Bita.
Os dados referentes ao quantitativo de inscrições e visua-
lizações dos canais, conforme os critérios estabelecidos, se-
guem na tabela 1.

167
Tabela1: Quantitativo de inscritos e visualizações dos canais selecionados

Canais disponíveis na Inscritos em Total de visualizações


plataforma YouTube 30/08/2021 em 30/08/2021
Fran, Bel e Nina Kids 3,99 milhões 805.508.681
Canal do Gu! 129 mil 46.646.604
Diana and Roma PRT 7,45 milhões 2.641.555.822
Graça Kids 1, 16 milhões 502.507.615
Ticolicos 119 mil 19.658.114
Mundo Bita 8, 6 milhões 10.293.684.415
Fonte: Canais do YouTube 8

Na fase de exploração do material, obteve-se como resulta-


do quatro categorias finais de análise, partindo da aglutinação
de temas recorrentes percebidos nas duas categorias iniciais,
que, certamente, se entrecruzam e foram assim nomeadas: re-
lações familiares, educação para o trabalho e consumo, desi-
gualdades de gêneros, imaginação.

8 Fran, Bel e Nina kids - Disponível em: https://www.youtube.com/


channel/UCE8tUeSgY2xlE5ZPCjl-S1w; Canal do Gu! – Disponível: ht-
tps://www.youtube.com/c/CanaldoGustavoMilantoni; Diana and Roma
PRT - Disponível em: https://www.youtube.com/channel/UCUtaE2y-
qrkOhml3cIhlGguw; Graça Kids – Disponível em: https://www.youtube.
com/channel/UCuacp9UPSyfb4643NJeAgFA; Ticolicos – Disponível em:
https://www.youtube.com/channel/UCWLNF6wlHEAin0kukYW0uow.
Mundo Bita – Disponível em: https://www.youtube.com/results?sear-
ch_query=mundo+bita. Todos os acessos para coleta das informações da
tabela foram realizados em 30/08/2021.

168
6.3.1 Sobre as categorias de análises
6.3.1.1 As relações familiares

Como já mencionado, de modo geral, no ambiente privado


da criança é a família quem primeiro recorre às mídias para
o próprio entretenimento e/ou trabalho e, em consequência
disso, para o entretenimento das crianças. Portanto, é previsí-
vel que a produção e o consumo dos conteúdos virtuais atra-
vessem as relações familiares de formas distintas.
Mais especificamente, quanto às análises dos conteúdos
audiovisuais da primeira categoria foi possível perceber uma
particularidade do mundo virtual de compartilhar as relações
familiares a partir da ideia central do YouTube, a saber, o uso
da plataforma para sua própria exibição. Em outras palavras,
pessoas comuns, em suas vidas reais, dentro de uma TV de al-
ta-tecnologia, produzindo conteúdos que serão assistidos por
uma rede incontável de outras pessoas. Nos termos mais atu-
ais, as redes sociais virtuais abriram as portas para que cada
família se apresente ao mundo como youtubers em ascensão.
Youtuber é o termo utilizado para as pessoas que se tor-
nam influenciadores digitais como profissão e passam a viver
do faturamento e publicidades do seu canal. Tal fenômeno da
sociedade hi-tech permite que crianças, jovens e adultos, re-
pentinamente e sem critérios definidos, passem a influenciar
milhares de pessoas conectadas às redes sociais. Essa influên-
cia, contudo, depende de uma interação que envolve aceita-
ção e agressividade destinadas às pessoas expostas nos canais
(BARBOSA, 2017).
Desse modo, parece pertinente apresentar reflexões acerca
169
de aspectos que incidem nas subjetividades a partir desse tipo
de interação social virtual e são promovidas e gerenciadas pe-
los pais de crianças que protagonizam os canais analisados.
Os canais alocados na categoria cujos protagonistas são
crianças até onze anos9, Fran, Bell e Nina Kids e o Canal do
Gu!, os pais não só estão presentes em praticamente todos os
vídeos, mas criam roteiros, coordenam as cenas, criam dra-
matizações e espetacularizam as brincadeiras em produções
caseiras e, nisso, as próprias relações familiares, ou pelo me-
nos a parcela da relação que pode atrair espectadores para o
canal, são exibidas como se fosse a vida real familiar.
No canal Fran, Bel e Nina, os vídeos apresentam brinca-
deiras entre mãe e filhas. Como em um programa de televisão
infantil, porém de forma caseira e artesanal, a mãe representa
papel similar ao da apresentadora, muitas vezes com produção
de figurino (roupas e adereços infantilizados), e junto com as
filhas explica a brincadeira, brinca, insiste quando elas pare-
cem desmotivadas, corrige comportamentos. Em cada vídeo
uma parte da casa é usada como cenário e tanto as meninas
quanto a mãe estão sempre bem colocadas diante da câme-
ra. Em alguns vídeos as crianças participam mais, em outros
a participação nas brincadeiras parece obedecer a um roteiro
pré-definido pela mãe. Há vídeos com exposição de situações
de choro da filha mais velha, Bel, relatando dificuldades na

9 O canal Diana and Roma Show será analisado separadamente, pois


possui características que o distancia dos outros dois canais da segunda
categoria.
170
escola10.
Nesse sentido, tanto a partilha da brincadeira, que pode-
ria representar importante momento na infância das crian-
ças quanto os momentos de acolhimento dos conflitos com
situações da vida escolar são transformados em publicidade
do canal, uma vez que o aumento de visualizações representa
possibilidades de monetização do canal.
Essa característica das tecnologias digitais, de tornar públi-
ca pessoas reais, parece ser o que mais impacta as relações fa-
miliares, quando pessoas que dividem a intimidade resolvem
compartilhar a vida e educarem seus filhos contando com a
mediação não apenas da câmera, mas, principalmente, com a
interação de milhares de pessoas conectadas.
Entende-se que para as crianças que participam da produ-
ção do canal, uma parte importante da relação familiar é false-
ada, uma vez que estão brincando com os pais, mas a intenção
do brincar está em produzir um registro audiovisual que atraia
outras crianças com as quais elas também não estão brincan-
do. Já para as crianças espectadoras, a brincadeira contém
o lembrete de que seus pais, além de não estarem brincando
com elas, ainda permitem que o entretenimento seja assistir à
representação de brincadeiras como se fossem reais, mas não
para elas.

10 Tal situação teve repercussão em outras redes sociais e em canais da


imprensa virtual brasileira, levantando a questão da exposição das crian-
ças nas redes virtuais e do trabalho infantil virtual.

171
6.3.1.2 Educação para o trabalho e o consumo

Valores correspondentes ao mundo do trabalho da socie-


dade capitalista em que vivemos, como alta produtividade,
competição, acumulação de bens, exploração da mão de obra
etc., são indissociáveis de quaisquer signos, produtos e rela-
ções culturais, uma vez que as formas de produção de trabalho
são condicionantes sociais e, nisso, constituem o âmago dos
processos de educação dos indivíduos partícipes da sociedade.
Nesse sentido, os canais infantis não estão isentos de rea-
lizarem a transmissão de valores que dizem respeito à adap-
tação ao trabalho e ao consumo, que é a forma predominante
de circulação das mercadorias e, portanto, de manutenção da
produção capitalista.
No entanto, nos canais em que as crianças são protagonis-
tas, as dinâmicas de intimidade familiar, de brincadeiras, de
tempo de produção, gravação e o faturamento com metas de
visualizações e publicidades explicitam um processo de edu-
cação para a aderência ao mundo do trabalho virtual, tanto
para as crianças youtubers como para as espectadoras.
Ressaltam-se dois aspectos referentes à educação para o
trabalho e o consumo percebidos nos canais analisados: a) a
própria disposição subjetiva das crianças utilizada como meio
de trabalho a ser consumido pela rede virtual; b) o trabalho
infantil de atuação para a publicidade da rede e de produtos
por ela veiculado.
A utilização, como meio de trabalho, da disposição subje-
tiva das crianças e das dinâmicas da vida real que a constitui
pode ser mais bem percebida nos canais em que as crianças
172
atuam como youtubers, ou seja, que produzem e comparti-
lham conteúdos, supostamente, da vida real, em seus ambien-
tes particulares, demonstrando interesses por brincadeiras,
brinquedos, afetos, imperfeições, desejos. Neste tipo de con-
teúdo, as crianças têm seus cotidianos modificados não ape-
nas pelo tempo de produção e gravação dos vídeos, mas pelo
tempo e atenção dedicados à interação virtual com os inter-
nautas, já que o sucesso dos canais depende do número de
visualizações, inscrições e, especificamente, de se manter a
identificação entre quem produz o conteúdo e quem o assiste.
Dessa forma, o trabalho realizado por uma criança youtuber
envolve colocar a subjetividade ao dispor do julgamento do
público com a finalidade de alcançar publicidade para si mes-
ma e, quem sabe, junto a isso, manter economicamente toda
sua família.
A segunda nuance, a do trabalho infantil de atuação e pu-
blicidade, está explicitada em canais como Diana and Roma
PRT, embora esteja presente também nos outros canais. O
canal é uma produção original americana, protagonizado por
Diana e Roma, seu irmão, e em muitos vídeos com a partici-
pação de seus pais11. A abrangência internacional é garantida
pela dublagem para vários idiomas, contudo, os diálogos são

11 Sobre o faturamento do canal: “O site SocialBlade, que anali-


sa este mercado, calcula que o canal de Diana renda entre 224 mil
e 3,6 milhões de euros por mês, o que dá um retorno entre 2,7 mi-
lhões e 43 milhões de euros por ano.” Trecho extraído do site por-
tuguês, disponível em: https://ionline.sapo.pt/artigo/648678/
os-mi-dos-que-nadam-em-brinquedos-e-faturam-milhoes?seccao=Portu-
gal_i. Acesso em 14/11/2021.
173
praticamente mímicos, com poucas falas entre os persona-
gens. Os vídeos são produções profissionais, cujas temáticas
são criadas explicitamente para a publicidade de brinquedos
da marca que carrega o nome da menina e outros brinquedos
industrializados, cujas marcas não aparecem, mas a publici-
dade de lojas que os comercializa está presente em alguns ví-
deos12.
Diferentemente dos outros canais analisados, em Diana
and Roma há um trabalho de interpretação profissional das
crianças, embora não se saiba em quais condições, já que os
vídeos não apresentam fichas técnicas, não têm descrição e,
em seu canal particular, Diana se apresenta como blogueira e
não como atriz.
O que se destaca é que o trabalho infantil utilizado nesses
canais e a publicidade dos brinquedos ficam dissimulados
para as crianças espectadoras, produzindo a falsa ideia de que
na vida das crianças youtubers, os adultos estão totalmente
disponíveis às brincadeiras e suas necessidades, tanto emo-
cionalmente quanto economicamente, valorizando a ideia de
que alcançar a fama e ser uma celebridade digital é garantir
uma vida melhor que a dos outros.
Além disso, a intensa quantidade de brinquedos e ambien-
tes decorados para as cenas dos vídeos, como se fossem par-
te da vida real das crianças, trabalha a favor da produção de

12 É recorrente nos vídeos a temática ser a ida às lojas para comprar brin-
quedos. Em um dos vídeos Diana e seu pai fazem uma festa para come-
morar a chegada dos produtos de sua marca, I love Diana, nos supermer-
cados Walmart nos Estados Unidos.
174
desejo pelo consumo de objetos, que tem menos a ver com o
brincar e mais com a padronização de desejos, objetos e sta-
tus social, facilitando, assim, a ideologia da correspondência
entre forma de trabalho, desejos particulares e circulação de
mercadorias.
A produção de correspondências entre meios de trabalho
(atuação das crianças), desejos e consumo, mediada pela tec-
nologia de alcance global, intensifica um tipo de educação
para um estado de subjetividade indiferenciada, difundida
pela ideologia do capitalismo.
Nos termos dos autores da Teoria Crítica da Sociedade, tal
processo se refere aos sistemas de valores da indústria cul-
tural13, que se constitui em técnicas de produção e veiculação
de uma lógica de despersonalização dos indivíduos. Por meio
da mesmice da produção e difusão de produtos padronizados,
a indústria cultural opera um esquema de interiorização da
dominação social na consciência, ao exigir uma regressão psí-
quica dos consumidores na adequação à falsa ideia de que os
produtos existem para atender às necessidades humanas em
privilégio das econômicas. Ou seja, no capitalismo, a indústria
cultural produz junto às mercadorias corpos e espíritos dis-
postos não só ao consumo irrefletido, mas a se tornarem in-
dústrias culturais de si mesmos (ADORNO; HORKHEIMER,
1985).

13 Adorno (1963/1986) esclarece que ao cunhar o termo Indústria Cultu-


ral, ele e Horkheimer pretendiam ressaltar a diferença entre os produtos
de uma sociedade massificada das expressões da cultura de massa ou arte
popular.

175
6.3.1.3 Desigualdades de gêneros

Considera-se gênero como uma categoria simbólica que de-


signa determinados atributos diferentes a cada um dos sexos
do ser humano, a partir de significados culturais apreendidos
ao longo do desenvolvimento pela criança (OSTERNE; SIL-
VEIRA, 2012).
A apreensão simbólica do que é permitido e negado para
meninas e meninos será manifesta num jogo de adaptação e
confronto entre o corpo, os discursos e os gestos das crian-
ças, numa intensa atividade de interpretação, ressignificação
e construção da própria expressão de gênero frente às imposi-
ções sobre o feminino e o masculino assumidas nas relações de
poder que perpassam a educação das crianças (FRÓIS, 2020).
Nesse sentido, os valores simbólicos presentes nos obje-
tos, discursos e divisão sexual das funções sociais percebidos
nos canais analisados não são passivamente assimilados pe-
las crianças espectadoras. Contudo, como são provenientes
de um conjunto de outros construtos sociais que organizam a
sociedade a partir da opressão de homens sobre as mulheres,
naturalizando tais características com justificativas biológi-
cas, a presença de elementos marcadores das desigualdades
de gêneros em produções para crianças e, sobretudo, feita por
crianças, corrobora um sistema que exige aos meninos uma
subjetividade capaz de cometer violência e às meninas uma
capaz de suportar a violência.
Sobre os aspectos de gênero percebidos nos canais, é possí-
vel destacar que no Canal do Gu!, cujos temas dos vídeos são
brincadeiras sobre o futebol, há certo movimento de descons-
trução de preconceitos presentes na cultura brasileira sobre
176
meninas não jogarem ou gostarem do esporte, por não serem
capazes. Tal movimento pode ser percebido pela participação
de meninas, amigas de Gu, da mãe e da irmã comentando so-
bre times e jogando bola com os meninos, gameplay e futebol
de botão. Ainda que seja importante considerar que as brinca-
deiras são parte de um conteúdo roteirizado, neste caso, pelo
pai do menino, portanto não expressam interações reais coti-
dianas na vida das crianças, parece um indicativo de mudan-
ças positivas de atitudes em relação à educação de meninos e
meninas.
Em contrapartida, no canal Diana and Roma PRT, o que
mais representa a indústria de brinquedos, é possível encon-
trar vários tipos de símbolos culturais que remetem às desi-
gualdades de gêneros, desde o excesso de adereços nas roupas,
objetos de maquiagem e produtos de beleza utilizados pela
menina, a divisão de brincadeiras consideradas tipicamente
de meninas e de meninos até a divisão das funções sociais do
trabalho num vídeo sobre brinquedos com temáticas de pro-
fissões, em que a menina aparece fantasiada de médica (fa-
zendo curativo), professora, enfermeira, cabelereira, artista,
cozinheira e o menino de engenheiro, bombeiro, astronauta,
policial, jogador de futebol.
Outros exemplos de desigualdades de gêneros contidos nas
músicas ou histórias bíblicas e dos desenhos animados dos
outros canais poderiam ser ressaltados, pois são símbolos ar-
raigados nas produções da cultura patriarcal. Contudo, o que
se ressalta é que as desigualdades de gêneros são construídas
a partir de valores e práticas nas relações culturais e, nisso,
podem ser desconstruídas culturalmente e essa parece ser
177
uma das potencialidades das redes virtuais, a saber, possibi-
litar às crianças o acesso a discursos que, por vezes, possam
ampliar suas percepções a partir de diferentes perspectivas e,
desse modo, incentivar novas combinações de elementos da
cultura que enfrente preconceitos enrijecidos socialmente.
Se para imaginarem outra realidade, que melhor corres-
pondam a um estado de consciência sobre as próprias poten-
cialidades e suas interações com o mundo, as crianças contam
com os diversos elementos da cultura, para num processo de
dissociação e depois associação em novos conjuntos transfi-
gurados, como ensinou Vygotsky (2014), o entretenimento
tecnológico para crianças pode bem alimentar esse repertório
imaginativo, quando trabalha em resistência às desigualdades
de todas as ordens.

6.3.1.4 Imaginação

A imaginação é pensada como categoria de análise dos ca-


nais selecionados por reunir aspectos que dizem respeito à
forma da produção criativa audiovisual e à temática da brin-
cadeira, que aparece como central nos canais protagonizados
por crianças.
Tais características de trabalho técnico criativo podem ser
percebidas nos canais da segunda categoria, em especial no
Mundo Bita e Graça Kids, que contam com produções artísti-
cas e técnicas especializadas.
Pode-se dizer que nos canais que apresentam animações,
contações de histórias e músicas, a mediação das mensa-
gens que compõem o conteúdo audiovisual é realizada pela

178
produção profissional de edições tecnológicas, que a partir da
junção do áudio, da imagem e dos efeitos especiais colocam
uma cena em ação. Tais produtos culturais (comerciais) reali-
zam, em parte, via tecnologia, um processo similar à complexa
atividade da mente de composição de diferentes elementos da
realidade em novas combinações que interessam à satisfação
particular criativa (VYGOTSKY, 2014).
Desse modo, a produção audiovisual imagina pelo especta-
dor porque foi imaginada por alguém, porque houve intenso
trabalho de transfiguração de conteúdo na forma reificada de
música, desenho e animação, do qual o espectador tirará pro-
veito para se distrair, mas também para ampliar seu repertó-
rio de imagens, discursos e informações.
As consequências da recepção excessiva dessa imagina-
ção pronta para as subjetividades infantis é o que Türcke
(2016) considerou que está nas bases da cultura do déficit de
atenção. Cuja excessiva estimulação audiovisual acarreta um
tipo específico de dependência em sensações que não podem
ser satisfeitas, já que são representantes de uma insatisfação
anterior e primária no psiquismo, mas, compulsivamente, de-
mandam novas sensações, num estado constante de dispersão
concentrada. Ou seja, crianças determinadas a se distraírem,
a não lembrarem e sem força psíquica o suficiente para ima-
ginarem.
Já do ponto de vista das crianças youtubers, ao menos no
momento que preparam e gravam os vídeos, as crianças se-
guem um roteiro coordenado pelos pais ou brincam mediadas
pela filmagem. Dessa forma, a brincadeira é permeada por as-
pectos do mundo do trabalho que concorrem com elementos
179
primordiais do brincar, que são o divertimento voluntário e a
imaginação (SALGADO, 2019).
Nesse sentido, a brincadeira, que é atividade integrante
do desenvolvimento da criança, num primeiro momento por
meio de operações motoras e depois imaginativas, fica limita-
da ao campo de alcance da câmera e ao roteiro que atraia mais
interações virtuais. Foi comum observar roteiros cujos temas
eram crianças jogando gameplays e usando efeitos especiais.
No primeiro caso, as crianças espectadoras têm acesso à tela
do game na tela de seu dispositivo digital e, no segundo, as
crianças youtubers somente têm acesso à brincadeira com-
pleta depois que ela é editada, como espectadoras da própria
imagem.
Ressalta-se que os recursos tecnológicos de efeitos espe-
ciais, utilizados em produções profissionais, estão disponíveis
em versões simplificadas e limitadas para serem utilizadas em
dispositivos móveis, acessíveis a muitas pessoas, atualmen-
te. Nos canais com crianças youtubers analisados, o mesmo
efeito especial foi utilizado por todos em situações diferentes,
indicando que a própria tecnologia virtual passa a fazer par-
te da suposta brincadeira, que só estará terminada depois da
edição, sem as crianças, portanto.
O efeito especial é o que determina o roteiro da brincadeira,
que já foi vista em outro canal, e, nesse sentido, talvez possa
ser dito que ele ocupa o lugar da imaginação. Contudo, uma
imaginação que nada cria de novo.
A imaginação, junto com a mimese, aparece nos escritos
de Walter Benjamin como matéria-prima da brincadeira, as-
sim como a memória é a matéria-prima da experiência (BEN-
180
JAMIN, 2002). Juntas, estas faculdades do pensamento, mi-
mese, imaginação e memória, mobilizam uma experiência na
infância capaz de perceber, de forma apaziguada, a novidade
das interações que a criança realiza a cada descoberta com o
mundo. Dito de outro modo, o medo diante do novo e, nisso,
o impulso para dominá-lo cresce na vida psíquica das crian-
ças ao passo que as mediações culturais exigem o controle e o
esquecimento da mimese, da imaginação e da memória – da
experiência com a novidade.
Vale dizer que nessa perspectiva, a experiência na infância
conta com a corporalidade da criança para se embrenhar nos
objetos e relações com o mundo.
Walter Benjamin, há tempos, diagnosticou o empobreci-
mento da experiência decorrente do ritmo imposto pela mo-
dernidade industrial capitalista (BENJAMIN, 1994). Desse
modo, a falta de interação social na infância e o empobreci-
mento das atividades imaginativas não podem ser atribuídas
unicamente aos fenômenos digitais, mas certamente, eles
contribuem para assegurar interações à distância e um tipo de
imaginação que, já na infância, age contra o sujeito em cons-
trução, no sentido contrário ao apaziguamento dos conflitos
que o medo suscita.

Considerações Finais

A relação entre a infância e a tecnologia atual – hi-tech e


incontornável – marca mudanças nas formas de perceber,
sentir, pensar e agir, que dizem respeito tanto ao domínio
do corpo da criança pela técnica quanto às possibilidades de
181
interação com as outras pessoas e com a cultura, condicionan-
do uma forma específica de subjetividade que ainda estamos
por conhecer os efeitos.
É certo que cada tempo histórico produz subjetividades
compatíveis com seu desenvolvimento técnico. Por meio de
um processo de apropriação das condições culturais e, simul-
taneamente, as produzindo é que os humanos são capazes de
estabelecer o progresso social, ora se adaptando às novas tec-
nologias ora se opondo aos usos irrefletidos que transformam
os meios econômicos em finalidades últimas da vida humana.
Os conteúdos audiovisuais e as novas tecnologias de in-
teração e entretenimento virtuais ocupam, cada vez mais, o
cotidiano das experiências infantis, indicando elementos da
materialidade cultural que podem servir para transformações
de valores de opressão, quando permitem o acesso ao conhe-
cimento e às produções criativas de forma mais democrática,
mas, muitas vezes, podem configurar dinâmicas de desapro-
priação subjetiva, ao submeterem as crianças e suas relações
afetivas à exposição da indústria cultural virtual. Diminuin-
do a distância da infância e do mundo adulto, por meio dos
valores do trabalho capitalista, da publicidade e do consumo,
perde-se as possibilidades de proteção e cuidado, já escassas e
não garantidas a todas as crianças.
Não se pretende apresentar conclusões de um fenômeno
com mudanças em curso em alta velocidade, mas é possível
dizer que a intimidade da casa, do corpo, dos sentidos e das
experiências familiares da criança não pode ser disposta aos
afetos desorganizados de interesse e agressividade de outras
crianças e adultos conectados, sob a justificativa de torná-las
182
adaptadas às novas tecnologias, quando, na verdade, o que se
deseja é alcançar as vantagens econômicas ou de fama prome-
tidas pelas plataformas.
Parece incontestável que as novas redes de entretenimento
possam ser usadas como meio de expressão de ideia, palavras
e encontros de modo prazeroso, principalmente, por aqueles
que já aprenderam que o mundo virtual também pode ser usa-
do contra as mesmas expressões. Este não é o caso das crian-
ças e, talvez, não valha arriscar que elas descubram sozinhas.

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187
7 Problemas de sono em adultos jovens: ex-
posição a luz azul e o uso de aparelhos ele-
trônicos como fatores perturbadores

Ana Maria Mazon Araújo


Gabriela Correia Teixeira
Ana Raquel de Oliveira
Michael Jackson Oliveira de Andrade

Este capítulo tem como premissa esclarecer sobre o sono e


a importância de manter a eficiência da sua qualidade, assim
como especificar as suas características em jovens adultos.
Considerando que vivemos em uma época na qual as expe-
riências da percepção temporal são compreendidas cada vez
mais de forma acelerada e repentina, nota-se uma impressão
social de que o tempo não é suficiente para a realização das
tarefas do nosso cotidiano. Ou seja, a valorização da produti-
vidade, algo que é bem característico de sociedades capitalis-
tas, gera continuamente consequências à saúde, e o sono pode
ser visto, muitas vezes, como uma perda de tempo ou algo que
deve ser evitado. Ainda assim, pretendemos destacar que o
sono possui um importante papel na manutenção da saúde e
do bem-estar das pessoas.
Diante desse cenário, existe a necessidade de demonstrar
que o sono é fundamental para a manutenção de diversas fun-
cionalidades do organismo, tanto biológicas, quanto psicoló-
gicas e sociais. É reconhecido que a fase da adolescência para
vida adulta apresenta um atraso biológico no início do sono, o
que pode fazer com que os adolescentes fiquem acordados até
188
mais tarde. Uma razão para essa mudança é a desorganização
de dois processos ou sistemas que estão envolvidos na regu-
lação do sono: o sistema de temporização circadiano intrín-
seco e o sistema homeostático sono-vigília. Estes fatores são
particularmente perceptíveis em costumes e diferentes estilos
de vida (horários de trabalhos; interação social; uso de apa-
relhos eletrônicos), pois o tempo necessário para o aumento
das atividades permite maior desorganização dos sistemas do
sono. É importante notar que frequentemente existe uma re-
lação bidirecional entre sono e saúde, e ter uma consciência
da complexidade dessa relação é útil ao avaliar o sono na prá-
tica clínica (BURCE; LUNT; MCDONAGH, 2017).
A avaliação do sono requer uma compreensão dos muitos
fatores que podem ter impacto sobre ele, sendo um deles a luz.
A luz é necessária para a vida, e a luz artificial é utilizada para
melhorar o desempenho visual e a segurança. Entretanto, há
uma preocupação crescente com os impactos potenciais da luz
na saúde e, especificamente, no sono (TAHKAMO; PARTO-
NEN; PESONEN, 2019). Estudos apontam grandes impactos
induzidos pela luz no sistema circadiano humano, por exem-
plo, sabe-se que a concentração/supressão de melatonina e
cortisol são influenciadas pela exposição à luz. Assim, a expo-
sição à luz à noite ou pela manhã afeta a fase circadiana dos
níveis de melatonina e cortisol, sugerindo um impacto na qua-
lidade de sono (BURCE et al., 2017; TAHKAMO et al., 2019).
Desse modo, o sono tem um papel importante a desempenhar
na saúde das pessoas, tanto a curto como a longo prazo.

189
7.1 Qualidade de sono em jovens adultos

O sono é um comportamento neurofisiológico natural do


ser humano, regulado pelo sistema nervoso autônomo, pelo
processo homeostático e pelo ritmo circadiano. O sono é, en-
tão, uma condição fisiológica de atividade cerebral, natural e
periódica, caracterizada pela modificação do estado da cons-
ciência, o qual é ligado diretamente a uma boa qualidade de
vida (MCNAMARA, 2019). Trata-se de um estado fisiológi-
co cíclico, que apresenta alguns estágios denominados REM
(movimento rápidos dos olhos) e NREM, cada um deles pos-
sui características comportamentais e fisiológicas específicas,
sendo que algumas podem ser demonstradas em traçados de
eletroencefalograma (FERNANDES, 2006).
Sabemos que a arquitetura interna do sono é um fator pri-
mordial para o acesso quantitativo de tempo e duração con-
forme sua ontogenia. Porém outro fator de suma importância
que controla a necessidade fisiológica, em termos quantitati-
vos e qualitativos do sono é o ritmo circadiano de sono e vigí-
lia. Tal ritmo ocorre em um período aproximado de 24 horas,
sendo controlado pelo sistema nervoso central e sob influên-
cia de Zeitgebers, que são elementos ambientais que auxiliam
na regulação do relógio biológico, tais como luz, temperatura
e fatores sociais (interação social; hora de alimentação; esti-
los de vida) (GEIB et al, 2003). Assim, os horários e a época
do ano em que as pessoas exercem suas atividades, como ir
à escola, trabalho e realizam tarefas de lazer, influenciam de
modo sincronizado os padrões comportamentais do sono.
Desse modo, considerando que o sono é influenciado por
190
diversas variáveis internas e externas ao sujeito, e que também
geram efeitos ao meio, é preciso compreender o que possibi-
lita um sono saudável. Primeiramente, o sono saudável pode
ser entendido como aquele adaptado às demandas individu-
ais, sociais e ambientais, proporcionando um bem-estar físico
e mental, além de estar relacionado mais com a sua qualida-
de (BUYSSE, 2014). Tal afirmativa fundamenta a ideia de que
deve existir uma adaptação homeostática do organismo (em
níveis quantitativos do sono) a qualidade de sono de modo
que seja benéfico aos processos clínicos, comportamentais e
cognitivos do organismo. Harvey et al (2008), apontam que
a qualidade do sono está associada à facilidade de acordar,
cansaço, coordenação, níveis de consciência, humor e crenças
perceptivas de fadiga e exaustão durante o dia. Essas carac-
terísticas podem ser observadas através de avaliações subje-
tivas do sono, envolvendo instrumentos de mensuração, por
exemplo questionários de qualidade de sono e diário do sono
(NEVES; MACEDO; GOMES, 2017).
Considerando nosso maior interesse em descrever carac-
terísticas sobre o sono de jovens adultos, trataremos de in-
divíduos que estão vivenciando uma transição entre a ado-
lescência e a fase adulta. Sobre a quantidade de sono relativa
a cada um desses estágios, pode-se observar que as crianças
geralmente precisam de 9 a 11 horas de sono, enquanto jovens
adultos necessitam de 8 a 9 horas, diminuindo conforme o en-
velhecimento (STEPHENS; GATCHEL, 2018). Bernardo et al.
(2009) apontam que sujeitos de 18 a 19 anos apresentaram
maior prevalência de poucas horas de sono em comparação
aos de 10 a 11 anos. Além disso, de acordo com Dijk e Duffy
191
(1999), há indícios de que a partir dos 21 anos a prevalência do
despertar precoce aumenta progressivamente. Sendo assim,
observa-se uma diminuição gradual da quantidade de sono no
decorrer do envelhecimento humano. Para compreender essa
mudança é preciso conhecer as fases de ontogenia do sono,
como por exemplo o período da adolescência. Entende-se que
se trata de uma fase marcada por diversas transformações
corporais, comportamentais e emocionais, e tem como uma
de suas características um atraso natural no horário de início
e fim do sono (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DO SONO, 2018).
Apesar da maior necessidade de sono, outras atividades so-
ciais como o trabalho, escola e lazer podem interferir nesse
padrão de comportamento.
Várias características sociodemográficas contribuem para
uma qualidade de sono saudável durante a fase de jovens
adultos. Para Felden et al. (2015), o baixo nível socioeconômi-
co também está relacionado a uma piora na percepção subjeti-
va da qualidade do sono e maior sonolência diurna. Isso pode
acontecer devido as condições inadequadas do ambiente em
que se mora e em que se dorme e da necessidade de fazer vá-
rias atividades que privam o sono, como estudar e trabalhar.
Porém, apesar de a literatura destacar um status socioeconô-
mico menos favorecido como um indicador perturbador da
qualidade de sono, existem pesquisadores que apontam para
uma direção oposta. Em um estudo feito por Bernardo et al.
(2009) em São Paulo, foi percebido que a duração do sono
apresentava uma diminuição com o aumento do nível socioe-
conômico. Ou seja, pode-se pensar que ter um poder aquisiti-
vo pode facilitar o acesso a meios que privam o sono durante
192
a noite, como a televisão, videogames e o uso contínuo da in-
ternet. Dessa forma, independente do grau socioeconômico,
sabe-se que este exerce influência no sono ao contribuir para
a manifestação de certos comportamentos.
Também existem evidências de que o sono inadequado
durante a vida adulta pode estar relacionado com vários pro-
blemas de saúde, como por exemplo, hipertensão, obesidade,
diabetes, funcionamento imunológico prejudicado, doenças
cardiovasculares, distúrbios do humor, neurodegeneração
(WORLEY, 2018). Para além do impacto biológico, a privação
do sono também possui uma associação com prejuízos cog-
nitivos e emocionais, tais como reconhecimento de emoções,
menor regulação hormonal e atratividade emocional (MCNA-
MARA, 2019). Também foi encontrado em um estudo, evidên-
cias sobre a influência do sono nos processos de memória e
plasticidade cerebral (KALIA, 2006). Dessa forma, pode-se
perceber que a qualidade do sono também afeta as interações
sociais, assim como o aprendizado.
Esses dados ressaltam o quanto o sono é necessário para se
evitar prejuízos na saúde. Sendo assim, é importante conhe-
cer os fatores que interferem na sua manutenção. Um deles
corresponde a idade e o uso de aparelhos eletrônicos, pois no
decorrer do desenvolvimento, os indivíduos apresentam mu-
danças maturacionais e sociais que afetam a arquitetura do
sono. Ademais, ter o sono reduzido pode ser visto como algo
comum diante das obrigações do cotidiano, enquanto outros
podem pensar que dormir muito é algo benéfico para a saú-
de. Destarte, ao se investigar sobre o sono e sua qualidade em
jovens adultos, é preciso observar, descrever e analisar seus
193
aspectos fisiológicos, psicológicos e sociais.

7.2 Sistema visual e Sono normal

A luz artificial é uma necessidade nas sociedades modernas.


Ela fornece iluminação quando a luz natural não está dispo-
nível, permitindo uma infinidade de funções após o anoitecer.
Em humanos, a informação visual é detectada pelo sistema vi-
sual (SV). O sistema visual humano do ponto de vista morfoló-
gico, neurofisiológico e perceptual possui estruturas e funções
bem delimitadas. Experimentos psicofísicos e comportamen-
tais mostram que muitos aspectos responsáveis pelo surgi-
mento da percepção visual humana (por exemplo, acuidade
visual, função de sensibilidade ao contraste, visão binocular,
dentre outros) dependem da estimulação externa provocadas
por estímulos fóticos e não fóticos (SANTOS; SIMAS, 2002;
ANDRADE et al., 2019).
Três vias neurofisiológicas do sistema visual participam
das respostas dos seres humanos à luz. A primeira pista in-
clui dois tipos de receptores na retina, os bastonetes e cones,
que respondem à intensidade e à frequência da luz e são res-
ponsáveis pela análise e formação de imagem, propriamen-
te dita. A segunda via envolve células ganglionares em liga-
ções visuais com núcleos do colículo superior do mesencéfalo,
tálamo, núcleos pulvinar e o córtex temporal inferior. Esse
caminho nervoso participa da identificação do espaço. A ter-
ceira via visual inclui um grupo de células ganglionares da
retina que corresponde à iluminação ambiente, têm ligações
para o núcleo supraquiasmático e participa no mecanismo de
194
sincronização de ritmos circadianos, especificamente do ciclo
sono e vigília (BERSON, 2003). Assim, a base anatômica do
sistema de temporização circadiano em mamíferos está na re-
gião dos núcleos supraquiasmáticos do hipotálamo, de modo
que aferências que incluem fotorreceptores na retina são res-
ponsáveis por receber e processar a informação luminosa.
As células ganglionares fotossensíveis (ipRGCs) estão loca-
lizadas em maior quantidade no centro da fóvea da retina com
diminuição em direção a periferia. Seus axônios projetam-se
para o núcleo supraquiasmático e outras áreas visuais subcor-
ticais envolvidas no arrastamento da luz (DACEY et al., 2005).
Os dendritos das ipRGCs recebem entradas de fotorreceptores
(cones e bastonetes) via conexões de células bipolares e amá-
crinas (HANKINS; PEIRSON; FOSTER, 2007). Estes achados
geram a hipótese de que células ipRGCs retransmitem sinais
de entrada visuais sensíveis a luminosidade em tempo circa-
diano sustentado. Assim, o estímulo não visual é detectado
pelas células ipRGCs, que contêm melanopsina e é transmi-
tido diretamente para o núcleo supraquiasmático (SCN) do
hipotálamo, responsável pela manutenção e controle homeos-
tático do sono (HANNIBAL et al. 2002). Contudo, o sistema
de ritmo circadiano faz parte de um complexo sistema visual
(MORIN; ALLEN, 2005).
A detecção de informações não visuais requer níveis de luz
mais altos em comparação com a informação visual (ZEITZER
et al. 2000). Além da intensidade da luz, o espectro e a dura-
ção da exposição à luz afetam as respostas e às informações
não visuais da luz, como por exemplo o sono. No entanto, a
contribuição individual de cada classe de fotorreceptores para
195
as respostas de irradiância é complexa (LALL et al., 2010).
Por exemplo, evidências mostram que a exposição à luz notur-
na brilhante suprime a secreção de melatonina endógena para
aumentar o estado de alerta e atrasar o sono (CAJOCHEN et
al., 2005). Como tal, a propensão para a exposição à luz da
tela à noite para suprimir a melatonina e aumentar o estado
de alerta poderia explicar como o uso da tela tarde da noite
pode afetar o sono. Ou seja, o uso controlado da tela de apa-
relhos eletrônicos antes de dormir pode evitar efeitos nocivos
sobre o sono. O item 1.4 deste capítulo versará mais sobre os
principais efeitos cognitivos e comportamentais causados pela
exposição a luz de comprimento curto.

7.3 Tipologia circadiana e Cognição: O papel da luz


7.3.1 Tipologia circadiana

As funções do organismo se alteram de acordo com a mu-


dança do tempo, ocorrendo variações entre estímulos e respos-
tas decorrentes do ambiente interno e externo (MARQUES;
MENNA-BARRETO, 1997). Nesse sentido, os processos cog-
nitivos sofrem influências periódicas no tempo, com a alter-
nância diária entre atividade e repouso (TOMOTANI; ODA,
2012). Essa visão rítmica dos mecanismos cognitivos nos per-
mite entender que a luz também possui um papel nos parâ-
metros neurobiológicos dos relógios biológicos (ADAN et. al,
2012; GRANADA et. al, 2013).
Como a maioria dos organismos, os seres humanos mos-
tram ritmos circadianos em diversos processos fisiológicos,
cognitivos e comportamentais (MITCHELL; REDMAN, 1993).

196
Nesse sentido, a depender da fase do ritmo de atividade, ou
seja, as preferências pelo tempo de vigília e sono, horário do
dia para realizar tarefas intelectuais e físicas, os indivíduos
podem ser classificados em diferentes cronotipos (ou tipolo-
gias circadianas), que tendem a permanecer estáveis no indi-
víduo. São eles: matutino, intermediário e vespertino. Sabe-se
que essa distribuição é influenciada por fatores individuais,
como idade e sexo, fatores ambientais, fotoperíodo perinatal e
a exposição a luz (ADAN et. al, 2012). Essa tipologia circadia-
na pode ser medida de forma confiável e demonstra ter uma
base biológica (DEYOUNG et. al, 2007) com variação do gene
PER3, apresentando um PER35/5 para preferências matutinas
e PER34/4 indicando preferências noturnas. Além disso, as di-
ferenças na expressão rítmica entre matutinos e vespertinos
podem ser encontradas em traços de personalidade, hábitos e
estilos de vida. Lembrem-se que bastonetes e cones inervam
ipRGCs e, por consequência, comportamentos circadianos
podem estar associados a estes mecanismos.
A descrição tipológica do ritmo circadiano é um importante
fenótipo relacionado aos componentes cognitivos. As influ-
ências das variações do tempo do dia no desempenho cogni-
tivo se diferem entre os indivíduos, especialmente durante
a noite biológica, o que sugere diferenças na interação entre
processos circadianos e homeostáticos. Essa interação não só
determina os níveis de sonolência e alerta, mas também afe-
ta funções cognitivas de ordem mais elevada (DIJK; DUFFY,
1992; GAGGIONI et. al, 2014). Deste modo, a luz pode afetar
processos do sono, da vigília e da cognição, por meio de efei-
tos de sincronização e mudança de fase no relógio circadiano
197
(CAJOCHEN et al., 2005; RAHMAN et al., 2014).

7.3.2 Luz e processos cognitivos

Uma série de estudos de neuroimagem investigaram me-


canismos cerebrais envolvidos no impacto da luz sobre a cog-
nição, utilizando tarefas de atenção, memória de trabalho e
expressões emocionais. Sabe-se que respostas neurocompor-
tamentais desencadeadas pela exposição à luz englobam me-
lhor alerta e desempenho. Estes processos mantêm-se sincro-
nizados entre atividades diárias e ritmos biológicos, mantendo
a organização temporal interna (SILVER; LESAUTER, 2008).
Dessa forma, a luz influencia o processamento de estru-
turas subcorticais envolvidas na regulação da excitação as-
sociadas ao processo cognitivo (GAGGIONI et. al, 2014;
VANDEWALLE; DIJK, 2013). Por exemplo, Schmidt et al.
(2010) realizou uma tarefa de atenção sustentada em dois pe-
ríodos, uma sessão no turno da manhã e outra noturna, em
indivíduos com cronotipos extremos, onde verificou-se pe-
quenas diferenças de desempenho entre sujeitos matutinos,
quando a pressão homeostática do sono é baixa. Em contras-
te, na sessão noturna, quando a pressão homeostática do sono
é maior, a vigilância global foi associada ao aumento de res-
postas.
Em resumo, pode-se supor que o processo circadiano mo-
dula o desempenho de funções durante os turnos da manhã e
da noite, além disso o sono possui impacto notável, mensu-
rável e benéfico sobre seu desempenho (GARCÍA et al., 2011;
RAMIREZ; GARCÍA; VALDEZ, 2012). Podemos descrever
198
algumas alterações, por exemplo: diminuição na velocidade
de processamento de acordo com a preferência do ritmo de
atividade e repouso; variações circadianas em alças visuoes-
pacial e fonológica da memória de trabalho; variações na hora
do dia na memória declarativa de curto e longo prazo; execu-
ção de simples tarefas são mais propensas aos efeitos da perda
de sono do que tarefas mais complexas, isto está relaciona-
do a ações compensatórias de domínios “cristalizados”; baixo
rendimento em função da segregação dos componentes como
uma função cognitiva global (RAMIREZ et al., 2012).

7.4 Luz azul e aparelhos eletrônicos

Por razões psicológicas e biológicas sabemos que a luz na-


tural satisfaz as necessidades humanas básicas, seja pela orga-
nização espacial e temporal da visão ou por receber estímulos
fóticos do ambiente para organização circadiana. Não é por
acaso que a luz artificial tenta imitar a luz natural, porém o
funcionamento da luz é limitado quando ela começa a causar
desconfortos cognitivos e comportamentais, além de distúr-
bios clínicos. Por exemplo, a exposição à luz de comprimen-
to de onda azul, em particular de aparelhos eletrônicos, pode
afetar o sono suprimindo a melatonina e causando excitação
neural.
Discutimos que a luz é um importante estímulo fótico para
manutenção do processo circadiano e continuadamente para
sincronização dos processos cognitivos. Contudo, é impor-
tante mencionar que o espectro de onda de luz visível pode
influenciar diferentemente os mecanismos visuais, cognitivos
199
e comportamentais. Ou seja, a luz de comprimento de onda
curto (por exemplo, azul 497 nm; verde 525 nm) suprime a
melatonina e aumenta o estado de alerta, enquanto a luz de
comprimento de onda longo (por exemplo, vermelha 660
nm; âmbar 595 nm) não tem efeito discernível sobre o sono
(CAJOCHEN et al., 2011). Fontes internas de luz azul são co-
mumente utilizadas em televisores, smartphones, tablets, sis-
temas de jogos, lâmpadas fluorescentes, lâmpadas LED (dio-
do emissor de luz) e monitores de computador. Figueiro et al.
(2016) observaram que níveis significativos de luz de compri-
mento de onda curta (azul) emitida por telas de computado-
res e tablets resultam em altos níveis de excitação cerebral e
aumento do estado cognitivo de alerta atencional. Evidências
clínicas e experimentais mostram que estados biológicos de
início e manutenção do sono noturno são influenciados pela
melatonina. A exposição à luz dessas fontes durante as horas
anteriores à hora de dormir habitual também pode diminuir a
sonolência subjetiva e objetiva (CAJOCHEN et al., 2011), pro-
longar a latência do início do sono (CHANG et al., 2015), e
diminuir o sono REM (CHANG et al., 2015) e o sono de ondas
lentas (SWS) (MUNCH et al., 2006). A partir disto é possível,
portanto, compreender que a exposição a luminosidade (luz
brilhante) no início ou período noturno suprime a síntese de
melatonina.
Apontamos que a iluminação geral e local deve ser coorde-
nada com a luminância média da tela, ponto focal da nossa
visão. Com uma faixa diária de iluminâncias entre 300-500
lux (dia), estudos apontam que a supressão de melatonina
pode ocorrer com menos de 1000 lux (ZEITZER et al., 2000).
200
Evidências sugerem que mudanças na sensibilidade à luz pro-
vocadas por telas favorecem uma reação de alerta (KRAHN;
GORDON, 2013). Cajochen et al. (2011) apontam que a expo-
sição durante 5 horas de luz de tela brilhante de laptops (5100
lux) de adultos pode reduzir significativamente e atrasar os
níveis de melatonina, aumentar o estado de alerta subjetivo
antes de dormir e atrasar o início do sono. Porém, Wood et
al. (2013) discutem que 1 hora de exposição a luz (40 lux) não
reduz os níveis de melatonina (WOOD et al., 2013). Já, Lewy
et al. (1980) demonstraram que a melatonina noturna era su-
primida com uma exposição à luz intensa de 2500 lux em hu-
manos. Por exemplo, resultados demonstram que a exposição
noturna a um LE-eBook atrasa a fase do relógio circadiano,
suprime agudamente a melatonina e tem implicações impor-
tantes para a compreensão do impacto de tais tecnologias no
sono, desempenho, saúde e segurança (CHANG et al., 2015).
O desconforto visual pode levar a uma série de sintomas
oculares (visão dupla, diminuição da força de acomodação e
convergência, diminuição da acuidade visual, da sensibilidade
aos contrastes e da velocidade de percepção), cognitivos e do
sono. Desse modo, é aconselhável que o uso de telas com valo-
res de iluminância incidente e refletância da superfície possua
uma faixa ajustável, automatizando o brilho da tela conforme
o sol nasce e se põe. É importante mencionar que as confi-
gurações de telas de aparelhos eletrônicos devem possuir ou
se adaptar ao dia e à noite conforme a localização geográfica
(latitude e longitude) de exposição natural a luz.
Em 2018, Shechter et al. verificaram se o uso de lentes de
bloqueio de luz azul por 2 horas, por 7 noites consecutivas,
201
imediatamente antes de dormir melhoraria o sono em indi-
víduos com insônia. Eles identificaram que o tempo de vigí-
lia relatado foi significativamente atrasado e o tempo total
de sono subjetivo médio (TST), a qualidade geral e a solidez
do sono foram significativamente maiores na condição de
bloqueio de luz azul. Outro estudo verificou que bloquear a
exposição à luz com óculos escuros pode contribuir para o
ajuste ao trabalho noturno, Sasseville et al (2006) testaram a
hipótese de que o espectro de luz com lentes laranja (bloque-
adores azuis) impediria a supressão de melatonina induzida
pela luz. Os autores utilizaram pulso de luz brilhante de 60
min (1300 lux) entre 01:00 e 02:00 h enquanto usavam ócu-
los de lentes laranja (condição experimental) e perceberam
maior atividade de bloqueio de luz azul quando comparado
com lentes cinza (condição de controle). Contudo, Vandewal-
le e Dijk (2013) apontam que vários fatores são responsáveis
por modular os efeitos circadianos provocados pela luz azul,
incluindo intensidade da luz, duração e comprimento de onda
e, possivelmente, dificuldade da tarefa cognitiva. A interação
entre os sinais circadianos e da homeostase do sono e o ge-
nótipo PER3 podem amplificar ou diminuir o impacto da luz
azul, provocando diferentes respostas de supressão do sono
de acordo com a tipologia circadiana, por exemplo.

7.5 Maneiras de gerenciar a luz azul

Até o momento compreendemos que o ciclo sono-vigília é


influenciado pela luz, principalmente na porção de compri-
mento de onda curto do espectro visível. Grande parte dos
202
instrumentos eletrônicos que utilizamos diariamente são
emissores da chamada luz azul. Por esta razão, torna-se ne-
cessário algumas intervenções destinadas a reduzir seletiva-
mente ou filtrar a exposição à luz de curto comprimento de
onda dos olhos nas horas anteriores à hora de dormir, a fim
de amenizar os efeitos adversos da luz no sono. Essas aborda-
gens podem incluir algumas práticas para adultos (SHECH-
TER, 2020):
• Uso de 2 dias consecutivos de Lentes marrons (Lentes
cinza) usadas das 22h00 às 12h00, durante o uso de
dispositivos luminosos portáteis (AYAKI, 2016);

• Uso de 2 semanas consecutivas de Lentes âmbar (Lentes


amarelas) usadas 3 horas antes de deitar (BURKHART,
2009);

• Uso de 2 semanas consecutivas de Lentes laranja


(Lentes claras) usadas às 20h antes de dormir (ESAK,
2017);

• Uso de 7 dias consecutivos Lentes laranja (Lentes


transparentes) usadas 18:00 até a hora de dormir
enquanto expostos a LED (VAN DER LELY, 2015).

Atenção, essas medidas são consideradas para planos con-


tingenciais de controle de lentes em episódio de sujeitos sau-
dáveis, clínicos psiquiátricos ou com distúrbios do sono. Po-
rém, a maneira mais simples de diminuir a exposição à luz azul
artificial é reduzir a duração de uso ou desligar o smartphone,
a TV e outros aparelhos entre 2 a 3 horas antes de dormir.

203
Considerações Finais

Nas últimas décadas, houve um declínio na duração média


e na qualidade do sono, com consequências adversas para a
saúde geral. Esse impacto negativo no sono pode ser devido
à luz enriquecida com comprimento de onda curto emitida
por esses dispositivos eletrônicos, visto que a exposição à luz
artificial demonstrou experimentalmente produzir efeitos de
alerta, suprimir a melatonina e alterar a fase do relógio bioló-
gico. Considerando a onipresença de fontes de luz enriqueci-
das de comprimento de onda curto e o potencial para defici-
ência generalizada do sono, mais estudos são necessários para
demonstrar como óculos ou bloqueadores de luz podem ser
utilizados ou indicados para facilitar a adaptação a exposição
de luz noturna.

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211
8 Ser mãe e professora: A dupla jornada do
trabalho remoto

Ana Lígia Abreu Bot


Giovanna de Almeida dos Santos
Júlia Gabriela Antunes Fonseca
Juliana de Oliveira Moreira
Pricila Scalioni Moreira
Michelle Morelo Pereira

O final do ano de 2019 foi marcado pela disseminação do


vírus respiratório, conhecido popularmente como coronaví-
rus, e com ele acarretaram-se mudanças sociais necessárias.
Dentre elas, o distanciamento social e o uso de máscara de-
veriam ser constantes, como regulamenta a World Health Or-
ganization (WHO, 2020). Para Silva (2020), o acontecimento
da pandemia gerou grande crise mundial, afetando os países
menos desenvolvidos para os mais desenvolvidos e, para além
disso, trouxe impactos econômicos, além de pessoais e subje-
tivos.
A pretexto dessas restrições, o âmbito do trabalho teve
mutações drásticas uma vez que os servidores precisaram
adaptar suas atribuições laborais ao ofício de forma remota,
também conhecido como home-office (BRIDI et al., 2020).
No que se refere ao trabalho do setor da cultura e educação
a Unesco afirma que milhões de discentes ficaram um longo
período sem aulas devido o fechamento das escolas e univer-
sidades. Por determinação do Ministério da Educação as aulas
presenciais só teriam uma retomada quando obtiver avanço
212
da vacinação, desse modo, as práticas dos docentes também
foram submetidas ao trabalho remoto emergencial (SOUZA,
et al., 2021).
Destarte a essa situação, diversas dificuldades aparece-
ram ao lecionador, como falta de aparatos tecnológicos para
a transmissão de suas aulas, a falta de orientação e doutrinas
sobre o uso da tecnologia para o trabalho, ter um local ade-
quado para essa prática, entre outras. Essa imposição subme-
teu esses profissionais a adaptarem ao ambiente virtual ines-
peradamente, tendo que improvisar no particular ambiente
doméstico, tendo que dividir entre o espaço familiar com o
profissional. Já em relação a docente que também é mãe acu-
mula-se mais adversidades, como a dupla jornada de trabalho
(SOUZA et al., 2021).
Segundo a pesquisa de Zibetti e Pereira (2009), constatou-
-se grande exaustão nas mulheres profissionais da educação,
cuja sua jornada de trabalho se estendia para além das horas
obrigatórias, com as correções de atividades, preparações de
material, englobando, assim, os cuidados com a casa e com
seus filhos. Ademais, foi observado que face às obrigações ex-
cessivas, as mulheres se sentiam tristes em pensar que esta-
riam colocando o trabalho acima de sua família, sentindo-se
também insatisfeitas quando se recusam a usar o horário ex-
tra, não se sentindo dedicadas o bastante.
Dessa forma, esse capítulo compreende uma temática
recente e que se apresenta como uma lacuna, visto que são
escassos os estudos nacionais e internacionais com o públi-
co-alvo de mulheres professoras que experienciam a mater-
nidade. Ademais, considera-se que as contribuições sociais e
213
científicas deste estudo abrangem fornecer, portanto, para a
sociedade brasileira compreensão de alguns dos fenômenos
psicológicos que afetam as mulheres mães professoras em tra-
balho remoto em um contexto pandêmico, bem como colabo-
rar para a formulação de estratégias de mitigação que incluam
trabalhar construtos positivos como forma de minimizar os
impactos negativos da pandemia na saúde mental dessas mu-
lheres mães professoras. Nesse sentido, o presente manuscri-
to teve como objetivo investigar as crenças disfuncionais face
a maternidade, o estresse, a ansiedade frente ao coronavirus,
e a resiliência de professoras que exercem a maternidade, por
meio de um estudo quantitativo.
As crenças disfuncionais são os elementos responsáveis
pelos comportamentos disfuncionais e sintomas do sujeito
(KNAPP; BECK, 2008). O estresse pode ser conceituado en-
quanto fenômeno psicossocial, que recai sobre o desempenho
neurofisiológico, ao suceder da percepção de uma ameaça real
ou imaginária que indica a competência de abater a integri-
dade física e/ou mental de um indivíduo (FARO; PEREIRA,
2013). Já a ansiedade frente ao coronavírus refere-se como
um sentimento indefinido e desagradável que abrange medo,
apreensão e caracteriza-se por ocasiões de tensão ou descon-
forto derivado de algo desconhecido ou estranho, sendo no
caso, o coronavírus (CASTILLO et al., 2000). Por fim, a re-
siliência configura-se na habilidade de adaptação positiva do
sujeito perante à uma situação adversa (ROOKE, 2015).

214
8.1 O trabalho remoto: dificuldades e possibilidades

Devido à pandemia da COVID-19, o Ministério da Edu-


cação (MEC) aderiu ao Ensino Remoto Emergencial (ERE),
transferindo as aulas presenciais para os meios de Tecnologia
de Informação e Comunicação (TICs) objetivando amenizar
os prejuízos educacionais (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO,
2020). No entanto, muitos são os paradigmas existentes nesse
contexto, um deles é a falta de políticas públicas de formação
docente que integrem o uso da tecnologia com o fazer pedagó-
gico (OLIVEIRA; SILVA; SILVA, 2020).
À vista disso, professores tiveram que reajustar o seu fazer
a esse novo modo de lecionar, incluindo as TICs e realocando
seu local de trabalho da escola para casa. Segundo Costa et al.
(2021), as principais TICs são: vídeos, web conferências e am-
bientes virtuais de aprendizagem, que apresentam um cenário
educacional flexível permitindo que os estudantes acessem os
materiais educacionais a qualquer tempo e lugar. Nesse sen-
tido, essa nova forma de labor acarreta cansaço e o sentimen-
to de angústia nos professores, tanto pelo trabalho excessivo
quanto pela falta de conhecimento no uso das TICs (RONDI-
NI; PEDRO; DUARTE, 2020).
Na pesquisa realizada por Bernardo, Maia e Bridi (2020)
71,8% dos professores entrevistados apresentavam dificulda-
des em desenvolver suas atividades de forma remota, sendo
atribuída ao fato de receber demandas de trabalho em qual-
quer hora e dia. Consequentemente a essa demanda excessiva,
pode-se apontar o aumento na carga horaria trabalhada, como
exemplificado no estudo de Oliveira e Pereira Junior (2020),
215
onde 82,4% dos pesquisados afirmaram trabalhar a mais no
ensino remoto do que no presencial.
Ademais, o estudo realizado por Oliveira e Pereira Junior
(2020) destacou que 17,4% dos professores respondentes não
possuíam acesso a recursos digitais, enquanto 66,2% alunos
eram atingidos por essa falta, demonstrando o impasse exis-
tente entre o planejar e materializar as aulas e o acesso a esse
material preparado. Além disso, os pesquisadores notaram
que grande parte dos docentes apresentavam dificuldades em
separar as questões do trabalho escolar com a do ambiente
doméstico.
Dessa forma, assim como citado por Silva e Maia (2021), a
realidade do ensino remoto não envolve apenas a dificuldade
ao acesso e uso das tecnologias de informação e comunicação,
mas também diz respeito a necessidade de uma readaptação
interna e externa, já que as atividades ditas como cotidianas
também tiveram que ser modificadas. Para Araujo et al. (2021)
trabalhar em casa representa sobrecarga e sobreposição de
atividades, principalmente para o público feminino, onde
o espaço da casa seria o “locus dos conflitos e dificuldades”
(p.11) existente entre o papel de trabalhadora, mãe e esposa.

8.2 Ser professora e o ato de cuidar

No final do século XIX, as mulheres conquistaram o direito


ao ensino superior e desde então tem se percebido uma ten-
dência à escolha de cursos e carreiras profissionais mais re-
lacionados ao cuidado e às funções domésticas. Desse modo,
percebem-se características subjetivas e papéis atribuídos a
216
homens e mulheres a partir de um ordenamento social con-
forme época, culturas e capacidade de incidência de determi-
nados grupos. Assim, os estudos de gênero consideram o fato
de que nenhuma sociedade designa às mulheres o valor as-
sociado aos homens, configurando-se, assim, um modelo de
hierarquia de predomínio masculino (PRÁ; CEGATTI, 2016).
As discussões sobre o cuidado foram inseridas por diversas
teóricas feministas desde a década de 60 a partir da relação en-
tre cuidado e gênero vigente na modernidade, isto é, o cuidado
apresenta-se como uma função da mulher. Assim, partindo-se
do pressuposto de que a família e a escola foram as institui-
ções responsáveis pela socialização de jovens e crianças, a mãe
e a professora se tornaram figuras de representatividade do
cuidado, cuja concepção vem sendo construída como uma ca-
racterística essencialmente feminina (MATTOS et al., 2013).
Desse modo, embora exista um movimento das mulheres
em direção ao trabalho remunerado, as atividades domésticas
como cuidado da casa e de seus moradores continuam sen-
do majoritariamente responsabilidades das mulheres, sendo
necessário que elas próprias tentem se adequar para atingir
um equilíbrio entre o trabalho remunerado e o doméstico não
remunerado (GUIMARÃES; PETEAN, 2012).
Diante disso, a mulher pode introjetar a obrigação do cui-
dado como um valor, além de apresentar um sentimento de
culpa se percebe suas vivências como diferentes das expectati-
vas impostas socialmente. O estudo de Macêdo (2020) destaca
ainda que, tratando-se de mulheres professores, identifica-se
também uma necessidade das docentes em reafirmar e que ser
mulher acadêmica não implica em não ser mãe.
217
Deste modo, o trabalho profissional e familiar ainda então
estruturados em torno de papeis definidos quanto ao gênero,
sugerindo-se as mulheres estejam mais ligadas ao ambiente
familiar e dependendo tempo maior ao cuidado. No caso das
mães professoras, somam-se fatores relativos ao estresse rela-
tivo à profissão, tais como baixa remuneração, falta de recur-
sos nas escolas, jornada de trabalho extensa, desvalorização
profissional. Mesmo a concepção de cuidado enquanto carac-
terística feminina, presente na sociedade, pode apresentar-
-se enquanto condição nociva para o bem-estar das mulheres
professoras (VANALLI; BARHAM, 2012).

8.3 A dupla jornada: Ser mãe e professora

A pandemia da COVID-19 gerou impactos na saúde men-


tal da sociedade em decorrência do isolamento social que foi
estabelecido. Macêdo (2020), ao citar Bittencourt, afirma que
muitos pais passaram a ter rotinas exaustivas quando foi ne-
cessário reorganizar suas rotinas e de seus filhos juntos no am-
biente doméstico, situação diferente das rotinas corriqueiras
dos ditos “tempos normais”. A partir do exposto, a autora ain-
da faz uma comparação de gêneros, ao citar como o trabalho
doméstico e responsabilização de toda família, no nosso país,
ainda fica à cargo das mulheres, podendo gerar sentimentos
de dor e opressão perante a hierarquia familiar socialmente
imposta.
Para além da sala de aula, o trabalho de docente também
inclui planejamento e preparação de materiais, comumente
realizado em um horário “extra”, que acaba ocasionando em

218
um trabalho excessivo que não condiz com a remuneração. No
caso das mulheres professoras, essas tarefas ainda se somam
os afazeres domésticos, podendo agravar de forma negativa
a qualidade de vida do profissional. É importante ressaltar
como em nosso país a docência da educação infantil e anos
iniciais do ensino fundamental é composta majoritariamente
por mulheres. Assim, as profissionais se veem divididas entre
o trabalho formal, as tarefas domésticas e, ainda, a família.
Todos esses fatores supracitados podem impulsionar situa-
ções de sobrecarga psicológica, fadiga física ou Burnout, falta
de tempo para lazer, descanso e saúde (ZIBETTI; PEREIRA,
2009).
Com o horário de trabalho não sendo mais tão bem deli-
mitado devido ao isolamento social, a jornada de trabalho da
mulher, que já era dupla ou tripla, ficou ainda mais exaustiva.
De acordo com a pesquisa de Borsoi e Pereira (apud Mace-
do, 2020), ao se comparar as mulheres e homens docentes,
as primeiras estão mais suscetíveis a jornadas mais longas de
trabalho, a dividirem necessidades profissionais com as do-
mésticas, a flexibilizarem o uso do tempo privado e a adoece-
rem psiquicamente. Ainda, é importante ressaltar a pesquisa
de Zibetti e Pereira (2009) trazem dados para demonstrar que
em casos de mulheres que possuem auxiliares para as tarefas
e para cuidar dos filhos, geralmente esse papel também é des-
tinado à outra mulher.

8.4 Relato de uma pesquisa

No período de outubro a dezembro de 2020 foi realizada


219
uma pesquisa com 203 professoras que exercem a maternida-
de e estavam em regime de ensino emergencial. O estudo foi
submetido ao Comitê de ética e seguiu as normas em pesqui-
sas com seres humanos conforme Resolução N° 466, de 12 de
dezembro de 2012. A coleta para o estudo foi realizada através
de um questionário criado no Google Forms mediante a con-
cordância prévia dos participantes na pesquisa, por meio do
preenchimento do Termo de Consentimento Livre e Esclare-
cido (TCLE). A coleta foi realizada por meio das redes sociais,
tais como, WhatsApp, Instagram e Facebook, de acordo com
a disponibilidade do participante.
Para a avaliação da resiliência foi utilizada a Brief Resilient
Coping Scale (BRCS), validade e traduzida para o português
(Escala Breve de Coping Resiliente – EBCR) por Ribeiro e
Morais (2010). Esse instrumento possui 4 itens em formato
Likert que variam de 1 (Quase Nunca) a 5 (Quase Sempre) a
fim de verificar a capacidade de lidar com o stress de modo
adaptativo. Assim, o resultado que varia entre 4 e 20 indica
uma capacidade de lidar com o estresse de modo adaptativo,
considerando que uma pontuação inferior a 13 e superior a 17
como um indicativo de, respectivamente, baixa e forte capaci-
dade de resiliência.
As crenças disfuncionais relacionadas face a maternidade
foram avaliadas por meio da Attitudes Towards Motherhood
Scale de Sockol, validada e traduzida para o português (Es-
cala de Crenças Disfuncionais face à Maternidade – ECM)
em estudo das pesquisadoras Costa et al. (2018). Essa escala
apresenta 3 fatores, cada um composto por 4 itens: (1) Cren-
ças Relacionadas com o Julgamento dos outros; (2) Crenças
220
Relacionadas coma Responsabilidade Materna; (3) Crenças
Relacionadas com a Idealização do Papel Materno. Desse
modo, são respondidos 12 itens respondidos em uma escala
de respostas de seis níveis que variam de 0 (Discordo Sempre)
a 5 (Concordo Sempre). Resultados com pontuações altas in-
dicam crenças mais disfuncionais face à maternidade.
Já para a avaliação do estresse será utilizada a Perceived
Stress Scale (PSS-10) de Cohen, Karmack e Mermelsteinm
(1983), adaptada e traduzida para o português (Escala de Es-
tresse Percebido) por Luft et al. (2007), além de ter sido apli-
cada em uma mostra de professores no estudo de Machado et
al. (2014). Esse instrumento avalia a percepção do indivíduo
sobre a falta de controle e a imprevisibilidade dos eventos da
vida experenciados no último mês. Para isso, constitui-se de
10 itens do tipo Likert que variam de 0 (Nunca) a 4 (Sempre).
Por fim, a ansiedade será avaliada pela Coronavirus Anxie-
ty Scale (CAS), traduzida para o português (Escala de Ansie-
dade devido ao Coronavírus) pelo pesquisador Padovan Neto
et al. (2021). O instrumento é composto por 5 itens a serem
respondidos em escalas tipo Likert de cinco pontos, variando
de 0 (nada) a (quase todos os dias) tendo em vista as experi-
ências das duas últimas semanas. Assim, pontuações elevadas
em um item específico ou na escala total (≥ 9) podem ser indi-
cativos de sintomas problemáticos.
Os dados foram analisados por meio do software JAMOVI.
As idades das participantes variaram de 23 anos a 69 anos. A
maioria reside em Minas Gerais (61%). Ao responderem sobre
sua cor ou raça, 62,9% das mulheres se declararam brancas,
25,2% pardas, 6,4% pretas. Com relação a sua composição fa-
221
miliar, 70,4% das mulheres são casadas e 55,4% possuem ren-
da familiar mensal acima de R$5.439,21. No que tange o tra-
balho, 36,9% das professoras lecionam na graduação, 22,7%
no ensino médio, 35,5% no ensino fundamental. Além disso
71,4% possuem vínculo empregatício com instituições públi-
cas.
No que diz respeito a maternidade, todas eram mães de
pelo menos um filho(a). 73,6% das mães possuíam filhos que
estavam tendo aulas remotas e destas 64,1% contribuíam com
as atividades escolares dos filhos. No que tange os afazeres
domésticos, todas as mulheres mencionaram ter ajuda nesse
tipo de atividades, dividindo-a com companheiros (as), fami-
liares, ajudantes e/ou filhos mais velhos.
Os resultados indicaram, ainda, que 40% das professoras
trabalham mais de oito horas por dia e 44,6% mencionaram
que não possuíam um espaço adequado para trabalhar em
casa, e 72,1% responderam que possuem instrumentos apro-
priados para executar o seu trabalho em casa. Além disso,
87,1% das mulheres participantes consideraram que se sen-
tem sobrecarregas trabalhando em casa. Em complemento,
30,5% das mulheres não conseguem ter tempo para hobbies
ou lazer e 23,2% só conseguem ter tempo em períodos de fé-
rias e/ou feriados.
Outra questão levantada refere-se à apresentação de diag-
nóstico de algum transtorno mental e/ou do comportamen-
to considerando o início da pandemia. Das professoras par-
ticipantes 71% informaram não possuir nenhum diagnóstico.
Porém, 29% das participantes mencionaram pelo menos um
diagnóstico, dentre eles, Transtorno de Ansiedade Generali-
222
zada (TAG), Depressão, Transtorno Obsessivo Compulsivo
(TOC) e Transtorno de Pânico.
No que tange as variáveis estudadas crenças disfuncionais
face a maternidade, estresse, ansiedade frente ao coronavírus
e resiliência, as médias de resposta foram respectivamente
2,76 (DP =1,11), 1,86 (DP = 0,50), 0,87 (DP = 0,98) e 3,35
(DP = 0,91), em um indicativo de resultados medianos para
as crenças disfuncionais face a maternidade e para o estresse.
Além disso, denota-se baixos níveis de ansiedade frente ao co-
ronavírus e altos níveis de resiliência.
Por fim, foi verificado ainda a diferença entre as médias de
resposta para o grupo de mães professoras que consideraram
que estavam sobrecarregadas trabalhando em casa. Obser-
vou-se que as mulheres que indicaram estar mais sobrecar-
regadas apresentaram médias maiores de ansiedade frente ao
coronavírus (t(200) = -2,04, p = 0,04) e estresse (t(200) =
-2,37, p = 0,02) do que as mulheres que informaram não estar
sobrecarregadas. Por outro lado, o grupo de mulheres que ma-
nifestou não estar sobrecarregadas trabalhando em casa apre-
sentaram médias referentes a resiliência superiores (t(200) =
2,41, p = 0,02) ao outro grupo.

Discussão

O presente estudo teve como objetivo investigar as crenças


disfuncionais face a maternidade, o estresse, a ansiedade fren-
te ao coronavírus, e a resiliência de professoras que exercem
a maternidade. Tais dados foram obtidos e outros pontos im-
portantes também foram verificados, como a sobrecarga fe-
223
minina e as condições do trabalho remoto. Relaciona-se assim
com os estudos anteriormente publicados e citados.
O primeiro ponto a ser apresentado é o fato de o estudo ter
demonstrado resultados medianos para as crenças disfuncio-
nais face a maternidade e estresse e indicado baixos níveis de
ansiedade frente ao coronavírus e altos níveis de resiliência.
Esses achados podem ser correlacionados com os estudos re-
centes que consideram que experiências estressantes ampla-
mente variadas geram na maioria dos indivíduos um padrão
estável de funcionamento adaptativo, ou resiliência, após um
estressor (PRATI; MANCINI, 2021), sugerindo, assim, que a
maioria das pessoas mantém sua resiliência. Além do mais,
a relação encontrada no estudo entre sobrecarga / ansiedade
frente ao coronavírus e sobrecarga/resiliência vão ao encon-
tro com estudo anterior de Robinson et al. (2021), no qual os
resultados confirmaram que nos meses iniciais da pandemia
foi associado a um aumento significativo dos sintomas vincu-
lados à saúde mental, por outro lado, parece ter havido, nesse
público, um crescente nas características de resiliência.
Parte da amostra declararou ter algum diagnóstico psi-
cológico, o que vai ao encontro de pesquisas anteriores que
mencionam a presença de sentimentos frequentes de tristeza
e depressão em 40% da população adulta brasileira, e sensa-
ção frequente de ansiedade e nervosismo relatada por cerca de
50% das pessoas (BARROS et al., 2020).
No que se refere a sobrecarga, a maioria das mulheres par-
ticipantes consideraram que se sentiam assim trabalhando
em casa, sendo que menos da metade da amostra total tra-
balhavam mais de oito horas por dia. Tal achado se associa
224
com o estudo de Oliveira e Pereira Junior (2020), citado ante-
riormente, onde 82,4% dos pesquisados afirmaram trabalhar
a mais no ensino remoto do que no presencial. Relacionado
a isso, ainda foi possível observar na pesquisa que 30,5% das
mulheres não conseguem ter tempo para hobbies ou lazer. Ob-
serva-se assim, que o trabalho remoto acarretou o sentimen-
to de sobrecarga nas mulheres professoras que consequente-
mente apresentam menor tempo para a prática de atividades
prazerosas e de autocuidado.
Além disso, 44,6% das professoras apresentaram que não
tinham um espaço adequado para a prática remota. Outros
estudos já haviam identificado essa problemática, demons-
trando que parte dos docentes também não haviam um lugar
apropriado para trabalhar em casa (ARAÚJO et al., 2021; OLI-
VEIRA; PEREIRA JUNIOR, 2020). Esses achados remetem a
falta de delimitação da fronteira entre vida privada e produ-
tiva, facilitando assim o aumento da carga horária trabalhada
e a diminuição dos demais afazeres pessoais o que corrobora
com o sentimento de sobrecarga.
O trabalho com os afazeres domésticos é outro ponto a ser
discutido e que se relaciona com a sobrecarga feminina. His-
toricamente, é comum que as mulheres estejam acostumadas
com a rotina de cuidar de casa e, ainda, dos seus filhos, não
considerando assim esse trabalho como uma tripla ou dupla
jornada. Todas as mulheres do estudo mencionaram ter aju-
da nesse tipo de atividade e a maioria contribuíam com as
atividades escolares dos filhos. Segundo Guimarães e Petean
(2012), o cuidado da casa e com seus moradores continuam
sendo atribuídos em maior grau a mulheres, sendo que elas
225
tentem a se adequar para realizar o trabalho remunerado e o
doméstico. Diante disso, pode-se inferir que apesar das par-
ticipantes receberem ajuda de seus familiares e marido, elas
ainda realizam a maior parte das atividades, que no contexto
remoto se sobrepõem a carga horária de trabalho do lecionar.
Todos os sujeitos podem ser educados para exercerem o
cuidado em suas vidas, porém considerar-se-á que, para tan-
to, é necessária a construção paralela de uma sociedade não
assentada no paradigma patriarcal (KUHNEN, 2014). A pro-
dução do binarismo homem-mulher naturaliza padrões esta-
belecidos socialmente, isto é, estabelece-se uma operação de
regulamentação da qual não proporciona um estranhamento
para com uma instância hegemônica e exclui qualquer outras
possibilidades e alternativas de estar no mundo (KRITSCH;
VENTURA, 2018). Por conseguinte, urge uma política funda-
mentada na autonomia das mulheres, a qual possibilitaria a
criação de alternativas para que estas possam fazer suas pró-
prias escolhas em vez de se conformar com determinadas ex-
pectativas e exigências vigentes.
Ainda assim, cabe-se evidenciar que a amostra da pesquisa
era composta majoritariamente por mulheres professoras de
graduação com renda familiar mensal acima de R$5.439,21.
Sobre esse público, Fabbro e Heloani (2010), retratam que ao
investigarem a condição dessas mulheres, era muito exigido
delas mesmas uma performance de um tipo ideal inalcançá-
vel de maternidade, e ao perceberem que não era compatível
com a realidade, estas transpareciam frustação e culpa. Dessa
forma, professoras demonstraram uma necessidade de serem
reconhecidas para além da função mães, mas também, como
226
pesquisadoras que lutam para alcançar seus objetivos e proje-
tos que vão além dos seus filhos. Diante disso, a amostragem
da pesquisa ainda carece de uma atenção especial que talvez
o estudo não tenha conseguido captar e que também se rela-
ciona com as múltiplas jornadas de trabalho e a sensação de
exaustão.
Diante do exposto, ressalta-se a ideia dos autores Oliveira,
Silva e Silva (2020) trazem uma nova perspectiva de que a
partir da experiencia vivenciada perante o ensino remoto os
professores poderão transformar o seu fazer digitalmente,
explorando as potencialidades existentes no uso da tecnolo-
gia para o aprendizado, repensado seu modo de atuação. Os
conteúdos aprendidos e desenvolvidos como recursos didá-
ticos não serão excluídos das práticas docentes nos retornos
presenciais, mas sim, farão parte das práticas docentes como
conhecimento adquirido.

Considerações finais

O presente capítulo buscou trazer contribuições acerca do


papel do trabalho docente mediado por tecnologias durante
uma situação pandêmica, com o enfoque nas professoras que
exercem a maternidade. Espera-se que esse capítulo possa tra-
zer importante contribuições sobre os processos relacionados
as crenças disfuncionais face a maternidade, estresse, ansie-
dade frente ao coronavirus, resiliência e percepção acerca da
sobrecarga de trabalho de mulheres que assumem diferentes
papeis e responsabilidades, exercendo múltiplas jornadas de
trabalho e tendo que conciliar com as atividades do lar e da
227
maternidade.
Portanto, este trabalho mostra-se relevante uma vez que
ocorrem diferentes mudanças na forma do trabalho com o
ensino remoto emergencial, que afetam a rotina das mães e
de outras pessoas envolvidas na dinâmica familiar. Assim, as
mulheres que são mães e possuem um trabalho fora do am-
biente doméstico precisaram conciliar todas as tarefas, que
além de trabalhosas, podem acarretar outras consequências
no cotidiano delas. Ademais, é preciso enriquecer os estudos
realizados com as profissionais da educação no nosso país, le-
vando em consideração as suas condições singulares. Sabe-se
que no país a profissão do professor é desvalorizada e deman-
da grande esforço, uma vez que a educação no Brasil não rece-
be investimentos suficientes.
É importante ressaltar, ainda, algumas limitações apresen-
tadas no estudo. A primeira limitação refere-se ao fato que a
pesquisa se realizou integralmente online, e acessível apenas a
uma parcela de docentes que possuíam recursos tecnológicos
suficientes, restringindo, assim uma amplitude amostral com
diferentes realidades socioeconômicas. A segunda diz respei-
to ao uso apenas de medidas quantitativas para a coleta de
dados. Sugere-se estudos que realizem coletas com métodos
combinados. Pesquisas futuras devem, ainda, realizar estu-
dos longitudinais para acompanhar os aspectos psicológicos
das mães professoras ao longo das intensas mudanças sociais,
econômicas e sanitárias e que afetam diretamente as práticas
de trabalho, as rotinas e o cuidado com o lar e filhos (as). Além
disso, deve-se estudar estratégias protetivas para gerar me-
lhores condições para as professoras que são mães.
228
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235
9 Homossexualidade e Catolicismo:
a via-sacra da autoaceitação

Matheus Lucas de Oliveira Pinto


Aline Gomes Martins
Jonathan Marques Oliveira

“Ninguém vai poder querer nos dizer como amar”


(Johnny Hooker)

A religião católica, de modo geral, apresenta crenças sobre


formas de ser e estar no mundo que estão intrinsecamente
presentes na cultura e interferem cotidianamente nas relações
intra e interpessoais. Historicamente, o catolicismo propor-
cionou uma construção de preceitos e normas que estabele-
cem o que é “certo” e o que é “errado” embasados em concep-
ções de santidade e pecado. Assim, muitos fenômenos sociais
foram sendo atravessados por princípios católicos ao longo do
tempo, dentre os quais, destaca-se as relações de gênero e se-
xualidade (SILVA & BARBOSA, 2016).
Desde seus primórdios, a igreja católica desenvolveu um
olhar negativo para a sexualidade, relacionando-a como algo
mau, a ser evitado e, por muito tempo, reduzindo-a como ape-
nas necessária à procriação. Dessa forma, o catolicismo foi
exercendo um grande controle sobre os sujeitos a fim de sus-
tentar o seu poder ao longo de sua existência (BUSIN, 2008).
A partir do pressuposto foucaultiano, compreende-se que
essa relação das instituições – nesse caso, das instituições
religiosas – funcionam como dispositivos capazes de exer-
cer um controle dos corpos e da sexualidade (FOUCAULT,
236
1976/2020). Apoiada na verdade bíblica para justificar a fun-
ção natural do sexo, a igreja sempre enxergou a sexualidade
humana a partir da dualidade feminino/masculino, controlan-
do o sexo matrimonial, que por seu caráter sagrado, teria sua
prática limitada à continuação da espécie humana (DANTAS,
2010). Foucault (1977/2020) ressalta que através do controle
dos corpos, a igreja criava mecanismos disciplinares para con-
trolar a sexualidade. Um desses mecanismos, que estabeleceu
uma forma de controle rígida sobre a vida dos fiéis, foi a di-
fusão do Sacramento da Confissão, com o objetivo de regular
os desejos dos fiéis, principalmente em relação à sexualidade.
Constata-se que, através da prática da confissão, buscava-se
extrair dos sujeitos aquelas informações que lhes eram mais
íntimas, de maneira a ampliar o controle, não somente do ato
sexual em si, mas de todas as “insinuações da carne”: desejos,
pensamentos, intenções, imaginações. Tudo precisava ser dito
(FOUCAULT, 1976/2020, p. 21).
Diante de tanto controle, a sociedade foi sendo marcada por
uma visão que legitimava apenas as relações entre homens e
mulheres, de modo que a heterossexualidade foi sendo esta-
belecida enquanto uma predisposição natural, analogamente
à concepção binária de gênero, constituindo suas formas de
organização social e reforçando preconceitos e discriminações
aos indivíduos que rompem com essa perspectiva (POMBO,
2017).
Dessa forma, a discussão sobre a homossexualidade per-
maneceu marginalizada por muitos séculos, sendo constan-
temente condenada e julgada socialmente, uma vez que só se
compreendia a sexualidade com base no que a igreja dizia. O
237
advento da Modernidade e do Iluminismo, entretanto, apre-
sentaram uma primeira possibilidade de avanço na forma de
se pensar a sexualidade humana. Esses movimentos permiti-
ram um avanço da ciência e do uso da razão, fazendo com que
a discussão sobre a sexualidade se tornasse mais ampla e pos-
sível, desvinculando-a, aos poucos, do poder católico, cons-
truindo um olhar mais acentuado para a pessoa e não para as
normas religiosas (TOLEDO; PINAFI, 2012).
Ainda que, a partir de então, pôde ser observado evoluções
na concepção social da sexualidade humana, a relação da igre-
ja com a homossexualidade, permeada pela noção de pecado,
pela condenação e opressão aos homossexuais, deixa conside-
ráveis marcas na leitura social, de modo que os estigmas cons-
tituídos no seio da cultura cristã recaem sobre este público
ainda nos dias de hoje (TOLEDO; PINAFI, 2012).
A homossexualidade, portanto, sempre esteve atravessada
por uma série de questionamentos, chegando a ser tratada en-
quanto doença durante muito tempo, até chegar na compre-
ensão atual de que esse fator constitui uma orientação sexual,
que não pode ser tratada ou modificada (RIBEIRO; SCORSO-
LINI-COMIN, 2017).
Apesar dos esforços contemporâneos dos movimentos so-
ciais para promover a compreensão e discussão sobre esse
fenômeno, o julgamento ainda permanece muito evidente,
uma vez que a sociedade se encontra incorporada a uma cul-
tura essencialmente patriarcal e heteronormativa. Esse fator
pode desencadear uma série de sofrimentos, violência e ex-
clusão aos homossexuais. (RIBEIRO; SCORSOLINI-COMIN,
2017). De acordo com Zanatta et al (2018), a dimensão social e
238
individual desses sujeitos é perpassada por vulnerabilidades.
No que concerne ao social, elas se apresentam pela violência,
que aparece de forma implícita ou explícita no âmbito social
e familiar; e na dimensão individual pelo conflito interno ge-
rado na tentativa de conciliar seus desejos com os anseios so-
ciais e pela própria construção cultural da sexualidade. Toda
essa cultura acaba gerando uma série de preconceitos, que faz
do Brasil um país extremamente violento contra a população
homossexual, assumindo o topo do ranking dos países onde
mais se matam pessoas pertencente à comunidade lésbica,
gay, bissexual, travesti, transexual, queer, intersexual, asse-
xual e de outras orientações sexuais, identidades e expressões
de gênero (LGBTQIA+) no mundo, segundo os dados da Or-
ganização Não Governamental Transgender Europe (TGEu,
2018).
Em relação ao catolicismo, mesmo que algumas visões
mais progressistas por parte de alguns grupos católicos em
nosso país ajudassem na criação de movimentos de acolhi-
mento dentro das igrejas, como a Associação da Diversidade
Católica, criada em 2006 no Rio de Janeiro, a posição oficial
da igreja mantem-se embasada na sua interpretação bíblica
literal, contribuindo, ainda, para que se mantenha uma per-
cepção pecaminosa e condenatória da homossexualidade. O
Catecismo da Igreja Católica, que é um livro construído na dé-
cada de oitenta como uma forma de sintetizar a fé católica sob
vários aspectos e diretrizes, diz que:

§ 2357. A homossexualidade designa as relações


entre homens ou mulheres, que sentem atração se-
239
xual, exclusiva ou predominante, para pessoas do
mesmo sexo. A homossexualidade se reveste de for-
mas muito variáveis ao longo dos séculos e das cul-
turas. A sua gênese psíquica continua amplamente
explicada. Apoiando-se na Sagrada Escritura, que
os apresenta como depravações graves, a Tradição
sempre declarou que ‘os atos de homossexualidade
são intrinsecamente desordenados’. São contrários
à lei natural, fecham o ato sexual ao dom da vida.
Não procedem de uma complementaridade afetiva
e sexual verdadeira e, em caso algum podem ser
aprovados. (Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil - CNBB, 2000, p. 610)

Tal colocação oficial católica deixa claro sua visão sobre a


homossexualidade. Nos demais parágrafos do Catecismo, ela
afirma, ainda, que os indivíduos homossexuais, por apresen-
tarem essas tendências de maneira inata, devem ser acolhi-
dos, não sendo alvo de qualquer tipo de discriminação injusta,
uma vez que para estes sujeitos tal fator já se constitui en-
quanto uma provação durante suas vidas e, portanto, são cha-
madas a viver a castidade (CNBB, 2000).
Ao analisar a história da relação da Igreja com os homosse-
xuais, a posição atual de acolhimento parece ser contraditória,
tendo em vista que, busca-se acolher estes sujeitos, colocan-
do-lhes uma condição: deixar de viver a sua própria sexua-
lidade, a fim de que estes possam viver a “perfeição cristã”
(CNBB, 2000, p 611).
“Estas pessoas são chamadas a realizar a vontade de Deus
240
na sua vida e, se forem cristãs, a unir ao sacrifício da cruz do
Senhor as dificuldades que podem encontrar por causa da sua
condição” (CNBB, 2000, p 610-611). Ou seja, a presença do
sofrimento, a partir destas leituras, acompanhará a vida dos
sujeitos que se assumirem homossexuais, sendo eles cristãos
– convidados a anular a sua sexualidade – ou não cristãos –
desaprovados e, consequentemente, julgados pelas suas ex-
periências dissidentes. Ademais, a passagem em destaque
apresenta como a igreja católica pode ser vista enquanto um
refúgio para os homossexuais.
O impacto dessas concepções e posicionamentos são fatores
que influenciam na forma como muitos indivíduos se relacio-
nam com o fenômeno da homossexualidade (BUSIN, 2008),
principalmente em um país como o Brasil, onde 50% dos ha-
bitantes se declaram católicos, segundo pesquisa do Datafolha
e em 2020. Todo esse destaque e tradição católica interfere na
representação social da homossexualidade, que ainda é asso-
ciada a algo errado e condenável, sustentando, assim, a discri-
minação e o preconceito, que afeta negativamente, na forma
como a população homossexual se percebe e se posiciona no
mundo (MARQUES, 2014).
Assim, o sujeito que reconhece sua homossexualidade pode
enfrentar dificuldades significativas em seu processo de au-
toaceitação, uma vez que enfrenta conflitos com o social e
conflitos pessoais, principalmente quando inserido em uma
realidade onde é destacado e transmitido valores e crenças
essencialmente vindos da religião, que afirma que viver sua
(homo)sexualidade livremente é incorreto (BUSIN, 2008).
O processo de autoaceitação, portanto, compreendido a
241
partir da relação dos conceitos de autoimagem e autoconceito,
diz respeito a maneira como o indivíduo percebe a si mesmo
e se define em relação a sexualidade. As adversidades encon-
tradas nesse processo, interfere diretamente na qualidade de
vida destes sujeitos. Ressalta-se que a visão sobre a homos-
sexualidade, construída culturalmente, impacta diretamente
na autoaceitação, tendo em vista as consequências que leitura
social traz para suas vivências desses sujeitos (BUSIN, 2008).
Ceará e Dalgalarrondo (2010) ressaltam que o julgamento
e discriminação que se revelam no contexto social em que o
indivíduo homossexual está inserido, favorece o desenvolvi-
mento de transtornos psíquicos, como a depressão e a ansie-
dade, baixa autoestima, autoimagem negativa, autodeprecia-
ção e a baixa autoaceitação. E além disso, outros fenômenos
que são frutos da homofobia também podem interferir nesse
processo de autoaceitação, tais como os altos níveis de violên-
cia, homicídios, o desemprego, a exclusão social (OLIVEIRA,
2018).
Toda essa realidade revela que a presença do sofrimento é
quase inevitável no decorrer desse processo e que, em níveis
acentuados, podem promover efeitos como a autopunição e
até mesmo o adoecimento mental (ZANATTA et al, 2018).
Dessa forma, ao se pensar em tais consequências e relacio-
ná-las a maneira como esse fenômeno ainda é incompreen-
dido pela comunidade social, torna-se importante considerar
as interferências da igreja católica nessa construção, onde os
grupos conservadores fazem constantes movimentos que re-
sistem em reconhecer os diversos modos de relacionamen-
to e estruturas familiares, desencorajando os sujeitos a se
242
relacionarem livremente com a própria sexualidade
(MARQUES, 2014; POMBO, 2017).

9.1 Método

Trata-se de um estudo qualitativo e exploratório, com o


objetivo de compreender as interferências do catolicismo no
processo de autoaceitação de sujeitos homossexuais.
Como uma forma de buscar a informação diretamente com
a população pesquisada, em um encontro mais direto, optou-
-se pela pesquisa em campo, que se mostrou relevante para
alcançar os objetivos propostos, uma vez que para tal, pare-
ce ser fundamental abrir espaços de escuta a esses sujeitos
(GONSALVES, 2001). Salienta-se que o trabalho de campo foi
precedido por um levantamento bibliográfico preliminar que
possibilitou a melhor delimitação dos objetivos da pesquisa.
Como ferramenta metodológica para a produção de dados
utilizou-se o Grupo Focal, uma vez que este “representa uma
fonte que intensifica o acesso às informações acerca de um fe-
nômeno, seja pela possibilidade de gerar novas concepções ou
pela análise e problematização de uma ideia em profundida-
de.” (BACKES et al, 2011, p. 439). Sabe-se que para a compo-
sição do grupo focal, é necessário que os integrantes possu-
am entre si ao menos uma característica comum importante
(BACKES, 2011). Nesse sentido, o grupo foi composto por in-
divíduos autodeclarados homossexuais que possuíram ou ain-
da possuem uma vivência na religião católica.
Os participantes foram acessados através da divulgação nas
redes sociais, onde se inscreveram a partir de um formulário
243
on-line. Os Grupos Focais aconteceram de maneira on-line
através de uma plataforma digital. O encontro presencial foi
inviabilizado pelas medidas restritivas sanitárias de conten-
ção do novo corona vírus. Desse modo, foi adotado a media-
ção de tecnologias digitais, que diante do contexto pandêmico
se tornou um recurso fundamental para a continuidade das
práticas de pesquisa e extensão, principalmente aquelas en-
volvendo seres humanos, em que se torna fundamental as in-
terações via diálogo e comportamento. Salienta-se que a re-
alização dos Grupos Focais por meios digitais permitiu que
sujeitos situados em diferentes cidades e contextos pudessem
participar, além de se sentirem menos expostos, em virtude
da temática trabalhada. Ampliar as possibilidades de partici-
pação contribui para a riqueza da pesquisa e para que fosse
possível acessar mais sujeitos e ofertar um espaço de escuta
e reflexões. Acredita-se que esse formato de produção de co-
nhecimento, em destaque no período de pandemia, tenha mo-
dificado as formas de acesso a sujeitos de pesquisa, coleta de
dados e consequentemente produção de conhecimento, rever-
berando para o futuro.
No total, nove integrantes participaram da pesquisa, sendo
sete homens e duas mulheres, com idade entre 18 e 40 anos.
Destaca-se que, dentre os homens, quatro são ex-seminaristas
e um ainda se encontra-se no processo de formação para o
sacerdócio dentro de um seminário católico religioso. Com o
grupo foram realizados um total de três encontros, cujos temas
de discussão foram, respectivamente: 1) A relação da igreja
católica com a homossexualidade; 2) A relação da sociedade/
família com a homossexualidade; e 3) A relação intrapessoal
244
com a homossexualidade, com enfoque na autoaceitação.
Para a análise do material empírico, utilizou-se da análise
de conteúdo temática, conforme proposta por Bardin (2004).
Esse método permite a possiblidade de verificar hipóteses e/
ou questões e, ainda descobrir o que está por trás dos conteú-
dos manifestos, ou seja, analisar para além do que é comuni-
cado (MINAYO, 2002). Dessa forma, a análise foi organizada
em três etapas, a saber: 1) pré-análise – momento de orga-
nização do material e sistematização das primeiras ideias; 2)
exploração do material – fase de análise e codificação dos da-
dos, onde construiu-se unidades de registro dos conteúdos te-
máticos encontrados na narrativa dos participantes e 3) trata-
mento dos dados – momento onde os resultados são tratados
e interpretados, resultado na composição de três categorias
temáticas em concordância com o fenômeno analisado.
Salienta-se, ainda, o cumprimento de todos os procedimen-
tos éticos para o desenvolvimento de pesquisa com seres hu-
manos.

9.2 Resultados e Discussão

Conforme mencionado, a partir da análise dos dados co-


letados no grupo, foram desenvolvidas três categorias temá-
ticas, separadas de uma forma didática, mas que se articu-
lam entre si para responder aos objetivos da pesquisa, sendo
elas: 1) A Igreja Católica e Homossexualidade: contradições
e o (não) acolhimento; 2) A igreja como espaço de “fuga” da
homossexualidade; e 3) O processo de autoaceitação frente a
realidade social.
245
9.2.1 A Igreja Católica e Homossexualidade:
Contradições e o (não) acolhimento

Ao se depararem com o tema gerador ‘catolicismo e ho-


mossexualidade’, os participantes do grupo, de modo geral,
demostraram discordar fortemente dos posicionamentos da
igreja católica em relação a homossexualidade, apontando
que existem contradições dentro da instituição que revelam
uma falsa ideia de acolhimento e respeito:

Para mim, há uma tentativa de pintura de acolhi-


mento que no fundo não se acontece, que não se
realiza realmente. (B);
Essas falas que se tem de que nós somos filhos de
Deus, que tem que respeitar, é da boca pra fora
mesmo: Não existe nada de acolhimento. (H)

Essa “pintura de acolhimento” (B), de acordo com Peixoto


(2020), é resultado do discurso ambivalente da igreja católica
que “vacila entre o acolhimento e a rejeição da homossexuali-
dade” (p. 172) e que limita o tratamento sobre o respeito para
com essa população, uma vez que não há uma legitimação das
experiências que estão desacordo com a ‘lei moral’. Assim, a
autora ressalta que a igreja é contraditória ao manter sua po-
sição de condenação à homossexualidade e ao mesmo tempo
dizer acolher os homossexuais.
Diante desse debate sobre acolhimento, houve uma tenta-
tiva, por parte de dois participantes, de fazer uma separação
da igreja entre a “igreja institucional” (M), representada pelo

246
Papa, doutrinas e regras eclesiásticas; e a “igreja do dia a dia”
(M), representada pelas vivências pessoais e pela relação com
as suas comunidades e as pessoas que fazem parte dela. Essa
diferenciação aparece como uma maneira de tentar amenizar
a discussão sobre o não acolhimento dentro da religião, apre-
sentando que, apesar da instituição mostrar uma visão pre-
conceituosa e condenatória sobre a homossexualidade, para
estes participantes, existe uma outra realidade que vai além
dessa percepção e que pode ser vivenciada na prática cotidia-
na:

A gente não precisa esperar a acolhida por par-


te da hierarquia. E aí, fazendo essa separação
mesmo: da igreja instituição que é milenar e que
a gente sabe que não vai ser tão fácil qualquer
mudança; mas também esse olhar de que a gente
pode ter uma prática paralela que permita viven-
ciar a sua fé de uma forma tranquila. (T)

Observa-se que a existência de uma “igreja cotidiana” só se


faz necessária porque a “igreja institucional” coage e controla
as subjetividades, colocando regras que produzem sofrimen-
to e opressão, principalmente em relação a homossexualida-
de (MAIO, ROSSI, 2021). Em vista disso, foi verificado uma
oposição de certa parte do grupo a essa iniciativa de tentar
compreender a igreja a partir dessa diferenciação. Estes afir-
maram não experimentarem uma real acolhida em suas rea-
lidades e vivências, ressaltando a negligência da religião com

247
o tema: “Eu só discordo um pouco porque eu penso que não
há como fazer uma diferenciação muito grande: há um ilu-
são de diferenciação. [...] Até que ponto é possível diferenciar
uma igreja instituição dessa outra igreja acolhedora?” (B)
Esses questionamentos trazem à tona como o discurso
ambivalente da igreja se apresenta na realidade dos sujeitos,
fazendo com que estes indivíduos se sintam muitas vezes de-
sorientados, buscando estratégias para conseguir ocupar um
espaço na vida da igreja, mesmo diante da falta de acolhimen-
to (PEIXOTO, 2020). Para os integrantes que ainda possuíam
uma vivência ativa na religião católica, uma estratégia obser-
vada foi o exercício de relativização de muitos aspectos e posi-
cionamentos da igreja que tenham um cunho preconceituoso
e excludente: “Relativizei tudo, ou a grande parte de tudo.
[...] para mim, a minha relação é com o Cristo e a igreja é só
um meio que está aí.” (M)
Há, principalmente, uma relativização ao que a igreja traz
de negativo em relação a homossexualidade. Por outro lado,
há uma valorização de aspectos e/ou posicionamentos que se
mostrem mais inclusivos e acolhedores, especialmente quan-
do estes são expressos por pessoas que representam a insti-
tuição, como padres e bispos: “Dois grandes exemplos, que é
o padre Júlio Lancelotti e também o padre Luiz Correia que
é jesuíta: realmente eles nos representam, é essa igreja que
eu acredito, que está ali em função de quem tá excluído.” (T).
Novamente, a relação de ambiguidade pôde ser observada
a partir da fala desses sujeitos, pois ao mesmo tempo que re-
lativizam a instituição, ainda estão intimamente ligados a ela,
deixando claro que estão em um processo de luta contra esse
248
controle interno que a igreja os impõe. Assim, dentro desse
processo, há uma busca em priorizar as experiências positivas
em relação às experiências negativas, ideia que corrobora com
a pesquisa de Ribeiro e Scorsolini-Comin (2017) que aponta
que até mesmo diante das restrições colocadas a algumas pes-
soas em suas comunidades, é possível observar a importância
de fazer parte delas. Dessa maneira, verifica-se que viver atu-
ante na igreja e se mostrar útil, pode se apresentar como uma
forma de amenizar os sentimentos de culpa e se sentir acolhi-
do por quem o pune.
Ainda dentro da discussão sobre o acolhimento na igreja
católica, foi apresentado ao grupo o trecho do Catecismo da
Igreja Católica que fala sobre a homossexualidade, exposto na
introdução. Diante deste texto, os integrantes expressaram
oposição e aversão, afirmando não se sentirem representados:
“O meu sentimento quando eu leio hoje esse trecho do cate-
cismo é repugnância. Por que? Porque é como eu disse antes:
quando se condena o ato, condena a mim mesmo.” (H)
Para uma das participantes, de maneira mais significativa,
foi observado o controle sob o qual a mesma se encontrava
diante desse posicionamento: “Hoje em dia esse trecho me
machuca muito. Já foi um refúgio, já foi algo que mostrava
que eu estava na igreja obedecendo os mandamentos dela,
mas hoje eu vejo como uma prisão, da qual eu tenho tentado
me libertar” (Z).
A partir dessas falas, observa-se o quanto o controle dos
corpos e da sexualidade exercido pela instituição católica ain-
da “aprisiona” os sujeitos homossexuais, de modo a refletir
na maneira como estes se veem e se definem. Os mecanismos
249
disciplinares acabam regulando os desejos e castrando a sexu-
alidade. Uma vez que os atos homossexuais são condenados
pela igreja, muitos sujeitos formados dentro dessa realidade,
introjetam a crença de que é errado viver sua (homo)sexuali-
dade. (FOUCAULT, 1976/2020; BUSIN, 2008).
Por fim, observou-se que outro fenômeno que reflete dire-
tamente na discussão da falta de acolhimento no espaço reli-
gioso, é fato da igreja católica se permanecer omissa e não ofe-
recer espaço para dialogar com a diversidade: “Aqui na minha
cidade eu nunca escutei ninguém falar sobre esse assunto,
nenhum padre, ninguém que está no meio da igreja, não se
fala!” (R).
Atualmente, mesmo que a igreja católica tenha suaviza-
do seu discurso excludente e homofóbico, percebe-se que se
mantêm muitas dificuldades para que ela possa ter um diá-
logo mais aberto com a comunidade LGBTQUIA+, fato que,
segundo Peixoto (2021) pode ser uma das principais causas
para se explicar a crescente perda de fiéis católicos. Assim,
enquanto se insistir em esquivar dessas questões, “a falta de
acolhida e reconhecimento continuará gerando intolerância,
ódio e violência” (PEIXOTO, 2021, p. 176).

9.2.2 A igreja como espaço de “fuga” da homossexuali-


dade

A maioria dos participantes afirmaram que em algum mo-


mento de suas vidas tiveram, ou ainda têm, uma participação
muito ativa dentro da igreja católica. Essa presença na vida
religiosa pôde ser observada desde muito cedo na vivência

250
destes, revelando-se de maneira mais expressiva no período
entre a adolescência a juventude. De acordo com o Ministério
da Saúde (2017), é nesse mesmo período que os questiona-
mentos e vivências sobre a sexualidade aparecem de manei-
ra significativa, juntamente com as mudanças corporais. Tais
questões podem ser provocadoras de angústias, que se tornam
ainda mais intensas para aqueles que se percebem diante de
desejos homoafetivos, ou seja, que experimentam uma sexu-
alidade diversa daquela considerada “normal” na sociedade.
Muitos integrantes do grupo, portanto, apresentaram uma
aproximação da igreja católica justamente nesta época, onde
os questionamentos sobre sua homossexualidade passavam
se tornar mais presentes e, de certa forma, mais incômodos.
Quatro participantes explicitaram que a aproximação deles
com a religião serviu como uma “fuga” ou negação da própria
homossexualidade, como elucidado por uma das integrantes:
“E aí na igreja eu acabei encontrando um ponto de fuga.” (Z)
Observa-se, ainda, que quatro dos participantes do grupo
eram ex-seminaristas, enquanto um deles se encontrava no
processo formativo em um seminário religioso. O seminário,
aparece como uma experiência concreta dessa “fuga” da ho-
mossexualidade:

A religião foi um ponto de fuga da minha homos-


sexualidade. Eu fui pro seminário, fiz filosofia, fi-
quei cinco anos no seminário. (H)

Eu fui para o seminário, ainda aos 15 anos [...]


e nesse lugar de fuga foi justamente onde eu me
251
construí. (B)

Não vou mentir que a instituição também foi algo


para poder talvez – não diria uma fuga – mas eu
diria uma negação: “É isso! Eu vou para lá. Lá eu
não vou ter esses pensamentos, eu não vou querer
isso. (P)

Em vários momentos, os participantes ex-seminaristas evi-


denciaram o quanto a experiência dentro do seminário impac-
tou suas vidas, em especial no na sexualidade. Estando dentro
dessa realidade, estes se viam sob um controle da instituição
onde a (homo)sexualidade era silenciada, ou pelo menos, vivi-
da de forma escondida.
Benelli (2006), analisando o seminário católico conforme a
concepção foucaultiana de poder, ressaltou o quanto este é um
espaço de práticas disciplinares, de produção e modelagem
de subjetividades que são validados pelas suas normas, leis e
discursos que promovem os valores hegemônicos e silencia os
corpos que fogem à regra heteronormativa. Segundo o autor
o discurso nestes espaços tenta modelar e disciplinar os semi-
naristas. Assim, existem aqueles que, de fato, introjetam tais
normas e acabam vivenciando sofrimentos expressados pela
culpa, autopunição, autopoliciamento, autoimagem negativa,
e aqueles que resistem a esse processo de modelagem e reco-
nhecem a própria homossexualidade, encontrando maneiras
de vivenciá-la de forma oculta dos demais (BENELLI, 2006;
MAIO & ROSSI, 2021).
De acordo com as experiências dos participantes que já
252
estiveram no seminário, um número muito grande de semi-
naristas são homossexuais e isso, por si só, não deveria ser
visto como um problema, mas como um ponto de ampliação
da discussão, uma vez que é uma realidade que se apresenta
nesses espaços, com grande potencial para gerar sofrimentos
para esses sujeitos:

Nós sabemos que, no seminário, muitos dos que


estão lá são gays. É um problema? Não é. O pro-
blema da questão é como isso não é acolhido. Eu
me descobri lá dentro e para mim, me descobrir
dentro do seminário foi torturante [...] porque a
cada momento que eu ouvia que eu deveria ser ce-
libatário. (H)

Uma pergunta que se pode fazer é: Por que, então, que os


rapazes católicos que reconhecem sua orientação homosse-
xual sentem-se atraídos pelo sacerdócio e vão para os semi-
nários? Uma das possíveis respostas, segundo Lima (2017),
é que, ao entrar no seminário seguindo as regras e disciplina
do celibato, estes sujeitos se livram da necessidade de se ex-
plicar sobre o porquê não tem namorada ou não se casam. O
seminário acaba sendo um espaço onde não haverá lugar para
dúvidas e ninguém vai questionar sobre a sua sexualidade. No
caso de mulheres, pode ocorrer o mesmo através da vivência
da vida consagrada.
Percebe-se, portanto, que essa tentativa de “fuga” da co-
brança social em ter um relacionamento heterossexual, se
analisada ainda mais amplamente, pode ser observada não
253
somente através da experiência nos seminários e dos conven-
tos, mas também, através da vivência e participação intensa
na vida da comunidade religiosa da qual fazem parte, como
fica explicitado na fala de uma das integrantes:

Eu poderia dizer assim: ah, eu tô na igreja. ‘E ela


não namora por quê? Ah, porque ela é uma beata.’
Então, eu preferia que as pessoas me vissem como
a beata, como a que reza demais, do que como lés-
bica. Então foi dessa forma que eu encontrei um
ponto de fuga, uma forma de me esconder. (Z)

9.2.3 O processo de autoaceitação frente a realidade


social

Entende-se, aqui, a autoaceitação enquanto um processo,


visto que para o grupo, de um modo geral, reconhecer sua
orientação sexual e vivenciá-la de maneira saudável, aceitan-
do sua forma de ser e estar no mundo, necessita de tempo,
conforme evidenciado pela fala de um dos participantes: “O
meu processo de autoaceitação foi um processo que gastou
muito tempo” (M)
No entanto, a relação temporal está vinculada a outro pon-
to, ainda mais significativo, ressaltado pelos participantes: o
processo pode ser doloroso, permeado de angústias e sofri-
mentos: “O processo de aceitação, de autoaceitação é uma
questão que demora, que gasta tempo e que, na maioria as
vezes é bastante doloroso também.” (T)
Para Busin (2008), as dificuldades e sofrimentos enfrenta-
254
dos nesse processo surgem a partir do próprio contexto social
em que o sujeito está inserido, dos aspectos culturais presen-
tes, que afetam na forma como estes se veem e se relacionam
com o mundo. Dessa forma, ressalta-se que o catolicismo fun-
ciona como um grande influenciador na construção da autoi-
magem de gays e lésbicas. Então, estes sujeitos formados em
seio católico tendem a construir uma autoimagem negativa,
como se fossem errados e sem valor. Peixoto (2021) ainda
enfatiza que enquanto a igreja se manter negligente e em si-
lêncio, persistirá o sofrimento provocado pelo sentimento de
culpa e a noção de pecado daqueles que possuem vínculo com
o catolicismo ou, então, são criados por famílias tradicional-
mente católicas.
Dessa maneira, pôde ser observado que os integrantes do
grupo, no geral, vivem numa busca cotidiana pela autoacei-
tação. Para alguns, as angústias e sofrimentos que aparecem
durante o processo, chegam a comprometer sua saúde mental
e até mesmo ocasionar desejo de “cura” e “reversão sexual”.
Para Antunes, (2016), os esforços de esferas da sociedade para
tentar compreender a causa da homossexualidade, só ajuda a
reforçar a ideia de que existe apenas uma sexualidade normal
e natural: a heterossexualidade. Assim, as demais sexualida-
des passam a ser vistas como anormais e subdesenvolvidas,
abrindo espaço para interpretações de que estas podem ser
tratadas ou corrigidas. Esse fenômeno pôde ser observado na
vivência de alguns dos participantes, sendo exposto, até mes-
mo, a “vontade de ficar no armário”:

Nos dias ruins, as vezes, eu fico pensando “que


255
bom seria se eu não fosse” (lésbica) porque seria
um problema a menos para eu lidar [...] Então, eu
tô nesse processo ainda. Tem dias que eu tô muito
bem comigo mesma e tem dias que eu tô querendo,
as vezes, até voltar para o armário. (Z)

Para Ceará e Dalgalarrondo (2010), muitos sujeitos homos-


sexuais possuem grande dificuldade em aceitar sua própria
identidade sexual, tendo em vista todo contexto de sociabi-
lização em que estes internalizam, como crenças errôneas e
preconceituosas sobre a homossexualidade. Em vista disso,
identifica-se a homofobia internalizada, que gera movimen-
tos de baixa autoaceitação, baixa autoestima, autodepreciação
e dificuldades psicossociais. A complexidade em lidar com os
questionamentos socais e individuais acaba gerando conflitos
para alguns sujeitos, fazendo com que muitos optem por não
revelar sua homossexualidade, se esforcem em ocultá-la du-
rante a vida ou então vivam em um embate entre revelar e
voltar a esconder.
Além disso, o grupo revela que os preconceitos sociais e a
homofobia geram sentimentos de receio, principalmente para
aqueles vivem em cidades pequenas do interior, onde há uma
predominância do catolicismo e de pensamentos mais ortodo-
xos em relação a sexualidade:

Quando eu namorei a gente não andava de mãos


dadas, tinha essa dificuldade de apresentar o na-
morado – é uma grande dificuldade. Quando a
gente tá numa cidade pequena isso é mais difícil.
256
Isso passa pelo processo de aceitação, porque é
uma dificuldade que gente mesmo enfrenta e, jus-
tamente, porque nós fomos criados dentro dessa
moral. (H)

A minha cidade é muito pequena [...] a grande


maioria das pessoas daqui são católicas e então,
o que a igreja prega e determina, vai refletir na
sociedade [...] e eu acho que a questão do precon-
ceito, fica ainda mais complexo em uma cidade
menor. (Z)

Para Oliveira (2018), a homofobia, fortalecida dentro e fora


do lares, ajuda a desencadear, dentre os indivíduos de orien-
tação homossexual, estes sentimentos de não pertencimento
e medo. Isso porque os preconceitos constituídos socialmen-
te geram contextos de violência que produzem efeitos signi-
ficativos nas vidas destes, como a exclusão, o desemprego, o
adoecimento psíquico. De acordo com o Ministério da Saúde
(BRASIL, 2008, p. 570) “todas as formas de discriminação,
como no caso da homofobia, devem ser consideradas como si-
tuações produtoras de doença e sofrimento.” Assim, conviver
em um “contexto social hostil à sua orientação sexual” (GHO-
RAYEB, 2007, p. 31), pode representar um fator prejudicial
para a saúde mental e, consequentemente, para a qualidade
de vida destes sujeitos.
Diante disso, um dos participantes revelou que chegou a
tentar suicídio devido a intensidade de sofrimento em deter-
minado período do processo de autoaceitação. Ele associa a
257
influência da sua formação católica como um dos pontos que
dificultaram e tornaram doloroso este processo: “Gostaria de
dizer é que a minha formação numa família católica, influen-
ciou muito, muito mesmo na minha aceitação.” (H)
Destaca-se que o processo de socialização primária, res-
ponsável pela inserção do sujeito na sociedade, é de extre-
ma importância para sua construção indentitária, visto que
“é aquela que se dá no meio familiar, realizada por pessoas
próximas que, ao experimentarem seus próprios cotidianos,
transmitem-nos à criança, numa transferência direta de valo-
res e conceitos” (MACHADO; WUO, 2019, p.6). Tais valores,
conceitos e crenças, constituídos e repassados por gerações,
têm forte influência social e cultural, ressaltando-se os gran-
des impactos dos discursos católicos nesse processo. Assim,
muito do que pode ser aprendido no seio familiar, principal-
mente em relação a sexualidade, está perpassado pelas con-
cepções religiosas.
Para o grupo, a relação familiar se mostrou enquanto um
desafio no que diz respeito a aceitação da homossexualidade.
Para a maioria, assumir sua sexualidade para a família foi um
momento extremamente árduo, mas ao mesmo tempo neces-
sário na construção da autoaceitação. Os participantes revela-
ram que o fato do grupo familiar ser muito católico foi um dos
pontos que mais dificultou esse momento: “Eu fui assumir a
minha sexualidade para a minha família em 2018 e foi muito
difícil por causa da religião – minha família é muito católica,
tradicionalmente católica.” (H)
Foi possível observar, ainda, que o encontro com outras
pessoas homossexuais ou o fato de iniciar um namoro, oferece
258
segurança e conforto nesse momento de revelação à família.
Em alguns casos, neste período ocorreu uma crise familiar,
onde o relacionamento se manteve abalado, mas foi sendo re-
tomado aos poucos, dentro dos limites reconhecidos por cada
um.
Zanatta (2019) aponta que é na família onde os jovens ho-
mossexuais encontram seu principal apoio social e econômico
e, por isso, a revelação da orientação sexual pode ser atraves-
sada pelo medo de perder esses suportes, de se sentirem de-
samparados e não terem mais o afeto e a proteção da família.
Outro fenômeno elucidado por um dos sujeitos do grupo
foi a mudança de religião, que aparece como uma estratégia
para conseguir se sentir mais acolhido e aceito. Ele afirmou
que o acolhimento encontrado na religião de matriz africana
auxiliou diretamente no processo de autoaceitação da sua ho-
mossexualidade:

A religião também me deu muita força, porque


dentro da religião de matriz africana, seja um-
banda, seja candomblé, você é o que você quiser
ser. [...] esse fato da religião ter me acolhido, me
ajudou muito no processo da minha aceitação em
si. [...] na igreja (católica) eu não achei esse aco-
lhimento que eu encontrei na religião afro-brasi-
leira. (V)

Desta maneira, identifica-se que a relação com a religião


atravessa a vida dos sujeitos em diversos âmbitos, pois há
uma valorização dos aspectos provenientes dela, que dão sen-
259
tido para a vivência aqueles que a seguem (ARAUJO, 2013).
Por fim, as falas dos participantes reforçam como que os
atravessamentos dos discursos propagados pelo catolicismo e
enraizados na cultura interferem no processo de autoaceita-
ção, ou seja, de olhar para si se reconhecendo enquanto parte
de um contexto e se sentindo incluído enquanto cidadão.
A coerção, muitas das vezes implícitas, presentes no discur-
so católico, impostas aos homossexuais, são catalizadoras de
sofrimento mental, adoecimento, violência e exclusão.
A autoaceitação é o primeiro passo para a qualidade de vida,
se reconhecer enquanto sujeito livre, respeitado e incluído na
sociedade. Como tornar possível essa realidade diante de um
discurso de condenação e exclusão, concernente de uma das
principais instituições formadoras de opinião e paradigmas
como a igreja católica?

Considerações Finais

É evidente que a história do catolicismo ajudou a construir


um olhar negativo sobre a homossexualidade, de forma a mo-
delar as subjetividades a partir das experiências religiosas.
As transformações ocorridas nos últimos anos em relação
a experiência da sexualidade humana demonstraram maior
abertura e compreensão do fenômeno da homossexualidade,
mas que ainda são contrariadas pela não atualização dos dis-
cursos religiosos, que insistem em uma percepção pecamino-
sa, mantendo-se em silêncio diante do tema que se torna uma
realidade cada vez mais evidente, inclusive dentro dos espa-
ços religiosos. A falta de diálogo da igreja católica favorece a
260
manutenção das leituras distorcidas sobre a homossexualida-
de, pois manter o silêncio é manter a discriminação, o precon-
ceito e as consequências advindas destes.
A interação entre os integrantes do grupo demostrou a ne-
cessidade de se discutir e de serem escutados em relação ao
tema, uma vez que, diante do silenciamento, esses sujeitos,
de maioria católica, não encontram espaço nos contextos re-
ligiosos, refletindo na forma como estes se sentem acolhidos.
O acolhimento, inclusive, aparece como fator relevante para
eles, uma vez que, sentir-se acolhido pela religião e pela famí-
lia pode ser auxiliar no processo de autoaceitação. Em contra-
partida, o não acolhimento traz obstáculos para esse processo
e muitos vivem uma negação da sua sexualidade.
Os seminários católicos aparecem como espaços onde essa
negação pode ser observada de forma significativa para rapa-
zes que reconhecem sua homoafetividade e, diante da resistên-
cia em assumi-la, para si e para os demais, acabam recorrendo
a este espaço, acreditando no sacerdócio como uma “melhor
saída” no momento. E estando dentro dessa realidade, obser-
va-se a dificuldade em identificar o real desejo em ser padre,
da relação de usar dessa imagem para reprimir sua sexuali-
dade. Por esses motivos, os seminários e sua ligação como a
homossexualidade tem sido objetos de estudos recentes.
Além disso, os fatores aqui apontados afetam diretamente
no processo de autoaceitação da homossexualidade, uma vez
que, perante tanto controle simbólico e, muitas das vezes ex-
plícito, os sujeitos de orientação homossexual se veem dian-
te das diversas consequências que a leitura social pode pro-
duzir em suas vidas. Reforça-se que, dentro dessa leitura, o
261
discurso da Igreja Católica enraizado em nossa cultura, acaba
sendo propagador de muita incompreensão e exclusão a este
público. O fato de muitos desses indivíduos possuírem uma
formação familiar cristã católica, pode agravar o sofrimento
enfrentado durante este processo, visto que estes indivíduos,
educados a partir das crenças e valores religiosos, podem vi-
venciar um conflito pessoal ainda maior em relação a aceita-
ção da sua própria sexualidade.
Assim, compreendendo os impactos causados pelas leitu-
ras distorcidas a respeito da homossexualidade e os efeitos
negativos vivenciados por este grupo, o presente trabalho fun-
ciona como uma forma de busca de elementos que proporcio-
nem à comunidade acadêmica, social, científica e religiosa um
olhar mais acolhedor sobre a população LGBTQIA+, a partir
de um discurso crítico sobre tal realidade histórica. Destaca-
-se a importância de se trabalhar processos relacionados a au-
toaceitação, para que os sujeitos homossexuais se sintam mais
fortalecidos a enfrentar os contextos de opressão nos quais se
deparam cotidianamente e interferem nas suas formas de ser
e estar no mundo.

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afetivos sobre sua trajetória e implicações para a saúde men-
tal. Esc Anna Nery, 2019.

265
Considerações Finais

Os capítulos que compõem essa obra expõem as diversas


possibilidades de transpor barreiras, construir novos cami-
nhos diante dos conflitos que atravessamos, especialmente
a partir da crise sanitária e social motivada pela COVID-19.
Essa é a finalidade da psicologia, contribuir para que sujeitos
em suas múltiplas formas de sofrimento possam encontrar
novos modos de ser e estar no mundo e que possam viver com
qualidade de vida. Os caminhos a serem traçados dependem
de cada história. A psicologia ocupa o lugar de ajudar a ilumi-
nar o caminho para que possamos seguir em frente.
Em cada capítulo é possível observar que a psicologia tra-
balha em prol da sociedade e do bem coletivo, recorrendo a di-
versas estratégias, um reflexo das diferentes abordagens epis-
temológicas e metodológicas da área, como possibilidade de
construir novos espaços de interlocução e promoção em saúde
mental. Diferentes sujeitos são acolhidos e cuidados em suas
especificidades e temas relevantes são debatidos, para que
possamos construir reflexões e pensar saídas. Cada capítulo
cumpre a função de escancarar aos nossos olhos os múltiplos
públicos afetados pela pandemia e a ética assumida pela pro-
fissão. Não existe a pretensão de esgotar o debate, mas de pro-
duzir incômodos para que possamos pensar as possibilidades
e limites os quais nos deparamos no contexto pandêmico.
Neste contexto, é possível observar nos capítulos que a
tecnologia atuou como importante mediadora, oferecendo
múltiplas possibilidades de atuação para profissionais da di-
versas áreas da Psicologia. Contudo é preciso pontuar que a
266
participação dos sujeitos foi limitada pelas condições de aces-
so à internet e ao computador/celular/tablete, o que desnuda
as condições sociais, econômicas e políticas brasileiras. Não
é possível finalizar essa obra sem provocar o leitor a refletir
sobre desigualdades, sobre a dificuldade de acessar aqueles
que precisam profundamente de cuidados em saúde mental
e se tornam potencialmente excluídos diante do contexto de
pandemia. A exclusão social digital tornou-se tema de pauta
e de luta no campo das psicologias, visto que não é possível
falar em equidade quando não se oferta as condições de aces-
so diante de cada limitação. Ademais, tal situação reforça os
atravessamentos relacionados as desigualdades sociais e suas
interseccionalidades presentes no cenário brasileiro, o que
destaca o compromisso ético, político e estético da psicologia
em prol da transformação social.
Apesar das conquistas aqui apresentadas no que se refe-
re a realização de pesquisa, extensão, estágios, práticas psi-
coterápicas e demais produções de conhecimento diante das
condições impostas pela pandemia, grande parte da popula-
ção ainda se encontra ilhada, sendo fundamental ampliar as
pontes, ir ao encontro das comunidades, compreender a reali-
dade e pensar de forma coletiva. Portanto, apresentamos aqui
trabalhos que mostram que é possível e convidamos a todos os
envolvidos no universo psi a dar um passo ampliando possi-
bilidades, visto que os efeitos da pandemia ainda reverberam
em nós. Por fim, esperamos que os leitores desta obra tenham
possibilidade de refletir de forma crítica, que inspire práticas
e que se sintam provocadas/os a produzir sobre este campo de
conhecimento.
267
Sobre os autores

Alexandre Simões
Graduado em Psicologia/UFMG, Mestrado e Doutorado nas
interfaces da Filosofia com a Psicanálise-FAFICH/UFMG.
Professor da Universidade do Estado de Minas Gerais/UEMG.
Líder do grupo de pesquisa Plataforma de Estudo e Pesquisa
da Subjetividade na Contemporaneidade/PESC.
Contato: alexandresimoes@terra.com.br

Aline Gomes Martins


Psicóloga, Especialista em Educação Especial e Inclusiva,
Mestre e Doutora em Psicologia Social, professora do curso de
graduação em Psicologia da Universidade do Estado de Minas
Gerais (UEMG).
Contatos: alinepsicomartins@gmail.com
aline.martins@uemg.br

Ana Cláudia Soares Silva


Graduanda em Psicologia pela Universidade do Estado de
Minas Gerais- UEMG/ Divinópolis. Bolsista do Projeto de
Extensão "Política de Acesso e Permanência de Pessoas com
Deficiência na Unidade Divinópolis/ UEMG - Ledor/Acompa-
nhante para Acessibilidade.

Ana Lígia Abreu Bot


Graduanda em Psicologia pela Universidade do Estado de Mi-
nas Gerais – Unidade Divinópolis. Integrante do Núcleo de
Estudos em Avaliação Psicológica e Saúde (NEAPS).
Contato: ana.1637298@discente.uemg.br

268
Ana Luiza Martins
Graduanda em Psicologia na Universidade do Estado de Mi-
nas Gerais / Unidade Divinópolis (UEMG).
Contato: ana.1692501@discente.uemg.br

Ana Maria Mazon Araújo


Graduanda do curso de Psicologia pela Universidade do Esta-
do de Minas Gerais. Membro e colaboradora do Grupo de Pes-
quisa em Neurociências, Cronobiologia e Psicologia do Sono
(LNCPs/UEMG).

Ana Raquel de Oliveira


Professora do Departamento de Fundamentos da Educação
da UFPI/CMPP/CCE e do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia (UFPI/UFDPar). Coordenadora do Núcleo de Es-
tudos, Pesquisas e Extensão em Neurociências e Educação
(NEPENE/UFPI) e líder do Laboratório de Neurociências,
Avaliação Psicológica e Educação (DGP/CAPES).

André Vitor Oliveira Dantas


Discente do curso de Psicologia da Universidade do Estado de
Minas Gerais/UEMG - Unidade Divinópolis. Bolsista do Pro-
jeto de Extensão Plantão Psicológico on-line: acolhimento e
prevenção (PPOLAP).
Contato: andrevitoroli@hotmail.com

Aryadne Santos Branquinho


Graduanda em Psicologia pela Universidade do Estado de Mi-
nas Gerais - UEMG/Divinópolis.

269
Bruna Mariana de Freitas Camargos
Graduanda em Psicologia pela Universidade do Estado de Mi-
nas Gerais - UEMG/Divinópolis.

Cláudia Aparecida de Oliveira Leite


Docente do Curso de Psicologia da UEMG/Divinópolis. Gra-
duação em Psicologia (UFMG). Mestre e Doutora em Linguís-
tica (UNICAMP). Pós-doutorado em Clínica psicanalítica do
sujeito e do laço social (Universidade de Toulouse II - França).

Gabriela Carolina de Lima Silva


Graduanda em Psicologia pela Universidade do Estado de Mi-
nas Gerais - UEMG/Divinópolis.

Gabriela Correia Teixeira


Graduanda do curso de Psicologia pela Universidade do Es-
tado de Minas Gerais. Membro e colaboradora Grupo de Pes-
quisa em Neurociências, Cronobiologia e Psicologia do Sono
(LNCPs/UEMG).

Gesianni Amaral Gonçalves


Pós-doutoranda Processos de Subjetivação/PUC Minas. Dou-
tora em Estudos Psicanalíticos/UFMG. Mestre em Psicologia/
PUC Minas. Especialista em Arte e Educação/UEMG. Profes-
sora da Universidade do Estado de Minas Gerais/UEMG. Vi-
ce-líder do grupo de pesquisa Plataforma de Estudo e Pesqui-
sa da Subjetividade na Contemporaneidade/PESC.
Contato: gesianni@terra.com.br

270
Giovanna de Almeida dos Santos
Graduanda em Psicologia pela Universidade do Estado de Mi-
nas Gerais – Unidade Divinópolis. Integrante do Núcleo de
Estudos em Avaliação Psicológica e Saúde (NEAPS).
Contato: giovanna.1692301@discente.uemg.br

Jéssica Bruna Santana Silva


Psicóloga pela Universidade Federal do Piauí, Mestre em
Neurociência Cognitiva e Doutora em Psicologia Social pela
Universidade Federal da Paraíba. Professora Efetiva do cur-
so de Psicologia da Universidade do Estado de Minas Gerais.
Vice-coordanadora do Grupo de Pesquisa em Neurociências,
Cronobiologia e Psicologia do sono (LNCPs/UEMG).
Contato: jessica.santana@uemg.br

Júlia Gabriela Antunes Fonseca


Graduanda em Psicologia pela Universidade do Estado de Mi-
nas Gerais – Unidade Divinópolis. Integrante do Núcleo de
Estudos em Avaliação Psicológica e Saúde (NEAPS).
Contato: julia.1637294@discente.uemg.br

Juliana de Oliveira Moreira


Graduanda em Psicologia pela Universidade do Estado de Mi-
nas Gerais – Unidade Divinópolis. Integrante do Núcleo de
Estudos em Avaliação Psicológica e Saúde (NEAPS).
Contato: juliana.1692327@discente.uemg.br

Luiza Andrade Pereira Ferrer Silva


Graduanda em Psicologia pela Universidade do Estado de Mi-
nas Gerais - UEMG/Divinópolis.

271
Mara Salgado
Formação em Psicologia pela Universidade Federal de São
João del Rei (UFSJ). Mestre e Doutora em Educação pela Uni-
versidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora efeti-
va no curso de Psicologia da Universidade do Estado de Minas
Gerais / Unidade Divinópolis (UEMG).
Contato: mara.salgado@uemg.br

Maria Cecíllia Resende Silva


Graduanda em Psicologia pela Universidade do Estado de Mi-
nas Gerais - UEMG/Divinópolis.

Michael Jackson Oliveira de Andrade


Doutor em Psicologia pela Universidade Federal da Paraí-
ba. Professor Efetivo do curso de Psicologia da Universidade
do Estado de Minas Gerais. Líder do Grupo de Pesquisa em
Neurociências, Cronobiologia e Psicologia do sono (LNCPs/
UEMG).

Michelle Morelo Pereira


Psicóloga, Mestre e Doutora em Psicologia, docente no curso
de graduação em Psicologia da Universidade do Estado de Mi-
nas Gerais (UEMG). Líder do Núcleo de Estudos em Avalia-
ção Psicológica e Saúde (NEAPS) e integrante do Laboratório
de Trabalho, Saúde e Processos de Subjetivação (LATRAPS).
Contato: michelle.pereira@uemg.br

272
Pricila Scalioni Moreira
Graduanda em Psicologia pela Universidade do Estado de Mi-
nas Gerais – Unidade Divinópolis. Integrante do Núcleo de
Estudos em Avaliação Psicológica e Saúde (NEAPS).
Contato: pricila.1692511@discente.uemg.br

Reinaldo da Silva Júnior


Psicólogo, doutor em Ciência da religião, professor adjunto do
curso de graduação em Psicologia da Universidade do Estado
de Minas Gerais (UEMG).
Contato: reipsi@yahoo.com.br

Tatiana Fonseca Linhares


Graduanda em Psicologia na Universidade do Estado de Mi-
nas Gerais/ Unidade Divinópolis (UEMG).
Contato: tatiana.1693245@discente.uemg.br

Thayná Millene da Silva Simões


Graduanda em Psicologia pela Universidade do Estado de Mi-
nas Gerais - UEMG/Divinópolis.

Vanessa Guimarães da Silva


Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Ge-
rais (UFMG) com ênfase na área de Estudos Psicanalíticos.
Sua pesquisa tem como principal foco a análise das manifesta-
ções do corpo na contemporaneidade a partir das articulações
entre arte e psicanálise. Atualmente faz parte do corpo docen-
te da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG).

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Este e-book foi composto na tipologia Georgia,
em corpos 9/10/11/12/14/18. A diagramação foi
realizada em fevereiro de 2023 pela Assessoria
de Comunicação da UEMG Divinópolis.

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